Revista de Direito Civil: Ano VII (2023), 1

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 194

REVISTA

DE DIREITO CIVIL
Ano VII (2023), 1
REVISTA DE DIREITO CIVIL
Ano VII (2023), 1
Diretor: ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO

Comissão de redação
António Menezes Cordeiro
Miguel Teixeira de Sousa
Pedro Romano Martinez
Luís Menezes Leitão

Proprietário: Instituto de Direito Privado – Faculdade de Direito de Lisboa


NIPC 513 319 425
Sede e Redação: Faculdade de Direito de Lisboa – Alameda da Universidade – 1649­‑014 Lisboa
Editora: Edições Almedina, SA
Rua Fernandes Tomás n.os 76, 78, 80
Telef.: 239 851 904 – Fax: 239 851 901
3000­‑167 Coimbra – Portugal
[email protected]

Estatuto Editorial
http://www.cidp.pt/Archive/Docs/f977968173669.pdf

Consulta
https://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/revista-de-direito-civil/243/247/1/12

Publicação: quatro números anuais

Coordenação e revisão: Veloso da Cunha

Depósito legal: 289864/09


N.º de registo na ERC – 126651
ÍNDICE

Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

DOUTRINA

António Menezes Cordeiro


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

A. Barreto Menezes Cordeiro


Direitos de personalidade e dados pessoais: o que sobra para o Código Civil? . . . . . . . . 45

Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde


Culpa do lesado e mora do credor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

Joana Ribeiro de Faria


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento dos con-
tratos e a proposta de Diretiva de 28.09.2022 relativa à adaptação das regras de res-
ponsabilidade civil extracontratual à inteligência artificial . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

Marta Boura / Sofia David


Smart contracts e arbitragem: perspetivas atuais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

Daniela Rodrigues de Sousa


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco . . . . . . . . . . . . . . . . 117

RECENSÃO

António Barroso Rodrigues


Recensão ao estudo Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik, de Karl
Larenz (JuristenZeitung, 1962) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167
Tendências de desenvolvimento da atual dogmática do direito civil, tradução do estudo
de Karl Larenz, Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik . . . . . . 174

Critérios de publicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193


Editorial

A queda do Muro de Berlim, no dia 9 de novembro de 1989, a dissolução


da União Soviética, em 26 de dezembro de 1991 e o fim da Guerra Fria, com a
vitória do bloco Ocidental, pareceu o início de uma Idade do Ouro. Liberta da
ameaça nuclear, a Humanidade poderia dirigir, para a defesa do ambiente, para
o combate à fome e ao subdesenvolvimento e para o progresso das Ciências, os
enormes recursos afetos ao armamento.
Surpreendentemente, isso não sucedeu. Decorre a quarta década pós‑Muro.
O irracionalismo planetário mantém‑se e agrava‑se. A Guerra que, no terreno,
opõe a Rússia à Ucrânia mas que, no fundo, mal esconde um conflito mais
amplo entre um bloco asiático autoritário e um Ocidente democrático, man‑
tém todos os espíritos em alerta. A ameaça nuclear renasce e intensifica‑se.
Meros jogos internos de poder extravasam, irresponsavelmente, para o palco
dos abismos planetários. O futuro, mais do que nunca, é imprevisível.
No plano interno, a esperada crise económica e financeira, decorrente da
Guerra da Ucrânia, parece afastada. Todavia: a inflação mantém‑se e os juros
sobem, implicando uma readaptação do Direito privado. Problemas larvares,
como a crise da habitação, saltam para o palco do debate político‑partidário.
Anuncia‑se um “pacote” da habitação com uma severa recaída no vinculismo
que, ainda há pouco, era criticado quase em uníssono. Temas fraturantes, como
a eutanásia, ocupam a classe política: há que (re)meditar sobre a vida e o seu
valor. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, con‑
tra qualquer expectativa, sacrifica o direito à honra e ao bom nome a uma
exacerbada liberdade de expressão, que não está posta em causa nas democra‑
cias do Ocidente, enquanto desampara os direitos patrimoniais dos pequenos
investidores.
A História não progride: anda em círculos, de tal modo que os erros escon‑
jurados renascem. A dogmática civilística, tomada como Ciência do Direito
concretizada através de um método sistemático integrado – portanto: assente na
História, no Direito comparado e na linguagem – enfrenta novos e exigentes
desafios.
6 Revista de Direito Civil

Aceitamos. A Revista de Direito Civil, sem descurar a pesquisa básica, vai


acompanhar as evoluções e as involuções do nosso ordenamento, oferecendo,
à crítica, respostas para as dúvidas que inquietam os estudiosos e os práticos do
Direito.
Doutrina
Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento*
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO

Sumário: I – Natureza e estrutura da obrigação: 1. Um vínculo complexo; 2. A ideia de


“interesse”; 3. Deveres principais e secundários. II – Os deveres acessórios: 4. Ideia geral
e evolução; 5. A experiência portuguesa; 6. O regime; 7. Obrigações sem dever de prestar.
III – A execução devida: 8. Condutas ou resultado? 9. A diligência requerida; 10. O regime
vigente. IV – A dogmática do cumprimento: 11. As teorias; 12. Funcionalidade e diferen-
ciação; 13. A unidade obrigação‑cumprimento; um conceito quadro.

I – Natureza e estrutura da obrigação

1. Um vínculo complexo

I. As obrigações constituem uma das áreas doutrinariamente mais densas,


no panorama do Direito civil. Sucederam‑se as doutrinas sobre o seu conceito
e a sua estrutura1. Na Ciência Jurídica atual, chegou‑se a uma certa acalmia em
torno da ideia de obrigação como vínculo complexo2. Este aspeto não pode ser
obnubilado quando se suscite o tema clássico da natureza do cumprimento. Há
que revisitá‑lo.

*
Escrito destinado aos Estudos em Honra do Prof. Doutor António Pinto Monteiro.
1
Vide o nosso Tratado de Direito civil, VI – Direito das obrigações/Introdução; sistemas e Direito europeu;
dogmática geral, 3.ª ed., com a col. de A. Barreto Menezes Cordeiro (2019), 283 ss., com indicações.
2 Ou obrigação lato sensu, correspondendo a stricto sensu ao núcleo do dever de prestar; vide Gregor

Bachmann, no Münchener Kommentar zum BGB, 2 – Schuldrecht/Allgemeiner Teil I, 9.ª ed. (2022),
§ 241, Nr. 3‑4 (28).

RDC I (2023), 1, 9-43


10 António Menezes Cordeiro

II. Como ponto de partida, assentamos em que, na obrigação, ocorre um


vínculo pessoal entre o devedor e o credor, vínculo esse que determina, por
banda do primeiro, o dever jurídico de realizar uma prestação. Com isso, foram
superadas construções como a da pura submissão do devedor, como a das sujei‑
ções de patrimónios ou como a do débito e respondência ou Schuld und Haf-
tung: há um simples dever‑ser o qual, na sua essência, não implica respondências
patrimoniais. Estas, em certos casos, podem ocorrer num segundo e eventual
momento. A ideia do vínculo pessoal é boa mas surge insuficiente. O estudo
empírico das obrigações mostra que, em regra, o devedor não fica adstrito a
efetivar uma prestação simples. Na realidade, ele fica imerso numa situação
complexa, que inclui várias atuações, direitos potestativos, sujeições, encargos
e direitos hipotéticos de todo o tipo. Assim, estudando o conteúdo da obri‑
gação, Heinrich Siber (1870‑1951) vem a descobrir, nele, diversos elementos3
acabando por, recuperando uma locução já usada por Savigny4, referir o vín‑
culo obrigacional como um organismo5. A ideia foi bem acolhida, surgindo
com frequência na literatura subsequente, em autores hoje clássicos como von
Tuhr6, Enneccerus/Lehmann7, Erick Wolf8 e Soergel/Teichmann9. Trata‑se
de uma manifesta locução descritiva e figurativa10 que, todavia, não tem a ver
com os organicismos do século XIX. A obrigação é traduzida por “organismo”
como modo de exprimir a sua complexidade interna. Não está em jogo um
mero dualismo, tipo débito e respondência: antes numerosos outros elementos.

II. Na dogmática da natureza e da estrutura da obrigação, não estava apenas


em causa a complexidade interna. Antes se verificava que, nos seus elemen‑
tos, alguns se iam modificando no decurso do seu trajeto: novos deveres e
novos encargos acudiam como modo de enquadrar problemas surgidos, antes

3 Heinrich Siber, Der Rechtszwang im Schuldverhältnis (1903), 92 ss. e 253 ss..


4
Panajiotis Zepos, Zu einer “gestalttheoretischen” Anffassung des Schuldverhältnisses, AcP 155 (1956),
486‑494 (486).
5 Heinrich Siber, recensão a Fritz Litten, Die Wahlschuld im deutschen bürgerlichen Rechte, KrVSchr 46

(1905), 526‑555 (528); Planck/Siber, BGB, 4.ª ed. (1914), 4.


6 Andreas von Tuhr, Der Allgemeine Teil des Deutschen Bürgerlichen Rechts/I – Allgemeine Lehren und

Personenrecht (1910, reimp., 1957), 93 ss. e 125 ss.


7 Ludwig Enneccerus/Heinrich Lehmann, Recht der Schuldverhältnisse/Ein Lehrbuch I, 15.ª ed.

(1958), § 1, III (5), citando Planck/Siber.


8 Erick Wolf, Rücktritt, Vertretenmüssen und Verschulden, AcP 153 (1954), 97‑144 (114).

9 Arndt/Teichmann, no Soergel BGB, 12.ª ed. (1990), prenot. § 241, Nr. 3 (2).

10 Rudolf Bruns, Das Schuldverhältnis als Organismus/Wegweisung und Missdeutung, FS Zepos 1973,

69‑82 (69 ss.).

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   11

da extinção pelo cumprimento11. Felix Herholz explicitou essa ideia, nos finais
dos anos 20 do século passado, apresentando a relação obrigacional como uma
relação‑quadro constante, mau grado a mutabilidade do seu conteúdo12. Outras
afirmações sugestivas podem ser apontadas na literatura especializada13, sobres‑
saindo a visão dinâmica de Paul Oertmann14, a presença de uma realidade feno‑
menológica de Zepos15, a relação ampla como relação‑quadro, de Beuthien16, a
ideia de unidade complexa de Gernhuber17, ou a presença de uma estrutura, em
Larenz18. A relação obrigacional implicaria uma suma (Inbegriff) de elementos
diversificados.

III. As ideias da obrigação como organismo, como relação‑quadro ou como


estrutura transmitem uma forte sugestão de complexidade interior. Teríamos
de trabalhar com diversos elementos que, não obstante, estariam unificados.
Qual seria o elemento unificador? Uma explicação sedutora encontraria, no
elemento teleológico, um fator de unificação. A relação obrigacional não vale
por si: ela constituiu‑se e, em princípio, irá vigorar, com eventuais adaptações,

11 Pense‑se na hipótese de ter sido estipulada uma cláusula penal, estruturalmente acessória; vide
António Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização (1990, 2.ª reimp., 2014), 798 pp., 86‑87.
12 Felix Herholz, Das Schuldverhältnis als konstante Rahmenbeziehung (Ein Rechtsgrund für negative

Interessenansprüche trotz Rücktritt und Wandlung), AcP 130 (1929), 257‑324 (260 e passim). Quanto a
Herholz e ao seu escrito (uma dissertação defendida em Königberg), Rudolf Bruns, Das Schuld-
verhältnis als Organismus cit., 78. A ideia da constância da obrigação, mau grado a mutabilidade do seu
conteúdo é, ainda, enfatizada por Karl Larenz, Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik,
JZ 1962, 105‑110 (108/I e II).
13 Vide Franz Dorn, Historische‑kritischer Kommentar zum BGB, II – Schuldrecht: Allgemeiner Teil / 1.

Teilband §§ 241‑304 (2007),§ 241, Nr. 71 (205‑207); Ernst Kramer, Münchener Kommentar zum
BGB, 2, 5.ª ed. (2003), intr., Nr. 13 (9) e Dirk Olzen, no Staudingers Kommentar zum BGB (2009),
§ 241, Nr. 39 (142).
14 Paul Oertmann, Bürgerliches Gesetzbuch/II – Das Recht der Schuldverhältnisse, 3.ª e 4.ª ed. (1910),

prenot. § 241, Nr. 3c, (2), referindo a relação obrigacional como uma “força viva”.
15 Panajiotis Zepos, Zu einer “gestalttheoretischen” Auffassung des Schuldverhältnisses cit., 488, 494 e

passim.
16
Volker Beuthien, Zweckerreichung und Zweckstörung im Schuldverhältnis (1969), XXIV + 331 pp., 7.
17 Joachim Gernhuber, Das Schuldverhältnis/Begründung und Änderung, Pflichten und Strukturen, Dritt-

wirkungen (1989), § 2 (6).


18 Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts I – Allgemeiner Teil, 14.ª ed. (1987), 27, reportando‑se ao

conceito desenvolvido por Nicolai Hartmann, Der Aufbau der realen Welt, de que cita a edição de
1940. Vide Nicolai Hartmann, Der Aufbau der realen Welt, 3.ª ed. (1964), 241 e passim. Hartmann
explica que a estrutura interna (das innere Gefüge) não se separa das realidades, antes se determinando
mutuamente. Esse Autor utiliza a ideia de estruturas dinâmicas para explicar os corpos, as realidades
e as coisas – Nicolai Hartmann, Philosophie der Natur/Abriss der Speziellen Kategorienlehre, 2.ª ed.
(1980), 447, 449 e passim – numa ideia fecunda, quando transposta para as obrigações.

RDC I (2023), 1, 9-43


12 António Menezes Cordeiro

até se extinguir pelo cumprimento. E esse cumprimento equivaleria, material‑


mente, à satisfação do interesse do credor. O fator teleológico equivaleria ao
dever‑ser dirigido a essa satisfação, enquanto a soma dos elementos integradores
do vínculo se ordenariam em função dele19.

IV. O interesse a ter em conta seria simplesmente o adjudicado pela rela‑


ção obrigacional em causa20. E como estaria em jogo uma sequência que se
prolonga no tempo, oportuno seria fazer apelo à ideia de processo21: conjunto
de atos que se sucedem no tempo, ordenados em função do efeito final. Na
mesma linha, Jürgen Schmidt fala num “plano” ou num “programa”22. A obri‑
gação compreende, no seu conteúdo, vários elementos. Torna‑se apodítico
afirmar que tais elementos não andam soltos, antes se articulando em termos
juridicamente úteis. Mas poderemos construir uma estrutura teleologicamente
orientada em função do seu fim, o qual seria a satisfação do interesse do credor?

V. A determinação do escopo de uma obrigação tem um especial relevo


dogmático: permitiria ajuizar da sua extinção pela obtenção do escopo ou
da aplicação de alteração das circunstâncias, pela perturbação desse mesmo
escopo23. Equiparar o escopo ao “interesse do credor” obriga a definir interesse.
Matéria complexa, mas particularmente relevante, uma vez que a lei apela, para
ele, em pontos sensíveis. Por exemplo:

– segundo o artigo 398.º/224, a prestação não necessita de ter valor pecu‑


niário; mas deve corresponder a um interesse do credor, digno de proteção
legal;
– pelo artigo 443.º/1, pode uma das partes assumir perante outra, que
tenha na promessa um interesse digno de proteção legal, a obrigação de efe‑
tuar uma prestação a favor de terceiro.

A presença recorrente de “interesse” no Direito civil e, em especial, nas


obrigações, leva‑nos a, na rubrica seguinte, averiguar a extensão e o alcance da

19 Vide Zepos, Zu einer “gestalttheoretischen” Anffassung des Schuldverhältnisses cit., 488‑489.


20 Karl Larenz, Schuldrecht cit., 1, 14.ª ed., 28.
21 Idem, loc.cit..

22 Jürgen Schmidt, no Staudingers Kommentar zum BGB, 13.ª ed. (1995), § 242, Nr. 902 (566). Nas

edições subsequentes, o tema deslocou‑se para o § 241 do BGB, mercê da reforma de 2001/2002; vide
Dirk Olsen, no Staudingers Kommentar, §§ 241‑243, Treu und Glauben (2019), § 241, Nr. 39 (151‑152).
23 Vide a habilitação (clássica) e já citada de Volker Beuthien, Zweckerreichung und Zweckstörung im

Schuldverhältnis (1969), 1 e passim.


24 Pertencem ao Código Civil de 1966 os artigos citados sem indicação da fonte.

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   13

locução. Adiantamos, todavia, que o “interesse” visado por uma obrigação só


pode ser a realidade que, pelo seu próprio teor, ela vise proporcionar ao autor25.
Caso a caso terá de ser determinado. Nas obrigações negociais, o interesse em
jogo depende da autonomia privada; nas legais, haverá que interpretar a fonte.

VI. Temos, ainda, um segundo problema: a obrigação pode visar um deter‑


minado resultado ou, antes, ficar‑se pela exigência de uma conduta26. Pare‑
ce‑nos plausível que ambas as hipóteses sejam possíveis: e isso nos deixará na
situação de poder haver obrigações sem fim ou obrigações cujo fim se confunda
com elas próprias. A ideia de obrigação como um processo teleologicamente
ordenado fica enfraquecida. Teremos de antecipar um mínimo de elementos
dogmáticos para seguir esta pista, até ao termo.

2. A ideia de “interesse”

I. O interesse traduz uma relação ou ligação entre dois pólos. Etimologica‑


mente, advém de id quod inter esse: o que fica entre27.

Por exemplo, diz Ulpiano28


Si res vendita non tradatur, in quod interest agitur, hoc est quod rem habere
interest emptoris: hoc autem interdum pretium egreditur, si pluribus interest,
quam res valet vel empta est [Se a coisa vendida não for traditada, ir‑se‑á agir
nesse interesse, isto é, no interesse do comprador de ter essa coisa; esse interesse,
contudo, é ultrapassado caso o valor ou o preço da coisa seja superior àquilo por
que foi comprado.]

No período intermédio, incluindo o do humanismo jurídico, o interesse


manteve uma presença discreta nos textos jurídicos. Donellus dá‑lhe um certo
ênfase: o que interessa (quod interest) releva, para efeitos processuais e de fundo.
Id quod interest in facto, non in jure consistere: hoc utrumque quid sit 29.

25 E que, não o sendo, obriga a indemnizar.


26 Franz Wieacker, Leistungshandlung und Leistungserfolg im Bürgerlichen Schuldrecht, FS Nipperdey
I (1965), 783‑813 (783, 785 e passim); Maria de Lurdes Pereira, Conceito de prestação e destino da
contraprestação (2001), 11 ss..
27 Brigitte Keuk, Vermögenschaden und Interesse (1972), 276 pp., 52.

28 Ulpiano, D. 19.1.1.pr = Okko Behrends e outros, Corpus iuris civilis, ed. bil. latim/alemão, III

(1999), 515.
29 Hugo Donellus, Opera omnia, Commentatorium de iure civile, IX (ed. 1832; o original é dos finais

do século XVI), 811‑814 (814).

RDC I (2023), 1, 9-43


14 António Menezes Cordeiro

Ao longo dos séculos, a locução “interesse” teve um uso cómodo, em


Direito, próximo do seu sentido comum; o de uma relação de necessidade ou
de apetência, entre uma pessoa com necessidades ou com desejos, perante uma
realidade (um quid) capaz de os satisfazer.

II. Em meados do século XIX, a expressão “interesse” conheceu um


grande incremento. Apontamos duas tradições, que para tal contribuíram:
o utilitarismo de Bentham (1748‑1832) e o positivismo jurídico de Jhering
(1818‑1892). Bentham procurou reagir contra o jusnaturalismo anterior que,
assente em postulados abstratos de tipo racional, pretendia deduzir todo o edifí‑
cio jurídico‑social a uns quantos princípios básicos, assentes no contrato social.
Bentham contrapõe que não se documenta tal contrato; o homem procura a
sua felicidade, através da maximização das utilidades que originam os interesses
de cada um; na base da experiência, é possível determinar a melhor via para a
salvaguarda de tais interesses30.
Jhering, por seu turno, afirmou‑se contra a por ele próprio denominada
jurisprudência dos conceitos e que consistia em apresentar as soluções jurídicas
como o resultado de uma subsunção em estruturas formais deduzidas de con‑
ceitos mais elevados. A isso contrapôs o autor a necessidade de verificar os inte‑
resses subjacentes às diversas situações, procedendo à sua ponderação em face
das disposições legais31. Essa busca de interesses reais levou Jhering a reformular
o conceito de direito subjetivo (interesse legalmente protegido)32 e de pessoa
coletiva (modo de posicionar os interesses indeterminados ou gerais, como
forma de os tornar operacionais, perante o direito judicial de ação)33, em termos
que teriam uma influência duradoura34. Jhering, ultrapassando o racionalismo
tardio de Bentham35, trabalhava dogmaticamente o Direito, isto é: estudava‑o

30 Jeremy Bentham, An introduction to the Principles of Morals and Legislation (1789; utiliza‑se a ed. de
1823, reed. em 1908), 411 pp., onde o termo interest surge, de modo repetido: a propósito das pessoas
e a propósito da sociedade. Bentham não abordava o Direito enquanto tal, tendo dirigido múltiplas
críticas ao grande comentador, Sir William Blackstone (1723‑1780).
31 Em especial: Rudolf von Jhering, Der Zweck im Recht 1 (1877), XVI + 557 pp. e 2 (1883),

XXX + 716 pp.; com indicações, o nosso Tratado de Direito civil, I, 4.ª ed. (2019, reimp.), 437 ss..
32 Rudolf von Jhering, Geist des römischen Rechts auf den verschiedenen Stufen seiner Entwicklung III/1,

6.ª e 7.ª eds. (1924), 332 (a 1.ª ed. é de 1861).


33 Rudolf von Jhering, Geist des römischen Rechts cit., 338 ss. (340 e 341).

34 Tratado cit., I, 4.ª ed., 876 ss. e IV, 5.ª ed., 634 ss., respetivamente.

35 Ou iluminismo tardio, nas palavras de Franz Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, 2.ª ed.

(1967, reimp., 1996), 449. De todo o modo, Helmut Coing, Bentham’s importance in the development
of “Interessen jurisprudenz” and general jurisprudence, em The irish jurist 1 (1966), 336‑351 (336 ss.),
sonda a hipótese de uma influência de Bentham em Jhering, designadamente através da tradução
alemã de Friedrich Eduard Beneke (1798‑1854), Grundsätze der Civil‑ und Criminal‑Gesetzgebung,

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   15

com a preocupação efetiva de solucionar, cientificamente, casos concretos. Fez


escola, lançando, no domínio em causa, a jurisprudência dos interesses. Coube
a Philipp Heck (1858‑1943) aprofundar e divulgar essa orientação36.

III. Na sequência da evolução registada quanto a “interesse”, de Bentham


a Heck, fica‑nos uma ideia apreciativa e omnipresente. Os custos para a sua
precisão e, daí, para a sua dogmaticidade, são evidentes. Cabe fixar um quadro
terminológico. Podemos distinguir três usos básicos para interesse:

(1) o interesse como uma representação de ordem geral, que visa expri‑
mir entidades de natureza económica, sem as identificar e pressupondo
uma atuação não‑aparente (subterrânea); por exemplo: os grandes inte‑
resses dominam o Mundo;
(2) o interesse como bordão de linguagem, que permite ao discurso jurí‑
dico arrimar‑se em algo de objetivo (isto é, alheio ao sujeito), mas sem
o designar; por exemplo: os interesses (e não os conceitos) são causais
das soluções, numa locução cara à jurisprudência dos interesses;
(3) o interesse em sentido preciso.

O uso meramente retórico de “interesse”, para além de prejudicar a dog‑


mática dessa locução, esconde metadiscursos vazios ou exonerantes. Dizer,
concentradamente, que os interesses das empresas controlam governos pode
surgir como algo de profundo. Mas nada exprime, a não ser desconsideração
pelos sistemas políticos.
O recurso a interesse como bordão de linguagem, incluindo em textos
legais, origina dúvidas e debates. Recordamos, como paradigma, o artigo
64.º/1, do Código das Sociedades Comerciais37.

IV. Em sentido preciso, temos três aceções de interesse38:

aus den Handschriften des englischen Rechtsgelehrten Jeremias Bentham, herausgegeben von Etienne Dumont/
Nach der zweiten, verbesserten und vermehrten Auflage für Deutschland bearbeitet und mit Anmerkungen 1
(1830), XXXII + 443 pp., no seu título completo; como se vê, trata‑se de uma edição criativa, diri‑
gida ao público alemão; compreende‑se, aí, na I secção, a rubrica Von den Principen der Moral und der
Gesetzgebung (27 ss.), com as ideias gerais da utilidade (27 ss.), sobre o escopo do Direito civil (239
ss.): corresponde a An introduction to the Principles of Morals and Legislation.
36 As obras básicas de Heck, a sua evolução e a literatura circundante podem ser confrontadas no

Tratado cit., I, 4.ª ed., 437 ss..


37 Vide os nossos Código das Sociedades Comerciais Anotado, 5.ª ed. (2022), 64.º (323‑324) e Direito das

sociedades, I – Parte geral, col. A. Barreto Menezes Cordeiro, 5.ª ed. (2022), 776 ss..
38 Quanto aos dois primeiros, Fernando Pessoa Jorge, Direito das obrigações, 1 (1972), 92 ss..

RDC I (2023), 1, 9-43


16 António Menezes Cordeiro

(1) interesse subjetivo: a relação de apetência que se estabelece entre uma


pessoa, que tem desejos e o objeto capaz de os satisfazer;
(2) interesse objetivo: a relação de adequação que surge entre uma pes‑
soa, que tem necessidades (reais e constatáveis) e a realidade apta a
resolvê‑las;
(3) interesse técnico: a realidade apta a satisfazer desejos ou necessidades
e que, sendo protegida pelo Direito, dá lugar, quando desrespeitada, a
um dano.

Este último sentido afigura‑se‑nos o mais adequado39. Mas podemos enca‑


rar os demais desde que, pelo contexto em que ocorram, não surjam confusões.

V. No Código Civil, “interesse” ou “interesses” surgem em 83 artigos.


Além disso, 75 preceitos mencionam “interessado” e “interessados”40. Algumas
das referências a “interesse”, no Direito civil, originam teorizações comple‑
xas: pense‑se no interesse do dominus, na gestão de negócios41 ou nas normas
destinadas a proteger interesses alheios, na responsabilidade civil42. Em termos
gerais, podemos dizer que o legislador recorre a “interesse” sempre que pre‑
tenda exprimir uma posição ativa, apreciativa ou vantajosa para o sujeito consi‑
derado e que suscite o reconhecimento ou a proteção do Direito. O legislador
teria muitas dificuldades em fazê‑lo analiticamente: temos direitos subjetivos,
proteções reflexas, expectativas, realidades juridicamente reconhecidas, vanta‑
gens patrimoniais indefinidas e valores pessoais também indeterminados.
As referências civis a “interesse” permitem concluir que, de um modo
geral, elas correspondem a áreas dominadas por valores complexos, inexprimí‑
veis em termos linguísticos claros. Ao referir “interesses”, o legislador optou
por remeter para o intérprete‑aplicador, no momento da realização do Direito,
a tarefa da sua determinação.

VI. A menção civil a “interesse” passa‑nos, ainda, uma mensagem diri‑


gida ao que o engenho humano faça ou possa fazer para defesa e incremento
da sua posição. Digamos que o plano significativo‑ideológico do interesse é
constituído pelas projeções do sujeito “interessado” no Mundo que o rodeie,
projeções essas que o Direito civil considera e tutela. Em cada norma haverá

39 Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo 1 (2008), 528‑529 e passim.
40
Vide uma enumeração no nosso Tratado cit., VI, 3.ª ed., 330‑335
41 O nosso Tratado de Direito civil, VIII – Direito das obrigações/Gestão de negócios, enriquecimento sem

causa, responsabilidade civil (2019, reimp.), 94 ss..


42 Idem, 448 ss..

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   17

que, tecnicamente, determinar o alcance do interesse. Ao usar essa locução, a


lei delega a concretização do seu alcance no intérprete‑aplicador. Mas dá bali‑
zas. O conhecimento do “interesse”, no seu conjunto, surge como um preciso
auxiliar de realização do Direito.
Mas assim sendo, queda concluir: a presença de um “interesse do credor”,
em cada obrigação, constitui (mais) um elemento de enriquecimento do seu
conteúdo, com remissão do intérprete‑aplicador para os valores do sistema.

3. Deveres principais e secundários

I. A explicitação do conceito e da estrutura da obrigação com recurso a


proposições tais como “organismo”, “conceito‑quadro”, “estrutura”, “pro‑
cesso teleológico” ou outras, não deve ser sobrestimada43: temos meras imagens
descritivas de uma realidade que, antes de mais, é jurídica44. Atenção: aponta‑se
a limitação das proposições (Ansätze) explicativas em causa e não a da própria
evidência da relação obrigacional em sentido amplo, como realidade complexa.
A ideia de que a obrigação é uma realidade complexa não oferece, hoje, dúvi‑
das45. Em compensação, não parece assente se esse fenómeno deve, ou não,
repercutir‑se na própria estrutura da obrigação e, daí, no seu conceito.

II. A doutrina clássica constitui o ponto de partida: a obrigação adstringe


o devedor a uma prestação e isso com um sentido de dever‑ser e não de uma
sujeição. Todavia e como adiantado, uma observação elementar logo mostra
que não há “obrigações simples”: para executar corretamente aquilo a que se
adstringiu, o devedor deve sempre proceder a atuações diferenciadas. A obri‑
gação pode dar lugar a várias prestações, em função de fatores intrínsecos e
linguisticos.

43
Ernst A. Kramer, Münchener Kommentar zum BGB, 2, 5.ª ed. (2007), intr. Nr. 14 (9); nas edições
subsequentes, essa rubrica ficou a cargo de Wolfgang Ernst, com um texto diverso; na cit. 9.ª ed.,
vide Einl. SchuldR, Nr. 10 (5-6); Joachim Gernhuber, Das Schuldverhältnis/Begründung und Anderung/
/Pflichten und Strukturen/Drittwirkungen (1989), 9.
44 Já Karl Larenz, Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik, JZ 1962, 105‑110 (108/I);

vide Dirk Olzen, no Staudingers Kommentar (2005) cit., § 241, Nr. 44 (134), numa afirmação mati‑
zada (mas mantida) na ed. de 2009 cit., § 241, Nr. 45 (143): a presença do novo § 241/II deu um
apoio especial às imagens clássicas.
45 Com exemplos, Pessoa Jorge, Direito das obrigações cit., 1, 134 ss. e Antunes Varela, Das obriga-

ções em geral, 1, 10.ª ed. (2000), 121 ss., confundindo embora, este último, “deveres principais” com
“típicos” e mau grado evitar referir a matéria a propósito da estrutura da obrigação.

RDC I (2023), 1, 9-43


18 António Menezes Cordeiro

Quanto a fatores intrínsecos, verifica‑se que certas obrigações (porventura:


a totalidade, havendo, depois, uma questão de grau), pela natureza das coisas,
envolvem diversas atuações. Uma empreitada, aparentemente simples, mesmo
pelo lado do empreiteiro (obrigação de entrega de obra), exige as mais múlti‑
plas condutas, juridicamente diferenciáveis.
Os fatores dispositivos prendem‑se com a fonte da obrigação e, em pri‑
meira linha, com o contrato que a tenha originado. O que pretenderam as
partes? Previram diversas prestações, ainda que sob o manto de uma única
obrigação? A interpretação permitirá verificá‑lo.
Por fim, temos fatores linguísticos: uma obrigação será complexa quando,
no idioma considerado, exija uma perífrase para ser correta e completamente
comunicada. Havendo uma locução simples, a própria obrigação perde, prima
facie, a complexidade.

III. A ideia de obrigação como vínculo relativo a uma prestação deve ser
complementada: por razões intrínsecas, dispositivas ou linguísticas, a obrigação
reporta‑se a várias prestações. Mas porque não falar em várias obrigações?
Na verdade, a obrigação é um (pequeno) sistema que unifica, em torno de
um ponto de vista unitário, as diversas prestações que o sirvam. E isso não é
indiferente: torna‑se mesmo essencial, seja para permitir a comunicação, escla‑
recendo, com uma palavra, qual o sentido do conjunto, seja para fixar um
regime jurídico coerente.
Teremos, assim, uma prestação principal: aquela que, por razões intrínsecas,
dispositivas ou linguísticas funciona como ponto de vista unitário, em torno do
qual se irão ordenar as demais atuações. Estas serão as prestações secundárias.

II – Os deveres acessórios

4. Ideia geral e evolução

I. Quer a prestação principal, quer as prestações secundárias integram a ideia


de dever de prestar, em sentido próprio. Todas elas derivam da fonte (paradig‑
maticamente: um contrato) e, em princípio, são predeterminadas ou predeter‑
mináveis. As partes conhecem‑nas ou podem conhecê‑las e contaram com elas
aquando da contratação ou, pelo menos, aquando da conjugação de factos que
levaram à sua constituição. Todavia, as obrigações são realidades jurídicas. Elas
existem e funcionam porque a Ordem Jurídica as reconhece e lhes empresta
a sua força. Quer antropológica, quer dogmaticamente, considera‑se apurado
que as partes não têm, por si, capacidades juridificadoras: o Direito, realidade

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   19

exterior, é que dispõe do poder de, reconhecendo certas realidades humanas,


as elevar ao nível do jurídico46. A juridificação das obrigações não é inóqua,
para o seu conteúdo. O Direito não aceita quaisquer obrigações: apenas as que
reúnam certos requisitos, tais como a licitude, a possibilidade, a determinabi‑
lidade e a conformidade com os bons costumes e a ordem pública (280.º/1,
entre outros). E em relação às obrigações que aceite: o Direito acrescenta‑lhes
determinados elementos que permitam, em cada dever de prestar, o respeito e
a concretização pelos valores fundamentais do sistema. Recordamos que, por
razões histórico‑científicas, tais valores são expressos pela locução “boa‑fé”.
Perante o Código Civil, a boa‑fé deve ser respeitada nas negociações prelimi‑
nares (227.º/1), na execução dos contratos (762.º/2) e, em geral, no exercício
de quaisquer posições jurídicas (334.º)47.

II. As considerações anteriores sublinham que, quando envolvidas numa


relação obrigacional, as partes, para além dos direitos e deveres inerentes à pres‑
tação principal e às prestações secundárias, resultantes do vínculo, ficam ainda
adstritas a uma série de deveres que visam: (1) acautelar materialmente o vínculo
obrigacional; (2) proteger os intervenientes, nas suas pessoas e no seu patrimó‑
nio; (3) acautelar terceiros que, com a obrigação, tenham um especial contacto.
Tais deveres têm base legal e um regime próprio, claramente diferenciado
do dos deveres de prestar: principal e secundários. São os deveres acessórios48,
de acordo com a terminologia que temos vindo a usar49.

46 O nosso Tratado I, 4.ª ed., 951 ss..


47 Idem, II, 5.ª ed., 207 ss., e V, 3.ª ed., 271 ss..
48 Em especial: Kai Kuhlmann, Leistungspflichten und Schutzpflichten/ein kritischer Vergleich des Leis-

tungsstörungsrechts des BGB mit den Vorschlägen der Schuldrechtskommission (2001), 424 pp.; Wolfgang
Schur, Leistung und Sorgfalt/zugleich ein Beitrag zur Lehre von der Pflicht im Bürgerlichen Recht (2001),
XX + 390 pp. (123 ss. e passim); Hans Christoph Grigoleit, Leistungspflichten und Schutzpflichten,
FS Canaris 1 (2007), 275‑306; Dieter Medicus, Zur Anwendbarkeit des allgemeinen Schuldrechts auf
Schutzpflichten, FS Canaris 1 (2007), 835‑855 (837 ss.); Dirk Olzen, no Staudingers Kommentar II,
§§ 241-243 (2009), § 241, Nr. 142 ss. (176 ss.); Peter Huber, Der Inhalt des Schuldverhältnisses, no
Staudinger/Eckpfeiler des Zivilrechts (2012/2013), 211-244, Nr. 2‑6 (212‑213) e passim; Ivo Bach, Der
Inhalt des Schuldverhältnisses, no Staudinger/Eckpfeiler des Zivilrechts, 7.ª ed. (2020), 307-350, F 1-F 7
(308-310); Krebs, no NomosKommentar, 2/1, 3.ª ed. (2016), § 241, Nr. 44 ss. (18 ss.); Hans Peter
Mansel, no Jauernig/ BGB, 17.ª ed. (2018), § 241, Nr. 9 ss. (208 ss.); Reiner Schulze, HandKommen-
tar, 10.ª ed. (2019), § 241, Nr. 4 ss. (279 ss.); Malte Kramme, no PWW/BGB, 15.ª ed. (2020), Nr.
17 ss. (346 ss.); Christian Grüneberg, no Grüneberg (ex‑Palandt), 82.ª ed. (2023), § 241 (266‑267).
49 A doutrina alemã, onde toda esta matéria foi desenvolvida, fala em Nebenpflichten (deveres late‑

rais), a não confundir com os Nebenleistungspflichten (deveres de prestar laterais: os “nossos” deveres
secundários). Aparecem, também, Schutzpflichten (deveres de proteção), Rücksichtspflichten (deveres
de consideração) e Sorgfaltflichten (deveres de cuidado).

RDC I (2023), 1, 9-43


20 António Menezes Cordeiro

III. Aparentemente simples, esta matéria exige um grande afinamento con‑


ceitual e uma elevada capacidade de abstração. Embora com significativos ante‑
cedentes, podemos dizer que ela só estabilizou na segunda metade do século
XX, tendo atingido a sua maturidade nos finais desse século. Em termos de
Direito civil, ela é muito jovem, traduzindo um campo de expansão e de inves‑
tigação que só nos últimos anos tem vindo a ser explorado. A generalidade dos
avanços jurídico‑científicos tem ocorrido, precisamente, nesta área50.
Na pandectística do século XIX, a ocorrência de danos laterais em contra‑
tos era vista como um subcaso de atos ilícitos: obrigaria a indemnizar enquanto
fonte de danos ilícitos. O fundamento de tal responsabilidade era aproximado
ora da regra geral de respeito, ora do próprio contrato em jogo51: em qualquer
dos casos, estaria já em curso a rematerialização das obrigações52. Uma teoria
geral de deveres específicos laterais ficou a dever‑se ao pandectista Friedrich
Ludwig Keller (1799‑1860), discípulo de Savigny, tendo sido apresentada em
186153. Segundo este Autor, com base numa obrigação, e para evitar a culpa,
o obrigado fica adstrito não apenas a atuações negativas, mas também a vincu‑
lações de tipo positivo54. Estão em causa deveres de cautela (Sorgfaltspflichten)
perante o parceiro na contratação, que se distinguem dos demais porquanto
traduzem55:

(...) um certo cuidado e uma consideração conscienciosa pelo interesse do outro,


vertido na relação obrigacional em causa.

Daqui não resultariam pretensões de cumprimento mas, apenas, direitos


indemnizatórios56. A jurisprudência sancionou casos de violação dos deveres de
cautela e de proteção visualizados por Keller, embora procedendo a uma sua
derivação da obrigação “principal”57.

50 Trata‑se, nas palavras de Peter Krebs, Sonderverbindung und ausserdeliktische Schutzpflichten (2000), 9,
de um dos principais novos conhecimentos de Direito das obrigações; na mesma linha, também a con‑
ferência de 20‑mai.‑1987, em Berlim, de Dieter Medicus, Probleme um das Schuldverhältnis (1987), 16.
51
Susanne Würthwein, Zur Schadensersatzpflicht cit., 180 ss. e 194 ss., com indicações.
52 Wolfgang Wiegang, Die Verhaltenspflichten cit., 563.

53 Friedrich Ludwig Keller, Pandekten/Vorlesungen, aus dem Nachlasse des Verfassers, 2.ª ed. (1866),

publ. por William Lewis, 1, § 249 (542‑545). A 1.ª ed., também póstuma, é de 1861.
54 Keller, Pandekten cit., 2.ª ed., 543.

55 Keller, Pandekten cit., 2.ª ed., 545; vide Susanne Würthwein, Zur Schadensersatzpflicht cit., 199‑200.

56 Susanne Würthwein, Zur Schadensersatzpflicht cit., 200‑201.

57 RG 2‑dez.‑1871, RGZ 4 (1881), 192‑194 (193): um acidente com um “elétrico” e RG

12‑jul.‑1894, RGZ 34 (1895), 1‑3 (2): acidente numa oficina. Podem ser confrontadas outras indi‑
cações em Susanne Würthwein, Zur Schadensersatzpflicht cit., 214 ss..

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   21

IV. Como iniciador da doutrina moderna dos deveres acessórios é, hoje,


reconhecido Hugo Kress58. Este Autor, numa exposição geral de obrigações
datada de 192959, vem explicar que a ilicitude de atuações danosas não provém
apenas da violação de bens juridicamente tutelados, enquanto tais, mas também
da violação de deveres de conduta e de proteção. Tais deveres cominam ao
vinculado o não atingir os direitos, os bens jurídicos e os interesses patrimoniais
do parceiro60. A indemnização surgia com a violação e os danos, apenas nessa
altura se manifestando a existência de deveres de proteção. Kress responde com
uma hábil teoria: a da pretensão não‑desenvolvida61: apenas se manifestaria com
a violação. No tocante à origem da relação resultante dos deveres de proteção,
Kress apela para a vontade das partes ou para a interpretação complementadora
(a integração), derivada da boa‑fé (§§ 157 e 242, do BGB)62. Tais deveres mani‑
festar‑se‑iam in contrahendo e, na constância do negócio, no instituto da violação
positiva do contrato63. Com isto, podemos considerar que Kress antecipou, em
quase meio‑século, os desenvolvimentos de Canaris.

V. O passo seguinte foi dado por Heinrich Stoll, em 1932. Confrontado


com a doutrina de Hermann Staub sobre a violação positiva do contrato, Stoll
censura‑lhe a falta de unidade intrínseca64. Tentando uma rearrumação da maté‑
ria, este Autor vem explicar que, por exigência da boa‑fé, as partes não devem,
apenas, procurar a realização exata do escopo da prestação: antes ocorre uma
relação especial entre elas, representada pela ordem jurídica como uma relação
de confiança. Esta relação teria um conteúdo negativo, visando não o interesse

58
Muitas vezes era apontado, em seu lugar, Heinrich Stoll: nesse sentido, Larenz, Schuldrecht cit., I/1,
14.ª ed., 10‑11 e Kramer, no Münchener Kommentar cit., 2, 5.ª ed., Intr., Nr. 80 (37). Claus‑Wilhelm
Canaris, no seu decisivo Ansprüche wegen “positiver Vertragsverletzung” und “Schutzwirkung für Dritte”
bei nichtigen Verträge/Zugleich ein Beitrag zur Vereinheitlichung der Regeln über die Schutzpflichtverletzung,
JZ 1965, 475‑482 (476/I), limita‑se, na nota 7, a indicar Kress como precursor. Repondo a justiça
histórica: Dorn, no HKK/BGB cit. II/1 , § 241, Nr. 98 (235), bem como as indicações aí dadas em
pé‑de‑página. Quanto a esta questão: a anterioridade de Kress era conhecida nos meios da especiali‑
dade, sendo referida pelo próprio Stoll; vide o nosso Da boa fé no Direito civil (1984, 7.ª reimp., 2019),
598, nota 255 (esse texto data de 1983).
59 Hugo Kress, Lehrbuch des Allgemeinen Schuldrechts (1929), 654 pp..

60 Idem, 3 (Nebenansprüche), 5‑9 (der unentwickelte Schutzanspruch) e 578‑595 (idem).

61 Lehre vom unentwickelten Anspruch; vide Kress, Lehrbuch cit., 5 ss..

62 Kress, Lehrbuch cit., 578 ss..

63 Idem, 580‑581.

64 Heinrich Stoll, Abschied von der Lehre von der positiven Vertragsverletzung/Betrachtungen zum dreissig-

jähringen Bestand der Lehre, AcP 136 (1932), 257‑320 (262 e 314). Esta crítica já havia sido formulada
por Heinrich Lehmann (1906) em obra abaixo citada, nota 139.

RDC I (2023), 1, 9-43


22 António Menezes Cordeiro

da prestação, mas o da proteção65: vedaria, nesse plano, as atuações danosas.


É certo que a tutela da pessoa e a do património dos parceiros na obrigação já
é assegurada pelas normas gerais. Todavia, a presença de uma relação especial
entre eles abre claras hipóteses de mútua interferência: donde os deveres espe‑
ciais de não o fazer66. As ideias de Heinrich Stoll foram aprofundadas: por Dölle
(1943), através da doutrina dos “deveres de proteção extralegais derivados de
contactos sociais”67 e por Canaris (1965), mediante a doutrina da relação legal
unitária de confiança68. Para além das sempre interessantes pormenorizações,
toda esta doutrina conflui na existência, ao lado do dever de prestar propria‑
mente dito, de deveres acessórios, com fins alargados de tutela, ditados pelo sis‑
tema e que acompanham o dever de prestar, quando exista69. Alguma doutrina
pretendeu reconduzir os deveres de proteção à responsabilidade delitual: seriam
parte dos deveres do tráfego70. Assim o entendem autores como Mertens71, von
Bar72, von Caemmerer73, Stoll74 e Medicus75. Todavia, isso equivaleria a dei‑
xar “de parte” os deveres de lealdade e de informação; além disso, significaria,
perante o Direito português, retirar‑lhes sentido útil. Embora ainda se discuta,

65 Stoll, Abschied cit., 288 ss., citando, de resto, Kress.


66 Stoll, Abschied cit., 298‑301.
67 Hans Dölle, Aussergesetzliche Schuldpflichten, ZstaaW 103 (1943), 67‑102; vide a súmula deste

escrito em Da boa fé, 560‑561.


68 Canaris, Ansprüche cit., 475 ss. e Schutzgesetze cit., 84 ss..

69 Além de Canaris, cumpre referir: Wolfgang Thiele, Leistungsstörung und Schutzpflichtverletzung/

/Zur Einordnung der Schutzpflichtverletzung in das Haftungssystem des Zivilrechts, JZ 1967, 649‑657 (653);
Ulrich Müller, Die Haftung des Stellvertreters bei culpa in contrahendo und positiver Forderungsverletzung,
NJW 1969, 2169‑2175 (2174); Walter Gerhardt, Die Haftungsfreizeichnung innerhalb des gesetzlichen
Schutzverhältnisses, JZ 1970, 535‑539 (535 ss.) e Der Haftungsmaßstab im gesetzlichen Schutzverhältnis
(Positiver Vertragsverletzung, culpa in contrahendo), JuS 1970, 597‑603 (598); Marina Frost, “Vorvertra-
gliche und “vertragliche” Schutzpflichten (1981), 212 e 241; Eduard Picker, Positive Forderungsverletzung
und culpa in contrahendo/Zur Problematik der Haftungen “zwischen” Vertrag und Delikt, AcP 183 (1983),
369‑520 (460 ss.) e Vertragliche und deliktische Schadenshaftung/Überlegungen zu einer Neustrukturierung
der Haftungssysteme, JZ 1987, 1041‑1058 (1047 ss.); Lothar A. Müller, Schutzpflichten im Bürgerlichen
Recht, JuS 1998, 894‑898 (896‑897).
70 Vide Dirk Olzen, no Staudinger cit., § 241, Nr. 386 (240); entre nós, Manuel Carneiro da

Frada, Contrato e deveres de protecção (1994), 55 ss. e 118 ss..


71 Hans‑Joachim Mertens, Deliktsrecht und Sonderprivatrecht/Zur Rechtsfortbildung des deliktischen Schut-

zes vom Vermögensinteressen, AcP 178 (1978), 227‑262 (261‑262).


72 Christian von Bar, Verkehrspflichten: richterliche Gefahrsteuerungsgebote im deutschen Deliktsrecht (1980),

L + 326 pp., 220 ss. e 312 ss. e Vertragliche Schadensersatzpflichten ohne Vertrag?, JuS 1982, 637‑645 (645)..
73 Ernst von Caemmerer, Wandlungen des Deliktsrechts, FS 100. DJT (1960), 49‑136 (56‑58).

74 Hans Stoll, Vertrauensschutz bei einseitigen Leistungsversprechen, FS Flume, 741‑773 (752).

75 Dieter Medicus, Vertragliche und Deliktische Ersatzansprüche für Schäden aus Sachmängeln, FS Eduard

Kern (1968), 313‑334 (327 ss.).

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   23

a reforma do BGB de 2001/2002, ao introduzir o § 241, II, resolveu a questão:


há um dever legal específico.

5. A experiência portuguesa

I. O civilismo português entrou, pela mão de Guilherme Moreira, na órbita


pandectística. Seria de esperar, assim, um bom acolhimento para os deveres
acessórios. Isso não sucedeu. Manteve‑se um conceito de raiz que a exegese
subsequente a 1966 não veio ajudar. É certo que a preocupação habitual dos
autores em demonstrar atualização levou à multiplicação de referências a tais
deveres nos textos introdutórios. Mas era‑lhes recusada, depois, uma verdadeira
eficácia. Deste modo, só após os anos 80 do século XX surgiram monografias
e análises que, com o tempo, atingiriam os tribunais. As primeiras referências
à violação positiva do contrato e, por aí, aos deveres acessórios76 ocorreram,
quanto sabemos, em textos de Vaz Serra77 e nas lições de Manuel de Andrade78.
Ambos usaram fontes limitadas79 e tomaram posições de desconfiança, perante
o novo instituto, particularmente no tocante a este último e (a justo título)
influente Autor. Afigura‑se inadequado versar o tema apenas pelo prisma do
incumprimento dos contratos: ele prende‑se, à cabeça, com o conteúdo das
obrigações. De todo o modo, é justo assinalar que, graças à intervenção in
extremis, na 2.ª revisão ministerial, de Antunes Varela, foi introduzido o atual
artigo 762.º/280: a boa‑fé no cumprimento da obrigação e, logo, na sua pró‑
pria configuração. Ao tempo de Seabra, o desenvolvimento mais explícito e
completo dedicado aos deveres acessórios ficou a dever‑se a Francisco Pereira
Coelho (1964)81.

76 Quanto à evolução da matéria na nossa doutrina: Da boa fé, 608 ss., nota 288.
77 Adriano Vaz Serra, Impossibilidade superveniente e cumprimento imperfeito imputáveis ao devedor, BMJ
47 (1955), 5‑97 (65‑90 a 95‑97) e, genericamente, Objecto da obrigação/A prestação – suas espécies, con-
teúdo e requisitos, BMJ 74 (1958), 15‑283 (45‑77, 79‑80 e 262‑263).
78 Manuel de Andrade, Teoria geral das obrigações, 3.ª ed. (1958), 326‑327.

79
Fundamentalmente, Enneccerus/Lehmann, Recht der Schuldverhältnisse, 15.ª ed. (1958), na base de
edições anteriores, 234 ss. e Philipp Heck, Schuldrecht (1929), 118, que, neste ponto, não são repre‑
sentativos, nem traduzem os desenvolvimentos havidos desde Kress e de Stoll.
80 Vide o nosso Código Civil comentado, II – Das obrigações em geral (2021), 939.

81 Francisco Pereira Coelho, Obrigações/Aditamentos à Teoria geral das obrigações, de Manuel de

Andrade, por Abílio Neto e Miguel J. A. Pupo Correia (1963‑64), 376‑380. Pereira Coelho veio
explicar que estava em causa um problema de alargamento da responsabilidade contratual. A essa luz,
impor‑se‑iam diversos deveres para as partes (os deveres acessórios). Distingue: o dever de custódia, o
dever de informação, o dever de prevenção ou de vigilância; e o dever de segurança. Afigura‑se que

RDC I (2023), 1, 9-43


24 António Menezes Cordeiro

II. Coube a Carlos Mota Pinto reconstruir a relação obrigacional, em fun‑


ção dos novos dados jurídico‑científicos, que apontavam para a inclusão dos
deveres acessórios82. Dispondo já do apoio legal dado pelo Código Civil de
1966, Mota Pinto vem dizer, a propósito dos deveres que ora nos ocupam, tra‑
tar‑se83 “(…) de deveres de adoção de determinados comportamentos, impos‑
tos pela boa‑fé em vista do fim do contrato (arts. 239.º e 762.º), dada a relação
de confiança que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis com as
circunstâncias concretas da situação.”
Este Autor estabeleceu ainda a conexão entre estes deveres, a culpa in
contrahendo e a pós‑eficácia (culpa post pactum finitum), fazendo, com base na
experiência alemã, uma rica enumeração de exemplos84. A matéria foi, depois,
sendo divulgada por Almeida Costa85, Antunes Varela86 e nós próprios87. Deve
ainda referir‑se o importante contributo de Paulo Mota Pinto88 e o estudo de
Nuno Manuel Pinto Oliveira89.

III. A jurisprudência acolheu, desde a última década do século passado, a


dogmática dos direitos acessórios, derivados da boa‑fé. Faz, dela, uma aplicação
alargada. Retemos, a título de exemplo, deveres acessórios no contrato‑pro‑
messa90, no arrendamento91, na mediação92, na banca e nos valores mobiliários93
e nos seguros94. Uma busca elementar permite localizar algumas centenas de

o dever de prevenção já tem a ver com concretizações aquilianas. Quanto aos demais: a sua derivação
da boa‑fé, apontada por Pereira Coelho, veio antecipar o Código Civil de 1966.
82 Carlos Alberto da Mota Pinto, Cessão da posição contratual (1970), 335 ss. e, de modo mais

simplificado, Direito das obrigações (1973), 62‑74, retomado por Rui de Alarcão, Direito das obriga-
ções (1975), 54 ss. (61 ss.).
83
Carlos Mota Pinto, Cessão da posição contratual cit., 339.
84 Idem, 343 ss. e 354 ss., em importantes notas de rodapé.

85 Almeida Costa, Direito das obrigações cit., 12.ª ed., 77‑79, com indicações na nota 1. A 1.ª ed. é

de 1968.
86 Antunes Varela, Das obrigações em geral, 1, 10.ª ed., 125; a 1.ª ed. é de 1970.

87 A partir de Direito das obrigações 1, 149 ss. e passim (a 1.ª versão é de 1978).

88
Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo cit., 2, 1191 ss., com atenção à importante nota
3345 (deveres de proteção).
89 Nuno Manuel Pinto Oliveira, Os deveres acessórios 50 anos depois, RDC 2017, 239‑256.

90 STJ 12-jan.-2017 (Lopes do Rego), Proc. 40/13; RPt 7‑dez.‑2018 (Aristides Rodrigues de

Almeida), Proc. 2496/15.


91 STJ 17-mai.-2017 (Lopes do Rego), Proc. 255/12.

92 RPt 11-out.-2018 (Aristides Rodrigues de Almeida), Proc. 72745/16.

93 RPt 7-fev.-2019 (Joaquim Correia Gomes), Proc. 1561/16.

94 RCb 28-mai.‑2019 (Barateiro Martins), Proc. 1442/18; RCb 23‑set.‑2021 (Fernando Bar‑

roso Cabanelas), Proc. 318/20; RCb 25‑jan.‑2022 (Arlindo Oliveira), Proc. 168/18; RPt

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   25

arestos. Estamos em face de um dos grandes avanços da Ciência do Direito dos


nossos dias.

6. O regime

I. Os deveres acessórios têm, hoje, uma dogmática própria bastante com‑


plexa, que pode ser seguida nos grandes comentários95: a partir de 2002, o §
241/II constituiu, de resto, um ensejo excelente para novos desenvolvimen‑
tos, absorvendo elementos que, antes, eram tratados a propósito da boa‑fé.
Cabe verificar alguns aspetos marcantes do seu regime. Os elementos em jogo
tornam‑se mais claros, quando contrapostos ao “regime comum” do dever
de prestar. Esse regime comum, no que não seja afastado pela dogmática dos
deveres acessórios, tem aplicação96.
No tocante à constituição: os deveres acessórios têm as mesmas fontes das
obrigações. Todavia, eles surgem de modo mais amplo e não necessariamente
coincidente com elas. O simples início de negociações pode originar deveres
acessórios que, depois, se irão manter97. Na constituição de deveres acessórios,
jogam relações de proximidade típica e de confiança real98. Por esta via, inten‑
ta‑se um equilíbrio entre a regulação abstrata e a efetividade de cada caso con‑
creto. Mas se, com a apontada refração, as fontes são próximas, já a base jurídica
ou jurídico‑positividade dos deveres de prestar e dos deveres acessórios é muito
distinta: os primeiros assentam no negócio ou outra fonte comum que esteja
em jogo; os segundos têm base legal. Daí resultam logo diferenças evidentes:
enquanto os deveres de prestar se obtêm por interpretação (236.º a 238.º) e por
integração negociais (239.º), os deveres acessórios advêm da interpretação (9.º)

4‑mai.‑2022 (Fátima Andrade), Proc. 9938/20; RGm 11‑mai.‑2022 (Raquel Baptista Tava‑
res), Proc. 3/21.
95 Assim, como exemplos recentes: Dirk Olzen, no Staudingers Kommentar (2019), Nr. 434‑528

(266‑308); Malte Kramer, no PWW/BGB, 15.ª ed. (2020), § 241, Nr. 9‑20 (345‑347); Gregor
Bachmann, no Münchener Kommentar, 2, 9.ª ed. (2022), § 241, Nr. 55‑231 (40‑79); Christian Grü‑
neberg, no Grünebergs Kommentar (ex‑Palandt), 82.ª ed. (2023), § 241, Nr. 6‑8 (266‑267).
96 Dieter Medicus, Zur Anwendbarkeit des allgemeinen Schuldrechts auf Schutzpflichten, cit., 842 e

853‑855.
97 Já se defendeu uma “teoria da transformação”: de base legal, eles adquiririam base negocial com

o contrato … regressando à base legal caso houvesse anulação. Esta alquimia teria de ser sindicada à
luz do regime tendo, todavia, mais relevo teórico do que prático.
98 Mantém todo o interesse a pesquisa de Johannes Köndgen, Selbstbindung ohne Vertrag/Zur Haftung

aus geschäftsbezogenen Handeln (1981), 434 pp.; vide, aí, 97 ss. (teoria da vinculação quase‑contratual).

RDC I (2023), 1, 9-43


26 António Menezes Cordeiro

e da integração da lei (10.º). É óbvio que tudo isto opera articulada e conjunta‑
mente: todavia, a clivagem existe e traduz uma estruturação de raiz.

