Floresta e o Mundo

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FLORESTA É O MUNDO: O PENSAMENTO VEGETAL1

Evando Nascimento

Museu é o mundo.
Hélio Oiticica.

O sertão está em toda parte.


João Guimarães Rosa.

O pensamento vegetal e a literatura

A literatura é, sem dúvida, um lugar privilegiado para se pensar a relação dos


humanos com as plantas, pois desde as origens muitos textos literários
colocaram os vegetais num plano de grande importância. Na dita modernidade
ocidental, foram principalmente os autores românticos e simbolistas que
recorreram a rosas, flores em geral, árvores, raízes e outros elementos vegetais
para expressarem seus sentimentos e ideias. No entanto, Walt Whitman foi
decerto um dos primeiros a dar um verdadeiro protagonismo ao mundo natural,
muito semelhante ao que será realizado por outros escritores nos séculos XX e
XXI. Nas Folhas da relva (Leaves of grass), as paisagens estadunidenses não
comparecem como mero elemento decorativo, mas sim como forma de reflexão
sobre o ser-e-estar no mundo, abrindo para diversas poéticas e ativismos do
século seguinte: alto-modernistas, beatniks, o Flower Power hippie e o
ecologismo, entre outros movimentos de vanguarda literária e existencial.
O que chamo de pensamento vegetal não tem definição simples nem definitiva,
mas compreende ao menos quatro significações básicas. Primeiro, pensamento
vegetal seria o que pensam as plantas. Essa é uma questão elementar da
botânica e da filosofia hoje: será que o mundo verde pensa, e se for verdade, o
que e como pensa? Decerto não se trata de pensamento com palavras, mas
desde antes de Aristóteles se colocou a questão de saber se as plantas tinham
“alma” (psyché), tal como os animais e sobretudo como os humanos.
Um segundo sentido para pensamento vegetal seria o que nós pensamos a
respeito das plantas: tanto científica quanto cotidianamente o que de fato
pensamos nós humanos sobre esses viventes tão próximos mas em aparência
tão distintos de nós. Embora a botânica, enquanto disciplina autônoma, date
apenas do século XVIII – como tantas outras formas modernas de saber –, a
preocupação com o reino vegetal já existia na Antiguidade, sem falar nas
diversas culturas de origem não europeia. Teofrasto escreveu dois tratados
importantes por volta de 300 A.C.: Sobre a história das plantas e Sobre as
causas das plantas. Digamos pontualmente que, no mundo dito ocidental, os
vegetais na maior parte das vezes foram vistos apenas como fontes de consumo
alimentar e de energia combustível, como provedores de substâncias

1 Este ensaio foi publicado no livro Ensaios Flip: plantas e literatura. Vianna, Hermano et alii.
Paraty: Ministério do Turismo / Associação Casa Azul, 2021, p. 83-102. É também,
inevitavelmente, um desdobramento do livro O pensamento vegetal: a literatura e as plantas. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira: 2021. Nele, abordo a questão vegetal a partir da literatura,
tendo igualmente, de ponta a ponta, a filosofia e as ciências como fios condutores; as artes
entram também como exemplo reflexivo.
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medicinais, como recursos para habitação e vestimenta, entre outas utilidades.


