Florestas Culturais

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Revista Presença Geográfica

ISSN: 2446-6646
[email protected]
Fundação Universidade Federal de Rondônia
Brasil

Florestas culturais: uma legítima


conciliação entre homem e natureza
Benaion Bezerra Thevenin, Talita; Reis Thevenin, Julien Marius
Florestas culturais: uma legítima conciliação entre homem e natureza
Revista Presença Geográfica, vol. 06, núm. 02, 2019
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
DOI: https://doi.org/10.36026/rpgeo.v6i2.4339

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Revista Presença Geográfica, 2019, 06(02), Julho-Dezembro, ISSN: 2446-6646

Artigos

Florestas culturais: uma legítima conciliação entre homem e natureza


Bosques culturales: una conciliación legítima entre hombre y naturaleza

Talita Benaion Bezerra evenin [1] DOI: https://doi.org/10.36026/rpgeo.v6i2.4339


Universidade do Estado do Amazonas, Brasil
[email protected]
http://orcid.org/0000-0001-5765-0379 Recepção: 12 Julho 2019
Aprovação: 13 Outubro 2019
Julien Marius Reis evenin [2]
Universidade Federal de Rondônia, Brasil
[email protected]
http://orcid.org/0000-0002-7714-7364
Recepção: 12 Julho 2019
Aprovação: 13 Outubro 2019

Resumo:
O presente artigo tem como objetivo analisar a relevância dos povos tradicionais em sua relação com a natureza, destacando
os seus saberes ambientais e a sustentabilidade de suas práticas, haja vista a necessária inversão das práticas degradantes de uso
do solo, baseadas em monoculturas extensivas e no agronegócio. Para tal, buscou-se a priori destacar os instrumentos legais de
reconhecimento e garantias aos povos tradicionais, bem como elucidar as florestas culturais como promotoras da conservação dos
recursos naturais e os conhecimentos tradicionais desses povos por meio da etnociência. Neste sentido, destacam-se as práticas
de manejo sustentáveis, notadamente os Sistemas Agroflorestais (SAF), que se mostram como uma alternativa sustentável de
produção, além de estimular o resgate e a reconciliação do homem com a natureza que o cerca.
Palavras-chave: Povos Tradicionais, Florestas Culturais, Sistemas Agroflorestais.

Resumen:
El objetivo de este artículo es analizar la relevancia de los pueblos tradicionales en su relación con la naturaleza, destacando su
conocimiento ambiental y la sostenibilidad de sus prácticas, dada la necesaria inversión de las prácticas degradantes de uso del suelo
basadas en monocultivos extensos y agroindustria. Para ello, buscamos a priori resaltar los instrumentos legales de reconocimiento
y garantía para los pueblos tradicionales, así como para dilucidar los bosques culturales como promotores de la conservación de
los recursos naturales y el conocimiento tradicional de estos pueblos a través de la etnociencia. En este sentido, destacamos las
prácticas de manejo sostenible, en particular los Sistemas Agroforestales (SAF), que se muestran como una alternativa sostenible
de producción, además de estimular el rescate y la reconciliación del hombre con la naturaleza que lo rodea.
Palabras clave: Pueblos tradicionales, Bosques Culturales, Sistemas Agroforestales.

INTRODUÇÃO

O modelo socioeconômico hegemônico globalizado, pautado no consumismo e no lucro, tem conduzido


a sociedade à utilização insustentável dos recursos naturais, ocasionando a atual crise ambiental. Tal
problemática é amplamente visível com as alterações climáticas, reduções de recursos hídricos, degradações

Autor notes

[1] Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. E-mail: [email protected]

[2] Pós-doutorando no Programa e Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Rondônia-UNIR. Bolsista do Programa Nacional de Pós-
Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – PNPD/CAPES. E-mail: [email protected]