II. Os deveres acessórios distinguem‑se claramente do dever de prestar prin‑


cipal e dos deveres de prestar secundários, em função do seu escopo. Enquanto
estes visam a satisfação do interesse do credor na prestação, aqueles promovem
o interesse do credor na integralidade da própria prestação e, ainda, na into‑
cabilidade dos seus interesses colaterais: património e esferas física e moral.
Impõe‑se uma bipartição nos deveres acessórios, de modo a responder à crítica
por vezes dirigida à conceção unitária do dever de proteção, desenvolvida por
Canaris: a de que, havendo um contrato, nenhuma necessidade existe de recor‑
rer à lei, para fundamentar um dever de proteção99. Assim, distinguimos:

(1) um círculo interno, no qual se arrumam os deveres acessórios que


visem o reforço e a substancialização do dever de prestar; temos, aqui,
fundamentalmente, deveres de informação e de lealdade ao contratado;
(2) um círculo externo, que compreende os deveres dirigidos aos interes‑
ses circundantes e colaterais: integridade patrimonial, pessoal e moral;
ocorrem deveres de segurança e de lealdade geral.

III. Pergunta‑se se os deveres acessórios incluídos no círculo interno não


serão, afinal, meros deveres secundários ou, se se preferir, delimitações, ex bona
fide, dos deveres de prestar. Summo rigore, todo o Direito (todo o Universo!)
nada mais é do que um continuum, no qual o ser humano, com as suas limitações
extremas, efetua sondagens pontuais, obtendo aquilo a que chama conheci‑
mento. Mas sobre essa humildade de princípio, podemos distinguir:

(1) o dever de prestar tem a configuração que resulte da sua fonte: para‑
digmaticamente um contrato; estamos em áreas disponíveis, pelo que
faz todo o sentido concretizar e aplicar a matéria, à luz dos cânones
negociais; todavia, a juridicidade e, daí, a eficácia dos negócios, advêm
do exterior, isto é, do Direito objetivo; ora este não é passivo: tem
valores que dão sentido ao seu sistema de reconhecimento de normas e
de situações; daí que resultem, além de limitações à autonomia privada,
complementações “legais” que se impõem a ambas as partes;
(2) os deveres acessórios, ainda quando reforcem e substancializem o dever
de prestar, dão corpo à dimensão axiológica heterónoma do Direito,

99 Dieter Medicus, Vertragliche und deliktische Ersatzansprüche cit., 327 ss..

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   27

expressa nas limitações apontadas; complementam e delimitam o pre‑


tendido pelas partes.

IV. Ocorrem, para além destes aspetos básicos, particulares contraposições


entre os deveres de prestar e os deveres acessórios. Assim:

(1) os deveres de prestar fundam‑se, paradigmaticamente100, na autonomia


privada (398.º/1); os acessórios, na boa‑fé (762.º/2);
(2) os deveres de prestar vinculam o devedor; os deveres acessórios ads‑
tringem ambas as partes;
(3) os deveres de prestar visam o “efeito prestação” ou, pelo menos, o
“efeito atuação”, quando este seja o visado; os acessórios dirigem‑se
para os efeitos “substancialização” e “integralidade”;
(4) os deveres de prestar são diretamente disponíveis (salvo recaindo em
pontos que o não sejam); os acessórios, enquanto ex lege, operam sem‑
pre que se mostrem reunidas as respetivas condições constitutivas;
(5) os deveres de prestar surgem com o negócio e cessam com o cumpri‑
mento; os acessórios podem ser pré ou pós‑eficazes;
(6) os deveres de prestar cessam quando a respetiva fonte seja declarada
nula ou anulada; os acessórios mantêm‑se, nessas eventualidades, pros‑
seguindo os seus fins de tutela;
(7) os deveres de prestar adstringem as partes; os acessórios podem tutelar
terceiros;
(8) os deveres acessórios, designadamente os que se incluam no círculo
externo, podem constituir‑se ou manter-se sem que exista um dever
de prestar; a obrigação subsistirá, então, apenas assente nos deveres
acessórios, não tendo dever de prestar.

7. Obrigações sem dever de prestar

I. Importante decorrência da dogmática dos deveres acessórios é a figura das


obrigações sem dever de prestar. Os deveres acessórios, derivados do sistema
e da boa‑fé, podem ocorrer ou subsistir sempre que exigências axiológicas do
ordenamento o requeiram. Assim, os deveres acessórios surgem logo na con‑
tratação, através da figura da culpa in contrahendo. Eles existem na pendência
dos deveres de prestar, os quais são acompanhados de “feixes” de boa‑fé. Eles

Pode haver deveres de prestar não‑contratuais; seguem, tendencialmente, o mesmo regime, filian‑
100

do‑se, então, nas normas legais que os imponham.

RDC I (2023), 1, 9-43


28 António Menezes Cordeiro

podem subsistir depois de executadas as prestações (principais e secundárias),


num fenómeno de pós‑eficácia101. Caso um contrato seja nulo ou venha a ser
anulado – o que tem eficácia retroativa – mantêm‑se os deveres acessórios102:
uma doutrina hoje pacífica103.

II. Em três das apontadas circunstâncias – culpa in contrahendo, pós‑eficácia


e nulidade ou anulação do contrato – temos obrigações apenas com deveres
acessórios104. Trata‑se de uma conjunção tão patente que o legislador alemão,
na reforma de 2001/2002, se sentiu adstrito a alterar o próprio § 241 do BGB,
acrescentando‑lhe o n.º 2. Eis o atual teor do preceito:

(1) Por força da relação obrigacional, o credor tem o direito de exigir, do devedor,
uma prestação. A prestação também pode consistir numa omissão.
(2) A relação obrigacional também pode, segundo o seu conteúdo, obrigar cada
parte ao respeito pelos direitos, pelos bens jurídicos e pelos interesses da outra
parte.

III. Não é consistente descobrir, na exigência de “respeito”, um verdadeiro


dever de prestar: há um dever genérico que pode, in futurum, originar atuações
eventuais, hipotéticas e imprevisíveis. Mas deveremos dar o salto, dizendo que
a obrigação já não pode ser apresentada como relativa a um dever de prestar? As
definições “europeias” de obrigação, assentes no Direito comparado e procu‑
rando fazer a bissetriz entre os vários ordenamentos, são inóquas, neste ponto.
O DCFR de 2009 define obligation nestes termos105:

An obligation is a duty to perform which one party to a legal relationship,


the debtor, owes to another party, the creditor.

Obrigação não equivale ao dever: esperemos com curiosidade a versão


alemã deste texto. De todo o modo, parece‑nos claro que a “europeização” se
irá fazer à custa da profundidade já alcançada.

101 Vide o nosso Da pós‑eficácia das obrigações (1983).


102 Pioneiro: Claus‑Wilhelm Canaris, Ansprüche wegen “positiver Vertragsverletzung” und “Schutzwir­
kung für Dritte” bei nichtigen Verträge, JZ 1965, 475‑482.
103 Por exemplo, Karl Larenz, Schuldrecht cit., 1, 14.ª ed., 15 e Wolfgang Wiegand, Die Verhal-

tenspflichten/Ein Beitrag zur juristischen Zeitgeschichte (1991), 547‑563 (551).


104 Também Jörg Neuner, Allgemeiner Teil des bürgerlichen Rechts, 12.ª ed. (2020), § 28, Nr. 21 (334‑33).

105 DCFR 2009, III‑1: 102 (1) (p. 229).

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   29

Em bom rigor, aquele salto deve ser dado. A obrigação pode tecer‑se em
torno do dever de prestar (o paradigma) ou em volta de um dever específico
de respeito e de cuidado. Foi até aí que chegaram os sábios autores da reforma
do BGB de 2001/2002. Esta matéria não é (apenas) lógica. Tem dimensões
histórico‑culturais sempre presentes e que não devem ser ignoradas.

IV. A construção das obrigações sem dever de prestar principal permite


ainda transcender o nó górdio dos direitos pessoais de gozo. O exemplo para‑
digmático é o do direito do locatário. Este tem o gozo da coisa, gozo esse que
se efetiva através da sua atuação direta sobre o locado. As construções tendentes
a explicar essa situação através de obrigações mediantes são, hoje, inaceitáveis,
dominando a teoria dos direitos pessoais de gozo106. Todavia, razões históricas
e de construção recusam, ao direito do locatário, uma natureza real. Podemos
transcender o problema afirmando a situação jurídica locatícia como uma rela‑
ção complexa entre o locador e o locatário: do lado do locador, temos obriga‑
ções de entrega e de manutenção; do lado do locatário, a obrigação de retribuir
e, no núcleo essencial, uma obrigação em que o direito à prestação é substi‑
tuído pelo direito de gozo da coisa. Nesse segmento, falta a prestação principal.

III – A execução devida

8. Conduta ou resultado?

I. O cumprimento requer a execução de uma prestação. O tipo de con‑


duta necessário para esse objetivo varia, em função da natureza da obrigação
em jogo. Coloca-se a questão: releva a conduta em si (Leistungshandlung) ou o
resultado dessa conduta (Leistungserfolg)? A questão tem sido colocada no campo
das obrigações, distinguindo‑se as de meios das de resultado107.
A contraposição entre obrigações de meios e obrigações de resultado,
embora com antecedentes alemães, teve um êxito especial na doutrina fran‑
cesa108. Visou delimitar a responsabilidade contratual: nalguns casos, ela ocor‑
reria se o resultado previsto pelas partes não ocorresse (por exemplo, a entrega
de uma coisa); noutros, apenas haveria responsabilidade se se provasse falta de
diligência (por exemplo, a prestação de serviço médico).

106
Quanto ao debate, remetemos para o nosso Tratado cit., VI, 3.ª ed., 598 ss..
107
René Demogue, Traité des obligations en général V (1925), n.º 1237 (536 ss.) e VI (1931), n.º 599
(644-645). Outra bibliografia pode ser consultada no presente Tratado VI, 2.ª ed., 477‑478.
108 Murad Ferid, Das Französische Zivilrecht 1 (1971), 408 ss..

RDC I (2023), 1, 9-43


30 António Menezes Cordeiro

II. No domínio do cumprimento, a doutrina, mormente na sequência de


Wieacker109, sufragado por Larenz110, por Weber111 e pelos autores subsequen‑
tes112, não tem dúvidas em proclamar a primazia do resultado: apenas este inte‑
ressa ao credor. A jurisprudência confirma essa orientação: considera cumpridas
as obrigações apenas perante o “resultado” da prestação113.
Esta solução é de reter. A distinção entre “meios” e “resultado” é lin‑
guística. Assim, a típica obrigação de meios, que é a de prestação de serviço
médico, pode facilmente ser convolada para o resultado verdadeiramente em
jogo: o de aplicar, ao paciente, as regras da Ciência Médica, consoante as pos‑
sibilidades existentes e o estado dos conhecimentos disponíveis. Quando muito
poderemos, pela interpretação, inferir, dos termos usados pelas partes, um par‑
ticular resultado ou uma especial exigência de esforço.

III. A recondução do cumprimento a um determinado resultado tem


relevância prática no domínio da diligência devida e no da impossibilidade.
O relevo dado ao resultado permite, ainda, reforçar as construções funcionais
e finalistas do cumprimento. A atenção do Direito e dos seus agentes con‑
centra-se na teologia estruturante do vínculo obrigacional: em detrimento de
formalismos de percurso.

9. A diligência requerida

I. Uma conduta humana implica, sempre, um certo esforço, por parte de


quem a leve a cabo. Há que quebrar a própria inércia, há que mobilizar meios
exteriores e há, muitas vezes, que arcar com despesas correspondentes a ele‑

109 Franz Wieacker, Leistungshandlung und Leistungserfolg im bürgerlichen Schuldrecht, FS Hans Carl
Nipperdey I (1965), 783‑813 (812 e passim).
110 Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts cit., 1, 14.ª ed., 18, I (235).

111
Reinhold Weber, BGB/RGRK, II, 12.ª ed. (1976), Vor § 362, Nr. 13 (8).
112 Por exemplo: Roland Dubischar, Alternativkommentar zum BGB, 2 – Allgemeines Schuldrecht

(1980), XXII + 582 pp., Vorm §§ 362 ff. (474 ss.); Dirk Olzen, no Staudingers Kommentar, §§
362-396 (2016), Einl zu §§ 362 ff., Nr. 2 (5); Rolf Stürner, em Jauernig, Kommentar zum BGB
cit., 17.ª ed. (2018), § 362, Nr. 1 (518), Rhona Fetzer, no Münchener Kommentar zum BGB, 3,
9.ª ed. (2022), § 362, Nr. 2 (1334); Christian Grüneberg, no Grünebergs Kommentar zum BGB,
82.ª ed. (ex Palandt) (2023), § 362, Nr. 2 (620).
113 BGH 6-fev.-1954, BGHZ 12 (1954), 267-270 (268), referindo, todavia, que o BGB, em certos

preceitos, se reporta às obrigações visando a conduta; assim, no caso do § 242, relativo à boa‑fé; BGH
7-out.‑1965, BGHZ 44 (1966), 178-183 (179-180); BGH 25‑mar.‑1983, BGHZ 87 (1983), 162‑166
(162), referindo jurisprudência anterior; BGH 17-fev.-1994, NJW 1994, 1403‑1405 (1404/I); BGH
17-jun.-1994, NJW 1994, 2947‑2950 (2948/I).

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   31

mentos materiais e humanos a envolver na prestação debitória. Até onde se


deve ir na intensificação desse esforço? É evidente que o Direito não pode, ao
devedor, pedir que morra, se necessário, para efetivar a prestação. O esforço
concretamente exigido (ou exigível) exprime‑se, normativa e tradicionalmente,
pelo grau da diligência requerida114.

II. A diligência requerida implica um grau de esforço presente em qualquer


conduta humana. Apenas por limitações linguísticas se autonomiza a diligência:
qualquer prestação é, por elementares considerações ontológicas, uma certa
diligência – ou não existiria. E essa mesma diligência dá corpo aos deveres
acessórios, designadamente de cuidado: também na efetivação das condutas
que eles pressuponham, há que desenvolver um certo esforço, esforço esse cuja
medida será fixada pelo Ordenamento. A diligência requerida é, por razões de
simplicidade, referenciada a propósito da prestação principal, correspondendo,
aí, ao grau de esforço exigível ao devedor. Mas projeta‑se em todo o vínculo
obrigacional complexo.

III. No Direito alemão, a diligência requerida (Sorgfaltsmaßstäbe) surge


no § 276/II, a propósito do incumprimento e da medida da culpa do deve‑
dor115. De certo modo, assim sucede no Código Civil, quando o 799.º/2 remete
a apreciação da culpa para o previsto na responsabilidade civil, a qual, pelo
487.º/2, é reenviada para a “diligência de um bom pai de família”. No Direito
italiano, a matéria já é vista pela positiva: segundo o 1176.º/I, do Codice:

No cumprimento da obrigação, o devedor deve usar a diligência do bom


pai de família.

Mesmo assim, a doutrina discute se não haveria aqui a intromissão de um


dever de segurança, que daria corpo a essa diligência116. Pensamos que mal: a
diligência, neste sentido, não é autonomizável da onticidade da própria presta‑
ção. Mantemos, dentro da tradição de Pessoa Jorge, a exigência como medida
de esforço exigível, ínsita em cada obrigação.

114
Com muito material, desde o Direito romano: Martin Josef Schermaier, no HKK/BGB, II
(2007), 1063‑1177; pelo prisma do Direito vigente: Stefan Grundmann, no Münchener Kommentar
zum BGB, 2, 9.ª ed. (2022), § 276, Nr. 53‑82 (944‑960). Entre nós: João António Pinto Mon‑
teiro, Esforços e sacrifícios exigíveis no cumprimento contratual (2015, polic.), 31 ss. e passim.
115 Martin Josef Schermaler, no HKK/BGB II/1 (2007), §§ 276‑277, Nr. 78 ss. (1134 ss.).

116 Francesco Caringella/Giuseppe de Marzo, Manuale di diritto civile, II – Le obbligazioni (2007),

§ 5 (95 ss.).

RDC I (2023), 1, 9-43


32 António Menezes Cordeiro

III. Seguindo Pessoa Jorge, podemos separar três planos distintos de dili‑
gência117: (1) diligência psicológica; (2) diligência normativa; (3) diligência
objetiva.
A diligência psicológica corresponde à tensão da vontade e da inteligência
necessárias para a execução de uma tarefa ou, aqui, para a efetivação da pres‑
tação. A diligência psicológica é muito variável, de pessoa para pessoa ou, para
uma dada pessoa, de acordo com o momento e as circunstâncias em que tenha
de ser exercida. Uma mesma tarefa representará, conforme as condições, um
gosto ou um sacrifício.
A diligência normativa dá‑nos o grau de esforço requerido pelo Direito,
para a execução de uma conduta devida ou prestação. Este grau poderá, con‑
forme os casos, ser superior ou inferior à diligência psicológica individualmente
envolvida.
A diligência objetiva é, por fim, o grau de esforço necessário para se atingir
um certo fim, independentemente da concreta pessoa envolvida e do esforço
exigível, pelo Direito.

IV. Na concretização da prestação, releva a diligência normativa. Esta tem


de ser determinada em concreto, tendo em conta o fim, as circunstâncias e a
própria bitola exigível. O fim será a realização da prestação, com a satisfação
do interesse do credor. Conforme o seu teor, um mesmo ato poderá traduzir a
efetivação da prestação ou a prática de um ato ilícito. Deve, pois, partir‑se do
fim, para fixar a atuação necessária a lá chegar118.
Fixado o fim, há que eleger os atos normais que permitirão alcançá‑lo.
Todavia, se for alargado o leque de medidas, mesmo para além do que seria
“normal”, o fim ficará melhor assegurado. Inferimos daqui que, perante o fim,
será sempre necessário perguntar à bitola exigível de esforço até onde se irá
precaver o devedor.

V. Quanto às circunstâncias: conhecido o fim, há que atender ao objeto


da prestação (entregar um trator é diverso de entregar um diamante), ao tipo
de contrato em jogo (o dever de guarda é mais intenso no comodato do que

117Fernando Pessoa Jorge, Direito das obrigações cit, 1, 77 ss..


118Idem, 82. No exemplo de Pessoa Jorge: o corte de uma árvore pode corresponder a uma boa exe‑
cução de um contrato de gestão de um prédio rústico ou a um ato despropositado e danoso. De facto,
muitas prestações são indicadas apenas pelo fim. Compete ao devedor, nessa eventualidade e de acordo
com a diligência exigível, escolher a forma de melhor alcançar a prestação. Pode, todavia, estipular‑se
que essa tarefa caiba ao credor, o qual, para tanto, disporá do poder de dar instruções. Nessa eventua‑
lidade, o fim será diverso: equivale o objetivo concreto somado à consecução das ordens do credor.

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   33

no depósito gratuito) e às concretas utilidades em causa (uma peça destinada à


fábrica que, sem ela, irá parar, exige uma entrega mais diligente do que a peça
que vise, apenas, recompor um stock bem fornecido).

VI. Finalmente, cabe determinar a bitola exigível. Aqui temos várias hipó‑
teses. Desde logo, a diligência pode ser fixada em abstrato ou em concreto.
Assim:

(1) na diligência em abstrato, vai‑se apurar o esforço exigível ao homem‑


‑padrão ou homem médio; na tradição romana, ao bom pai de família
(bonus pater familias);
(2) na diligência em concreto, o modelo do esforço vai ser fixado ad hoc,
de acordo com as características pessoais do devedor.

VII. Na diligência em concreto, seguindo Pessoa Jorge119, teríamos três


possibilidades, todas a abrir na diligência psicológica:

(1) a diligência de que o devedor é capaz;


(2) a diligência média por ele posta nos seus próprios negócios;
(3) a diligência normal que ele coloca no que faz.

A diligência de que o devedor é capaz não deve ser bitola: ele pode ter
feito, em determinada ocasião, um esforço extraordinário sem que isso lhe
possa, para o futuro, ser sempre exigido. A diligência média posta nos próprios
negócios também não é critério: o devedor pode ser descuidado quanto ao que
é seu e esforçado no restante, ou vice‑versa. O mesmo óbice opera perante a
diligência normal do devedor. Em suma: a verdadeira clivagem põe‑se entre a
diligência em abstrato e a diligência em concreto, tomada como a que o deve‑
dor põe, normalmente, nas suas atuações. A solução cabe ao Direito positivo.

10. O regime vigente

I. Na resposta ao tema em aberto, não pode deixar de se apelar ao concreto


Direito positivo onde, historicamente, o problema se ponha. Na tradição de
Guilherme Moreira, haveria que atender ao tipo de dever em jogo120: quando

119
Pessoa Jorge, Direito das obrigações cit., 1, 88‑89.
120Guilherme Moreira, Instituições do Direito civil, 1 (1907), 596 ss.; Guilherme Moreira ocupava‑se
da culpa na responsabilidade aquiliana e na contratual; convolamos a ideia para os deveres contratuais

RDC I (2023), 1, 9-43


34 António Menezes Cordeiro

estivesse em causa matéria contratual, a diligência deveria ser vista em concreto;


nos deveres legais, haveria que a ponderar em abstrato. Extrapolando, podemos
dizer: as obrigações contratuais são, de certo modo, personalizadas; as partes
assumem‑nas tendo em consideração a identidade do parceiro e as capacidades
que lhe reconheçam. Pelo contrário, nas obrigações legais, domina a ideia de
igualdade e de segurança em geral; não seria aceitável exigir mais, aos diligentes
e aliviar a carga dos descuidados e desleixados. Tem lógica: mas não é o sistema
vigente.

II. O Código Civil, ao contrário do que, por vezes, sucedia com o Código
de Seabra, veio fixar uma bitola geral de diligência em abstrato. Com efeito,
o Código de Seabra, na tradição das Ordenações, continha, nalguns preceitos,
uma bitola de diligência in concreto. Assim:

1336.º O mandatario deve dedicar á gerencia de que é encarregado a diligen‑


cia e cuidado, de que é capaz, para o bom desempenho do mandato; se assim o não
fizer, responderá pelas perdas e damnos a que der causa.

1383.º O serviçal é obrigado: (...) 2.º A desempenhar o serviço que lhe


incumbe com a diligencia compatível com as suas forças. (...)

1435.º O depositário é obrigado: 1.º A prestar, na guarda e conservação da


cousa depositada, o cuidado e diligencia de que é capaz, para o bom desempenho
do deposito; (...)

O artigo 1420.º, ainda do Código de Seabra, relativo à responsabilidade do


albergueiro, remetia para a bitola do depositário.
O artigo 799.º/2 do Código Civil vigente, quanto à apreciação da culpa
na responsabilidade obrigacional, remete para a culpa na responsabilidade civil
(aquiliana). Esta apela (487.º/2), à diligência de um bom pai de família121.

III. Referir o bonus pater familias não é, todavia, por si, um critério. Sem
mais precisões, ameaça tornar‑se numa fórmula vazia. No anteprojeto de BGB,
surgia um § 197 que fazia referência ao ordentlicher Hausvater (o bom pai de

e legais e para a diligência, o que parece não oferecer dúvidas. Também Paulo Cunha, Direito das
obrigações, II (1939), 256 ss., se orienta nesse sentido.
121 Lugares paralelos são os artigos 1124.º (pensador diligente) e 671.º, a) (proprietário diligente,

relativamente ao credor pignoratício): desapareceram referências à “diligência de que é capaz” e que


ocorriam em Seabra.

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   35

família)122. Essa remissão foi muito criticada, na época: era demasiado vaga.
Melhor seria encontrar uma fórmula que permitisse remeter para os diversos
grupos profissionais123. Otto von Gierke humoriza124, observando:

(…) [com] o cuidado de um ordenado pai de família, a atriz deve cumprir o seu
contrato de inclusão na companhia, a dançarina de ballet deve dançar, a cozinheira,
cozinhar e providenciar às compras do mercado.

Menger, que fez críticas sociais e ideológicas ao BGB, sublinha que o bom
pai de família é uma figura burguesa e egoísta, assim se atingindo a “estaca zero
da moralidade” (Nullpunkt der Sittlichkeit)125. Todavia, o “bom pai de famí‑
lia” é uma abstração, na qual é possível introduzir toda a ordem de precisões,
incluindo preocupações sociais. Assim, a concretização faz‑se inserindo o bom
pai de família na específica área de interesses e de competências técnicas em que
se coloque o devedor. Quem se dirija a um médico esperará encontrar a dili‑
gência do médico devidamente habilitado; no trânsito, os condutores usarão do
cuidado normal, dispondo dos conhecimentos habituais, em todos os cidadãos;
o banqueiro será um banqueiro competente, dispondo dos apetrechos que é de
esperar em tais circunstâncias e assim por diante126.

122 Horst Heinrich Jakobs/Werner Schubert (ed.), Die Beratung des Bürgerlichen Gesetzbuchs in
systematischer Zusammenstellung der unveröfftlichen Quellen/Recht der Schuldverhältnisse I, §§ 241‑432
(1978), 237. Dispunha o § 197 em causa:
Die in einem Schuldverhältnisse Stehenden haften sich gegenseitig nicht nur für absichtliche Verschul‑
dung, sondern selbst für geringe Fahrlässigkeit. Letztere verschulddet, wer nicht diejenige Sorgfalt ver‑
wendet, welche ein sorgsamer Hausvater anzuwenden pflegt.
123 Eduard Hölder, Zum allgemeinen Theile des Entwurfes eines bürgerlichen Gesetzbuches für das Deuts-
che Reich, AcP 73 (1888), 1‑160 (130‑134), com várias sugestões, Franz von Liszt, Die Grenzgebiete
zwischen Privatrecht und Stafrecht/Kriminalistische Bedenken gegen den Entwurf eines Bürgerlichen Gesetz-
buches für das Deutsche Reich (1889), 16‑17, explicando que o bonus pater familias romano nunca fora
recebido na Alemanha e Paul Laband, Zum zweiten Buch des Entwurfes eines bürgerlichen Gesetzbuches
für das Deutsche Reich. II. Abschnitt. Titel 1, Allgemeine Vorschriften, AcP 74 (1889), 1‑54 (3), citando,
aliás, Hölder.
124
Otto von Gierke, Der Entwurf eines bürgerlichen Gesetzbuches und das deutsche Recht, Schmollers
Jahrbuch 12 (1888), 57‑118 (81‑82; 82 o troço transcrito); este texto também surge citado em Scher‑
maier, HKK/BGB cit., §§ 276‑278, Nr. 78 (1136).
125 Anton Menger, Das bürgerliche Recht und die besitzlosen Volksklassen, 5.ª ed. (1927), 202‑204 (204);

há edições anteriores.
126 Manfred Löwisch, no Staudingers Kommentar zum BGB, II – Recht der Schuldverhältnisse,

§§ 255‑304 (Leistungstörungsrecht I) (2004), § 276, Nr. 30 (290); vide Stefan Grundmann, no Münche-
ner Kommentar cit., 2, 9.ª ed., § 276, Nr. 54‑55 (944‑945).

RDC I (2023), 1, 9-43


36 António Menezes Cordeiro

IV. O atual Direito, com particular consagração no Código Civil, não faz
distinção entre as prestações contratuais e as legais. Desde logo, como observa
Pessoa Jorge, por não ser hoje exato que, aquando da contratação, as partes se
conheçam, ao ponto de terem em conta as especiais qualidades uma da outra127.
De seguida, porque na atual dogmática, as prestações “contratuais” surgem em
feixes de deveres acessórios, de base legal. Ou não seria viável fazer destrinças,
no mesmo vínculo. Ficamo‑nos, por isso, pela bitola da diligência normativa,
dada pela figura tradicional do bonus pater familias, integrado na situação típica
onde o problema se ponha128.

V. Finalmente e ao abrigo da autonomia privada, podem as partes, na con‑


tratação, fixar bitolas de diligência abaixo ou acima do normal129. Algumas
prestações são precisamente acordadas em função das especiais qualidades do
devedor (intuitu personae): têm, então, um regime especial. A doutrina e a pró‑
pria lei distinguem a eventualidade de o devedor agir no âmbito da respetiva
profissão das demais hipóteses: o Código italiano refere‑o, mesmo, de modo
expresso130. O Direito português é sensível a esta dimensão; assim, o Código
das Sociedades Comerciais exige, para os administradores – 64.º/1, a), in fine
– a diligência de um “gestor criterioso e ordenado”. Trata‑se de uma bitola
mais exigente do que a diligência comum, uma vez que se dirige a especialistas
fiduciários, que têm a seu cargo a gestão de bens alheios131.

VI. A quem cabe o ónus da prova de ter sido alcançado o grau de exigên‑
cia concretamente requerida? Quando o resultado almejado não seja obtido,
tal ónus corre pelo devedor, nos termos do artigo 799.º/1. Além desse pre‑

127 Pessoa Jorge, Direito das obrigações cit., 1, 90. Além disso, em muitas situações: pelo menos, não
parece adequado que se distinga, quanto à diligência, a pessoa que atue ao abrigo de um contrato,
dessa mesma pessoa quando o não faça; p. ex., tanta diligência se deverá exigir ao defensor oficioso
como ao advogado constituído, ou ao médico de serviço numa urgência, na qual compareça um
paciente, ou ao médico que haja celebrado um contrato de serviço médico, com esse mesmo paciente.
128 Vide Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos contratos (2011), 38 ss., com impor‑

tantes precisões, que retomaremos ulteriormente.


129 Stefan Grundmann, no Münchener Kommentar cit., 2, 8.ª ed., § 276, Nr. 57 (883‑884).

130 Dispõe o seu artigo 1176.º/2:

No cumprimento das obrigações inerentes ao exercício de uma atividade profissional, a diligência


deve valorar­‑se tendo em conta a natureza da atividade exercida.
131 Vide os nossos Os deveres fundamentais dos administradores de sociedades (artigo 64.º/1, do CSC), ROA

66 (2006), 443‑488, Direito das sociedades, I – Parte geral, 5.ª ed. (2022), 763 ss. e Código das Sociedades
Comerciais anotado, 5.ª ed. (2022), anot. art. 64.º.

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   37

ceito, deve ter‑se presente que o devedor tem o domínio da situação (p. ex.,
o médico). Assim, só ele pode dar conta do que fez, perante o estado da arte.

IV – A dogmática do cumprimento

11. As teorias

I. A dogmática do cumprimento presta-se a controvérsia, desde o Direito


romano132. A discussão preencheu os três primeiros quartos do século XX,
tendo sido intensa após a publicação e a entrada em vigor do BGB133. Cada
autor tem as suas subtilezas, sendo difícil reter e ordenar todas as matizes exis‑
tentes. Seguindo doutrina consagrada, vamos sistematizar as teorias existentes
em cinco grupos134:

(1) teorias do contrato;


(2) teoria do negócio unilateral;
(3) teoria da realização efetiva da prestação;
(4) teoria da realização final da prestação;
(5) teoria do acordo do escopo.

Vamos ver.

II. As teorias do contrato têm várias versões. A primeira, dita teoria geral
do contrato, foi defendida, no século XX, por autores como Klein135, como

132 Sobre o tema, a obra de referência é a de Gesa Kim Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung/Eine
kritische Betrachtung der Erfüllungstheorien unter besonderer Berücksichtigung der Schuldrechtsmodernisierung
(Studien zum Privatrecht) (2013), XX + 421 pp..
133
Fritz Alexander, Die rechtliche Natur der Erfüllung (1902), 70 pp.; Ernst Ihrcke, Ist die Erfüllung
Rechtsgeschäft?/Nach gemeinem Recht und Bürgerlichem Gesetzbuch (1903), 69 pp.; Hermann Bauer,
Die rechtliche Natur der Erfüllung (1903), 91 pp.; Peter Klein, Die Natur der causa solvendi/ein Beitrag
zur Causa‑ und Kondiktionen‑Lehre (1903), VII + 67 pp.; Paul Kretschmar, Die Erfüllung (1906),
168 pp.; Gustav Boehmer, Der Erfüllungswille (1910), 98 pp.; Erich Fromm, Die Frage nach der Ver-
tragsnatur der Erfüllung (1912), VII + 36 pp..
134 Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts cit., 1, 14.ª ed., § 18, I (237); Dirk Olzen, no Staudingers

Kommentar cit., Vorbem zu §§ 362 ff., Nr. 9-12 (33-34); Joachim Wenzel, no Münchener Kommen-
tar zum BGB II, 7.ª ed. (2016), § 362, Nr. 6 ss. (2571 ss.), num desenvolvimento que já não figura
na 8.ª ed.; na edição seguinte, temos Rhona Fetzer, Münchener Kommentar zum BGB, 3, 9.ª ed.
(2022), § 362, Nr. 9-14 (1336-1339); Gesa Kim Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung cit., 6 ss.,
com muitas indicações.
135 Peter Klein, Die Natur der Causa solvendi (Ein Beitrag zur Causa- und Kondiktionen-Lehre) (1903),

45 ss.. A doutrina de Klein vem circunstanciadamente analisada em Gesa Kim Beckhaus, Die Recht-
snatur der Erfüllung cit., 6-9.

RDC I (2023), 1, 9-43


38 António Menezes Cordeiro

von Tuhr136 e como Lent137. Estes autores viam, no cumprimento, um acordo


bilateral de vontades. Trata‑se de uma orientação comum na pandectística
anterior138, com raízes no Direito comum e que tem a seu favor uma descri‑
ção típica do cumprimento. Nela, o devedor ou solvens apresenta-se perante o
credor ou accipiens, propondo a prestação; o credor, verificando a identidade
do devedor e a qualidade do que lhe é apresentado, aceita‑a, assim se consu‑
mando o cumprimento. A teoria geral do contrato recuou, após Lehmann ter
teorizado o dever de abstenção139: na verdade, torna-se, no cumprimento de tal
dever, inviável apurar a presença de um “contrato”: não há nem oferta, nem
aceitação.

III. Conservou-se uma teoria limitada do contrato, defendida por Lehmann


e por Fikentscher140. Em certos casos, o cumprimento exige uma atuação jurí‑
dica. Assim ocorre, no Direito alemão da compra e venda, na qual a transferên‑
cia da propriedade exige seja a tradição, seja uma transcrição registal, necessaria‑
mente aceites e realizadas pelo credor e pelo devedor. Podemos complementar
com o cumprimento do contrato‑promessa, que requer, no cumprimento, a
conclusão do contrato definitivo. Noutras situações, como na prestação de ser‑
viço e nas obrigações de non facere, não é exigido qualquer contrato, para o
cumprimento.

IV. A teoria do negócio unilateral, patente em Manigk141 e em Rosen‑


berg142, apurava, na atuação do solvens, uma conduta humana livre e conforma‑
dora de consequências jurídicas. Múltiplas regras atinentes ao negócio teriam
aplicação. E como a vontade relevante seria, apenas, a do solvens, o cumpri‑
mento abre no domínio dos negócios unilaterais.

136
Andreas von Tuhr, Zur Lehre von der Anweisung, JhJb 48 (1904), 1-62 (5-6) e Allgemeiner Teil des
Deutschen Bürgerlichen Rechts, II/2 (1918), § 72 (83), referindo um acordo sobre a “causa”.
137 Friedrich Lent, Die Anweisung als Vollmacht und im Konkurse (1907), VI + 198 pp., 7 ss..

138 Bernhard Windscheid/Theodor Kipp, Lehrbuch des Pandektenrechts 2, 9.ª ed. (1906), § 342

(418‑419).
139 Heinrich Lehmann, Die Unterlassungspflicht im Bürgerlichen Recht (1906), 204 ss.; Ludwig Ennecce‑

rus/Heinrich Lehmann, Recht der Schuldverhältnisse/Ein Lehrbuch cit., 15.ª ed., § 60, II 2 e 3 (252-254).
140 Wolfgang Fikentscher, Schuldrecht, 9.ª ed. (1997), Nr. 269 (192). Outras indicações constam

de Gesa Kim Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung cit., 15 ss..


141 Alfred Manigk, Das Anwendungsgebiet der Vorschriften über Rechtsgeschäfte/

/Ein Beitrag zur Lehre vom Rechtsgeschäft (1901), XIII + 404, 44-45, explicando a necessidade do
Erfolgsabsicht.
142 Leo Rosenberg, Der Verzug des Gläubigers, JhJb 43, 141-298 (211-212); para mais elementos:

Gesa Kim Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung cit., 41 ss..

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   39

V. A teoria da realização efetiva da prestação (reale Leistungsbewirkung)


remonta a autores como Boehmer143 e Krestschmar144. Explicam que, no cum‑
primento, basta a realização material da conduta devida, sendo dispensáveis
elementos subjetivos. O simples facto de o solvens executar, perante o accipiens
ou por conta dele, a prestação devida, integraria o cumprimento, extinguindo
a obrigação. Nalguns casos, assim será. Esta constatação leva a que boa parte da
doutrina a considere, na maioria das situações (Larenz)145, como válida146. Tam‑
bém a jurisprudência do Bundesgerichtshof lhe tem dado apoio147. Todavia, esta
teoria não explica como reconduzir uma conduta liberatória a certa obrigação.
Também deixa na sombra as ocorrências em que a solutio tenha um necessário
conteúdo jurídico.

VI. A teoria da realização final da prestação (finale Leistungsbewir-


kung) assenta nas cuidadas reflexões de Gernhuber148 e de Beuthien149, sendo
retomada por Seibert150, por Bülow151, por Muscheler/Bloch152 e por Wie‑
ling153, entre outros154. Desta feita, sublinha‑se que o cumprimento não é iden‑

143 Gustav Boehmer, Die Erfüllungswille (1910), V + 98 pp., 34 e passim.


144 Paul Gustav Krestschmar, Die Erfüllung (1906), VII + 168 pp., 82 ss. e Beiträge zur Erfüllungs-
lehre, JhJb 85 (1935), 184-261 e 86 (1936/1937), 145-209.
145 Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts cit., 1, 14.ª ed., § 18, I, 5 (238); vide também Gesa Kim

Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung cit., 30 ss., com outras indicações.
146 Assim: Paul Oertmann, Kommentar zum BGB, 2 – Recht der Schuldverhältnisse, 3.ª/4.ª ed. (1910),

§ 362, Nr. 5 (257): não seria necessária uma vontade negocial; Philipp Heck, Grundriß des Schuldrechts
(1929, 2.ª reimp., 1974), 160 ss., 169 ss.; Rhona Fetzer, no Münchener Kommentar zum BGB, II,
9.ª ed. (2022), § 362, Nr. 10 (1336‑1337). Vide Rolf Stürner, no Jauernig, BGB/Kommentar, 17.ª
ed. (2018), § 362, Nr. 2 (609‑610).
147 BGH 3-dez.-1990, NJW 1991, 1294‑1297 (1295) e BGH 17-jul.-2007, NJW 2007, 3489‑3491

(3489/II), anot. Stephan Lorenz, idem, 3491.


148
Joachim Gernhuber, Die Erfüllung und ihre Surrogate sowie das Erlöschen der Schuldverhältnisse aus
anderen Gründen, 2.ª ed. (1983), XXIV + 513 pp., 103 ss..
149 Volker Beuthien, Zuwendender und Leistender, JZ 1968, 323-327 (323/I) e a já citada Zweckerrei-

chung und Zweckstörung im Schuldverhältnis (1969), XXIV + 331 pp., 6 ss., 282 ss..
150 Ulrich Seibert, Erfüllung durch finale Leistungsbewirkung (1982), XXI + 147 pp., 40 ss. e passim

e 147 (conclusão).
151 Peter Bülow, Grundfragen der Erfüllung und ihrer Surrogate, JuS 1991, 529‑536 (531/I): a vontade

exteriorizada do devedor é necessária para se saber o que ele pretendeu e a que obrigação imputar
a sua atuação.
152 Karlheinz Muscheler/Wolfgang E. Bloch, Erfüllung und Erfüllungssurrogate, JuS 2000, 729‑740

(731‑732).
153 Hans Wieling, Empfängerhorizont: Auslegung der Zweckbestimmung und Eigentumserwerb, JZ 1977,

291‑296 (291).
154 Gesa Kim Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung cit., 51 ss., com indicações.

RDC I (2023), 1, 9-43


40 António Menezes Cordeiro

tificável enquanto tal, se não se tiver em conta o seu sentido final ou a sua
função.

VII. Por fim e de acordo com a enumeração proposta, temos a teoria do


acordo de escopo (Zweckvereinbarungstheorie), apresentada por Ehmann155, por
Rother156 e por Weitnauer157, também entre outros158. Na formulação do pri‑
meiro dos citados autores, o cumprimento não é um contrato, mas antes um
acordo negocial das partes, relativo ao escopo da prestação159. O retomar desta
orientação teve como occasio imediata a decisão do BGH de 27‑fev.‑1967, onde
se discutia o seguinte160: um comprador que devia ao vendedor diversas quan‑
tias por múltiplos fornecimentos de mercadorias, fez um pagamento insufi‑
ciente para liquidar todas as dívidas; verificou-se, ainda, que estavam em causa
outros fornecedores, que beneficiavam de reserva de propriedade; não havendo
indicações, o BGH optou pela aplicação do § 366 do BGB, relativa à imputa‑
ção do cumprimento, funcionando perante vários devedores.

VIII. Nas literaturas latinas, a discussão em torno da natureza do cumpri‑


mento seguiu vias paralelas, ainda que menos analíticas161. Uma primeira ten‑
dência, considerada tradicional162, entendia o cumprimento como um negócio
de tipo contratual. Para tanto, fazia-se resultar o cumprimento de uma atuação
do solvens, recebida pelo accipiens: desenhar‑se‑ia, claramente, o nexo contra‑
tual. Tal orientação não vingaria: o cumprimento entendido como negócio
contratual não abarcava as hipóteses de adimplemento que se traduzissem em
meras atuações materiais, nem os tipos de cumprimentos que não requeressem
qualquer atuação do credor163.

155 Horst Ehmann, Die Funktion der Zweckvereinbarung bei der Erfüllung/Ein Beitrag zur causa solvendi,
JZ 1968, 549‑556 (553 ss.) e Ist die Erfüllung Realvertrag?, NJW 1969, 1833‑1837 (1836/II).
156 Werner Rother, Die Erfüllung durch abstraktes Rechtsgeschäft, AcP 169 (1969), 1‑33 (32‑33).

157
Hermann Weitnauer, Die Leistung, FS Ernst von Caemmerer (1978), 255‑293 (259), sublinhando
que esta orientação já surgia nos grandes romanistas do séc. XIX.
158 Gesa Kim Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung cit., 23 ss., com indicações.

159 Horst Ehmann, Ist die Erfüllung Realvertrag? cit., 1836/II.

160 BGH 27‑fev.‑1967, BGHZ 47 (1967), 168‑172 (171) = JZ 1967, 363‑364

= NJW 1967, 1223 (1223/II) = WM 1967, 395‑397 (395/II) = DB 1967, 632‑633 = BB 1967,
432‑433.
161 Adriano Vaz Serra, Do cumprimento como modo de extinção das obrigações, BMJ 34 (1953), 5‑212

(10 ss.), com largas transcrições de Enneccerus/Lehmann e de Heck. Vide Carmelo Scuto, Sulla
natura giuridica del pagamento, RDComm XIII (1915) 1, 353‑373 (355 ss.).
162 Michele Giorgianni, Pagamento (diritto civile), NssDI XII (1965), 321‑339 (329); Rosario Nicolò,

L’adempimento, 3.ª ed. (1975), 556; Ludovico Barassi, La teoria generale delle obbligazioni, III (1964), 35.
163 Pense-se nas obrigações de non facere.

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   41

O cumprimento viu, assim, negada a sua natureza contratual, sendo apre‑


sentado como um negócio unilateral e, depois, como um ato unilateral. Esta
última opinião tem recebido, por exemplo, os sufrágios de Nicolò164 e de Gior‑
gianni165; de um modo geral, a doutrina é sensível ao argumento de que o
ato‑cumprimento careceria de liberdade normativa.
Não têm, contudo, faltado orientações que defendem o cumprimento
como simples facto jurídico e doutrinas ecléticas.

12. Funcionalidade e diferenciação

I. A doutrina alemã mais recente parece aderir à teoria da realização efetiva


da prestação166, tomada, por Beckhaus, como um negócio unilateral de cum‑
primento167. Digamos que ela constitui um máximo denominador comum de
todos os tipos de cumprimento. E assim sendo, podemos recuperar a ideia que
temos defendido em diversos escritos: o cumprimento é um ato devido. Hoje
pensamos poder ir mais longe.

II. O cumprimento tem um sentido finalístico: ele visa ou integra o escopo


da própria obrigação168. De certo modo, confunde-se com ela. Por isso, o cum‑
primento afeiçoa, à prefiguração do momento em que se vai concretizar, toda
uma teia de prestações secundárias e de deveres acessórios que – sabemos hoje
– conferem o essencial da consistência às obrigações.
O cumprimento dá corpo ao programa de realização do interesse do cre‑
dor. Não é um evento pontual, que ponha termo a uma obrigação: antes um
roteiro complexo que, desde o início, interfere na configuração do vínculo.

164 Rosario Nicolò, Adempimento dell’ obbligo altrui (1936), 558.


165 Michele Giorgianni, Pagamento cit., 330; Alberto Mussatti, Note sul concetto di adempimento,
RDComm XIII (1915) 1, 677‑680 (679), para quem o cumprimento só secundariamente seria um
contrato.
166
Assim: Rhona Fetzer, no Münchener Kommentar cit., 3, 9.ª ed., § 362, Nr. 3 (1334); Rolf Stür‑
ner, em Jauernig, Kommentar cit., 15.ª ed., § 362, Nr. 2 (518); recordamos que, por detrás, está o
nome prestigioso de Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts cit., 1, 14.ª ed., 238 ss..
167 Gesa Kim Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung cit., maxime 395-396; vide, aí, 369 ss. e 386 ss..

168 Walter Zeiss, Leistung, Zuwendungszweck und Erfüllung, JZ 1963, 7‑10; Horst Ehmann, Die Funk-

tion der Zweckvereinbarung bei der Erfüllung/Ein Beitrag zur causa solvendi, JZ 1968, 540‑556; Volker
Beuthien, Zweckerreichung und Zweckstörung im Schuldverhältnis cit., 281 ss.. Por isso, a realização da
prestação fora da perspetiva do cumprimento pode originar enriquecimento sem causa.

RDC I (2023), 1, 9-43


42 António Menezes Cordeiro

III. A ordenação funcional169 do cumprimento deve ser balanceada entre


os dois extremos. Nas obrigações mais simples, ele é vivido como o termo
do processo obrigacional. Noutros casos, ele projeta uma geografia complexa
tendente à realização do fim da obrigação. Noutras, finalmente, ele dá corpo
à própria obrigação, verificando‑se em contínuo (obrigações duradouras).
A precisa função do cumprimento varia consoante o concreto tipo de obriga‑
ção em jogo. Apenas num plano de abstração elevado poderemos lidar com o
fenómeno, no seu conjunto.
Tudo visto: consideramo‑lo, hoje, como um espaço problemático autó‑
nomo ou, se se quiser, como um instituto capaz de sofrer concretizações
distintas.

IV. As diversas teorias historicamente surgidas para explicar o cumprimento


são úteis: facultam ângulos diversos da realidade em jogo. E prima facie, todas
detêm uma parcela de verdade. Com efeito:

(1) alguns cumprimentos exigem um acordo posterior específico entre as


partes: pense‑se no contrato‑promessa; o mesmo sucede, ainda que de
modo menos assumido, quando esteja em causa o cumprimento de
obrigações complexas, que exija ajustes entre as partes: empreitadas,
consórcios, situações de distribuição, sociedades e múltiplas hipóteses
comerciais;
(2) noutros, o devedor tem uma margem de decisão, que exerce por ato
unilateral: assim sucede com a concentração nas obrigações genéricas
(539.º), com a escolha nas alternativas (543.º/2) e com a faculdade
alternativa de pagar usando moeda com curso legal (558.º/1), entre
diversas situações;
(3) a prestação pode ser determinada em cada momento pelo credor (pres‑
tação de serviço subordinado, tipo trabalho) ou, inversamente, pelo
próprio devedor (serviço com autonomia técnica);
(4) normalmente e nos casos mais simples, a mera realização da prestação
integra o cumprimento;
(5) a prestação tem, sempre, uma dimensão finalística: tanto maior quan-
to mais complexas forem as operações envolvidas no cumprimento;
(6) num cumprimento, designadamente complexo, as partes têm de se
entender quanto ao escopo das operações que realizem: no sentido de
elas visarem um determinado cumprimento.

169Vide, além da literatura citada, Sascha Beck, Die Zuordnungsbestimmung im Rahmen der Leistung
(2008), 134 ss..

RDC I (2023), 1, 9-43


Estrutura da obrigação e dogmática do cumprimento   43

13. A unidade obrigação‑cumprimento; um conceito quadro

I. O enunciado acima sintetizado deixa entender que uma dogmática do


cumprimento não pode esquecer a riqueza do vínculo subjacente. Podemos
distinguir, grosso modo:

(1) obrigações materiais diretas: o cumprimento contenta-se com a rea‑


lização da prestação; ficam envolvidas obrigações de dare simples, de
facere que dispensem atuações do accipiens e de non facere;
(2) obrigações de conduta jurídica: a sua execução implica os atos previs‑
tos, com ou sem margem de decisões, por parte do devedor;
(3) obrigações que envolvam uma margem de decisão do solvens: há negó‑
cio, dada a liberdade de estipulação;
(4) obrigações mistas: combinam os elementos indicados.

II. Às modalidades de cumprimento, cabe acrescentar os deveres acessórios,


sempre presentes. Também eles se inscrevem no edifício que descreve cada vín‑
culo obrigacional. Sem a sua observância, não há cumprimento. As necessidades
práticas da vida real implicam simplificações de linguagem. E assim, quando
se diga que uma obrigação foi cumprida ou vai ser cumprida, pressupõe‑se a
execução da prestação principal e, implicitamente, o respeito, ativo ou passivo,
pelos deveres acessórios implicados. Cada cumprimento, aparentemente sim‑
ples, assume, ontologicamente, a natureza complexa do vínculo obrigacional
em jogo. No fundo, obrigação e cumprimento são uma unidade dinâmica: a
primeira acentua o ex ante e, o segundo, o ex post. Toda a dogmática obrigacio‑
nal desfila, assegurando a conexão com o sistema, base dos deveres acessórios.

III. Aqui chegados, resta considerar o cumprimento como um conceito‑


‑quadro. Transmite a ideia da concretização de um programa obrigacional aco‑
lhendo, no seu seio, as inumeráveis hipóteses a que o Direito das obrigações dá
corpo. Também neste nível se confirma a ideia de integração sistemática, chave
da dogmática civil dos nossos dias.

RDC I (2023), 1, 9-43


Direitos de personalidade e dados pessoais:
o que sobra para o Código Civil? * **
A. BARRETO MENEZES CORDEIRO

Sumário: 1. Enquadramento. 2. Bens de personalidade e dados pessoais. 3. Liberdades


de expressão e de imprensa. 4. Os sujeitos regulados pelo Direito da proteção de dados.
5. Tratamentos de dados pessoais: enquadramento. 6. Tratamentos efetuados no exercício
de atividades exclusivamente pessoais ou domésticas. 7. As vantagens do RGPD para os
sujeitos lesados. 8. Conclusões.

1. Enquadramento

I. Os avanços do Direito da proteção de dados, materializados no RGPD1,


colocam novos desafios ao Direito civil2, no constante movimento de influên‑

* O presente estudo foi elaborado tendo em vista integrar o Livro de Homenagem ao Professor Antó‑
nio Pinto Monteiro, onde será publicado.
** O Autor beneficiou, largamente, de várias conversas, sobre a relação entre o Direito Civil e o

Direito da Proteção de Dados, com os Professores Maria de Lurdes Pereira, Maria Raquel Rei, Diogo
Pereira Duarte, Francisco Rodrigues Rocha e com os Drs. João Ferreira Pinto, Inês Oliveira e João
Gabriel. A todos agradecemos a disponibilidade e paciência. Agradecemos, ainda, à Professora Maria
Raquel Rei pelas várias sugestões e comentários efetuados a propósito de uma primeira versão do
estudo. As conclusões defendidas apenas responsabilizam, naturalmente, o seu Autor.
1 Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016,

relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à
livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Pro‑
teção de Dados).
2 Para uma análise sistematizada e transversal desta interação: Philipp Hacker, Datenprivatrecht: Neue

Technologien im Spannungsfeld von Datenschutzrecht und BGB, Mohr Siebeck: Tubinga (2020).

RDC I (2023), 1, 45-63


46 A. Barreto Menezes Cordeiro

cia da periferia sobre o centro, típico da terceira sistemática3. No âmbito espe‑


cífico dos direitos de personalidade, a ascendência extravasa, largamente, esses
propósitos jus‑evolutivos, em razão de uma aparente comunhão de âmbitos de
aplicação materiais que pode implicar um esvaziamento do regime contido nos
artigos 70.º a 81.º do CC4.
Na origem desta deslocação, encontramos o conceito amplíssimo de dado
pessoal que, nos termos do disposto artigo 4.º, 1) do RGPD, engloba todas as
informações relativas a pessoas singulares, independentemente do conteúdo –
vida privada ou vida pública – ou da forma que a sua divulgação assuma – foto‑
grafia, imagem de vídeo ou escrita.
O impacto da hegemonia do direito à autodeterminação informacional5,
enquanto direito subjetivo agregador de toda a informação individual relativa a
cada sujeito, em face dos direitos de personalidade, manifesta‑se, igualmente, no
âmbito dos direitos fundamentais, com idêntica energia e independentemente
da base invocada: Constituição da República Portuguesa (CRP), Convenção
Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) ou Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia (CDFUE).
Não se crê, e nada o indica, que o legislador europeu estivesse ciente do
impacto prático‑aplicativo decorrente desta solução legislativa6. De resto, a
referida sobreposição não é nova: ocorria já durante a vigência da Lei de Pro‑
teção de Dados Pessoais7 e da Diretiva n.º 95/46/CE8, então transposta para a
ordem jurídica nacional9.

II. Esta evidente interação encontra‑se, porém, largamente por explorar,


tanto numa perspetiva teórica10, como no âmbito aplicativo do Direito: não se

3 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito civil, I, 4.ª ed., Almedina: Coimbra (2014), 130‑131.
4
Roland Rixecker, Anhang zu § 12. Das Allgemeine Persönlichkeitsrecht (Allg­PersönlR) em Münchener
Kommentar zum BGB, I, 9.ª ed., Beck: Munique (2021), Rn. 12
5 A. Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados: à luz do RGPD e da Lei n.º 58/2019,

Almedina: Coimbra (2020), 257 ss.


6 Em idêntico sentido: Andreas Sattler, Informationelle Privatautonomie: Synchronisierung von Daten­

schutz‑ und Vertragsrecht, Mohr Siebeck: Tubinga (2022), 18, nota 13.
7 Lei n.º 67/98, de 26 de outubro.

8
Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à
proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circu‑
lação desses dados.
9 Ansgar Ohly, Verändert das Internet unsere Vorstellung von Persönlichkeit und Persönlichkeitsrecht?, AfP

(2011), 428‑428, 438.


10 Rixecker, Allg­PersönlR cit., Rn. 12: esta interação tem sido grandemente negligenciada; Sattler,

Informationelle Privatautonomie cit., 18‑19: considerando que, no espaço alemão, este desinteresse dog‑
mático é um reflexo da natureza de Direito público tradicionalmente atribuída ao Direito da proteção

RDC I (2023), 1, 45-63


Direitos de personalidade e dados pessoais: o que sobra para o Código Civil?   47

conhece, entre nós11, qualquer decisão jurisprudencial em que ela tenha sido
analisada, apesar de serem vários os acórdãos onde isso se imporia.
A título exemplificativo, atente‑se ao acórdão RLx 8‑jul.‑202112. Aí, o
tribunal reconheceu que as imagens de vídeo constituíam dados pessoais; que
a sua subsequente divulgação consubstanciava um tratamento de dados pes‑
soais; e que os fundamentos invocados pelo responsável pelo tratamento não
eram subsumíveis a qualquer das causas de licitude do artigo 6.º do RGPD13.
Todavia, o tribunal aplicou o regime comum da responsabilidade civil e não o
regime positivado no artigo 82.º do RGPD, sem apontar qualquer razão.

III. No presente estudo, pretende‑se avaliar em que medida o regime jurí‑


dico dos direitos de personalidade foi, do ponto de vista prático‑aplicativo,
afetado pela entrada em vigor do RGPD. Esta análise pressupõe, grosso modo,
que se identifique as situações‑tipo hoje reguladas pelo Direito da proteção de
dados e as situações‑tipo que permanecem sujeitas ou apenas sujeitas ao Direito
comum.

2. Bens de personalidade e dados pessoais

I. Os direitos de personalidade, nos moldes em que foram concebidos14 e


positivados no Código Civil de 66, correspondem a efetivos direitos subjetivos.
Nesse sentido, comungam, entre as demais, da característica da inerência15 – p.
ex.: direito à vida de A → a vida de A; direito à imagem de B → a imagem de
B; ou direito ao nome de C → o nome de C; etc – tão‑bem captada na parte

de dados. Não conseguimos suportar este argumento, na medida em que, sendo correto, significaria
que a interação do ponto de vista constitucional fosse estudada, o que também não acontece.
11 No espaço alemão, o destaque vai para o seguinte acórdão do Tribunal Constitucional Federal

alemão: BVerfG 6‑nov.‑2019, 122 GRUR 1 (2020), 74‑88.


12 RLx 8‑jul.‑2021 (Ana de Azeredo Coelho), proc. n.º 174/20.4T8PDL.L1‑6.

13
Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados cit., 165 ss.
14 História dos direitos de personalidade: António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito civil, IV, 5.ª

ed., com colaboração de A. Barreto Menezes Cordeiro, Almedina: Coimbra (2019), 45 ss; Diogo
Costa Gonçalves, Lições de direitos de personalidade: dogmática geral e tutela nuclear, Princípia: Cascais
(2022), 128 ss e Notas breves sobre as origens dos direitos de personalidade, II RDC (2017) 3, 655‑672;
Thomas Duve, Comentário aos §§ 1‑14 do BGB em HKK‑BGB, I, Mohr Siebeck: Tubinga (2003),
204 ss; Horst‑Peter Götting, Geschichte des Persönlichkeitsrecht em Götting/Schertz/Seitz Handbuch
Persönlichkeitsrecht: Presse‑ und Medienrecht, 2.ª ed. Beck: Munique (2019), 33 ss.
15 A expressão inerência é aqui empregue numa aceção ampla, de forma a designar a intrínseca liga‑

ção que existe entre cada direito subjetivo e um bem concreto, independentemente da sua natureza
real ou obrigacional.