Ou seja, como meros objetos úteis, sem vida própria, digna de respeito.
Em dois outros sentidos bem particulares, interessa ver como hoje cientistas e
filósofos, tanto quanto escritores de ficção e poesia, elaboram um pensamento
inovador a respeito das plantas. Sobretudo a partir do século XX emergiu uma
visão das plantas (para referir o título de uma brilhante novela de Djaimilia
Pereira de Almeida – 2021), não mais fundada no antropocentrismo nem no
assim chamado zoocentrismo, o centramento biológico na vida animal. Nessa
terceira (científico-filosófica) e nessa quarta (literária) significação recente para
o pensamento vegetal, as plantas ganham plena autonomia existencial, sendo
consideradas em sua inteligência e sensibilidade.
A essas quatro significações da expressão pensamento vegetal (em resumo:
pensamento das plantas, dos humanos em geral sobre as plantas, dos filósofos
ou cientistas e dos escritores contemporâneos sobre elas) vem se somar uma
quinta: o que pensam culturas não ocidentais sobre os vegetais, especialmente
duas que coexistem no espaço civilizacional brasileiro: a cultura indígena e a
afrodescendente.
Faço aqui um recorte interpretativo dessa ampla temática. Num primeiro
momento, me interessa mostrar como alguns filósofos e cientistas, do passado
e do presente, discutem a questão vegetal. Num segundo momento, comentarei
o modo como alguns escritores modernos e contemporâneos expõem uma visão
inovadora das plantas, em poemas ou em narrativas. Sinalizo desde já que, na
contemporaneidade brasileira, são sobretudo mulheres poetas que têm se
destacado nesse olhar outro sobre o mundo vegetal. E num terceiro momento,
trarei uma pequena parte das concepções atuais de indígenas brasileiros sobre
essa problemática, tanto em debates intelectuais quanto sob forma de poema. É
nessa derradeira etapa que emerge com toda força a noção de floresta, a qual a
meu ver dá plena vida ao pensamento vegetal, tornando-se quase sinônima
deste. Ou melhor, para recorrer ao vocabulário pessoano: floresta, em minhas
reflexões, é uma palavra heterônima de pensamento vegetal.
Assinalo também o fato de, num momento em que muitas das vegetações do
planeta, sobretudo as chamadas rain forests ou florestas tropicais, se veem
ameaçadas por incêndios, exploração predatória e todo tipo de devastação,
pensar com e sobre as plantas se torna eminentemente uma atitude política e
ética da maior relevância. Como desenvolvi num texto publicado em plena
pandemia (cf. Nascimento, 2021), a sobrevivência de praticamente todas as
espécies depende do modo como trataremos doravante “Nossas irmãs as
plantas”.

A renovação botânica e a inteligência sensível das plantas


“Nossas irmãs as plantas” é uma expressão que comparece num dos poemas
de Alberto Caeiro (Pessoa, 1983, p. 149). O que os humanos mais perderam foi
essa noção de irmandade congenial que tem com as outras espécies viventes:
os animais e as plantas. A despeito do trabalho de Charles Darwin e de todo o
desenvolvimento das ciências biológicas, principalmente nos dois últimos
séculos, explicando não só a origem comum de homens e animais, mas também
de todas as espécies viventes nos organismos unicelulares do meio primitivo,
onde a vida se formou, agimos como se fôssemos seres divinos, nascidos
prontos, tal qual vem descrito no Gênesis. Segundo o relato bíblico, após criar
Adão, Deus lhe atribuiu o poder de nomear e reinar sobre todos os outros
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viventes. Essa soberania de origem divina outorgada ao humano fez com que
agíssemos de fato como soberanos, tratando os outros animais como “bestas
feras”. La bête et le souverain [A besta ou a fera e o soberano] é o título de dois
volumes póstumos de Jacques Derrida, editados a partir do último de seus
seminários na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Às
plantas foi reservado um papel ainda pior: pelo fato de parecerem inertes,
incapazes de outro movimento além de crescer, foram tratadas como
“semiviventes”. Não por acaso, o verbo vegetar, que na origem tinha o sentido
positivo de “animar, vivificar; dar movimento a; aumentar, fortalecer, fazer
crescer”,2 se tornou, em praticamente todas as línguas ocidentais, sinônimo de
inércia, de morbidade ou de estado de coma. A significação positiva continua no
dicionário Houaiss, por exemplo, mas ninguém sabe sequer que ela existe...
Em De anima (Peri psychê), Aristóteles repassa todas as teorias precedentes da
alma, desqualificando-as uma por uma. São convocados em sua argumentação
textos de Empédocles, Anaxágoras, Demócrito e até de seu mestre Platão, entre
outros. O que há de mais rico na reflexão aristotélica é que, ao contrário de
diversos outros pensadores da tradição metafísica, ele não nega certa
propriedade anímica às plantas; apenas o tipo de alma que detêm não é tão
completo quanto a dos animais e sobretudo a dos homens: “Dentre as potências
da alma [psyché], [...] nas plantas subsiste somente a nutritiva, mas em outros
seres, tanto esta como a perceptiva” (Aristóteles, 2017, p. 77).
A planta seria então, enquanto portadora de uma alma incompleta, inferior, uma
vida no limite da existência. Esse preconceito metafísico foi abordado dos mais
diversos modos pela tradição ocidental. Claro, todos os animais necessitam dos
vegetais, para extrair a energia que os mantém de pé, mas tudo não passa de
uma função utilitária. Os animais são chamados de heterótrofos porque não
conseguem produzir seu próprio alimento, por meio de substâncias inorgânicas
e da luz solar. Já as plantas são chamadas de autótrofas pelo fato de obterem
nutrição por meio da fotossíntese, das substâncias do solo e da água: produzem,
desse modo, o orgânico a partir do inorgânico.
O fato é que quase nunca se coloca o sentido do viver vegetal em sua plena
autonomia. Sintomaticamente, Heidegger, o filósofo que acusou Nietzsche de
ser o último metafísico, repete os dogmas da tradição metafísica ao separar, de
forma peremptória, as plantas e os animais dos humanos, como diz com todas
as letras na famosa Carta sobre o humanismo, dirigida a Jean Beaufret: “Dentre
todos os entes que são, o ser-vivo é provavelmente o mais difícil de ser pensado
por nós, porque ele é por um lado o que mais se parece conosco, e, por outro
lado, está abissalmente separado de nossa essência ek-sistente” (Heidegger,
2008, p. 338). Entre nós, de um lado, e os animais e vegetais, do outro, existiria
então um abismo.
Na perspectiva tradicional, faltaria às plantas esse senso de mobilidade próprio
aos animais, e que já está na “raiz” de sua etimologia: o ânimo ou a anima que
nos move enquanto viventes heterótrofos. Como apenas com o surgimento das
câmeras de aceleração de imagens pôde-se perceber que as plantas se mexem
bastante, o preconceito metafísico se perpetuou. Motivo pelo qual podem ser
abatidas sem remorsos: elas não reagem porque não pensam nem sentem
propriamente, e por consequência não são dotadas de existência em sentido
pleno.