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do solo, desmatamentos e poluição em diversas formas e níveis, dentre outros, comprometendo, assim, o
direito fundamentalmente assegurado à sadia qualidade de vida.
A crise ambiental é resultado, portanto, da utilização dos recursos naturais de forma insustentável pelo
homem, não observando os devidos cuidados necessários à conservação do meio ambiente e tampouco se
importando com a salvaguarda destes recursos para as presentes e futuras gerações.
Em sentido contrário a tais práticas agressoras, ressalta-se o valor dos povos tradicionais na conservação
dos recursos naturais. Muitas destas populações rurais são exemplos da boa relação e interconexão homem-
natureza, aplicando práticas sustentáveis de uso e ocupação dos solos, desenvolvidas por saberes milenares
transmitidos oralmente por seus ancestrais. A partir de sua cultura e crença, esses povos tendem a estabelecer
regras de uso comunitário dos recursos naturais pautadas no respeito, na sacralidade e numa valorização que
transcendem à visão economicista sobre o meio ambiente.
Diante disto, estudos recentes vêm comprovando os benefícios concretos das práticas de manejo dos povos
tradicionais, na constituição das florestas culturais, tendo em vista a forte ligação destes povos com os ciclos
ecossistêmicos e uma relação sustentável com os recursos naturais.
Assim, urge o rompimento do atual modo de produção que investe no agronegócio com práticas de
monoculturas que não levam em consideração as potencialidades naturais do uso da terra, mas tão somente
a busca do que é mais rentável para exploração econômica.
Para tanto, faz-se necessária a adoção de práticas ecologicamente corretas, como as desenvolvidas pelos
povos tradicionais, a fim de que contribuam tanto para a conservação florestal, quanto para o incentivo da
integração do homem com a natureza, a fim de, se não solucionar, ao menos minimizar os impactos geradores
da famigerada crise ambiental.
Neste diapasão, o presente artigo tem como objetivo analisar a relevância dos povos tradicionais em sua
relação sustentável com o meio ambiente nos quais estão inseridos, como um mecanismo de resgate essencial
ao homem que vive no meio urbano e necessita reconciliar-se com o meio natural, para o devido reencontro
com valores essenciais como o respeito, a ética, o zelo e a comunhão com a natureza.
Para a consecução do mesmo, utilizou-se como método a pesquisa bibliográfica e documental, recorrendo-
se a livros, artigos e legislação relacionados ao tema abordado.
Dividiu-se o artigo em três seções: na primeira são apresentados os instrumentos legais de reconhecimento
e garantias aos povos tradicionais; posteriormente é elucidada a influência das florestas culturais na
conservação dos recursos naturais; e, por fim, adentra-se nos saberes ambientais e sua inter-relação com as
práticas sustentáveis.

1. INSTRUMENTOS LEGAIS DE RECONHECIMENTO E GARANTIAS AOS POVOS


TRADICIONAIS

Dentre os instrumentos legais criados a favor dos povos tradicionais no Brasil, destaca-se a criação das
Unidades de Conservação de Uso Sustentável, por meio da Lei 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional
de Unidades de Conservação – SNUC (BRASIL, 2000). Tais unidades têm por objetivo, segundo o parágrafo
2º do artigo 7º da supracitada Lei, “compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela
dos seus recursos naturais”, admitindo, portanto, a morada de populações humanas nestes locais.
Não obstante o prisma conservador de que apenas as Unidades de Uso Integral são as que efetivamente
garantem a preservação dos recursos naturais, na visão do meio ambiente intocável, uma posição contrária,
pautada em diversas pesquisas e ações concretas, vem obstinadamente corroborando que as florestas naturais
são também florestas culturais. Isto porque tais florestas são apoiadas pela cultura de diferentes populações
tradicionais que desenvolveram saberes sobre o funcionamento destes ecossistemas, bem como múltiplos
valores nos usos das florestas e práticas sociais compatíveis, com a devida utilização de seus recursos dentro
de diversos sistemas de manejo que asseguram a sustentabilidade (SEARS; PINEDO-VASQUEZ, 2005).