RDC I (2023), 1, 45-63


48 A. Barreto Menezes Cordeiro

final da definição de direito subjetivo de Menezes Cordeiro: permissão norma‑


tiva específica de aproveitamento de um bem16.
Nem todos os direitos subjetivos são, naturalmente, direitos de personali‑
dade, pelo que esta recondução é insuficiente para os definir. Os direitos de
personalidade representam direitos subjetivos que estão intrinsecamente ligados
ao ser humano enquanto pessoa individualmente considerada – recuperando os
exemplos supra mencionados: o direito à vida de A; o direito à imagem de B;
ou o direito ao nome de C.
Por fim, apenas podem ser considerados de personalidade os direitos sub‑
jetivos que, estando intrinsecamente ligados ao ser humano enquanto pessoa
individualmente considerada, permitam a aplicação do regime constante dos
artigos 70.º a 81.º do CC.

II. Nos termos do disposto no artigo 4.º, 1) do RGPD, por dado pessoal
entende‑se toda “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou
identificável”17. Toda a informação é considerada relevante, para efeitos de
aplicação do RGPD. Não há, como o Tribunal Constitucional Federal ale‑
mão (Bundesverfassungsgericht – BVerfG) estabeleceu na década de 80 do século
passado, informação não merecedora de proteção jurídica, por muito insignifi‑
cante ou fútil que possa parecer18.
Com propósitos meramente exemplificativos, esta informação pode res‑
peitar (i) a elementos identificativos da pessoa – nome, data de nascimento,
número de cartão de cidadão ou morada; (ii) características físicas – sexo,
género, altura, peso, cor dos olhos ou do cabelo; (iii) considerações íntimas
– crenças, opiniões, desejos, posições políticas ou religiosas; (iv) profissionais
e académicas – títulos e graus ou estatutos profissionais e laborais; ou (v) patri‑
moniais: direitos de propriedade ou contratos celebrados. O conceito de infor‑
mação abrange tanto dados objetivos ou factuais – p. ex.: A vive em Lisboa;
como dados subjetivos – p. ex.: A não é um trabalhador honesto ou B é mau
pagador. A amplitude do conceito, historicamente criticada por alguma dou‑
trina, tem vindo a intensificar‑se em razão dos desenvolvimentos tecnológicos:
é hoje cada vez mais rara a informação que não se encontra online19. O RGPD

16 Menezes Cordeiro, Tratado, I cit., 892.


17
Sobre o conceito de dado pessoal: Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados cit.,
107 ss.
18 BVerfG 15‑dez.‑1983, 37 NJW (1984), 419‑428, 422.

19 Bert‑Jaap Koops, The Trouble with European Data Protection Law, 4 IDPL (2014), 250‑261, 251

ss; Nadezhda Purtova, The Law of Everything. Broad Concept of Personal Data and Future of EU Data
Protection Law, 10 Law Innov Technol (2018), 40‑81.

RDC I (2023), 1, 45-63


Direitos de personalidade e dados pessoais: o que sobra para o Código Civil?   49

é, para mais, aplicável independentemente do formato em que a informação foi


tratada ou do suporte em que se encontra armazenada.
A assunção de um conceito tão amplo de dado pessoal permite ou impõe,
consoante a natureza atribuída à relação entre estes dois ramos jurídicos, a apli‑
cação do RGPD sempre que seja referido o nome de uma pessoa singular,
utilizada a sua imagem ou qualquer outro elemento que permita identificar um
sujeito concreto, independentemente de essa menção ser ou não violadora do
direito à integridade moral. Como ponto de partida, ou seja, somente aten‑
dendo à definição de dado pessoal constante do artigo 4.º, 1) do RGPD, pode‑
mos assumir que apenas as violações do direito à vida e do direito à integridade
física escapam à omnipresença do Direito da proteção de dados.

III. Alguma doutrina alemã pretende distinguir os dois conceitos por refe‑
rência aos propósitos prosseguidos20: (i) o Direito da proteção de dados visa
limitar o tratamento de dados pessoais às situações legalmente permitidas; e (ii)
o regime dos direitos de personalidade visa regular, civilmente, violações de
direitos intrínsecos a cada pessoa, em todas as suas diferentes dimensões – física,
moral e social.
Do ponto de vista ontológico, o Direito da proteção de dados trabalha com
informações, procedendo, em grande medida, a uma coisificação dos sujeitos,
enquanto o Direito de personalidade, citando o artigo 70.º/1 do CC, “protege
os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua persona‑
lidade física ou moral”. E numa perspetiva constitucional, o direito à autode‑
terminação informacional, nos termos em que surge positivado no artigo 35.º
da CRP, está longe de cobrir os vários direitos de personalidade elencados nos
artigos 25.º e 26.º da CRP.
Todas estas distinções podem, genericamente, ser suportadas. Todavia, não
têm utilidade do ponto de vista prático‑aplicativo do Direito, na medida em
que não permitem afastar a sobreposição das matérias: a violação dos direitos de
personalidade especiais, independentemente da forma como essa se manifesta,
consubstancia, salvo nos casos da vida e da integridade física, concomitante‑
mente, tratamento de dados pessoais21.

20
Karl‑Nikolaus Peifer, Persönlichkeitsrechte im 21. Jahrhundert – Systematik und Herausforderungen, 68
JZ 18 (2013), 853‑864, e, mais recentemente, do mesmo Autor: Das Recht auf Vergessenwerden – ein
neuer Klassiker vom Karlsruher Schlossplatz Zugleich Besprechung von BVerfG „Recht auf Vergessen I und
II“, 122 GRUR 1 (2020), 34‑37, 36. É também essa a posição do Tribunal Constitucional Federal
alemão: BVerfG 6‑nov.‑2019, GRUR (2020), 74‑88
21 Rixecker, Anhang zu § 12. cit., Rn. 16: em idêntico sentido.

RDC I (2023), 1, 45-63


50 A. Barreto Menezes Cordeiro

IV. A justaposição entre o Direito de personalidade e o Direito da proteção


de dados não encontra na sua origem uma consonância dos bens protegidos
ou dos propósitos prosseguidos. Ela é fruto do âmbito de aplicação material do
RGPD, decorrente não apenas do conceito amplíssimo de dado pessoal, mas
também dos objetivos prosseguidos pelo diploma. Nos termos do seu artigo
1.º/2, não lhe cabe, apenas, proteger as pessoas singulares contra tratamentos
ilícitos dos seus dados, mas defender “os direitos e as liberdades fundamentais
das pessoas singulares, nomeadamente o seu direito à proteção dos dados pes‑
soais”. Mesmo reconhecendo, como introdutoriamente se fez, que o legislador
europeu não representou estar a promover uma justaposição, mesmo que par‑
cial, com o regime dos direitos de personalidade dos Estados‑Membros, o texto
legal positivado é inequívoco.

V. O facto de, do ponto de vista ontológico e jurídico, lidarmos com bens


jurídicos distintos, permite, porém, afastar a natureza especial do Direito da
proteção de dados, na sua relação com o Direito civil. A assunção da posição
inversa impediria, do ponto de vista jurisprudencial, a aplicação do regime dos
direitos de personalidade sempre que os pressupostos de aplicação do RGPD se
encontrassem preenchidos.
O Direito da proteção de dados não surge, historicamente, com o propósito
de melhor proteger os bens de personalidade, nem as normas do RGPD foram
concebidas nesse sentido. Nestes termos, caberá ao putativo lesado, na medida
em que os pressupostos de ambos os caminhos se encontrarem cumpridos,
decidir a que regime de tutela recorrer: o do Código Civil ou o do RGPD.

VI. Voltando à sobreposição dos dois Direitos, será de assumir, numa pers‑
petiva abstrata, ou seja, sem considerar as especificidades de cada regime, que o
RGPD regula todas as violações dos direitos de personalidade, com exceção do
direito à vida e do direito à integridade física – repare‑se que qualquer notícia,
fotografia ou imagem de vídeo relativa a eventuais violações do direito à vida
ou do direito à integridade física já é abrangida.

3. Liberdades de expressão e de imprensa

I. O BVerfG, no Acórdão Direito ao Esquecimento I, datado de 6 de


novembro de 201922, sustentou a não aplicação do direito à autodeterminação

22 BVerfG 6‑nov.‑2019, GRUR (2020), 74‑88.

RDC I (2023), 1, 45-63


Direitos de personalidade e dados pessoais: o que sobra para o Código Civil?   51

informacional à divulgação pública de informações, no âmbito das liberdades


de expressão e de imprensa23.
Para o BVerfG, o direito à autodeterminação informacional foi especifi‑
camente desenvolvido para impedir a recolha de dados pessoais e a sua sub‑
sequente utilização, em especial com o propósito de influenciar, controlar ou
traçar perfis24. Não é isso que está em causa, prossegue o BVerfG, na divulgação
pública de informação. Estes casos respeitam a outros direitos de personalidade,
nomeadamente o direito à reserva da intimidade da vida privada25. Numa pers‑
petiva conceitual, o BVerfG sublinha que o direito à autodeterminação não foi
concebido para proteger toda e qualquer utilização de informação relativa a
sujeitos singulares. Esta solução, conclui, levaria a um esvaziamento de outros
direitos fundamentais26.
Do ponto de vista do Direito europeu e da sua interação com os Direitos
nacionais dos Estados‑Membros, o BVerfG defende a sua interpretação argu‑
mentando que não se busca uma aplicação uniforme dos direitos fundamentais
em todo o território na União, mas apenas uma efetiva proteção dos sujeitos,
independentemente do direito fundamental em concreto invocado pelos tri‑
bunais nacionais27.

II. O acórdão, recebido com algum ceticismo por parte da doutrina local28,
para além de não analisar o RGPD – Direito vigente em território alemão –
desconsidera a jurisprudência constante do TJUE no sentido da aplicação deste
diploma à divulgação pública de dados pessoais com propósitos jornalísticos29.
Peifer, crítico do BVerfG, explora a possibilidade de a sua solução se sustentar
no artigo 85.º do RGPD. O preceito estabelece, genericamente, que os Esta‑
dos‑Membros devem conciliar o RGPD com as liberdades de expressão e de
imprensa. Todavia, como bem concluiu Peifer, não é possível daqui retirar
que, estando em causa estas liberdades, o RGPD não seja aplicável, nem, muito

23
Cit., 82.
24 Cit., 81.
25 Cit., 82.

26 Cit., 82.

27 Cit., 74: Conclusões 1.a) e b).

28 Peifer, Das Recht auf Vergessenwerden cit., 36; Rixecker, Anhang zu § 12. cit., Rn. 16; Hacker,

Datenprivatrecht cit., 520 ss: acompanha o BVerfG na não sujeição do conceito alemão de direito à
autodeterminação informacional ao Direito da União, atendendo a que os titulares dos dados estão
sempre protegidos. Todavia, já não o faz a propósito dos regimes de responsabilidade civil; neste
ponto, esclarece, o artigo 82.º do RGPD é Direito especial, pelo que prevalece sempre sobre o BGB.
29 TJUE 24‑fev.‑2019, proc. C‑345/17 (Buivids); TJUE 16‑dez.‑2008, proc. C‑73/07 (Satamedia).

RDC I (2023), 1, 45-63


52 A. Barreto Menezes Cordeiro

menos, que essa informação não seja subsumível ao conceito de dado pessoal30.
A aplicação do artigo 85.º do RGPD pressupõe sempre um exercício de pon‑
deração entre o direito à autodeterminação informacional e as liberdades de
expressão e de imprensa, em tudo semelhante ao que se verifica em relação à
colisão destas duas liberdades com o direito à integridade moral.

III. Em abstrato, os Estados‑Membros poderiam, em face do conteúdo


do artigo 85.º do RGPD, positivar, internamente, um regime especial para a
colisão (i) das liberdades de expressão e de imprensa com (ii) o direito à auto‑
determinação informacional, mais favorável aos primeiros31. Todavia, isso não
se verifica entre nós: a solução prevista no artigo 24.º da Lei n.º 58/2019 não só
não consagrou um regime distinto, como acautela, expressamente, os direitos
de personalidade. Atente‑se ao esclarecedor artigo 24.º/2 da Lei n.º 58/2019:

O exercício da liberdade de informação, especialmente quando revele dados


pessoais previstos no n.º 1 do artigo 9.º do RGPD e no artigo 17.º da presente lei,
deve respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição
da República Portuguesa, bem como os direitos de personalidade nela e na legis‑
lação nacional consagrados.

Nesse sentido, não cremos que seja possível sustentar que, partindo dos
mesmos factos – p. ex.: divulgação online de informação relativa à vida privada
de A – a solução preconizada, do ponto de vista da colisão com as liberdades de
expressão e de imprensa, seja distinta consoante se reconduza essa informação
ao direito à reserva sobre a intimidade da vida privada ou ao direito à autode‑
terminação informacional.

4. Os sujeitos regulados pelo Direito da proteção de dados

I. Numa perspetiva subjetiva, o Direito da proteção de dados regula, grosso


modo, os direitos e os deveres de três categorias principais de sujeitos: (i) os titu‑
lares dos dados; (ii) os responsáveis pelo tratamento; e (iii) os subcontratantes.
Em face dos propósitos aqui prosseguidos, circunscreveremos a nossa análise
aos dois primeiros. Como se verifica nos demais Direitos privados regulados,
a interação destes vários sujeitos é supervisionada por uma entidade indepen‑

30
Peifer, Das Recht auf Vergessenwerden cit., 36.
31 Temos dúvidas que esta diferenciação pudesse ser aceite constitucionalmente.

RDC I (2023), 1, 45-63


Direitos de personalidade e dados pessoais: o que sobra para o Código Civil?   53

dente, in casu denominada de autoridade de controlo: a Comissão Nacional de


Proteção de Dados.

II. O RGPD não fornece uma definição de titular dos dados. O seu preen‑
chimento é alcançado por intermédio do conceito de dados pessoais. Recu‑
pere‑se o disposto no artigo 4.º, 1) do RGPD: ““Dados pessoais”, informa‑
ção relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (“titular dos
dados”)”. Para efeitos do RGPD, apenas relevam os dados pessoais das pessoas
singulares, sendo que apenas estas são incluídas no conceito de titular dos dados,
indiretamente preenchido no artigo 4.º, 1) do RGPD32.
Ao contrário do que se verifica em relação aos dados pessoais das pessoas
falecidas33, o RGPD não contém qualquer cláusula de abertura ou aberta34
que permita aos Estados‑Membros estender o âmbito de aplicação material
do RGPD às pessoas coletivas. Trata‑se de uma opção legislativa e não de
uma característica intrínseca ou inata ao Direito da proteção de dados35. Por
contraste com o RGPD, a Diretiva 95/46/CE36 – diploma que o antecedeu –
continha uma cláusula de abertura com esse alcance37, tendo sido empregue por
alguns Estados‑Membros38.
O TJUE39, confrontado com a necessidade de interpretar o artigo 8.º/1 da
CDFUE – “Todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pes‑
soal que lhes digam respeito” – alcançou idêntico resultado, tendo afastado as
pessoas coletivas do seu âmbito de proteção40.

32 Considerando 14, p. 2 do RGPD: “O presente regulamento não abrange o tratamento de dados


pessoais relativos a pessoas coletivas, em especial a empresas estabelecidas enquanto pessoas coletivas,
incluindo a denominação, a forma jurídica e os contactos da pessoa coletiva”.
33 Considerando 27 do RGPD.

34
Sobre as cláusulas abertas ou de abertura: Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados
cit., 41.
35 Bart von der Sloot, Do Privacy and Data protection Rules Apply to Legal Persons and Should They?

A Proposal for a Two‑Third System, 31 CLSR (2015), 26‑45; Michael Knopp, Dürfen juristische Perso-
nen zum betrieblichen Datenschutzbeauftragten bestellt werden?, 39 DuD (2015), 98‑102.
36 Directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa

à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre cir‑
culação desses dados.
37 Considerando 24 da Directiva 95/46/CE.

38 P. ex.: Áustria.

39 TJUE 9‑nov.‑2010, proc. C‑92/09 e C‑93/09 (Schecke), 52.

40 Gregor Heissl, Können juristische Personen in ihrem Grundrecht auf Datenschutz verletzt sein?, EuR

(2017), 561‑571.

RDC I (2023), 1, 45-63


54 A. Barreto Menezes Cordeiro

O regime dos direitos de personalidade conserva, consequentemente, toda


a sua aplicação no caso de violações cometidas, nesse âmbito, contra pessoas
coletivas41.

III. Por responsável pelo tratamento entende‑se, nos termos do disposto no


artigo 4.º, 7) do RGPD42:

a pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, a agência ou outro organismo


que, individualmente ou em conjunto com outras, determina as finalidades e os
meios de tratamento de dados pessoais; sempre que as finalidades e os meios desse
tratamento sejam determinados pelo direito da União ou de um Estado‑Membro,
o responsável pelo tratamento ou os critérios específicos aplicáveis à sua nomeação
podem ser previstos pelo direito da União ou de um Estado‑Membro.

O TJUE tem assumido uma interpretação ampla do conceito de responsá‑


vel pelo tratamento de modo a proteger os titulares dos dados43. À luz da sua
jurisprudência constante e atendendo aos propósitos do presente estudo, são
responsáveis pelo tratamento os proprietários de jornais44 e de páginas online45,
assim como os gestores de páginas de fãs de redes sociais46. Todavia, o TJUE
ainda não se pronunciou sobre se também os utilizadores de redes sociais o
são, quando disponibilizam dados de terceiros – p. ex.: fotografias, imagens de
vídeo ou informação relativa à vida privada.
Julgamos que sim. Quando, por exemplo, A coloca uma fotografia de B
no Facebook, disponibiliza informação no Twitter sobre a sua vida privada
ou o insulta no Instragram está a divulgar dados pessoais, através dos meios e
com as finalidades que o próprio determina. Certamente que os utilizadores de
redes sociais não consubstanciam o protótipo de responsável pelo tratamento,
mas a sua subsunção ao conceito do artigo 4.º, 7) do RGPD é manifesta. Esta
recondução é indispensável para a aplicação do regime da responsabilidade civil
do artigo 82.º do RGPD, circunscrito a violações do RGPD cometidas por
responsáveis pelo tratamento e por subcontratantes.

41 Por todos: Menezes Cordeiro, Tratado, IV cit., 120 ss.


42 Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados cit., 307 ss e Comité Europeu para a
Proteção de Dados, Orientações 07/2020 sobre os conceitos de responsável pelo tratamento e subcontratante
no RGPD, v. 2.0, 7‑jul.‑2020.
43 TJUE 13‑mai.‑2014, proc. C‑131/12 (Google Spain), 34; TJUE 5‑jun.‑2018, proc. C‑210/16

(Wirtschaftsakademie), 27‑28; TJUE 29‑jul.‑2019, proc. C‑40/17 (Fashion ID), 66.


44 TJUE 13‑mai.‑2014, proc. C‑131/12 (Google Spain).

45 TJUE 6‑nov.‑2003, proc. C‑101/01 (Lindqvist).

46 TJUE 5‑jun.‑2018, proc. C‑210/16 (Wirtschaftsakademie).

RDC I (2023), 1, 45-63


Direitos de personalidade e dados pessoais: o que sobra para o Código Civil?   55

Não cremos que a seguinte passagem do acórdão Wirtschaftsakademie47:

Ora, se o simples facto de utilizar uma rede social como o Facebook não torna
um utilizador do Facebook corresponsável por um tratamento de dados pessoais
efetuado por esta rede, importa, em contrapartida, sublinhar que o administrador
de uma página de fãs alojada no Facebook, com a criação de tal página, oferece à
Facebook a possibilidade de colocar cookies no computador ou em qualquer outro
aparelho da pessoa que tenha visitado a sua página de fãs, independentemente de
esta pessoa ter ou não conta no Facebook.

possa ser invocada para contestar esta posição, na medida em que se reporta
aos dados pessoais de utilizadores do Facebook que podem ser recolhidos na
decorrência da utilização da plataforma e não à disponibilização de dados pes‑
soais pelo próprio dono da página.

5. Tratamentos de dados pessoais: enquadramento

I. O conceito de tratamento assume um papel nuclear no Direito da pro‑


teção de dados. É o tratamento de dados pessoais e não apenas a existência de
dados pessoais, que espoleta, evidentemente, a aplicação do RGPD48.
Por tratamento entende‑se, nos termos do disposto no artigo 4.º, 2) do
RGPD:

 ma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou


u
sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatiza‑
dos, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação,
a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por
transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou
interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição.

Esta definição legal decompõe‑se em três elementos: (i) uma operação ou


conjunto de operações; (ii) efetuadas sobre dados pessoais; e (iii) por meios
automatizados ou não automatizados.

II. O termo operação é aqui empregue, primordialmente, no sentido de


ato jurídico efetuado sobre dados pessoais, ou seja, ato com relevância jurídica

47
TJUE 5‑jun.‑2018, proc. C‑210/16 (Wirtschaftsakademie), 35.
48 Sobre o conceito de tratamento: Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados cit., 143 ss.

RDC I (2023), 1, 45-63


56 A. Barreto Menezes Cordeiro

ou ao qual o Direito associa a produção de efeitos jurídicos49. A expressão ope‑


rações inclui, numa perspetiva agregadora, vários atos, jurídicos ou materiais,
relativos a dados pessoais.
O legislador europeu, deliberadamente, recorreu a um conceito amplo e
aberto e que não se circunscreve aos vários exemplos de tratamentos elencados
no artigo 4.º, 2) do RGPD: o uso da locução “tais como” é conclusivo.

III. Nem todos os tratamentos de dados pessoais se encontram sujeitos


ao RGPD, mas somente os que, nos termos do disposto no artigo 2.º/1 do
RGPD, sejam realizados (i) por meios total ou parcialmente automatizados; ou
(ii) por meios não automatizados, desde que os dados tratados se encontrem
contido em ficheiros ou a eles se destinem.
Não consta do texto do RGPD e dos extensos considerados que o acom‑
panham uma definição de tratamento automatizado, mesmo que por simples
aproximação. Trata‑se de uma decisão deliberada e não de uma lacuna: preten‑
deu‑se, como o legislador europeu esclarece no considerando 15 do RGPD,
evitar que os eventuais preenchimentos preconizados se tornassem obsoletos
em razão de avanços tecnológicos. Por tratamento por meios automatizados
podemos considerar, grosso modo, as operações sobre dados pessoais que envol‑
vam equipamentos de processamento computadorizados de dados50.
A expressão tratamento por meios não automatizada é empregue como
sinónimo de tratamento manual51, ou seja, uma operação sobre dados pessoais
que não envolve a utilização de equipamentos computadorizados de dados – p.
ex.: a recolha de dados através de uma caneta e papel ou na destruição física de
sistemas de armazenamento de dados (data carriers)52.

IV. O RGPD regula apenas os tratamentos não automatizados de dados


relativos a ficheiros ou a eles destinados. Por ficheiro entende‑se, nos termos
do artigo 4.º, 6), (i) qualquer conjunto de dados pessoais; (ii) estruturado; e (iii)
acessível segundo critérios específicos53.

49 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito civil, II, 5.ª ed., com a colaboração de A. Barreto
Menezes Cordeiro, Almedina: Coimbra (2021), 83. Reimer, Anotação ao artigo 4.º, 2) do RGPD em
Sydow Europäische Datenschutzgrundverordnung Handkommentar, 2.ª ed., Nomos: Baden‑Baden (2018),
Rn. 47: considerando que o tratamento pressupõe sempre uma ação.
50 Kühling/Raab, Anotação ao 2.º do RGPD em Kühling/Buchner Datenschutz‑Grundverordnung,

Bundesdatenschutzgesetz Kommentar, 2.ª ed., Beck: Munique (2018), Rn. 15.


51 Considerando 15, p. 2.

52 Herbst, Anotação ao artigo 4.º, 2) do RGPD em Kühling/Buchner cit., Rn. 18.

53 O conceito de ficheiro foi especialmente analisado em TJUE 10‑jul.‑2018, proc. C‑25/17 (Tes-

temunhas de Jeová).

RDC I (2023), 1, 45-63


Direitos de personalidade e dados pessoais: o que sobra para o Código Civil?   57

O primeiro elemento (elemento interno) não suscita especiais dificuldades:


o ficheiro pressupõe uma compilação de vários dados pessoais, independente‑
mente da sua natureza, do formato em que a informação tenha sido recolhida
ou do suporte em que conste54. O legislador não exige que este conjunto de
dados pertença a vários titulares distintos, mas somente que representem mais
do que um dado pessoal55.
O requisito da estrutura (elemento externo) deve ser interpretado de
forma ampla, não se cingindo ao preenchimento proposto para a estruturação,
enquanto modalidade de tratamento de dados pessoais56. A expressão surge
aqui empregue no sentido de organização, ou seja, os dados devem ser arru‑
mados através de um qualquer processo ou metodologia, mesmo que pouco
elaborado57. Os dados pessoais não podem, consequentemente, estar (des)
organizados de forma aleatória ou ter uma disposição variável58. É igualmente
irrelevante, como resulta da parte final da definição, se o ficheiro se encontra
estruturado de modo centralizado, descentralizado ou repartido segundo crité‑
rios funcionais ou geográficos. O não preenchimento deste requisito traduz‑se
na não aplicação do RGPD59.
Por fim, o conjunto de dados pessoais deve ser acessível segundo critérios
específicos, ou seja, o responsável dos dados ou um terceiro que possa licita‑
mente aceder ao ficheiro deve conseguir consultá‑lo através de critérios pré‑
‑determinados – como exemplos mais comuns, pense‑se numa sistematização
com base em critérios alfabéticos (de A a Z) ou critérios numéricos (de 0 a ∞).

V. A maioria dos litígios que hoje envolvem direitos de personalidade –


que não o direito à vida e o direito à integridade física – assentam no trata‑
mento automatizado de dados pessoais – p. ex.: a divulgação, no mundo digital,
de fotografias ou de informações relativas à vida privada quer seja no âmbito
de redes sociais ou em sites de notícias; ou violações do direito à integridade
moral, também no âmbito de redes sociais ou de sites de notícias. Em relação,

54 Ernst, Anotação ao artigo 4.º, 6) do RGPD em Paal/Pauly Datenschutz‑Grundverordnung – Bundes-


datenschutzgesetz, 2.ª ed., Beck: Munique (2018), Rn. 52: sublinhando que também um vídeo ou
áudio pode consubstanciar um ficheiro, à luz desta definição.
55 Gola, Anotação ao artigo 4.º, 6) em Gola Datenschutz‑Grundverordnung – DS‑GVO (EU) 2016/679

Kommentar, 2.ª ed., Beck: Munique (2018), Rn. 45.


56 Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados cit., 145‑146.

57 Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados cit., 146.

58 Kühling/Raab, Anotação ao 4.º, 6) do RGPD em Kühling/Buchner cit., Rn. 3.

59 Considerando 15, p. 3: “Os ficheiros ou os conjuntos de ficheiros bem como as suas capas, que

não estejam estruturados de acordo com critérios específicos, não deverão ser abrangidos pelo âmbito
de aplicação do presente regulamento”.

RDC I (2023), 1, 45-63


58 A. Barreto Menezes Cordeiro

especificamente, aos dados pessoais constantes de jornais físicos, devem ter‑se


por preenchidos os requisitos relativos ao tratamento, quer por pressuporem,
inevitavelmente, o recurso a meios automatizados de tratamento, quer por sub‑
sunção ao conceito de ficheiro.
Percorrendo os vários direitos de personalidade expressamente menciona‑
dos no CC e na CRP, é possível identificar, pelo menos, as seguintes situações
que não estão abrangidas pelo RGPD: (i) cartas missivas confidenciais elabo‑
radas por recurso a meios manuais – papel e caneta; (ii) violações do direito à
reserva sobre a intimidade da vida privada que não assentem na recolha de dados
– p. ex.: mirones ou violação de domicílio; (iii) retratos de pessoas singulares
realizados manualmente; ou (iv) insultos proferidos presencialmente sem que
qualquer registo automatizado áudio, visual ou de outra natureza o comprove.

6. 
Tratamentos efetuados no exercício de atividades exclusivamente
pessoais ou domésticas

I. O artigo 2.º/2 do RGPD contém quatro exceções à sujeição do trata‑


mento de dados pessoais realizados total ou parcialmente por meios automa‑
tizados ou por meios manuais, desde que contidos ou destinados a ficheiros.
A saber: tratamentos efetuados60 (a) no exercício de atividades não sujeitas à
aplicação do Direito da União61; (b) pelos Estados‑membros no exercício de
atividades relacionadas com a política externa e a segurança comum da União62;
(c) por uma pessoa singular no exercício de atividades exclusivamente pessoais
ou domésticas; e (d) pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção,
investigação, deteção e repressão de infrações penais ou de execução de sanções
penais, incluindo a salvaguarda e a prevenção de ameaças à segurança pública63.
Em face dos propósitos do presente estudo, interessa, especialmente, considerar
a alínea c)64.

60 Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados cit., 87 ss.


61 Artigo 5.º do TUE.
62
Considerando 16 do RGPD.
63 Considerando 19 do RGPD. Estes tratamentos são regulados pela Lei n.º 59/2019, de 8 de agosto,

que procedeu à transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva (UE) 2016/680, de 27 de abril,
relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas
autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações
penais ou execução de sanções penais, e à livre circulação desses dados, e que revoga a Decisão‑Qua‑
dro 2008/977/JAI do Conselho.
64 Alguma doutrina mostra‑se critica desta exceção, em virtude da capacidade que as pessoas comuns

têm hoje de armazenar dados pessoais: Alexander Rossnagel/Maxi Nebel/Philipp Richter,

RDC I (2023), 1, 45-63


Direitos de personalidade e dados pessoais: o que sobra para o Código Civil?   59

II. Do ponto de vista subjetivo, esta exceção apenas se aplica a tratamentos


realizados por uma ou mais pessoas singulares65, mas já não por pessoas cole‑
tivas, independentemente dos propósitos prosseguidos, incluindo os de índole
benemérita ou caridosa66. A natureza pessoal ou doméstica respeita à atividade
prosseguida pela pessoa que procede ao tratamento e não à pessoa cujos dados
são tratados67.
O RGPD não contém uma definição de atividades pessoais ou domés‑
ticas, nem estas expressões têm tradição no Direito da União. No conside‑
rando 18 do RGPD, o legislador europeu contrapõe‑nas a atividades profissio‑
nais ou comerciais. Todavia, volta a não clarificar como se devem preencher
estas últimas. A ratio que subjaz a esta exceção extravasa a simples procura de
lucro, tanto numa perspetiva abstrata, como numa perspetiva imediata: para
isso mesmo apontou o legislador ao ter eliminado, da versão final do RGPD,
a locução “sem fins lucrativos”, prevista na Proposta original elaborada pela
Comissão68. Assim, não são igualmente abrangidos pela alínea c) os tratamentos
com propósito políticos, culturais ou científicos.
O TJUE tem apresentado as atividades pessoais e domésticas como as “que
se inserem no quadro da vida privada ou familiar”69. A expressão familiar pode,
todavia, ser enganadora, na medida em que também tratamentos de dados rela‑
tivos a amigos ou até conhecidos, bem como a desportistas, artistas ou demais
figuras públicas70, desde que associados a hobbies, se encontram abrangidos por
esta exceção.
Como exemplos de tratamentos realizados com propósitos exclusivamente
pessoais ou domésticos, contam‑se (i) a correspondência, independentemente
do formato físico ou digital71; (ii) a conservação de listas de endereços, de nomes

Was bleibt vom Europäischen Datenschutzrecht? – Überlegungen zum Ratsentwurf der DS‑GVO, 5 ZD
(2015), 455‑450, 456; Peter Gola/Niels Lepperhoff, Reichweite des Haushalts‑ und Familienprivilegs
bei der Datenverarbeitung, 6 ZD (2016), 9‑12.
65
Considerando 18, p. 1 do RGPD.
66 Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados cit., 89.

67 TJUE 11‑dez.‑2014, proc. C‑212/13 (Ryneš v Úřad), 31; TJUE 10‑jul.‑2018, proc. C‑25/17

(Testemunhas de Jeová), 42.


68 Artigo 2.º/2, d) da Proposta do RGPD: “Efetuado por uma pessoa singular sem fins lucrativos no

exercício de atividades exclusivamente pessoais ou domésticas”.


69 TJUE 16‑dez.‑2008, proc. C‑73/07 (Satamedia), 44: “esta segunda excepção deve ser interpretada

no sentido de que tem apenas por objecto as actividades que se inserem no quadro da vida privada
ou familiar dos particulares”. Em idêntico sentido, TJUE 6‑nov.‑2003, proc. C‑101/01 (Lindqvist),
47 e TJUE 10‑jul.‑2018, proc. C‑25/17 (Testemunhas de Jeová), 42.
70 Ernst, Anotação ao artigo 2.º do RGPD em Paal/Pauly Datenschutz‑Grundverordnung – Bundesdatens-

chutzgesetz, 2.ª ed., Beck, Munique (2018), Rn. 17.


71 Considerando 18 do RGPD.

RDC I (2023), 1, 45-63


60 A. Barreto Menezes Cordeiro

e de datas de nascimento72; (iii) a recolha de fotos em períodos de férias73; ou


(iv) a recolha de imagens de vídeo e demais tratamentos similares, desde que
não extravasem para espaços públicos74.
A expressão “exclusivamente” permite sujeitar tratamentos de dados que
tenham propósitos mistos – pessoais e familiares + comerciais e profissionais –
ao RGPD.

III. A dimensão pessoal e doméstica do tratamento e, consequentemente, a


aplicação da exceção da alínea c) do artigo 2.º/2 do RGPD, cessa com a divul‑
gação pública dos dados – i. e., a um número indeterminado de pessoas75 –,
nomeadamente na Internet76. Esta interpretação do TJUE, constante, sustenta,
por princípio, a aplicação do RGPD aos dados disponibilizados nas redes sociais
por pessoas comuns, ao contrário do que é referido no considerando 18, p. 2
do RGPD: “As atividades pessoais ou domésticas poderão incluir … a atividade
das redes sociais e do ambiente eletrónico no âmbito dessas atividades”. O dis‑
posto neste considerando poderá excecionar o tratamento de dados no âmbito
de perfis privados, com um reduzido número de amigos ou seguidores, ou de
grupos privados, com idênticas características, mas certamente que não afasta a
aplicação do RGPD da divulgação pública de dados pessoais em redes sociais.
No acórdão Ryneš, o TJUE, ao apresentar a correspondência e as listas de
endereços como exemplos clássicos de atividades exclusivamente pessoais ou
domésticas, acrescenta “ainda que, a título incidental, digam respeito ou pos‑
sam respeitar à vida privada de terceiros”77. Esta afirmação é enganadora, visto

72 Considerando 18 do RGPD.
73 Gola/Lepperhoff, Reichweite des Haushalts‑ und Familienprivilegs cit., 10.
74 TJUE 11‑dez.‑2014, proc. C‑212/13 (Ryneš v Úřad), Rn. 33: “Uma videovigilância como a que

está em causa no processo principal, na medida em que se estende, ainda que parcialmente, ao espaço
público e, por esse motivo, se dirige para fora da esfera privada da pessoa que procede ao tratamento de
dados por esse meio, não pode ser considerada uma atividade exclusivamente “pessoal ou doméstica””.
75
A divulgação a um número determinado e reduzido de pessoas conserva a aplicação da exceção:
Kühling/Raab, Anotação ao 2.º do RGPD em Kühling/Buchner cit., Rn. 24; Peter Schantz, Die
Datenschutz‑Grundverordnung – Beginn einer neuen Zeitrechnung im Datenschutzrecht, 69 NJW (2016),
1841‑1847, 1843.
76 TJUE 6‑nov.‑2003, proc. C‑101/01 (Lindqvist), 47: “Esta excepção deve, portanto, ser interpre‑

tada como tendo unicamente por objecto as actividades que se inserem no âmbito da vida privada
ou familiar dos particulares, o que não é manifestamente o caso do tratamento de dados de carácter
pessoal que consiste na sua publicação na Internet de maneira que esses dados são disponibilizados a
um número indeterminado de pessoas”; TJUE 16‑dez.‑2008, proc. C‑73/07, (Satameida), 44; TJUE
11‑dez.‑2014, proc. C‑212/13 (Ryneš v Úřad), 33; TJUE 10‑jul.‑2018, proc. C‑25/17 (Testemu-
nhas de Jeová), 42.
77 TJUE 11‑dez.‑2014, proc. C‑212/13 (Ryneš v Úřad), Rn. 33.

RDC I (2023), 1, 45-63


Direitos de personalidade e dados pessoais: o que sobra para o Código Civil?   61

parecer indicar que a correspondência que verse, essencialmente, sobre a vida


privada não se encontra abrangida pela exceção. Certamente que assim não o é:
a aplicação da alínea c) do artigo 2.º/2 do RGPD é alheia ao tipo de dados tra‑
tados. O que não significa, naturalmente, que a forma como esses dados sejam
recolhidos não possa suscitar outros problemas, nomeadamente de violação do
direito à reserva sobre a intimidade da vida privada.

IV. A maioria dos litígios relativos a direitos de personalidade – que não o


direito à vida e o direito à integridade física – envolve a divulgação pública de
informação, pelo que se encontra, por princípio, sujeita ao RGPD. Entre as
exceções a este resultado contam‑se, por exemplo e para além das cartas missi‑
vas confidenciais, as fotografias ou as imagens de vídeo captadas apenas para o
próprio e não tornadas públicas. Aqui, o regime dos direitos de personalidade
mantém toda a sua aplicação.

7. As vantagens do RGPD para os sujeitos lesados

I. O regime contido no RGPD tende a ser consideravelmente mais prote‑


tor do que o constante do CC.
Do ponto de vista dos sujeitos, o RGPD impõe aos responsáveis pelo tra‑
tamento um conjunto vasto e variado de deveres78, sem paralelo no CC, com
destaque para densos deveres de informação79. O mesmo se verificando, do
ponto de vista dos direitos atribuídos, em relação aos titulares dos dados,

II. O regime do consentimento do RGPD é igualmente mais vantajoso,


por três razões principais: (i) a avaliação da livre manifestação do consentimento
é mais rigorosa do que a que se verifica no âmbito dos vícios de vontade do
CC80; (ii) a revogação do consentimento não contempla, ao contrário do que
se verifica em relação à limitação voluntária dos direitos de personalidade –
artigo 81.º do CC –, qualquer obrigação de indemnizar os prejuízos causados
às legítimas expectativas da outra parte – admite‑se, embora seja discutível do
ponto de vista do Direito europeu, a invocação do abuso do direito nestes
casos81; e (iii) os deveres impostos aos responsáveis pelo tratamento e os direitos

78 Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção cit., 307 ss.


79
Artigos 12.º ss do RGPD.
80 Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção cit., 174 ss.

81 Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção cit., 188 ss.

RDC I (2023), 1, 45-63


62 A. Barreto Menezes Cordeiro

atribuídos aos titulares dos dados, sem paralelo no CC, moldam todo o regime
do consentimento.

III. Por fim, também o regime da responsabilidade civil do RGPD, positi‑


vado no seu artigo 82.º, volta a beneficiar os titulares dos dados, quando con‑
frontado com o constante do artigo 483.º do CC, sobretudo por dois motivos:
(i) abrange qualquer violação do RGPD e não apenas violações de direitos;
e (ii) aproximando‑se do modelo da responsabilidade obrigacional do nosso
798.º do CC, assenta numa presunção de culpa do responsável pelo tratamento,
pelo que não cabe ao titular dos dados, ao contrário do que se verifica em
relação ao artigo 483.º do CC, demonstrar o preenchimento deste elemento82.
No âmbito da responsabilidade civil, importa ainda considerar, nomeada‑
mente no que respeita à quantificação de danos causados, se é indiferente invo‑
car a violação de um direito de personalidade ou a violação do RGPD. Numa
perspetiva teórica, tratando‑se de bens distintos, também a quantificação dos
danos causados tenderá a alcançar resultados díspares, em face dos escopos das
normas supostamente violadas não serem idênticos. Todavia, não cremos que
neste confronto específico – direitos de personalidade e RGPD – os resultados
a alcançar pelos tribunais divirjam, pois: (i) o RGPD não acautela somente o
direito à autodeterminação informacional, mas todos “os direitos e as liberdades
fundamentais das pessoas singulares” – artigo 1.º/2 do RGPD; e (ii) o regime
da responsabilidade civil do artigo 82.º do RGPD abrange todos os danos pro‑
duzidos na esfera jurídica do titular dos dados, independentemente da sua natu‑
reza patrimonial ou não patrimonial.

8. Conclusões

O caminho percorrido permite‑nos traçar uma linha divisória entre o


regime dos direitos de personalidade e o RGPD. Apenas considerando os direi‑
tos de personalidade nominados, no CC e na CRP, o Direito comum continua
a regular as ofensas (i) ao direito à vida; (ii) ao direito à integridade física; (iii) a
todos os direitos de personalidade das pessoas coletivas; (iv) ao direito à reserva
acerca das cartas missivas confidenciais, quando elaboradas segundo os méto‑
dos tradicionais da caneta e papel ou sucedâneos; (v) ao direito à integridade
moral, desde que não exista um registo automatizado áudio, audiovisual ou
de outra natureza que o comprove; e (vi) aos direitos à imagem, à palavra e à

82 Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção cit., 381 ss.

RDC I (2023), 1, 45-63


Direitos de personalidade e dados pessoais: o que sobra para o Código Civil?   63

reserva sobre a intimidade da vida privada, desde que a situação em concreto


seja reconduzível ao conceito de atividade doméstica ou pessoal, nos termos do
artigo 2.º/2 c) do RGPD.
Todas as demais ofensas a direitos de personalidade são reguladas pelo
RGPD. Esta repartição, com um impacto muito significativo na aplicação efe‑
tiva do regime constante do Código Civil, é fruto (i) do conceito amplíssimo
de dado pessoal – artigo 4.º, 1); e (ii) do extenso âmbito de aplicação material
do RGPD – artigo 1.º/2, ambos do RGPD.
O facto de os bens regulados não serem coincidentes obsta, porém, a que
se apresente o Direito da proteção de dados como sendo especial em relação
ao Código Civil. Nessa medida, o CC mantém toda a sua aplicação, cabendo à
parte lesada decidir a que regime de tutela recorrer: o do CC ou o do RGPD.
Por fim, do ponto de vista do sujeito lesado, a invocação do RGPD mos‑
tra‑se particularmente favorável, em razão, especialmente, dos extensos deveres
impostos aos responsáveis pelo tratamento; do regime do consentimento; e da
natureza obrigacional do mecanismo de responsabilidade civil consagrado no
artigo 82.º do RGPD.

RDC I (2023), 1, 45-63


Culpa do lesado e mora do credor
RUI PAULO COUTINHO DE MASCARENHAS ATAÍDE *

Sumário: 1. A transversalidade da culpa do lesado; 2. A mora do credor. Pressupostos;


3. Efeitos da mora do credor; 4. Extinção da mora do credor.

1. A transversalidade da culpa do lesado

Apesar de a tradição jurídica reservar, em regra, o seu estudo à imputação


extra‑obrigacional, a culpa do lesado constitui uma figura transversal, aplicável
ao dever de indemnizar qualquer que seja a sua fonte, incluindo a responsabi‑
lidade obrigacional, em cujo âmbito se demarca com perfeita nitidez da mora
do credor1.
Enquanto a figura prevista no artigo 570.º do Código Civil se ocupa das
consequências indemnizatórias de que se pode revestir a contribuição do lesado
para o seu próprio dano, supondo, portanto, que já lhe foi infligida uma lesão

* Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.


1 Sobre a aplicação da culpa do lesado na responsabilidade contratual, Vaz Serra, Anotação ao acór‑
dão de 21 de Dezembro de 1973, RLJ 108, 1975, p. 15, Brandão Proença, A conduta do lesado
como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 48 e ss.
Admitindo a intervenção da culpa do lesado no contexto da responsabilidade pré‑contratual, Mene‑
zes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1984, p. 584. Aplicando o concurso
de culpas ao incumprimento de um contrato‑promessa bilateral, STJ Proc. N.º 3026/05 (Fonseca
Ramos), 11‑09‑2012.
Aliás, em Itália, a relevância do facto culposo do lesado está prevista no âmbito da responsabilidade
contratual (artigo 1227), estendendo‑se à responsabilidade extra‑obrigacional por via dos artigos 2056
e seguintes. Por seu lado, segundo a sistematização do BGB, o § 254, que dispõe sobre o concurso
de culpas, também se insere na regulação geral das relações obrigacionais.

RDC I (2023), 1, 65-76


66 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde

efectiva, a mora do credor pressupõe que ainda não foi causada uma lesão
definitiva do crédito, antes se verificando que a sua satisfação foi retardada por
um facto atinente ao próprio titular2. Além disso, a culpa do lesado exige, no
mínimo, um acto evitável deste último, ao passo que, como veremos, a mora
do credor se basta com circunstâncias atinentes à sua esfera de risco.
A culpa do lesado tem, assim, um espaço próprio no âmbito da responsabi‑
lidade obrigacional, intervindo no momento em que o devedor, confrontado
com o pedido de indemnização dos danos causados ao credor com o incum‑
primento da prestação ou dos deveres acessórios, alega que um facto censurável
do próprio credor (lesado) também concorreu para a produção dos referidos
prejuízos ou, inclusive, determinou de modo exclusivo a sua verificação.
Será o caso, por exemplo, do consumidor que não se apercebe de que o
prazo de validade do produto adquirido já expirara, do locatário prejudicado
pelos vícios da coisa locada (artigo 1032.º) ser também responsável pelo agra‑
vamento dos seus danos em virtude de ter feito uma utilização imprudente do
locado, contrariando o dever imposto pelo artigo 1038.º, alínea d) ou ainda
do inquilino que deu uma queda quando descia de forma apressada as escadas
do prédio que estavam mal iluminadas. De igual modo, pode acontecer com
a pessoa que, fazendo‑se deslocar num transporte público, se apeia do veículo
em andamento, tornando‑se a única responsável pelas suas próprias lesões ou
do visitante do jardim zoológico ferido por um animal selvagem, ao introduzir
a mão numa fresta da jaula que não tinha sido detectada pelos guardas (artigo
571.º)3.
Comprovado que um facto culposo do credor contribuiu ou determinou
em exclusivo os danos, competirá ao Tribunal decidir se o ressarcimento deve
ser totalmente atribuído, reduzido ou suprimido, ponderando a gravidade rela‑
tiva das culpas de lesante e lesado e a respectiva eficácia causal.

2 Doravante, todas as normas legais citadas sem indicação de fonte, reportam‑se ao Código Civil
português em vigor.
3 Em RL Proc. N.º 1250/13 (Maria Teresa Albuquerque), 12‑10‑2017, tratou‑se uma hipótese

interessante de culpa do lesado na responsabilidade obrigacional. Um doente foi admitido numa


clinica privada ao abrigo de um termo de responsabilidade de uma seguradora para ser sujeito a um
procedimento operatório, com internamento hospitalar. Esgotado o plafond garantido pela compa‑
nhia, deu‑se uma falha de organização do estabelecimento de saúde, o qual não informou os familiares
para que estes providenciassem a transferência para uma unidade do SNS. O Tribunal entendeu que,
tendo havido culpa do lesado, os familiares apenas deveriam ser responsabilizados no pagamento de
70% da quantia reclamada pela companhia de seguros.

RDC I (2023), 1, 65-76


Culpa do lesado e mora do credor   67

2. A mora do credor. Pressupostos

I. É muito frequente ser necessária a colaboração do credor para viabilizar


o adimplemento da prestação pelo devedor, seja para a aceitar, seja para praticar
os actos necessários ao seu cumprimento.
O artigo 813.º estatui a consequência jurídica que decorre da falta dessa
colaboração, estabelecendo que o credor entra em mora quando, sem motivo
justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não
pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação. A mora do credor
constitui, aliás, um dos mais importantes corolários da previsão constante do
artigo 762.º, n.º 2, que vincula ambos os contraentes (e não apenas o devedor)
a agir de boa‑fé, tanto no cumprimento da obrigação, como no exercício do
direito correspondente.
A primeira variante prevista na lei (recusa da prestação oferecida pelo deve‑
dor) preenche‑se quando, por exemplo, o credor não aceita a renda oferecida
pelo inquilino ou rejeita a mercadoria que o devedor lhe pretende entregar.
A segunda variante, que corresponde à ausência dos actos necessários ao cum‑
primento da prestação, concretiza‑se quando, ao contrário do convencionado,
o credor não se apresenta pessoalmente ou por intermédio de representante
para levantar a coisa ou se não exerce o direito de escolha de uma obrigação
genérica ou alternativa.
Enquanto figura de incidência transversal, a mora do credor também se
pode manifestar na execução das prestações de facto, em cujo contexto a coo‑
peração do credor é amiúde indispensável, como sucede, por exemplo, com
o dono da obra que, contratando um empreiteiro (artigos 1207.º e seguintes),
deve facultar o seu acesso ao local de realização dos trabalhos. A mora do credor
pode igualmente manifestar‑se quando o proprietário se atrase a entregar na
oficina o veículo sinistrado para efeitos de peritagem e subsequente reparação
ou o mandante se demora a fornecer ao mandatário os meios necessários à exe‑
cução do mandato, como estabelece o artigo 1167.º, alínea a).

II. A formulação do artigo 813.º afigura‑se, todavia, pleonástica na parte


em que exige, para haver mora do credor, que este recuse, sem motivo justi‑
ficado, a prestação oferecida em termos legais. Com efeito, o enunciado nor‑
mativo significa de modo implícito que poderia haver motivo justificado para
recusar uma prestação oferecida em termos legais. Acontece, contudo, que
as várias concretizações apresentadas para exemplificar o que seja a falta de
“motivo justificado” correspondem justamente a casos em que a prestação não
é oferecida nas condições legais.

RDC I (2023), 1, 65-76


68 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde

Com efeito, os exemplos normalmente avançados para ilustrar o “motivo


justificado” de recusa da prestação são hipóteses em que não existe coincidên‑
cia plena com a prestação devida, ou seja, quando há violação do princípio
da pontualidade (artigo 763.º), em especial, em sede de cumprimento parcial
ou defeituoso ou se a prestação é oferecida em local diferente daquele que foi
convencionado para o cumprimento. Ora, em qualquer deste tipo de casos
nunca poderia existir mora do credor apesar de este se ter recusado a receber a
prestação, porque esta não foi oferecida nos termos legalmente devidos, sendo
por isso redundante a referência à falta de motivo justificado4.
Têm sido, porém, envidados diversos esforços doutrinários para salvar um
campo próprio de aplicação da hipótese de recusa da prestação com “motivo
justificado”, ainda que oferecida nas condições da lei.
Seria, por exemplo, o caso do comerciante que não aceita uma nota de
500,00 € para pagar uma despesa de 50 cêntimos; a prestação foi oferecida nas
condições legais, mas à luz da boa‑fé era de concluir que havia motivo justifi‑
cado para a recusar, por não ser razoável obrigar o credor a aceitar uma nota de
valor tão elevado para pagar um montante diminuto5. De igual modo, quando
o devedor se apresenta a cumprir, nos termos legais, uma obrigação pura (artigo
777.º, n.º 1); na falta de pré‑aviso, o credor, apanhado de surpresa, pode ter
motivo justificado para não aceitar6.
Contudo, as situações deste género configuram lesões da boa‑fé que cons‑
titui um princípio de base legal. Não se pode, portanto, considerar que a pres‑
tação tenha sido oferecida em termos legais quando houver motivo justificado
ao abrigo desse princípio para recusar a prestação. Tanto há violação de lei

4
Segundo Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora,
Volume II, 4.ª edição, 1997, p. 84 (nota 1 ao artigo 813.º), “motivo justificado” tem que ser um
motivo legal, como, por exemplo, a oferta de apenas uma parte da prestação ou a oferta em local
diferente do convencionado. Para Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Coimbra,
Almedina, 2009, p. 1080, “motivo justificado” é um fundamento legítimo e Luís Menezes Leitão,
Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 13.ª edição, 2021, p. 244, também exemplifica as hipóteses
de falta de motivo justificado com casos de prestação não oferecida em termos legais.
5 Vaz Serra, A mora do credor, BMJ, número especial, Lisboa (1955), p. 413, fazia depender a solução

destas hipóteses de ser ou não usual que o credor aceitasse pagamentos nessas condições.
Actualmente, deve ter‑se presente o preceituado no artigo 63.º‑E, n.º 1 e 3 da Lei Geral Tributária:
“é proibido pagar ou receber em numerário em transacções de qualquer natureza que envolvam
montantes iguais ou superiores a 3.000 euros, ou o seu equivalente em moeda estrangeira”, sendo o
limite fixado em 10 mil euros quando “realizado por pessoas singulares não residentes em território
português e desde que não atuem na qualidade de empresários ou comerciantes”.
6 É um exemplo trabalhado por Maria de Lurdes Pereira, Anotação ao artigo 813.º do Código Civil, in

Novo Coronavirus e Crise Contratual, (Anotação ao Código Civil), Lisboa, AAFDL, 2020, p. 136.

RDC I (2023), 1, 65-76


Culpa do lesado e mora do credor   69

quando se infringe regras de ius strictum, como quando se ofende princípios


jurídico‑legais.
Deve, assim, reservar‑se a falta de motivo justificado à segunda variante
de mora do credor, prevista no artigo 813.º, ou seja, quando o credor não
pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação. Em suma, o artigo
813.º deve ler‑se, a nosso ver, como se estabelecesse que o credor incorre em
mora quando não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou,
sem motivo justificado, não pratica os actos necessários ao cumprimento da
obrigação.
De todo o modo, pela pena de Baptista Machado, ainda se formou, entre
nós, outra orientação doutrinária que procurou salvaguardar a autonomia do
conceito “motivo justificado”, a qual será examinada adiante.

III. Ao contrário da mora do devedor (artigo 804.º), não é necessário que


haja um comportamento culposo do credor para este incorrer em mora. Como
os deveres jurídicos são impostos para assegurar a satisfação de interesses alheios,
não incide sobre o credor um dever jurídico de colaborar no cumprimento,
mas tão‑só o ónus de cooperar com o devedor, sob pena de suportar as desvan‑
tagens cominadas nos artigos 814.º a 816.º7.
Como não existe um dever jurídico do credor de colaborar com o cum‑
primento, também não há cabimento para exigir culpa para o credor incorrer
em mora. Logo, o credor não pode isentar‑se com factos atinentes à sua esfera
de vida que apenas revelem impossibilidade material para receber a prestação
ou praticar os actos indispensáveis ao seu cumprimento pelo devedor, mor‑
mente, uma situação de caso fortuito ou força maior, como uma doença,
internamento súbito, um atropelamento ou um incêndio no seu estabele‑
cimento que obsta à recepção da encomenda na data aprazada. Trata‑se de
contingências que, dizendo exclusivamente respeito ao círculo de assuntos
do credor, não devem, por isso, reflectir‑se de modo desfavorável na posição
jurídica do devedor8.

7 Considerando que o credor em mora não viola uma obrigação, mas desrespeita um ónus, Inocêncio
Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 315. Segundo
António Menezes Cordeiro, A mora do credor, pp. 157 e seguintes, a mora do credor, em termos
de natureza jurídica, é um encargo, ou seja, uma conduta necessária para a produção de certo efeito.
8 Também António Menezes Cordeiro, A mora do credor, Código Civil – Livro do Cinquentená‑

rio, Volume I, Almedina, 2019, p. 150, considera pacífica a desnecessidade de culpa e ilicitude do
credor. Maria de Lurdes Pereira, Conceito de prestação e destino da contraprestação, Coimbra, Alme‑
dina, 2001, pp. 287 ss, defende igualmente um conceito alargado de mora do credor, de modo a
abranger as circunstâncias impeditivas do cumprimento que têm origem na esfera de riscos do credor.

RDC I (2023), 1, 65-76


70 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde

São várias as ordens de considerações que justificam esta compreensão alar‑


gada do âmbito de aplicação da mora do credor, que inclui factos voluntários e
involuntários atinentes ao seu círculo pessoal e patrimonial.
Ao invés do devedor, que está vinculado ao dever jurídico de cumprir a
prestação em ordem a satisfazer o direito do credor, sobre este último não tem
justificação defender‑se a existência de um dever jurídico de cooperar com
o cumprimento de uma prestação a que só ele próprio tem direito. Como
acima se sublinhou, os deveres jurídicos são impostos para satisfazerem inte‑
resses alheios (porventura, no interesse de uma generalidade indeterminada de
pessoas, entre as quais podem estar os vinculados9) e não exclusivamente dos
próprios vinculados. Com efeito, ninguém pode ser obrigado a adoptar con‑
dutas em exclusivo proveito próprio; se está em causa evitar uma desvantagem
ou obter uma vantagem para o próprio interessado em que ainda possam estar
co‑envolvidos outros interesses, a natureza da posição jurídica é diferente do
dever, podendo assumir‑se como um ónus, um poder funcional ou ainda outra
situação distinta, conforme os casos.
Não havendo dever jurídico do credor de aceitar a prestação ou cooperar
com o cumprimento, carece de fundamento falar‑se de culpa, porque esta é
o predicado ético‑jurídico desvalioso que desqualifica o incumprimento de
deveres jurídicos. Não tendo que existir culpa, então também é falho de razão
exigir‑se que a mora creditoris se baseie em actos voluntários e livres do credor,
porque só estes são passiveis de incorrer no juízo de censura em que a culpa se
traduz.
A mora do credor pode, assim, radicar em circunstâncias puramente invo‑
luntárias e casuais relativas à pessoa e bens do credor, porque está unicamente
em causa distribuir o risco de perda das vantagens em jogo10. Ora, se a mora do
credor se ocupa da repartição desse risco, a existência ou não de culpa deve ser
indiferente para efeitos de decidir quem o deve suportar. Nesta sede, não pode
deixar de vigorar a elementar regra de justiça segundo a qual o referido risco
deve correr contra o titular da vantagem em causa que, neste caso, é o credor.
Questão independente desta consiste em saber se, identificada a pessoa con‑
tra a qual corre tal risco, lhe devem ser aplicadas todos ou apenas uma parte dos

9 Exemplo típico é dado pelo dever legal de utilização de cinto de segurança do condutor e passagei‑
ros transportados em veículos a motor (artigo 82.º, CE), que também beneficia o próprio vinculado,
enquanto elemento do tráfego em geral.
10 Importa, contudo, recordar que o obstáculo relativo à esfera do credor pode impedir o devedor de

oferecer a prestação, caso em que nem sequer existe mora do credor. De todo o modo, este tipo de
hipóteses ingressam no campo de aplicação da previsão estabelecida no artigo 841.º, n.º 1, alínea a),
podendo o devedor exonerar‑se por intermédio da consignação em depósito; caso se trate de uma
prestação de facto, o devedor pode recorrer, por analogia, à interpelação admonitória (artigo 808.º).