2 Todas as etimologias foram retiradas do dicionário Houaiss (2021).


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Em 2008, o Comitê Ético Federal Suíço, pela primeira vez na história da


humanidade, entregou um relatório cujo título era “A dignidade dos seres vivos
no que diz respeito às plantas”. Até onde se sabe, era inédita essa consideração
ética do valor da vida vegetal. Mais precisamente: o valor de uma vida qualquer,
independentemente da espécie ou gênero a que pertença. Segundo os
cientistas, as plantas representam 85% da biomassa, os 15% restantes
competem aos animais; deste último percentual menos de 1% ao corpo
humano... Se por uma catástrofe natural todos os vegetais desaparecessem
subitamente da face da Terra, os animais morreriam em alguns meses: por falta
de oxigênio e sobretudo por escassez de alimento.
O filósofo Michael Marder expõe com muita clareza o que eu chamaria de dom
ou dádiva vegetal:

A vida vegetal dinamiza [enlivens, vivifica, anima] as plantas, tanto quanto,


de diferentes maneiras, animais e seres humanos; a vida em comum em
seu máximo despojamento é em igual medida um fim-em-si-mesma e uma
fonte de vitalidade para nós. Uma ofensa contra a vida vegetal prejudica
tanto as plantas que destruímos quanto algo do ser/estar vegetal em nós.
Além de aniquilar as próprias plantas, a altamente agressiva exterminação
da flora, que atualmente tem colocado sob ameaça de extinção até um
quinto de todas as espécies vegetais no planeta, empobrece um elemento
vital no que chamamos de “o humano” (Marder, 2013, p. 182).3

Diversos cientistas, sobretudo nessas primeiras décadas do século XXI, têm


desenvolvido pesquisas em torno da inteligência e da sensibilidade vegetal:
Francis Hallé, Jean-Marie Pelt, Fleur Daugey, Stefano Mancuso, Anthony
Trewavas, estão entre os que mais se destacam. Mancuso, já bem traduzido no
Brasil, mantém um laboratório para estudar o que chama de “neurobiologia
vegetal”, não para estabelecer uma relação especular com o modelo biológico
dos animais, mas sim, para demonstrar o modo complexo como as células
vegetais detêm altos padrões de inteligência e sensibilidade, interagindo todo o
tempo com o ambiente onde vivem:

Os estudos mais recentes mostraram que [as plantas] são dotadas de


sensibilidade, que se comunicam entre si e com os animais, que dormem,
memorizam dados e são até capazes de manipular outras espécies. Além
disso, merecem de pleno direito o qualificativo de inteligentes. O aparato
de suas raízes se desenvolve ininterruptamente, com a ajuda de inúmeros
centros de comando, cujo conjunto as guia à maneira de uma espécie de
cérebro coletivo, ou antes, de inteligência distribuída, que, ao aumentar e
se desenvolver, assimila informações capitais para sua nutrição e
sobrevivência.
Os avanços recentes da biologia vegetal permitem ver nelas hoje
organismos dotados de uma faculdade bem estabelecida para adquirir,
armazenar, compartilhar e utilizar informações retiradas de seu meio
ambiente. A neurobiologia vegetal tem por principal campo de pesquisa a
maneira segundo a qual essas brilhantes criaturas as fornecem a si

3 Salvo indicação contrária, as traduções são minhas.


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mesmas e as transformam de modo a adotar um comportamento coerente


(Mancuso, 2018, p. 208-209).

