Download

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 14

Reflexão

VINTE ANOS DA LEI DA REFORMA


PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA:
SIGNIFICADOS PARA A ENFERMAGEM
PSIQUIÁTRICA E EM SAÚDE MENTAL

Maria Angélica de Almeida Peres1 


Gizele da Conceição Soares Martins2 
Gisele Cristina Manfrini3 
Lucilene Cardoso4 
Paula Isabella Marujo Nunes da Fonseca1 
Mona Shattell5 
1
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Enfermagem Anna Nery. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
2
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro Multidisciplinar de Macaé. Macaé, Rio de Janeiro, Brasil.
3
Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
4
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil.
5
University of Central Florida, College of Nursing. Orlando, Florida, Estados Unidos.

RESUMO

Objetivo: desenvolver argumentação sustentando a Enfermagem psiquiátrica e em saúde mental como


força-base de trabalho qualificado e indispensável na evolução da assistência e políticas em saúde mental.
Método: argumentação de natureza reflexiva, considerando o percurso da Enfermagem psiquiátrica e em
saúde mental ao longo dos vinte anos do marco legal da Reforma Psiquiátrica, bem como as publicações
pertinentes à discussão do tema in voga.
Resultados: apresentam-se dois tópicos: da Enfermagem Psiquiátrica à Enfermagem em saúde mental:
mudança de paradigma; e, Enfermagem em saúde mental: uma nova práxis.
Conclusão: a Enfermagem psiquiátrica e em saúde mental se apresenta como prática resiliente e sustentável
a despeito das crises originadas por políticas institucionalizantes implementadas em nível governamental.
A profissão, cada vez mais politizada e atenta às pautas relevantes do Sistema Único de Saúde, luta e se
reinventa na sua forma de cuidar, alinhada às diretrizes da reforma, não estando sujeita a regressões de
caráter estigmatizante ou fora do território comunitário.

DESCRITORES: Saúde mental. Enfermagem psiquiátrica. Serviços de saúde mental. Enfermagem. Prática
profissional. Reforma psiquiátrica.

COMO CITAR: Peres MAA, Martins GCS, Manfrini GC, Cardoso L, Fonseca PIMN, Shattell M. Vinte anos da Lei da
Reforma Psiquiátrica brasileira: significados para a enfermagem psiquiátrica e em saúde mental. Texto Contexto Enferm
[Internet]. 2022 [acesso MÊS ANO DIA]; 31:e20220045. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 1/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
TWENTY YEARS OF THE BRAZILIAN PSYCHIATRIC REFORM:
MEANINGS FOR PSYCHIATRIC AND MENTAL HEALTH NURSING

ABSTRACT

Objective: to develop arguments supporting Psychiatric and Mental Health Nursing as a baseline force of
qualified and indispensable work in the evolution of mental health care and policies.
Method: argumentation of a reflective nature, considering the path of Psychiatric and Mental Health Nursing
over the twenty years of the legal framework of the Psychiatric Reform, as well as the publications pertinent
to discussion of the topic in vogue.
Results: two topics emerged, namely: From Psychiatric Nursing to Mental Health Nursing: a change of
paradigm; and Mental Health Nursing: a new praxis.
Conclusion: Psychiatric and Mental Health Nursing presents itself as a resilient and sustainable practice
despite the crises caused by institutionalizing policies implemented at the governmental level. The profession,
increasingly politicized and attentive to the relevant guidelines of the Unified Health System, struggles and
reinvents itself in its way of caring, in line with the reform guidelines, not subjected to stigmatizing regressions
or outside the community territory.

DESCRIPTORS: Mental health. Psychiatric Nursing. Mental health services. Nursing. Professional practice.
Psychiatric Reform.

VEINTE AÑOS DA LEY DE REFORMA PSIQUIÁTRICA EN BRASIL:


SIGNIFICADOS PARA LA ENFERMERÍA PSIQUIÁTRICA Y EN SALUD MENTAL

RESUMEN

Objetivo: desarrollar una argumentación que sustente a la Enfermería Psiquiátrica y en Salud Mental como
una fuerza base de trabajo calificado e indispensable para la evolución de la atención y las políticas de salud
mental.
Método: argumentación de carácter reflexivo, considerando el trayecto de la Enfermería Psiquiátrica y en


Salud Mental a lo largo de los veinte años de vigencia del marco legal de la Reforma Psiquiátrica, al igual que
las publicaciones pertinentes al debate del tema en boga.
Resultados: se presentaron dos temas: de la Enfermería Psiquiátrica a la Enfermería en Salud Mental: un
cambio de paradigma; y Enfermería en Salud Mental: una nueva praxis.
Conclusión: la Enfermería Psiquiátrica y en Salud Mental se presenta como una práctica resiliente y
sustentable con respecto a las crisis originadas por políticas institucionalizantes implementadas al nivel
gubernamental. La profesión, cada vez más politizada y atenta a las pautas relevantes del Sistema Único de
Salud, lucha y se reinventa en su forma de ofrecer atención, alineada con las directrices de la reforma y no
sujeta a regresiones de carácter estigmatizante o fuera del territorio comunitario.

DESCRIPTORES: Salud mental. Enfermería psiquiátrica. Servicios de salud mental. Enfermería. Práctica
profesional. Reforma psiquiátrica.

