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04/01/2018 A vida multiespécie dos ferals dendezeiros — Thiago Mota Cardoso — Medium

Thiago Mota Cardoso


Antropólogo, ecólogo e terrano/ Escrevendo sobre ecologia política, antropologia,
biosocialidades, terra e território e antropoceno.
Oct 24, 2017 - 8 min read

A vida multiespécie dos ferals dendezeiros

D endezeiros são fazedores de mundos, e seu modo de vida contribui


para conformar a textura da paisagem onde vivem. Dendezeiros
não ocorrem apenas de forma subordinada aos humanos (Clement
1992), domesticado ou em um sistema de plantation, como nos conta a
narrativa do excepcionalismo e do domínio humano sobre as “coisa do
mundo”, mas, em muitas partes do mundo ele intra-age (Barad, 2007)
no moldar a vida dos que com ele vive—ele faz paisagens em lugares
precarizados ao longo dos processos coloniais e capitalistas nas
margens das florestas tropicais no Brasil.

Para os índios Pataxó que vivem no litoral sul da Bahia, o dendezeiro é


uma qualidade de coco, enquanto para os botânicos uma espécie da
família das palmeiras (Elaeis guineensis Jacq.), com seus troncos
robustos, recoberto com folhas pinadas de cor na maior parte do tempo
marrom-acinzentado, que o circunda de forma irregular e caxos de
frutos fortemente alaranjados. Para os Pataxó o dendezeiro é vida em
crescimento e movimento, é planta que se vive junto num
entrelaçamento entre muitas diferentes vidas (animais, vegetais,
fungos), enquanto que para a industria o dendê é recurso natural,
escravizado em campos monoculturais para a extração de seu óleo que
adentrará nos circuitos das commodities.

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O dendê possui um ligeiro gosto por um terreno arenoso e salino,


próximo a um corpo d” água. Não vive sozinho, como apregoa a
literatura botânica, mas, assim como nós humanos, o dendezeiro não
age só, mas sim colabora numa comunidade multiespécie, onde seu
ritmo de vida coordena com o fazer de outras vidas e coisas. O dendê é
planta de urubu, comida de pássaros como o papagaio ou de animais
como a paca (agouti), óleo e atrator de caça para os humanos, e
também para estes últimos, fonte de histórias contadas. É interessante
compreendermos como o dendê produz suas relações e a textura de seu
mundo, seu modo de intra-agir coordenado com outros outros,
desafiando fronteiras e limites. O dendezeiro nos ensina que o fazer
mundos não é limitado apenas aos humanos.

Para fazer uma antropologia além do humano, seguindo o modo de


vida de animais, plantas ou fungos (Tsing, 2015), uma prática
interessante é caminhar. As práticas de caminhada são um método
antropológico negligenciado e têm um grande potencial para contar
histórias de jornadas humanas e não humanas, coordenações e
políticas no processo de fazer paisagens (Ingold e Vergnust 2008; Tuck-
Po, 2008). Minha história com os dendezeiros veio da minha pesquisa
de doutorado sobre a criação de paisagens no Monte Pascoal, no
extremo sul da Bahia, no Brasil (Cardoso, 2016). Uma etnografia feita
em caminhadas com os Pataxó para perceber as formas em que lugares-
mundos são produzidos pela intra-ação de múltiplas linhas de vida.
Paisagens que emergem do emaranhamento de práticas heterogêneas e
formas performativas para moldar o mundo em experiências históricas,
criativas, coordenadas e colaborativas. Dendezeiro são figuras
relevantes aqui: crescendo em áreas perturbadas, eles “voam” entre os
lugares, são transfiguradores de fronteiras.