O que as plantas realmente pensam e, sobretudo, o que pensam de nós, jamais


saberemos. A experiência da alteridade é, por definição, inacessível; só se pode
conjeturar a respeito, sem nenhuma certeza. Mas sobre o que não há mais
dúvidas é que elas são também viventes pensantes: com as características de
suas espécies e respectivas linguagens, interpretam de maneira inteligente o
existir-no-mundo, a fim de garantir a própria sobrevivência e a de muitos outros
habitantes da Terra.

Fitoliteratura: a literatura pensante e a literatura em sentido ampliado


Alberto Caeiro, o mencionado heterônimo de Fernando Pessoa, em seu longo
poema O guardador de rebanho, elabora uma sofisticada reflexão crítica da visão
metafísica que nós humanos temos das plantas, as quais ele considera como
irmãs. Tudo se baseia no equívoco de achar que, ao nomear uma árvore, uma
fruta, ou uma flor, por exemplo, as conhecemos. Para ele, isso não passa de
mera abstração conceitual, pois “Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la/ E comer um
fruto é saber-lhe o sentido” (Pessoa, 1983, p. 146). Seu pensamento vegetal (o
modo como ele pensa as plantas) é inteiramente sensorial, o oposto do que a
tradição filosófica ocidental propôs até recentemente.
Motivo pelo qual a Natureza, com maiúscula, para Caeiro não existe, não
passando de invenção humana, que utiliza a linguagem verbal como instrumento
de falsificação, por meio da produção de abstrações:

Vi que não há Natureza,


Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas ideias.

(Pessoa, 1983, p. 160).

Na ficção de Clarice Lispector encontra-se a mesma disposição para se


relacionar de forma diferencial com os vegetais, elaborando uma sofisticada
fitoliteratura: fito (do grego phytón, “vegetal, árvore, planta; rebento,
descendente”) e literatura. É curioso que muitos dos críticos que leram a obra de
Clarice abordaram a questão animal, mas a temática vegetal é praticamente
ignorada, com poucas exceções. Fui provavelmente o primeiro a fazê-lo de forma
mais sistemática em Clarice Lispector: uma literatura pensante (Nascimento,
2012), no qual duas seções propõem esse tipo de leitura: “A estética das
sensitivas” e “A desnatureza das flores”. No livro atualmente no prelo, o capítulo
“Clarice e as plantas: a poética e a estética das sensitivas” retoma e desenvolve
amplamente esse primeiro estudo vegetal. O fato de a crítica ignorar as plantas
claricianas como problemática plena é estrutural: nosso olhar antropocêntrico se
volta sempre para o que mais nos assemelha: os animais, pois em sua maioria
têm olhos, bocas, focinhos, orelhas, membros e órgãos análogos aos nossos.
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Entre muitas narrativas vegetais em C.L. a mais conhecida é sem dúvida o conto
“Amor”. É a história de uma dona de casa que se sente perturbada por se ver
num cego mascando chicles no ponto do bonde, indo parar no Jardim Botânico
do Rio de Janeiro, onde tem uma experiência de absoluto estranhamento:

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas


surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais
apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava
rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho,
suave demais, grande demais (Lispector, 1982, p. 23).

