Floresta e o Mundo
Floresta e o Mundo
Floresta e o Mundo
Evando Nascimento
Museu é o mundo.
Hélio Oiticica.
1 Este ensaio foi publicado no livro Ensaios Flip: plantas e literatura. Vianna, Hermano et alii.
Paraty: Ministério do Turismo / Associação Casa Azul, 2021, p. 83-102. É também,
inevitavelmente, um desdobramento do livro O pensamento vegetal: a literatura e as plantas. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira: 2021. Nele, abordo a questão vegetal a partir da literatura,
tendo igualmente, de ponta a ponta, a filosofia e as ciências como fios condutores; as artes
entram também como exemplo reflexivo.
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viventes. Essa soberania de origem divina outorgada ao humano fez com que
agíssemos de fato como soberanos, tratando os outros animais como “bestas
feras”. La bête et le souverain [A besta ou a fera e o soberano] é o título de dois
volumes póstumos de Jacques Derrida, editados a partir do último de seus
seminários na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Às
plantas foi reservado um papel ainda pior: pelo fato de parecerem inertes,
incapazes de outro movimento além de crescer, foram tratadas como
“semiviventes”. Não por acaso, o verbo vegetar, que na origem tinha o sentido
positivo de “animar, vivificar; dar movimento a; aumentar, fortalecer, fazer
crescer”,2 se tornou, em praticamente todas as línguas ocidentais, sinônimo de
inércia, de morbidade ou de estado de coma. A significação positiva continua no
dicionário Houaiss, por exemplo, mas ninguém sabe sequer que ela existe...
Em De anima (Peri psychê), Aristóteles repassa todas as teorias precedentes da
alma, desqualificando-as uma por uma. São convocados em sua argumentação
textos de Empédocles, Anaxágoras, Demócrito e até de seu mestre Platão, entre
outros. O que há de mais rico na reflexão aristotélica é que, ao contrário de
diversos outros pensadores da tradição metafísica, ele não nega certa
propriedade anímica às plantas; apenas o tipo de alma que detêm não é tão
completo quanto a dos animais e sobretudo a dos homens: “Dentre as potências
da alma [psyché], [...] nas plantas subsiste somente a nutritiva, mas em outros
seres, tanto esta como a perceptiva” (Aristóteles, 2017, p. 77).
A planta seria então, enquanto portadora de uma alma incompleta, inferior, uma
vida no limite da existência. Esse preconceito metafísico foi abordado dos mais
diversos modos pela tradição ocidental. Claro, todos os animais necessitam dos
vegetais, para extrair a energia que os mantém de pé, mas tudo não passa de
uma função utilitária. Os animais são chamados de heterótrofos porque não
conseguem produzir seu próprio alimento, por meio de substâncias inorgânicas
e da luz solar. Já as plantas são chamadas de autótrofas pelo fato de obterem
nutrição por meio da fotossíntese, das substâncias do solo e da água: produzem,
desse modo, o orgânico a partir do inorgânico.
O fato é que quase nunca se coloca o sentido do viver vegetal em sua plena
autonomia. Sintomaticamente, Heidegger, o filósofo que acusou Nietzsche de
ser o último metafísico, repete os dogmas da tradição metafísica ao separar, de
forma peremptória, as plantas e os animais dos humanos, como diz com todas
as letras na famosa Carta sobre o humanismo, dirigida a Jean Beaufret: “Dentre
todos os entes que são, o ser-vivo é provavelmente o mais difícil de ser pensado
por nós, porque ele é por um lado o que mais se parece conosco, e, por outro
lado, está abissalmente separado de nossa essência ek-sistente” (Heidegger,
2008, p. 338). Entre nós, de um lado, e os animais e vegetais, do outro, existiria
então um abismo.
Na perspectiva tradicional, faltaria às plantas esse senso de mobilidade próprio
aos animais, e que já está na “raiz” de sua etimologia: o ânimo ou a anima que
nos move enquanto viventes heterótrofos. Como apenas com o surgimento das
câmeras de aceleração de imagens pôde-se perceber que as plantas se mexem
bastante, o preconceito metafísico se perpetuou. Motivo pelo qual podem ser
abatidas sem remorsos: elas não reagem porque não pensam nem sentem
propriamente, e por consequência não são dotadas de existência em sentido
pleno.
Entre muitas narrativas vegetais em C.L. a mais conhecida é sem dúvida o conto
“Amor”. É a história de uma dona de casa que se sente perturbada por se ver
num cego mascando chicles no ponto do bonde, indo parar no Jardim Botânico
do Rio de Janeiro, onde tem uma experiência de absoluto estranhamento:
escreveu Plantio e Ana Martins Marques dedicou um livro inteiro aos Jardins, no
qual se destaca, entre outras germinações esta:
Desconheço o nome
das plantas
Estamos
por enquanto
neste pé
Ailton Krenak, Sônia Guajajara, Davi Kopenawa, Sandra Benites Guarani, Daniel
Munduruku e João Paulo Barreto (Tukano), entre muitos outros, são indígenas
de diversas etnias, que têm oferecido uma compreensão sobre o universo
vegetal completamente distinta do pensamento filosófico. Se Hegel, em sua
Introdução à história da filosofia, recorre a metáforas botânicas para falar do
percurso fenomenológico do Espírito (Geist), até superar os limites
contingenciais da existência por meio da suprassunção (Aufhebung), sua
interpretação acerca do pensamento é explicitamente antropocêntrica: “Tudo o
que é humano só o é na medida em que o pensamento está aí em ação; pode
aparecer como quiser se é humano, só o é graças ao pensamento. Só por este
é que o homem se distingue do animal” (Hegel, 2005, p. 60.) Esse é o argumento
especista de base, que fundamenta todos os preconceitos contra as demais
espécies: à diferença do que concebem algumas religiões não ocidentais, nas
civilizações de fundamento cristão só o Homem foi feito à imagem do Deus, e
por isso sua existência tem prioridade absoluta em relação aos demais viventes:
“A prioridade do homem, imagem de Deus, sobre o animal e a planta admitir-se-
á em si e por si” (Hegel, 2005, p. 37).
Ailton Krenak, pertencente à etnia indicada por seu sobrenome, tornou-se uma
das vozes mais importantes no que diz respeito à questão ambiental no Brasil,
sobretudo no período da pandemia da Covid-19, que se iniciou em março de
2020. O indígena tem feito diversas intervenções públicas, por meio de
entrevistas, palestras, debates e livros.
Uma das ideias mais argutas do pensador Krenak diz respeito ao conceito de
“humanidade”. Sua principal crítica vai no sentido da tendência, sobretudo nas
culturas ocidentais, a separar os humanos de todos os outros “seres” ou, como
prefiro dizer, de todos os outros viventes e coisas, desvinculando-os
consequentemente de todo o resto do planeta e inventando um mundo para eles
próprios. No contexto da pandemia, suas colocações atingem contundência
máxima:
Palavras que encontram pleno eco nas de Davi Kopenawa, que, de forma
dadivosa, nos legou em livro sua vasta e sensível experiência de xamã, a qual
deveríamos trazer para nosso viver cotidiano, a fim de abalar nosso contato
abstrato e preconceituoso com as plantas e os demais viventes. Uma longa
citação, que expressa toda uma poética e uma estética da existência indígena:
Referências Bibliográficas
12
Almeida, Djaimilia Pereira de. A visão das plantas. São Paulo: Todavia, 2021.
Aristóteles. De anima. 2ª. ed. Tradução, apresentação e notas Maria Cecília
Gomes dos Reis. São Paulo: Ed. 34, 2017.