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 2/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
INTRODUÇÃO
O ano de 2021 possibilitou uma reflexão sobre o campo psicossocial, ao demarcar vinte
anos da promulgação da Lei Federal n.10.216/01, conhecida como Lei Paulo Delgado, que atribuiu
caráter legal à Reforma Psiquiátrica brasileira. Tal lei, reconhecida como resultante do movimento
da luta antimanicomial, iniciado na década de 1970, que trouxe à tona a incompetência do hospital
psiquiátrico, o qual unicamente respondia como referência manicomial, excludente, carcerária e
institucional no tratamento dessas pessoas, foi amplamente apoiada por usuários, seus familiares e
pelos profissionais imbuídos do conceito de saúde mental, que, desde então, mantêm-se firmes na
luta pela efetiva garantia dos direitos das pessoas em sofrimento psíquico na sociedade brasileira1.
Também para a Enfermagem esse marco é motivo de celebração, uma vez que a Lei Paulo
Delgado (Reforma Psiquiátrica) proporcionou, a partir da criação de diferentes dispositivos de
cuidado em saúde mental, uma mudança na forma de cuidar da pessoa com transtorno mental, o
que impactou diretamente no fazer da Enfermagem na área1.
Desde 2001, este modelo, antes limitado aos hospitais psiquiátricos, passou a ser substituído
por serviços de base territorial, com reestruturação da assistência em saúde mental, nos seguintes
tópicos: financiamento de leitos em hospitais gerais, tempo de internação restrito ao mínimo
necessário, auxílio reabilitação psicossocial aos usuários egressos de longa internação psiquiátrica
e regulamentação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)2.
A RAPS, criada pela Portaria MS/GM n. 3.088/2011, estabelece legalmente estes serviços
e reestrutura o lugar de atenção psicossocial mais expandido em seus variados componentes e
pontos de atenção, caracterizados por serviços de saúde comunitários, inseridos no contexto social
e abertos à população, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)3.
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) foram os primeiros dispositivos substitutivos aos
manicômios, instituídos a partir de 1987, com função estratégica organizacional no território. Para


os usuários, este foi um caminho em direção à liberdade, dignidade e, principalmente, ao resgate


da cidadania. Além de abrir uma porta ao seu território correspondente, onde o tratamento passou
a ser construído de forma conjunta e corresponsável, buscou desenvolver uma autonomia possível,
por meio da desinstitucionalização, cuidado integral interprofissional e de estratégias de reabilitação
psicossocial4–5. Logo, os CAPS vão ao encontro e compatibilização de anseios para o tratamento
das pessoas com transtornos mentais, que se vinculam a preceitos reformistas psiquiátricos, em
crescente desenvolvimento2.
Assim, foi gerada uma transformação sem precedentes na história da psiquiatria no Brasil,
com o fechamento de manicômios e criação de outros dispositivos de atendimento, além dos CAPS,
tais como: Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Unidades de Acolhimento, Consultórios de
Rua, Centros de Convivência, Leitos Reservados em Hospitais Gerais, entre outras formas, desde
que garantam aos usuários alternativas apropriadas em serviços de saúde mental, sem restringir a
sua liberdade, outrora única opção para quem manifestasse qualquer tipo de sofrimento psíquico
ou uso abusivo de álcool e outras drogas, requerendo alguma forma específica de tratamento1–3.
Tais transformações refletiram diretamente no saber e no fazer dos profissionais de saúde
mental, principalmente no cuidado de Enfermagem Psiquiátrica, que precisou se reconfigurar frente
às novas práticas e aos saberes exigidos na construção do cuidado proposto pelo modelo territorial
de atenção psicossocial. Portanto, o cuidado antes realizado no hospital pela dupla médico/enfermeiro
passa a ser proposto, nos dispositivos de saúde mental, junto com equipe multiprofissional, em
caráter interdisciplinar e interprofissional. Assim, a organização do processo de trabalho em rede
tem como desafios de promover saúde mental, prevenir, proteger, recuperar e reabilitar situações

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 3/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
de sofrimento psíquico em pessoas, seja na infância ou em outra fase da vida, no meio familiar,
ampliando-se necessariamente ao espaço comunitário para gerar autonomia6–7.
Evidentemente que, ao longo destes últimos vinte anos, as equipes de saúde apresentam
ainda alguns membros resistentes às mudanças propostas pela Lei n. 10.2016/01 e demais marcos
legais subsequentes. Entretanto, graças ao empenho de muitos profissionais, usuários e seus
familiares, que prosseguiram com o movimento de luta antimanicomial, é possível visualizar as
diretrizes da Reforma Psiquiátrica como realidade nos dispositivos de saúde mental espalhados pelos
municípios brasileiros. Desta forma, a vigilância e a luta por direitos representam uma constante e
necessária postura aos que almejam evolução qualitativa na assistência e cuidado em saúde mental
nas instituições sociais contemporâneas1–2.
Nesse contexto, a Enfermagem e demais profissionais da equipe reorganizaram o cuidado
em saúde mental, com base na atenção psicossocial, tendo dois pilares sustentando seus objetivos:
a criação conjunta de estratégias de enfrentamento e a maior autonomia possível para as pessoas
portadoras de transtornos mentais em suas famílias, considerando situações de vida diária, singularidade
dos usuários, recursos e dispositivos disponíveis nos diferentes contextos social e econômico. Tudo
isso a ser construído a partir do projeto terapêutico singular, desenvolvido de maneira coparticipativa
entre o usuário, a família e os profissionais de referência dos serviços inseridos no território8.
A equipe de Enfermagem, em sua peculiaridade mais reconhecida que é a de estar presente
de maneira contínua e ininterrupta no hospital, necessitou de uma reinterpretação da sua prática
profissional de Enfermagem Psiquiátrica, instituída desde a criação do primeiro manicômio brasileiro
e reafirmada durante mais de um século dentro de instituições similares8–9. Essa reinterpretação
sobre a prática de Enfermagem no campo psiquiátrico, que desde a década de 1950 é bem definida
como cuidado especializado de Enfermagem Psiquiátrica, foi qualificada para se tornar essencial
também no campo da saúde mental.
Desse modo, a preferência de alguns autores por usar o termo “Enfermagem em saúde


mental” no lugar de “Enfermagem Psiquiátrica”, de modo algum interfere na constituição dos saberes
estabelecidos na especialidade, uma vez que persistem como fundamentais nos dispositivos
destinados ao atendimento das pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, o qual requer
a participação do enfermeiro especialista na área e define as principais teorias e procedimentos
deste cuidado: Enfermagem Psiquiátrica. A história não deve ser apagada e, sim, servir de exemplo
para impedir a repetição das práticas evidenciadas como inúteis para o cuidado. Sendo assim,
pode-se dizer que a especialidade Enfermagem Psiquiátrica se expandiu e subsidiou as práticas da
Enfermagem em saúde mental, as quais são aplicáveis em diferentes cenários de cuidado, podendo
(as de saúde mental) ser propagadas, inclusive, aos profissionais não especialistas que atuam na
Atenção Primária à Saúde, de modo a permitir maior abrangência do cuidado de Enfermagem no
território e organização do acesso das pessoas com transtornos mentais aos dispositivos da RAPS.
Assim, ao longo desses vinte anos, o cuidado de Enfermagem Psiquiátrica e de Saúde Mental
evoluiu e seus profissionais se dispõem a fazê-lo com, e não pelo usuário. Neste sentido, profissionais,
especialistas, pesquisadores, mestres e doutores produziram evidências científicas importantes
que consagraram suas contribuições para a construção de um arcabouço teórico-prático, visando
à atenção psicossocial como cerne do cuidado de Enfermagem Psiquiátrica e de Saúde Mental8,10.
Os cursos de graduação se aprimoraram, cursos de pós-graduação (lato e stricto senso) se
expandiram e a Enfermagem Psiquiátrica e de saúde mental, como especialidade, passou a ser
mais bem reconhecida, sem deixar de trazer à tona as lacunas na formação de recursos humanos
qualificados e os desafios a serem ainda enfrentados tanto na prática quanto na construção de políticas
públicas nesta área, que não raro sofrem ataques traduzidos como retrocessos ao preconizado pela
Reforma Psiquiátrica11–12.