Porém o livro vegetal por excelência é Água viva. O leitor ou a leitora é


convidado/a explicitamente a “mudar-se para reino novo” (Lispector, 2019, p.
64), onde tudo vem ao modo de quadros e visões, pois a narradora é duplo de
pintora e escritora: “Quero pintar uma rosa” (Lispector, 2019, p. 64). Nesse
sentido, ela descreve muitas flores (estrelícia, gerânio, edelvais, vitória-régia,
cravo, girassol e outras), exibindo uma floresta verbal: “Entro lentamente na
escrita como já entrei na pintura. É um mundo emaranhado de cipós, sílabas,
madressilvas, cores e palavras” (Lispector, 2019, p. 31). Água viva afigura
erupções florais, espargindo cores, aromas e texturas para todos os lados, num
corpo a corpo com a natureza que se faz cultura, e vice-versa. Essa suspensão
provisória dos limites entre universo natural e cultural, dentro de um vasto mundo
vegetal, é o efeito mais poderoso da poética e da estética das sensitivas,
ofertando-se como uma floresta de sensações. Sobretudo a própria narradora
anônima rompe as barreiras entre o humano e o vegetal: nesse “âmago”
ficcional, advém “a estranha impressão de que não pertenço ao gênero humano”
(Lispector, 2019, p. 42), ocorrendo diversas vezes a transmutação ou a intertroca
com o reino vegetal: “Sou uma árvore que arde com duro prazer” (Lispector,
2019, p. 50) e “Meu impulso se liga ao das raízes das árvores” (Lispector, 2019,
p. 53).
Na literatura brasileira do século XX há diversos exemplos da importância textual
das plantas: entre outros, o cacau em Jorge Amado, as flores em Cecília
Meireles, a cana-de-açúcar em João Cabral de Melo Neto e em José Lins do
Rego, o buriti e toda a vegetação do sertão em Guimarães Rosa, a metafórica
(mas também real) “rosa do povo” de Carlos Drummond de Andrade, o cacto de
Manuel Bandeira. Já na literatura contemporânea, Ferreira Gullar escreveu um
lindo poema sobre “A planta”, e outros sobre “bananas podres”, além de “Relva
verde relva” e “Uma corola”. Edimilson de Almeida Pereira tem, entre outros, um
denso poema intitulado “Verde visto do alto”. Leonardo Fróes é um poeta ligado
ao ambiente em que vive, na região serrana de Petrópolis, autor do poema
“Algumas variações culturais”, que mistura natureza e cultura, como instâncias
não opositivas. Sérgio Medeiros formula poesia nonsense em O sexo vegetal, e
referências clorofílicas comparecem em vários livros seus. Mas destacam-se
sobretudo as poetas, como se certo estar-mulher-no-mundo facilitasse essa
conexão vegetal própria à fitoliteratura: Adélia Prado tem poemas dedicados ao
mundo vegetal, Cláudia Roquette-Pinto publicou o premiado Corola, Josely
Vianna Baptista organizou uma linda Roça Barroca, com tradução de Cantos
guaranis e poemas florais próprios, Adriana Lisboa lançou recentemente O vivo,
em que as flores vicejam contra o excesso de simbolismo, Julia Hansen tem já
em dois títulos a inscrição vegetal (Romã e Seiva, veneno ou fruto), Katia Maciel
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escreveu Plantio e Ana Martins Marques dedicou um livro inteiro aos Jardins, no
qual se destaca, entre outras germinações esta:

Desconheço o nome
das plantas

Mas também desconheço o nome


de boa parte de meus vizinhos

Ao contrário das pessoas


as plantas não ligam

Não me dirijo a elas pelo nome


mas também na verdade
não me dirijo a elas

Elas nada pedem e nunca reclamam


às vezes perdem muitas folhas ou apenas,
e em silêncio, morrem

Estão sempre mudando


nunca
se mudam

Estamos
por enquanto
neste pé

(Marques, 2019, p. 10).

Expõe-se, em princípio, o anonimato das plantas. Ainda que todas as espécies


que se deram ao conhecimento ganhem designações científicas e/ou populares,
os vegetais nunca recebem individualmente nomes, ao menos não em nossas
culturas ocidentais. Isso se deve ao já aludido fato de que eles, à diferença dos
animais, quase nunca são percebidos como verdadeiros indivíduos, muito
menos como “sujeitos” ou “pessoas”. Cães e gatos, bem como animais silvestres
em cárcere doméstico ou público, recebem até mesmo nome de gente: além do
clássico Rex, do hilário Pluto, do célebre Knut (estrela de destino trágico no zoo
de Berlim, na primeira década deste século), pode-se ouvir Igor, Katy, Max,
Susana, Tião (famoso macaco do zoo do Rio, já falecido) etc., nomeando nossos
“companheiros específicos” (para lembrar as “espécies companheiras” –
companion especies – de Donna Haraway, 2016).
Para nós, um abacateiro ou um pé de couve representa sua espécie e não a si
mesmo individualmente. A isso, as plantas respondem com a mais absoluta
indiferença, enquanto os cães e os gatos estão sempre atentos ao modo como
são chamados, sobretudo os primeiros. Esse silêncio das plantas (ao menos
para nossos ouvidos, porque no fundo o fluxo da seiva no tronco e nos galhos
produz, sim, algum som, mas para nós inaudível) é a marca do reino vegetal e,
tanto quanto sua aparente imobilidade, ajudou a formatar o estereótipo de que
apenas “vegetam”, em sentido negativo, estando mais próximas, portanto, do
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reino inerte das pedras (o qual também somente em aparência é totalmente