RDC I (2023), 1, 65-76


Culpa do lesado e mora do credor   71

efeitos legalmente previstos, conforme estivesse impedido (ou não) de colaborar


com o cumprimento. O problema será analisado no número seguinte, que se
ocupa dos efeitos da mora do credor.

IV. Antes disso, importa ainda esclarecer que só há mora do credor enquanto
não se der a impossibilidade da prestação. Nem sempre, contudo, é fácil separar
os impedimentos ao cumprimento da prestação que geram impossibilidade,
daqueles que apenas implicam mora do credor.
Segundo a orientação clássica, deve, para esse efeito, distinguir‑se conforme
a prestação pudesse ser ou não cumprida caso contasse com a colaboração do
credor. Por exemplo, se um cirurgião é contratado para realizar uma operação
e o paciente falece antes, existe impossibilidade da prestação, mas se o doente
contrai uma infecção que obsta à cirurgia enquanto não for debelada, existe
mora do credor11.
A fronteira entre as duas situações torna‑se ainda patente em outras hipó‑
teses. Em primeiro lugar, quando, durante a mora do credor, a prestação se
impossibilite por razões acidentais; nesse caso, a mora do credor cessa, aplican‑
do‑se o artigo 815.º, n.º 2 adiante analisado, uma vez que, ao incorrer em mora,
o credor suporta o risco de se impossibilitar a prestação a cargo do devedor.
Em segundo lugar, pode suceder que a falta de colaboração do credor pro‑
voque a imediata impossibilidade definitiva da prestação, em virtude de esta
ser, por exemplo, de prazo absolutamente fixo (v. g., o fotógrafo contratado
pelos noivos não foi avisado da mudança do local do casamento). Em termos
técnicos, não se deve reconduzir tais hipóteses à mora do credor, dado que esta
pressupõe que a prestação ainda se possa realizar. Quando a falta de colaboração
do credor provoca a impossibilidade definitiva da prestação e não o seu mero
retardamento, a norma directamente aplicável é o artigo 795.º, n.º 2 quando se
trate de contratos bilaterais12.
Em termos práticos, a questão apresenta, porém, escassa relevância, dado
que ambos os preceitos (artigos 815.º, n.º 2 e 795.º, n.º 2) mantêm o cre‑

11 Sobre a distinção entre mora do credor e impossibilidade da prestação, Vaz Serra, A mora do cre-
dor, pp. 382 e ss, seguindo a linha de orientação defendida por Enneccerus/Lehmann, Luís Mene‑
zes Leitão, Direito das Obrigações, Volume II, pp. 244‑245 (nota 521), Maria De Lurdes Pereira,
Conceito de prestação e destino da contraprestação, pp. 141 e ss e 267 e ss.
12 Em sentido contrário, Baptista Machado, Risco contratual e mora do credor, Obra Dispersa, Volume

I, Scientia Juridica, Braga, 1991, pp. 334‑339 (nota 62), por considerar que o artigo 795.º, n.º 2 supõe
um acto da iniciativa do credor, ao passo que os artigos 813.º e seguintes supõem uma “omissão”
do credor. Não nos parece, porém, que haja fundamento legal para tal discriminação que restringe o
campo de aplicação do artigo 795.º, nº 2. A “causa imputável ao credor” de que se ocupa este pre‑
ceito tanto pode residir num comportamento activo como omissivo.

RDC I (2023), 1, 65-76


72 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde

dor obrigado à contraprestação, devendo o valor do benefício eventualmente


obtido pelo devedor com a sua exoneração ser deduzido na contraprestação.

3. Efeitos da mora do credor

I. São três os efeitos legais advenientes da mora do credor:

1) Obrigação de indemnização: o credor é obrigado a indemnizar o deve‑


dor das maiores despesas que este seja obrigado a fazer com o oferecimento
infrutífero da prestação e a guarda e conservação do respectivo objecto (artigo
816.º);
Deste modo, cabe ao credor pagar, por exemplo, o frete do segundo trans‑
porte que o devedor tenha sido obrigado a contratar para proceder à nova
entrega da coisa, assim como correrão por conta do credor as despesas suple‑
mentares de armazenagem que o devedor foi obrigado a efectuar em virtude de
o credor se ter recusado a receber a coisa;

2) Atenuação da responsabilidade do devedor: quando o credor incorrer em


mora, a responsabilidade do devedor atenua‑se, o qual, nos termos do artigo
814º, n. º 1, passa a responder apenas pelo seu dolo, com respeito ao objecto da
prestação. O devedor não responde, assim, pelo perecimento, deterioração ou
dissipação da coisa que se deverem a negligência sua, como será o caso de um
furto motivado por guarda deficiente; o artigo 814º, n.º 1 estabelece ainda que,
em relação aos proventos da coisa, o devedor só responde pelos que tenha efec‑
tivamente percebido, excluindo‑se assim os frutos percipiendos. Além disso,
durante a mora do credor, a dívida deixa de vencer juros legais e convencionais
(artigo 814.º, n.º 2);

3) O terceiro efeito da mora do credor é a inversão do risco pela impossibi‑


lidade superveniente da prestação, quando esta resultar de facto não imputável
a dolo do devedor (artigo 815.º, n.º 1).
Verifica‑se, deste modo, o alargamento do risco pela impossibilidade da
prestação, dado que, como vimos, a responsabilidade do devedor pelo objecto
da prestação atenua‑se, cingindo‑se aos casos de dolo (artigo 814.º, n. º 1).
Logo, se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao devedor a
título de negligência, esse risco ainda estará a correr por conta do credor. Tra‑
tando‑se de contrato bilateral, aplica‑se o disposto no artigo 815.º, n. º 2, ou
seja, apesar de perder o direito à prestação, o credor mantém‑se vinculado à

RDC I (2023), 1, 65-76


Culpa do lesado e mora do credor   73

contraprestação, embora no respectivo valor deva ser descontado o benefício


obtido pelo devedor com a extinção da sua obrigação.
Será o caso, por exemplo, de o mandante não ter fornecido ao mandatário,
na data convencionada, os meios necessários à execução do mandato (artigo
1167.º, alínea a)). Se, em seguida, o mandatário ficar incapacitado para a prática
do acto acordado, nem por isso perderá o direito aos honorários que tiverem
sido acordados nos termos do artigo 1158.º, n.º 2, embora devam ser abatidas
as despesas que teria de suportar com o cumprimento do mandato.
Em termos globais, a razão de ser do regime penalizador consagrado nos
artigos 814.º a 816.º é justificada: como o devedor só não se exonerou porque
o credor não recebeu a prestação oferecida nos termos legais ou não colaborou,
sem motivo justificado, na sua realização, devem correr por conta do credor os
riscos de aumentarem os custos com o cumprimento da prestação, bem como
da perda do seu valor útil e do desaparecimento do proveito do negócio. Não
deve ser o devedor a suportar estes riscos porque, não havendo mora do credor,
a prestação teria sido cumprida sem mais encargos.

II. Como acima se observou, a mora do credor pode preencher‑se com


circunstâncias acidentais atinentes à sua pessoa (ou bens) e que o impediram de
colaborar com o devedor no cumprimento da prestação (v. g., doença, interna‑
mento, atropelamento ou o próprio rapto se este facto não impedir o devedor
de oferecer a prestação porque, caso o impeça, haverá lugar a consignação em
depósito nos termos do artigo 841.º, n.º 1, alínea a)).
Este tipo de vicissitudes que, dizendo respeito à esfera de riscos do cre‑
dor, obstaram à sua cooperação com o devedor, constituíram precisamente o
objecto fundamental da investigação empreendida por Baptista Machado sobre
risco contratual e mora do credor, o qual veio defender que, em tais casos de
mora com “motivo justificado” para a falta de cooperação do credor, deve ser
impedida a aplicação de algumas normas que integram o regime legal esta‑
belecido nos artigos 814.º a 816.º. Em suma, o sistema da lei seria lacunar,
porque ter‑se‑ia limitado a prever a mora sem motivo justificado, mas como
poderia igualmente haver mora do credor com motivo justificado, deveria apli‑
car‑se, por analogia, as regras dos artigos 814.º, n.º 2 e 816.º a esta mora não
imputável13.

13 Baptista Machado, Risco contratual e mora do credor (maxime, pp. 315 e ss), com o apoio de Bran‑
dão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Porto, Universidade Católica
Editora, 3.ª edição, 2019, pp. 262 e 271. Também Nuno Pinto de Oliveira, Princípios de Direito
dos Contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 482 e ss, defende a aplicação analógica de alguns
artigos do regime legal à “mora justificada”. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume II, 7.ª

RDC I (2023), 1, 65-76


74 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde

A nosso ver, o entendimento de Baptista Machado entra em contradição


com o sistema de pressupostos legais, porque a lei só admite mora do credor
quando a referida falta de colaboração não tiver motivo justificado por a presta‑
ção não ter sido oferecida nos termos legais14; se houver motivo justificado para
recusar a prestação (porque esta não foi oferecida nos termos legais) ou para não
praticar os actos necessários ao seu cumprimento, então pura e simplesmente
não existe mora. A falta de motivo justificado é um elemento legalmente cons‑
titutivo da mora do credor.
Por isso, em termos dogmáticos, é de entender que há sempre mora do
credor quando o retardamento do cumprimento é provocado por uma circuns‑
tância – voluntária ou involuntária – concernente à sua esfera de vida, embora
em seguida se possa debater, para efeitos de aplicação do respectivo regime, se é
de separar os casos em que o credor não pôde cumprir daqueles em que não quis
cumprir, reservando a aplicação integral da disciplina legal ao segundo grupo
de hipóteses.
Decerto que mesmo o primeiro grupo de hipóteses, na medida em que
respeitam a factos concernentes à esfera de risco do credor, não deve reverter, em
caso algum, num acréscimo de encargos para o devedor que onere o cumpri‑
mento da prestação para além do que estava ínsito ao programa contratual.
Contudo, segundo Baptista Machado, esse escopo seria assegurado pela aplica‑
ção do artigo 816.º (e do artigo 814.º, n.º 2) a todas as hipóteses de mora do credor:
por um lado, o devedor tem que ser exonerado dos juros adicionais provocados
pela mora do credor, devendo, por isso, manter‑se a aplicação do artigo 814.º,
n.º 2 e, por outro, o credor deve ser sempre obrigado a indemnizar as maiores
despesas que o devedor seja obrigado a fazer com o oferecimento infrutífero
da prestação e a guarda e conservação do respectivo objecto, razão pela qual se
justifica que se mantenha a aplicação do artigo 816.º15.
Deste modo, para Baptista Machado, não se deveria aplicar os artigos 814.º,
n.º 1 e 815.º, n.º 1 e 2 aos casos em que a ausência de cooperação do credor se
devesse a uma situação involuntária16. Logo, o devedor, em tais casos:

Edição, Coimbra, Almedina, 1997, p. 162, também admite que o conceito de “motivo justificado”
se preencha com um caso de força maior, como a doença grave e inesperada do credor.
14
Como acima se salientou, há falta de motivo justificado para recusar a prestação quando esta foi
oferecida em termos legais.
15 Como observa Baptista Machado, Risco contratual e mora do credor, p. 317, o preceito do artigo

816.º representa uma concretização do princípio geral de que todo o aumento do custo da prestação
que tenha origem numa contingência da esfera do credor há‑de ser suportada por este.
16 Baptista Machado, Risco contratual e mora do credor, pp. 317‑318 e 320, exemplifica a solução com

a hipótese de o retratando não posar por doença nas datas pré‑fixadas e depois o pintor se incapaci‑
tar ou o credor falecer. Em tal caso, o pintor só poderá exigir o ressarcimento nos termos do artigo

RDC I (2023), 1, 65-76


Culpa do lesado e mora do credor   75

1) Deveria continuar a responder nos mesmos termos em que já respondia


(ou seja, por dolo e negligência), quer quanto ao objecto da prestação,
quer quanto aos proventos da coisa;
2) Igualmente, no concernente ao artigo 815.º, n.º 1, ou seja, a impossibi‑
lidade superveniente da prestação deveria continuar a correr por conta
do devedor quando resultasse de facto que lhe fosse imputável a título
de negligência;
3) Por último, também não se justificaria que, em tais situações, se aplicasse
o rigor do artigo 815.º, n.º 2, mantendo o credor vinculado à contra‑
prestação no âmbito dos contratos bilaterais.

Destarte, nos casos em que a mora do credor resultasse de circunstâncias


que o impediram de colaborar com o cumprimento, seria mais razoável defen‑
der a divisão do risco do que o fazer correr integralmente contra o credor, como
resulta do regime global estabelecido nos artigos 814.º a 816.º.

III. Apesar do seu elevado engenho jurídico, a proposta apresentada por


Baptista Machado de não aplicar à “mora com motivo justificado” toda a dis‑
ciplina legal, mas apenas os artigos 814.º, n.º 2 e 816.º, não pode ser aceite em
virtude de não estar demonstrada a existência de uma lacuna.
Com efeito, não existe qualquer elemento que aponte no sentido de a
regulação legal dos artigos 813.º a 816.º ter sido unicamente pensada para os
casos em que a mora resulta de situações em que o credor não quis aceitar a
prestação ou colaborar com o cumprimento. Todo o regime legal da mora do
credor apresenta‑se, pelo contrário, pensado para se aplicar em bloco às hipóte‑
ses em que a mora também resulte de circunstâncias puramente acidentais que
afectaram a esfera de assuntos do credor, impedindo‑o de aceitar a prestação ou
praticar os actos necessários ao cumprimento da prestação.
Com efeito, fazer correr por conta do credor as consequências que decor‑
rem das suas contingências pessoais ou patrimoniais, constitui um simples coro‑
lário de se estender a vigência do princípio casum sentit dominus ao âmbito da
relação obrigacional: compete ao credor, enquanto titular da vantagem atingida
pela incidência casual, suportar as consequências da sua supressão. A não ser
assim, além das vicissitudes que afectam a sua própria esfera de riscos, seria o
devedor a também sofrer os efeitos dos factos acidentais que atingiram o círculo

1227.º, não tendo o credor que pagar o preço acordado segundo o artigo 815.º, n.º 2, mas apenas
o trabalho já executado e as despesas realizadas para preparar o cumprimento da prestação (artigo
1227.º), aplicável por analogia. Também não se justifica a aplicação do artigo 795.º, n. º 2, dado que,
nestes casos, o facto impeditivo da prestação não é imputável ao credor, mas apenas relativo à sua pessoa.

RDC I (2023), 1, 65-76


76 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde

de assuntos do credor. A solução representaria a negação do critério primacial


de distribuição de danos, o qual veicula uma ideia elementar de justiça.
De facto, não tendo havido mora do credor, a prestação teria sido cumprida
sem encargos suplementares para o devedor, o qual ainda obteria, tratando‑se
de contrato bilateral, o proveito adveniente da contraprestação. Por conse‑
guinte, apenas há que reintegrar o devedor na posição patrimonial em que
se encontraria se não tivesse havido mora do credor, evitando‑se, porém, o
enriquecimento injustificado do devedor conforme estabelece a parte final do
artigo 815.º, n.º 2, ao determinar que seja descontado, no valor da contrapres‑
tação a que o devedor tem direito, o montante do benefício que obteve com
a sua liberação.

4. Extinção da mora do credor

Por último, importa ter presente que a mora do credor se extingue quando
este, ainda que tardiamente, presta a colaboração necessária ao cumprimento
(é a purgação da mora, encarada na óptica do credor), cabendo então ao devedor
realizar a prestação de imediato.
Outra causa de extinção da mora do credor consiste na consignação em
depósito efectuada pelo devedor (artigo 841.º, n.º 1, alínea b)), se o depósito
não for impugnado ou a impugnação for improcedente.
Caso se trate de uma prestação de facto, em que pela natureza das coisas
não é possível a consignação em depósito, o devedor, por analogia com o artigo
808.º e para evitar a sua vinculação por tempo indeterminado, pode requerer
ao tribunal que fixe um prazo para o credor colaborar no cumprimento, sob
pena de a obrigação se extinguir.
Finalmente, a mora do credor cessa quando, nos termos já analisados do
artigo 815.º, a prestação a cargo do devedor se impossibilitar.

RDC I (2023), 1, 65-76


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes
eletrónicos no cumprimento dos contratos e a proposta
de Diretiva de 28.09.2022 relativa à adaptação das regras
de responsabilidade civil extracontratual à inteligência artificial
JOANA RIBEIRO DE FARIA*
1

O tráfego negocial está repleto de obrigações que devem ser cumpridas de


forma eletrónica. Ocorrendo uma falha no sistema eletrónico, dificilmente se
poderá imputar ao devedor a omissão da diligência devida, desde logo porque
é extremamente difícil de detetar a origem da falha, uma vez que existe grande
diversidade de sujeitos envolvidos no processo de criação e operação dos agentes
eletrónicos e o erro pode ocorrer em várias fases do processo, desde o design ini‑
cial à própria fase de operação e monitorização do agente eletrónico. Além disso,
atendendo à autonomia e complexidade dos sistemas eletrónicos, há um deter‑
minado número de falhas que serão sempre inevitáveis. Por este motivo, torna-se
extremamente difícil afirmar que a adoção de um determinado comportamento
(e.g., uma certa forma de supervisão) poderia ter evitado a falha que causou o
não cumprimento eletrónico da obrigação, o que coloca problemas ao nível da
identificação e prova do ilícito, da culpa, e até do nexo de causalidade.
Durante o ano de 2022, escrevemos um texto destinado a avaliar se, à luz
do ordenamento jurídico vigente e na ausência de regulação contratual espe‑
cífica, existia alguma forma de responsabilizar o devedor, independentemente
de culpa, pelos danos provocados na esfera jurídica do credor resultantes do
não cumprimento, por forma eletrónica, de uma obrigação constituída pelo
primeiro e que não é cumprida devido a uma falha do sistema. Concluímos
pelo afastamento da possibilidade de responsabilizar objetivamente o devedor

* Licenciada e Mestre em Direito Privado pela Escola do Porto da Universidade Católica Portuguesa.
LL.M em International Business Law pela London School of Economics and Political Sciences. Dou‑
toranda na Faculdade de Direito da Universidade de Cambridge.

RDC I (2023), 1, 77-103


78 Joana Ribeiro de Faria

pela utilização de agentes eletrónicos no cumprimento do programa contratual.


Porém, resulta da lei que quando a obrigação do devedor se configura como
uma obrigação de meios, impende sobre o credor o ónus de demonstrar que a
conduta do devedor não corresponde à medida de diligência a que se vinculou,
o que não nos parece adequado tratando-se de sistemas eletrónicos dotados de
inteligência artificial, atendendo à falta de domínio ou desconhecimento do
credor relativamente à forma de funcionamento do sistema eletrónico utilizado
pelo devedor. A título de exemplo, no caso em que o devedor se tenha obri‑
gado a monitorizar o sistema (obrigação de meios), com o objetivo de prote‑
ger os clientes contra riscos operacionais de deficiências e fraudes, não parece
correto exigir ao credor, que desconhece o sistema utilizado pelo devedor, que
identifique um comportamento específico que este último devesse ter adotado
no quadro da sua obrigação de monitorização, capaz de permitir evitar uma
certa operação fraudulenta (é-lhe impossível especificar o conteúdo do dever
que foi violado pela contraparte). Já o devedor, que pode realmente não ter
omitido qualquer dever de cuidado, deverá provar, e terá mais facilidade nisso,
que foi diligente, demonstrando que instalou as atualizações e adotou os proce‑
dimentos que, de acordo com o estado atual da técnica, se revelam adequados a
evitar intromissões. Para atingir este efeito jurídico basta que, quando a obriga‑
ção de meios vise evitar a concretização de um dano, se configure a obrigação
do devedor como uma obrigação (de resultado) de evitar esse dano. Posto isso,
concluíamos o texto propondo a conversão, no domínio dos contratos feitos
cumprir através de sistemas eletrónicos dotados de inteligência artificial, das
obrigações de meios assumidas em obrigações de resultado, por via conven‑
cional ou regulatória. A proposta não prescindia do requisito da culpa, o que a
tornava admissível no nosso ordenamento jurídico. Na prática, estava em causa
a inversão do ónus da prova da ilicitude, o que é uma forma de introduzir a
teoria do risco no domínio contratual e de evitar que a responsabilidade deixe
de depender da identificação clara, por parte do credor, da causa da falha.
O texto descrito não chegou a ser publicado.
Posteriormente, em 28 de setembro de 2022, foi publicada a Proposta de
Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à adaptação das regras
de responsabilidade civil extracontratual à inteligência artificial1 (doravante,
“Proposta de Diretiva”). Na exposição de motivos, a Proposta de Diretiva
refere que “as características específicas da IA, incluindo a complexidade, a
autonomia e a opacidade (o denominado efeito de «caixa negra»), podem difi‑
cultar ou tornar proibitivamente oneroso para as vítimas a identificação da pes‑

1 2022/0303(COD).

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   79

soa responsável e a prova dos requisitos necessários a uma ação de indemniza‑


ção bem-sucedida”2. A Proposta de Diretiva pretende, portanto, fazer face a
estas dificuldades, também por nós identificadas, e deve ser lida em conjunto
com a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que
estabelece regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial (doravante,
“Regulamento IA”).
O Regulamento IA impõe certas obrigações de diligência aos operadores
de sistemas de IA de risco elevado, isto é, aos sistemas que têm a potencialidade
de criar riscos significativos para a saúde e segurança ou para os direitos funda‑
mentais das pessoas3. O utilizador tem obrigações específicas, entre as quais
a de utilizar e monitorizar o sistema de acordo com as instruções de utilização
e a de assegurar que os dados de entrada sobre os quais exerce controlo são
adequados à finalidade do sistema4. Tratando-se de obrigações de diligência,
é lógico que o utilizador não está obrigado a detetar e a impedir qualquer falha
(através da suspensão do sistema, na hipótese de deteção de uma falha), mas
apenas a adotar medidas de controlo regulares, e razoavelmente suficientes para
detetar falhas.
É relevante identificar as medidas implementadas pela Proposta de Diretiva
para colmatar as dificuldades de prova do lesado. Em primeiro lugar, a Proposta
de Diretiva permite ao Tribunal exigir ao fornecedor ou ao utilizador elemen‑
tos de prova pertinentes de que disponha sobre o sistema de inteligência artifi‑
cial de risco elevado suspeito de ter causado danos, se o demandante já os tiver
solicitado diretamente, e se este último apresentar factos e elementos de prova
suficientes para fundamentar a plausibilidade de uma ação de indemnização5.
Se (e só se) o demandado não cumprir a ordem que lhe exige que apresente
as informações solicitadas, o Tribunal presume o não cumprimento do dever

2 P. 1 da Proposta de Diretiva.
3
As principais obrigações recaem diretamente sobre o fornecedor (cf. considerando 27 do Regu‑
lamento). O fornecedor está obrigado, nos termos da remissão operada com base no artigo 16.º do
Regulamento IA, a implementar um sistema de gestão de risco (artigo 9.º), a adotar práticas adequa‑
das de governação e gestão de dados (artigo 10.º), a supervisionar adequadamente o sistema (artigo
14.º), a adotar mecanismos que alcancem um nível apropriado de exatidão, solidez e cibersegurança
dos sistemas (artigo 15.º do Regulamento IA), entre outros. O fornecedor é aquele que desenvolveu
um sistema de inteligência artificial ou tem um sistema desenvolvido, com vista à sua colocação em
serviço no mercado (cf. artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento IA). O devedor será, em regra, um mero
utilizador, a não ser que o sistema tenha sido colocado ao serviço diretamente sob o nome ou marca
do devedor (cf. artigo 28.º do Regulamento IA). Na última hipótese, o devedor-utilizador terá as
mesmas obrigações do fornecedor.
4 Cf. artigo 29.º do Regulamento IA.

5 Cf. artigo 3.º, n.º 1, da Proposta de Diretiva.

RDC I (2023), 1, 77-103


80 Joana Ribeiro de Faria

de diligência pertinente, que os elementos de prova solicitados se destinavam a


demonstrar para efeitos da ação de indemnização em causa6.
Continuando a utilizar o exemplo da obrigação de monitorização, é lógico
que o demandante pode exigir ao demandado informações genéricas acerca
das medidas de controlo adotadas. O demandado facilmente cumprirá a sua
obrigação, pelo que não opera qualquer presunção de ilicitude. O pedido de
informações só será relevante quando o demandante tenha conhecimento de
que existia um método específico de monitorização que poderia e deveria ter
sido adotado. Nesse caso, porém, mesmo que o demandado não tenha tomado
essa diligência, ou não o possa demonstrar, informará o demandante das medi‑
das (insuficientes) que tomou, e não operando qualquer presunção de ilicitude,
continua a ser o demandante quem tem de provar que aquela medida específica
era exigível, e que o demandado não a adotou. Em suma, a responsabilidade
não deixa de depender da identificação clara de uma falha por parte do lesado.
A prova desta afirmação decorre da segunda medida adotada pela Pro‑
posta de Diretiva para colmatar as dificuldades de prova do lesado. A Proposta
consagra uma presunção ilidível de nexo de causalidade entre o facto culposo
do demandado (pelo incumprimento de um dever de diligência diretamente
destinado a proteger contra o dano ocorrido) e o resultado produzido pelo
sistema de inteligência artificial ou a incapacidade do sistema de produzir um
resultado7. Como se já não fosse suficientemente claro que o demandante tem
de provar o ilícito, a letra da norma diz expressamente que no caso de uma ação
de indemnização intentada contra um utilizador de um sistema de inteligência
artificial de risco elevado, a presunção opera na condição de o demandante pro‑
var que o utilizador não cumpriu as suas obrigações de utilizar ou controlar o
sistema em conformidade com as instruções de utilização que o acompanham;
ou na condição de provar que o utilizador expôs o sistema de inteligência arti‑

6 Cf. artigo 3.º, n.º 5, da Proposta de Diretiva.


7 Cf. artigo 4.º, n.º 1, da Proposta de Diretiva: “Sob reserva dos requisitos estabelecidos no presente
artigo, os tribunais nacionais presumem, para efeitos da aplicação das regras de responsabilidade a uma
ação de indemnização, o nexo de causalidade entre o facto culposo do demandado e o resultado pro‑
duzido pelo sistema de IA ou a incapacidade do sistema de IA de produzir um resultado, se estiverem
preenchidas todas as seguintes condições: (a) O demandante demonstrou ou o tribunal presumiu, nos
termos do artigo 3.º, n.º 5, a existência de culpa do demandado, ou de uma pessoa por cujo compor‑
tamento o demandado é responsável, consistindo tal no incumprimento de um dever de diligência
previsto no direito da União ou no direito nacional diretamente destinado a proteger contra o dano
ocorrido; (b) Pode-se considerar que é razoavelmente provável, com base nas circunstâncias do caso,
que o facto culposo influenciou o resultado produzido pelo sistema de IA ou a incapacidade do sis‑
tema de IA de produzir um resultado; (c) O demandante demonstrou que o resultado produzido pelo
sistema de IA ou a incapacidade do sistema de IA de produzir um resultado deu origem ao dano”.

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   81

ficial a dados de entrada sob o seu controlo que não são pertinentes tendo em
conta a sua finalidade.
Em suma. A Proposta de Diretiva não resolve adequadamente o problema
que tinha entre mãos, problema que era também o nosso: evitar que a respon‑
sabilidade dependa da identificação clara, por parte do credor, de uma falha que
se encontra na esfera de domínio do devedor. É verdade que estamos perante
uma mera proposta, que virá a ser sujeita a discussão nos próximos tempos,
relativa a relações extracontratuais (e não ao domínio contratual que nos ocupa)
e que tem por objeto sistemas de alto-risco, o que significa que nunca poderia
resolver por completo as nossas inquietações. Todavia, e uma vez que a Pro‑
posta de Diretiva faz referência a um Regulamento que estabelece obrigações
de diligência diretamente destinadas a evitar certos danos, teria sido simples
inverter simplesmente o ónus da prova da ilicitude, como se nos afigura mais
correto.
O objetivo do nosso texto original era o de tornar viável a responsabiliza‑
ção do utilizador, sem perverter os princípios fundamentais do sistema jurídico
vigentes no quadro da responsabilidade civil contratual. Decidimos publicá-lo
agora porque pensamos que adquiriu a valia de demonstrar a insuficiência das
medidas implementadas na Proposta de Diretiva, podendo vir a ser útil nas
discussões e redações futuras da legislação sobre o tema.
Note-se que o texto começa por referir-se a uma Resolução aprovada
em 2020 cuja abordagem foi claramente abandonada através da publicação da
Proposta de Diretiva. Decidimos manter a referência a esse diploma porque
representa uma outra opção de solução, e porque apoia a conclusão final a que
quisemos, e queremos, chegar.

* * *

1. Em outubro de 2020, o Parlamento Europeu aprovou uma Resolução


com recomendações à Comissão, tendo começado por referir nos seus con‑
siderandos que a complexidade, a conectividade, a opacidade, a autoapren‑
dizagem e a potencial autonomia dos sistemas de inteligência artificial, bem
como a multiplicidade de intervenientes envolvidos, representam importantes
desafios jurídicos para o quadro em vigor em matéria de responsabilidade civil,
podendo impossibilitar a identificação de quem, em concreto, controla o risco
associado ao sistema de inteligência artificial, ou de que código, intervenção
ou dados acabaram por provocar a operação danosa8. A partir desta aceitação, e

8 Considerandos H e 6 da Resolução do Parlamento Europeu, de 20 de outubro de 2020, que contém


recomendações à Comissão sobre o regime de responsabilidade civil aplicável à inteligência artificial

RDC I (2023), 1, 77-103


82 Joana Ribeiro de Faria

atendendo ao princípio, que toma como um princípio geral, de que quem cria,
mantém ou controla uma fonte de perigo deve ser responsável pelos danos ou
prejuízos causados pela atividade9, o Parlamento Europeu identifica o “ope‑
rador” como aquele que exerce controlo sobre um risco relacionado com a
operação e funcionamento do sistema e propõe uma agravação dos requisitos
de aferição da sua responsabilidade civil. Deste modo, a Resolução postula uma
abordagem baseada no tipo de risco em causa, nos seguintes termos: quanto aos
sistemas de inteligência artificial de alto risco, cuja operação autónoma envolve
uma probabilidade considerável de causar danos a uma ou mais pessoas, os
operadores devem suportar uma responsabilidade civil independente de culpa
por quaisquer prejuízos ou danos causados por uma atividade, um dispositivo
ou um processo físico ou virtual baseado nesse sistema10; relativamente aos
demais sistemas de inteligência artificial, ou seja, aos que não são considerados
de alto risco, é estabelecida uma presunção de culpa do operador, que pode
exonerar-se provando que respeitou o seu dever de diligência11. Este diploma
é extremamente importante, na medida em que reconhece que não deve ser o
lesado a arcar com o ónus de identificar uma certa medida de diligência que o
operador (que melhor conhece e gere o sistema eletrónico) omitiu, e indicia
que a via da responsabilidade civil objetiva ou da presunção de culpa12 são as
soluções mais acertadas para resolver o problema.
O regime proposto pela Resolução não especifica a modalidade de respon‑
sabilidade civil a que se aplica, mas destina-se à indemnização de danos causados
à vida, à saúde, à integridade física ou ao património, ou de danos não patrimo‑
niais significativos que resultem numa perda económica verificável. Segundo

(2020/2014(INL)), doravante “Resolução”.


9 Considerandos 10 da Resolução e 8 do Anexo da Resolução.

10
Considerando 14 da Resolução e artigo 4.º do Anexo à Resolução. A responsabilidade é objetiva
uma vez que o operador é responsável mesmo que tenha atuado com a devida diligência. Contudo,
a Resolução admite que o operador se possa eximir de responsabilidade se provar que os danos foram
causados por motivos de força maior.
11 Considerando 20 da Resolução e artigo 8.º do Anexo à Resolução. Curiosamente, a norma que

estabelece a referida presunção de culpa acaba por configurar uma limitação do grau de diligência
exigida ao operador, porquanto se estabelece que o operador “só” pode ilidir a presunção de culpa
que sobre si recai se provar que “foi observada a devida diligência através da execução das seguintes
ações: seleção de um sistema de IA adequado para as tarefas e capacidades em causa, correta coloca‑
ção em operação do sistema de IA, controlo das atividades e manutenção da fiabilidade da operação,
graças à instalação regular de todas as atualizações disponíveis”. Significa isto que basta provar que
empregou as referidas diligências para se poder afirmar a sua irresponsabilidade, o que parece consa‑
grar uma limitação da sua responsabilidade na prática.
12 Embora em Portugal, no domínio da responsabilidade civil extracontratual, o artigo 493.º, n.º 2,

do Código Civil já permita fundar esta presunção de culpa.

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   83

Henrique Sousa Antunes, esta formulação abarca várias dimensões dos direitos
de personalidade ou ofensas à propriedade intangível, tais como a violação ou
destruição de dados pessoais13. Esta delimitação parece afastar a grande maioria
dos danos resultantes do simples não cumprimento de obrigações contratuais,
o que está de acordo com a norma segundo a qual a Resolução “não prejudica
quaisquer outras ações de responsabilidade resultantes de relações contratuais”14.
Em todo o caso, a Resolução constitui ainda uma mera proposta, o que
significa que as suas soluções, baseadas na responsabilidade civil objetiva ou na
presunção de culpa do devedor, se encontram por implementar. O objetivo
do presente trabalho é o de descortinar, ainda no plano do direito vigente, se
existe alguma forma de atingir os objetivos propostos pela Resolução no plano
contratual, isto é, responsabilizar o devedor, independentemente de culpa (ou
presumindo-se esta), relativamente a danos provocados na esfera jurídica do
credor resultantes do não cumprimento, por forma eletrónica, de uma obriga‑
ção constituída pelo primeiro e que não foi cumprida devido a uma falha do
sistema.

2. Só há responsabilidade civil sem culpa nos casos previstos na lei, de


acordo com o artigo 482.º, n.º 2 do Código Civil. Apesar de grande parte da
doutrina retirar desta norma um princípio de tipicidade ou de taxatividade da
responsabilidade pelo risco15, há quem admita que o ritmo de desenvolvi‑
mento da sociedade possa gerar situações que justifiquem que o dano deva ser
suportado pelo beneficiário da fonte de perigo em hipóteses não contempladas
por nenhuma norma específica, desde que se trate de hipóteses perfeitamente
paralelas a outros casos pressupostos pelas normas específicas já existentes16.

13 Sousa Antunes, Henrique, “Civil Liability Applicable to Artificial Intelligence: A Preliminary


Critique of the European Parliament Resolution of 2020”, Social Science Research Network (SSRN)
Working Paper 3743242 (2020), p. 12.
14
Artigo 2.º do Anexo à Resolução.
15 Entre outros, Miranda Barbosa, Mafalda (2017), Lições de Responsabilidade Civil, 1.ª ed., Parede:

Principia, p. 39, Menezes Cordeiro, António (2017), Tratado de Direito Civil, vol. VIII, 1.ª ed.,
Coimbra: Almedina, p. 421, Menezes Leitão, Luís (2017), Direito das Obrigações, vol. 1, 14.ª ed.,
Coimbra: Almedina, p. 361.
16 Cf., por exemplo, a anotação ao artigo 483.º de Vaz de Sequeira, Elsa em Brandão Proença,

José Carlos (2019), Comentário ao Código Civil - Direito das Obrigações, 1.ª ed., Lisboa: Universidade
Católica Portuguesa, no pressuposto de que o proibido é apenas o de se transformar a exceção em
regra, segundo os ensinamentos de Castanheira Neves (2013), Metodologia Jurídica. Problemas funda-
mentais, 1.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 272, e de Baptista Machado, João (1983), Introdução
ao direito e ao discurso legitimador, Coimbra: Almedina, p. 327. Já em termos mais amplos, Hörster,
Heinrich Ewald, Eva Moreira da Silva (2019), A parte geral do Código Civil Português, 2.ª ed., Coim‑
bra: Almedina, pp. 85 e 86, consideram que a responsabilidade pelo risco constitui, ao lado da res‑

RDC I (2023), 1, 77-103


84 Joana Ribeiro de Faria

Haveria, portanto, que identificar uma realidade paralela a um cenário espe‑


cificamente regulado. Ora, no domínio extracontratual, a responsabilidade
civil por atividades ou coisas perigosas pressupõe a culpa17. A responsabilidade
civil do produtor, apesar de ser independente de culpa, tem em vista os danos
indemnizáveis que resultem da morte ou lesão pessoal e os danos em bens
diversos do produto defeituoso18.

3. Existiria ainda a hipótese de recorrer ao regime do artigo 800.º do


Código Civil, do qual decorre que os atos ou omissões dos auxiliares que
consubstanciem o não cumprimento dos deveres a que o devedor se vinculou,
responsabilizam-no como se os atos tivessem sido praticados por ele, segundo o
conhecido brocardo jurídico de que qui facit per alium, facit per se.
Localizam-se fora do âmbito deste regime as falhas atribuíveis ao próprio
devedor, pois aí haverá uma responsabilidade por ato próprio. Neste sentido, o
artigo 800.º é afastado se o agente eletrónico tiver sido incorretamente progra‑
mado ou montado, se não for idóneo a cumprir as obrigações em causa, ou se o
agente eletrónico não tiver sido adequadamente monitorizado ou conservado.
O propósito do artigo 800.º é o de responsabilizar o devedor por atos pró‑
prios dos auxiliares, e esta previsão poderia ser útil no contexto em análise se
fosse possível considerar que os agentes eletrónicos são auxiliares do devedor no
cumprimento das obrigações que este se obrigou a cumprir eletronicamente.
O efeito da aplicação do artigo seria o de responsabilizar o devedor por falhas
mecânicas dos agentes eletrónicos, produzidas independentemente de qualquer
falta de diligência humana. O problema que se coloca é que, face ao estado
atual da técnica, os agentes eletrónicos não são passíveis de um juízo de cen‑
sura, o que significa que não têm culpa. Pode aplicar-se o artigo 800.º quando
o auxiliar não tiver agido com culpa?
O devedor encontra-se obrigado a um determinado grau de cuidado e
perícia, “não podendo este, recorrendo a auxiliares, ficar em melhores condi‑
ções do que se a obrigação fosse diretamente cumprida por si”, o que permite

ponsabilidade por factos ilícitos, uma modalidade autónoma com fundamentos próprios, que se aplica
quando a responsabilidade individual não se puder apurar e se verificar a velha máxima ubi commoda,
ibi incommoda, dando mesmo como exemplo o funcionamento de instalações técnicas sofisticadas, a
informatização de muitos processos e o fabrico robotizado em grandes séries.
17 Embora a culpa se presuma, como resulta do artigo 493.º do Código Civil.

18 Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de novembro. A título póstumo face à versão original do texto, temos

que referir que a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de setembro


de 2022, sobre a responsabilidade por produtos defeituosos (2022/0302 (COD)), não só estende a
noção de produto, mas também a própria noção de dano, que passa a incluir danos à saúde psicoló‑
gica e perda ou corrupção de dados não destinados a uso profissional.

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   85

a conclusão pacífica de que o critério de apreciação da culpa relativamente


ao ato de não cumprimento deve assentar na diligência e nas aptidões exigí‑
veis ao devedor, não podendo este desculpar-se com circunstâncias pessoais do
auxiliar19.
Se a culpa é aferida sob a perspetiva do devedor, que não pratica qualquer
ato, isto poderia levar-nos a prescindir da apreciação, e consequentemente,
da própria exigência de culpa do auxiliar. A verdade é que, considerando a
imputabilidade um requisito específico e próprio, a doutrina tradicional exige a
imputabilidade do auxiliar20. Nas palavras de Vaz Serra, “visto que o devedor,
se o facto fosse seu, somente responderia caso ele lhe fosse imputável, também,
tratando-se de um facto de um auxiliar do devedor, este deve responder apenas
quando esse facto, se nas mesmas circunstâncias fosse praticado por ele devedor,
lhe fosse imputável”21. A ser assim, dada a inimputabilidade dos agentes eletró‑
nicos, estaria afastada a aplicabilidade do regime do artigo 800.º à problemática
em análise.
Mas esta perspetiva tradicional (que exige a imputabilidade do auxiliar, a
título primário) parece ignorar que o artigo 800.º se refere à responsabilidade
pelo não cumprimento de uma obrigação a que apenas o devedor (e não o auxi‑
liar) se encontra vinculado, o que afasta necessariamente qualquer julgamento
de ilicitude e culpa relativamente à atuação do auxiliar22. O regime consa‑
gra uma ficção jurídica, configurada como uma hipótese de responsabilidade
direta23, através da qual se projeta “o comportamento do auxiliar na pessoa do
devedor, isto é, este será responsável logo que a atuação dos auxiliares, pensada

19 Rocha, Maria Victória, “A imputação objectiva na responsabilidade contratual - algumas consi‑


derações”, Revista de Direito e Economia, 15 (1988), p. 97.
20 Pinto Monteiro, António, “Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil”, Separata

do volume XXVIII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1985),


p. 262, exclui a aplicabilidade do artigo 800.º quando o auxiliar seja inimputável: “esta expressão –
‘como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor’ – não pode ser tomada, no entanto, rigo‑
rosamente à letra: por um lado, porque o devedor não será, em princípio, responsável, se o auxiliar
for inimputável, apesar da imputabilidade do devedor”.
21
Vaz Serra, Adriano, “Culpa do devedor ou do agente”, Boletim do Ministério da Justiça, 68 (1957),
p. 280. No mesmo sentido, Pessoa Jorge, Fernando (1972), Ensaio sobre os pressupostos da responsabili-
dade civil, Lisboa: Centro de Estudos Fiscais da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, p. 140.
22 Ainda que se pudesse defender que o auxiliar é obrigado a cumprir a obrigação a título próprio

(e.g., através da teoria da eficácia externa das obrigações), isso pressuporia que os agentes eletróni‑
cos fossem titulares de personalidade jurídica, pois só assim seriam titulares de uma esfera jurídica e
poderiam estar adstritos a obrigações, o que não se verifica.
23 Seguindo a terminologia utilizada por Menezes Cordeiro, António (1997), Da responsabilidade

civil dos administradores das sociedades comerciais, Lisboa: Lex, p. 487.

RDC I (2023), 1, 77-103


86 Joana Ribeiro de Faria

na pessoa do devedor, preencha uma previsão de responsabilidade”24. Não se


vê, por isso, por que razão exigir a imputabilidade dos agentes eletrónicos.
A ideia subjacente ao artigo 800.º é a de que o devedor se obriga a uma
determinada conduta, pelo que, se se serve de terceiros para cumprir, fá-lo a
seu próprio risco. Estamos perante uma responsabilidade objetiva na medida
em que a culpa do devedor é ficcionada, não tendo sido ele a atuar, mas ainda
assim não inteiramente objetiva porque o risco não é absoluto, mas contido e
delimitado pelo próprio dever de diligência a que o devedor se obrigou. Por
outras palavras, entendemos que o devedor não se responsabiliza se, tivesse sido
ele a atuar, não se preenchessem os pressupostos da responsabilidade civil. Só
assim se manteria válida a afirmação de Vaz Serra, segundo a qual “a responsa‑
bilidade do devedor pelos factos dos auxiliares não deve ir ao ponto de colocar
o credor em melhor posição do que a que teria, se o facto fosse praticado pelo
próprio devedor”25.
Por esta razão, a hipótese do artigo 800.º não permite responsabilizar o
devedor se a falha não pudesse ter sido evitada com o recurso a todas as pre‑
cauções devidas. É que se o devedor cumprisse a título pessoal, não delegando
quaisquer funções, só seria responsável se não tivesse sido diligente, isto é, se
tivesse tido culpa no não cumprimento, ou se a impossibilidade superveniente
pudesse ter sido prevenida, controlada ou superada, respeitando-se os deveres
de cuidado exigíveis ao bom pai de família26. Assim, a aplicação do artigo 800.º
à problemática em análise pressupõe fazer equivaler a falha em si a uma falta
de diligência do devedor, o que é estranho porque o próprio devedor não tem
muitas vezes a capacidade de processamento de dados do agente eletrónico, isto
é, não sabe chegar ao resultado do agente eletrónico, e por maioria de razão
dificilmente saberia evitar o erro em causa27. O que o devedor poderia, por
exemplo, era monitorizar as condições de funcionamento do agente eletrónico

24 Carneiro da Frada, Manuel, “Contrato e deveres de proteção”, Separata do volume XXXVIII do


Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1994), p. 210. Como explica
Madaleno, Cláudia (2014), A responsabilidade obrigacional objetiva por fato de outrem, Lisboa: Facul‑
dade de Direito da Universidade de Lisboa, p. 1003, “ao projetar a conduta do auxiliar na pessoa do
devedor, o art. 800.º/1 do CC parece prescindir de qualquer imputação.”
25
Vaz Serra, Adriano, “Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos representantes
legais ou dos substitutos”, Boletim do Ministério da Justiça, 72 (1958), p. 280.
26 Recorrendo à formulação de Monteiro Pires, Catarina (2017), Impossibilidade da prestação, Coim‑

bra: Almedina, p. 612.


27 Köhler, Helmut, “Die Problematik automatisierter Rechtsvorgänge, insbesondere von Willen‑

serklärungen”, Archiv für die civilistische Praxis, 1982, p. 168 recusa a aplicação do § 278.º do BGB (o
nosso artigo 800.º) aos auxiliares eletrónicos com o argumento de que o artigo se baseia em culpa
humana, pressupondo que o resultado fosse previsível e evitável.

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   87

e os dados a que este tem acesso, mas aqui já estaríamos a avaliar o comporta‑
mento do próprio devedor, e por conseguinte, estaríamos fora do âmbito do
artigo 800.º.
Em suma, a aplicabilidade do artigo 800.º à matéria em análise pressupõe
que o “comportamento” do auxiliar, a falha de um sistema mecânico, seja apre‑
ciado na esfera jurídica de uma pessoa humana, o que é problemático porque os
mecanismos eletrónicos em si são involuntários, no sentido de não serem con‑
troláveis pela vontade. No fundo, e não há grande volta a dar a esta conclusão,
o artigo 800.º pressupõe que o auxiliar seja uma pessoa humana.

4. Abre-se este parágrafo para explicar que o legislador poderia ter con‑
sagrado uma outra solução – o que, reiteramos, não fez. Carneiro da Frada
defende que teria sido possível trilhar um caminho mais límpido e simples,
se se tivesse consignado abertamente uma responsabilidade objetiva pela uti‑
lização de terceiros no cumprimento do programa obrigacional. Na prática,
e pelas razões expostas anteriormente, estaríamos fora do âmbito do artigo
800.º, embora o fundamento para a responsabilidade objetiva se devesse reti‑
rar, segundo o autor, dos princípios subjacentes a essa norma. O artigo 800.º
é perspetivado por Carneiro da Frada como uma consagração do princípio ubi
commoda, ibi incommoda28, considerando que o tráfico negocial, num quadro
de divisão e especialização do trabalho, postula irrecusavelmente a garantia do
devedor pelo adequado desempenho dos terceiros de que se serve. Além disso,
uma vez que o devedor tem inteira liberdade para definir o programa de rea‑
lização da prestação (princípio da intangibilidade da prestação), sem interfe‑
rência do credor29, não é justo que possa lançar sobre o credor os correspon‑
dentes riscos, não só porque é o devedor quem beneficia com o recurso aos
auxiliares30, aumentando o seu raio de ação negocial e potenciando os seus

28
Carneiro da Frada, ob. cit, p. 307.
29 Carneiro da Frada, “A responsabilidade objectiva por facto de outrem face à distinção entre
responsabilidade obrigacional e aquiliana”, Direito e Justiça, 12 (1998), pp. 303-304, explicando que
“verificado o incumprimento de uma obrigação de prestação de facto fungível, preclude em prin‑
cípio ao credor que satisfaça coativamente o seu interesse obrigando o devedor a mudar as pessoas a
quem ele incumbira de realizar a prestação. Apenas lhe é permitido obter a execução específica da
prestação promovendo a prestação por um terceiro à custa do devedor (cf. art. 828).” Acrescenta‑
mos que, nos termos do artigo 767.º do Código Civil, o credor só excecionalmente se pode recusar
a receber uma prestação de terceiro.
30 Não são de desconsiderar em absoluto os argumentos de alguns autores alemães, citados por Rocha,

ob. cit., p. 84, que negam a aplicabilidade do § 278.º do BGB (o nosso artigo 800.º) aos agentes ele‑
trónicos, entendendo que a automatização diminui a possibilidade de erros e possibilita a diminui‑
ção de custos, o que, num sistema de concorrência, só beneficia o credor. Porém, Jordano Fraga,

RDC I (2023), 1, 77-103


88 Joana Ribeiro de Faria

lucros31, como só ele poderá calcular e controlar a maior parte desses riscos32.
A aceitação desta hipótese de responsabilidade objetiva pela utilização de ter‑
ceiros no cumprimento do programa obrigacional seria útil, uma vez que tor‑
naria dispensável analisar se a omissão do comportamento devido corresponde
ou não, objetivamente, a uma falta de diligência. O devedor responsabilizar‑
-se-ia objetivamente pelas falhas dos agentes eletrónicos que se traduzissem no
não cumprimento de uma obrigação33.
Esta perspetiva foi desenvolvida em Itália por Trimarchi que desenvolveu o
conceito de “esfera de risco”, onde inclui todas as causas internas à organização
do devedor, excluindo apenas os eventos estranhos ao círculo de atividade do
devedor, desprovidos de qualquer ligação, mesmo ocasional, com a própria ati‑
vidade, defendendo que o devedor deve assumir responsabilidade por qualquer
falha localizada na sua esfera de risco34. Segundo este entendimento, o devedor
é chamado a responder em todos os casos em que o não cumprimento se fique
a dever a disfunções no seu âmbito organizacional, mesmo que tenha utilizado
os mecanismos adequados para evitar as avarias e tenha mantido cuidadosa‑
mente os seus meios de produção. A ideia estruturante da “esfera de risco” é a
de que, como este tipo de eventos se aproxima mais do âmbito de controlo do

Francisco (1994), La responsabilidad del deudor por los auxiliares que utiliza en el cumplimiento, Madrid:
Civitas, p. 442, replica que as vantagens que possam resultar para o credor da utilização de auxiliares
serão indiretas, e não põem em causa que o destinatário principal seja o devedor.
31 Ferreira Múrias, Pedro, “A responsabilidade por actos de auxiliares e o entendimento dualista

da responsabilidade civil”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 37 (1996), p. 210,


considera que não é suficiente fundar a lógica do artigo 800.º no benefício que o devedor terá ao
alargar as suas possibilidades de ação e, assim, de lucro, com a divisão do trabalho, pois tal excluiria a
responsabilidade do devedor nos casos em que o auxiliar é o especialista cuja intervenção é necessária.
É que nesses casos não haveria uma “divisão” propriamente, crítica que é particularmente relevante
para a problemática em análise, tendo em conta a complexidade dos mecanismos empreendidos pelos
agentes eletrónicos, que escapam ao raciocínio humano, razão pela qual são empregues. Tendo em
conta que vários são os fundamentos invocados no texto para fundar o princípio do artigo 800.º, para
além da divisão do trabalho, a crítica parece ultrapassada, sem necessidade de mais desenvolvimentos.
32
Carneiro da Frada, Manuel, “Contrato e deveres de proteção”, Separata do volume XXXVIII do
Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1994), p. 212. O autor até vai
mais além, considerando que se o artigo 800.º do Código Civil se relaciona com a atividade debitória
e tem em vista a tutela do interesse do credor, pode retirar-se do artigo 1044.º um princípio ainda
mais geral de responsabilidade pelo próprio círculo de vida.
33 Curiosamente, Pinto Monteiro, ob. cit., p. 263 defende que “assentar a responsabilidade do deve‑

dor na culpa do auxiliar poderá não constituir sempre a solução mais adequada para o problema”,
apontando para uma responsabilidade pelo risco da empresa.
34 Trimarchi, Pietro, “Incentivi e rischio nella responsabilità contrattuale”, Rivista di diritto civile, 54

(2008), p. 194. Visintini, Giovanna (2005), Trattato breve della responsabilità civile, 3.ª ed., Milão: Cedam,
p. 192, aderindo à tese de Trimarchi, e procurando demonstrar o seu acolhimento jurisprudencial.

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   89

devedor, deve ser este, e não o credor, a arcar com as consequências de uma
eventual falha35.
Trimarchi sustenta esta construção com base numa análise económica da
responsabilidade contratual, e considera que esta solução é mais eficiente, uma
vez que incentiva o devedor a cumprir. Isto é, sabendo o devedor que será res‑
ponsável por qualquer disfunção interna da sua organização, é instado a empe‑
nhar o esforço, despesas e medidas que lhe pareçam justificadas para evitar o
dano. Em segundo lugar, sob o ponto de vista da justiça da repartição de riscos,
estes passam a ser suportados pela parte que melhor os pode prever, controlar
e gerir e, assim, calcular e acautelar o seu possível impacto, nomeadamente
através da contratação de seguros. Em terceiro lugar, e em termos de prova, a
responsabilidade do devedor deixa de depender da avaliação exata da causa da
falha (nem sempre determinável), o que gera maior simplicidade e certeza no
julgamento36. Finalmente, Trimarchi alega que esta solução é exigida de modo
a garantir a coerência normativa com as regras que impõem que o devedor
responda pelo não cumprimento dos seus auxiliares (mesmo sem culpa da sua
parte)37, com as normas que atribuem ao devedor o risco do perecimento do
bem genérico, antes da concentração38, com o princípio de que a não solvabi‑
lidade financeira não constitui uma hipótese de impossibilidade (o que significa
que o devedor se responsabiliza por garantir que tem recursos suficientes para
desenvolver a sua atividade empresarial) e, por fim, numa interpretação algo

35 Nas palavras de Brandão Proença, José Carlos (2019), Lições de cumprimento e não cumprimento
das obrigações, 3.ª ed., Porto: Universidade Católica Portuguesa, p. 217, “não se pode esquecer que
existem vicissitudes mais próximas dos contraentes (por ex., doença do devedor, greve localizada,
falhas, avarias e anomalias do material utilizado, utilização de auxiliares com efeitos danosos, doença
do credor, incêndio na sua fábrica, inundação ou curto-circuito no seu domicílio), suscetíveis de
integrar, para alguns, as chamadas ‘esferas de risco’, implicando, nalguns casos, soluções mais particu‑
lares (na linha de uma mera imputação objetiva) e propiciando maior possibilidade de prevenção ou
minimização de efeitos”. A questão é que, como vimos, a teoria se aplica mesmo que o devedor não
tenha tido, no caso concreto, qualquer hipótese de evitar o dano. A propósito de greves localizadas
que sejam causas de impossibilidade de prestar, Visintini, ob. cit., p. 198 admite que os tribunais
italianos procuram apurar se o devedor incumpriu deveres para com os empregados em greve ou se
resistiu a reivindicações, no sentido de determinar se a causa, a greve, é, ou não, imputável ao deve‑
dor. Contudo, conclui, na linha de Trimarchi, que seria mais correto considerar simplesmente que a
greve da empresa é uma disfunção do devedor e que, como tal, é uma causa imputável a este último.
36 Trimarchi, ob. cit., p. 349. Segundo Visintini, ob. cit., p. 200, uma vez que cabe ao devedor

provar que a causa da impossibilidade de cumprir não lhe é imputável, este último responsabiliza‑
-se caso não demonstre a origem externa da causa, o que significa na prática que assume o risco de
ocorrência de causas desconhecidas.
37 Como, entre nós, resulta do artigo 800.º do Código Civil.

38 Como, entre nós, resulta do artigo 540.º do Código Civil.

RDC I (2023), 1, 77-103


90 Joana Ribeiro de Faria

dúbia, com o artigo 79.º da Convenção Internacional de Venda de Merca‑


dorias, segundo a qual uma parte não se encontra obrigada a indemnizar os
danos se provar que o impedimento se encontrava fora do seu controlo39 (e se
o impedimento ou as suas consequências forem imprevisíveis e inevitáveis)40.
Trimarchi limita a aplicação desta teoria aos casos em que a atividade do
devedor é prestada através de uma organização de produção, com caráter de
continuidade41. O conceito de organização de produção é, contudo, bastante
amplo, e parece incluir todos os meios técnicos usados pelo devedor para cum‑
prir a sua prestação. Assim, por exemplo, um sistema de vigilância antifurto
constitui, na perspetiva do autor, um instrumento organizativo. Nestes termos,
numa hipótese em que, no âmbito de um contrato de depósito, o devedor
assegura a guarda da coisa com um sistema de vigilância antifurto, mas apesar
da manutenção diligente e cuidadosa do equipamento de vigilância, este não
funciona, o devedor é responsabilizado. Isto porque, apesar de o depositante
não ter culpa no que diz respeito à falha, a disfunção localiza-se dentro da sua
esfera de organização42.
A posição de Trimarchi não surge isolada na doutrina italiana, havendo
autores com opiniões substancialmente idênticas, com nuances ao nível da fun‑
damentação. Monateri, por exemplo, defende a responsabilidade objetiva para
os casos em que apenas uma das partes está em condições de tomar medidas
para prevenir o resultado43, e Castronovo considera que deve ser responsável
pelo dano a pessoa que “antes da sua ocorrência se encontrava em melhor
posição para avaliar a oportunidade de o evitar e a forma de o evitar da forma
mais conveniente, de modo que a ocorrência do dano resulta de uma opção
pelo dano”44.
Estas teorias da “esfera do risco” poderiam ser úteis no domínio em que nos
movemos, na medida em que, a partir do momento em que o devedor decide

39 Em inglês, utiliza-se a expressão “beyond his control”, o que Trimarchi parece interpretar como
sendo sinónimo de fora da esfera de controlo. A versão portuguesa contém, corretamente, a expres‑
são “alheio à sua vontade”.
40 Trimarchi, ob. cit., p. 355.

41 Trimarchi, Pietro (2017), La responsabilità civile: atti illeciti, rischio, danno, 1.ª ed., Milão: Giuffrè

Francis Lefebvre, p. 285. Embora haja autores que refutem tal restrição, tal como Visintini, Gio‑
vanna (1979), La responsabilità contrattuale, Nápoles: Jovene, p. 73, que contesta que se deva distin‑
guir, neste domínio, entre pessoa singular e empresa, propondo que o regime se estenda a toda a
responsabilidade profissional.
42 Trimarchi, Pietro, “Incentivi e rischio nella responsabilità contrattuale”, Rivista di diritto civile,

54 (2008), p. 350.
43 Monateri, Pier Giuseppe (1998), La responsabilità civile, Turim: UTET, pp. 6-10.