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 4/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
A exemplo disso, no período entre 2016 e 2019, destaca-se uma série de normativas editadas,
relativas à “Nova Política de Saúde Mental”, nomenclatura dada à nota técnica n.11/2019 do Ministério
da Saúde. A “Nova Política” é, de fato, uma contrarreforma que coloca a internação psiquiátrica, seja
em hospital geral, em hospital psiquiátrico, ou mesmo em comunidade terapêutica, como possibilidade
vantajosa para o financiamento da saúde mental como mercadoria1. Isto leva à rememoração do
que ocorreu na década de 1970, ao que se conhece como “indústria da loucura” ou “mercantilização
da loucura”, uma vez que a “Nova Política” também autoriza o financiamento do procedimento de
eletroconvulsoterapia (ECT), atualmente regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina, com
exigência de anestesia e equipamentos, o que eleva o valor cobrado para o mesmo, que se soma
ao alto custo das medicações psiquiátricas e aos altos valores pagos por Autorização de Internação
Hospitalar (AIH) em psiquiatria. Tudo isso, se não fiscalizado em sua utilização, pode ser manipulado
para enriquecer a indústria farmacêutica e donos de clínicas psiquiátricas1–2.
Ainda nesse mesmo olhar, enquanto os recursos financeiros para as internações e manutenção
de leitos de internação de longa permanência aumentaram, a verba para os CAPS, SRT, Unidades
de Acolhimento e Leitos em Hospital Geral foi reduzida, o que reflete a intenção de se fazer um
caminho de volta ou contrarreforma, sendo dirigido aos profissionais e usuários de saúde mental1–2.
É sobre essa transformação, ao longo de vinte anos, repentina, sob a perspectiva da história,
que este artigo trata, tendo como objetivo: desenvolver argumentação sustentando a Enfermagem
Psiquiátrica e em saúde mental como força-base de trabalho qualificado e indispensável na evolução
da assistência e políticas em saúde mental.
Na justificativa para esta reflexão, considera-se, sobremodo, que em vinte anos da Lei
da Reforma Psiquiátrica, a Enfermagem representa destacada e ininterrupta presença junto aos
usuários dos Serviços de Saúde em instituições diversas e órgãos gestores, sempre ressignificando
e transformando suas práticas em prol da qualidade e excelência ao cuidar. Assim, ampliando o foco,
antes apenas voltado para atribuições burocráticas, administrativas e tecnicistas, para novas ações


diretas com usuários e familiares em saúde mental, por meio da prática baseada em evidências,
inovações tecnológicas, conhecimento científico, tecnologias leves e práticas integrativas.
Acrescenta-se, ainda, a aplicação do Processo de Enfermagem de maneira sistematizada,
com escuta terapêutica qualificada, acolhimento, estabelecimento de vínculos, desenvolvimento
de oficinas terapêuticas, intervenções preventivas e de educação em saúde, visitas domiciliares,
consulta de enfermagem, manejo de crise, apoio matricial, entre outras estratégias de cuidado
psicossocial, nos diversos dispositivos que compõem a RAPS, assumindo um papel de resistência
e de enfrentamento aos movimentos retrógrados e institucionalizantes.

MÉTODO
Argumentação de natureza reflexiva, que considera o percurso da Enfermagem Psiquiátrica e
em saúde mental ao longo dos últimos vinte anos do marco legal da Reforma Psiquiátrica, bem como
as publicações pertinentes à discussão do tema in voga. As referências foram selecionadas tanto
pela sua relevância no campo da história da enfermagem psiquiátrica (ensino e prática) quanto por
discussões feitas por pesquisadores que tratam criticamente o movimento de reforma psiquiátrica.

RESULTADOS
As alterações advindas e garantidas pela Reforma Psiquiátrica permitiram à Enfermagem
Psiquiátrica e em saúde mental se mover por novos caminhos, contemplando: ampliação da procura
por especialização na área; aumento da consciência e ação política frente às constantes ameaças e
políticas de retrocesso na área; produção de estudos sobre temas pertinentes à reforma, corroborando

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 5/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
para a divulgação inclusive do trabalho da categoria na área; maior inserção da equipe de Enfermagem
nos diferentes dispositivos de saúde mental, não reduzindo seu saber-fazer somente ao lugar do
hospital.
Assim, esta reflexão foi apresentada em dois tópicos intitulados: 1) Da Enfermagem Psiquiátrica
à Enfermagem em Saúde Mental: mudança de paradigma e Enfermagem em Saúde Mental: uma
nova práxis; 2) Enfermagem Psiquiátrica e em saúde mental após vinte anos de Reforma Psiquiátrica:
desafios para evitar retrocessos.

