Resenha - Reforma Psiquiátrica e Saúde Mental No Brasil

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RESENHA

Reforma psiquiátrica e Saúde Mental no Brasil

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Coordenação


Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no
Brasil: documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos
Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília: Ministério da
Saúde, 2005.

Camila Pâmela de Oliveira França de Castro


Eduardo Ramos Lacorte
Ivana Silveira Carneiro
Luiza Dias Freitas
Vivian Faquini Bressan de Mattos

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O artigo “Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil” foi publicado


pelo Ministério da Saúde em 2005, tendo como base as discussões da Conferência
Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental. Ele se propõe a documentar e
analisar o processo de reforma psiquiátrica no país ao longo de três décadas, com
foco na transição de um modelo centrado na internação hospitalar para um modelo
de assistência à saúde mental baseada na comunidade. Ao longo do texto, são
discutidos os desafios, avanços, resistências e mudanças culturais envolvidos nesse
processo, abordando desde a crítica ao modelo hospitalocêntrico até a criação de
uma rede de cuidados na comunidade, como os CAPS (Centros de Atenção
Psicossocial).

O objetivo central do artigo é oferecer um relato histórico e político sobre o


desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, com ênfase na substituição do
modelo asilar e manicomial por uma abordagem que privilegia o tratamento
comunitário, a reintegração social e a cidadania dos usuários dos serviços de saúde
mental. O texto é apresentado em um momento crítico, cerca de 15 anos após a
assinatura da Declaração de Caracas (1990), que formalizou a intenção dos países
latino-americanos de superar o modelo manicomial. O contexto internacional é
importante para entender as raízes da reforma brasileira. O movimento de
desinstitucionalização iniciado na Europa, particularmente na Itália com a
experiência de Franco Basaglia, influenciou diretamente as propostas no Brasil. O
texto destaca como essas influências foram adaptadas para o contexto local,
levando em consideração as especificidades sociais, culturais e econômicas do
país.

O artigo apresenta um panorama detalhado do histórico da Reforma Psiquiátrica no


Brasil, que teve início em meados dos anos 1970, em consonância com o
“movimento sanitário”, que também propunha transformações profundas na forma
como os serviços de saúde eram organizados e oferecidos. Uma das críticas
centrais, desde o começo, era direcionada ao modelo hospitalocêntrico, marcado
pela institucionalização e pelos abusos cometidos dentro de hospitais psiquiátricos.
No entanto, a crítica ao modelo asilar não surgiu apenas entre profissionais da
saúde. O artigo sublinha a importância dos movimentos sociais, formados por
trabalhadores, familiares e pessoas diretamente afetadas pela internação
psiquiátrica. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) é
apresentado como uma força fundamental para o início da reforma, ao denunciar os
abusos nos manicômios e ao questionar a mercantilização da loucura, além de lutar
pelos direitos dos pacientes. Esse período inicial é marcado por grandes avanços,
como a criação do primeiro CAPS em São Paulo (1987) e a aprovação de leis
estaduais que iniciaram a substituição de leitos psiquiátricos por redes de atenção
extra-hospitalar.

Um dos pilares centrais do artigo é a crítica ao modelo hospitalocêntrico, vigente até


a década de 1990, que se baseava na internação prolongada em hospitais
psiquiátricos e na segregação dos pacientes do convívio social. Este modelo,
segundo o texto, era altamente excludente e desumanizador, servindo como um
espaço de controle social sobre os indivíduos com transtornos mentais, ao invés de
promover sua recuperação e inclusão. O artigo detalha como os hospitais
psiquiátricos muitas vezes eram utilizados como instrumentos de repressão, e não
de cuidado. As condições precárias, a violência institucionalizada e a falta de
alternativas terapêuticas adequadas eram comuns. A ruptura com esse modelo se
tornou uma das principais bandeiras dos movimentos da Reforma Psiquiátrica no
Brasil, culminando na criação de alternativas baseadas no atendimento comunitário
e na atenção integral à saúde mental. A desinstitucionalização é apresentada como
um dos principais eixos da reforma, com destaque para a redução de leitos
psiquiátricos e o fechamento progressivo de hospitais psiquiátricos de grande porte.
Entre 1996 e 2005, segundo o artigo, o número de leitos psiquiátricos no Brasil foi
reduzido de 72 mil para cerca de 42 mil, o que reflete um esforço contínuo para
substituir as internações de longa duração por um modelo de cuidados
comunitários. Apesar dos avanços, o artigo reconhece que o processo de
desinstitucionalização enfrenta grandes desafios, especialmente em regiões onde a
tradição manicomial ainda é forte. A resistência cultural, tanto por parte dos
profissionais de saúde quanto da população, é um dos entraves para a
implementação plena da reforma. O artigo critica a falta de um processo mais ágil e
sistemático de fiscalização e fechamento de hospitais inadequados, além da
insuficiência de alternativas de qualidade em muitas áreas. Outro ponto abordado é
a desigualdade na distribuição dos serviços de saúde mental pelo país. As regiões
mais ricas, como o Sudeste, concentram grande parte dos recursos e serviços,
enquanto regiões como o Norte e o Nordeste ainda enfrentam uma grave escassez
de CAPS e outros equipamentos de atenção psicossocial.

A criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) é um dos pontos centrais da


reforma, e o artigo explora em detalhes o papel desses centros na reorganização do
modelo de atendimento em saúde mental. Os CAPS são apresentados como
serviços comunitários abertos, que oferecem tratamento e acompanhamento diário
para pessoas com transtornos mentais graves, evitando internações prolongadas e
promovendo a inclusão social. Além disso, os CAPS atuam como reguladores do
sistema de saúde mental em seus territórios, articulando-se com outras políticas
públicas, como saúde da família, inclusão social e trabalho. O artigo elogia a
expansão da rede CAPS no Brasil, que passou de 208 unidades em 2000 para 689
em 2005, o que representa um grande avanço na cobertura assistencial. No
entanto, ainda há críticas sobre a cobertura desigual e a falta de financiamento
adequado para manter o funcionamento dos CAPS em diversas regiões. O texto
aponta que, embora tenha havido um aumento significativo nos serviços
extra-hospitalares, o percentual de recursos destinados aos hospitais psiquiátricos
ainda era de cerca de 64% do orçamento de saúde mental em 2004, o que sugere
uma lentidão na transição completa para o modelo comunitário.

Um dos méritos do artigo é destacar a importância da inclusão social dos usuários


dos serviços de saúde mental, e a participação ativa desses indivíduos e seus
familiares na formulação de políticas públicas. O artigo argumenta que a reforma
psiquiátrica só pode ser eficaz se houver um rompimento com a lógica de exclusão
que marcou o modelo anterior. Nesse sentido, o Programa de Volta para Casa,
criado em 2003, é visto como um importante mecanismo de reintegração social, ao
proporcionar um auxílio financeiro para egressos de hospitais psiquiátricos,
ajudando-os a reconstruir suas vidas fora das instituições. Além disso, a
participação dos usuários e familiares em conselhos de saúde e nas conferências
nacionais é mencionada como um avanço importante para garantir o controle social
e a defesa dos direitos dos pacientes. No entanto, o texto critica a falta de
mecanismos mais robustos para garantir que essas vozes sejam sempre ouvidas e
levadas em consideração na formulação de políticas.

Outro aspecto relevante discutido no artigo é a política de atenção aos usuários de


álcool e outras drogas. Embora o documento reconheça a importância do
desenvolvimento dessa área dentro da reforma psiquiátrica, ele aponta que houve
uma omissão histórica das políticas públicas de saúde mental nesse campo. A
saúde pública não se ocupava de forma adequada com a prevenção e o tratamento
dos transtornos relacionados ao consumo dessas substâncias. A gravidade do
problema de saúde pública, particularmente relacionado ao álcool, é destacada
devido aos impactos negativos em diversas esferas da vida dos indivíduos. O texto
explica que, até recentemente, o problema era tratado principalmente por
instituições psiquiátricas, médicas ou religiosas, com foco na abstinência, e que o
Estado delegava essas questões a essas entidades, muitas vezes filantrópicas. O
uso de álcool e outras drogas também foi frequentemente associado à criminalidade
e exclusão social, e o governo oferecia poucos serviços voltados ao tratamento
dessa população. Somente em 2002 o Ministério da Saúde implementou o
Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e
Outras Drogas, que estabeleceu uma política pública focada em ampliar o acesso
ao tratamento, promover os direitos dos usuários e adotar a estratégia de redução
de danos. Essa abordagem visa minimizar os impactos negativos do consumo de
drogas, sem exigir a abstinência imediata, e promover a reinserção social dos
usuários. O programa inclui a criação de uma rede de serviços extra-hospitalares,
articulada à rede de atenção psicossocial, além de estratégias como a distribuição
de insumos para prevenção de infecções, materiais educativos sobre o uso mais
seguro de substâncias e a ampliação das unidades de tratamento. A abordagem
para redução de danos é vista como um avanço, mas o artigo sugere que ainda há
muito a ser feito para criar uma rede de apoio efetiva e inclusiva para esse grupo de
usuários.

O artigo encerra com uma reflexão sobre os desafios culturais enfrentados pela
reforma psiquiátrica no Brasil. A superação do estigma associado aos transtornos
mentais, a resistência à mudança de paradigmas e a falta de formação adequada
para profissionais de saúde são algumas das barreiras que dificultam a
consolidação de um modelo de atenção humanizado e comunitário. O texto destaca
a necessidade de um maior envolvimento dos meios de comunicação e de
campanhas educativas para desconstruir preconceitos e promover a inclusão social.

Em termos gerais, o artigo “Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no


Brasil” é um documento de grande relevância para o entendimento do processo de
reforma psiquiátrica no Brasil. Ele oferece uma análise detalhada dos avanços
alcançados desde os anos 1970, assim como os desafios ainda existentes para a
plena implementação de um modelo de atenção à saúde mental baseado na
inclusão e nos direitos humanos. A crítica à manutenção de elementos do modelo
hospitalocêntrico e a desigualdade na distribuição de recursos são pontos que
merecem maior atenção. Embora o artigo apresente um panorama otimista, é
evidente que o processo de reforma ainda precisa de ajustes, tanto no nível cultural
quanto estrutural. A construção de uma rede de cuidados realmente eficaz e
acessível para todas as regiões do Brasil ainda está em andamento, e é
fundamental que se avance no sentido de garantir uma distribuição mais equitativa
dos recursos, além de fortalecer a rede de serviços substitutivos ao hospital
psiquiátrico. A importância do controle social e da participação ativa de usuários e
familiares também é um aspecto positivo ressaltado, mas, para que a reforma seja
consolidada de forma plena, é necessário enfrentar os desafios culturais, superar o
estigma associado aos transtornos mentais e garantir que o financiamento e os
recursos humanos sejam adequados para atender à crescente demanda por
serviços comunitários.

Em resumo, o artigo é uma contribuição valiosa para a compreensão da Reforma


Psiquiátrica no Brasil, mostrando os avanços, as dificuldades e as resistências que
continuam presentes nesse processo. Ele reforça a necessidade de um esforço
contínuo para que as políticas públicas evoluam em direção a um modelo de saúde
mental verdadeiramente inclusivo, humano e baseado nos direitos dos indivíduos
com transtornos mentais.

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