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No que concerne aos sistemas de manejo, o artigo 2º, inciso VIII, da Lei do SNUC define manejo
como “todo e qualquer procedimento que objetive garantir a conservação da diversidade biológica e dos
ecossistemas”. Assim, apesar de diversas formas de manejo existentes, conforme elucida Albuquerque (2005),
a maioria destas não relaciona os povos que habitam tradicionalmente há anos estes ecossistemas. A
demonstração clara disto são as Unidades de Uso Integral que dentro de sua gestão preconizam a remoção
das populações humanas que ali já viviam antes da apropriação da área pelo Estado.
Outro instrumento legal relativo aos povos tradicionais que merece destaque é a Lei 11.284/2006, que
dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável, tendo como princípios (artigo 2º)
a proteção dos valores culturais associados à biodiversidade ecossistêmica; o estabelecimento de atividades
que promovam o uso eficiente e racional das florestas, contribuindo para o desenvolvimento sustentável; o
respeito ao direito da população, em especial das comunidades locais, de acesso às florestas públicas e aos
benefícios decorrentes de seu uso e conservação; a garantia de condições estáveis e seguras que estimulem
investimentos de longo prazo no manejo, na conservação e na recuperação das florestas; dentre outros
(BRASIL, 2006).
Cumpre destacar que a gestão de florestas está diretamente associada à gestão das comunidades locais,
que poderão regularizar a ocupação e/ou utilização de seus territórios, imprescindíveis à conservação de
sua identidade cultural, conforme prevê o artigo 6º da Lei. Tal artigo estabelece a identificação destas
florestas públicas conforme sua destinação, prevendo a criação de Reservas Extrativistas (RESEX) e de
Desenvolvimento Sustentável (RDS), e a concessão de uso por meio de projetos de assentamento florestal, de
desenvolvimento sustentável, agroextrativistas ou outros similares, para a realização das concessões florestais,
de forma não onerosa.
Os povos tradicionais, por sua vez, tiveram o reconhecimento de sua existência formal apenas em 2007,
por meio do Decreto Presidencial nº. 6.040, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais, sendo assim definidos legalmente, ipsis literis:
Art. 3o Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se por:
I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela
tradição (BRASIL, 2007);

Além da garantia assegurada legalmente da gestão das florestas e de sua biodiversidade, é cogente que
tais povos também possam usufruir da exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir
de seus saberes tradicionais e do material genético existente em seu território, por meio de um sistema
de repartição justa dos benefícios. Tais conhecimentos abrangem técnicas de manejo de recursos naturais,
métodos de caça e pesca, saberes acerca dos diversos ecossistemas, bem como de propriedades farmacêuticas,
alimentícias e agrícolas, além das próprias categorizações e classificações de espécies de fauna e flora utilizadas
(SANTILLI, 2005).
Neste diapasão, cumpre destacar a existência da recente Lei n.º 13.123, de 20 de maio 2015, a qual dispõe
sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, e acerca da repartição de benefícios para
conservação e uso sustentável da biodiversidade, prevendo em seu artigo 8º a proteção dos conhecimentos
tradicionais associados ao patrimônio genético dos povos tradicionais, em que é assegurada a sua participação
nas tomadas de decisões acerca do assunto.
Conforme bem elucida Noda et al. (2002), é fundamental ao agricultor tradicional manter a estabilidade
dos níveis de biodiversidade dos ecossistemas por ele manejados. No que concerne aos recursos genéticos, sua
conservação é assegurada na proporção em que se mantém a sustentabilidade do sistema produtivo. Neste
viés, os produtores tradicionais destacam-se como os povos que ainda cultivam e conservam a variabilidade
genética de espécies olerícolas, frutíferas, florestais e medicinais.

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Ademais, ainda segundo os autores, os sistemas de conservação e melhoramento genético in situ de muitas
espécies cultivadas, desenvolvidos por estes povos, podem apresentar-se também como uma alternativa
econômica a fim de geração de renda aos agricultores tradicionais, que receberam os devidos saberes com seus
ancestrais, que inclusive melhoraram a qualidade das plantas.
Portanto, os direitos legais assegurados às populações tradicionais e sua inserção, ainda que timidamente,
nas UC’s de Uso de Sustentável caracterizadas nas RESEX e RDS, previstas nos artigos 18 e 20,
respectivamente, da Lei do SNUC (BRASIL, 2000), têm um importante papel na conservação dos recursos
naturais, posto que tais povos muitas vezes contribuem para evitar manejos artificiais que comprometam
grandes áreas contínuas de florestas, atuando como guardiões contra a extração ilegal de madeiras e as ações
agrosilvopastoris de forma extensiva.
Imperioso destacar a estrita relação das florestas culturais na manutenção dos recursos naturais para além
das UC´s, visto que nem todos os povos tradicionais estão atualmente inseridos nestas Unidades e por isso
vêm travando lutas para terem seus direitos territoriais reconhecidos nos instrumentos legais de proteção da
floresta, tendo em vista sua significância à conservação da cultura e desses ecossistemas, desempenhando um
valoroso papel na conservação dos recursos ambientais nas áreas em que habitam.