Da Enfermagem Psiquiátrica à Enfermagem em Saúde Mental:


mudança de paradigma
Historicamente, a Enfermagem Psiquiátrica apresentava dificuldades em definir seu papel
no contexto da interdisciplinaridade e do paradigma da atenção biopsicossocial em saúde mental.
Este fato se justifica pela sua trajetória na área que, iniciada como prática caritativa, avança para
sua profissionalização, inicialmente voltada aos interesses da medicina psiquiátrica, que passa a
dirigir grandes hospícios13.
Embora denominados “enfermeiros”, apenas uma pequena parte desse grupo tinha alguma
formação profissional, sendo a “assistência” psiquiátrica executada por qualquer pessoa, independente
de estudo ou qualificação para tanto. É preciso reconhecer que o trabalho nessas instituições
manicomiais requeria da “Enfermagem” lidar cara a cara com as pessoas em sofrimento psíquico,
sem ter tido qualquer treinamento técnico, de procedimentos terapêuticos ou de protocolos de cuidado
humanizados. Além disso, na maioria das vezes, as pessoas eram internadas contra a sua vontade
e submetidas a “tratamentos” punitivos, uniformizantes e carcerários10.
Essa situação perdurou desde períodos em que vigorava o tratamento moral, passando
pelas terapias biológicas, até o advento dos psicofármacos (1950) e implementação das práticas
terapêuticas não farmacológicas, a partir de 19709,13. Até a década de 1960 poucos enfermeiros


foram inseridos nas instituições psiquiátricas e, apenas a partir de 1975, foi criado o primeiro curso
de pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica no país11.
Diante disso, a Enfermagem Psiquiátrica, apesar de ter sido desviada por muito tempo do
seu papel de cuidar, desenvolveu certa capacidade de adaptação a novas formas desse cuidado e
conhecimentos teórico-práticos e científicos para aprimorar a profissão e qualificar sua atuação8. A
justificativa para seus avanços científicos e tecnológicos no campo psicossocial, mesmo considerando
apenas vinte anos da promulgação da lei que consolidou pela primeira vez os princípios e diretrizes
da Reforma Psiquiátrica no Brasil, é a substituição de práticos de Enfermagem por enfermeiros,
auxiliares e técnicos de Enfermagem ao longo do tempo10.
Sem desconsiderar a atuação da Enfermagem em Saúde Pública (1930-1950) que, baseada
na higiene mental, atuou como mais um agente da atenção psiquiátrica fora do hospital devido à sua
capacidade educativa na prevenção de doenças mentais10. A Enfermagem Psiquiátrica tem peculiar
importância na Reforma Psiquiátrica, pois, investiu no aprimoramento teórico-prático, produção de
conhecimentos científicos, formação de recursos, ou ainda, nos dispositivos sociais de controle e
formulação das políticas públicas, reestruturou-se e rompeu com o paradigma manicomial para atuar
na promoção qualificada de cuidado em saúde mental8–9.
No processo de desinstitucionalização, ainda dentro do hospital psiquiátrico, a Enfermagem
Psiquiátrica promoveu cuidados para tornar possível a alta das pessoas internadas, participando
ativamente na redução de leitos. Ocorreram movimentos antimanicomiais fora e dentro da instituição.
Nesse último, a Enfermagem trabalhou para dar o mínimo de autonomia para essas pessoas saírem
para o convívio em suas casas ou SRT.

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 6/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
Através da criação de dispositivos de saúde mental na comunidade e aprimoramento do
ensino na área, os saberes profissionais da Enfermagem Psiquiátrica e de saúde mental puderam,
de fato, ser validados, treinados e implementados, estabelecendo a autonomia e competência
destes profissionais para o cuidado a ser ofertado a partir da Reforma Psiquiátrica. Para tanto, a
Enfermagem Psiquiátrica e de saúde mental superou até mesmo o modelo de ensino das escolas de
Enfermagem que, por longos anos, foi pautado na psiquiatria tradicional e tratamentos farmacológicos,
compreendidos como a única forma de alcançar a “cura para a loucura”7,9,12.
Nesse contexto, com o advento do SUS, a hegemonia da ciência médica sobre as demais
práticas em saúde incentivou movimentos paralelos e concomitantes aos da Reforma Psiquiátrica
por parte das profissões de saúde, de maneira que, com criticidade, as disciplinas, incluindo a própria
medicina, se dispusessem às trocas de saberes e ao compartilhamento de intervenções e de cuidados.
Assim, Enfermagem Psiquiátrica e em saúde mental se estendeu na sociedade com a
Reforma Psiquiátrica para se inserir no modelo de atenção psicossocial, compreendido como um
paradigma que situa a saúde mental no campo interdisciplinar, ao tempo que guarda em si um cuidado
especializado da profissão. Desta maneira, passou a compreender o processo saúde-doença como
resultante de processos sociais complexos e que demandam uma abordagem interprofissional e
intersetorial, com a finalidade de alcançar o cuidado integral, na perspectiva do SUS. Entende-se
por saúde mental o “bem-estar no qual o indivíduo desenvolve suas habilidades pessoais, consegue
lidar com os estresses da vida, trabalha de forma produtiva e encontra-se apto a dar sua contribuição
para sua comunidade”14,15:25.
Isto porque a Enfermagem Psiquiátrica e em saúde mental possui uma abrangência de
conhecimento que a permitiu trabalhar no paradigma psicossocial, onde o processo de trabalho é
horizontalizado e não há destaque de um único profissional na liderança. E, vem ocorrendo sem
que suas bases, enquanto especialidade, sejam deixadas de lado, pois são elas que continuam
sustentando o cuidado às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes. Os avanços são


evidentes e demarcados pela presença da Enfermagem em todos os dispositivos da RAPS.


O investimento atual da Enfermagem Psiquiátrica e em saúde mental precisa estar afinado
com uma composição profissional estudiosa e plena de projetos adequados ao serviço que se
propõe a prestar à sociedade onde serve. A proposta da equipe multiprofissional, com abordagem
interprofissional, é que se tenha diversos profissionais trabalhando de forma cooperativa, com
práticas colaborativas e trabalho em equipe compartilhado com assistentes sociais, enfermeiros,
médicos, psicólogos, técnicos de Enfermagem, terapeutas ocupacionais, entre outros profissionais.
Todos concentrados em qualidade do atendimento e certos de resultados avançados, com o foco no
cuidado em liberdade e ampliados a uma troca social cada vez mais abrangente4,16–17.
A interprofissionalidade em saúde mental pressupõe horizontalidade da equipe e isto implica
em criticar a inflexibilidade em relação ao diálogo multiprofissional e intersetorial. Possui estratégias
capazes de oferecer atendimento a um maior número de pessoas no SUS e de reduzir a falta de
acesso aos serviços de saúde mental. O diálogo intersetorial depende de profissionais potencialmente
preparados para desenvolver a comunicação dentro da equipe e entre serviços, para melhor articulação
de competências comuns e especificas de cada profissional16–17.
Sendo o enfermeiro um profissional reconhecido, não somente, mas principalmente, pela
sua permanência e proximidade junto aos usuários e suas famílias para prestar os cuidados de
Enfermagem, está sempre articulado ao trabalho dos demais profissionais. A sua atuação se dá,
portanto, integrada a dos demais membros da equipe de saúde, tornando-o comumente um importante
membro articulador da equipe3,17–18. Tal lugar não é unicamente ocupado pelo enfermeiro, pois deve
circular entre os diferentes membros da equipe de saúde mental, permitindo a participação efetiva
de todos na condução do serviço, o que é incentivado pela equipe de Enfermagem.