44 Castronovo, Carlo (2018), Responsabilità civile, Milão: Giuffrè, pp. 23-24.

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   91

recorrer a agentes eletrónicos para cumprir as suas obrigações, integra-os na sua


esfera de organização, o que levaria a que qualquer falha de comportamento
dos agentes eletrónicos (não interessaria exatamente averiguar que falha é, a que
nível ocorreu, nem se podia ter sido evitada) o responsabilizasse.

5. Em Portugal, poder-se-ia dizer que Baptista Machado veio introduzir


a ideia da responsabilidade civil contratual objetiva, ao sustentar que as perdas
e aumentos de custos ocasionados pela ocorrência de uma vicissitude que per‑
turbe o plano contratual devem ser suportados por aquela das partes em cuja
esfera de vida ou em cuja empresa se insere a contingência que perturbou o dito
plano, salvo diversa estipulação dos contraentes45. A partir desta formulação
genérica, seria possível extrair a conclusão de que um agente se responsabili‑
zaria pelos danos causados à contraparte, sempre que esses danos tivessem tido
origem numa esfera de risco que teoricamente lhe pertencesse, ainda que na
prática nada pudesse ter feito para evitar o resultado, isto é, ainda que tivesse
agido sem culpa. Aproximar-se-ia, assim, Baptista Machado, da visão de Tri‑
marchi. Porém, uma leitura atenta da tese do jurista português permite con‑
textualizar o seu ensinamento num quadro de raciocínio que parte da distinção
clara entre os conceitos de “risco” e de “responsabilidade”.
Baptista Machado começa por identificar, no contrato, o risco da prestação,
que onera o devedor, e que se traduz em estar o devedor obrigado a cumprir,
enquanto a prestação for possível (suportando assim qualquer agravamento de
custo ou aumento de dificuldade de cumprimento, nomeadamente uma dete‑
rioração do objeto da prestação, o risco do desperdício do valor-utilidade ou
rendimento da prestação e o desaproveitamento de uma capacidade de prestar
vinculada por efeito do simples decurso do tempo), e em perder o direito à
contraprestação e os dispêndios feitos com vista à prestação, assim que esta se
torne impossível46.
Em regra, o devedor suporta o risco da prestação, e por isso Baptista
Machado determina que qualquer contingência que atinja a prestação em si
(como conduta ou processo, ou no seu objeto), pertence à esfera do devedor
e deve ser suportada por este último. Excecionalmente, havendo mora por
parte do credor, deve o devedor ser exonerado do risco da prestação. Isto é,
só quando o plano contratual se frustre ou venha a falhar por contingências
relacionadas com o uso da prestação pelo credor, ou com a esfera de vida ou
empresa deste (atinentes, portanto, à participação deste na concreta execução

45
Baptista Machado, João (1991), “Risco contratual e mora do credor”, in Obra Dispersa, vol. I,
Braga: Scientia Iuridica, p. 292.
46 Ibid, p. 274.

RDC I (2023), 1, 77-103


92 Joana Ribeiro de Faria

da prestação, por exemplo, se o credor não presta a colaboração necessária, tor‑


nando assim mais dispendiosa a prestação), é que temos um risco de utilização
(ou de cooperação), que é risco do credor47. Por conseguinte, e como acima
foi dito, o ilustre Professor conclui que as perdas e aumentos de custos causadas
por uma perturbação do plano contratual, devem ser suportadas pela parte de
cuja esfera de vida ou de cuja empresa procede a contingência que perturbou
o dito plano. Fica assim estabelecida a ideia de que a “responsabilidade” pelos
custos contratuais é repartida em função de critérios objetivos.
Acontece, contudo, que, como defende Baptista Machado, risco e respon‑
sabilidade são conceitos diferentes, e as normas que regulam a impossibilidade
e a mora do credor visam primacialmente determinar o destino das prestações,
e só excecional e lateralmente contêm um certo aspeto de regulamentação
da responsabilidade do devedor (como ocorre, por exemplo, com os artigos
792.º, 814.º, n.º 1 e 815.º, n.º 1 do Código Civil)48. Estabelece-se assim uma
distinção entre responsabilidade civil, que se relaciona com o ressarcimento dos
danos causados à contraparte com a perturbação do plano contratual, e risco,
relacionado com o aumento de custos suportados na esfera do próprio com
a perturbação do plano contratual por si assumido, sendo que a referência de
Baptista Machado à distribuição de encargos segundo regras objetivas apenas
diz respeito ao risco, e não à responsabilidade civil.
A explicitação que faz o autor quanto ao regime consagrado no artigo
792.º, n.º 1, do Código Civil, demonstra bem a referida distinção. Segundo
esta norma, em caso de impossibilidade temporária não imputável ao devedor,
este último fica isento de responsabilidade pela mora, isto é, não tem de res‑
sarcir os danos causados pelo atraso no cumprimento. Contudo, mesmo nesse
caso, o devedor não fica isento do risco associado à impossibilidade temporária,
no qual se inscreve o risco da perda ou diminuição do valor-utilidade da pres‑
tação. Nestes termos, seguindo o exemplo de Baptista Machado, se o devedor
estiver obrigado a fornecer um aparelho que, depois de montado, só tem um
certo período operativo útil e ocorrer, depois da montagem, uma impossibili‑
dade temporária, o credor, apesar de não ter direito a uma indemnização pelo
atraso na entrega, pode exigir a confeção e montagem de um novo aparelho
(porquanto a prestação devida, ainda possível, consiste na entrega de uma coisa
com um certo prazo operativo útil)49.
Na verdade, de acordo com o ordenamento jurídico português, perante
uma situação de impossibilidade, que ocorre quando, por qualquer circunstân‑

47
Ibid, 274 e 289.
48
Ibid, 280 e 339.
49 Ibid, 287-288.

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   93

cia, o comportamento exigível do devedor, segundo o conteúdo da obrigação,


se torna inviável50, é essencial determinar a sua causa à luz do princípio da
culpa. Pois se a causa da impossibilidade for imputável ao devedor, isto é, se o
evento que a determina for suscetível de ser prevenido, controlado ou supe‑
rado, respeitando-se os deveres de cuidado exigíveis ao bom pai de família51,
a impossibilidade será tratada como uma hipótese de não cumprimento, que
responsabiliza o devedor pelos danos causados. Assim decorre expressamente
dos artigos 798.º e 801.º do Código Civil. Já quando a impossibilidade não for
imputável ao devedor, este deixa de se responsabilizar pelos danos, por faltar o
elemento subjetivo do ato ilícito, isto é, por não ser possível formular relativa‑
mente ao agente, a respeito da omissão do comportamento devido, um juízo
ético-jurídico de reprovação ou censura52 - salvo, claro, se as partes acordarem
previamente em assumir uma responsabilidade objetiva (através da constituição
de uma obrigação de garantia)53. Isto demonstra a centralidade e essencialidade
do requisito da culpa no regime português da responsabilidade civil.
Em jeito de síntese quanto ao que até agora foi escrito, a teoria das esferas
do risco, traduzida numa responsabilidade objetiva pela utilização de agentes
eletrónicos no cumprimento do programa obrigacional, não nos parece poder
ser adotada em Portugal atendendo ao princípio da taxatividade consagrado no
artigo 482.º, n.º 2, do Código Civil54.

6. Além disso, a doutrina de Trimarchi acabou por ser indiretamente dis‑


cutida e afastada, quando se concluiu, já nos anos quarenta do século anterior,
no sentido da irrelevância da distinção entre conceitos de “caso fortuito” e
de “força maior”. Paulo Cunha fazia referência aos critérios tradicionalmente
utilizados para distinguir os dois conceitos, identificando a teoria inicialmente
formulada por Bourjoin, e desenvolvida por Josserand, segundo a qual o caso
fortuito seria formado por aqueles factos que, embora não concorrendo o deve‑
dor moralmente para eles, nascem do próprio círculo de atividade do devedor

50 Antunes Varela, João de Matos (1997), Das obrigações em geral, vol. II, 7.ª ed., Coimbra: Alme‑
dina, p. 67.
51 Recorrendo à formulação de Monteiro Pires, ob. cit, p. 612.

52
Pessoa Jorge, ob. cit., p. 315.
53 As partes podem assumir uma obrigação de garantia relativamente ao resultado, nos termos da

qual o devedor será responsável haja o que houver, não tendo possibilidade de se exonerar através
da invocação de uma causa estranha que haja tornado a obrigação impossível, cf. Antunes Varela,
ob. cit., p. 74.
54 Como conclui Madaleno, ob. cit., p. 1011, pese embora seja indiscutível que são muitos os casos

em que se verifica a responsabilidade objetiva do devedor por fato de outrem, não é possível extra‑
polar este regime para um princípio geral.

RDC I (2023), 1, 77-103


94 Joana Ribeiro de Faria

(por oposição à força maior, que constituiria uma causa estranha à atividade)55.
Seriam casos fortuitos aqueles relativamente aos quais se pode descobrir um
qualquer nexo de causalidade, mesmo material, com a esfera das atividades e
dos meios do devedor. E dava o exemplo de um acidente ocorrido com uma
máquina de um operário, que decepou a mão de um funcionário. Dado que a
máquina pertencia aos meios industriais do operário, meios que ele estabelece
e administra, com os quais colhe lucro, apesar de se ter demonstrado que “a
máquina funcionava bem, que o mecanismo era impecável, e que não havia
qualquer imputabilidade a atribuir ao dono da fábrica”, o acidente classifica-se
como um mero caso fortuito56. O que o autor concluiu, e aqui é que bate o
ponto, é que, no ordenamento jurídico português, o referido critério de dis‑
tinção entre força maior e caso fortuito seria absolutamente irrelevante, porque
os efeitos são os mesmos, e nos dois casos o devedor fica isento de responsabi‑
lidade57. A distinção, explicava, só teria relevância se o devedor se responsabi‑
lizasse quanto aos casos fortuitos, ficando exonerado relativamente a circuns‑
tâncias de força maior. Admitindo que tal teria por consequência implementar
um regime de responsabilidade objetiva, concluiu que tal distinção é feita pelo
legislador exclusivamente a propósito de matérias especiais58.

7. Mais ainda, a doutrina e a jurisprudência consideram que mesmo quando


um evento pertence à esfera de controlo do devedor, por ser abstratamente
previsível e evitável, o devedor pode ainda assim afastar a sua responsabilidade,
se provar que foi diligente, o que afasta em absoluto a teoria de Trimarchi.
Começou por não ser assim, já que o artigo 705.º do Código Civil de 1867
(Código de Seabra) estipulava que “o contraente, que falta ao cumprimento do
contrato, torna-se responsável pelos prejuízos que causa ao outro contraente,
salvo tendo sido impedido por facto do mesmo contraente, por força maior,
ou caso fortuito, para o qual de nenhum modo haja contribuído”. À luz deste
preceito, defendia-se que a presunção de culpa do devedor apenas poderia ser
ilidida se este provasse que tinha sido impedido de cumprir por facto do credor,
caso fortuito ou força maior59. Esta interpretação, que já na altura era posta em

55 Cunha, Paulo (1943), Direito das obrigações: o objecto da relação obrigacional: apontamentos das aulas
da 2a cadeira de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa: Universidade de
Lisboa, p. 275.
56 Ibid, p. 275.

57 Ibid, p. 276.

58 Ibid, p. 277.

59 Antunes Varela, João de Matos e Pires de Lima (1961), Noções fundamentais de direito civil, vol. 1,

Coimbra: Coimbra Editora, p. 388. No mesmo sentido, Cunha, ob. cit., p. 249 e Galvão Telles,
Inocêncio (1980), Direito das obrigações, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 196.

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   95

causa por Pessoa Jorge, por levar a adotar, até certo ponto, o mecanismo da
responsabilidade objetiva no não-cumprimento das obrigações, é afastada pelo
atual Código, que não impõe qualquer restrição aos meios de ilidir tal presun‑
ção60. Neste sentido, o devedor pode fazer a prova direta da ausência de culpa,
demonstrando por exemplo que realizou as condutas impostas pela diligência
normativa (que atuou da forma que lhe era exigível)61.
Demonstrador deste entendimento é o Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de 3 de outubro de 201362, que discutiu um caso em que uma empresa
de fornecimento de energia interrompeu provisoriamente a prestação de servi‑
ços devido a um acidente com uma cegonha, eletrocutada nas linhas de distri‑
buição. O contrato celebrado entre as partes continha um elenco exemplifica‑
tivo de causas fortuitas ou de força maior (e.g., greve geral, alteração da ordem
pública, etc.), relativamente às quais o devedor se não responsabilizava, e do
qual se excluía aquilo a que se designava como “causas próprias”, em que se
encontravam as interrupções provocadas por animais. A referência ao conceito
de “causas próprias” parece “internalizar” a passagem de cegonhas, elemen‑
tos tecnicamente estranhos ao devedor, na esfera de organização do devedor.
É como se as partes tivessem acordado que as cegonhas pertencem à “empresa”
do devedor, o que importa o reconhecimento de que, tal como relativamente
a todos os elementos da sua organização – que o devedor conhece e controla -,
a passagem das cegonhas é previsível e controlável.
Caso se aplicasse, no nosso ordenamento jurídico, o conceito de esfera
de risco segundo a doutrina defendida por Trimarchi, o não cumprimento da
obrigação devido a um facto incluído na esfera de organização do devedor per‑
mitiria, por si só, responsabilizar o agente. Porém, o Tribunal analisou o com‑
portamento do devedor à luz do cumprimento dos seus deveres de cuidado,
tendo considerado que, tendo ficado demonstrado que as linhas eram regular‑

60
Pessoa Jorge, ob. cit., p. 132.
61 Ibid, p. 133. Como explica Monteiro Pires, ob. cit., pp. 617-618, “o devedor pode, porém, ilidir
a presunção, provando não ter culpa e, realce-se novamente, não ter culpa significa ter agido com a
diligência exigível, ter cumprido os deveres de cuidado a que estava obrigado. O devedor pode pro‑
var que a impossibilidade se ficou a dever a um ‘caso fortuito’ ou de ‘força maior’, de modo a ilidir a
presunção de culpa, mas também pode ilidir esta presunção com outros fundamentos. É a prova das
circunstâncias que comprovam a ausência de culpa, e não dos factos que atestam a impossibilidade
da prestação, que permitirá a exoneração do devedor. Note-se, porém, que o devedor pode provar
a concreta circunstância fortuita que o impediu de cumprir – por exemplo, que certa entidade com
poderes públicos impôs uma restrição impeditiva da integral execução do contrato -, mas pode tam‑
bém ilidir a presunção provando, apenas, que agiu com a diligência que lhe é exigível”.
62 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de outubro de 2013, n.º 3584/04.0TVLSB.L1.S1

(Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), disponível em <www.dgsi.pt>.

RDC I (2023), 1, 77-103


96 Joana Ribeiro de Faria

mente inspecionadas e que tinham sido inspecionadas pouco antes da ocorrên‑


cia, que tinham sido tomadas todas as medidas que a técnica e a ciência dis‑
ponibilizavam até ao momento para evitar que as cegonhas instalassem os seus
ninhos nas linhas elétricas, e que o devedor reagiu imediata e corretamente após
a interrupção de energia, não havia culpa, pelo que afastou a responsabilidade63.

8. Precludida em definitivo a possibilidade de se aplicar em Portugal, à luz


do direito vigente, um regime de responsabilidade objetiva pela utilização de
agentes eletrónicos no cumprimento do programa obrigacional, relembramos
que a nossa preocupação original se deixou relacionar com a dificuldade em
identificar na prática o comportamento ou a medida concreta que deveria ser
adotada para evitar essa falha, o que fica a dever-se à complexidade dos sistemas
eletrónicos. Ora, se a responsabilidade do devedor pelo não cumprimento exi‑
gir a identificação desses elementos pelo credor, estaremos perante um cenário
em que é impossível responsabilizar o devedor – o cenário oposto à hipótese
da sua responsabilidade objetiva. Vimos ainda que uma das preocupações de
Trimarchi, que o conduz à necessidade de adotar a teoria das esferas de risco, é
a de evitar que a responsabilidade dependa da avaliação exata da causa da falha
(nem sempre determinável). A análise deste ponto obriga a proceder à distinção
entre obrigações de meios e obrigações de resultado.
Numa obrigação de resultado, o devedor encontra-se obrigado, segundo
a lei ou o negócio jurídico, a produzir um certo efeito útil64. Por essa razão,
para demonstrar o requisito da ilicitude, basta ao credor provar que esse efeito
– o resultado pretendido - se não produziu. O devedor, sobre quem impende
a presunção de culpa, nos termos do artigo 799.º do Código Civil, tem de
demonstrar que a referida inexecução não resulta de uma causa que lhe seja
imputável ou censurável. Assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a
que nos temos vindo a referir, em que houve uma interrupção de energia por
causa das cegonhas, foi resolvido sem particulares dificuldades de prova para
o credor, a quem bastou demonstrar o não fornecimento da energia. Fez-se
impender sobre o devedor a comprovação de que só esforços extraordinários,

63 Moreira da Silva, Eva, “Responsabilidade extracontratual pelo risco versus responsabilidade


contratual; responsabilidade contratual pelo risco - Anotação ao Acórdão do STJ de 3/10/2013”,
Cadernos de Direito Privado, 45 (2014) critica o Acórdão por entender que é justo que recaia sobre o
fornecedor da energia elétrica este risco, pois é ele quem retira vantagens da atividade de fornecimento
de energia elétrica e quem melhor pode controlar os danos decorrentes desta. Só não será assim se
a situação, de facto, for claramente além do seu controlo, consubstanciando um caso fortuito ou de
força maior. Portanto, embora não formule expressamente esta ideia, pode dizer-se que na prática a
autora considera que a teoria das esferas do risco seria mais adequada.
64 Almeida Costa, Mário Júlio (2009), Direito das Obrigações, 12.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 1040.

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   97

que ele não estava em condições de adotar, poderiam ter evitado a eletrocussão
das cegonhas.
Porém, numa obrigação de meios, o devedor apenas se compromete a
desenvolver, prudente e diligentemente, certa atividade para a obtenção de um
determinado efeito65. Uma vez que o conteúdo da obrigação em si se refere
à tomada de medidas diligentes, a prova da ilicitude, que recai sobre o credor
como fundamento do seu direito de crédito, nos termos do artigo 342.º do
Código Civil, exige a demonstração de que o devedor omitiu ou não adotou
os meios adequados para cumprir a obrigação, e de que portanto a conduta
do devedor não correspondeu à diligência a que se tinha vinculado. A omis‑
são da mais elevada medida de cuidado exterior é, aqui, apreciada em sede de
tipicidade e ilicitude66. Segundo Vaz Serra, incumbe sobre o credor a prova da
medida de diligência do devedor, em face da obrigação que assumiu, devendo
este último tão simplesmente provar que usou essa diligência e, se foi impedido
de a empregar, que tal se deu por facto a si não imputável67. É, portanto, sobre
o credor que impende o ónus de concretizar a medida da diligência devida no
caso concreto68.
Significa isto que, nas obrigações de meios, a prova do ilícito é particu‑
larmente exigente para o credor, já que este se obriga a provar que o devedor
não evitou o que podia efetivamente ter evitado (não fez tudo o que podia ter
feito), sendo certo que normalmente o credor pouco sabe acerca do sistema
eletrónico que pertence ao devedor, e tem muita dificuldade em identificar que
tipo de comportamentos poderia o devedor ter adotado para prevenir a lesão.
Para evitar esta conclusão, desenvolveu-se na Alemanha, há alguns anos, a
doutrina de repartição do ónus da prova segundo esferas de risco, encabeçada
por Prölls. O princípio de que parte esta teoria é o de que, quando é difícil ao
lesado provar a violação dos deveres do lesante, ou quando a causa dos danos
provém de um espaço sob o domínio da organização deste, deve ser este último
(mais próximo) a suportar o encargo de aclarar os factos e a arrostar com as

65 Ibid, p. 1039.
66
Segundo a definição de Pinto Oliveira, Nuno Manuel (2007), “Contributo para a “moderniza‑
ção” das disposições do código civil português sobre a impossibilidade da prestação”, in Estudos sobre
o não cumprimento das obrigações, Coimbra: Almedina, p. 239.
67 Vaz Serra, Adriano, “Culpa do devedor ou do agente”, Boletim do Ministério da Justiça, 68 (1957),

p. 144.
68 Não nos parece necessário entrar aqui na discussão em volta do conteúdo do ilícito, que é a de

saber se este comporta apenas um aspeto objetivo (consubstanciado na omissão do comportamento


devido) ou também um aspeto subjetivo (traduzido na imputação da falta de cumprimento à vontade
do agente), o que faz com que uns ainda atribuam alguma relevância à presunção de culpa prevista no
artigo 799.º (que se cingiria à censurabilidade pessoal da conduta do agente), e que outros a neguem.

RDC I (2023), 1, 77-103


98 Joana Ribeiro de Faria

consequências de uma prova insuficiente (o dever de elucidar um facto deve


onerar quem tem o domínio sobre os factos e o poder de atuar sobre eles, o
que faz com que esta teoria se fundamente também num fim de prevenção).
Na prática, a doutrina entende que quando a causa dos danos não aparece
determinada, mas se situa dentro de uma zona de risco pela qual o devedor é
responsável e relativamente à qual tem deveres, é de presumir que a causa dos
danos está no comportamento ilícito e culposo do devedor69/70. Porém, ao
contrário de Trimarchi, e ao contrário da teoria da distribuição dinâmica do
ónus da prova, de teor mais vasto, utilizada em alguns ordenamentos jurídicos,
tais como o argentino, o brasileiro e o espanhol, que consiste na atribuição do
ónus da prova à parte que apresente maior facilidade em produzir a prova em
relação à parte contrária)71, a jurisprudência alemã não nos remete para uma
esfera abstrata, definida a priori, de círculos de perigo. Só quando o devedor
comete uma falha grave, é que se pode afirmar a existência de um círculo
de perigo (o devedor torna-se responsável por atenuar um risco que gerou).
O lesado deve identificar uma grave falha ou erro do lesante, e deve pro‑
var que a lesão se insere nas consequências ou efeitos abstratamente tutelados
pela norma de cuidado violada72. Assim, por exemplo, quando o médico não
interna o doente sendo evidente a necessidade desse internamento, quando o
médico usa o líquido de uma ampola que estava aberta desde a véspera, o que
em ambos os casos provoca lesões na integridade física; quando o empreiteiro

69 Tudo isto é explicado por Ribeiro de Faria, Jorge, “Da prova na responsabilidade civil médica:
reflexões em torno do direito alemão”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 1 (2004),
pp. 151 e ss., alicerçado nos fundamentos teóricos desenvolvidos na Alemanha e com referência a
decisões jurisprudenciais.
70
Uma ideia semelhante pode ser encontrada na tese de Miranda Barbosa, Mafalda, “Haftungs‑
begründende Kausalität e haftungsausfüllende Kausalität /Causalidade fundamentadora e causalidade
preenchedora da responsabilidade”, Revista da Faculdade de Direito e Ciência Política da Universidade Lusó-
fona do Porto, 2 (2017), na sua proposta de definição do conceito de nexo de causalidade. Segundo a
autora, a imputação objetiva requer a assunção de uma esfera de risco, sendo imputáveis ao lesado os
danos que tenham a sua raiz naquela esfera. Porém, a doutrina de Miranda Barbosa não opera uma
inversão do ónus da prova do nexo de causalidade. Considera apenas que, ao ser tratado o nexo impu‑
tacional como uma questão normativa, a questão passa a estar dependente de um juízo do julgador.
71 Teoria da distribuição dinâmica do ónus da prova, defendida entre nós, por exemplo, por Morais

Carvalho, João, e Teixeira, “Crédito ao Consumo – Ónus da Prova da Entrega de Exemplar do


Contrato e Abuso do Direito de Invocar a Nulidade – Ac. do TRP de 14.11.2011, Proc. 13721/05”,
Cadernos de Direito Privado, 42 (2013).
72 Fazendo referência a decisões dos tribunais Franceses, Italianos e do Reino Unido que igualmente

sancionam a criação injustificada de um risco potenciador do dano que efetivamente se consumou,


cf. Teixeira Pedro, Rute, “A dificuldade de demonstração do nexo de causalidade nas acções rela‑
tivas à responsabilidade civil do profissional médico: dos mecanismos jurídicos para uma intervenção
pro damnato”, Revista do CEJ, 15 (2011), pp. 33-36.

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   99

juntou canos de cobre e canos de ferro zincado, o que veio a determinar suces‑
sivas roturas de canos, presume-se a previsibilidade e a evitabilidade do resul‑
tado, passando a pertencer ao médico e ao empreiteiro o ónus de provar que o
dano (direto) não foi causado por ele, que o dano se teria produzido de igual
forma mesmo que tivesse observado o cuidado exigível.73
A verdade é que na prática, como explica Ribeiro de Faria, a aceitação da
teoria de Prölss justifica-se porque o dever de diligência do médico (obrigação
de meios) se deixa justapor ao dever de proteção por parte do mesmo médico,
de forma que, se ele não deve a cura do doente (caso em que se teria uma obri‑
gação de resultado típico), deve todavia não só o tratamento adequado como
a não lesão do doente em certas circunstâncias (caso do erro grosseiro) e, dessa
forma, a obrigação de meios transmuta-se, nesta precisa medida, numa obriga‑
ção de resultado, abrindo-se o caminho para a inversão da prova de que fala e
que aceita a jurisprudência alemã74. Na verdade, o transportador não está apenas
obrigado a um dever de diligência na realização do transporte, mas também a
não lesar o transportado, fazendo-se impender sobre o transportador o ónus da
prova de que o resultado (a eventual lesão do transportado) era inevitável ou
não foi causado por ele75.

9. Dando um passo à frente, numa outra lógica, e veremos porquê, Calvão


da Silva, a propósito de um célebre acórdão do Supremo Tribunal de Justiça76
em que se discutia se o Banco podia ser responsabilizado pelos danos resultantes
de uma transferência não autorizada, decorrente de uma fraude que permitiu
a um terceiro aceder às coordenadas de acesso ao homebanking, explicava que
a diligência imposta aos operadores financeiros é especialmente qualificada,
impondo-se-lhes elevados níveis de competência técnica no sentido de prote‑
ção dos clientes contra os riscos operacionais de deficiências e fraudes, estatis‑
ticamente previsíveis e próprios da indústria financeira77. Em termos lógicos,
considera este autor, que o resultado legitimamente esperado pelo cliente é o

73 Ribeiro de Faria, ob. cit., pp. 129 e ss.


74 Ibid, p. 174.
75
Em Portugal, a propugnada inversão do ónus da prova da causalidade poderia ser feita recorrendo,
entre outros, ao regime plasmado no artigo 344.º do Código Civil. Como explica Ribeiro de
Faria, ob. cit., p. 191, a história e a letra do artigo 344.º permitiriam aplicá-lo em situações em que
o paciente tenha sido alvo de um erro grosseiro que em si mesmo seja em termos abstratos capaz de
causar o dano de que eles se apresentam como vítimas, com o efeito de inverter o ónus da prova.
76 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de dezembro de 2013, n.º 6479/09.8TBBRG.

G1.S1 (Ana Paula Boularot), disponível em <dgsi.pt>.


77 Calvão da Silva, João, “Conta corrente bancária: operação não autorizada e responsabilidade

civil”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, 144 (2015), p. 315.

RDC I (2023), 1, 77-103


100 Joana Ribeiro de Faria

de que o levantamento, pagamento ou transferência de uma conta só ocorra


por ordem ou autorização da pessoa legitimada para a sua movimentação; veri‑
ficada uma operação não autorizada, existirá responsabilidade do prestador do
serviço, salvo se este provar – trata-se de facto impeditivo do direito à indem‑
nização invocado pelo cliente (art. 342.º, n.º 2, do Código Civil) – ser a mesma
imputada ao cliente. Portanto, atendendo a esse grau superior de diligência
exigível, o autor configura a obrigação de segurança ou, mais genericamente,
obrigação do bom funcionamento dos sistemas eletrónicos, como uma obri‑
gação de resultado78. Por outras palavras, a obrigação de monitorizar a que o
Banco se obrigou, que seria, em regra, uma obrigação de meios, tem em vista
evitar a ocorrência de operações não autorizadas, pelo que bastaria ao credor
demonstrar a existência de uma operação não autorizada, para que ficasse pro‑
vada a ilicitude. Ficaria assim o credor livre do ónus de identificar um qualquer
comportamento que o devedor estivesse obrigado a adotar no quadro da sua
obrigação de monitorização, e que permitisse evitar a operação não autorizada,
comportamento que o credor naturalmente desconhece atendendo à comple‑
xidade e à estranheza do sistema sofisticado usado pelo devedor. Já o devedor,
que pode realmente não ter omitido qualquer dever de cuidado, deverá – e
terá mais facilidade nisso – provar que foi diligente, demonstrando que instalou
as atualizações e que adotou os procedimentos que de acordo com o estado da
técnica atual se revelam adequados a evitar intromissões.
A conversão da obrigação de monitorização numa obrigação de resultado a
que procede Calvão da Silva ocorreu num cenário específico. É que a própria
legislação aplicável ao caso impõe aos prestadores de serviços bancários que, em
primeiro lugar, assegurem a qualidade e segurança do sistema, e que permitam
a movimentação da conta apenas a quem tem legitimidade79.
É certo que esta conversão não se enquadra na teoria alemã das esferas de
risco tal como ela foi exposta. Esta doutrina não opera qualquer inversão do
ónus da prova da ilicitude. O dever de cuidado do médico converte-se, por
exemplo, no dever de não usar o líquido de uma ampola que estava aberta
desde a véspera. Isto é, se usar o líquido, violou o dever de cuidado, razão
pela qual a não utilização da ampola se pode classificar como uma obrigação

78 Ibid, p. 316.
79 Além disso, a legislação impõe que os prestadores de serviços bancários reembolsem e suportem
os prejuízos resultantes de operações de pagamento não autorizadas, a não ser que provem que a
intromissão se deveu à violação de obrigações contratuais por parte do cliente. Esta segunda parte
da legislação impõe-lhes, portanto, uma responsabilidade objetiva (afastada, contudo, pela culpa do
lesado). Porém, a simples conversão de obrigações de meios em obrigações de resultado não tem este
efeito, porque o devedor pode sempre provar que foi diligente.

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   101

de resultado. Portanto, “o que anda latente é a ideia de uma gravidade forte da


ilicitude (que não deve levar todavia a abandonar a zona da responsabilidade
culposa) acompanhada por uma dificuldade de prova por parte do lesado. Uma
gravidade de ilicitude que conduz a que se possa contar com uma atribuição do
risco de resultado ao lesante e ao devedor e a fazer impender sobre um e outro,
por via disso, a presunção da causalidade”80. Em contraste, na nova hipótese
apresentada, o que se faz é configurar como obrigação de resultado o dever de
evitar o resultado típico de uma obrigação de meios. É que a ocorrência de
uma operação não autorizada não configura em si qualquer violação do dever
de cuidado, e por essa razão esta técnica permite inverter o ónus da prova da
ilicitude de uma obrigação de meios. E curiosamente, quando Sinde Monteiro
admite a teoria alemã, fá-lo, entre outros, no pressuposto de que na sua base
está um erro culposo do médico, não bastando a verificação do resultado81.
Em todo o caso, parece-nos que a hipótese apresentada, que consiste em
converter, no domínio dos contratos eletrónicos, as típicas obrigações de meios
em obrigações de resultado, por via convencional ou regulatória, uma vez que
não prescinde do elemento da culpa e sendo assim admissível no nosso orde‑
namento jurídico, seria uma forma de introduzir a teoria do risco no domínio
contratual, e evitaria que a responsabilidade deixasse de depender da identifica‑
ção clara, por parte do credor, da causa da falha, o que nos parece inadmissível
atendendo à sua posição de inferioridade técnica82.

* * *

80
Ribeiro de Faria, ob. cit., p. 180.
81 Sinde Monteiro, Jorge (1991), “Aspectos particulares da responsabilidade médica”, in Direito da
saúde e da bioética, Lisboa: Lex, p. 151.
82 A propósito do Acórdão em análise, Luz dos Santos, Hugo, “Plaidoyer por uma “distribuição

dinâmica do ónus da prova” e pela “teoria das esferas de risco” à luz do recente acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, de 18/12/2013: o (admirável) “mundo novo” no homebanking?”, Revista Ele‑
trónica de Direito (2014), defende a aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ónus da prova,
o que teria o mesmo resultado (embora nos pareça que a técnica proposta é mais límpida e simples).
O autor conclui que esta teoria deveria ser aplicada ao caso concreto no sentido de tornar inadmissí‑
vel exigir-se ao consumidor a prova do mau funcionamento do sistema informático do homebanking,
porquanto é o prestador de serviços quem não só tem maior facilidade em demonstrar a versão factual
que lhe aproveita (de que a utilização fraudulenta do serviço de homebanking por parte de terceiros
não se ficou a dever ao mau funcionamento do sistema informático), mas também porque o facto
respeita pessoalmente ao devedor, na medida em que emerge dos deveres de proteção do patrimó‑
nio e do direito de auto-determinação informacional dos utilizadores do serviço de homebanking e,
ainda, do dever de monitorização do sistema informático emergente da obrigação de prestação de
serviços de homebanking.

RDC I (2023), 1, 77-103


102 Joana Ribeiro de Faria

Tudo visto, encaremos o cenário contratual típico que motivou a nossa


exposição. Imagine-se que uma empresa de fornecimento de cafés disponibi‑
liza uma ferramenta que é inserida na máquina de café do comprador, instalada
em casa deste último, mas montada e monitorizada pela empresa, e que per‑
mite detetar a quantidade de cápsulas existente no reservatório. A ferramenta
tem por objetivo identificar o momento em que as cápsulas escasseiam, o que
imediatamente produz uma ordem de encomenda de novas cápsulas. Ora, a
empresa que fornece a ferramenta obriga-se a monitorizar o sistema e a asse‑
gurar o seu bom funcionamento (obrigação de meios), pressupondo-se que,
caso a máquina se encontre a operar corretamente, será possível identificar o
momento da escassez e emitir uma ordem de encomenda. Caso as cápsulas
esgotem sem que haja uma nova encomenda, poderá o credor responsabilizar
o devedor?
Dissemos que numa obrigação de meios (como a obrigação de monitoriza‑
ção), e apesar da presunção de culpa do artigo 799.º do Código Civil, incumbe
ao credor o ónus de concretizar a medida da diligência omitida que corporiza
o ilícito. Ora, atendendo à complexidade dos agentes eletrónicos modernos,
é praticamente impossível ao credor identificar qual o comportamento que
poderia ter evitado a falha. Foi esta fragilidade da posição do credor relativa‑
mente à prova dos pressupostos da responsabilidade civil que motivou o Par‑
lamento Europeu (embora mais voltado este para a hipótese extracontratual) a
propor, inicialmente, a criação de um regime de responsabilidade civil objetiva
ou a presunção de culpa do operador.
Até lá, concluímos que a responsabilização objetiva do devedor não é pos‑
sível. Atendendo ao teor do artigo 482.º, n.º 2 do Código Civil, seria neces‑
sário identificar uma norma que regulasse uma realidade semelhante à situação
em análise. Vimos que o conceito de defeito presente no regime da responsa‑
bilidade do produtor por coisas defeituosas não é comparável a uma falha ele‑
trónica, e que a solução do artigo 800.º é a de que o devedor não é responsável
se a falha pudesse ter sido evitada por um auxiliar precavido, o que é inapli‑
cável se este último for um agente eletrónico. Além disso, uma solução como
a proposta por Carneiro da Frada e Trimarchi, de responsabilidade objetiva
pela utilização de terceiros inseridos no contexto organizacional do devedor
esbarra com a conclusão a que chegámos de que a culpa é essencial no domínio
da responsabilidade civil subjetiva, e que é sempre possível ao devedor ilidir a
presunção de culpa que sobre si recai fazendo a prova direta da falta de culpa e
demonstrando, por exemplo, que realizou as condutas impostas pela diligência
normativa. Como explica Baptista Machado, as esferas do risco apenas têm
relevância no que diz respeito à regulação do destino das prestações.

RDC I (2023), 1, 77-103


A teoria das esferas do risco. A utilização de agentes eletrónicos no cumprimento…   103

Ainda assim, a ideia subjacente à teoria do risco da empresa, de que o


devedor que utiliza auxiliares (neste caso, agentes eletrónicos) é quem está em
condições de apreciar os riscos ligados à execução do contrato, quem escolhe
o sistema ou os intermediários por si associados à realização da operação, e
quem sabe as atualizações que devem ser instaladas, tem especial relevância no
domínio do cumprimento eletrónico de obrigações, e opõe-se à solução, que
resulta da lei, segundo a qual o credor tem o ónus de identificar a medida da
diligência omitida.
Por este motivo, somos favoráveis à solução de converter, neste domínio,
as típicas obrigações de meios em obrigações de resultado, por via convencional
ou regulatória. A ser assim, bastaria ao credor, no nosso caso, provar que não
há nenhuma ordem de encomenda associada à conta do cliente, apesar de se
terem esgotado as cápsulas. Não se converte o sistema numa forma de respon‑
sabilidade objetiva, pois ao devedor é possível provar que foi diligente e que
cumpriu os seus deveres (e.g., selecionou um sistema de inteligência artificial
adequado para as tarefas e capacidades em causa, instalou regularmente todas
as atualizações disponíveis, etc.), mas evita-se a desresponsabilização prática do
devedor perante todo o tipo de falhas.

RDC I (2023), 1, 77-103


Smart contracts e arbitragem: perspetivas atuais
MARTA BOURA* 1

SOFIA DAVID ** 2

Sumário: 1. Introdução. 2. Os smart contracts: delimitação prévia: 2.1. Distributed


Ledger Technologies; 2.2. Características dos smart contracts; 2.3. Âmbito de aplica-
ção e as cláusulas automatizáveis. 3. Os smart contracts e arbitragem: 3.1. Justificação;
3.2. A “on-chain arbitration” como solução. 4. Observações finais.

Resumo: Neste artigo vamos ocupar-nos dos contratos inteligentes (ou smart con-
tracts) e do desenvolvimento da designada “on-chain arbitration” na resolução dos
litígios advenientes dos contratos inteligentes e da tecnologia blockchain.

Palavras-chave: contratos inteligentes; Direito dos contratos; arbitragem; reso‑


lução de litígios; tecnologia.

Abstract: In this paper we will discuss smart contracts and the development of
the so-called on-chain arbitration for resolution of disputes arising from smart
contracts and blockchain technology.

Keywords: smart contracts; contracts law; arbitration; dispute resolution;


technology.

*
Assistente-Convidada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e doutoranda na mesma
Faculdade. Investigadora do Centro de Investigação de Direito Privado.
** Advogada qualificada em Portugal e em Inglaterra. Licenciada pela Universidade Católica Por‑

tuguesa e Pós-Graduada em Contencioso Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de


Lisboa.

RDC I (2023), 1, 105-115


106 Marta Boura, Sofia David

1. Introdução

I. Por contrato inteligente (ou smart contract) consideramos um acordo entre


determinados agentes ou entidades na forma de um código computacional
armazenado numa plataforma blockchain e que se caracteriza por ser autoexecu‑
tável. Assim, aquele programa executa automaticamente os termos do acordo
(quando se verificam determinadas condições pré-estabelecidas), sem a neces‑
sidade de qualquer intervenção humana e sem a possibilidade de interferência
das partes.
É aquela plataforma blockchain que assegura a imutabilidade daqueles termos
e a sua execução. Poderíamos dizer mais: é o armazenamento e a execução pela
tecnologia blockchain que permite a produção de efeitos da linguagem contra‑
tual ali vertida.
Como tal, a compreensão dos smart contracts não pode prescindir de prévias
considerações sobre a própria tecnologia blockchain.

II. Neste texto a discussão não será, porém, tão extensa. Sem prejuízo de
algumas considerações preliminares para enquadramento dessa tecnologia, ire‑
mos focar-nos, sobretudo, na perspetiva litigiosa decorrente ou associada àque‑
les contratos inteligentes. Em especial, no papel da arbitragem na resolução
desses litígios.
É que, conforme sublinha Riikka Koulu, “[the] use of new information
and communication technologies both inside the courts and in private online
dispute resolution services is quickly changing everyday conflict management.
However, the implications of the increasingly disruptive role of technology in
dispute resolution remain largely undiscussed”1. Poder-se-ia, por isso, começar
por discutir da maior ou menor abertura à transformação tecnológica no campo
jurídico. No entanto, a nós interessar-nos-á abordar especificamente as impli‑
cações de uma realidade em movimento.
Alguns technologists acreditam que os smart contracts podem substituir, inte‑
gralmente, tanto o direito dos contratos, como a atividade dos tribunais (judi‑
ciais ou arbitrais). Esta tese assenta na defesa do código de base dos smart contracts
como suficiente para a contratualização e resolução dos litígios daí resultantes ou
àqueles associados. Não acreditamos que assim seja. Pelo menos para já.
Os smart contracts são uma realidade contratual (ainda) insuficiente. Assim
o ilustram as dificuldades relacionadas com (i) o reconhecimento da validade
destes contratos nos diversos ordenamentos jurídicos, (ii) a imprevisibilidade

1Riikka Koulu, “Law, technology and dispute resolution privatisation of coersion”, Taylor &
Francis, 2019.

RDC I (2023), 1, 105-115


Smart contracts e arbitragem: perspetivas atuais   107

do seu acolhimento em razão de alterações legislativas, (iii) a insuficiência dos


códigos sobre os quais assenta, que não são, como produto humano, infalíveis,
(iv) o anonimato garantido às partes ou, ainda, (v) a (menor, porém, existente)
resistência dos operadores de mercado à tecnologia blockchain.
São essas dificuldades que justificam, em razão da assimetria no acesso e
domínio desta mecânica, o espaço reconhecido, tradicionalmente, tanto ao
direito dos contratos (como o que conhecemos hoje), como aos mecanismos
de resolução de litígios.

III. O que vimos a defender não justifica, no entanto, a desconsideração


desta realidade. É importante estudá-la e ponderar soluções.

2. Os Smart Contracts: delimitação prévia

2.1. Distributed Ledger Technologies

I. As Distributed Ledger Technologies (“DLT”) são tecnologias de armazena‑


mento de informação e consistem em bases de dados digitais dinâmicas relativas
a transações entre os participantes de uma rede digital e armazenadas por estes.
Quando um dos participantes pretenda registar uma nova transação, esta
deve ser processada pelos computadores dessa rede, cuja intervenção na ope‑
ração permite corroborar e confirmar a autenticidade da operação executada2.

II. Ora, a blockchain é um tipo de DLT na qual (i) a informação relativa


a cada transação é armazenada num bloco a ser adicionado a uma sequência
cronológica e (ii) a base de dados é automaticamente atualizada com os novos
dados em cada um dos computadores3.
O sistema funciona de forma a que cada utilizador não possa alterar unila‑
teralmente esta cadeia (pelo menos, sem a validação dos restantes), garantindo
a integridade da informação.
Os dados registados na cadeia de blocos não podem ser alterados retroativa‑
mente, pelo que esta é, nessa medida, irreversível.

2
Norton Rose Fulbright, Arbitrating Smart Contract disputes, 2017, disponível em http://www.
nortonrosefulbright.com/knowledge/publications/157162/arbitrating-smart-contract-disputes.
3 Ainda, sobre o enquadramento da blockchain, veja-se Sthéfano Bruno Santos Divino, “Smart

Contracts: Conceitos, Limitações, Aplicabilidade e Desafios”, RJLB, n. .º 6, 2018, p. 2775 e ss.

RDC I (2023), 1, 105-115


108 Marta Boura, Sofia David

III. Por força destas características, os utilizadores que realizam transações


numa plataforma blockchain depositam a sua confiança, não na contraparte ou
noutros utilizadores individualmente considerados, mas no funcionamento da
própria plataforma4.

IV. Para além de armazenarem informação relativa às transações efetuadas


na plataforma, várias DLT’s e blockchains suportam aplicações descentralizadas
(as “dapps”), como os smart contracts56.

2.2. Características dos smart contracts

I. O conceito de smart contract foi proposto por Nick Szabo, que o define
como “a computerised transaction protocol that executes the terms of a con‑
tract”7. Por outras palavras, temos aqui “um conjunto de promessas incor‑
poradas em formato digital, incluindo protocolos através dos quais as partes
cumprem essas promessas”8.

II. A tecnologia dos smart contracts tem sido utilizada em diversos contextos.
A nossa análise centra-se na execução de contratos jurídicos: os designados
“smart legal contracts”.

4 Cf. Resolução do Parlamento Europeu, de 3 de outubro de 2018, sobre tecnologias de cadeia


de blocos e aplicações de cifragem progressiva: reforçar a confiança através da desintermediação
(2017/2772(RSP)), na qual se pode ler que as DLT “reduzem os custos de intermediação num ambiente
de confiança entre as partes numa transação e permitem trocas de valor entre pares que podem reforçar a autono-
mia dos cidadãos, quebrar os modelos tradicionais, melhorar os serviços e reduzir os custos ao longo das cadeias
de valor numa vasta gama de setores importantes” (parágrafo 1), podendo “melhorar significativamente
os setores principais da economia e a qualidade dos serviços públicos, proporcionando aos consumidores e aos
cidadãos um elevado nível de satisfação e uma redução dos custos incorridos” (considerando K).
5 A primeira blockchain na qual foram implementados smart contracts foi a Etherium. Esta block‑

chain utiliza uma linguagem de programação que permitiu o desenvolvimento dos smart con‑
tracts. Nesta plataforma, os smart contracts são implementados na forma de “contas” com um
saldo que sofre alterações quando sujeitas a transações. Cf. https://ethereum.org/en/developers/
docs/smart-contracts/
6
Primavera De Filippi/Aaron Wright, Blockchain and the Law, Harvard University Press, 2018,
p. 28.
7 Nick Szabo, Smart Contracts, 1994, disponível em http://www.fon.hum.uva.nl/rob/Courses/

InformationInSpeech/CDROM/Literature/LOTwinterschool2006/szabo.best.vwh.net/smart.
contracts.html.
8 Tradução nossa de Nick Szabo, Smart Contracts: Building Blocks for Digital Markets, 1996, dis‑

ponível em http://www.fon.hum.uva.nl/rob/Courses/InformationInSpeech/CDROM/Litera‑
ture/LOTwinterschool2006/szabo.best.vwh.net/smart_contracts_2.html.

RDC I (2023), 1, 105-115


Smart contracts e arbitragem: perspetivas atuais   109

Neste âmbito, o programa de computador pode ser a única manifestação


do acordo entre as partes (smart contract stricto sensu), como pode ser também
apenas um mecanismo externo de execução automatizada complementar a um
contrato tradicional baseado em texto (ancillary smart contract)9.
Em qualquer dos casos, a automatização elimina a possibilidade de as partes
se evadirem ao cumprimento do contrato (tornando o incumprimento tecnica‑
mente impossível ou proibitivamente dispendioso), reduzindo, ainda, custos e
dilação associados à intervenção de intermediários de confiança.

III. Finalmente, os smart contracts são commumente reconhecidos pela sua


“irrevogabilidade”. Com efeito, as cláusulas que incorporam poderão ser efeti‑
vamente impossíveis de modificação ou revogação, uma vez gravadas na block-
chain10. Para tanto, as partes devem estabelecer expressamente a possibilidade de
modificação, unilateral ou mediante acordo.

2.3. Âmbito de aplicação e as cláusulas automatizáveis

I. O software dos smart contracts utiliza uma lógica condicional ou booleana


(i.e. “if-then”).
Assim, se uma condição (A) se verificar (por exemplo, ser certo dia determi‑
nado pelas partes), então uma consequência (B) é espoletada (por exemplo, um
ativo é subtraído da conta de uma parte e adicionado à conta da outra).
Com a validação da transação pela rede, a transmissão da titularidade (e
respetivos efeitos) será automaticamente registada na blockchain, de acordo com
os termos do contrato11.

II. Mas nem todas as cláusulas são suscetíveis de serem automatizáveis por
um smart contract. Esta constatação reflete a distinção entre as designadas cláusulas
operacionais (i.e. as que seguem a lógica booleana) e as cláusulas não operacionais

9
Isda, Linklaters LLP, Smart contracts and Distributed Ledger – A Legal Perspective, 2017, p. 14,
disponível em https://www.isda.org/a/6EKDE/smart-contracts-and-distributed-ledger-a-le‑
gal-perspective.pdf.
10 Ibrahim Mohamed Nour Shehata, Arbitration of Smart Contracts Part 1 – Introduction to Smart

Contracts, in Kluwer Arbitration Blog, 2018, disponível em http://arbitrationblog.kluwerarbitration.


com/2018/08/23/arbitration-smart-contracts-part-1/.
11 Cf. Andreas Hacke, Law and Autonomous Systems Series: Micro-Justice and New Law?

“Swarm Arbitration” as a Means of Dispute Resolution in Blockchain-Based Smart Con-


tracts”; 2018, disponível em https://www.law.ox.ac.uk/business-law-blog/blog/2018/03/
micro-justice-and-new-law-swarm-arbitration-means-dispute-resolution.

RDC I (2023), 1, 105-115


110 Marta Boura, Sofia David

(assim, as que não requerem uma ação determinística, mas que se referem, em
abstrato, à relação entre as partes, como as cláusulas de lei aplicável, pactos de
competência, representações e garantias, ou quaisquer outras cláusulas que uti‑
lizem conceitos indeterminados ou subjetivos, como a boa fé, melhores esfor‑
ços, razoabilidade ou alteração das circunstância).12
III. Atualmente, a tecnologia dos smart contracts assenta ainda no literalismo
da linguagem utilizada, pelo que é excluída a possibilidade de interpretação das
cláusulas e da vontade negocial das partes no momento da execução. É que a
tradução de cláusulas que requerem um grau de discricionariedade em código
informático significaria perder grande parte da funcionalidade da linguagem
jurídica tradicional.
Não obstante, os smart contracts são já amplamente utilizados quer no âmbito
de ativos que existam (ou estejam representados) na blockchain13, quer em indús‑
trias como os seguros, o setor financeiro, o mercado imobiliário, distribui‑
ção ou propriedade intelectual14. Estes contratos têm, ainda, um proclamado
potencial de utilização conjunta com a tecnologia da internet of things15.

IV. Para ultrapassar as limitações que impedem a utilização de smart contracts


em relações contratuais que exijam maiores nuances no seu funcionamento, as
partes podem implementar contratos “híbridos”. Estes requerem intervenção
humana no âmbito de determinadas cláusulas16 e reservam, no seu software, a pos‑
sibilidade da sua interrupção e remessa para “um foro de intervenção humana”.

V. Temos, porém, que, no futuro, a inteligência artificial e a possibilidade


de computação em linguagem natural possam também supercar esta barreira
linguística17.

12 Cf. Relatório da UK Law Commission “Smart legal contracts Advice to Government”, 2021
13 Os smart contracts são uteis para transferir tokens, i.e., representações digitais, ditas “sintéticas”,
de ativos físicos ou digitais. Um exemplo de uma aplicação que desenvolve esta possibilidade é a
Color Coin, que permite que certos ativos como ações, ouro, moeda ou direitos de propriedade
intelectual sejam representados por tokens sejam comercializados numa plataforma blockchain.
14 Cf. Relatório da UK Law Commission “Smart legal contracts Advice to Government”, 2021.

15
Os objetos inteligentes e a internet of things, ainda que apresentem um futuro muito promis‑
sor, não se encontram plenamente implementados no mercado. Contudo, já existe e encontra-se
bastante desenvolvida a possibilidade de automatização de contratos relacionados com criptomoe‑
das e ativos sintéticos, que representam digitalmente direitos de propriedade - cf. Nick Szabo,
Smart Contracts, cit.
16 Anurag Ban/Maxine Viertmann, The Not-So-Distant Future: Blockchain and the legal profession,

2017, disponível em https://www.ibanet.org/LPRU/Disruptive-Innovation.aspx.


17 Cf. Anurag Ban, cit. e agrello, How to Make Smart Contracts Worthy of Their Name Using

RDC I (2023), 1, 105-115


Smart contracts e arbitragem: perspetivas atuais   111

Não se prevê, contudo, que a sua utilização logre eliminar totalmente a


litigiosidade natural ao encontro de duas vontades com conteúdos diversos, prosse-
guindo distintos interesses e fins, até opostos, ainda que convergentes18.
Torna-se, por isso, necessário compreender as características e limitações
dos contratos inteligentes bem como os seus reflexos no plano litigioso, sobre‑
tudo numa fase em que o mercado pode não antecipar todas as potenciais
decorrências da sua utilização e o ecossistema jurídico-legislativo não acompa‑
nhou ainda esta realidade, em toda a sua extensão, particularmente em Portugal.

3. Smart contracts e arbitragem

3.1. Justificação

I. O desenvolvimento acentuado da tecnologia blockchain e a utilização de


smart contracts – como vimos, transversal a inúmeros setores de indústria – são
hoje uma realidade.
Diríamos que a diferença entre os contratos tradicionais e estes contratos
digitais reside, precisamente, na substituição do comportamento humano (em
especial, das partes) para efeitos do cumprimento das obrigações ali previs‑
tas. Isto significaria, em tese, que a contratação por via de contratos inteli‑
gentes reduziria, substancialmente, a possibilidade de litígio entre as partes.
O ideal subjacente a estes contratos é precisamente a eliminação de fraudes
e desvios contratuais por via da automatização das designadas prestações e
contraprestações19.
Outras seriam as vantagens destes contratos no que respeita à possibilidade
de litígio: (i) permitem o armazenamento e manutenção de registos, facilitando
a prova, (ii) os “processos de decisão”, porque automáticos, são facilmente
compreendidos e identificados, reduzindo liberdades de atuação e de discri‑
cionariedade próprias da intervenção humana ou (iii) quando utilizados em
setores financeiros, os processos de aprovação de financiamentos e o registo
de garantias seriam mais eficientes, rápidos e, como tal, comportariam menos
custos para as partes.

Artificial Intelligence, 2017, disponível em https://blog.agrello.org/how-to-make-smart-contracts-


worthy-of-their-name-using-artificial-intelligence-3a90e4dd3c47.
18 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª. Ed. Almedina, 2017, pp. 220 e 221.

19 Sobre as vantagens e limites dos smart contracts neste âmbito, vide Rodrigo Ustárroz Cantali,

“Smart Contracts e Direito Contratual: Primeiras Impressões Sobre Suas Vantagens e Limites”,
RJLB, n.º 3, 2022.

RDC I (2023), 1, 105-115


112 Marta Boura, Sofia David

Nessa medida, a independência, segurança e eliminação de custos propor‑


cionada pelo recurso aos smart contracts funcionaria como incentivo à contrata‑
ção e proteção das partes e de terceiros contra quaisquer atuações que, propo‑
sitadamente ou não, se desviem do programa contratual.
O sistema não é, porém, infalível; desde logo porque o desenvolvimento
e execução destes contratos depende, intrinsecamente, das plataformas que os
acolhem20. Para além disso, a execução automatizada destes contratos não afasta,
totalmente, a possibilidade de conflitos. E se a execução do código não permitir os
resultados previstos e pretendidos pelas partes? Ou se a realidade subjacente se alterar?

II. Os métodos ditos tradicionais enfrentam hoje dificuldades de adaptação


a esta realidade. É que nestes contratos deparamo-nos com (i) a dificuldade em
identificar a parte contra quem se pretende propor uma ação21, (ii) a incerteza
em matéria de jurisdição e governing law, (iii) a inexistência de conhecimento
técnico suficiente que permita, em última análise, exercer o contraditório ou,
inclusivamente, decidir sobre a matéria em causa, (iv) a necessidade de proteção
de informação confidencial, já que o smart contract, enquanto código, detém
toda a informação sobre um determinado negócio e seus participantes, (v) ques‑
tões relativas ao investimento em tecnologia e know-how que permita decifrar
e compreender estes códigos (desde logo, para efeitos da produção de prova)22
ou, ainda, (vi) dificuldades na implementação e execução da própria sentença
na plataforma blockchain.
Os agentes (e mercado) internacionais têm considerado a arbitragem tra‑
dicional insuficiente ou desadequada para responder e acomodar os problemas
suscitados por estes contratos. A resposta parece passar pela criação de méto‑
dos especificamente estruturados em torno desta tecnologia. Esses métodos são
designados por “on-chain arbitration”.

3.2. A “on-chain arbitration” como solução

I. Por on-chain arbitration concebe-se uma nova realidade em sede de arbi‑


tragem: a blockchain arbitration. A esta contrapõe-se a “off chain” arbitration, que
tem por referência os métodos de resolução de litígios ditos tradicionais.

20
As plataformas mais utilizadas são a Ethereum, a Hyperledger, a Counterparty ou a Polkadot.
21
Em especial, atento o anonimato das partes como característica destes contratos. Sobre esta maté‑
ria, vide Michael Buchwald, “Smart Contract Dispute Resolution: The Inescapable Flaws of
Blockchain-Based Arbitration”, University of Pennsylvania Law Review, Vol. 168, 2020, p. 1378 e ss.
22 Sobre o desenvolvimento de alguns destes pontos, veja-se International arbitration report (Norton Rose

Fullbright), Issue 9, 2017, disponível online.

RDC I (2023), 1, 105-115


Smart contracts e arbitragem: perspetivas atuais   113

Esta nova realidade surge-nos como consequência natural da proliferação


da tecnologia blockchain – que, como vimos, encontra particular expressão no
campo dos smart contracts. O movimento tecnológico não se tem, porém, bas‑
tado na concretização da contratação inteligente; encontra agora espaço na
defesa de uma blockchain arbitral legal23.
Para os defensores desta nova realidade na arbitragem, “arbitration fulfils
some of the needs of blockchain dispute resolution, but not all. Tradicional
arbitration remains too complex, time consuming and costly vis-à-vis the kind
of disputes emerging on the blockchain. Formalities imposed in practice (eg
drafting a statement of claim and submitting memorandums) as well as costs
and length of existing dispute resolution mechanisms defeat the simplicity of
smart contracts and might not be worthy when the smart contract relates to a
transaction of low cost (…)”24.
Assim, não obstante a arbitragem ser, ainda assim, a melhor opção para
as partes (quando comparada com os meios jurisdicionais), o enquadramento
tradicional dessa arbitragem não satisfaz as necessidades das partes num contrato
inteligente.