Ao andar nos envolvemos em multiplas narrativas, atentos e


percebedores dos fazeres: uma etnografia como arte da atentividade
(art ofnoticing). Para a arte de perceber, como Anna Tsing (2015: 17) o
fez com os mundos multiespecíficos dos cogumelos, eu incluo, a
atentividade em movimento. É uma proposta para a nós antropólogOs
prestarmos atenção aos movimentos e fluxos, ao crescimento e aos
desenvolvimentos, caminhando como historiadores naturais antigos,
mas não como um observador distanciado, com uma proposta de
pesquisa positivista. Mas um caminhar como um encontro, com nossos
companheiros humanos e não humanos. A arte de perceber em
movimento é uma maneira de procurar o dinamismo e os ritmos de
parceiros colaborativos nos fazer e desfazer a vida na paisagem. E para
isso, como Tsing (2012) propõe, consideremos a diversidade
contaminada e o distúrbio lento. Dendezeiros são bons para andar com

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sagacidade. Eles continuamente trabalham no distúrbio, na margem de


manchas perturbadas pela “modernização do campo”

Durante meu trabalho de campo, fiz muitas reuniões e passeios com


Joel Braz, um “lendário” Pataxó que lutou no movimento indígena para
recuperar o “território tradicional”, agora nas mãos dos agricultores e
das agências ambientais gestora das unidades de conservação de
proteção integral (Parques Nacionais do Monte Pascoal e
Descobrimento). Em nossas jornadas, Joel me fez ver que sua terra está
cheia de carinho e memória. Em uma caminhada com ele em direção a
seus lugares históricos que eu desloquei minha atenção à conexão entre
a vida e a morte nas condições precarizadas da vida. Andar e fazer
lugares, para Joel, é um ato político de cruzar limites impostos por
limites, como as cercas de propriedade privada e Parques Nacionais.
Mas tais práticas envolvem não-humanos que não atuam
necessariamente através de humanos, mas através das linhas de suas
vidas e encontros.

Com Joel me etentei para a feralidade dos dendezeiros. Dendezeiro e


seus companheiros cruzam indiferentes as linhas entre os lugares onde
os seres humanos vivem e os lugares onde eles não devem viver,
ocupando manchas perturbadas, não obedecendo necessariamente os
ditames do senhorio humano quando em coordenada intra-ação com
muitas outras criaturas, principalmente com o urubu (Urubu-de-
cabeça-vermelha”, Cathartes aura rulicollis (Lichtenstein) e com o
inseto companheiro que aqui chegou com ele da Africa, o exímio
polinizador chamado de Elaeidobius subvittatus (Curculionidae).No
Monte Pascoal e com os Pataxó o dendê proliferou em sua forma
espontânea e oportunística, associados às novas espécies com que
passou a se relacionar: com o urubu , com pássaros, roedores, repteis e
animais “domésticos”, ocupando manchas florestais abertas por
humanos. O dendezeiro atrai os pássaros quando maduro com seus
suculentos oleaginosos cocos. Neste momento os urubus começam a
visitar as elevadas copas dos dendezeiros, aconchegando-se na base de
suas folhas, os frutos assim são devorados e suas sementes dispersas em
áreas abandonadas pelo uso agrícola: o dendê prolifera. Para os Pataxó
o dendezeiro é planta de urubu, e algumas vezes poderia ser planta de
gente.

Antes de chegar ao Monte Pascoal,no extremo suld a Bahia, o dendê


seguiu seu caminho junto com seus companheiros. Originário da África
o dendê atravessou o oceano na época colonial em viagens
transatlânticas, entrou em correspondência com humanos e animais,
fazendo uma enorme floresta antropogênica no sul da Bahia (Watkins

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2011, 2015). Aqui, eles se tornam formas de vida espontâneas e


oportunistas, penetrando em manchas de floresta tropical atlântica,
criadas por queimadas para agricultura e campos de gado. No sul da
Bahia, diferente por exemplo da Amazônia ou da Indonésia, o
dendezeiro seguiu conectado com seus companheiro humanos na
configuração dos lugares de resistência: na implantação de sistemas
policulturais agroextrativistas miméticas aos da Africa, nas margens do
sistema colonial da plantation. Formando as diversificadas florestas
antropogênicas de Dendê que emergiram na costa baiana no rastro da
agricultura de corte e queima e da exploração madeireira, em sinergia
com solos e clima adequados (ver Case Watkins, [2011, 2015]).

O dendezeiro adentra, penetra os processos de ressurgência da


paisagem, estando associado ao abandono da roça e ao
encapoeiramento do lugar. Ao mesmo tempo, juntamente com outras
plantas cultivadas, como o coqueiro, a mangueira e a jaqueira
encapsula a história das praticas humanas e não humanas instituintes
das cronotópia, e portanto a memória na paisagem.