2. FLORESTAS CULTURAIS E A CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS

É notória a estreia vinculação de florestas públicas naturais enquanto florestas culturais, supracitada. Neste
sentido, Furlan (2006, p. 5) compreende florestas culturais como:
[...] florestas manejadas pelas populações rurais, particularmente em áreas indígenas, comunidades ribeirinhas, seringueiros,
quilombolas, caiçaras entre outros. São espaços sobre os quais as comunidades tradicionais não têm documentos de
propriedade privada da terra e a ocupam e usam seus recursos de forma compartilhada.

Assim, tais florestas caracterizam-se como as manejadas por estes povos tradicionais, compreendendo os
ribeirinhos, quilombolas, caboclos, varzeiros, indígenas, extrativistas – sejam estes seringueiros, babaçueiros,
campeiros, castanheiros, coletores de frutos, sementes, ervas medicinais, óleos e resinas, caiçaras, pastores,
pescadores, praieiros, artesãos, entre outros.
Os povos tradicionais, por sua vez, distinguem-se por serem adaptados ao ecossistema em que vivem e
adotarem uma estratégia multiuso na apropriação da natureza; praticam a produção rural de pequena escala,
voltada principalmente para subsistência, com pouca utilização de energia e pequena produção de excedentes;
compartilham língua, religião, crenças e vestimentas; têm uma relação estreita com seu território; possuem
uma forma de ver o mundo que resulta em uma atitude protecionista e não materialista da terra e dos recursos
naturais, com base em um intercâmbio simbólico com o mundo natural (Toledo, 2001).
Segundo Diegues (1992, p. 142):
Comunidades tradicionais estão relacionadas com um tipo de organização econômica e social com reduzida acumulação de
capital, não usando força de trabalho assalariado. [...] Seus padrões de consumo, baixa densidade populacional e limitado
desenvolvimento tecnológico fazem com que sua interferência no meio ambiente seja pequena.

Por outro lado, Moran (2009) anos depois nega a ideia de que a conservação dos ecossistemas por estes
povos seja oriunda da baixa densidade populacional dos mesmos no decorrer dos anos, ao afirmar que o
crescimento populacional não está fundamentalmente vinculado ao avanço do desmatamento local, posto
que em muitos episódios constatados a densidade populacional aparece relacionada a melhorias do manejo
e restauração florestal. Ou seja, a conservação dos recursos naturais está diretamente associada às práticas de
uso e manejo de baixo impacto ambiental destas populações tradicionais.
Desta forma, em que pese o pensamento já difundido de que o baixo contingente populacional destes povos
na Amazônia aliado ao pouco acesso à tecnologia com uso de práticas mais rudimentares ser causa para o