II. As Digital Dispute Resolution Rules25 (“DDRules”) são um importante


passo nesta matéria. Publicadas em abril de 2021, e concebidas no quadro de
uma task-force no Reino Unido, as DDRules foram pensadas para permitir uma
rápida solução para litígios em matéria de blockchain e crypto. Assim, são estas
uma compilação de um conjunto de regras que visam regular o objeto e pro‑
cesso de um método de resolução de litígios dito digital ou automático.
O seu objetivo é, sobretudo, fornecer mecanismos de organização das
“on-chain digital relationships and smart contracts”. Como tal, “[the] purpose
of these rules is to facilitate the rapid and cost-effective resolution of commer‑
cial disputes, particularly those involving novel digital technology such as cryp‑
toassets, cryptocurrency, smart contracts, distributed ledger technology, and
fintech applications”. Neste âmbito, os smart contracts são identificados como
um digital asset.
A integração destas DDRules num contrato inteligente depende tão-só da
inclusão de uma cláusula semelhante a “any dispute shall be resolved in accor‑
dance with UKJT Digital Dispute Resolution Rules”, cujo texto poderá ser

23
Sobre esta matéria e na defesa desta realidade, vide Maxime Chevalier, “From Smart Contract
Litigation to Blockchain Arbitration, a New Decentralized Approach Leading Towards the Block‑
chain Arbitral Order”, Journal of International Dispute Settlement, pp. 558-584, 2021.
24 Maxime Chevalier, “From Smart …”, cit., p. 560.

25 Lawtech – Digital Dispute Resolution Rules (UK Jurisdiction Taskforce), disponível online, 2021.

RDC I (2023), 1, 105-115


114 Marta Boura, Sofia David

incorporado em códigos. Ao fazê-lo, quaisquer litígios relacionados ou associa‑


dos ao smart contract serão resolvidos (i) por via de um processo de resolução de
litígios automático ou (ii) mediante processo arbitral.

III. Encontramos outras iniciativas nesta matéria. Entre essas, e especial‑


mente conhecida, a Kleros. Aqui constrói-se uma aplicação descentralizada26 que
serve o propósito de permitir a arbitragem sobre qualquer tipo de contrato a
um qualquer terceiro27. Como resultado, teríamos um “dispute resolution sys‑
tem that renders ultimate judgments in a fast, inexpensive, reliable and decen‑
tralized way” 28.
No entanto, a possibilidade de acolhimento de sistemas como a Kleros
encontra limitações, desde logo em razão do investimento dos ordenamentos
jurídicos em tecnologia que suporte o acesso a estes métodos29. Entre nós,
aliás, diríamos que estes sistemas são ainda recebidos com tendencial resistência
e que o seu acolhimento (a ocorrer) demorará.
Seja como for, a receção está a ser experimentada e as partes de smart con-
tracts têm pressionado a discussão em torno destas alternativas. Caso recente,
em setembro de 2020, foi suscitado no México. Neste âmbito, as partes (a
propósito da celebração de um contrato de locação relativo a um imóvel loca‑
lizado no México) terão incluído uma cláusula arbitral nos termos da qual foi
nomeado um árbitro e dada expressa instrução para que o árbitro seguisse o
Protocolo Kleros para efeitos da decisão30. O procedimento arbitral foi iniciado
em novembro de 2020 e o árbitro submeteu a procedural order no sistema Kleros,
conforme acordado pelas partes. O sistema “decidiu” em outubro de 2021 e a
decisão foi reconhecida pelos tribunais mexicanos.

IV. Também a JUR, Aragon Network Jurisdiction, OpenCourt ou a OpenBa-


zaar se têm afirmado como importantes plataformas no desenvolvimento desta
on-chain reality31.

V. Estas aplicações distinguem-se, essencialmente, em virtude das regras


procedimentais que acolhem. Em todos os casos, o comprador pode utilizar a

26 Construída “por cima do Ethereum”.


27 Kleros White Paper, disponível online.
28 Kleros White Paper, disponível online.

29 Idêntica crítica é avançada por Mauricio Virues Carrera, “Accommodating Kleros as a Decen‑

tralised Dispute Resolution Tool for Civil Justice Systems: Theoretical Model and Case of Appli‑
cation”, disponível online.
30 Sobre este caso, vide Mauricio Virues Carrera, “Accommodating Kleros …”, cit., p. 16.

31 Michael Buchwald, “Smart Contract …”, cit., p. 1385.

RDC I (2023), 1, 105-115


Smart contracts e arbitragem: perspetivas atuais   115

aplicação para dar início a resolução de litígios antes da completa execução do


código32. No entanto, as responsabilidades do comprador que inicie o processo
podem variar em função da plataforma escolhida33.

4. Observações finais

I. A tecnologia blockchain e, em particular, os smart contracts, têm vindo a


ser largamente adotados pelo mercado e trazem inovação transformadora para
inúmeros setores da indústria. Permanecem, porém, tecnologias controversas,
seja fruto das desvantagens decorrentes do seu obscurantismo ou das limitações
técnicas do software que as suporta.

II. As reflexões em matéria de resolução de litígios justificam-se pela desa‑


dequação destes meios face à realidade material subjacente. A arbitragem tra‑
dicional não permite, atualmente, responder de forma adequada aos litígios
decorrentes (ou associados) à realidade digital ínsita nos smart contracts. A com‑
plexidade e sofisticação computacional daqueles contratos não se coaduna com
os trâmites, processo decisório e produção probatória da arbitragem off chain,
comportando ainda incertezas quanto à execução das sentenças na plataforma
blockchain. Como tal, dir-se-ia que a instrumentalidade processual perde aqui o seu
sentido técnico.

III. É neste contexto que se fundamenta o acentuado desenvolvimento da


arbitragem on-chain. O sucesso das plataformas de blockchain arbitration depen‑
derá, naturalmente, dos agentes e das perspetivas futuras em matéria de contra‑
tação digital.

32
Michael Buchwald, “Smart Contract …”, cit., p. 1387.
33 Michael Buchwald, “Smart Contract …”, cit., p. 1387. Assim, “On JUR, for instance, the party
initiating the dispute must propose a particularized remedy upon initiation. The defending party
then has twenty-four hours to counter with an alternative solution. This supposedly builds in the
flexibility for narrowly tailored outcomes, unlike the pre-coded relief options utilized by Kleros.”.

RDC I (2023), 1, 105-115


As alterações do risco no contrato de seguro:
a diminuição do risco
DANIELA RODRIGUES DE SOUSA* ** 1 2

Sumário: Parte I – As alterações de risco no contrato de seguro: 1. Introdução e delimitação


do tema. 2. O regime de alteração do risco e os deveres de informação – artigo 91.º do RJCS.
Parte II – A diminuição do risco no contrato de seguro: 3. A diminuição do risco no RJCS
e em legislação anterior. 4. Diminuição do risco e figuras afins: 4.1. A variação do valor
dos bens ou do interesse seguro, a extinção do risco e alteração da natureza do risco seguro;
4.2. Alteração das circunstâncias. 5. Âmbito de aplicação objectivo. 6. A imperatividade
relativa da norma. 7. Pressupostos de aplicação do regime da diminuição do risco: 7.1. Di-
minuição inequívoca do risco; 7.2. Diminuição do risco que seja duradoura; 7.3. Diminui-
ção do risco que tenha reflexo nas condições do contrato. 8. A comunicação da diminuição
do risco. 9. Consequências da diminuição do risco: a redução do prémio: 9.1. Trâmites em
que é efectuada a redução; 9.2. Data da redução; 9.3. Natureza jurídica da vinculação do
segurador. 10. A possibilidade de resolução do contrato. 11. Ratio do regime da diminuição
do risco. 12. Conclusões. Bibliografia.

Resumo: O risco é um dos elementos essenciais do contrato de seguro, sendo que


o mesmo não se apresenta como uma realidade imutável. Assim, na execução do
contrato podem observar‑se alterações que redundem num agravamento ou dimi‑
nuição do risco. Estas breves considerações visam dar conta do regime da diminui‑
ção do risco actualmente em vigor no ordenamento jurídico nacional.

Palavras‑Chave: Direito dos seguros; Contrato de seguro; Redução do risco.

*
Assistente Convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Investigadora do
Centro de Investigação de Direito Privado
** Por vontade da autora, o presente escrito não segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da

Língua Portuguesa.

RDC I (2023), 1, 117-163


118 Daniela Rodrigues de Sousa

Abstract: Risk is one of the essential elements of the insurance policy, and it does
not present itself as an immutable reality. Thus, in the performance of the contract,
changes may be observed resulting in an aggravation or risk reduction. These brief
considerations aim to account for the risk reduction regime currently in force in
the national legal system.

Keywords: Insurance Law; Insurance policy; Risk reduction.

Parte I – As alterações de risco no contrato de seguro

1. Introdução e delimitação do tema*** 3

Este estudo destina‑se a abordar a problemática da diminuição do risco no


contrato seguro. No ordenamento jurídico nacional, esta matéria é regulada
pelo artigo 92.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro4 e insere‑se no
Capítulo VII referente às vicissitudes do contrato de seguro, mais concreta‑
mente na Secção I que diz respeito às alterações do risco.
O quadro legal em vigor, relativo às alterações do risco, pode ser dividido
em quatro pontos distintos: (i) deveres de informação do segurador e do toma‑
dor do seguro ou segurado, (ii) diminuição do risco, (iii) agravamento do risco
e (iv) ocorrência de um sinistro na pendência da regularização do contrato na
sequência de um agravamento do risco.
Neste escrito pretendemos discorrer apenas sobre a problemática da dimi‑
nuição do risco, sendo para tal necessário analisar igualmente os deveres de
informação relacionados com as alterações do risco no contrato de seguro,
disciplinados no artigo 91.º do RJCS.

*** Abreviaturas: CC – Código Civil; CC Comentado I – Código Civil Comentado I, Parte Geral,

(coord.) António Menezes Cordeiro, Almedina: Coimbra (2020); CC Comentado II – Código Civil
Comentado II, Das Obrigações em Geral, (coord.) António Menezes Cordeiro, Almedina: Coimbra
(2021); CCom – Código Comercial; CPC – Código de Processo Civil; CRP – Constituição da
República Portuguesa; e.g. – exempli gratia; i.e. – id est; LCS – Lei do Contrato de Seguro; LCS Ano‑
tada – Lei do Contrato de Seguro, Anotada, Pedro Romano Martinez (et al.), 4.ª ed., Almedina: Coimbra
(2020); PDECS – Princípios do Direito Europeu do Contrato de Seguro; RJCS – Regime Jurídico
do Contrato de Seguro; ROA – Revista da Ordem dos Advogados; VVG – Versicherungsvertragsgesetz.
4 Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, com

as últimas alterações introduzidas pela Lei n.º147/2015, de 9 de Setembro.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   119

A matéria da alteração do risco no contrato de seguro é terreno fértil para


um trabalho de investigação, uma vez que o seu enquadramento dogmático é
bastante controverso. Além disso, está ligada a um dos pontos mais debatido no
Direito dos seguros: o risco.
Principiaremos a nossa investigação pelos deveres gerais de informação, pre‑
vistos no artigo 91.º do RJCS, procurando delimitar o seu conteúdo e âmbito
de aplicação. Cumpre depois analisar o regime previsto no artigo 92.º. A dimi‑
nuição do risco é um tema menos explorado na doutrina nacional, porém, não
é um tema isento de dificuldades e ganhou uma nova importância à luz da
situação pandémica provocada pela Covid‑191.

2. 
O regime de alteração do risco e os deveres de informação – artigo
91.º do RJCS

O risco é um dos tópicos mais complexos na disciplina do contrato de


seguro. É consensual que é um elemento essencial do contrato de seguro, uma
vez que a cobertura de um risco pelo segurador integra o conteúdo típico deste
contrato2/3. Desta feita, a existência de um risco tem que se verificar no

1 Vejam‑se os recentes escritos sobre diminuição do risco e a Covid‑19: Luís Poças, O surto de
COVID‑19 e a diminuição do risco seguro, Revista de Direito Comercial, Liber Amicorum Pedro
Pais de Vasconcelos (2020), 881‑926. Acessível em Revista de Direito Comercial: https://www.
revistadedireitocomercial.com/o‑surto‑de‑covid‑19‑e‑a‑diminuicao‑do‑risco‑seguro (consultado a
19‑jun.‑2021); Francisco Rodrigues Rocha, A redução do risco no seguro automóvel durante a pandemia
de Covid‑19. Breves notas, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. LXI,1,
(2020), 221‑236 e Maria Elisabete Ramos, Contrato de Seguro e cobertura de riscos associados
à pandemia de COVID‑19, ROA, Ano 80, Vol. III‑IV (Julho – Dezembro), (2020), 767‑799.
2 Cf. artigo 1.º do RJCS.

3 Sobre o risco enquanto elemento essencial do contrato de seguro: Martinez, Direito cit., 57‑58,

Vasques, Contrato cit., 125‑131; Margarida Lima Rego, O contrato e a apólice de seguro, Temas de
Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2016), 15‑37, 20‑21; Cordeiro, Direito cit.,
535‑545; Rego, O risco cit., 389‑390; Luís Poças, O dever de declaração inicial do risco no contrato
de seguro, Almedina: Coimbra (2013), 86 e ss.; José Vítor dos Santos Amaral, Contrato de Seguro,
Responsabilidade Automóvel e Boa‑fé, Almedina: Coimbra (2020), 38‑39 e 56‑57; Maria Manuel
Ramalho Sousa Chichorro, O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, 1.ª
ed., Coimbra Editora: Coimbra (2010), 118‑123; Rita Gonçalves Ferreira da Silva, Do Contrato de
Seguro de Responsabilidade Civil Geral, Coimbra Editora: Coimbra (2007), 200‑201; José Engrá‑
cia Antunes, O Contrato de Seguro na LCS de 2008, ROA, Ano 69, Vol. III/IV, (2009), 815‑858.
Acessível em ROA: https://portal.oa.pt/upl/%7Be96274ba‑f961‑4442‑a4e4‑46f b5338440e%7D.
pdf (consultado a 26‑jun.‑2021), 822 e 840‑843; Luiz da Cunha Gonçalves, Comentário ao Código
Comercial Português, Vol. II, Empresa Editora José Bastos: Lisboa (1916), 502 e 528‑529; José Moi‑
tinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa Edi‑

RDC I (2023), 1, 117-163


120 Daniela Rodrigues de Sousa

momento da celebração do contrato e também durante a sua vigência. Não


pretendemos desenvolver a problemática da existência de risco no momento da
celebração do contrato, mas cumpre assinalar que esta matéria está intimamente
ligada com a chamada declaração inicial do risco e os deveres de informação
pré‑contratuais a cargo do tomador4.
Por um lado, estes deveres destinam‑se a garantir que o segurador tem
acesso a todas as informações relevantes, que se destinam a permitir que este
possa proceder à determinação do risco e consequentemente calcular o valor
do prémio que será cobrado ao tomador. O RJCS definiu assim um conjunto
de normas que estabelecem deveres de informação pré‑contratuais que recaem
sobre o tomador do seguro ou segurador, considerando que são os sujeitos que
estão em melhores condições para conhecer as circunstâncias determinantes
para a análise do risco5. Por outro lado, encontram justificação na dificuldade
do segurador obter todas as informações relevantes através dos seus próprios
meios, por duas ordens de motivos: seria uma tarefa altamente dispendiosa e

tora: Lisboa (1971), 23‑24; Joaquin Garrigues, Contrato de seguro terrestre, s.n.: Madrid (1973), 14
e ss. e 130 e M. Miguel Traviesas, Sobre o contrato de seguro terrestre, Revista de Derecho Privado,
Vol. IV, Serie D, Madrid, s.d., 25 e 39.
4 Cf. artigos 24.º, 25.º e 26.º do RJCS. Acerca da declaração inicial do risco, veja‑se por todos

Poças, O dever, cit., em especial 323 e ss.; Luís Poças, O dever de descrição exacta e completa do risco a
segurar, Problemas e Soluções de Direito dos Seguros, Almedina: Coimbra (2019), 9‑37 e ainda Luís
Poças, Seguro Automóvel: Oponibilidade de Meios de Defesa aos Lesados, Almedina: Coimbra (2020),
20‑26. Cf. também, Rego, O risco cit., 390; Joana Galvão Teles, Deveres de informação das partes,
Temas de Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2016), 363‑380; Manuel da Costa
Martins, Contributo para a delimitação do âmbito da boa‑fé no contrato de seguro, III Congresso Nacio‑
nal de Direito dos Seguros, Almedina: Coimbra (2003), 169‑198,175‑182 e Cordeiro, Direito cit.,
631‑640. Assinalando a proximidade da declaração inicial do risco com o instituto do agravamento
do risco, veja‑se Poças, O dever, cit., 673‑675 e O dever de descrição cit., 10‑11. Cf. ainda, António
Santos Abrantes Geraldes, O novo regime do contrato de seguro. Antigas e novas questões, Intervenção
no Colóquio organizado pela AIDA‑PORTUGAL (Secção Portuguesa da Associação Interna‑
cional de Direito dos Seguros), 10 de Março de 2010. Acessível em: http://www.trl.mj.pt/PDF/
REGIME.pdf (consultado a 29‑jun.‑2021), 2‑9, sobre as principais alterações no regime da decla‑
ração inicial do risco com a aprovação do RJCS. Na doutrina estrangeira, cf. Axelle Astegiano‑La
Rizza, La déclaration initiale des risques par le souscripteur, Recueil Dalloz, n.º 27 (12 juillet), (2012),
Paris, 1753‑1760, no regime francês, e no regime espanhol cf. Herminia Campuzano Tomé, El
cumplimento del deber de declaración del riesgo. Especial problemática derivada de los seguros vinculado a con-
tratos de préstamo, Revista de Derecho Patrimonial, 21,(2008), 105‑133.
5 Teles, Deveres cit., 363.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   121

em muitos casos poderia ser incompatível com os direitos de personalidade do


próprio tomador ou segurado6/7.
Os deveres de informação surgem numa fase que antecede a celebração do
contrato8. Todavia, cumpre ter presente que as circunstâncias que influenciam
o risco não são realidades imutáveis. É expectável que existam alterações ao
longo da vigência do contrato passíveis de alterar o risco, resultando no seu
agravamento ou diminuição. Desta feita, estes deveres são relevantes não só
numa fase pré‑contratual, mas também durante a execução do contrato9.
O legislador estabeleceu, no artigo 91.º, deveres de informação entre as
partes, que se reconduzem à necessidade de manter actualizadas as informações
inicialmente prestadas10/11. Apesar de estarmos perante deveres recíprocos,

6 Teles, Deveres cit., 363.


7 Sublinhando que a inacessibilidade do segurador ao conhecimento das características do risco
suscita‑se em várias vertentes, Luís Poças, Aproximação económica à declaração do risco no contrato de
seguro, Problemas e Soluções de Direito dos Seguros, Almedina: Coimbra (2019), 39‑79, 50 e 77.
A inacessibilidade pode ser material, legal ou económica.
8 Sobre os deveres de informação pré‑contratuais: Teles, Deveres cit., 327‑387 e Júlio Vieira Gomes,

O dever de informação do tomador do seguro na fase pré‑contratual, II Congresso Nacional de Direito dos
Seguros, Almedina: Coimbra (2001), 75‑113, ainda por referência ao regime anterior ao RJCS
e Júlio Vieira Gomes, O dever de informação do (candidato a) tomador do seguro na fase pré‑contratual, à
luz do Decreto‑lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Car‑
los Ferreira de Almeida, Vol. II, Almedina: Coimbra (2011), 387‑445, considerando já o RJCS.
Em geral sobre os deveres de informação no contrato de seguro, cf. Cordeiro, Direito cit., 603 e
ss.; Chichorro, O Contrato cit., 75 e ss. e Antunes, O Contrato cit., 830‑831. Cf. ainda, Martins,
Contributo cit.,172‑174, o Autor entende que estes deveres decorrem do princípio da boa‑fé na sua
vertente objectiva. De modo semelhante, veja‑se também Amaral, Contrato cit.,187‑188.
9
José Vasques, Contrato de seguro: elementos essenciais e características, Scientia Ivridica, Tomo LV, n.º
307, (Julho‑ Setembro), (2006), 493‑525, 502‑503, tal decorre de o contrato de seguro ser um
contrato de execução sucessiva e configura uma obrigação contratual não se tratando apenas de
uma extensão da declaração inicial de risco.
10 Rego, O risco cit., 395, notando que relativamente ao segurador não existe um dever de comu‑

nicar alterações no risco, mas sim de actualizar a informação prestada nos termos dos artigos 18.º
a 21.º do RJCS, que se destina a esclarecer o tomador acerca das condições do contrato. Ainda
sobre as restantes informações que devem ser prestadas pelo segurador, 395‑398. Veja‑se também
o disposto no artigo 91.º/2 do RJCS. Acerca dos deveres de informação do segurador, cf. Teles,
Deveres cit., 329‑362 e Maria Inês de Oliveira Martins, Regime do Jurídico do contrato de seguro em Por-
tugal, Actualidad Jurídica Iberoamericana, IDIBE, n.º5 ter (Dezembro), (2016), 199‑231. Acessível
em IDIBE: http://idibe.org/wp‑content/uploads/2013/09/255.pdf (consultado a 30‑jun.‑2021),
206‑208.
11 Arnaldo Costa Oliveira, Anotação ao artigo 91.º RJCS em LCS Anotada, 355‑356, o Autor entende

que as matérias abrangidas por estes deveres de informação não se restringem àquelas que sejam
relativas ao risco. O âmbito das informações a ser prestadas inclui todas as referenciadas nos arti‑
gos 18.º a 21.º e 24.º do RJCS.

RDC I (2023), 1, 117-163


122 Daniela Rodrigues de Sousa

as comunicações acerca da alteração do risco são primordialmente dirigidas ao


segurador e ao segurado, na medida em que são estes os sujeitos que têm con‑
tacto directo com o risco, estando em condições de conhecer as circunstâncias
susceptíveis de implicar variações no risco assumido pelo segurador12.
Centremo‑nos nas informações que devem ser prestadas pelo tomador ou
pelo segurado. O artigo 91.º/1 do RJCS dispõe que devem ser comunicadas
todas as alterações respeitantes ao objecto das informações que foram prestadas
aquando da celebração do contrato, quer correspondam a um agravamento ou
diminuição do risco. Cotejando este preceito com o disposto no artigo 24.º do
RJCS, concluímos que o tomador ou o segurado, não têm o dever de comu‑
nicar alterações relativas a circunstâncias que não eram consideradas relevantes
para efeitos da declaração inicial de risco13.
Por último, apenas terão de ser comunicadas circunstâncias supervenien‑
tes. Como referimos anteriormente, estamos perante um regime que opera na
vigência do contrato. Deste modo, apenas relevam as alterações que se verifi‑
quem depois do contrato ter sido celebrado14.
Feitas estas breves notas, podemos concluir que quer os deveres de informa‑
ção pré‑contratuais (especialmente a declaração inicial do risco) e as comunica‑
ções de alterações supervenientes assentam em parte nos mesmos fundamentos.
O que se pretende é que o segurador tenha acesso a todas as informações neces‑
sárias para que seja assegurada a proporcionalidade entre o risco assumido e o
prémio, garantindo a manutenção do equilíbrio contratual entre as partes15.
O artigo 91.º/1 do RJCS consagra deveres de informação que devem ser
articulados com as restantes normas relativas às alterações do risco. No que
respeita à diminuição do risco, como estudaremos adiante, a relevância desta
norma é reduzida16. Posteriormente, iremos constatar que não existe um ver‑

12 Maria Inês de Oliveira Martins, Distribuição do risco no contrato de seguro: os limites à imposição de
condutas de administração do risco ao segurado, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da
Costa Andrade, Vol. III, Outros Temas de Direito e Economia e de História, Boletim da Facul‑
dade de Direito da Universidade de Coimbra, (2017), 301‑329, 302, referindo que as condutas de
informação a cargo do segurado têm por função a gestão ou administração do risco, considerando
que é o segurado que permanece em contacto com a pessoa ou os bens seguros. Veja‑se ainda,
Gomes, O dever de informação do (candidato) cit., 389, sublinhando que a solução oposta forçaria
o segurador a longas investigações, dispendiosas e delicadas, repercutindo‑se negativamente no
valor dos prémios
13 Neste sentido, Rego, O risco cit., 398.

14 Assim também Rego, O risco cit., 398.

15 De modo semelhante, veja‑se Poças, O dever, cit., 675.

16 Arnaldo Costa Oliveira, Anotação ao artigo 91.º RJCS em LCS Anotada, 355‑356, referindo que

o objecto principal do artigo 91.º do RJCS, são as matérias contidas na informação inicial do
segurador ao tomador do seguro e as alterações susceptíveis de interessar a terceiros beneficiá‑

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   123

dadeiro dever de informação por parte do tomador ou do segurado relativa‑


mente à diminuição do risco. O tomador não é obrigado a comunicar as cir‑
cunstâncias que determinam uma diminuição do risco. Não obstante, veremos
que existem fundamentos comuns a todo o regime das alterações do risco e que
possibilitam soluções semelhantes: a manutenção do equilíbrio contratual entre
as partes, através de um reajustamento do prémio17.

Parte II – A diminuição do risco no contrato de seguro

3. A diminuição do risco no RJCS e em legislação anterior

O instituto da diminuição do risco no âmbito do contrato seguro é regu‑


lado pelo disposto no artigo 92.º do RJCS. Este preceito não granjeou nos
últimos anos muita atenção por parte da doutrina nacional sendo também raras
as menções a esta problemática na jurisprudência dos nossos tribunais18. Não
obstante, surgiram recentemente alguns estudos sobre a matéria, devido às cir‑
cunstâncias vividas em consequência da situação pandémica provocada pela
Covid‑1919.
Antes da aprovação do RJCS, a diminuição do risco não era regulada pelo
CCom, apesar de ser referenciada pela doutrina nacional e encontrar consa‑
gração legal em diplomas de outros ordenamentos jurídicos20. Na falta de um
regime directamente aplicável, a situação era considerada pela doutrina como
sendo passível de integração através de uma interpretação analógica do artigo

rios de direitos decorrentes do contrato. Considerando a limitação do nosso estudo, não iremos
abordar estas matérias.
17 Sublinhando que a afinidade entre o instituto da diminuição do risco e da declaração pré‑con‑

tratual do risco é muito ténue, cf. Poças, O dever, cit., 675‑676.


18
Poças, O surto cit., 883 e Rocha, A redução cit., 225, em especial nota de rodapé 10, apontando
que a falta de decisões de tribunais superiores sobre esta problemática se deve, em parte, às redu‑
ções no valor do prémio serem de pequena importância, havendo, por isso, uma menor predis‑
posição para litigar com o segurador.
19 Sobre esta problemática, vejam‑se os seguintes estudos: Poças, O surto cit., 881‑926, Rocha, A

redução cit., 221‑236 e Ramos, Contrato cit., 767‑799.


20 Veja‑se, por exemplo, o artigo 13.º da LCS espanhola, o artigo 1897.º do Codice civile italiano,

o artigo L113‑41 do Code des assurances francês, o § 41 do VVG 2008. Cf. ainda o artigo 6.º da
Proposta de Directiva do Conselho, de 28‑Jul.‑1979, e as alterações introduzidas na revisão de
31‑Dez.‑1980 e também o artigo 4:301 dos PDECS.

RDC I (2023), 1, 117-163


124 Daniela Rodrigues de Sousa

446.º do CCom21, que regulava o agravamento do risco no âmbito dos seguros


de incêndio22/23.
Actualmente, o artigo 92.º do RJCS reza que ocorrendo uma diminuição
inequívoca e duradoura do risco, que tenha reflexo nas condições do contrato,
o segurador deve, a partir do momento em que tenha conhecimento das novas
circunstâncias reflecti‑las no prémio. Por sua vez, o n.º 2 dispõe que na falta de
acordo o tomador tem o direito de resolver o contrato.
O que está em causa é uma alteração superveniente do risco seguro e con‑
sequentemente uma necessidade de alteração do contrato, de modo a garantir
que o prémio pago pelo tomador se revela adequado, mantendo‑se o equilíbrio
contratual24.
Todavia, nem sempre uma diminuição do risco possibilita a aplicação do
regime consagrado no artigo 92.º do RJCS, sendo necessário atender aos pres‑
supostos referidos no n.º1.
O regime da diminuição do risco consagrado no RJCS apresenta grandes
semelhanças com as soluções adoptadas noutros ordenamentos jurídicos25.

21 Código Comercial, aprovado pela Carta de Lei, de 28 de Junho de 1888. O artigo 446.º refe‑
re‑se apenas ao agravamento do risco, no seguro contra incêndio. Sobre este preceito, cf. Adriano
Anthero, Comentario ao Codigo Commercial Portuguez, Vol. II, Typographia “Artes & Letras”: Porto
(1915), 194 e Gonçalves, Comentário cit., 530‑532 e 586, o Autor parecia afastar a hipótese de
redução do prémio, no caso de existir uma diminuição do risco, a não ser que tal estivesse expres‑
samente previsto na apólice. Referindo apenas uma aplicação analógica na hipótese de agrava‑
mento, veja‑se ainda Gomes, O dever cit., 108‑109 e também Almeida, O Contrato cit., 92‑93.
22 Sobre a diminuição do risco na legislação anterior ao RJCS, veja‑se Vasques, Contrato cit., 275,

referindo que a diminuição do risco implicaria uma alteração nas condições do contrato, nomeada‑
mente no prémio exigido. O Autor defende que tal resultaria de uma aplicação analógica do artigo
446.º CCom, mas também do princípio da correspectividade das prestações. Veja‑se ainda, Arnaldo
Costa Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 360; Martinez, Direito cit., 99 e Mar‑
tins, Contributo cit.,192‑194.
23
Contra este entendimento, veja‑se Poças, O surto cit., 885‑886, o Autor entende que seria de
afastar uma aplicação analógica essencialmente por três motivos: (i) o preceito em causa regulava
a situação simétrica (agravamento do risco), (ii) a norma em questão não atribuía ao segurador
um direito de alteração do prémio, mas apenas de resolução do contrato e (iii) destinando‑se a
regular apenas o seguro de incêndio, o artigo 446.º do CCom não seria suficiente para reconhecer
um princípio geral de equilíbrio das prestações no contrato de seguro e que consequentemente
fundamentasse uma alteração do valor do prémio por verificação de uma diminuição do risco.
24 Sobre a ratio do regime da diminuição do risco cf. infra 11.

25 Vejam‑se os preceitos já referidos: o artigo 13.º da LCS espanhola, o artigo 1897.º do Codice

civile italiano, o artigo L113‑41 do Code des assurances francês, o § 41 do VVG 2008. Cf. ainda o
artigo 6.º da Proposta de Directiva do Conselho, de 28‑jul‑1979, e as alterações introduzidas na
revisão de 31‑Dez.‑1980 e também o artigo 4:301 dos PDECS. Com detalhadas referências sobre
esta ponto, cf. Rocha, A redução cit., 223‑224 (em especial na nota de rodapé 7). No direito bra‑

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   125

4. Diminuição do risco e figuras afins

4.1. 
A variação do valor dos bens ou do interesse seguro, a extinção do risco e
alteração da natureza do risco seguro

Para desenhar os contornos do regime da diminuição do risco, cabe delimi‑


tar qual o conceito de risco e quais as alterações relevantes para a sua aplicação.
Principiamos por assinalar, novamente, que o risco é um elemento essencial
do contrato de seguro, sendo, possivelmente, dos mais complexos e por isso
objecto de vários conjuntos de normas presentes no RJCS26. Não cabe no
âmbito deste escrito um exame pormenorizado deste elemento, mas é inevi‑
tável, pelo menos, fixar a noção de risco relevante para efeitos do regime em
análise27.
O preceito em análise insere‑se no Capítulo VIII respeitante às vicissitu‑
des do contrato de seguro, mais especificamente na Secção I, que disciplina
as alterações do risco. Como veremos adiante, a diminuição do risco abre a
possibilidade de modificações do contrato, relativamente ao valor do prémio,
podendo culminar na sua resolução caso a modificação não seja satisfatória para
o tomador. Dito isto, constatamos que o principal reflexo do regime se centra
no valor do prémio, pelo que o sentido de risco que deve ser adoptado é o
da menor probabilidade de ocorrência do sinistro ou da menor dimensão das
suas consequências28. Esta noção de risco (probabilidade de ocorrência de um

sileiro esta matéria é regulada pelo artigo 770.º do CC, sobre este preceito veja‑se Luiza Moreira
Petersen, O Risco do Contrato de Seguro, Roncarati: São Paulo (2018), 154‑155. Sobre esta matéria
nos PDECS, cf. Restatement of European Insurance Contract Law, Principles of European Insurance
Contract Law, 2.ª ed., Otto Schimdt: Köln (2016), 204 e ss., e em especial sobre as soluções dos
vários ordenamentos jurídicos, 205‑206.
26
Referindo‑se ao risco como o elemento‑chave ou central do tipo legal do contrato de seguro,
Antunes, O Contrato cit., 843.
27 A noção de risco é passível de assumir uma pluralidade de sentidos. Sobre este ponto, cf. Poças,

O surto cit., 887‑888 e O dever, cit., 90, o Autor assinala que o termo pode designar o evento de
que depende a prestação do segurador, o objecto do seguro, a probabilidade de ocorrência desse
evento, a possível dimensão do sinistro ou o objecto da garantia do segurador. Sublinhando a
polissemia da palavra risco, veja‑se Gomes, Algumas cit., 10; Maria Inês de Oliveira Martins, O
Seguro de Vida Enquanto Tipo Contratual Legal, 1.ª ed., Coimbra Editora: Coimbra (2010),127 e
Poças, Aproximação cit., 44‑45, notando que a noção de risco também não reúne consenso entre
os vários ramos do conhecimento, com especial enfoque na noção económica de risco. Veja‑se
ainda Petersen, O Risco cit.,80‑81, notando que a imprecisão da noção de risco decorre da sua
dimensão interdisciplinar.
28 De forma semelhante, veja‑se Poças, O surto cit., 888 e Fernando Sánchez Calero, Artículo 13.

Comunicación de la disminución del riesgo, Ley de Contrato de Seguro (dir. Fernando Sánchez Calero),

RDC I (2023), 1, 117-163


126 Daniela Rodrigues de Sousa

sinistro)29, é expressa através da tarifa utilizada pelo segurador, que consequen‑


temente afecta o valor do prémio a pagar. Esta ideia está presente no artigo 51.º
do RJCS, onde se estabelece que o prémio é, essencialmente, a contrapartida
da cobertura do risco assumida pelo segurador30. O prémio, em sentido estrito,
traduz‑se na expressão pecuniária da probabilidade de ocorrência do sinistro –
calculada através da multiplicação de uma taxa, correspondente à probabilidade
de ocorrência do sinistro, pelo valor do bem seguro31.
A variação do risco não se confunde com a variação do valor dos bens ou
do interesse seguro32.
Em regra, uma diminuição do valor dos bens pode implicar igualmente
uma redução no prémio, mas não por tal se tratar de uma diminuição do risco.
Uma diminuição do valor dos bens ou do interesse seguro pode implicar uma
alteração do capital seguro. A variação do capital seguro, implica também uma
variação quanto ao valor do prémio a pagar. Todavia, a variação não se explica
por existir uma diminuição do risco, mas sim por se verificar uma alteração num

3.ª ed., Arazandi: Cizur Menor (2005), 277.


29 Com uma formulação semelhante da noção de risco, veja‑se Vasques, Anotação ao artigo 44.º

RJCS em LCS Anotada, 259, referindo que se trata da probabilidade da ocorrência do evento
danoso, construção que deve ser articulada com a noção de sinistro, enquanto verificação do
evento que despoleta o acionamento da cobertura do risco e ainda Pedro Soares Martinez, Teoria
e prática dos seguros, 2.ª ed., Lisboa (1961), 19‑20, definindo o risco como a possibilidade do segu‑
rado sofrer um prejuízo.
30 A noção do artigo 51.º do RJCS, é mais ampla, incluindo também os custos de aquisição, de

gestão e de cobrança e ainda os custos relacionados com a emissão da apólice, cf. Poças, O dever,
cit.,112. Sobre as várias noções de prémio, veja‑se, Margarida Lima Rego, O prémio, Temas de
Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2016), 265‑286, 271‑272, referindo que quando
se somam os encargos fiscais e parafiscais, referidos no artigo 51.º/2 do RJCS, estamos perante o
prémio total. Podemos distinguir ainda o prémio puro ou acturial – resultante da avaliação estrita
do risco coberto pelo seguro, e o prémio de risco. Cf. ainda Antunes, O Contrato cit., 847‑848,
notando que o artigo 51.º do RJCS, refere‑se ao prémio bruto, designando o preço total, líquido
de impostos, a pagar pelo tomador em contrapartida da cobertura do risco prestada pelo segurador.
31 Poças, O dever, cit., 112.

32 Neste sentido, Poças, O surto cit., 888‑889. Sobre a variação do valor da coisa segura, em con‑

creto sobre o seu aumento, veja‑se Gomes, Algumas cit., 27. O Autor nota que o aumento do valor
da coisa segura, não é, em regra, um incremento do risco, não obstante, em alguns casos, poder
ter um impacto nas consequências prováveis do sinistro, se este se verificar. Rejeitando a aplicação
do regime no caso da diminuição do valor do interesse seguro, veja‑se Arnaldo Costa Oliveira,
Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 362, argumentando que tal resultaria numa solu‑
ção desequilibrada a favor do segurador. Esse desequilíbrio resultaria da dilação temporal até a
actualização do prémio. Na doutrina italiana, cf. Marco Rosseti, Il contenuto oggettivo del contrato
di assicurazione, Capitolo Quinto, Le assicurazioni private, Tomo I, UTET: Torino (2006), 1067,
referindo que a doutrina maioritária entende que a redução do valor da coisa segura é regulada
pelo disposto no artigo 1909.º do Codice.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   127

dos factores que é equacionado para o cálculo do prémio. A actualização do


valor do prémio, em consonância com o valor dos bens ou do interesse seguro,
corresponde também a uma alteração contratual33, mas esta alteração não está
sujeita ao regime do artigo 92.º do RJCS, que analisaremos posteriormente.
Todavia, a diferenciação entre a variação do risco e a variação do valor do
bem ou interesse seguro deve ser encarada com alguma cautela. Parece‑nos
que, em determinados casos, pode existir uma sobreposição destas figuras. Basta
pensarmos nas hipóteses em que o valor do bem está directamente relacionado
com o risco assumido. Como referimos anteriormente, a variação do valor do
bem ou do interesse seguro implica uma variação no valor do prémio, mas
também pode resultar numa menor probabilidade de verificação do sinistro e
por isso, corresponder a uma diminuição do risco para efeitos do regime pre‑
visto no artigo 92.º do RJCS34. Note‑se que tendo implicação no prémio terá
também reflexo nas condições do contrato, sendo este um dos pressupostos
para aplicação do regime35.
A diminuição do risco também não se confunde com a extinção do risco36.
Esta última é uma causa de cessação do contrato por caducidade nos termos do
artigo 110.º/1 do RJCS37. Esta solução deriva do facto de o risco ser um ele‑
mento essencial do contrato de seguro, tendo que existir não só no momento
da sua celebração, como durante a sua vigência38. De acordo com o disposto
no artigo 44.º/1 do RJCS, se o risco cessar antes da celebração do contrato, ou
nunca chegar a existir, o contrato é nulo. O artigo 44.º/3 do RJCS estabelece
ainda que o contrato não produz efeitos relativamente a riscos futuros que

33 Poças, O surto cit., 889, referindo que nestes casos a alteração contratual será proposta pelo
tomador do seguro ao segurador, que este aceitará sem reservas, produzindo‑se os seus efeitos de
forma imediata ou na anuidade seguinte, consoante os termos contratuais acordados pelas partes.
34 Por exemplo, se estivermos a falar de um seguro contra furto o valor do bem tem reflexo no

risco assumido pelo segurador. Existe uma maior probabilidade de o bem ser furtado se for mais
valioso. Assim, se por algum motivo o bem desvalorizar, além de uma variação do bem, estamos
igualmente perante uma diminuição do risco, uma vez que a probabilidade de o bem ser furtado
passa a ser menor.
35 Cf. infra 7.3.

36 Acerca desta distinção, no ordenamento jurídico espanhol, veja‑se Sánchez Calero, Artículo 13

cit., 279‑280, assinalando as diferenças nos regimes aplicáveis.


37 Sobre a caducidade no contrato de seguro veja‑se Cordeiro, Direito cit., 768‑769.

38 Veja‑se o disposto nos artigos 1.º, 24.º, 37.º/2 alínea d), 44.º e 110.º/1 do RJCS. Sobre este ponto,

veja‑se ainda Rego, O risco cit., 390‑391, abordando as diferenças entre a inexistência de risco ou
de interesse no seguro. Cf. também Vasques, Anotação ao artigo 44.º RJCS em LCS Anotada, 260
e Poças, O dever, cit., 87.

RDC I (2023), 1, 117-163


128 Daniela Rodrigues de Sousa

não cheguem a existir39. Do exposto, podemos concluir que a inexistência do


risco, originária ou superveniente, apesar de sujeita a regimes distintos, têm um
ponto em comum: a impossibilidade de manutenção e de produção de efeitos
do contrato de seguro. Note‑se que, a extinção do risco para ser relevante tem
que ser permanente ou pelo menos verificar‑se durante um período de tempo
indeterminado, não relevando situações de cariz momentâneo40.
Por último, a diminuição do risco também se distingue dos casos em que
se verifica uma alteração da natureza do risco seguro, uma vez que nestes existe
uma transformação do risco41 e não uma mera variação. Estamos perante
uma transformação do risco, quando a alteração é de tal modo significativa
que, existe uma descaracterização do risco inicialmente visado pelo contrato.
Quando a variação do risco ocorre nestes termos, há um risco novo, distinto,
e por isso deve considerar‑se que o contrato caduca uma vez que se verifica a
extinção do risco seguro inicial e o surgimento de um novo risco42.

4.2. Alteração das circunstâncias

O instituto da alteração das circunstâncias, legalmente consagrado no artigo


437.º do CC apresenta algumas similitudes com o regime das alterações do
risco previsto no RJCS. A alteração das circunstâncias é um instituto de grande
complexidade e por isso muito estudado pela doutrina nacional e estrangeira,
dando origem a múltiplas obras e existindo jurisprudência igualmente abun‑
dante sobre esta temática43/44. A brevidade deste escrito não comporta uma
detalhada análise da alteração das circunstâncias, pelo que nos limitamos apenas

39 Sobre o referido preceito, veja‑se, com maior detalhe, Vasques, Anotação ao artigo 44.º RJCS em
LCS Anotada, 258‑262. Sobre a inexistência do risco vd. também Poças, O dever, cit., 676‑680.
40 Assim, Almeida, O Contrato cit., 85.

41 Expressão utilizada por Rego, O Contrato de Seguro e Terceiros cit., 458‑459 e O risco cit., 401.

De forma semelhante, Gomes, Algumas cit.,10.


42
Cf. artigo 110.º/2 do RJCS. No mesmo sentido, Rego, O risco cit., 401, referindo que o con‑
trato caduca por falta de objecto. Sobre a caducidade pela perda superveniente do interesse ou a
extinção do risco, veja‑se Martinez, Anotação ao artigo 110.º RJCS em LCS Anotada, 409.
43 Sobre a alteração das circunstâncias, veja‑se, por todos, António Menezes Cordeiro, Da boa-

‑fé no Direito civil, 7.ª Reimpressão, Almedina: Coimbra (2020), 903‑1114; Cordeiro, Comentário
ao artigo 437.º em CC Comentado II, 270 e ss.; Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, cit., 131 e ss..
44 Também a temática da alteração das circunstâncias ganhou uma nova dimensão com a situação

pandémica provocada pela Covid‑19. Com indicações bibliográficas, veja‑se Cordeiro, Comen-
tário ao artigo 437.º em CC Comentado II, 280 e também António Menezes Cordeiro, Covid‑19 e
boa‑fé, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. LXI,1, (2020), 23‑43,
em especial 27‑32 e 41‑42.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   129

a tecer algumas considerações gerais de modo a conseguirmos identificar as


possíveis semelhanças/diferenças face ao regime da diminuição do risco e con‑
sequentemente identificar qual a relação que se pode estabelecer entre ambos
os institutos.
A alteração das circunstâncias surge sempre que se verifica uma alteração do
estado de coisas, posterior à celebração do contrato, que provoca um desequi‑
líbrio das prestações e se revela lesivo para uma das partes45. Esta descrição em
muito se aproxima daquilo que sucede no âmbito da diminuição do risco, uma
vez que há uma modificação do estado de coisas, após a celebração do con‑
trato de seguro, que implica uma variação no risco assumido pelo segurador.
Essa variação traduz‑se num desequilíbrio contratual, uma vez que o prémio
cobrado ao tomador deixa de ser proporcional ao risco existente.
De acordo com o disposto no artigo 437.º/1 do CC, o desequilíbrio pro‑
vocado pela alteração das circunstâncias fundamenta a possibilidade de a parte
lesada proceder à resolução do contrato ou em alternativa requerer a sua modi‑
ficação segundo juízos de equidade46.
Contudo, a aplicação do regime da alteração das circunstâncias está depen‑
dente da verificação de cinco requisitos47: (i) uma alteração das circunstâncias
em que as partes fundaram a decisão de contratar, (ii) o carácter anormal dessa
alteração, (iii) que essa alteração provoque uma lesão a uma das partes, (iv) que
a lesão seja contrária à boa fé, quanto ao cumprimento das obrigações assumidas
e (v) que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato.
Como veremos posteriormente, estes requisitos diferem dos pressupostos
constantes do artigo 92.º/1 e cujo preenchimento determina a aplicação do
regime da diminuição do risco.
A relação entre o regime da alteração das circunstâncias e as alterações do
risco no contrato de seguro não se afigura tarefa fácil, considerando em pri‑
meiro lugar que estamos perante um contrato aleatório48.

45 Assim, Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, cit., 131.


46
Qualquer uma destas soluções pode ser requerida extra‑judicialmente. Neste sentido, Lei‑
tão, Direito das Obrigações, Vol. II, cit., 141, rejeitando a necessidade de a resolução ser requerida
judicialmente.
47 Sobre os pressupostos da alteração das circunstâncias, veja‑se Cordeiro, Comentário ao artigo

437.º em CC Comentado II, 276‑279; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª
ed. (revista e actualizada), 6.ª Reimpressão, Almedina: Coimbra (2018), 336‑342.
48 Referindo que o contrato de seguro é um contrato aleatório: Martinez, Direito cit., 51 e 59 ss.;

Vasques, Contrato cit.,104‑105; Poças, O dever cit., 123‑125. De modo ligeiramente distinto, cf.
Cordeiro, Direito cit., 599‑600, referindo que o contrato de seguro é um contrato sinalagmático
que comporta um factor de aleatoriedade.

RDC I (2023), 1, 117-163


130 Daniela Rodrigues de Sousa

A aplicação deste instituto no caso dos contratos aleatórios gera alguma


discussão uma vez que estamos perante contratos cuja essência se traduz pre‑
cisamente na existência de álea e na dependência da verificação de um facto
futuro e incerto. Tendo por base este entendimento, encontramos linhas de
pensamento que vedam a aplicação do regime da alteração das circunstâncias
ao contrato de seguro, considerando que o carácter aleatório e os riscos pró‑
prios do contrato são susceptíveis de consumir a generalidade das alterações
em causa. Acresce ainda que nestes contratos não se verificaria uma verdadeira
equivalência das prestações49.
Não obstante, a grande maioria da doutrina nacional parece sustentar que
a alteração das circunstâncias pode ser aplicada aos contratos aleatórios desde
que, as alterações excedam manifestamente todas as variações previsíveis à data
da celebração do contrato50. O argumento da inexistência de equilíbrio entre
as prestações do contrato de seguro merece recusa, uma vez que a equivalência
é garantida pela proporcionalidade entre o risco assumido pelo segurador e o
prémio cobrado51.
Todavia, não existe unanimidade relativamente à relação que se estabelece
entre estes dois institutos.
De acordo com o entendimento de Pedro Romano Martinez, tanto o
agravamento como a diminuição do risco, decorrem de factos supervenien‑
tes à celebração do contrato e podem assentar numa alteração das circunstân‑
cias52. Desta feita, é possível distinguir duas hipóteses: uma simples alteração
das circunstâncias que determine a diminuição do risco ou uma alteração das
circunstâncias nos termos do artigo 437.º do CC que determine igualmente
uma diminuição do risco53. De modo algo similar, pronuncia‑se José Vasques,
defendendo que alteração do risco e a alteração das circunstâncias são institu‑

49 Vasques, Anotação ao artigo 94.º RJCS (Comentários Complementares) em LCS Anotada, 375.
Esta solução é expressamente adoptada noutros ordenamentos jurídicos, v.g. o artigo 1469.º do
Codice Civile italiano. Sobre o regime aplicável no ordenamento jurídico italiano, Rego, O Con-
trato de Seguro e Terceiros cit., 464‑463.
50 Assim, Costa, Direito cit., 344; Rocha, A redução cit., 228‑229; Vasques, Anotação ao artigo 94.º

RJCS (Comentários Complementares) em LCS Anotada, 375‑376; Rego, O Contrato de Seguro e


Terceiros cit., 464. De modo distinto, cf. Cordeiro, Comentário ao artigo 437.º em CC Comentado II,
282, referindo que a alteração das circunstâncias é inaplicável nos contratos de risco.
51 De modo semelhante, Vasques, Anotação ao artigo 94.º RJCS (Comentários Complementares)

em LCS Anotada, 376.


52 Martinez, Anotação ao artigo 92.º RJCS (Comentários Complementares) em LCS Anotada, 363.

53 Martinez, Anotação ao artigo 92.º RJCS (Comentários Complementares) em LCS Anotada, 363,

referindo que a alteração que ocorra nos termos do artigo 92.º apenas permite a modificação do
contrato.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   131

tos diferentes54. A alteração do risco refere‑se apenas a alterações relacionadas


com os deveres de informação e diz respeito aos riscos próprios do contrato,
enquanto a alteração das circunstâncias corresponde a uma alteração anormal
que não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
Para Margarida Lima Rego também seria possível diferenciar os dois insti‑
tutos, recorrendo ao critério da natureza das perturbações. A alteração das cir‑
cunstâncias corresponde a situações em que se verifica uma perturbação externa
que afecta a base do negócio, enquanto a diminuição do risco diz respeito às
hipóteses em que se registam perturbações internas no conteúdo do negócio55.
De modo distinto, alguma doutrina entende que o regime da diminuição
do risco é uma manifestação do instituto da alteração das circunstâncias nos
seguros56.

5. Âmbito de aplicação objectivo

Feitas estas primeiras notas acerca do regime da diminuição do risco, cum‑


pre delimitar o seu âmbito de aplicação. Como já demos nota anteriormente,
os preceitos referentes às alterações do risco inserem‑se no Capítulo VIII, que
está sistematicamente integrado no Título I, respeitante ao regime comum.
Esta integração sistemática parece ser indicativa de que este regime é aplicável a
todos os tipos de seguros. Todavia, estas disposições devem ser articuladas com
o disposto nos artigos 190.º e 215.º, alínea a) do RJCS.
O artigo 190.º do RJCS refere que “o regime do agravamento do risco
previsto nos artigos 93.º e 94.º não é aplicável aos seguros de vida, nem, resul‑
tando o agravamento do estado de saúde da pessoa segura, às coberturas de
acidente e invalidez por acidente ou doença complementares de um seguro de
vida”. Isto significa que, em regra, o regime de agravamento do risco é inapli‑
cável no âmbito dos seguros de vida57. Contudo, tratando‑se de coberturas

54 Vasques, Anotação ao artigo 94.º RJCS (Comentários Complementares) em LCS Anotada, 376‑377,
frisando que a alteração das circunstâncias é aplicável nos seguros de danos e nos seguros de pes‑
soas, sem qualquer restrição, ao contrário do que sucede com o regime do agravamento do risco.
55
Rego, O Contrato de Seguro e Terceiros cit., 457‑458.
56 Neste sentido, ainda que com algumas reservas, cf. Rocha, A redução cit., 230, referindo que

estamos perante circunstâncias que se integram no próprio conteúdo negocial e não apenas na sua
base. Notando que existe uma aproximação entre os dois institutos, cf. Poças, O surto cit., 890‑891.
57 Veja‑se Rego, O risco cit., 408, a Autora sublinha que o afastamento do regime não conduz à

total irrelevância de um agravamento do risco que ocorra na vigência de um contrato de seguro


de vida, desde que este ocorra em moldes tais que configurem um modificação da realidade cuja
descrição faz parte do próprio texto contratual. Nestas situações é necessária uma avaliação casuís‑

RDC I (2023), 1, 117-163


132 Daniela Rodrigues de Sousa

complementares de acidente ou invalidez, o regime pode ser aplicado, desde


que o agravamento do risco não resulte do agravamento do estado de saúde da
pessoa segura58.
Por seu turno, o artigo 215.º, alínea a), estabelece que o regime do agrava‑
mento do risco, não é aplicável relativamente às alterações do estado de saúde
da pessoa segura59.
Perante estes dois preceitos, referentes ao agravamento do risco, cumpre
questionar se o regime da diminuição do risco também deve sofrer adaptações
ou restrições relativamente a tais seguros (seguros de vida e seguros de saúde),
numa lógica de simetria. Apesar de, teoricamente, ser possível invocar esse
argumento, parece‑nos que o mesmo deve ser rejeitado, na medida em que
carece de apoio legal60. Além disso, os motivos que determinam a inaplica‑
bilidade do regime do agravamento do risco nos seguros de vida e de saúde
parecem não se verificar na hipótese da diminuição. Parece‑nos que a ideia
subjacente à inaplicabilidade do regime do agravamento do risco, se prende
com a própria função dos seguros de vida e de saúde e das suas particularida‑
des61. O estado de saúde da pessoa segura é variável ao longo do tempo, sendo
expectável a sua degradação e agravamento mediante o aumento da idade,
sendo por isso desconsiderado para efeitos do regime de agravamento do risco.
Estamos perante variações do risco que são previsíveis e por isso irrelevantes.
Relativamente à diminuição do risco, parece que além de ser irrelevante a sua
previsibilidade, na maioria dos casos será pouco expectável e por isso descon‑
siderada pelas partes aquando da elaboração do contrato62.

tica para determinação das consequências. Contudo, parece‑nos que estes casos se aproximam
mais de transformações do risco.
58 Sublinhando a falta de rigor do texto legal, cf. Poças, O surto cit., 889. Sobre o preceito, veja‑

‑se ainda Oliveira, Anotação ao artigo 191.º RJCS em LCS Anotada, 569‑570, referindo factos que
podem ser agravadores do risco e não estar relacionados com o estado de saúde da pessoa segura,
e.g. mudança de profissão ou local de residência.
59 Sobre este artigo, veja‑se Brito, Anotação ao artigo 215.º RJCS em LCS Anotada, 637‑638.

60
No mesmo sentido, Poças, O surto cit., 900.
61 Oliveira, Anotação ao artigo 190.º RJCS em LCS Anotada, 569‑570, referindo que atendendo às

características destes contratos é calculado um prémio médio para um risco variável. O Autor
acrescenta que além das razões técnicas, a desaplicação do regime do agravamento do risco se
deve a uma razão de política legislativa, relacionada com a protecção dos consumidores. Sobre a
inaplicabilidade do regime aos seguros de vida e seguros de saúde, veja‑se ainda Cordeiro, Direito
cit., 846 e 853.
62 Considerando que imprevisibilidade da diminuição é irrelevante cf. Poças, O surto cit., 901. O

Autor considera que basta uma diminuição objectiva do risco.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   133

Em suma, o regime da diminuição do risco é aplicável no âmbito dos segu‑


ros de vida e de saúde, mesmo quando a diminuição se deva apenas a alterações
no estado de saúde da pessoa segura63.