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 7/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
Porém, a estas mudanças que fomentavam esforços para reconfigurar saberes e práticas
surgiram dificuldades e resistências nas esquipes multiprofissionais. E nem todos os membros destas
equipes dispunham de habilidades ou estavam dispostos a acompanhar os avanços conquistados pelo
movimento de luta antimanicomial8. Isso é um dos fatores que podem ter levado alguns profissionais
de Enfermagem ao distanciamento da lógica assistencial do serviço territorial de saúde mental, com
centralização de sua atuação em atividades burocráticas, crise de identidade profissional, limitação
do desenvolvimento da Enfermagem Psiquiátrica e da Enfermagem em saúde mental.
Contudo, diversos estudos apontam as relevantes contribuições da Enfermagem e, em
especial, do profissional enfermeiro, que vieram a reconfigurar seus saberes ultrapassados e
conseguiram construir sua práxis em saúde mental com base na ciência da Enfermagem e nos direitos
humanos, tendo como premissa o relacionamento terapêutico e a singularidade de cada pessoa
para o desenvolvimento do cuidado ético e profissional apropriado e mais abrangente, atendendo
aos parâmetros do SUS8,18–19.
Assim, a Reforma Psiquiátrica também impulsionou a Enfermagem Psiquiátrica e em saúde
mental a desenvolver e aplicar algumas ferramentas, hoje percebidas como fundamentais, para que
ultrapasse o modelo tecnicista (executor de tarefas) para um modelo autônomo, criativo, sensível
ao aprimoramento das novas estratégias de cuidado e enfrentamento de situações inesperadas,
buscando sempre a dignidade e melhor autonomia da pessoa com transtorno mental em seu contexto
psicossocial, tornando estes profissionais essenciais para a consolidação da reforma6–7,14.
A equipe de Enfermagem, ao integrar os serviços da RAPS, contribuiu para a implementação
de dispositivos que tivessem serviços com capacidade de identificar demandas clínicas para além
dos sintomas da doença mental, destacando-se nesse processo o relacionamento interpessoal
terapêutico como ferramenta primordial, aplicável em qualquer cenário de atenção à saúde para prestar
acolhimento em saúde mental. Com atuação vital, a Enfermagem articulou recursos e dispositivos
para promover a devida atenção e cuidado às necessidades de cada pessoa, considerada sua


multidimensionalidade18–20.
É importante também destacar a evolução Processo de Enfermagem para a implantação de
um elenco de recursos para o cuidado baseados no relacionamento interpessoal e terapêutico20–21.
Nos novos dispositivos de saúde mental a Enfermagem tem se colocado para além do atendimento
da pessoa, individualmente, cobrindo todo o seu cenário de vida e saúde. Também atuou na produção
e atualização do conhecimento científico na área de saúde mental, com quantitativo expressivo de
artigos, a partir de 2001, indexados nas bases de dados mais relevantes. Isto nos permite identificar
mais claramente a ampliação da Enfermagem Psiquiátrica em Enfermagem de saúde mental nos
últimos 20 anos22.

Enfermagem Psiquiátrica e em saúde mental após vinte anos de Reforma Psiquiátrica:


desafios para evitar retrocessos
Neste olhar para a trajetória da Enfermagem nos últimos vinte anos, após o marco legal da
Reforma Psiquiátrica, perpassa os cenários políticos que tiveram profundas influências na construção
das políticas norteadoras para o cuidado em saúde mental no país. Neste contexto, avança também
a participação desta classe trabalhadora do setor saúde nos movimentos e situações conflitivas
decisórios aos rumos das práticas institucionalizadas e desinstitucionalizadas. A respeito das mudanças
que acompanham a trajetória da Reforma, descortinam-se também os investimentos na formação
profissional e produção cientifica voltada e articulada a um modelo assistencial em saúde mental e
integralidade do ser humano.
Estudos históricos da Enfermagem, motivados pela trajetória da Reforma Psiquiátrica Brasileira,
partem de experiências em hospitais psiquiátricos, contribuindo ao conhecimento e à valorização das

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 8/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
mudanças vividas pelos trabalhadores nas instituições22–23. Assim como, pelos usuários de saúde
mental, dentro e fora delas, o que deu luz à percepção sobre a problemática da saúde mental na
sociedade foi a consciência de que saúde mental é necessidade de todos e não problema de alguns,
influenciando os rumos da formação profissional24.
Um estudo representou o comportamento da forma de cuidar, que acompanhou as interações
do mundo social e político desde a década de 1970, de dentro do espaço institucional para o espaço
extramuros, dadas as relações das pessoas que cuidavam e administravam os hospitais25. Assim,
a segunda metade do século XX foi decisiva para ressignificar a saúde mental global, o que contou
com novos recursos de comunicação para difundir ideias e concepções teóricas sobre esse tema,
ocasionando, em diferentes partes do mundo, reflexões críticas sobre o que influencia no sofrimento
psíquico: o contexto de vida das pessoas que sofrem26.
Neste sentido, na realidade nacional com a criação dos CAPS no Brasil, a Enfermagem adentrou
ao contexto assistencial interprofissional, com enfoque na reabilitação psicossocial e no cuidado em
saúde mental, com demandas específicas e necessitadas de articulação intersetorial para efetivação
da proposta política extramuros, feita em contraposição ao sistema manicomial. Assim, reconhece-se
que sempre foi desafiador promover um novo modelo assistencial para a saúde mental, tanto pelas
equipes de CAPS como dos serviços de saúde mental em territórios, conforme as realidades dos
municípios. Deste modo, as ações da Enfermagem em saúde mental encontram na Estratégia de
Saúde da Família possibilidades e desafios na implementação de práticas de desinstitucionalização
e de ampliação das perspectivas de cuidado em rede, com a finalidade de capilarizar práticas no
território com os equipamentos sociais existentes27.
Desta forma, a atuação da Enfermagem nos CAPS é representada caracteristicamente pelo
modo de organização do processo de trabalho da equipe de Enfermagem, com a assistência básica e
pautada em competências especificas. Isto requer diálogo entre as atividades exclusivas do enfermeiro,
além de interações e cuidados compartilhados com a equipe interprofissional, meios pelos quais


se desenvolvem práticas individuais, familiares e coletivas, em nível de grupos e comunidade18–28.