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baixo impacto ambiental de suas atividades, isto não se mostra realidade. Tais fatores podem auxiliar na não
degradação do meio ambiente, mas não constituem o real motivo, posto que as práticas de manejo e de uso
sustentado dos recursos desenvolvidas por estes povos há milênios é que fazem o verdadeiro diferencial.
Ademais, os povos tradicionais desenvolveram, por conta do parcial isolamento, modos de vida
diferenciados, relacionando-se com uma forte conexão dos ciclos naturais, tanto pelo conhecimento
profundo dos ciclos biológicos, quanto dos recursos naturais (DIEGUES, 2001).
Neste sentido, estudos arqueológicos têm provado a existência de grandes contingentes de população
indígena às margens das várzeas dos rios amazônicos e mostrando que a influência do homem sobre a
cobertura vegetal na Amazônia teve início com a chegada destes primeiros grupos de caçadores-coletores há,
no mínimo 11 (onze) mil anos, sendo feita de forma extensiva e intensiva (MAGALHÃES, 2008).
Segundo Clement e Junqueira (2008), tais populações, percebendo que estavam rodeadas de espécies
florestais benéficas, contudo de características muito diversas, passaram a selecionar as melhores plantas para
difundir nos solos, dando início ao processo de domesticação.
Utilizando de tais métodos, os povos indígenas domesticaram pelo menos 47 (quarenta e sete) espécies
frutíferas na Amazônia, motivo pelo qual a Amazônia se destaca no mapa mundial das frutas e cujo cultivo é
proposto como alternativa ao desenvolvimento sustentável da Região (CLEMENT, 2008).
Conforme as derradeiras descobertas científicas, uma parcela significativa das florestas atuais, inclusive
as consideradas “virgens”, pode ser resultado do manejo humano e não meramente de evolução natural,
decorrentes, portanto, da ação cultural com intensa ingerência na seleção, distribuição e inclusive evolução
de espécies florestais (MAGALHÃES, 2008).
Com tal exemplo indígena milenar destacado, mostra-se clarividente a influência positiva das populações
tradicionais na composição da biodiversidade, bem como na conservação dos recursos naturais, posto que sua
cultura e seus saberes acerca do meio ambiente permitem uma melhor compreensão, manejo e até mesmo o
enriquecimento dos recursos florestais.
Os povos tradicionais Amazônidas também se destacam na conservação dos recursos genéticos vegetais,
tão importantes para a garantia a uma sadia qualidade de vida destas comunidades e das presentes e futuras
gerações.
Conforme bem elucida Noda et al. (2002), é fundamental ao agricultor tradicional manter a estabilidade
dos níveis de biodiversidade dos ecossistemas por ele manejados. No que concerne aos recursos genéticos, sua
conservação é assegurada na proporção em que se mantém a sustentabilidade do sistema produtivo. Neste
viés, os produtores tradicionais destacam-se como os povos que ainda cultivam e conservam a variabilidade
genética de espécies olerícolas, frutíferas, florestais e medicinais.
Ademais, ainda segundo os autores, os sistemas de conservação e melhoramento genético in situ de muitas
espécies cultivadas, desenvolvidos por estes povos, podem apresentar-se também como uma alternativa
econômica a fim de geração de renda aos agricultores tradicionais, que receberam os devidos saberes com seus
ancestrais, que inclusive melhoraram a qualidade das plantas.
Para tanto, faz-se necessário que o Governo incentive formas de conservação genética como o
estabelecimento de áreas de conservação, plantios experimentais, programas de coleta e armazenamento de
sementes e o desenvolvimento de pesquisas científicas aliadas aos saberes dos povos tradicionais (Freitas et
al., 2002).

3. A INTER-RELAÇÃO DO SABER AMBIENTAL COM AS PRÁTICAS SUSTENTÁVEIS:


SISTEMAS AGROFLORESTAIS

As florestas culturais vêm sofrendo forte pressão do modelo socioeconômico capitalista. Isto porque tal modo
de produção desenvolve práticas de monoculturas em larga escala com o agronegócio, que não consideram