6. A imperatividade relativa da norma

O regime da diminuição do risco, consagrado no artigo 92.º RJCS, deve


ser conjugado com o disposto no artigo 13.º do RJCS, referente à imperativi‑
dade das disposições constantes no referido diploma64.
De acordo com o artigo 11.º do RJCS, o contrato de seguro rege‑se pelo
princípio da liberdade contratual, conferindo‑se um papel determinante à auto‑
nomia privada65. Deste modo, uma parte significativa das normas do RJCS, e
até de diplomas avulsos sobre a matéria, tem um carácter supletivo, podendo as
partes manifestar a sua liberdade através da livre produção de efeitos jurídicos
de acordo com a sua vontade negocial.
Todavia, a liberdade contratual é balizada pela existência de normas impe‑
rativas, não podendo estas ser afastadas pelas partes66. O RJCS dispõe expres‑
samente acerca da natureza imperativa das suas disposições, diferenciando as
normas que são absolutamente imperativas das que apenas têm um carácter
relativamente imperativo. As primeiras, previstas no artigo 12.º, não podem de
modo algum ser afastadas por convenção em contrário67, enquanto as segun‑

63 Defendendo a aplicação do regime da diminuição do risco aos seguros de pessoas, incluindo os


seguros de vida, veja‑se Gomes, Algumas cit., 40 e também Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS
em LCS Anotada, 362, ilustrando a situação com o seguinte exemplo: se a tarifa do segurador prevê
um prémio menor no caso de não fumadores, caso a pessoa segura, comprovadamente, deixe de
fumar deve verificar‑se uma diminuição no valor do prémio.
64 Sobre o princípio da autonomia privada no contrato de seguro, veja‑se Cordeiro, Direito cit.,

510‑512.
65
O princípio geral da liberdade contratual está consagrado no artigo 405.º do CC para a gene‑
ralidade dos contratos e é constitucionalmente tutelado pelo artigo 61.º da CRP. Sobre as várias
vertentes do princípio da liberdade contratual, em especial no contrato de seguro, cf. Joana Gal‑
vão Teles, Liberdade contratual e os seus limites – Imperatividade absoluta e imperatividade relativa, Temas
de Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2016), 103‑115, 104‑105.
66 Não esquecendo que a liberdade contratual existe dentro dos limites da lei, artigo 405.º/1 do

CC, aplicando‑se também as normas de carácter geral consagradas na lei civil (e.g. normas rela‑
tivas à capacidade).
67 Pode questionar‑se se o elenco do artigo 12.º do RJCS é taxativo ou se é possível atribuir carácter

imperativo a mais normas. Neste sentido, defendendo que o preceito é meramente exemplifica‑
tivo veja‑se Cordeiro, Direito cit., 513‑514; Amaral, Contrato cit., 79; Martinez, Anotação ao artigo
12.º RJCS em LCS Anotada, 69; Teles, Liberdade cit., 109. Note‑se que, parte destes Autores nada

RDC I (2023), 1, 117-163


134 Daniela Rodrigues de Sousa

das, previstas no artigo 13.º, podem ser substituídas por cláusulas contratuais,
desde que estas estabeleçam um regime mais favorável ao tomador do seguro,
ao segurado ou ao beneficiário da prestação. A imperatividade relativa, radica
na ideia de que no contrato de seguro existe uma parte mais fraca, que deve
beneficiar de uma protecção legal assente em imperativos mínimos68.
O n.º 1 do artigo 92.º do RJCS, integra o elenco de normas relativamente
imperativas do artigo 13.º/1. Não obstante, não há qualquer menção ao n.º 2
do artigo 92.º, circunstância que motiva a doutrina questionar a natureza desta
norma69.
Relativamente ao disposto no n.º 1, é consensual que, tratando‑se de uma
norma relativamente imperativa, o contrato pode regular a matéria de forma
distinta desde que as estipulações contratuais se traduzam em condições mais
favoráveis para o tomador, segurado ou beneficiário, podendo concretizar‑se
em inúmeras possibilidades70.
No que concerne ao n.º 2, alguns autores defendem tratar‑se de uma
incongruência na enumeração legal, devendo considerar‑se que esta disposi‑
ção é também relativamente imperativa, à semelhança do n.º 1 do referido
preceito71. Este entendimento assenta na ideia de que se a resolução pudesse
ser afastada pelas partes, tal resultaria em cláusulas abusivas que permitiriam a
manutenção de um contrato em que não há correspondência entre as presta‑
ções do sinalagma72.

refere quanto à taxatividade das normas relativamente imperativas, elencadas no artigo 13.º/1 do
RJCS. Martinez, Anotação ao artigo 13.º RJCS em LCS Anotada, 71‑72, refere que a enumeração
do artigo 13.º é tendencialmente taxativa.
68 Martinez, Anotação ao artigo 13.º RJCS em LCS Anotada, 71, referindo que pretende proteger‑

‑se a parte contratualmente mais fraca (o tomador) ou aqueles que o seguro protege ou beneficia
(segurado ou beneficiário). No mesmo sentido, Teles, Liberdade cit., 114‑115.
69 Sobre a imperatividade do artigo 92.º/2 do RJCS, veja‑se Poças, O surto cit., 917‑918; Oliveira,

Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 362‑363; Gomes, Algumas cit., 41‑42 e Rocha, A
redução cit., 230.
70
Exemplificando algumas condições mais favoráveis, cf. Poças, O surto cit., 917, incluindo um
alargamento do período de tempo a que se reportam os efeitos da redução e também prazos mais
curtos para a proposta de redução do segurador.
71 Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 362‑363. De modo similar, veja‑se

ainda Rocha, A redução cit., 230. Note‑se que este entendimento tem por base uma concepção
do artigo 13.º do RJCS, como sendo uma enumeração não taxativa. Neste sentido, cf. também
Amaral, Contrato cit., 82. Rejeitando a imperatividade relativa do artigo 92.º/2, Poças, O surto
cit., 917‑918 e Gomes, Algumas cit., 42.
72 Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 362‑363, tal seria evidente nos contratos

a longo prazo, em especial nos seguros de vida e de doença. Contra, cf. Gomes, Algumas cit., 42,
referindo que mesmos nestes casos as cláusulas não serão necessariamente abusivas.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   135

De modo discordante, há autores que defendem a não imperatividade do


preceito, advogando a ideia de que a não inclusão do n.º 2, no elenco das normas
do artigo 13.º do RJCS, pelo legislador, foi intencional. A rejeição da imperativi‑
dade relativa da norma, confere‑lhe um carácter meramente supletivo, podendo
ser afastada pelas partes, independentemente das condições serem, ou não, mais
favoráveis ao tomador, ao segurado ou ao beneficiário. Destarte, no contrato
pode ser excluída a possibilidade de resolução, mesmo nos casos em que o segu‑
rador não procede a uma redução do prémio, ou o faz de forma insatisfatória.
Na visão destes Autores, esta exclusão não será problemática, considerando que
existem alternativas que permitem alcançar os mesmos efeitos73.
Pela nossa parte, acompanhamos a rejeição da imperatividade relativa do
artigo 92.º/2 do RJCS.
Em primeiro lugar, concordamos com o argumento literal, relativo à redac‑
ção do artigo 13.º do RJCS74. Se o legislador optou por mencionar quais os arti‑
gos incluídos no seu elenco, especificando concretamente os números abrangi‑
dos, tal é indicativo que a exclusão do artigo 92.º/2 é intencional75. Em segundo
lugar, a sua inclusão, no elenco de normas relativamente imperativas, apenas
poderia encontrar justificação à luz de critérios de justiça e necessidade de pro‑
tecção da parte mais fraca (i.e. o tomador, o segurado ou o beneficiário). Este
argumento também não merece a nossa concordância, considerando que, como
referimos anteriormente, existem alternativas que permitem alcançar a resolução
do contrato, sem aplicação do disposto no artigo 92.º/2. Alguns autores refe‑
rem a este propósito a possibilidade de denúncia, nos termos dos artigos 112.º e
ss. do RJCS e da resolução automática por falta de pagamento do prémio, nos
termos do artigo 61.º do RJCS76. Além disto, pensamos ser possível acrescentar
uma terceira alternativa, a resolução por justa causa nos termos do artigo 116.º
do RJCS77. O conceito de justa causa está associado à quebra na relação de con‑
fiança que se estabelece entre as partes, sendo que a mesma assenta num juízo de

73 Neste sentido, veja‑se Poças, O surto cit., 918, sublinhando que a resolução assume um inte‑
resse prático limitado.
74 Gomes, Algumas cit., 42, o Autor nota que mesmo que se entenda que o elenco do artigo 13.º/1

não é taxativo, tal não conduz necessariamente à inclusão do 92.º/2 do RJCS no elenco das nor‑
mas relativamente imperativas.
75 De acordo com o artigo 9.º/3 do CC, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete deve

presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e se exprimiu em termos adequa‑
dos. Sobre este preceito, veja‑se Cordeiro, Comentário ao artigo 9.º em CC Comentado I, 102‑103.
76 Neste sentido, Poças, O surto cit., 918.

77 Sobre este artigo, veja‑se Martinez, Anotação ao artigo 116.º RJCS em LCS Anotada, 416‑417.

O Autor refere que a justa causa não se circunscreve a causa subjectivas, relevando igualmente
causas objectivas, tais como uma alteração significativa do risco, não imputável a nenhuma das

RDC I (2023), 1, 117-163


136 Daniela Rodrigues de Sousa

prognose quanto à justiça de subsistência do vínculo contratual78. Precisamente


nas hipóteses em que o segurador não proceda à redução do prémio, nos termos
impostos pelo artigo 92.º do RJCS, e mesmo sendo a possibilidade de resolução
excluída pelo contrato, o tomador poderá invocar que tal se traduz numa quebra
de confiança, uma vez que é manifesto o desequilíbrio no contrato que impede a
manutenção do vínculo. Há um desajuste entre o risco assumido pela segurador,
que diminuiu, e o valor do prémio cobrado.

7. Pressupostos de aplicação do regime da diminuição do risco

Para delimitar o âmbito de aplicação do regime da diminuição risco,


cumpre primeiramente determinar quais são as alterações do risco relevantes.
A celebração de um contrato que se prolonga durante um determinado período
de tempo, pressupõe que a realidade pode não se manter inalterada, registan‑
do‑se modificações nas circunstâncias que implicam variações no risco suscep‑
tíveis de afectar a posição das partes. As variações podem ocorrer por modifi‑
cações de facto ou de direito, que tenham impacto no risco que foi assumido
pelo segurador79.
Contudo, nem todas as variações serão pertinentes. Considerando o dis‑
posto no artigo 92.º/1 do RJCS, a aplicação do regime da diminuição do risco,
depende da verificação de três pressupostos cumulativos80: (i) a verificação de
uma diminuição do risco que seja inequívoca, (ii) duradoura e (iii) que tenha
reflexo nas condições do contrato.

7.1. Diminuição inequívoca do risco

A definição do primeiro pressuposto reside na interpretação da expressão


inequívoca, que de resto, não gera grandes incertezas81. A diminuição do risco

partes. Deste modo, a justa causa também abarca as hipóteses de alteração das circunstâncias,
artigo 437.º do CC.
78 Martinez, Anotação ao artigo 116.º RJCS em LCS Anotada, 416 e também Martinez, Da Cessa-

ção cit., 215 e ss..


79 Neste sentido, Marco Rosseti, Il contenuto oggettivo del contrato di assicurazione, Capitolo Quinto,

Le assicurazioni private, Tomo I, UTET: Turim (2006), 1068.


80 Referindo que haveria outros critérios possíveis, cf. Rocha, A redução cit., 225, em especial na

nota de rodapé 12, com a indicação normas semelhantes de outros ordenamentos jurídicos e que
recorrem a critérios distintos.
81 Poças, O surto cit., 894, acrescentando que a diminuição do risco tem que ser certa, efectiva,

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   137

tem que ser evidente, clara, de tal modo que não sobre margem para dúvidas
quanto à sua verificação. Este pressuposto garante que não se suscita a aplicação
do regime nos casos em que estamos perante circunstâncias em que a diminui‑
ção do risco seja duvidosa, limitando, assim, as hipóteses em que os tomadores
podem recorrer a este instituto82.
A aferição do preenchimento deste pressuposto deve ser feita casuistica‑
mente, na medida em que dependerá da configuração do risco coberto em
cada contrato de seguro83. Note‑se que muitas vezes as circunstâncias que
determinam a diminuição de determinados riscos, podem revelar‑se potencia‑
doras relativamente ao agravamento de outros riscos igualmente cobertos pelo
contrato84.

7.2. Diminuição do risco que seja duradoura

O segundo pressuposto traduz‑se na necessidade da diminuição do risco ser


duradoura, havendo assim alusão à necessidade de uma alteração que perdure
durante um período de tempo considerável. Contudo, este pressuposto não é
isento de dificuldades interpretativas, na medida em que, o legislador não refere
qual o critério para determinar durante quanto tempo terá que se verificar a
diminuição do risco, de modo a ser considerada duradoura.
Tem‑se entendido que o regime do artigo 92.º apenas poderá ser aplicado
nas hipóteses em que a diminuição do risco afecte de forma estável e persis‑

objectiva, demonstrável e cuja verificação não suscite dúvidas. De modo distinto, veja‑se Rego,
O risco cit., 402, referindo que o critério determinante será o do segurador e não um critério
objectivo utilizado pelo intérprete aplicador.
82
Neste sentido, veja‑se Poças, O surto cit., 894 e Rego, O risco cit., 403, referindo que caso não
existisse esta limitação, o regime seria prejudicial por poder dar a azo a muitos pedidos de redução
de prémio. Esta limitação é reforçada também pelo segundo requisito: a diminuição tem que ser
duradoura. Cf. ainda Rocha, A redução cit., 225, o Autor nota que há também um certo favore‑
cimento da actividade seguradora, considerando o seu interesse público.
83 Neste sentido, veja‑se Poças, O surto cit., 894, o Autor refere que deve ter‑se em atenção a

modalidade do contrato de seguro, o risco coberto, as circunstâncias específicas do objecto seguro


e ainda o contexto próprio de cada tomador.
84 Cf. Poças, O surto cit., 894‑895, o Autor refere‑se concretamente à situação vivida em con‑

sequência da pandemia de Covid‑19. A suspensão da actividade de um restaurante, na sequên‑


cia das medidas adoptadas tendo em vista a contenção da propagação da doença, resultam numa
diminuição do risco de responsabilidade civil extra‑contratual, mas simultaneamente provocam
um aumento do risco de furto ou de actos de vandalismo, considerando que as instalações se
encontram desocupadas.

RDC I (2023), 1, 117-163


138 Daniela Rodrigues de Sousa

tente o equilíbrio das posições das partes85. Ficam assim excluídas as altera‑
ções momentâneas e de curta duração que não tenham impacto no contrato.
Apesar de duradoura, não se exige que a diminuição seja definitiva, admitin‑
do‑se, assim, a relevância de situações em que diminuição do risco é apenas
temporária86.
Todavia, por motivos de segurança jurídica, é importante determinar de
modo mais preciso o que é uma alteração duradoura. De acordo com alguma
doutrina, um critério possível para considerar uma diminuição do risco como
duradoura será o período de um ano87. Esta referência temporal, justifica‑
‑se atendendo ao princípio da anuidade contratual, vertido no artigo 40.º do
RJCS. Destarte, não serão relevantes alterações do risco que perdurem apenas
durante um período que seja inferior à própria anuidade contratual.
Apesar de ser um critério atendível, parece‑nos que deve ser rejeitado, por
ser demasiado restritivo. Este critério parte do pressuposto que o contrato de
seguro vigora pelo período de um ano. Todavia, as partes podem estipular que
o contrato tenha uma duração inferior. Concluímos que nestes casos o critério
seria desajustado.
Entendemos que não é possível estabelecer um critério temporal específico
e que seja aplicável a todos os contratos. Pelo contrário, o período da dimi‑
nuição deve ser analisado casuisticamente considerando a duração do contrato
de seguro em causa. No nosso entendimento este pressuposto está dependente
de uma conjugação com o último e que analisaremos de seguida: o reflexo nas
condições do contrato.
Em suma, uma alteração será duradoura, e consequentemente relevante,
desde que perdure durante tempo suficiente para ter reflexo nas condições do
contrato.

7.3. Diminuição do risco que tenha reflexo nas condições do contrato

Por fim, a diminuição do risco que seja inequívoca e duradoura, tem que
ter reflexo nas condições do contrato. Este último pressuposto também carece
de alguma densificação, sendo necessário determinar o que deve entender‑se
por reflexo e condições do contrato.

85
Neste sentido, Poças, O surto cit., 895
86
Poças, O surto cit., 895, Rocha, A redução cit., 226.
87 Poças, O surto cit., 895, notando que fora destes casos a afectação do equilíbrio das prestações

não seria duradoura.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   139

Primeiramente, a expressão é indicativa de que a diminuição do risco tem


de ter algum impacto no conteúdo do contrato de seguro, ou seja, nas cláusulas
contratuais apreciadas no seu conjunto88. Mas em que se traduz esse impacto?
A doutrina tem interpretado este pressuposto no sentido de que a dimi‑
nuição do risco tem de assentar em circunstâncias essenciais para a assunção e
avaliação do risco pelo segurador89.
Este reflexo pode ser encarado através de duas perspectivas: ou estamos
perante novas circunstâncias que sendo conhecidas à data da celebração do con‑
trato teriam permitido uma tarifação mais favorável, ou perante o desapareci‑
mento de factos agravantes do risco que determinaram, à data da conclusão do
contrato, um prémio com um montante mais elevado90. Em qualquer uma das
hipóteses, o que está em causa são circunstâncias que não correspondem apenas
a uma diminuição objectiva do risco, mas que são passíveis de influenciar o
valor do prémio, para um montante inferior ao que foi inicialmente cobrado
pelo segurador91.

88 De modo semelhante, cf. Rocha, A redução cit., 226, tecendo algumas críticas à redacção do
preceito.
89 Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 360. No mesmo sentido, Poças, O

surto cit., 896 e Rocha, A redução cit., 226, invocando o disposto no § 313 (1) do BGB. De forma
semelhante, veja‑se ainda Rego, O risco cit., 402‑403, referindo que só o segurador tem a capa‑
cidade técnica adequada para assegurar uma medição rigorosa do risco, pelo menos sempre que
ciência acturial permita assegurar esse rigor. Não concordamos inteiramente com esta afirmação,
90
Rocha, A redução cit., 226, invocando o disposto no §41 do VVG 2008. No mesmo sentido,
veja‑se Poças, O surto cit., 896‑897 e Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 360,
dando nota que nos casos em que há o desaparecimento de uma circunstância agravante é mais
fácil a percepção externa da necessidade de diminuição do prémio. Esta percepção torna‑se mais
evidente, uma vez que é prática comum do seguradores que a tarifação seja estabelecida através
de uma tarifa‑base que depois fica sujeita a aumentos ou diminuições consoante se verifiquem
circunstâncias agravantes ou atenuantes. Cf. ainda Klimke, Anotação ao §41 VVG, BeckOk VVG,
Sven Marlow/Udo Spuhl (hrsg.), Auflage 12, C.H. Beck: München (2021), Rn. 5‑7, referindo‑se
também ao desaparecimento ou irrelevância das circunstâncias de aumento de risco. Sobre o §41
VVG, veja‑se ainda, Rixecker, Anotação ao §41 VVG, VVG Kommentar, Langheid/Rixecker
(hrsg.), Auflage 6, C.H. Beck: München (2019), Rn. 1‑4 e Christoph Karczewski, Anotação ao §
41 VVG, Versicherungsvertragsgesetz Handkommentar, Rüffer/Halbach/Schimikowski (hrsg.),
Auflage 4, Nomos: Köln (2020), Rn. 1‑3.
91 Poças, O surto cit., 897, o Autor entende que também podem estar em causa circunstâncias que

foram erroneamente declaradas pelo tomador ou pelo segurado, aquando da declaração inicial do
risco, e que tenham determinado um prémio mais elevado. No mesmo sentido, cf. Restatement,
Principles cit., 205 e Klimke, Anotação ao §41 VVG, BeckOk VVG, Sven Marlow/Udo Spuhl (hrsg.),
Auflage 12, C.H. Beck: München (2021), Rn. 8, sendo que esta solução está expressamente pre‑
vista no §41 VVG. Cf. ainda, Reiff, Anotação ao §41 VVG, Versicherungsvertragsgesetz, Prölss/
Martin (hrsg.), Auflage 31, C.H. Beck: München (2021), Rn. 9‑10, referindo que é irrelevante
se o segurado cometeu erro culposo. Na doutrina alemã tem igualmente sido defendida a aplica‑

RDC I (2023), 1, 117-163


140 Daniela Rodrigues de Sousa

Em suma, isto significa que se o segurador conhecesse essas circunstân‑


cias antes da celebração do contrato, este teria sido celebrado em condições
mais favoráveis ao tomador do seguro, relativamente ao montante do prémio
cobrado92. No nosso entendimento é este último pressuposto que fornece
o critério determinante para a apreciação da diminuição do risco. Para que
a diminuição seja relevante, e consequentemente enquadrável no regime do
artigo 92.º do RJCS, é imprescindível que as circunstâncias influam na tarifa
aplicada pelo segurador, para calcular o valor do prémio cobrado93.
A diminuição pode ocorrer devido a actos praticados pelo tomador ou pelo
segurado ou até por circunstâncias externas ou actos de terceiros94.

8. A comunicação da diminuição do risco

De acordo com os pressupostos do artigo 92.º/1, analisados supra, sempre


que a diminuição do risco seja inequívoca, duradoura e tenha reflexo nas con‑
dições do contrato o segurador deve reflecti‑la no prémio, a partir do momento
em que tenha conhecimento das novas circunstâncias.
Assim, antes de observarmos os trâmites em que é efectuada a redução e os
problemas que lhe subjazem, cumpre discorrer sobre o conhecimento das novas
circunstâncias por parte do segurador. Antes de mais, é possível que o segurador
tome conhecimento das novas circunstâncias por três vias distintas: (i) através
do tomador, (ii) de um terceiro ou (iii) através dos seus próprios meios.
A primeira hipótese é que se verificará com maior frequência. Tal encontra
justificação na ligação que o tomador tem com o risco. Em regra será o toma‑
dor que tem um contacto, praticamente diário, com as circunstâncias susceptí‑
veis de provocar variações no risco e está por isso mais apto a ter conhecimento
das alterações que vão surgindo no decurso do contrato.
Deste modo, na grande maioria dos casos será o tomador a informar o segu‑
rador da diminuição do risco, de modo a beneficiar da consequente redução

ção analógica do §41 às hipóteses em que o tomador não comunicou circunstâncias que podiam
determinar uma redução do risco, cf. Staudinger, Anotação ao § 41 VVG, Müncheter Kommentar
zum VVG, Langheid/Wandt (hrsg.), Auflage 2, C.H. Beck: München (2016), Rn. 4‑5.
92 Esta é a fórmula utilizada no artigo 13.º da LCS espanhola. Sobre este preceito, veja‑se Tapia

Hermida, Manual cit., 181 e Sánchez Calero, Artículo 13 cit., 276‑277.


93 Tendemos assim a concordar com posição defendida por Rego, O risco cit., 402. A Autora

defende que o critério determinante será sempre o do segurador e não um qualquer outro critério
objectivo escolhido pelo intérprete aplicador.
94 Restatement, Principles cit., 204‑205.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   141

do prémio95. Considerando que a comunicação pode possuir duas vertentes


– uma dimensão informativa, mas que visa a obtenção de uma alteração ao
contrato – tem‑se discutido qual a sua natureza.
Alguns autores entendem tratar‑se de uma declaração negocial, na medida
em que lhe subjaz uma pretensão de redução do prémio, formulada pelo toma‑
dor quando comunica a diminuição do risco ao segurador96. De modo diverso,
alguma doutrina qualifica esta comunicação como uma declaração de ciência,
posição que nos parece mais acertada97.
Esta questão está intrinsecamente ligada com a qualificação da comunica‑
ção enquanto um ónus do tomador, que é quase consensual na doutrina98. O
tomador não tem um dever jurídico de comunicar ao segurador a diminuição
do risco, mas terá de o fazer se quiser beneficiar de uma redução do pré‑
mio. Cabe recordar que o ónus se traduz na necessidade de observação de um
determinado comportamento e que permite ao sujeito obter uma vantagem ou
efeito pretendido, tendo a faculdade de agir ou não agir99.
A comunicação por parte do tomador, entendida como um ónus, desen‑
cadeia um correspectivo dever na esfera do segurador, que tem que reduzir o
prémio a partir do momento em que tenha conhecimento das circunstâncias.
Deste modo a obrigação de redução existe independentemente da vontade
negocial do tomador quando realiza a comunicação, e não pode por isso tratar‑
‑se de uma declaração negocial100.
Tal como indicámos anteriormente, as novas circunstâncias poderão chegar
ao conhecimento do segurador através de um terceiro, casos em que a comu‑
nicação assume igualmente a qualidade de declaração de ciência101.

95
Poças, O surto cit., 922, referindo que essa expectativa pode ou não ser verbalizada pelo tomador.
96 Neste sentido, Rego, O risco cit., 404.
97 Poças, O surto cit., 923‑924.

98 Neste sentido, Rego, O risco cit., 403‑404; Rocha, A redução cit., 226‑227; Poças, O surto cit.,

918‑919 e Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 362. De forma distinta, veja‑se
Gomes, Algumas cit., 41; Martins, Contributo cit.,192 e Sánchez Calero, Artículo 13 cit., 275‑276
que referem tratar‑se de uma faculdade do tomador.
99
Sobre a definição de ónus, cf. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. III,
Coimbra Editora: Coimbra (2002), 102‑103; Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil
II, 5.ª ed., Universidade Católica Editora: Lisboa (2010), 654‑657. Cf ainda, António Menezes
Cordeiro, Tratado de Direito Civil I, 4.ª ed., Almedina: Coimbra (2012), 918‑919, para este Autor,
no Direito civil deve falar‑se em ónus material ou encargo.
100 Deste modo, cf. Poças, O surto cit., 923‑924, mencionando que a comunicação releva apenas

como declaração de ciência, sendo irrelevante o seu valor negocial.


101 Nestes casos é consensual a qualificação enquanto declaração de ciência, cf. Rego, O risco cit.,

404.

RDC I (2023), 1, 117-163


142 Daniela Rodrigues de Sousa

Por último, é possível que o segurador tome conhecimento das circuns‑


tâncias que implicam uma diminuição do risco através dos seus próprios meios.
Parece resultar da redacção do artigo 92.º/1 do RJCS que o segurador tem o
dever de reflectir as novas circunstâncias no valor do prémio, mas será que tem
de indagar a sua existência? Isto é, será que o segurador está obrigado a empre‑
gar os seus próprios meios de modo a averiguar se existem novas circunstâncias
que se traduzem numa diminuição do risco? Entendemos que a resposta a esta
questão deve ser positiva, mas este dever do segurador deve ser interpretado
cum grano salis. Deste modo, tendemos a discordar da doutrina que entende que
existe apenas um ónus para o segurador102.
O dever do segurador estará limitado pelos seus próprios meios e pela
razoabilidade na sua utilização. É evidente que o segurador não está em con‑
dições de analisar as circunstâncias particulares de cada contrato de seguro que
celebrou, nem seria razoável exigir que o fizesse, por ser altamente dispendioso
e desproporcionado. Na grande maioria dos casos a percepção de uma dimi‑
nuição do risco depende de informação muito detalhada que estará apenas ao
alcance do tomador. Todavia, há casos em que a diminuição do risco pode ter
origem em modificações na realidade que sejam de conhecimento geral, tais
como alterações legislativas. Ora, nestes casos o segurador deve igualmente
comunicar ao tomador (se este não o fizer em primeiro lugar), a existência das
novas circunstâncias e o respectivo impacto no contrato de seguro103.

9. Consequências da diminuição do risco: a redução do prémio

9.1. Trâmites em que é efectuada a redução

A partir do momento em que tenha conhecimento das novas circunstân‑


cias que determinam uma diminuição do risco, o segurador deve reflectir essa
alteração no prémio do contrato, de acordo com a parte final do artigo 92.º/1
do RJCS.
Significa isto que, a diminuição do risco implica uma modificação no con‑
trato de modo a refletir o decréscimo do risco verificado através de uma redu‑
ção do prémio. Não é referida pelo legislador a hipótese de recurso a modifi‑

102
Neste sentido, Rocha, A redução cit., 226‑227.
103Esta solução aproxima‑se da consagrada no ordenamento jurídico alemão. Cf. Klimke, Ano-
tação ao §41 VVG, BeckOk VVG, Sven Marlow/Udo Spuhl (hrsg.), Auflage 12, C.H. Beck:
München (2021), Rn. 14, referindo que a segurador deve informar o tomador de acordo com o
§6 Abs. 4 VVG.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   143

cações contratuais alternativas à redução do prémio104. Assim, de modo diverso


do que sucede no regime do agravamento do risco, não estão expressamente
previstas outras alterações do contrato, ainda que devam ser admitidas ao abrigo
da autonomia contratual105. Parece‑nos de aceitar esta possibilidade, desde que
a alteração seja favorável ao tomador e reflicta a diminuição do risco verifi‑
cada. As modificações poderão resultar de um processo de negociação entre o
segurador e o tomador, nos mesmos termos em que é feita a redução do prémio
e que veremos de seguida. Em alternativa, também poderão ser pré‑estabele‑
cidas e resultar directamente do contrato de seguro. Note‑se, contudo, que a
redução do prémio não pode ser afastada pelas partes, salvo se a alternativa for
mais favorável ao tomador, ao segurado ou ao beneficiário, devido ao carácter
relativamente imperativo do artigo 92.º/1 do RJCS.
Na hipótese de o tomador não concordar com o valor da redução ou com
a modificação proposta pelo segurador, terá, em regra, a possibilidade de resol‑
ver o contrato, nos termos do artigo 92.º/2106.
Cumpre agora observar em que termos se processa a redução do prémio.
O artigo 92.º/1 estabelece que verificados os pressupostos supra analisados,
o segurador deve proceder a uma redução do prémio, assim que tenha conhe‑
cimento da diminuição do risco. O preceito consagra uma vinculação do segu‑
rador quanto à alteração do prémio, não resultando da sua vontade ou discri‑
cionariedade, nem necessariamente da solicitação por parte do tomador107. Mas
isto significa que a redução opera de forma automática? Alguns autores têm
negado essa possibilidade, considerando que não seria exequível, uma vez que
o legislador não estabeleceu nenhum critério objectivo que determine como
deve ser calculada a redução e o montante do novo prémio108.

104 Poças, O surto cit., 901, o Autor nota que o RJCS estabelece uma ideia de que o risco assumido
pelo segurador tem apenas expressão no montante do prémio pago pelo tomador, em especial atra‑
vés da regra proporcional do prémio consagrada nos artigos 26.º/4, alínea a) e 94.º/1, alínea b). Com
maiores desenvolvimentos acerca da regra proporcional de prémio, cf. Poças, O dever cit., 525‑530.
105 Poças, O surto cit., 902, por exemplo, através de uma alteração de exclusões de garantia que

não implique nenhuma alteração relativamente ao montante do prémio.


106
Note‑se que o 92.º/2 é uma norma supletiva, pelo que a possibilidade de resolução pode ser
excluída pelas partes, no contrato de seguro.
107 Poças, O surto cit., 902, sublinhando que estamos perante um comando legal imperativo.

108 Poças, O surto cit., 903, referindo que existe apenas uma orientação genérica no artigo 52.º/2

do RJCS. Este preceito estabelece que na falta ou insuficiência de determinação do prémio pelas
partes, este deve ser adequado e proporcionado aos riscos a cobrir pelo segurador e calculado de
acordo com os princípios da técnica seguradora, atendendo ainda às especificidades das categorias
de seguros em questão e as concretas circunstâncias em que os riscos são assumidos. Sobre este
preceito veja‑se José Pereira Morgado, Anotação ao artigo 52.º RJCS em LCS Anotada, 284‑286.

RDC I (2023), 1, 117-163


144 Daniela Rodrigues de Sousa

A redução deve ser feita através da aplicação da tarifa do segurador às novas


circunstâncias que determinam a alteração do risco assumido, mas poderá
envolver alguma margem de discricionariedade109. Esta ideia é reforçada pela
necessidade de concordância do tomador quanto ao novo prémio, artigo 92.º/2
do RJCS. É um processo que depende da actuação e vontade contratual das
partes, havendo alguma margem para negociação110.
Pode questionar‑se qual o valor do prémio que deve ser tido em consi‑
deração, nos casos em que já tenha ocorrido uma revisão tarifária posterior
ao momento da celebração do contrato. A doutrina tem entendido que quer
a relevância das circunstâncias de diminuição do risco, quer um eventual rea‑
justamento do prémio, devem ser apreciados considerando as condições do
contrato mais recentes111. Acompanhamos este entendimento, na medida em
que seria desajustado apreciar uma diminuição do risco e o consequente reflexo
nas condições do contrato, à luz de condições tarifárias que já não estão a ser
aplicadas.
Dito isto, a redução do prémio constituiu uma alteração contratual, que
é efectuada através de uma proposta do segurador (quanto ao valor do novo
prémio) e uma aceitação por parte do tomador (havendo, na falta de acordo,
possibilidade de resolução do contrato)112. Contudo, existem divergências rela‑
tivamente aos trâmites que devem ser respeitados para a efectivação da modi‑
ficação do contrato.
Alguns autores entendem que não sendo estabelecido qualquer procedi‑
mento no artigo 92.º/2 do RJCS, deve ser observado o disposto no artigo
93.º/2 com as devidas adaptações113. Deste modo, o segurador dispõe de um
prazo de 30 dias, a contar da data em que tenha conhecimento da diminuição
do risco, para propor ao tomador uma redução do prémio. Diversamente, há

109 De forma semelhante, Rego, O risco cit., 403, defendendo que cabe ao segurador a mediação
do risco e consequentemente o apuramento do valor exacto da redução. Referindo que a redu‑
ção deve ser proporcional à redução do risco, veja‑se Rocha, A redução cit., 226 e ainda Sánchez
Calero, Artículo 13 cit., 281.
110 De forma semelhante, veja‑se Poças, O surto cit., 903‑904, o Autor assinala que se o reajusta‑

mento fosse quantitativamente determinado ope legis, através de um critério legalmente estabe‑
lecido, não seria necessária a aceitação por parte do tomador. A necessidade de aprovação pelo
tomador reforça ideia de que estamos perante uma modificação contratual.
111 Neste sentido, Poças, O surto cit., 898‑899, referindo que é a tarifa mais recente que consubs‑

tancia a mais actualizada expressão do equilíbrio entre o risco e o prémio.


112 De modo semelhante, veja‑se Rego, O risco cit., 404, referindo que a comunicação por parte

do tomador quanto à verificação de uma diminuição do risco é uma declaração negocial e não
uma declaração de ciência.
113 Poças, O surto cit., 904‑906; Rocha, A redução cit., 227,

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   145

doutrina que sustenta igualmente a aplicação de um prazo de 30 dias, mas por


via de uma aplicação analógica do artigo 26.º/2 do RJCS114.
Parece‑nos que deve ser rejeitada uma aplicação analógica do artigo
26.º/2115. Este preceito refere‑se aos casos em que se verificam omissões ou
inexactidões negligentes na declaração inicial do risco consagrada no artigo 24.º
do RJCS. É inegável que a declaração inicial do risco apresenta pontos de con‑
tacto com regime das alterações do risco, como já notámos anteriormente116.
No entanto, essas similitudes são pouco relevantes no que toca à diminuição
do risco, uma vez que estamos perante um ónus do tomador e não perante um
dever de informação.
O regime do artigo 26.º do RJCS está formulado para as situações em que
há um incumprimento, ainda que negligente, dos deveres de informação por
parte do tomador ou do segurado, estabelecendo‑se a possibilidade de o segu‑
rador propor alterações ou fazer cessar o contrato117. Esta situação é deveras
distinta do regime da diminuição do risco, na medida em que para além de não
haver qualquer incumprimento por parte do tomador ou segurado, o pedido
de redução do prémio é uma faculdade do tomador e não do segurador. Dito
isto, parece‑nos que a norma que mais se assemelha será o artigo 93.º/2 do
RJCS. O artigo 93.º/2, alínea a), regula a hipótese de modificação contratual,

114 Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 361. O Autor refere ainda que alterna‑
tivamente se poderia invocar o prazo consagrado no artigo 27.º/1 do RJCS, sendo de afastar essa
possibilidade uma vez que a declaração inicial do risco é mais próxima da situação em causa e o
seu regime deve ter‑se como regime‑regra da comunicação do risco ao segurador. Afastando a
aplicação do artigo 27.º do RJCS, veja‑se Gomes, Algumas cit., 43.
115
Rejeitando igualmente uma aplicação analógica do artigo 26.º/2, veja‑se Poças, O surto cit.,
904‑ 905. O Autor invoca essencialmente três argumentos: (i) o artigo 26.º/2, regula matéria rela‑
cionada com a declaração inicial do risco, sendo o artigo 93.º/2 mais próximo sistematicamente;
(ii) o artigo 26.º/2 tem por objectivo fixar um prazo de dilação quanto aos efeitos da cessação do
contrato para que o tomador possa contratar atempadamente com um novo segurador, por sua
vez o que se pretende com a aplicação do 93.º/2 é que as partes tenham tempo para reflectir na
modificação do contrato e (iii) o artigo 26.º/2 confere ao silêncio do tomador o sentido de recusa,
enquanto que o artigo 93.º/2 confere o sentido de aceitação em harmonia com o princípio da
conservação dos negócios jurídicos.
116 Cf. supra 2. Assinalando a proximidade da declaração inicial do risco com o instituto do agra‑

vamento do risco, veja‑se Poças, O dever, cit., 673‑675 e O dever de descrição cit., 10‑11 e tam‑
bém Gomes, Algumas cit.11‑12, referindo que o regime do agravamento do risco era por vezes
encarado como uma continuação lógica do dever pré‑contratual de informação que recai sobre
o tomador ou segurado.
117 Observe‑se o disposto no artigo 26.º/1 alíneas a) e b).

RDC I (2023), 1, 117-163


146 Daniela Rodrigues de Sousa

nos casos em que se verifique um agravamento do risco, existindo assim uma


maior proximidade entre as duas situações118.
Assim, o tomador deve comunicar ao segurador as circunstâncias que se
traduzem numa diminuição do risco, não estando esta comunicação sujeita a
qualquer prazo119. Depois de feita a comunicação, o segurador dispõe de uma
prazo de 30 dias a contar do conhecimento da diminuição do risco, para for‑
mular uma proposta de alteração do prémio que reflicta as novas circunstân‑
cias120. O tomador deve aceitar ou rejeitar a alteração também num prazo de 30
dias a contar da data em que esta foi proposta pelo segurador121. Se o tomador
nada disser tem‑se por aprovada a modificação proposta, configurando‑se assim
uma aceitação tácita122. Na hipótese de o tomador rejeitar a proposta do segu‑
rador, ou se este não a apresentar no prazo referido, o primeiro pode resolver
o contrato, de acordo com o disposto no artigo 92.º/2 do RJCS, através de
uma comunicação feita ao segurador. Todas as comunicações referidas devem
ser feitas nos termos do artigo 120.º/1 do RJCS, revestindo a forma escrita ou
outro meio de que fique registo duradouro123.

9.2. Data da redução

Analisados os trâmites em que se processa a redução do prémio, cumpre


ainda ponderar o momento a partir do qual esta modificação produzirá os seus
efeitos. Teoricamente existem três possibilidades distintas: (i) data de venci‑
mento do prémio seguinte; (ii) momento em que o prémio proposto pelo

118 De forma semelhante, Poças, O surto cit., 904, referindo que regula uma situação perfeita‑
mente simétrica.
119 Neste sentido, Klimke, Anotação ao §41 VVG, BeckOk VVG, Sven Marlow/Udo Spuhl (hrsg.),

Auflage 12, C.H. Beck: München (2021), Rn. 10, indicando que o tomador também não precisa
de quantificar o valor da redução.
120 Este prazo surge também em consonância com o disposto no artigo 4:301 dos PDECS.

121
Defendendo a aplicação de um prazo de 30 dias, veja‑se também Oliveira, Anotação ao artigo 92.º
RJCS em LCS Anotada, 362‑363. No entanto o Autor, parecer continuar a invocar uma aplicação
analógica do disposto no artigo 26.º/2 do RJCS,
122 Veja‑se o disposto no artigo 93.º/2, alínea a) do RJCS.

123 O RJCS não inclui uma definição de registo duradouro. Todavia, é frequente a utilização do

termo suporte duradouro, definido noutros diplomas da ordem jurídica nacional. Veja‑se, a título
de exemplo, o artigo 4.º/ alínea x) do Regime Jurídico da Distribuição de Seguros e Resseguros,
aprovado pela Lei n.º 7/2019, de 16 de Janeiro. Assim, “suporte duradouro”, refere‑se a qualquer
instrumento que permita o armazenamento e posterior consulta de forma fiável.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   147

segurador seja aceite pelo tomador; ou (iii) momento em que o segurador teve
conhecimento da diminuição do risco124.
Encontramos a primeira possibilidade no artigo 13.º da LCS espanhola,
sendo uma decorrência do princípio da indivisibilidade do prémio125/126. Con‑
tudo, esta solução não parece ser compatível com o regime nacional e não tem
sido defendida pela doutrina portuguesa127.
Como referimos anteriormente, a redução do prémio processa‑se através de
uma modificação contratual, que carece do consentimento do tomador. Desta
feita, poderia considerar‑se que seria esse momento em que se iniciaria a pro‑
dução do seus efeitos, numa lógica de encontro de vontades de ambas as decla‑
rações negociais (proposta do segurador e aceitação por parte do tomador)128.
Todavia, a segunda alternativa parece não ser suficiente para explicar o
regime consagrado no artigo 92.º do RJCS. O n.º 1 dispõe que o segurador
deve proceder à redução do prémio no momento em que tenha conhecimento
da diminuição do risco. Esta disposição coincide com a terceira possibilidade
que apresentámos129.
Parece‑nos que solução passa por uma conjugação das duas últimas pos‑
sibilidades. A produção de efeitos só pode verificar‑se depois de a proposta
do segurador ser aceite pelo tomador, todavia por força do disposto no artigo
92.º/1, os efeitos devem retroagir à data em que o segurador teve conheci‑
mento da diminuição do risco130.
Não obstante, importa ter presente que o prémio é pago antecipadamente,
pelo que na maioria dos casos o segurador já recebeu os montantes referentes

124
Poças, O surto cit., 913‑916.
125 Sobre este preceito, veja‑se Tapia Hermida, Manual cit., 181 e Sánchez Calero, Artículo 13 cit.,
275 e ss.. Acerca do afastamento do princípio da indivisibilidade do prémio na ordem jurídica
nacional, veja‑se Rego, O prémio cit., 283‑286 e José Moitinho de Almeida, O novo regime jurídico
do contrato de seguro. Breves considerações sobre a protecção dos segurados, Cadernos de Direito Privado,
Vol. I, n.º 26, (2009), 3‑17, 7‑8.
126 Na doutrina italiana, referindo esta solução veja‑se Rosseti, Il contenuto cit., 1068.

127 Poças, O surto cit., 913.

128
Mais precisamente quando o segurador tomasse conhecimento da aceitação do tomador, ou
este nada dizendo, decorrido o prazo de 30 dias, por força de uma aplicação analógica do dis‑
posto no artigo 93.º/2, alínea a). Esta solução é apoiada pelo regime geral do artigo 224.º do CC.
Sobre este preceito, veja‑se, Cordeiro, Comentário ao artigo 224.º em CC Comentado II, 656‑657.
129 Defendendo expressamente esta solução, veja‑se Rego, O risco cit., 404; Poças, O surto cit., 914

e Rocha, A redução cit., 228.


130 Com uma solução semelhante, veja‑se Poças, O surto cit., 914, invocando que esta se coaduna

com a ratio do artigo 92.º do RJCS.

RDC I (2023), 1, 117-163


148 Daniela Rodrigues de Sousa

ao período contratual em consideração131. Deste modo, a redução terá que


operar através da devolução de parte desse montante, a diferença entre o valor
inicial do prémio e o valor depois de considerada a diminuição do risco132. E
em que termos deve ser feita essa devolução? E quando se vence a obrigação
do segurador?
Alguma doutrina entende que a devolução deve ser feita pro rata temporis
e ocorrer apenas no vencimento do prémio seguinte133. Tal decorre de uma
aplicação analógica do disposto no artigo 26.º/3 do RJCS, quanto aos efeitos
e ao cálculo pro rata134. Quanto ao acerto no vencimento seguinte, tal é prática
corrente no mercado nacional de cobrança, no que toca ao acerto na cobrança
de sobreprémios que resultam da actualização legal dos capitais mínimos obri‑
gatórios de seguros135.
Diferentemente, Margarida Lima Rego entente que o estorno será devido
30 dias após o apuramento dos factos que originaram a diminuição do risco,
na falta de estipulação mais favorável ao tomador136. Este prazo resulta de uma

131 Só não será assim na hipótese de estar pendente o seu pagamento, caso em que deve ser logo
efectuada a redução, antes da sua cobrança. Com uma solução semelhante, veja‑se Oliveira, Ano-
tação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 361.
132 Referindo que a redução do prémio dará origem a um estorno do prémio pro rata temporis por

aplicação analógica do artigo 26.º/3 do RJCS, veja‑se Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em
LCS Anotada, 360 e Rego, O risco cit., 404.
133 Neste sentido, Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 360‑361. Referindo

também obrigação do estorno do sobreprémio pro rata temporis, através de uma aplicação analógica
do disposto no artigo 26.º/3, veja‑se Rocha, A redução cit., 228. O Autor invoca também uma
aplicação extensiva do artigo 104.º do RJCS quanto ao vencimento da obrigação, aplicando um
prazo de 30 dias a contar da data do apuramento dos factos.
134
Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 360‑361, o Autor refere uma aplicação
analógica do artigo 26.º/2 do RJCS, mas parece‑nos que a referência correcta será ao artigo 26.º/3,
na medida em que é nesse preceito é que se estabelece como é feita a devolução do prémio. No
mesmo sentido, Rego, O risco cit., 404. Note‑se que o RJCS faz ainda referência ao pagamento
pro rata temporis nos artigos 17.º/3, 107.º/2 e 118.º/3.
135 Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 361, o Autor refere ainda que esta é a

solução prevista no artigo 11.º/5 do DL n.º 183/88, de 24 de Maio, com as alterações introduzidas
pelo DL n.º 31/2007, de 14 de Fevereiro, relativamente aos seguros de crédito e de caução. Além
disso, é também a solução expressamente adoptada na legislação espanhola e francesa. Contra
este entendimento, veja‑se Poças, O surto cit., 915, em especial nota de rodapé 58. O Autor afasta
uma aplicação analógica do artigo 26.º/2, uma vez que tal preceito apenas define os trâmites e os
prazos de cessação do contrato em caso de omissões ou inexactidões negligentes. Recusa ainda
uma eventual analogia com o disposto no artigo 26.º/3, uma vez que o preceito em causa define
a devolução pro rata temporis do prémio em caso de cessação antecipada do contrato e não em caso
de alteração do mesmo.
136 Rego, O risco cit., 404.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   149

interpretação extensiva do artigo 104.º do RJCS137. Esta posição é também, em


certa medida, defendida por Luís Poças, que entende que é necessário permitir
ao segurador a operacionalização do estorno, sendo para tal adequado o prazo
estabelecido no artigo 104.º do RJCS138.
Por nossa parte, acompanhamos a doutrina que defende a aplicação do
prazo de 30 dias consagrado no artigo 104.º do RJCS, ainda que de modo
supletivo. Parece‑nos que em primeiro lugar deve ser tido em conta o que foi
contratualmente convencionado pelas partes (independentemente de esse prazo
ser mais favorável ao tomador) e apenas na falta de estipulação é que se deve
recorrer ao prazo dos 30 dias139. O RJCS não estabelece qualquer prazo para
o pagamento do estorno, nem qualquer prazo em geral relativamente ao ven‑
cimento das obrigações do segurador. A única referência que encontramos é
precisamente o disposto no artigo 104.º, que regula o vencimento da prestação
principal do segurador em caso de ocorrência de sinistro. Assim, depois de a
proposta do novo prémio ser aceite pelo tomador, o segurador dispõe de um
prazo de 30 dias para proceder ao pagamento do estorno, a contar da data em
que o novo prémio foi aceite pelo tomador. Com a devida vénia, rejeitamos o
entendimento defendido por Margarida Lima Rego140, relativamente à conta‑
gem do prazo ter início no momento em que são apurados os factos que ori‑
ginaram a diminuição do risco. Se, como vimos anteriormente, o tomador tem
30 dias para se pronunciar sobre a redução proposta pelo segurador, o prazo
apenas deve ser contado a partir do momento em que esta é aceite e se conso‑
lida a modificação do contrato. Questão distinta é a de saber a que momento se
devem reportar os efeitos da redução (nomeadamente para cálculo do estorno),
que como referimos anteriormente retroagem ao momento que o segurador
teve conhecimento da diminuição do risco.

137 Rego, O risco cit., 404, a Autora refere que se assim não fosse teria de se aplicar o disposto
no artigo 777.º do CC e a matéria estaria sujeita à vontade das partes, por força do princípio da
liberdade contratual.
138
Poças, O surto cit., 915‑916, em especial a nota de rodapé 60, note‑se que o Autor defende a
aplicação do prazo de 30 dias, por força de uma aplicação do artigo 104.º do RJCS, mas não a contar
do momento em se apuram as circunstâncias que deram origem à diminuição do risco. O Autor
sublinha que a ratio e o alcance do artigo 104.º do RJCS, permitem defender a sua aplicação nesta
situação. O que se pretende é conceder ao segurador um prazo que permita a operacionalização da
prestação a que está obrigado. O prazo de 30 dias é também consentâneo e igual ao estabelecido
no artigo 60.º/1 do RJCS, relativamente ao pagamento do prémio por parte do tomador. Sobre
este preceito, veja‑se José Pereira Morgado, Anotação ao artigo 60.º RJCS em LCS Anotada, 297‑298.
139 Esta solução encontra apoio legal no artigo 11.º do RJCS, que refere que o contrato de seguro

se rege pelo princípio da liberdade contratual. Também o regime geral do CC, artigo 777.º, faz
referência à falta de estipulação das partes ou de disposição legal aplicável.
140 Rego, O risco cit., 404.

RDC I (2023), 1, 117-163


150 Daniela Rodrigues de Sousa

Acrescente‑se que se à data da liquidação do estorno, o segurador for cre‑


dor de um prémio ou outros créditos (relativos àquele contrato ou a outros),
nada obsta que possa operar uma compensação nos termos do artigo 847.º do
CC, desde que preenchidos os seus requisitos141.

9.3. Natureza jurídica da vinculação do segurador

Analisados os termos em que deve ser tramitada a redução do prémio, cabe


tomar partido acerca da posição jurídica do segurador e do tomador, face a esta
modificação contratual.
Principiemos pela vinculação do segurador. O artigo 92.º/1 do RJCS dis‑
põe que o segurador deve reflectir as novas circunstâncias no prémio. A expres‑
são é indicativa que estamos perante um verdadeiro dever e que decorre da
própria lei142/143. O dever traduz a incidência de uma norma de conduta, neste
caso impositiva, de acordo com a qual a pessoa adstrita se encontra na necessi‑
dade jurídica de praticar um determinado facto144.
O dever surge na esfera jurídica do segurador e não depende necessaria‑
mente da existência de uma comunicação por parte do tomador e a formulação
de um pedido de redução do prémio. Tal como concluímos anteriormente, o
segurador pode ter conhecimento da diminuição do risco através dos seus pró‑
prios meios, ou da comunicação por parte de um terceiro, e mesmo quando
assim não suceda, bastará que o tomador comunique as novas circunstâncias,
não sendo obrigatório referir a necessidade de redução do prémio. O dever de
redução decorre da aplicação do artigo 92.º/1 do RJCS, sempre que estejam
preenchidos os pressupostos que conferem relevância à variação do risco.
Em suma, o segurador encontra‑se vinculado a proceder à redução do pré‑
mio (ou outra modificação contratual que reflicta a diminuição do risco), assu‑
mindo, assim, uma posição passiva, cujo fundamento é a própria lei, pelo que
se qualifica como um dever legal145.

141 Neste sentido, Poças, O surto cit., 916.


142 Neste sentido, veja‑se Poças, O surto cit., 908‑909 e 920‑921, referindo que o fundamento
é a equivalência entre o prémio e o risco. Referindo tratar‑se de um dever do segurador, veja‑
‑se ainda Oliveira Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 360 e Gomes, Algumas cit., 41.
143 Acerca da definição de dever, cf. Ascensão, Direito Civil cit., 51 e ss.; Cordeiro, Tratado I cit.,

916‑917; Fernandes, Teoria cit., 644‑645 e Costa, Direito cit., 66.


144 Cordeiro, Tratado I cit., 916.

145 Poças, O surto cit., 921, esclarecendo que não se trata de uma obrigação em sentido técnico, pois

o fundamento não é a relação obrigacional. De forma distinta, veja‑se Rocha, A redução cit., 227,
o Autor entende que o segurador tem o dever de propor uma modificação do negócio e portanto

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   151

Considerando que o segurador tem um dever de proceder à redução do


valor do prémio, tal conduz‑nos à conclusão de que o tomador tem o corres‑
pectivo direito à sua verificação146. Todavia, existem divergências quanto à
possibilidade de a redução do prémio ser judicialmente exigível, quando não
seja voluntariamente efectivada pelo segurador, ou seja feita em termos insatis‑
fatórios para o tomador.
Alguns autores entendem que o tomador não tem o direito de exigir judi‑
cialmente a redução do prémio, mas apenas a resolução do contrato na hipótese
de a primeira não ser efectuada pelo segurador. Esta solução surgiria em oposi‑
ção à que resulta do regime da alteração das circunstâncias147.
Por sua vez, alguma doutrina defende a possibilidade de o tomador recor‑
rer a uma acção judicial com o fito de obter a redução do prémio, desde
que preenchidos os pressupostos do artigo 92.º/1 do RJCS148. Pela nossa parte
acompanhamos este entendimento e os argumentos apresentados. Vejamos: se
existe uma vinculação, um dever do segurador de proceder à redução do pré‑
mio, terá que se admitir a existência do correspectivo direito na esfera jurí‑
dica do tomador. Este direito deve ser tutelado através de meios, judicias ou
extra‑judiciais que permitam exigir o seu cumprimento149. Acrescentamos que
privar o tomador da possibilidade de exigir judicialmente a redução do prémio
seria contrário ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, uma vez que
a única alternativa seria a resolução do contrato.
Pode acrescentar‑se ainda que negar a possibilidade de o tomador exigir
judicialmente a redução do prémio conduz a uma solução injusta, uma vez que
resta ao tomador conformar‑se com um prémio que pode não corresponder ao
risco assumido pelo segurador ou em alternativa exigir a resolução do contrato.
A resolução pode ser contrária aos interesses do tomador, que possivelmente

um dever de renegociar, podendo assim recusar a redução desde que com a devida fundamentação.
Não podemos concordar com esta posição, pela seguinte ordem de razões: é devida uma redução
desde que estejam preenchidos os pressupostos do artigo 92.º/1 RJCS, em especial o último – “o
reflexo nas condições do contrato”. Ora se se concluiu que a diminuição do risco tem reflexo nas
condições do contrato, esse reflexo traduzir‑se‑á, como vimos anteriormente, no prémio. Deste
modo o segurador tem de proceder à redução, não havendo margem para negociação.
146 Defendendo que este direito surge pela necessidade de se conservar a proporcionalidade entre

o risco e o prémio, cf. Rosseti, Il contenuto cit., 1067.


147 Rego, O risco cit., 403. Contra este entendimento, veja‑se Poças, O surto cit., 908‑909, referindo

que a diferente redacção dos preceitos, não comporta necessariamente uma divergência de regime.
148 Poças, O surto cit., 908‑910; Rocha, A redução cit., 228.

149 De acordo com o artigo 20.º da CRP e o artigo 2 .º/2 do CPC, a todos tem que ser assegurado

o acesso ao direito e aos tribunais, pelo que deve ser possível garantir através de diversas acções
que os direitos juridicamente protegidos gozam de tutela adequada.

RDC I (2023), 1, 117-163


152 Daniela Rodrigues de Sousa

terá de contratar um novo seguro com um segurador distinto. Podem existir


vários motivos para que o tomador queira evitar esse desfecho, mormente por
ter interesse na manutenção daquele contrato de seguro e em especial com
aquele segurador150.
O tribunal deve em primeiro lugar garantir que estão preenchidos os requi‑
sitos do artigo 92.º/1 do RJCS151 e proceder posteriormente à apreciação da
redução do prémio. O critério principal será a tarifa aplicável pelo segura‑
dor, podendo igualmente recorrer‑se aos critérios presentes no artigo 52.º/2
do RJCS: o prémio deve ser adequado e proporcional face ao risco coberto,
calculado no respeito pelos princípios da técnica seguradora, sem prejuízo de
eventuais especificidades de certas categorias de seguros e das circunstâncias
concretas do risco assumido pelo segurador152.

10. A possibilidade de resolução do contrato

O artigo 92.º/2 do RJCS preceitua que na falta de acordo relativamente


ao montante do novo prémio, assiste ao tomador o direito de resolver o con‑
trato. Desta feita, o tomador pode resolver o contrato sempre que discorde
dos termos em que a redução foi proposta pelo segurador ou na hipótese de
o segurador não apresentar qualquer proposta de redução153. Parece‑nos que

150 Nomeadamente, o tomador pode ter mais seguros contratados na mesma companhia, motivos
de confiança por ser cliente há vários anos ou até simplesmente por motivos de proximidade ou
facilidade de acesso, e/ou nos contactos.
151 O preenchimentos dos pressupostos deve ser demonstrado pelo tomador, nos termos do artigo

342.º/1 do CC. Temos presente de que a prova pode ser difícil, nomeadamente no que toca ao
último pressuposto, o reflexo nas condições do contrato. Contudo, não é uma prova impossível
e por esse motivo não deve ser negada a possibilidade de recurso judicial.
152 Aludindo também aos critérios do artigo 52.º/2 do RJCS, veja‑se Poças, O surto cit., 909‑910

e Rocha, A redução cit., 228, apelando também ao disposto no artigo 437.º do CC. Em especial
sobre o artigo 52.º/2, veja‑se Morgado, Anotação ao artigo 52.º RJCS em LCS Anotada, 285, o
Autor defende que este preceito não se aplica apenas nos casos de omissão ou incompletude, mas
também como afloração de princípios gerais a observar em geral no cálculo do prémio. Sobre este
preceito, veja‑se ainda Rego, O prémio cit., 281‑283, a Autora parece entender que o segurador
não se encontra vinculado a um dever de calcular os prémios que aplica a todos os seus clientes
à luz dos princípios da adequação e proporcionalidade e no respeito pelos princípios da técnica
seguradora, havendo todavia um dever de não discriminação injustificada entre os mesmos. O
cálculo do prémio deve ainda ser feito dentro dos limites impostos pelo sistema, nomeadamente
o princípio da boa‑fé e a proibição de usura, ibid. 283.
153 De forma semelhante, veja‑se Poças, O surto cit., 911, o Autor refere que a resolução pode ocorrer

em duas situações: (i) incumprimento pelo segurador do dever legal de redução do prémio e (ii)
redução do prémio em moldes insatisfatórios para o tomador. No primeiro caso a resolução surge

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   153

estas duas hipóteses se reconduzem exactamente ao mesmo efeito: verifica‑se


um incumprimento do dever de redução do prémio a que o segurador está
legalmente vinculado. O incumprimento do dever por parte do segurador é
pressuposto da resolução do contrato por parte do tomador154. Como veremos
de seguida, o segundo pressuposto é uma declaração do tomador ao segurador,
invocando a resolução do contrato.
No que respeita à resolução do contrato, são vários os pontos que merecem
ser analisados. Há que determinar quais o termos em que a resolução deve ser
efectuada, quais os seus efeitos, e a que momento se devem reportar, e ainda se
esta pode ser judicialmente exigida pelo tomador.
A resolução está expressamente consagrada na lei civil, nos artigos 432.º a
436.º do CC, por isso cumpre estudar a articulação destas normas com o dis‑
posto no Capítulo X do RJCS, referente à cessação do contrato de seguro155.
A resolução é um dos modos de extinção do vínculo obrigacional, além
do cumprimento, que conduz à cessação do vínculo por declaração unilateral
de uma das partes dirigida à contraparte156. Esta encontra‑se condicionada pela
existência de um motivo legalmente previsto ou pela vontade das partes, artigo
432.º/1 do CC, sendo o seu exercício vinculado. Relativamente à situação
em análise, entendemos que se trata de uma resolução legal, fundamentada,
por quebra do equilíbrio contratual157. O motivo que fundamenta a resolução
é o incumprimento do dever de redução do prémio, por parte do segurador,
estando legalmente consagrado no artigo 92.º/2 do RJCS. Este incumprimento
conduz a um desequilíbrio contratual, uma vez que o risco assumido pelo segu‑

como uma sanção jurídica e no segundo desempenha a função de remediar a relação contratual na
inviabilidade de conservação do negócio jurídico. De forma ligeiramente distinta, veja‑se Rocha,
A redução cit., 228, o Autor entende que o tomador apenas pode recorrer à resolução na falta de
acordo ou quando o segurador incumpra extensivamente o dever de renegociar.
154 Notando que a resolução tem um carácter subsidiário face à redução do prémio, Rocha, A

redução cit., 228.