Para muitos ambientalistas no Brasil, o dendê é uma espécie exótica à


floresta tropical brasileira, um bioinvasor (GIASP 2015). A exoticidade
do dendê o torna um inimigo a ser combatido pelas forças do Estado
quando ele se encontra dentro de uma área protegida, como no caso
dos Parques Nacionais onde vivem os Pataxó. Se para os Pataxó ele é
vivo e pode ser nativo num emaranhado multiespécie, para os
ambientalistas mais puristas, por ser exótico, ele não possui direito de
ser descrito como uma espécie que existe na Mata Atlântica brasileira
(IUCN-WWF 1998). A não ser como uma espécie de importância
econômica —que portanto deve ser controlado e manejado—ou como
invasor de áreas naturais, devendo ser controlado e exterminado antes
que forme adensamentos e impacte as espécies ditas nativas. Neste
último caso o dendê é descrito como um agente de alto grau de
impacto.

As coisas ficam confusas quando os conservacionistas identificam


esse conjunto de espécies contra a floresta tropical "intocada"; eles
não devem banir as pessoas da história (Tsing, 2012).

Para Joel Braz, assim como para os Pataxó, o dendê existe, vive num
lugar, interage, portanto tem direito de existência e de ter liberdade de
se movimentar. Não é a toa que os Pataxó ficaram horrorizados com as
práticas de controle de espécies exóticas, promovido pela agência
brasileira do meio ambiente, o ICMBio, dentro do Parque Nacional do
Descobrimento. Lá os Dendês foram mortos com injeção química

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(provavelmente de glifosato) e foram cortados. Segundo me explicou


uma liderança indígena, o ICMBio assim o fez porque considera o
dendezeiro uma espécie exótica, mas não só, isso seria uma prática de
controle etnovegetal para impedir diretamente os Pataxós de
adentrarem nas matas para caçar pacas (agoutis) que comem frutas
debaixo dos dendezeiros. Como para os Pataxó os dualismos
modernistas entre selvagem/domesticado, natural/cultural,
exótico/nativo são mais fluidas ou até inexistentes, esta discussão
essencialista não faz sentido em termos pragmáticos e ecológicos.
Sendo assim, estes consideram “absurdo” e “criminoso” o ato de
exterminar seletivamente os dendezeiros do parque. Para eles os
dendês em sua vida multiespecífica são extremamente importantes
para a vida humana e não humana, e não geram impactos para outras
espécies, devendo permanecer no parque e fora do mesmo para que a
população de fauna tenha mais alimento num contexto de precarização
generalizada dos lugares vitais para os humanos e não humanos devido
ao desmatamento histórico no litoral baiano. Em outras palavras, o
dendê ali, no mundo Pataxó não ocorre em relações similares ao
controle domesticador da plantation de dendê em campos do
capitalismo local-global.

O dendê resiste, e resiste com urubus, insetos, pacas, papagaios e


gentes. Sua história multiespécie no Monte Pascoal, faz parte de um rol
de muitas histórias de mal-entendidos entre projetos de paisagens dos
ambientalistas, dos pataxós e do próprio dendê, em torno das as noções
de exótico e nativo. Andar e seguir os dendezeiros nos ensina que a
divisão entre o doméstico e o selvagem é um caso muito particular de
habitar e pensar um mundo.

*Tradução e adaptação de The Multispecies Life of Feral Dendezeiros:


Ethnography in Motion”, publicado em fevereiro de 2016 no
https://aesengagement.wordpress.com/2016/02/02/the-
multispecies-life-of-feral-dendezeiros-ethnography-in-motion

Bibliografia citada

Barad, Karen Michelle. 2007. Meeting the Universe Halfway: Quantum


Physics and the Entanglement of Matter and Meaning. Durham, NC:
Duke University Press.

Cardoso, Thiago Mota. 2016. Paisagem em transe: uma etnografia


sobre a poética a cosmopolítica dos lugares habitados pelos Pataxó no
Monte Pascoal. Tese de Doutorado em Antropologia Social,
Florianópolis, UFSC.

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Clement, Charles. 1992. Domesticated palms. Journal Principies Vol.


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invadida. A crescente ameaça das espécies exóticas invasoras. 80p.

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