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as potencialidades naturais do uso da terra, mas tão somente buscam o que é mais economicamente rentável,
transformando as florestas culturais em grandes plantations.
A fim de solucionar tais problemas causados pelo sistema homogênico, que culminou na atual crise
socioambiental supracitada, os conhecimentos tradicionais destes povos passam a aparecer como alternativas
sustentáveis, por meio da etnociência.
Tal ciência têm se mostrado uma excelente ferramenta metodológica para o estudo das relações entre o
homem e a natureza, com ênfase nos aspectos culturais (MARQUES, 2001). Constitui, assim, uma área
interdisciplinar que examina as interações entre as comunidades tradicionais e o meio natural, transcrevendo
os saberes orais destes povos, transmitidos ao longo das gerações.
Segundo Amorozo (2002), a etnociência tem importante papel ao sistematizar os amplos saberes dos povos
tradicionais, contribuindo para destacar as potencialidades destas populações aos olhares de cientistas e da
sociedade em geral.
Divide-se em diversos campos de pesquisas, como, por exemplo, a etnobotânica, etnosociologia e
etnoecologia, com o desenvolvimento de práticas sustentáveis a partir dos saberes tradicionais adquiridos
com estes povos, podendo aplicá-las para fins conservacionistas (BECK; ORTIZ, 1997), e cooperando, assim,
para a construção de um novo paradigma de desenvolvimento sustentável (TOLEDO, 1992).
Neste sentido, dentre as práticas de uso e manejo dos recursos naturais, com o devido emprego de sistemas
produtivos sustentáveis que sopesem, não só a produtividade econômica e biológica, como também os
aspectos socioambientais, destacam-se os Sistemas Agroflorestais (SAF).
Diante da imperiosa necessidade de harmonizar as questões econômicas da agricultura moderna com as
questões socioambientais, os Sistemas Agroflorestais mostram-se como uma boa alternativa para aperfeiçoar e
conservar os recursos produtivos, com aumento da oferta de madeira, de alimentos e de outros bens e serviços,
de forma sequencial ou simultânea na mesma unidade de área (MONTOYA; MAZUCHOWSKI, 1994).
Conforme elucida Oliveira e Schreiner (1987), os SAF têm sido praticados há muitos séculos pelos povos
tradicionais, contudo, somente nos derradeiros anos passaram a merecer atenção especial, graças às vantagens
que podem oferecer quanto ao uso dos solos, incluindo seus aspectos ecológicos.
Estes Sistemas compreendem formas sustentáveis de utilização da terra que assentam de maneira
simultânea ou em série a determinada retenção, introdução ou mistura de árvores ou outras plantas lenhosas
nos campos de produção agrícola e/ou animal, visando obter benefícios das interações econômicas, ecológicas
e sociais (DANIEL et al., 1999a).
De acordo com Macedo (2000), tais Sistemas permitem aumentar a produção total ou de uma maneira
escalonada, através da vinculação de florestas com culturas agrícolas e/ou criações, aplicando práticas de
manejo ajustadas aos padrões culturais da população local, viabilizando, portanto, o uso da terra dentro do
princípio do rendimento sustentado.
Assim, os SAF envolvem mais de uma espécie de plantas ou de plantas em conjunto com animais,
possuem dois ou mais produtos e são sistemas mais complexos que os de monoculturas, sendo ecológica
e economicamente mais viável. Desta forma, nota-se que os Sistemas Agroflorestais podem elevar o nível
de sustentabilidade do local, abrangendo tanto aspectos econômicos, agronômicos, sociais e ecológicos
(DANIEL et al., 1999a).
Destarte, de acordo com as bases estrutural, funcional, socioeconômica e ecológica, os SAF compreendem
três categorias, podendo ser Sistemas Agrissilviculturais – os quais envolvem cultivos agrícolas e árvores,
incluindo arbustos e/ou trepadeiras; Sistemas Silvipastoris – de associação de pastagens e/ou animais e
árvores; e Sistemas Agrissilvipastoris – os quais assentam cultivos agrícolas, pastagens e/ou animais e árvores.
Ressalte-se que em qualquer desses tipos a combinação de seus componentes poderá ser de forma simultânea
ou sequencial e em uma infinidade de arranjos possíveis (DANIEL et al., 1999b).
Quanto aos tipos, Dantas (1994) destaca que esses Sistemas abarcam os mais diversos possíveis, resultantes
da tradição, cultura, experiência, conhecimento, imaginação, anseios e condições de cada local, envolvendo

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o solo, o clima e a disponibilidade de material de cada produtor, podendo ser vislumbrada uma infinidade
de SAF pelo mundo.
Assim, os Sistemas Agroflorestais têm sido considerados sistemas sustentáveis, constituindo uma solução
alternativa para a recuperação de áreas degradadas, envolvendo tanto a reconstituição das características
diretamente relacionadas ao solo, quanto a recuperação da paisagem de uma forma geral. Ademais, abrange
todos os fatores responsáveis pela produção em harmonia com o ecossistema, quais sejam: o solo, a água, o ar
o microclima, a flora e a fauna. Tais sistemas podem também ser adotados na restauração e recomposição da
Reserva Legal, com o manejo sustentável da vegetação arbórea, na forma de Sistema Agrissilvicultural e pela
adoção de Sistemas Silvipastoris (DANIEL et al., 1999a).
Outrossim, os SAF segundo Lunz e Melo (1998), podem apresentar benefícios como a melhor utilização
dos recursos naturais disponíveis – luz, água e nutrientes –, o aumento da diversificação da produção, a
melhor distribuição temporal do uso da mão de obra familiar e uma maior estabilidade, além da diminuição
da incidência de pragas e doenças, e da redução dos riscos econômicos, dentre outros.
Cumpre corroborar a imperiosa aptidão desses Sistemas para a sustentabilidade, tanto por integrarem
benefícios de produção (alimentos, forragem, macieira, etc.), bem como de serviços (conservação do solo,
manutenção da fertilidade, ciclagem de nutrientes, restabelecimento de microclima, etc.) (MONTOYA;
MAZUCHOWSKI, 1994). Assim, podem trazer vantagens múltiplas tanto ao meio ambiente quanto ao
homem diretamente envolvido, o qual visa auferir benefício de ordem econômica nesta relação.
Portanto, os Sistemas Agroflorestais, praticados há séculos pelos povos tradicionais, mostram-se como uma
boa alternativa para o melhor aproveitamento dos recursos naturais na produção agropecuária, apresentando
a capacidade de reduzir ao mínimo o uso de insumos não renováveis e conservar o meio ambiente, garantindo,
ainda, o resgate de uma boa, saudável e sustentável relação e conciliação do homem com a natureza.