imóvel). Como visto, isso é falso, servindo de argumento para o rebaixamento
dos vegetais na perspectiva dos humanos e dos outros animais. De qualquer
modo, na penúltima estrofe, por meio da conjugação dúbia do verbo mudar(-se),
a suposta imobilidade das plantas é paradoxalmente questionada “Estão sempre
mudando”) e afirmada (“nunca/ se mudam”); ou seja, a cada estação mudam de
roupagem, sem que aparentemente mudem de lugar (o que é falso, pois adoram
migrar, e isso pode ocorrer por meio de mudas ou de sementes espalhadas, por
exemplo).
Um dos componentes mais fortes do poema é, com efeito, certa incomunicação
dos vegetais para conosco: embora cultivados e modificados pela espécie
humana, permanecem em seu mutismo enigmático, desafiando nossa
prepotente soberania. E assim, “Estamos/ por enquanto/ neste pé”, quer dizer, é
por essa situação de incomunicação interespecífica que a planta se mantém “de
pé”, como pé de goiaba, de açaí, de maçã ou de qualquer outra saborosa fruta.
Alheamento bem demarcado noutro poema da mesma coletânea de Marques, o
qual fala de uma árvore que sempre floria, independentemente do que acontecia
ao redor do mundo: “Floria sempre/ a cada ano/ indiferente aos acontecimentos”
(2019, p. 20).

Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e todos os


autores e autoras mencionados fazem o que chamo de literatura pensante:
aquela que nos permite pensar o impensado e até mesmo o impensável da
tradição metafísica ocidental. Por exemplo, nossa relação com as plantas, que é
bastante distinta das culturas indígenas e também das afrodescendentes do
Brasil. Esse acoplamento da letra ao universo vegetal, por meio de um
pensamento literário, corresponde ao que hoje se chama de literatura em sentido
expandido: não mais a ficção, o drama, o ensaio ou o poema dentro de uma
convenção tradicional, mas sim a textualidade literária se conectando a
universos situados muito além do humano. A expressão que forjei em 1995 uma
literatura ou escrita pensante se deixa enxertar, portanto, nessa literatura
contemporânea em sentido ampliado.

Pensamentos indígenas: floresta é o mundo


Se há culturas relacionadas à vegetação, estas são as dos povos originários nas
Américas. Em especial, os indígenas do território hoje designado “Brasil”, e que
já estavam aqui muito antes da invasão portuguesa no século XVI. Eram em sua
grande maioria (e muitos ainda são) povos da floresta, que nelas residiam e
delas tiravam seu sustento. De modo que a Amazônia, por exemplo, tem sua
configuração atual em grande parte devido à intervenção humana, mas sem o
aspecto destrutivo da exploração e da colonização lusitana.
Num texto que aborda as relações complexas entre espécies humanas e
espécies vegetais na Amazônia ao longo dos séculos, Laura Pereira Furquim
expõe como a biodiversidade da floresta não se deve apenas a fatores
endógenos, mas contou muito cedo com a participação humana. Nesse sentido,
a multiplicidade dos laços sociais dentro dos grupos étnicos e entre eles se
reflete na biodiversidade resultante dos cultivos variados, em vez da entediante
e nociva monocultura. No plano social, tanto quanto no plano do cultivo das
plantas, a abertura ao outro e os cruzamentos incessantes são fonte de riqueza
e preservação da vida (cf. Furquim, 2020).
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Ailton Krenak, Sônia Guajajara, Davi Kopenawa, Sandra Benites Guarani, Daniel
Munduruku e João Paulo Barreto (Tukano), entre muitos outros, são indígenas
de diversas etnias, que têm oferecido uma compreensão sobre o universo
vegetal completamente distinta do pensamento filosófico. Se Hegel, em sua
Introdução à história da filosofia, recorre a metáforas botânicas para falar do
percurso fenomenológico do Espírito (Geist), até superar os limites
contingenciais da existência por meio da suprassunção (Aufhebung), sua
interpretação acerca do pensamento é explicitamente antropocêntrica: “Tudo o
que é humano só o é na medida em que o pensamento está aí em ação; pode
aparecer como quiser se é humano, só o é graças ao pensamento. Só por este
é que o homem se distingue do animal” (Hegel, 2005, p. 60.) Esse é o argumento
especista de base, que fundamenta todos os preconceitos contra as demais
espécies: à diferença do que concebem algumas religiões não ocidentais, nas
civilizações de fundamento cristão só o Homem foi feito à imagem do Deus, e
por isso sua existência tem prioridade absoluta em relação aos demais viventes:
“A prioridade do homem, imagem de Deus, sobre o animal e a planta admitir-se-
á em si e por si” (Hegel, 2005, p. 37).
Ailton Krenak, pertencente à etnia indicada por seu sobrenome, tornou-se uma
das vozes mais importantes no que diz respeito à questão ambiental no Brasil,
sobretudo no período da pandemia da Covid-19, que se iniciou em março de
2020. O indígena tem feito diversas intervenções públicas, por meio de
entrevistas, palestras, debates e livros.
Uma das ideias mais argutas do pensador Krenak diz respeito ao conceito de
“humanidade”. Sua principal crítica vai no sentido da tendência, sobretudo nas
culturas ocidentais, a separar os humanos de todos os outros “seres” ou, como
prefiro dizer, de todos os outros viventes e coisas, desvinculando-os
consequentemente de todo o resto do planeta e inventando um mundo para eles
próprios. No contexto da pandemia, suas colocações atingem contundência
máxima:

Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente,


não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário. Desde pequenos,
aprendemos que há listas de espécies em extinção. Enquanto essas listas
aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas, rios e animais.
Somos piores que a covid-19. Esse pacote chamado de humanidade vai
sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra,
vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a
pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos (Krenak, 2020,
p. 81-82, grifos meus).

Palavras que encontram pleno eco nas de Davi Kopenawa, que, de forma
dadivosa, nos legou em livro sua vasta e sensível experiência de xamã, a qual
deveríamos trazer para nosso viver cotidiano, a fim de abalar nosso contato
abstrato e preconceituoso com as plantas e os demais viventes. Uma longa
citação, que expressa toda uma poética e uma estética da existência indígena:

As árvores da floresta e as plantas de nossas roças também não crescem


sozinhas, como pensam os brancos. Nossa floresta é vasta e bela. Mas
não o é à toa. É seu valor de fertilidade que a faz assim. É o que
chamamos de në rope. Nada cresceria sem isso. O në rope vai e vem,
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como um visitante, fazendo crescer a vegetação por onde passa. Quando


bebemos yãkoana, vemos sua imagem que impregna a floresta e a faz
úmida e fresca. As folhas de suas árvores aparecem verdes e brilhantes
e seus galhos ficam carregados de frutos. Vê-se também grande
quantidade de pupunheiras rasa si, cobertas de pesados cachos de frutos,
pendurados na parte de baixo de seus troncos espinhosos, e imensas
plantações de bananeiras e pés de cana-de-açúcar. Esse valor de
fertilidade da terra está ativo por toda parte. É ele que faz acontecer a
riqueza da floresta e que, desse modo, alimenta os humanos e a caça. É
ele que faz sair da terra todas as plantas e frutos que comemos. Seu nome
é o de tudo o que prospera, tanto nas roças como na floresta (Kopenawa,
2016, p. 207).