Diante da complexidade do cuidado em saúde mental, a importância do trabalho interprofissional em
reconhecer as identidades coletivas e interprofissionalidade nos dispositivos e recursos disponíveis,
considerando a política nacional e o atual contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, é essencial17,20.
Além disso, abordagens teórico-práticas voltadas para assistência na psicopatologia e psico-
sintomatologia são ainda enfatizadas como dificuldades ao trabalho dos enfermeiros, que refletem
lacunas na formação profissional ou mesmo de educação permanente. Um desafio apontado na
literatura é a persistência de uma indefinição ou pouca clareza sobre a posição e o espaço de
atuação do enfermeiro, clinicamente, na equipe multiprofissional, o que pode estar relacionado ao
modelo psiquiátrico hegemônico nas suas formas de tratamento e à escassez de oportunidades de
atualização dos profissionais dos serviços substitutivos8,18.
Isto porque, os determinantes para a transformação do ensino de Enfermagem Psiquiátrica
e o interesse pelo campo de abrangência em saúde mental não envolveram apenas mudanças
curriculares, mas também, estudos quanto ao modo com que o ensino de Enfermagem se apropriou
desses determinantes para o desenvolvimento da área na formação em Enfermagem6,9,11. Muitos
deles evidenciados e consolidados, a partir da evolução do cuidado e avanços teórico-práticos
desenvolvidos nos serviços de saúde, no território. Diante disso, ressalta-se a transversalidade que
pode se tornar mais presente na saúde mental, no âmbito do ensino de Enfermagem, conforme a
Reforma Psiquiátrica avança com os seus respectivos cuidados em direção ao território. E, assim,
a cobertura de pessoas em sofrimento psíquico se torna mais presente nos ambientes de cuidado
em saúde, independente da especialidade do serviço.

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 9/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
Outro desafio importante tem sido a alta rotatividade nos serviços, principalmente naqueles
que compõem a RAPS, como CAPS e (Serviço Residencial Terapêutico) SRT. Um dos argumentos
apontados para essa rotatividade foi a contratação de outros profissionais ao invés daqueles aprovados
em concurso público para o SUS. Um estudo18 identificou na literatura as discordâncias no processo
de desinstitucionalização, quando observadas as condições de trabalho das equipes de saúde mental
no território e sua representatividade nos CAPS para o processo de trabalho interprofissional no
âmbito terapêutico e produtivo das atividades nesses serviços4,18.
Assim, mesmo considerados os relevantes avanços implementados no cuidado de Enfermagem
em saúde mental, na perspectiva da reforma, profissionais de saúde, cursos de Enfermagem
(universitários e técnicos), docentes e pesquisadores na área da saúde mental se encontram muitas
vezes isolados. Ainda que participem de eventos científicos na área, sua atuação é limitada nos
debates em espaços de interlocução e de tomada de decisão.
Há ainda preocupantes limitações, como o isolamento da equipe de Enfermagem em
enfermarias, sobretudo nos hospitais psiquiátricos, a pouca voz da equipe de Enfermagem em
instituições fechadas que mantêm a velha dinâmica tratativa médico-centrada, cargas horárias
de trabalho intensas que dificultam a articulação com outras categorias. Tudo isso funciona como
obstáculos para uma maior organização da categoria no sentido que ampliarem seus olhares ao
diálogo multidisciplinar do cuidado e de expandir a conversa e inserção com outros coletivos, dentro
e fora da área de saúde mental29.
Esta situação está manifesta na Carta da Enfermagem em saúde mental, documentada
durante plenária no 3º Colóquio Brasileiro de Enfermagem em Saúde Mental (2021), ressaltando
que parcerias nacionais neste atual momento histórico-social poderiam propiciar maior abrangência
de ações, amplo envolvimento de outros atores, descentralização e territorialização das propostas,
bem como oferecer maior investimento na formação da Enfermagem em saúde mental na perspectiva
ação-transformação junto aos estudantes, articulando efetivamente o ensino, a pesquisa e a extensão


universitária em pesquisas-intervenção-ação29.
Apesar de tantos desafios, alguns aqui registrados, é necessário destacar também que, devido
às diferenças político-sociais vigentes nas regiões do país, vem se sobressaindo um movimento
potente da Enfermagem em favor da aquisição e produção de conhecimentos que estreitam, cada
vez mais, a relação entre Enfermagem e o campo da saúde mental. Assim, financiamentos públicos
devem não apenas continuar, mas aumentar, devido às crescentes demandas por serviços de saúde
mental e aos tempos de espera excessivamente longos pelos serviços.

CONCLUSÃO
Uma consideração das mais importantes é que, nos últimos vinte anos, a Reforma Psiquiátrica
impactou profundamente na diminuição da perversa desumanização no cuidado, o que traçou longo
caminho, marcado pela trajetória manicomial. A absorção de novos conceitos, globalmente aceitos
no processo de transição do modelo manicomial para o psicossocial no Brasil, consolidou o que hoje
é Enfermagem Psiquiátrica e em Saúde Mental.
O atual conceito de saúde mental envolve todos os profissionais de saúde e nasce da expansão
dos espaços de cuidado às pessoas em sofrimento psíquico. Por essa razão, já não prescinde dos
cuidados da Enfermagem e habita o contexto dessas práticas, corroborando com a prospectiva de
trabalho de toda a equipe de saúde atuando interprofissionalmente.
As teorias e conceitos criados para sustentar o cuidado terapêutico de Enfermagem Psiquiátrica
são atuais e pertinentes ao cuidado psicossocial, tanto assim que se defende sua aplicação em
cenários onde há práticas de Enfermagem Psiquiátrica e em saúde mental na RAPS. A elas foram
incorporados fundamentos que emergiram com o SUS e com a Reforma Psiquiátrica para chegar