CONCLUSÃO

Resta clara a relevância dos povos tradicionais na conservação dos recursos naturais, tendo em vista as práticas
de manejo sustentáveis utilizadas, que atendem a uma boa relação do homem com a natureza que o cerca.
Estas populações já dispõem de alguns direitos legalmente instituídos, como a instituição das Unidades
de Conservação de Uso Sustentável, a criação da gestão de florestas públicas para uso sustentável, o
reconhecimento de sua existência enquanto povos e comunidades tradicionais, a proteção e acesso ao
conhecimento tradicional associado, e a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da
biodiversidade, em que pese ainda estar longe de lhes serem assegurados tudo que de fato têm direito.
A forma de ocupação dos solos e utilização dos recursos naturais por estes povos tornam tais espaços
verdadeiras florestas culturais, tendo em vista que aplicam ali os conhecimentos tradicionais adquiridos
milenarmente por meio de suas culturas e crenças de valorização, sacralização e respeito à natureza,
constituindo um valoroso exemplo de boa conduta e integração do homem com o meio natural.
Diante disto e da imperiosa necessidade de se reverter a situação da atual crise ambiental global, diversos
estudos passaram a ser feitos para dirimir tal problemática, dentre os quais se destaca o campo da etnociência.
Tal ciência visa transcrever o aprendizado socioambiental transmitido oralmente por estes povos para
a aplicação por povos não tradicionais, analisando os conhecimentos tradicionais destes povos como
alternativas sustentáveis para solucionar ou ao menos minimizar os problemas ambientais causados pelo
sistema capitalista.
Assim, na contramão dos sistemas de monoculturas desenvolvidos pelo agronegócio, os Sistemas
Agroflorestais (SAF) surgem com práticas de manejo ecologicamente corretas desenvolvidas pelos povos
tradicionais, que contribuem tanto para a conservação florestal, quanto para o incentivo da conexão do
homem urbano com a natureza, agindo como promotor de uma verdadeira reconciliação.

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Neste diapasão, cumpre corroborar a importância da manutenção da cultura e crença dos povos
tradicionais na perpetuação de um sistema sustentável de uso e manejo dos recursos naturais, que não podem
ser dizimados pelo sistema cultural hegemônico, sendo essenciais para estimular a supracitada recomunhão
com a natureza, integrada a preceitos de respeito, zelo e união com o meio ambiente, como um mecanismo
propulsor da sadia qualidade de vida e da salvaguarda dos recursos naturais para as gerações presentes e
vindouras.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, U. P. Etnobiologia e biodiversidade. Recife: NUPEEA/Sociedade Brasileira de Etnobiologia e


Etnoecologia, 2005.
AMOROZO, M. C. M. A perspectiva etnobotânica na conservação de biodiversidade. Trabalho apresentado ao XIV
Congresso da Sociedade Botânica de São Paulo. Rio Claro, 2002.
BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição
Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9985.htm. Acesso em: 01 de julho de 2018.
BRASIL. Lei 11.284, de 02 de março de 2006. Dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável.
Institui, na estrutura do Ministério do Meio Ambiente, o Serviço Florestal Brasileiro - SFB; cria o Fundo
Nacional de Desenvolvimento Florestal - FNDF; altera as Leis nos 10.683, de 28 de maio de 2003, 5.868, de
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