A fertilidade do solo propicia o vigor da vegetação, que desse modo se


autossustenta, ao mesmo tempo alimentando igualmente animais e humanos,
como só as dadivosas plantas conseguem fazê-lo. Esse saber xamânico,
proporcionado por uma visão fina da floresta, deveria ser transmitido para as
novas gerações de brasileiros e de outras nacionalidades, como uma herança
dadivosa que nos ajudaria a manter outras relações com o universo vegetal,
animal e mineral como um todo. Não mais nos limitaríamos a pensar as vidas
humanas e outras como meros instrumentos de utilidade na produção
hipercapitalista contemporânea.
As plantas são ubíquas porque a vida como a conhecemos sem elas não
existiria: de maneira discreta, silenciosa e por vezes invisível, estão em toda
parte, como o sertão de Guimarães Rosa, nos alimentando e protegendo as
múltiplas formas de vida no planeta. De modo que a grande maioria dos viventes
animais (humanos e não humanos) depende dos vegetais, fazendo da Terra uma
grande floresta virtual. Se para Hélio Oiticica, “museu é o mundo”, para o
pensamento vegetal que defendo, Floresta é o mundo.
O conceito de floresta é essencialmente relacional: tudo está conectado, tudo é
compartilhável, e há que se cultivar esses espaços em-comum, que nossas
irmãs as plantas propiciam. O grande erro da modernidade foi ter setorizado os
saberes, sem a preocupação de fazê-los se comunicarem entre si. A autonomia
(humana e outra) só pode ser plena se enxertada e fecundada pela heteronomia:
algo se define também ou sobretudo pelo que não é, pelo outro, o diferente.
Floresta é o mundo e o mundo é relação. E a literatura representa a floresta por
excelência, a começar pelo suporte-livro que a sustenta há séculos. Como diz o
belíssimo poema “Liber”, de Ana Martins Marques, incluído nesta coletânea:
“Foram árvores/ os livros/ um dia// recolheram o sol e a chuva/ e deram abrigo/
a pássaros de passagem”. Mais adiante, confirma-se a materialidade verbal das
produções livrescas: “tiveram como capa/ uma casca grossa/ sob a qual
circularam/ as palavras da seiva”. E arremata-se com uma refinada genealogia:
“já entrou algum dia na mata/ de manhã/ para ouvir a canção da luz/ filtrada pelas
folhas?// aí nascem os livros”. Se alguém ainda tem dúvidas sobre a
conaturalidade entre literatura e plantas, que leia e releia esses versos.

No momento em que a população humana sofre as consequências de uma


pandemia, decerto por ela mesma provocada, as palavras da líder indígena
Sonia Guajajara funcionam como convocação solidária:
11

As pessoas têm que repensar as suas formas de consumo, têm que


entender que o individualismo precisa acabar, que temos que adotar
formas coletivas de fazer as coisas, fortalecer os trabalhos em redes. E
principalmente assumir a sua responsabilidade nessa luta pela mudança
do modelo de desenvolvimento econômico, esse modelo precisa ser
rompido urgentemente, e somente nós indígenas ou ambientalistas não
vamos conseguir fazer essa pressão para essa mudança acontecer. [...]
Para isso as lutas têm que ser mais coletivas, a conscientização mais
política e ecológica, entendendo que é preciso fazer outra conexão, ou
uma reconexão com a mãe terra, e entender exatamente que é a mãe
terra que garante o sustento e a vida no planeta (Guajajara, 2020).

Isso é o que tenho defendido, em diálogo com o pensamento de Derrida, como


solidariedade de todos os viventes, e não apenas a solidariedade humana. Pois
somos todos e todas habitantes de uma vasta floresta mundial, atualmente em
curso de destruição, por causa da espécie que se acha a mais soberana de
todas: a do pouco sábio Homo sapiens sapiens.
A temática vegetal tem a ver com a opressão política: da série dos viventes as
plantas são as mais vulneráveis, porque seus mecanismos de autodefesa são
bem menos ágeis do que os dos animais. O tempo do vegetal é outro, não tem
a pressa daqueles que se dizem cheios de “ânimo”, mas que dependem das
plantas para sobreviver, pois necessitam do oxigênio que libera para a atmosfera
e se alimentam das folhas, frutos e legumes que produzem. Então os indivíduos
identificados à temática LGBTQIAP+, as mulheres, os afrodescendentes os
indígenas e as etnias oprimidas como curdos e palestinos, são aliados em
potencial das plantas. Não se deve esquecer tampouco dos operários e
trabalhadores em geral, nem mesmo dos setores de classe média menos
favorecidos. Num momento em que os trabalhadores perdem direitos no mundo
inteiro por causa do ultraliberalismo, é preciso que todas as pautas progressistas,
quer dizer, situadas à esquerda do espectro político, sejam reunidas sob uma
mesma luta. A palavra de ordem não seria mais “operários do mundo inteiro, uni-
vos”, mas sim “oprimidos do mundo inteiro, uni-vos!”. Uni-vos sob a proteção
florestal!
Concluo com uma citação fitopoética do belo “Soneto amazônico”, do indígena
Yaguarê Yamã (2021, p. 85):

Sobre as águas pitingas do Arawá


Ygara que desliza calmamente
Entre galhos – caniços de araçás
No reflexo dourado quase ausente.

O amor pelas plantas, que esses textos literários demonstram, é francamente


distinto do desprezo pelas florestas que praticam muitos governos de países
através do globo, sobretudo o nosso – é o que chamo de fitofobia: horror aos
vegetais. A “estranha instituição chamada literatura” é um dos discursos mais
potentes para fazer vicejar cada vez mais o mundo, verdejando-o.

Referências Bibliográficas
12

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