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 10/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
ao que se denomina hoje como Enfermagem Psiquiátrica e em Saúde Mental, que dispõe de uma
lógica de trabalho inclusiva e ética, que vem cada vez mais aprendendo a considerar o usuário
como protagonista do cuidado, o que deve se refletir no PTS. Os desafios foram lançados pela luta
antimanicomial que persiste. Muitos deles foram solucionados e outros estão em fase de superação,
exigindo reflexões como esta para maior criticidade sobre o conjunto de saberes e práticas, que
ao longo dos anos foram sendo dimensionados pela Enfermagem Psiquiátrica e de Saúde Mental
e, por isso mesmo, alcançaram sair do isolamento para definir um campo de atuação reformador,
desenhando o lugar do cuidado de Enfermagem na equipe multiprofissional.
Por estas razões, a amplitude da Enfermagem Psiquiátrica e em Saúde Mental, presente
em diferentes dispositivos e contextos do cuidado em saúde, não admite regressões de caráter
institucionalizante, uma vez que os avanços já não permitem considerar qualquer prática de cuidado
que se apresente fora do território comunitário.
Em tempos de pandemia, a saúde mental saltou aos olhos do mundo, tornando-se uma
preocupação para o futuro, desvelando-se num valor social, humanitário, implícito ao processo de
desenvolvimento individual e familiar, mundo do trabalho e relações sociais, refletido na diversidade
cultural das sociedades globais. Neste sentido, reafirma-se sobre a pertinência de se vislumbrar a
constância nos avanços desta área, de maneira que práticas resilientes e sustentáveis, em nível
comunitário e dos sistemas e setores responsáveis pelo fortalecimento das redes de suporte e de
enfrentamento do sofrimento mental estejam presentes e eficientes apesar das crises.

REFERÊNCIAS

1. Pitta AMF, Guljor AP. A violência da contrarreforma psiquiátrica no Brasil: um ataque à democracia
em tempos de luta pelos direitos humanos e justiça social. Cad CEAS [Internet]. 2019 [acesso
2022 Jan 24];(246):6-14. Disponível em: https://doi.org/10.25247/2447-861X.2019.n246.p6-14
2. Amarante P. Saúde mental e a atenção psicossocial. Rio de Janeiro, RJ(BR): Fiocruz; 2011. 123 p.


3. Clementino FS, Miranda FAN, Pessoa JM Jr, Marcolino EC, Silva JA Jr, Brandão GCG. Atendimento
integral e comunitário em saúde mental: avanços e desafios da reforma psiquiátrica. Trab
Educ Saude [Internet]. 2019 [acesso 2022 Jan 24];17(1):e0017713. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/1981-7746-sol00177
4. Gibbert PC, Figueiredo LMV, Dias LS, Rezio LA, Bittencourt MN, Volp ACP. A interprofissionalidade
e o cuidado em saúde mental: vivências de um grupo PET - Saúde na região Centro-Oeste.
Res, Soc Dev [Internet]. 2020 [acesso 2022 Jan 24];9(12):e33591211153. Disponível em: http://
doi.org/10.33448/rsd-v9i12.11153
5. Saraceno B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Rio de
Janeiro, RJ(BR): TeCorá; 1999. 176 p.
6. Martins GCS, Peres MAA, Santos TCF, Queirós PJP, Paiva CF, Almeida AJ Filho. Teaching
undergraduate nursing in mental health as allied to the consolidation of the Psychiatric Reform
movement. Esc Anna Nery [Internet]. 2018 [acesso 2022 Jan 24];22(4):e20180164. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2018-0164
7. Magnago C, Tavares CMM. O ensino de enfermagem psiquiátrica nas Universidades Públicas do
Estado do Rio de Janeiro. Rev Eletronica Enferm [Internet]. 2012 [acesso 2022 Jan 24];14(1):50-
8. Disponível em: https://doi.org/10.5216/ree.v14i1.10626
8. Martins GCS, Peres MAA, Bergold LB, Santos TCF, Queirós PJP, Almeida AJ Filho. Care
strategies adopted by nurses for the implementation of Psychosocial Care Centers. Rev Rene
[Internet]. 2018 [acesso 2022 Jan 24];19:e33319. Disponível em: https://doi.org/10.15253/2175-
6783.20181933319

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 11/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
9. Carvalho MS, Martins GCS, Dias NL, Santos TCF, Almeida AJ Filho, Peres MAA. O ensino de
enfermagem psiquiátrica na Escola Ana Néri, na primeira metade do século XX. Rev Eletronica
Enferm [Internet]. 2015 [acesso 2022 Jan 24];17(1):85-93. Disponível em: https://doi.org/10.5216/
ree.v17i1.23546
10. Pereira MM, Padilha MI, Oliveira AB, Santos TCF, Almeida AJ Filho, Peres MAA. Discursos
sobre os modelos de enfermagem e de enfermeira psiquiátrica nos Annaes de Enfermagem
(1933-1951). Rev Gaucha Enferm [Internet]. 2014 [acesso 2022 Jan 24];35:47-52. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2014.02.25736
11. Almeida MCP, Rodrigues RAP, Furegato ARF, Scochi CGS. A pós-graduação na escola de
enfermagem de Ribeirão Preto - USP: evolução histórica e sua contribuição para o desenvolvimento
da enfermagem. Rev Lat-Am Enfermagem [Internet]. 2002 [acesso 2022 Jan 24];10(3):276-87.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-11692002000300003
12. Esteves LSF, Cunha ICKO, Bohomol E, Neves VR. Trajetória histórica do estágio curricular
na graduação em enfermagem no Brasil: dilemas e tensões. Cogitare Enferm [Internet]. 2018
[acesso 2022 Jan 24];23(4):e58024. Disponível em: http://doi.org/10.5380/ce.v23i4.58024
13. Martinhago F, Caponi S. Controvérsias sobre o uso do DSM para diagnósticos de transtornos
mentais. Physis [Internet]. 2019 [acesso 2022 Jan 24];29(2):e290213. Disponível em: https://
doi.org/10.1590/S0103-73312019290213
14. Organização Mundial da Saúde. A saúde mental pelo prisma da saúde pública. Relatório sobre a
saúde no mundo 2001. In: Saúde mental: nova concepção, nova esperança [Internet]. Genebra:
OPAS/OMS; 2002. p. 1-16.
15. World Health Organization. Atlas: Mental Health Atlas [Internet]. Geneva: WHO; 2014. [acesso 2022 Jan
24] 67 p. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/178879/9789241565011_
eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y
16. Sousa FMS, Severo AKS, Félix-Silva AV, Amorim AKMA. Educação interprofissional e educação


permanente em saúde como estratégia para a construção de cuidado integral na Rede de


Atenção Psicossocial. Physis [Internet]. 2020 [acesso 2022 Jan 24];30(1):e300111. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312020300111
17. Oliveira GM, Daltro MR. ‘Coringas do cuidado’: o exercício da interprofissionalidade no contexto
da saúde mental. Saude Debate [Internet]. 2020 [acesso 2022 Jan 24];44(spe 3):82-94. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/0103-11042020E309
18. Pinho ES, Souza ACS, Esperidião E. Processos de trabalho dos profissionais dos Centros de
Atenção Psicossocial: revisão integrativa. Cienc Saude Colet [Internet]. 2018 [acesso 2022 Jan
24];23(1):141-52. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018231.08332015
19. Santos EO, Eslabão AD, Kantorski LP, Pinho LB. Nursing practices in a psychological care
center. Rev Bras Enferm [Internet]. 2020 [acesso 2022 Jan 24];73(1):e20180175. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0175
20. Oliveira LLC, Rivemales MCC. Articulando a prática de enfermagem com as teorias de
Nightingale, King e Peplau: relato de experiência. J Nurs Health [Internet]. 2021 [acesso 2022
Jan 24];11(4):e2111418421. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/
enfermagem/article/view/18421/13511
21. Freitas RJM, Moura NA, Feitosa RMM, Guedes MVC, Freitas MC, Silva LDF, et al. Processo
de enfermagem fundamentado no modelo de Joyce Travelbee. Rev Enferm UFPE [Internet].
2018 [acesso 2022 Jan 24];12(12):3287-94. Disponível em: https://doi.org/10.5205/1981-8963-
v12i12a235051p3287-3294-2018

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 12/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
22. Pereira P, Botelho MAR. Qualidades pessoais do enfermeiro e relação terapêutica em saúde mental:
revisão sistemática da literatura. Pen Enferm [Internet]. 2014 [acesso 2022 Jan 24];18(2):61-73.
Disponível em: http://hdl.handle.net/10400.26/23806
23. Arantes DJ, Toassa G. Movimento da Reforma Psiquiátrica em Goiânia, GO: trajetória histórica
e implantação dos primeiros serviços substitutivos. Rev Psicol Saude [Internet]. 2017 [acesso
2022 Mar 9];9(2):47-60. Disponível em: https://doi.org/10.20435/pssa.v9i2.498
24. Chamchaum LFI, Nascimento YCML, Santos RM, Costa LMC, Albuquerque MCS, Cassimiro
ARTS. The history of psychiatric nursing education at the universidade federal de Alagoas (1976-
1981). Rev Bras Enferm [Internet]. 2021 [acesso 2022 Jan 24];74(4):e20201020. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-1020
25. Gaertner J, Siemens W, Meerpohl JJ, Antes G, Meffert C, Xander C, et al. Effect of specialist
palliative care services on quality of life in adults with advanced incurable illness in hospital,
hospice, or community settings: systematic review and meta-analysis. BMJ [Internet]. 2017
[acesso 2022 Jan 24];357:j2925. Disponível em: https://doi.org/10.1136/bmj.j2925
26. Wainberg ML, Scorza P, Shultz JM, Helpman L, Mootz JJ, Johnson KA, et al. Challenges and
opportunities in global mental health: a research-to-practice perspective. Curr Psychiatry Rep
[Internet]. 2017 [acesso 2022 Jan 24];19(5):28. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s11920-
017-0780-z
27. Prata NISS, Groisman D, Martins DA, Rabello ET, Mota FS, Jorge MA, et al. Saúde mental e
atenção básica: território, violência e o desafio das abordagens psicossociais. Trab Educ Saude
[Internet]. 2017 [acesso 2022 Jan 24];15(1):33-53. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-
7746-sol00046
28. Kantorski LP, Guedes AC, Feijó AM, Hisse CN. Medicação pactuada como recurso terapêutico
no processo de trabalho de um CAPS: contribuições para a enfermagem. Texto Contexto Enferm
[Internet]. 2013 [acesso 2022 Mar 9];22(4):1022-9. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-
07072013000400019


29. Conselho Regional de Enfermagem, Rio Grande do Sul. Carta de Florianópolis da Enfermagem
em Saúde Mental. 3º Colóquio Brasileiro de Enfermagem em Saúde Mental. 2021 [acesso 2022
Jan 24]; Florianópolis. Disponível em: https://www.portalcoren-rs.gov.br/docs/carta-floripa-cben.pdf

Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 13/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt
NOTAS

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA
Concepção do estudo: Peres MAA; Martins GCS.
Coleta de dados: Peres MAA; Martins GCS, Manfrini GC.
Análise e interpretação dos dados: Martins GCS; Manfrini GC; Cardoso L.
Discussão dos resultados: Manfrini GC; Cardoso L; Fonseca PIMN.
Redação e/ou revisão crítica do conteúdo: Peres MAA; Fonseca PIMN.
Revisão e aprovação final da versão final: Shattell M; Peres MAA; Martins GCS.

CONFLITO DE INTERESSES
Não há conflito de interesses.

EDITORES
Editores Associados: Leticia de Lima Trindade, Ana Izabel Jatobá de Souza.
Editor-chefe: Roberta Costa.

HISTÓRICO
Recebido: 12 de março de 2022.
Aprovado: 09 de junho de 2022.

AUTOR CORRESPONDENTE
Gizele da Conceição Soares Martins
[email protected]


Texto & Contexto Enfermagem 2022, v. 31:e20220045 14/14


ISSN 1980-265X DOI https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0045pt

Você também pode gostar