155
Note‑se que são aplicáveis por força do artigo 4.º do RJCS. No RJCS, o Capítulo X é dedi‑
cado à cessação do contrato, sendo a Secção V referente à resolução.
156 Quanto à resolução em geral cf. Martinez, Da Cessação cit., em especial, 29 e ss., 67‑89 e

122‑ 228; Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, 12.ª ed., Reimpressão, Almedina:
Coimbra (2018), 102‑105; Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Reimpressão,
Coimbra Editora: Coimbra (2014), 454‑464; António Menezes Cordeiro, Comentário aos artigos
432.º a 436.º em CC Comentado II, 247‑ 270; Costa, Direito cit., 317‑322. No contrato de seguro,
veja‑se ainda Cordeiro, Direito cit., 772‑774; Antunes, O Contrato cit., 858 e também Luís Poças,
O poder de desvinculação discricionária do segurador, Problemas e Soluções de Direito dos Seguros,
Almedina: Coimbra (2019), 129‑162, 138‑139.
157 Sobre esta qualificação, cf. Martinez, Da Cessação cit., 68‑69.

RDC I (2023), 1, 117-163


154 Daniela Rodrigues de Sousa

rador deixa de ser proporcional ao prémio pago pelo tomador, em virtude da


diminuição do risco.
Confessamos que não se afigura tarefa fácil a qualificação desta resolução
relativamente aos motivos. De acordo com o nosso entendimento, o que fun‑
damenta a resolução é o incumprimento do dever por parte do segurador, pare‑
cendo reconduzir‑se, assim, a uma causa subjectiva. Todavia, esse dever apenas
surge mediante uma variação do risco, que pode não ser imputável a nenhuma
das partes, aproximando‑se de uma causa objectiva158. O mais significativo é
que estamos perante uma situação que conduz a uma quebra do sinalagma con‑
tratual e justifica que o tomador tenha o direito de se desvincular, uma vez que
é a parte lesada159. Pelo exposto, entendemos que a norma do artigo 92.º/2 do
RJCS é expressão de uma justa causa de resolução do contrato160.
Como referimos anteriormente, a situação paradigmática de perda do equi‑
líbrio contratual é o instituto da alteração das circunstâncias161. Pela nossa parte,
entendemos que o regime da diminuição do risco é uma manifestação desse
mesmo instituto especialmente vocacionado para o contrato de seguro.
O tomador é a parte com a legitimidade para invocar o direito de resolver o
contrato, considerando que é a parte lesada162. Todavia, está na disponibilidade
deste decidir se pretende ou não resolver o contrato163. Desta feita, a resolução
do contrato depende de uma declaração de vontade do tomador, não operando
de forma automática e não carecendo de recurso judicial164/165. Relativamente

158 Quanto a esta classificação, cf. Martinez, Da Cessação cit., 72 e 75‑78.


159 Martinez, Da Cessação cit., 75‑77.
160 Rego, O risco cit., 405, faz também alusão à justa causa, invocando inclusive outros preceitos

do RJCS (artigos 23.º/3, 34.º/6 e 37.º/4), onde também se verifica este fundamento de resolução
do contrato de seguro. Os referidos preceitos, reforçam a ideia de que existe uma regra geral da
retroactividade da resolução do contrato ao momento determinante para o reconhecimento de
uma justa causa de resolução.
161 Sobre a resolução em sede de alteração das circunstâncias, cf. Martinez, Da Cessação cit., 77‑78

e 150‑153 e Costa, Direito cit., 323 e ss.


162 Sobre a legitimidade para a resolução, veja‑se Martinez, Da Cessação cit., 93‑96.

163
Referindo que o tomador tem a faculdade de resolver o contrato, tendo em consideração os
seus interesses, cf. Sánchez Calero, Artículo 13 cit., 283. Acrescentamos que podem existir motivos
para o tomador não querer resolver o contrato, tais como a preferência por aquela seguradora por
razões de confiança, contratação de vários seguros ou até mesmo simplesmente por facilidade em
termos de proximidade/contacto com a instituição ou até com mediadores.
164 Cf. artigo 436.º do CC e 92.º/2 do RJCS. A declaração do tomador pode ser expressa ou tácita,

nos termos do artigo 217.º do CC.


165 O tribunal pode pronunciar‑se sobre a resolução, na hipótese de alguma das partes contestar a

viabilidade do seu fundamento. Note‑se, contudo, que nestes casos o tribunal não decreta a reso‑
lução, mas apenas reconhece se estavam preenchidos (ou não) os requisitos necessários para o seu
exercício. Neste sentido, veja‑se Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, cit., 105 e Telles, Direito cit.,

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   155

à forma de declaração, de acordo com a lei civil, a mesma não estaria sujeita
a forma especial166. Todavia, parece‑nos que deve ser aplicado o disposto no
artigo 120.º/1 do RJCS, devendo a declaração revestir a forma escrita ou ser
prestada por outro meio que permita o seu registo duradouro. De referir ainda
que o direito de resolução do tomador está sujeito ao prazo de prescrição refe‑
rido no artigo 121.º/2 do RJCS167. No entanto, se o tomador continuar a
executar o contrato e não manifestar interesse na desvinculação, apesar de não
ter ocorrido o prazo de prescrição, o exercício do direito de resolução ficará
inviabilizado168.
O principal efeito da resolução é a dissolução do vínculo contratual169,
sendo necessário determinar a que momento se devem reportar os efeitos da
extinção. Assim, verifica‑se uma imediata extinção do vínculo contratual, a
partir do momento em que a declaração do tomador seja recebida ou conhe‑
cida pelo segurador170. A partir desse momento as partes deixam de estar vincu‑
ladas pelo contrato de seguro no que toca ao futuro. Mais complexo é determi‑
nar se a cessação do contrato tem eficácia ex nunc ou ex tunc, uma vez que não
encontramos uma solução legal, directamente aplicável ao contrato de seguro
no RJCS. De notar que a resposta a esta questão se reveste de grande impor‑
tância, uma vez que a produção dos efeitos da resolução é imprescindível para
determinar o período em que há cobertura, na hipótese de ocorrência de um
sinistro.
A lei civil determina que, no que toca à resolução, a regra geral é a extin‑
ção do vínculo com eficácia retroactiva, artigo 434.º/1 do CC, havendo uma
reconstituição da situação anterior à celebração do contrato. No entanto, exis‑
tem excepções a esta regra, sendo que nesses casos a resolução apenas produz
efeitos ex nunc, havendo possibilidade de salvaguardar algumas situações jurí‑
dicas171. Cumpre então averiguar se o contrato de seguro se pode reconduzir a
algumas dessas excepções.

460‑461, referindo que estamos perante acções de simples apreciação, ou quando muito acções
de condenação, mas nunca perante acções constitutivas.
166 Cf. artigos 219.º, 224.º e 436.º/1 do CC

167 Cf. artigo 121/.º2 do RJCS, que refere que os direitos emergentes do contrato de seguro pres‑

crevem no prazo de cinco anos a contar da data em que o titular teve conhecimento do direito,
sem prejuízo da prescrição ordinária a contar do facto que lhe deu causa.
168 Neste sentido, Martinez, Da Cessação cit., 167, referindo que não é frequente que o direito de

resolução se extinga por decurso dos prazos de prescrição.


169 Sobre outros efeitos da resolução, veja‑se Martinez, Da Cessação cit., 98‑103 e 175 e ss.. Cf. o

disposto no artigo 106.º/1 do RJCS.


170 Cf. artigos 436.º/1 e 224.º/1 do CC.

171 Sobre as excepções à retroactividade, cf. Martinez, Da Cessação cit., 179‑182.

RDC I (2023), 1, 117-163


156 Daniela Rodrigues de Sousa

A resolução não produz efeitos retroactivos em quatro situações: (i) se con‑


trariar a vontade das partes, (ii) se contrariar a finalidade da resolução, (iii)
nos contratos de execução continuada e (iv) na hipótese de afectar direitos de
terceiros172.
O contrato de seguro pode qualificar‑se como um contrato de execução
continuada173, inserindo‑se, à partida, na excepção prevista no artigo 434.º/2
do CC. Destarte, a resolução apenas produz efeitos futuros e não afecta as pres‑
tações efectuadas antes da declaração negocial de extinção do vínculo ser efi‑
caz174. Contudo, cabe ainda notar que o artigo 432.º/2, contém uma excepção
na sua parte final, dispondo que mesmo nos contratos de execução continuada
podem ser abrangidas as prestações já efectuadas, desde que exista entre estas e
a causa da resolução um vínculo que legitime a sua resolução175.
À luz das normas que analisámos, cumpre determinar qual a solução mais
justa na hipótese de resolução do contrato de seguro pelo tomador, na sequên‑
cia de o segurador incumprir o dever de redução do prémio em virtude da
diminuição do risco.
Alguma doutrina entende que, nestes casos, a resolução deve produzir efei‑
tos relativamente retroactivos, devendo ser afastada uma retroactividade abso‑
luta. Assim, a retroactividade deve reportar‑se ao momento em que o segura‑
dor teve conhecimento da diminuição do risco176. De acordo com esta tese,
o momento relevante é aquele em que o segurador tomou conhecimento da
diminuição do risco, uma vez que é nesta altura que se constata que existe um
desequilíbrio contratual entre as partes, que fundamenta a resolução177. Note‑se

172 Cf. artigos 434.º e 435.º do CC.


173 Poças, O poder cit., 139; Almeida, O Contrato cit., 30; Vasques, Contrato de seguro: elementos
cit., 518 e também Gonçalves, Comentário cit., 500, referindo tratar‑se de um contrato de exe‑
cução continuada, uma vez que os seus efeitos não operam num só instante mas prolongam‑se
no tempo. Qualificando o contrato de seguro como uma relação duradoura, veja‑se Cordeiro,
Direito cit., 582‑584.
174 Neste sentido, Martinez, Da Cessação cit., 224; Almeida, O Contrato cit., 30 e Leitão, Direito

das Obrigações, Vol. II, cit., 104, referindo que nos contratos de execução continuada a eficácia
retroactiva contrariaria a finalidade extintiva da resolução.
175
Com um exemplo (fornecimento de bens tornado inútil, por deficiência dos bens fornecidos,
relativamente aos bens que já foram entregues), cf. Cordeiro, Comentário ao artigo 434.º em CC
Comentado II, 264.
176 Poças, O surto cit., 911‑912.

177 Neste sentido, Poças, O surto cit., 911‑912; Rocha, A redução cit., 228 e também Rego, O risco

cit., 404‑405, referindo que este momento é expressamente referido no artigo 92.º/2 do RJCS.
A Autora faz também alusão à justa causa, invocando inclusive outros preceitos do RJCS (v.g.
artigos 23.º/3, 34.º/6 e 37.º/4), onde também se verifica este fundamento de resolução do contrato
de seguro. Os referidos preceitos, reforçam a ideia de que existe uma regra geral da retroactivi‑

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   157

que adoptando este entendimento, se ocorrer um sinistro após a data em que o


segurador teve conhecimento da diminuição do risco e este só for conhecido
pelo tomador depois de exercido o direito à resolução, o mesmo não estará
coberto pelo contrato178.
Temos algumas dificuldades em seguir este entendimento, na medida em
que o mesmo se revela prejudicial para o tomador relativamente ao período de
cobertura. Desta feita, parece‑nos que a resolução apenas pode produzir efeitos
ex nunc, ficando salvaguardadas as prestações anteriores ao momento em que o
tomador solicitou a resolução e esta comunicação foi conhecida pelo segurador.
Os efeitos da resolução devem ainda ser analisados tendo presente o dis‑
posto nos artigos 106.º e ss. do RJCS. De acordo com o disposto no artigo
106.º/2 do RJCS, a cessação do contrato não prejudica a obrigação do segura‑
dor efectuar a prestação decorrente da cobertura do risco, desde que o sinistro
seja anterior ou concomitante com a cessação do contrato. Assim, ficam cober‑
tos os sinistros que ocorram em data anterior à resolução do contrato.
Se a resolução do contrato ocorrer antes do período de vigência estipulado
(o que sucede na maioria dos casos), há lugar ao estorno do prémio já pago,
nos termos do artigo 107.º do RJCS, sendo este calculado pro rata temporis179.
A lei não estipula qual o prazo para o pagamento do estorno, pelo que pen‑
samos ser analogicamente aplicável o disposto no artigo 104.º do RJCS180.
O prazo de vencimento de 30 dias, deve ser articulado com o disposto nos
artigos 804.º a 806.º do CC, relativamente ao regime aplicável a uma eventual
situação de mora do segurador181.

11. Ratio do regime da diminuição do risco

Concluída a análise do regime legal da diminuição do risco estamos em


condições de nos pronunciar acerca dos seus fundamentos.

dade da resolução do contrato ao momento determinante para o reconhecimento de uma justa


causa de resolução.
178 Poças, O surto cit., 912.

179 Cf. artigos 107.º/1 e 2 do RJCS. No mesmo sentido veja‑se Restatement, Principles cit., 205,

apelando à aplicação do disposto no artigo 5:104 dos PDECS.


180 No fundo pelas mesmas razões que invocámos anteriormente para aplicação analógica do artigo

104.º na hipótese de estorno do prémio já cobrado quando o segurador procede à sua diminui‑
ção. Cf. supra 10.2.
181 José Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro – Estudos, Coimbra Editora: Coimbra (2009),

262‑263.

RDC I (2023), 1, 117-163


158 Daniela Rodrigues de Sousa

Como observámos este preceito insere‑se sistematicamente na Secção do


RJCS respeitante às alterações do risco, sendo ladeada por normas referentes
ao agravamento do risco e aos deveres de comunicação de alterações superve‑
nientes. Em todas estas normas encontramos um ponto em comum: estamos
perante circunstâncias supervenientes que resultam numa alteração do risco face
à configuração inicial no contrato de seguro celebrado. Consequentemente tal
resulta num desajustamento entre o prémio cobrado e o risco assumido pelo
segurador. No caso da diminuição do risco é o tomador que fica prejudicado e
tem interesse numa redução do prémio. Este é o primeiro remédio estabelecido
pelo artigo 92.º/1 do RJCS.
Perante este preceito podemos observar que a principal ratio do artigo 92.º
é garantir uma reposição do equilíbrio contratual entre as partes através do rea‑
justamento do prémio182/183. Existindo uma diminuição do risco, nos termos
descritos no artigo 92.º/1, o prémio inicialmente cobrado pelo segurador está
desajustado da realidade, uma vez que o risco assumido é menor 184.
O regime do artigo 92.º pretende assegurar que não há um desequilíbrio
contratual, estando o tomador obrigado a pagar um prémio que deixou de cor‑
responder ao risco assumido pelo segurador185. Através da redução do prémio é
possível garantir que se mantém a proporcionalidade necessária entre o prémio
e o risco186.
Alguma doutrina entende que subjacente ao regime da diminuição do
risco está também uma preocupação com a manutenção do negócio jurídico187.
Note‑se que o primeiro remédio à disposição do tomador é a exigência da
redução do prémio. Apenas na falta de acordo ou de incumprimento por parte
do segurador, é que o tomador pode lançar mão do segundo remédio, previsto
no artigo 92.º/2 do RJCS, a resolução do contrato, observando‑se assim uma
preferência pela manutenção do negócio jurídico.

182 Poças, O surto cit., 890 e 893.


183 Lorenzo Mossa, Compendio del Diritto di Assicurazione, Giuffrè – Editore: Milão (1936), 56‑57,
referindo que a diminuição do risco implica uma revisão do prémio cobrado.
184 De modo semelhante, Almeida, O Contrato cit., 86

185 Sánchez Calero, Artículo 13 cit., 276, referindo que o fundamento é semelhante ao do regime

do agravamento do risco, uma vez que há uma alteração das circunstâncias em que o contrato
foi celebrado.
186 Poças, O dever cit., 675.

187 Poças, O surto cit., 893. Cf. ainda Amaral, Contrato cit., 188, referindo que este regime assenta

ainda na boa‑fé.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   159

12. Conclusões

O risco é um elemento essencial do contrato de seguro, sendo determinante


para o cálculo do prémio. A existência de um risco tem que se verificar no
momento em que o contrato de seguro é celebrado, bem como durante a sua
vigência. Sucede que o risco não é uma realidade imutável, pelo que o RJCS
consagrou um regime aplicável nas hipóteses de alteração do risco seguro.
Relativamente ao tema que nos propusemos tratar, a diminuição do risco,
dispõe o artigo 92.º do RCJS, que ocorrendo uma diminuição inequívoca e
duradoura do risco, que tenha reflexo nas condições do contrato, o segurador
deve, a partir do momento em que tenha conhecimento das novas circunstân‑
cias reflecti‑las no prémio. Na falta de acordo por parte do tomador, este tem
o direito de resolver o contrato.
A diminuição do risco seguro, configura‑se como uma alteração contra‑
tual, que se distingue das hipóteses de variação do valor dos bem seguros, da
extinção do risco e até da alteração da natureza do risco seguro, apresentando,
contudo, algumas semelhanças com o instituto da alteração das circunstâncias.
O regime consagrado no artigo 92.º do RCJS é aplicável aos contratos
de seguro em geral, incluindo os seguros de vida e de saúde. O artigo 92.º do
RCJS, consagra três requisitos cumulativos, para que se verifique uma diminui‑
ção do risco susceptível de convocar a aplicação do regime: (i) uma diminuição
inequívoca do risco; (ii) que seja duradoura e com (iii) reflexo nas condições
do contrato.
De acordo com o artigo 92.º/1 do RJCS o segurador deverá reflectir a
diminuição do risco no valor do prémio, podendo esta ser conhecida através
de uma comunicação efectuada pelo tomador, por um terceiro ou até pelos
próprios meios do segurador. Esta comunicação pode qualificar‑se como um
ónus do tomador.
A primeira consequência da diminuição do risco é a redução do prémio,
sendo esta um dever do segurador. Esta situação traduz‑se numa modifica‑
ção contratual, cujos trâmites devem observar o disposto no artigo 93.º/2 do
RJCS, com as devidas adaptações: o tomador deve comunicar ao segurador
as circunstâncias que se traduzem numa diminuição do risco, não estando esta
comunicação sujeita a qualquer prazo. O segurador tem um prazo de 30 dias
para formular um proposta de alteração do prémio, tendo o tomador igual‑
mente 30 dias para manifestar o seu acordo. Existindo acordo do tomador, o
segurador tem 30 dias para proceder à alteração, sendo que na grande maioria
dos casos, em virtude do pagamento antecipado do prémio, esta se traduz na
devolução da diferença. Os efeitos desta redução devem retroagir ao momento
que o segurador teve conhecimento da diminuição do risco.

RDC I (2023), 1, 117-163


160 Daniela Rodrigues de Sousa

Não havendo acordo, quanto à proposta de alteração do prémio, o artigo


92.º/2, estabelece que assiste ao tomador a possibilidade de resolver o con‑
trato. O que fundamenta a resolução é o incumprimento do dever por parte
do segurador, existindo uma quebra do sinalagma contratual, que justifica que
o tomador tenha o direito de se desvincular, uma vez que é a parte lesada.
A resolução do contrato depende de uma manifestação de vontade do tomador
nesse sentido, não sendo o seu exercício vinculado. Sendo dissolvido o vínculo
contratual, a resolução deve produzir efeitos ex nunc, ficando salvaguardadas as
prestações anteriores ao momento em que o tomador solicitou a resolução e
esta comunicação foi conhecida pelo segurador.
O regime da diminuição do risco justifica‑se pela verificação de circuns‑
tâncias supervenientes que resultam numa alteração do risco face à configura‑
ção inicial no contrato de seguro celebrado. Estas alterações conduzem a um
desequilíbrio contratual, uma vez deixa de existir uma correspondência entre o
risco assumido pelo segurador e o prémio pago pelo tomador.

Bibliografia

Almeida, José Moitinho de, Contrato de Seguro – Estudos, Coimbra Editora: Coimbra
(2009).
— O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa Editora:
Lisboa (1971).
— O novo regime jurídico do contrato de seguro. Breves considerações sobre a protecção dos segu-
rados, Cadernos de Direito Privado, Vol. I, n.º 26, (2009), 3‑17.
Amaral, José Vítor dos Santos, Contrato de Seguro, Responsabilidade Automóvel e Boa‑fé,
Almedina: Coimbra (2020).
Anthero, Adriano, Comentario ao Codigo Commercial Portuguez, Vol. II, Typographia
“Artes & Letras”: Porto (1915).
Antunes, José Engrácia, O Contrato de Seguro na LCS de 2008, ROA, Ano 69, Vol. III/
IV, (2009), 815‑858. Acessível em ROA: https://portal.oa.pt/upl/%7Be96274ba‑
‑f961‑4442‑a4e4‑46fb5338440e%7D.pdf (consultado a 26‑jun.‑2021).
Ascensão, José de Oliveira, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. III, Coimbra Editora:
Coimbra (2002).
Campuzano Tomé, Herminia, El cumplimento del deber de declaración del riesgo. Especial
problemática derivada de los seguros vinculado a contratos de préstamo, Revista de Derecho
Patrimonial, 21,(2008), 105‑133.
Chichorro, Maria Manuel Ramalho Sousa, O Contrato de Seguro Obrigatório de Respon-
sabilidade Civil Automóvel, 1.ª ed., Coimbra Editora: Coimbra (2010).
Cordeiro, António Menezes, Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2017).

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   161

— Tratado de Direito Civil I, 4.ª ed., Almedina: Coimbra (2012).


Costa, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, 12.ª ed. (revista e actualizada), 6.ª
Reimpressão, Almedina: Coimbra (2018).
Fernandes, Luís Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil II, 5.ª ed., Universidade Católica
Editora: Lisboa (2010),
Garrigues, Joaquin, Contrato de seguro terrestre, s.n.: Madrid (1973).
Geraldes, António Santos Abrantes, O novo regime do contrato de seguro. Antigas e novas
questões, Intervenção no Colóquio organizado pela AIDA‑PORTUGAL (Secção
Portuguesa da Associação Internacional de Direito dos Seguros), 10 de Março
de 2010. Acessível em: http://www.trl.mj.pt/PDF/REGIME.pdf (consultado a
29‑jun.‑2021).
Gomes, Júlio Vieira, Algumas notas sobre o agravamento e a diminuição do risco no contrato
de seguro, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano LVI (XXIX da 2.ª Série),
(Janeiro‑Setembro), n.º 1‑3 (2015), 7‑ 45.
— O dever de informação do (candidato a) tomador do seguro na fase pré‑contratual, à luz do
Decreto‑lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, Estudos em Homenagem ao Professor Dou‑
tor Carlos Ferreira de Almeida, Vol. II, Almedina: Coimbra (2011), 387‑445.
— O dever de informação do tomador do seguro na fase pré‑contratual, II Congresso Nacional
de Direito dos Seguros, Almedina: Coimbra (2001), 75‑113.
Gonçalves, Luiz da Cunha, Comentário ao Código Comercial Português, Vol. II, Empresa
Editora José Bastos: Lisboa (1916).
Langheid/Rixecker, VVG Kommentar, Auflage 6, C.H. Beck: München (2019).
Langheid/Wandt, Müncheter Kommentar zum VVG, Auflage 2, C.H. Beck: München
(2016).
Leitão, Luís Menezes, Direito das Obrigações, Vol. II, 12.ª ed., Reimpressão, Almedina:
Coimbra (2018).
Martinez, Pedro Romano, Direitos dos Seguros – Apontamentos, 1.ª ed., Principia: Cascais
(2006).
— Da Cessação do Contrato, 3.ª ed., Reimpressão, Almedina: Coimbra (2020).
Martinez, Pedro Soares, Teoria e prática dos seguros, 2.ª ed., s.n.: Lisboa (1961).
Martins, Manuel da Costa, Contributo para a delimitação do âmbito da boa‑fé no contrato
de seguro, III Congresso Nacional de Direito dos Seguros, Almedina: Coimbra
(2003),169‑198.
Martins, Maria Inês de Oliveira, Contrato de seguro e conduta dos sujeitos ligados ao risco,
Almedina: Coimbra (2018).
— Distribuição do risco no contrato de seguro: os limites à imposição de condutas de administra-
ção do risco ao segurado, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa
Andrade, Vol. III, Outros Temas de Direito e Economia e de História, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, (2017), 301‑329.

RDC I (2023), 1, 117-163


162 Daniela Rodrigues de Sousa

— O Seguro de Vida Enquanto Tipo Contratual Legal, 1.ª ed., Coimbra Editora: Coimbra
(2010).
— Regime do Jurídico do contrato de seguro em Portugal, Actualidad Jurídica Iberoameri‑
cana, IDIBE, n.º5 ter (Dezembro), (2016), 199‑231. Acessível em IDIBE: http://
idibe.org/wp‑content/uploads/2013/09/255.pdf (consultado a 30‑jun.‑2021).
Miguel Traviesas, M., Sobre o contrato de seguro terrestre, Revista de Derecho Privado,
Vol IV, Serie D, Madrid, s.d..
Mossa, Lorenzo, Compendio del Diritto di Assicurazione, Giuffrè – Editore: Milão (1936).
Petersen, Luiza Moreira, O Risco do Contrato de Seguro, Roncarati: São Paulo (2018).
Poças, Luís, O surto de COVID‑19 e a diminuição do risco seguro, Revista de Direito
Comercial, Liber Amicorum Pedro Pais de Vasconcelos (2020), 881‑926. Acessível
em Revista de Direito Comercial: https://www.revistadedireitocomercial.com/o‑
‑surto‑de‑covid‑19‑e‑a‑diminuicao‑do‑risco‑seguro (consultado a 19‑jun.‑2021).
— Aproximação económica à declaração do risco no contrato de seguro, Problemas e Soluções
de Direito dos Seguros, Almedina: Coimbra (2019), 39‑79.
— O dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro, Almedina: Coimbra (2013).
— O dever de descrição exacta e completa do risco a segurar, Problemas e Soluções de Direito
dos Seguros, Almedina: Coimbra (2019), 9‑37.
— O poder de desvinculação discricionária do segurador, Problemas e Soluções de Direito dos
Seguros, Almedina: Coimbra (2019), 129‑162.
— Seguro Automóvel: Oponibilidade de Meios de Defesa aos Lesados, Almedina: Coimbra
(2020).
Prölss/Martin, Versicherungsvertragsgesetz, Auflage 31, C.H. Beck: München (2021).
Ramos, Maria Elisabete, Contrato de Seguro e cobertura de riscos associados à pandemia
de COVID‑19, ROA, Ano 80, Vol. III‑IV (Julho – Dezembro), (2020), 767‑799.
Rego, Margarida Lima, O Contrato de Seguro e Terceiros, 1.ª ed., Almedina: Coimbra
(2010).
— O contrato e a apólice de seguro, Temas de Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina:
Coimbra (2016), 15‑37.
— O prémio, Temas de Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2016),
265‑286.
— O risco e as suas vicissitudes, Temas de Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina: Coim‑
bra (2016), 389‑412.
Restatement of European Insurance Contract Law, Principles of European Insurance Con-
tract Law, 2.ª ed., Otto Schimdt: Köln (2016).
Rizza, Axelle Astegiano‑La, La déclaration initiale des risques par le souscripteur, Recueil
Dalloz, n.º 27 (12 juillet), (2012), Paris, 1753‑1760.
Rocha, Francisco Rodrigues, A redução do risco no seguro automóvel durante a pandemia de
Covid‑19. Breves notas, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Vol. LXI,1, (2020), 221‑236.

RDC I (2023), 1, 117-163


As alterações do risco no contrato de seguro: a diminuição do risco   163

Rosseti, Marco, Il contenuto oggettivo del contrato di assicurazione, Capitolo Quinto, Le


assicurazioni private, Tomo I, UTET: Turim (2006).
Rüffer/Halbach/Schimikowski, Versicherungsvertragsgesetz Handkommentar, Auflage 4,
Nomos: Köln (2020).
Sánchez Calero, Fernando, Artículo 13. Comunicación de la disminución del riesgo, Ley
de Contrato de Seguro (dir. Fernando Sánchez Calero), 3.ª ed., Arazandi: Cizur
Menor (2005).
Silva, Rita Gonçalves Ferreira da, Do Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil Geral,
Coimbra Editora: Coimbra (2007).
Sven Marlow/Udo Spuhl, BeckOk VVG, Auflage 12, C.H. Beck: München (2021).
Tapia Hermida, Alberto J., Manual de derecho de seguros y fondos de pensiones, 1.ª ed.,
Thomson Civitas: Navarra (2006).
Teles, Joana Galvão, Deveres de informação das partes, Temas de Direito dos Seguros, 2.ª
ed., Almedina: Coimbra (2016), 327‑387.
— Liberdade contratual e os seus limites – Imperatividade absoluta e imperatividade relativa,
Temas de Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2016), 103‑115.
Telles, Inocêncio Galvão, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Reimpressão, Coimbra Edi‑
tora: Coimbra (2014).
Vasques, José, Contrato de Seguro, Notas para uma Teoria Geral, Coimbra Editora: Coim‑
bra (1999).
— Contrato de seguro: elementos essenciais e características, Scientia Ivridica, Tomo LV, n.º
307, (Julho‑Setembro), (2006), 493‑525.

RDC I (2023), 1, 117-163


Recensão
Recensão ao estudo Tendências de desenvolvimento
da atual dogmática do direito civil, de Karl Larenz
( JuristenZeitung, 1962)
ANTÓNIO BARROSO RODRIGUES *
1

Identificação da obra: Karl Larenz, Entwicklungstendenzen der heutigen Zivil-


rechtsdogmatik, JuristenZeitung, Ano 17, n.º 04 (16 de fevereiro de 1962), pp.
105-110.

1. Volvido mais de meio século desde a data da sua publicação, analisamos


o estudo Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik, disponibilizado ao
público em 1962, no prestigiado periódico JuristenZeitung. Tanto a pertinência do
tema como a atualidade das ilações nele constantes, obrigam-nos a esta pequena
(mas devida) homenagem ao seu Autor, Karl Alfred Rudolf Larenz (1903-1993).
Neste breve comentário, Larenz enquadra o papel da dogmática na cons‑
trução do sistema jurídico, defronte do seu maior obstáculo, o qual designa de
direito não escrito (ungeschriebenen Recht). Em concreto, o Autor debruça-se sobre
o recurso a cláusulas gerais e outros conceitos indeterminados, carecidos de
preenchimento e discorre sobre a subsequente tensão entre o papel criativo da
jurisprudência na aplicação do direito e no seu desenvolvimento. A este res‑
peito, Larenz antevê profeticamente um vasto conjunto de fenómenos, endó‑
genos à área jusprivatística, os quais o direito pode (e deve) solucionar – muitos
dos quais ainda se encontram em voga. Fá-lo numa brilhante simplicidade, de
si já habitual, rejeitando a rigidez associada ao puro conceptualismo, no qual
não se revê. Para tanto, argumenta que todos estes fenómenos não podem ser

*Assistente convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e investigador do Centro


de Investigação de Direito Privado. Advogado.

RDC I (2023), 1, 167-190


168 António Barroso Rodrigues

cabalmente compreendidos até se encontrarem identificados nas suas caracterís‑


ticas ou traços jurídicos essenciais. Por outras palavras, até serem conhecidos os
quadros dogmáticos por onde premeiam, o conhecimento dos fenómenos não
tem expressão significativa. Como se isto não fosse suficiente (e é), na segunda
parte deste estudo explora o conceito familiar de relação obrigacional (Schuld-
verhältnisses) e, em si, o de obrigação, cuja insigne lição se torna um elemento
indispensável à compreensão daquilo que contemporaneamente muitos assu‑
mem como dogmaticamente consensual. Muito se discutiu sobre o conceito
de obrigação. Contudo, a noção aqui avançada, em todo o seu esplendor, é
(melhor, continua a ser) – cumpre notar –, a base fundacional da corrente noção
de obrigação e do seu inerente dinamismo. O Autor menciona, claro, outras
figuras, situações típicas com o mesmo recorte; todavia, é naquele conceito
o de relação obrigacional, que mais se retém, com manifesto destaque na sua
exposição e sobre o qual, acompanhando o passo, também nos devemos ocu‑
par. Antes disto, cumpre recordar que o estudo aborda, não um, mas dois dos
principais desafios enfrentados pela dogmática do direito civil, segundo Larenz.
Ora, a noção de relação obrigacional, neste contexto, surge tão-só a propósito
da análise do segundo. Vejamos.

2. Como dissemos, o presente estudo obedece a uma estrutura bipartida,


em clara correspondência aos dois principais problemas colocados, segundo o
respetivo Autor, à dogmática jurídica.
Na primeira parte, Larenz apela à irracionalidade no sistema jurídico em apli‑
cação, tanto ao seu perigo (no resultado) como à sua inevitabilidade (no processo
metodológico). Para si, a dogmática jurídica não se caracteriza pela definitivi‑
dade, nem pela lógica pura. A aplicação do direito, tal como transparece nos
instrumentos hermenêuticos utilizados, coaduna-se com um qualquer momento
irracional, ainda que indesejável. A utilização profusa de cláusulas gerais e de con‑
ceitos indeterminados a tanto obrigam o intérprete, por complexificarem, num
novo patamar, a, já em si, árdua tarefa de interpretação e aplicação da norma ao
caso. Na verdade, o conceito indeterminado também carece de preenchimento
e, aqui, para o Autor, a simples subsunção a um conteúdo conceptual fixo não
é adequada, nem suficiente. Isto expande exponencialmente a margem de risco
inerente ao método dogmático, pretensamente racional, como vimos. Neste
contexto, Larenz chama à colação o contributo jurisprudencial, na seleção de cri‑
térios racionais, não aparentes, e aponta a necessidade de esse critério, entretanto
desvendado pelo pragmatismo do labor judicial, ser refinado e, especialmente,
sistematizado; tarefa essa que cabe, a seu passo, à doutrina.
Na segunda parte deste estudo, Larenz expõe a dificuldade de enquadra‑
mento das novas formações do tráfego jurídico, as quais rompem com os qua‑

RDC I (2023), 1, 167-190


Recensão ao estudo de Karl Larenz ( JuristenZeitung, 1962)  169

dros dogmáticos pré-existentes e pré-definidos. Explicando melhor, estas rea‑


lidades destoam a dogmática pré-estabelecida por romperem com os esquemas
conceptuais existentes, seja por alguma incongruência parcial, seja por mani‑
festa lacuna de previsão. Acresce que o sistema jurídico não fica exonerado de
encontrar uma resposta cabal aos problemas colocados, inclusive, claro está, por
estas novas formações. A solução, aduz, passa pela expansão do sistema, pelo
confronto, revisão e teste dos conceitos e – em adesão à dialética hegeliana,
a qual sempre o marcou –, no fim, pelo alcance de uma nova síntese. Como
exemplo paradigmático da virtude deste método, por si proposto, surge o con‑
ceito de obrigação, rectius, de relação obrigacional. Quanto a este, Larenz rejeita a
natureza de simples relação prestacional e comprova o motivo desta rejeição: é
evidente a sua desadequação no enquadramento de figuras como as obrigações
duradouras e os deveres acessórios, emergentes de situações contratuais típicas,
as quais o direito não pode ignorar. Para si, o conceito de relação obrigacional
é compreensivo, em moldes próprios. Embora menos do que seria de espe‑
rar, afasta-se da conceção orgânica de Siber e, por outro lado, da natureza
omni-abrangente do vínculo, na proposta Esser, apelando, por sua vez, a uma
noção complexiva de estrutura, a uma conexão objetiva propositada de relações legais
concretas (ein Gefüge, eine objektive, sinnvolle Verknüpfung konkreter Rechtsbeziehun-
gen). Palavras novamente certeiras, as quais conjugam a caracterização da forma
do vínculo com a identificação da função modeladora do seu propósito. Esta
conceção permite ultrapassar vários obstáculos, intransponíveis pelas conceções
precedentes, entre os quais se destaca o enquadramento (a) da possibilidade de
transmissão da relação obrigacional como um todo, (b) da forma e dos efeitos da
cessão de vínculos obrigacionais duradouros, (c) da correlação deste novo vín‑
culo, emergente da extinção, com o anterior, (d) do lugar e papel dos deveres
acessórios de conduta e, finalmente, (e) de figuras vanguardistas, como o con‑
trato com eficácia de protecção a favor de terceiros. Críticas que se prendem,
essencial e novamente, com a insuficiência de uma leitura redutora do objeto
do vínculo obrigacional, vencidas entretanto pela noção proposta. Esta é, em
balanço, uma pedra de toque do estudo e uma das suas principais conclusões.

3. Retomemos, agora, a noção de relação obrigacional avançada por Larenz.


Cumpre notar, primeiro, que não foi este o local escolhido pelo Autor para a
densificar, explorando todos os seus meandros (e são muitos). Pelo contrário,
essa tarefa, à data deste estudo, já se encontrava cabalmente realizada, em moldes
verdadeiramente formidáveis, no seu manual de direito das obrigações. Neste
estudo, o Autor apresenta tão-só – certamente pela limitada economia do espaço
que dispõe – o resultado dessa investigação, numa espécie de súmula, a qual (e
esta pode ser a única crítica elogiosa que apontamos) esconde a profunda refle‑

RDC I (2023), 1, 167-190


170 António Barroso Rodrigues

xão, que necessariamente a precede. Não deixa, contudo, de ser uma excelente
sinopse das principais ilações, as quais, dúvidas não haja, só podem ser decor‑
rentes de um longo e maturado processo de apuramento conceptual – sobre o
qual não podemos alongar-nos, de momento. Ou melhor, as conclusões apre‑
sentadas quanto ao conceito de relação obrigacional olvidam, na sua aparente
simplicidade, toda a discussão clássica existente quanto ao sentido e o objeto da
obrigação. Muito menos nesta explicação se esgota toda a linha argumentativa
que justifica, a nosso ver, a bondade da posição do Autor. A verdade é que o
tema é recorrente na doutrina, inclusive na estrangeira, e Larenz aborda-o neste
momento somente em réplica às críticas que foram dirigidas à sua proposta;
a qual se encontra – novamente – melhor densificada no respetivo manual.
Muito se discutiu sobre o conceito e estrutura da obrigação ou, enfim, da
relação obrigacional como um todo: nos primórdios da discussão, as doutri‑
nas personalistas (uma das quais famosamente defendida, p. ex., por Winds‑
cheid) invocavam que o objeto do vínculo seria um direito a um comporta-
mento, a uma conduta do devedor; outras, realistas, apelavam, ao invés, ao seu
património (aos bens, em concreto), através do qual o credor poderia sempre
obter a satisfação do seu direito, inclusive de forma coerciva. Não é possí‑
vel, em rigor, categorizar todos os subentendimentos reportados a cada um
destes dois, chamemos-lhes assim, macro-entendimentos, pelo menos pretensa‑
mente. Há zonas de sobreposição, em conflito positivo de abrangência, e isso
impede-nos entrar, de momento, em maior detalhe e de apresentar conclusões
perto de um qualquer enquadramento dicotómico de todas estas propostas.
Precisamente por isto não é, suspeitamos, possível de alcançar essa categori‑
zação absoluta, sem uma inflexão dos critérios distintivos e sem o abandono
do rigor técnico sempre exigível. Se aquela separação de águas foi precursora
dos termos da discussão, nem por isso impediu a tentativa de criação de pon‑
tes: surgiram, posteriormente, as teses mistas, qual cabeça bifronte de Jano, as
quais apostaram na combinação de ambos os aspetos, pessoais e patrimoniais,
em discussão; a mais famosa das quais foi, como é sabido, a da Schuld und Haf-
tung (dívida e responsabilidade). Acima de tudo – tal como foi exemplarmente
identificado, entre nós, por Menezes Cordeiro, no volume VI do Tratado de
Direito Civil –, existe um outro tipo de proposta (um quarto tipo, em con‑
creto, segundo a exposição aqui seguida), de destacar: segundo aquele, a obri‑
gação tem uma natureza verdadeiramente complexa, desprendida de propósitos
salomónicos, precisamente a maior crítica apontada às conceções anteriores.
A primeira proposta de Siber, explorada neste texto e refutada por Larenz
(cf., a propósito, a nota de rodapé n.º 17 deste estudo), é aperfeiçoada com
a remoção da natureza organicista da ideia (ponto crítico da analogia sobre a
qual assenta), substituída, por seu turno, pela cirúrgica referência à natureza

RDC I (2023), 1, 167-190


Recensão ao estudo de Karl Larenz ( JuristenZeitung, 1962)  171

de estrutura ou, sobretudo, de processo do conceito em causa. Significa isto que,


quando o Autor se reporta à noção de obrigação ou vínculo/relação obrigacio‑
nal, apela uma ideia de matriz, agregadora de fenómenos díspares, num modelo
dinâmico, orientada para a satisfação do interesse do credor. Como poderemos
não concordar? Não se desata o nó górdio, porque a complexidade é sua carac‑
terística fundamental, senão mesmo a respetiva natureza.
Entre nós, também esta conceção se imporia paulatinamente (com a ade‑
são, p. ex., de Pessoa Jorge). Neste contexto, os entendimentos que a ante‑
cederam, ao reconhecerem apenas uma vivência unidimensional à obrigação,
são perfunctórios e marcadamente redutores. Aliás, indo mais longe, mani‑
festamente insustentáveis. Mas vale a pena recordá-los e insistir neste ponto:
Larenz não se prende por um entendimento eclético, das doutrinas pessoalistas,
realistas e mistas. Vai mais longe do que isso, como se comprova (novamente)
neste estudo.
4. Antes de mais, é relevante contextualizar o momento em que este texto
foi escrito. Este surge após o regresso do Autor a Munique, em 1960, e de
serem dados à estampa os dois primeiros volumes do seu manual de direito das
obrigações (Lehrbuch des Schuldrechts) – o primeiro volume, de 1953, contaria
com catorze edições, até 1987, o segundo de 1956 (dividido em duas partes),
com treze, a última de 19861 –; é inclusive posterior à publicação de uma outra
obra de referência, para muitos a sua magnum opus, a Metodologia da Ciência
do Direito (Methodenlehre der Rechtswissenschaft), publicada em 1960. É, por‑
tanto, academicamente uma época de ouro, de grande produção científica para
Larenz. Isso transparece no altíssimo nível de afinamento dos quadros concep‑
tuais utilizados neste estudo, inicialmente elaborado em 1961, dentro os quais
se destacam os – por si cunhados e posteriormente por muitos, senão por todos,
empregues – de contrato com eficácia de protecção a favor de terceiros (Vertrag
mit Schutzwirkung für Dritte)2 ou de obrigação/relação obrigacional sem o dever pri-
mário de prestar (Schuldverhältnisse ohne primäre Leistungspflicht)3.

1
Apenas a primeira parte do segundo volume foi publicada em 1986. Para a revisão da segunda
parte, teríamos de esperar até 1994, após o falecimento de Larenz, no ano imediatamente anterior.
A alteração dessoutro volume seria feita pela mão de Claus-Wilhelm Canaris (v. Lehrbuch des Schul-
drechts, Vol. II, Besonderer Teil, Parte II, 13.ª ed., C.H.Beck: Munique, 1984, na nota prévia, V-VII).
2 V. a anotação deste A. à decisão do BGH, de 25 de abril de 1956 (NJW 1956, 1193-1194), embora

o termo já constasse da primeira edição do primeiro volume do seu manual de direito das obriga‑
ções, datado de 1953 (também com esta indicação, v. Canaris, Deutschsprachige Zivilrechtslehrer des
20. Jahrhunderts in Berichten ihrer Schüler, Vol. II, De Gruyter: Berlim, 2011, pp. 264-295, 291, nota
de rodapé 103).
3 Utilizada pela primeira vez – note-se que o próprio A. confessa isto na nota de rodapé 19 deste

estudo – na quinta edição do primeiro volume do seu manual de obrigações, com data de 1962.

RDC I (2023), 1, 167-190


172 António Barroso Rodrigues

Ao contrário do que se poderia supor, a prudência caracteriza o Autor


sempre que este hesita ao longo do texto em avançar com uma solução com‑
preensiva, antes do teste e maturação concedida pelo decurso do tempo e pela
(antecipamos) pela auscultação da praxis. Sem prejuízo (e não há, de todo), a
genialidade encontramo-la, também, na antecipação dos problemas dogmáti‑
cos inerentes a novas e vanguardistas figuras ou, pelo menos, no desvendar das
linhas gerais de enquadramento dogmático a considerar, nas quais as soluções
vindouras assentariam. Não esqueçamos o momento em que o texto foi escrito
e veio a público. Pelos olhos modernos, a (aparente) evidência das ilações do
Autor é alheia à sua natureza disruptivamente inovadora e - qual característica
da melhor ciência, supomos – à sua simplicidade. O pendor prático denota-se
no peso concedido à fenomenologia e, bem assim, na elevação do valor da
jurisprudência no desenvolvimento do direito. Por isto, uma vez identificada
a razão que presidiu a uma concreta decisão, Larenz não receia em considerá‑
-la, com modéstia ímpar, noutras decisões que partilhem do mesmo substrato
jurídico. Compreende-se que assim seja. Como tivemos ocasião de referir,
solucionar o caso concreto é, para si, o fim do direito e, por inerência, da
dogmática que o serve; propósito sem o qual ambos perdem a razão de ser4.
Este foi, cumpre não esquecer, também um legado metodológico marcante de
Larenz, comprovável neste e noutros tantos escritos. É, também por isto, um
estudo atual e aplicável à dogmática jurídica, seja ela civil ou não. Mais: quanto
à questão de saber se é razoável esperar que se mantenha pertinente durante
muito tempo (p. ex., em novo meio século) a resposta, a nosso ver, é bastante
simples (em sentido afirmativo, naturalmente). Ainda para mais num tempo
que se caracteriza pela degradação da qualidade legislativa e, inerentemente,
conceptual.
Em suma, a leitura deste estudo permite, se dúvidas existissem, recordar o
inigualável estilo de escrita de Larenz, tecnicamente rigoroso e, sobretudo, pro‑
fundamente sagaz, e, sem somenos importância, comprovar a razão do estatuto
de clássico da vida (Klassiker zu Lebzeiten) ao qual seria justamente erigido; esta‑
tuto esse, aliás, reiterado na última reverente homenagem que Claus-Wilhelm
Canaris lhe prestou5.

4 Esta ideia havia sido desenvolvida pelo Autor em Wegweiser zu richterlicher Rechtsschöpfung. Eine recht-
smetbodologische Untersuchung, FS Nikish. Mohr: Tubinga (1958), pp. 276-305 (296, 297); cujo estudo
é inclusivamente assumido, na primeira nota deste artigo, como um dos sustentáculos da conceção
científico-teórica subjacente às suas observações.
5 Deutschsprachige Zivilrechtslehrer des 20. Jahrhunderts in Berichten ihrer Schüler, II, p. 289. A expressão

é atribuída a Dreier (Karl Larenz über seine Haltung im „Dritten Reich“, JZ 1993, 454-457; logo no
primeiro parágrafo).

RDC I (2023), 1, 167-190


Recensão ao estudo de Karl Larenz ( JuristenZeitung, 1962)  173

* * *

Segue-se a proposta de tradução de Entwicklungstendenzen der heutigen Zivil-


rechtsdogmatik, publicado no insigne JuristenZeitung, em 16 de fevereiro de 1962.
Para cumprir condignamente esta tarefa, mantivemos a estrutura do estudo,
ou seja, a sua divisão em três partes, através de numeração romana, tal como
gizado pelo respetivo Autor.
A tradução procurou ser fiel ao pensamento de Larenz, mas a tarefa não é
alheia a vários contratempos e dificuldades. Em rigor, várias palavras ou expres‑
sões não têm correspondência direta com qualquer vocábulo português ou (mais
custoso) com os próprios conceitos jurídicos; como se isto não fosse suficiente,
outras expressões, por serem idiomáticas, tout-court, foram necessariamente tra‑
duzidas para as nossas correspondentes, naturalmente não equivalentes. Este é,
s. m. o., o custo infelizmente implicado, porquanto nunca compensado, numa
tarefa deste tipo. Assim, em vários momentos do texto – apenas em abono da
melhor compreensão do original, naturalmente –, prestou-se uma explicação
da tradução proposta, com nota dos desenvolvimentos científicos, sempre em
nota de pé de página (a título de notas de tradução; numa numeração para‑
lela à das notas de rodapé do Autor), ou adicionou-me o termo original, em
parêntesis retos no texto, imediatamente depois do vocábulo traduzido. Foram
expedientes a que recorremos, tanto por dever como por necessidade, amiúde.
Acresce que, todas as referências bibliográficas mencionadas pelo Autor, em
pé de página, não foram traduzidas: constam, ao invés, no original, em itálico,
facilitando a respetiva identificação.

RDC I (2023), 1, 167-190


Tendências de desenvolvimento da atual dogmática
do direito civil * 1
Pelo PROF. DR. KARL LARENZ, MUNIQUE

A tarefa de uma dogmática, de uma doutrina, é sempre não só a de trans‑


mitir um tesouro de conhecimento que aparenta ser seguro, mas também a de
examiná-lo constantemente de forma crítica para ver se e em que medida é
suficiente face às novas exigências que a vida lhe impõe, e para o desenvolver
ainda mais, reformulá-lo ou complementá-lo, se necessário. A tarefa da dog‑
mática jurídica é o domínio intelectual do Direito actual com os métodos de
pensamento e as categorias que foram desenvolvidas num processo que durou
milhares de anos. Onde estes já não são suficientes, devem eles próprios ser
sujeitos a revisão. Este processo está em curso em cada ciência viva; não está
limitado a um determinado tempo.
A situação da dogmática do Direito civil contemporâneo é ainda assim
particular. Cada ciência, seja ela qual for, é um processo racional, pelo menos no
espaço da história intelectual do Ocidente. A dogmática jurídica como ciência
vive da convicção de que os problemas legais são suscetíveis de tratamento
racional e de que é possível encontrar decisões “corretas” com a ajuda de um
método de pensamento que é racionalmente compreensível e, portanto, veri‑
ficável, pelo menos nas suas características básicas. É precisamente esta con‑
vicção, e com ela a dogmática do direito, que foi posta em causa no início do
nosso século pela chamada “doutrina do direito livre”. É verdade que esta teo‑

* As considerações seguintes reproduzem a palestra inaugural dada pelo Autor a 31 de maio de 1961
na Universidade de Munique. A sua publicação, inicialmente não planeada, foi feita a pedido de
alguns ouvintes. Deixei a redação inalterada e apenas acrescentei algumas notas que, com uma única
excepção, são somente referências bibliográficas. Devido à concepção científico-teórica subjacente
às observações, posso referir em geral, para além do meu Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 1960, o
meu tratado Über den Wissenschaftscharakter der Rechtswissenschaft, Estudos comemorativos para Legaz
y Lacambra, Santiago de Compostela, Vol. I, 1960, p. 179.
Tendências de desenvolvimento da atual dogmática do Direito civil   175

ria não ganhou muito reconhecimento; a jurisprudência dos interesses, a qual


inicialmente lhe estava intimamente associada, criou rapidamente um método
racional para si própria. Mas por vezes parece que a doutrina do direito livre,
que reconhecidamente ninguém hoje abertamente professa, se tornou secre‑
tamente o credo de uma grande parte dos nossos operadores jurídicos. Isto
levanta a questão de como a doutrina jurídica vê hoje a sua tarefa e como tenta
cumpri-la. Escusado será dizer que com uma questão tão vasta temos de nos
contentar com uma parte do problema. Queremos ocupar-nos da forma como
a dogmática contemporânea lida com as chamadas “cláusulas gerais” e como
lida com as novas formações jurídicas que se desenvolveram para além da lei e
em parte contrárias à lei.

I.

Há quase 30 anos, J. W. Hedemann alertou para a “fuga nas cláusulas gerais”2


através do qual se referia ao uso extremamente amplo e livre que a jurisprudên‑
cia tinha começado a fazer de conceitos indeterminados de valor como “boa
fé”, “equidade” e “contrariedade aos bons costumes”, especialmente após a
Primeira Guerra Mundial. Recordemos a valorização [Aufwertung], a cessação
da base do negócio [Fortfall der Geschäftsgrundlage], o abuso do monopólio con‑
trário aos bons costumes [sittenwidrigen Monopolmißbrauch], o abuso do direito,
o dever de lealdade e de assistência social [Treu- und Fürsorgepflicht] na relação
laboral, todos conceitos que permearam para o poder judiciário desde o início
da década de 20. Esta evolução intensificou-se após a 2.ª Guerra Mundial.
Novos aditamentos incluem, para citar apenas alguns, o “direito geral de per‑
sonalidade”, a “adequação social” como fundamento geral de justificação, o
“trabalho perigoso” como base de uma deslocação no risco de responsabili‑
dade. No novo § 906 BGB foram incluídos o “grau razoável” [zumutbare Maß]
e a “adequada indemnização em dinheiro”; na lei dos danos, o legislador está
em vias de flexibilizar o “princípio do tudo ou nada” por meio de uma cláusula
de equidade ou cláusula hardship, de acordo com os desejos da Conferência dos
Juristas Alemães; como no caso dos menores, a criação de uma responsabilidade
atenuada no direito civil delitual, com a consequência de que o juiz pode redu‑
zir a obrigação de indemnização. A ampla extensão que a jurisprudência con‑
cedeu ao âmbito de aplicação do § 254 BGB também pertence a este contexto.
As cláusulas gerais e conceitos que carecem de ser preenchidos estão a avançar
em todo o lado; [e] não se vislumbra um fim para este desenvolvimento.

2 Die Flucht in die Generalklauseln, eine Gefahr für Recht und Staat, 1933.

RDC I (2023), 1, 167-190


176 Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik

No entanto, embora Hedemann ainda considerasse as cláusulas gerais como


uma intrusão na (restante) “estrutura firme” da ordem jurídica, elas perderam
o seu carácter excecional na consciência atual dos juristas de Direito Civil. A
dogmática actual está convencida de que todos ou quase todos os termos da
nossa linguagem jurídica só podem ser compreendidos a partir do respetivo
significado-contextual [Bedeutungszusammenhang] e da finalidade e função da
norma jurídica em questão; por outras palavras, cada conceito necessariamente
requer interpretação e apenas atinge a sua definitividade final por via da interpre‑
tação. Também se habituou a distinguir entre a “área central” e a “área peri‑
férica” de um conceito, sendo que para fenómenos que indubitavelmente se
situam na área central, uma simples subsunção pode ser suficiente, enquanto no
caso dos fenómenos que pertencem à área periférica, deve ser casuisticamente
ponderado se a sua atribuição ao escopo do conceito ainda corresponde ao sig‑
nificado e à finalidade da norma ou não. Embora “interpretação” e “aplicação”
da norma ao caso individual possam ser distinguidas conceptualmente, elas estão
de facto interligadas, o que significa que a simples aplicação da norma aos factos
em questão requer mais ou menos ponderação, comparação e avaliação. A sub‑
sunção para um conteúdo conceptual fixo raramente é suficiente. Se for este o
caso, então a chamada cláusula geral só difere das normas supostamente fixas em
grau e não em essência. Também no caso das cláusulas gerais temos uma área
central, i. e., um conjunto de casos cuja avaliação de acordo com a norma pre‑
tendida é certa desde o início, e no entanto uma área periférica muito maior,
que só gradualmente é trabalhada pela jurisprudência e doutrina e, portanto,
gradualmente incluída na área central. A diferença permanece, evidentemente,
que o conceito que precisa de ser preenchido escapa sempre a uma definição
real e, portanto, a simples subsunção não é suficiente, mesmo na área central.
No entanto, mesmo que não possa ser resumido numa definição conclusiva, o
conceito que carece de preenchimento não é desprovido de conteúdo. O seu
conteúdo, como o de qualquer conceito jurídico, é determinado por via da
interpretação. No entanto, uma vez que a interpretação deve ser aqui orientada
principalmente pela avaliação dos casos que são livres de dúvida e daqueles que
já foram decididos, toda a decisão num caso, não diferente da área marginal
de conceitos firmemente determinados, tem por sua vez um re-efeito sobre a
interpretação futura, ou seja, ela “concretiza” o conceito. Wieacker1 observou,
portanto, com toda a razão, que a aplicação da cláusula geral, “i. e., cada decisão
de acordo com o § 242 BGB”, por si “contribui para a lei emergente e futura”,
“como uma alfinetada no tecido”. Isto significa, contudo, que a cláusula geral,

1 Zur rechtstheoretischen Präzisierung des § 242 BGB, 1956, p. 15.

RDC I (2023), 1, 167-190


Tendências de desenvolvimento da atual dogmática do Direito civil   177

na sua “aplicação” pelos tribunais, se torna mais específica de caso para caso, em
que a decisão individual, ou mais corretamente, uma série de decisões compa‑
ráveis, se torna uma fonte adicional de conhecimento para o conteúdo da norma no
decurso da interpretação. Isto, por sua vez, representa apenas a consequência
do facto de toda a interpretação jurídica “per se” ser, mesmo que para o próprio
intérprete não seja, desde logo o início de um desenvolvimento judicial do
Direito [Rechtsfortbildung].2
Assim, a jurisprudência atual ganhou um entendimento bem diferente do
funcionamento e do carácter das cláusulas gerais do de Hedemann. Não vemos
a cláusula geral simplesmente como uma autorização para o juiz decidir, no
sentido da doutrina do direito livre, de acordo com padrões puramente irra‑
cionais, como por exemplo valores pessoais ou o “sentido de justiça”. Dito
de outra forma: a tarefa da ciência, a possibilidade da utilização de métodos
racionais na aplicação do Direito, não termina onde começa o domínio das
cláusulas gerais. Quanto mais a jurisprudência avançou no desenvolvimento
do significado das cláusulas gerais através de decisões exemplares, mais se torna
proeminente o momento racional de comparar, distinguir, ponderar e reco‑
nhecer o que é comum, mesmo que a decisão final do caso individual, que
conclui a avaliação da ponderação, ainda retenha um momento irracional. A
margem de manobra restante é cada vez mais limitada por uma abordagem
metodicamente consciente – mesmo que este processo nunca chegue ao fim
em resultado da diferenciação infinita dos fenómenos da vida. No fundo, Hede-
mann não conhecia outro conselho contra a expansão das cláusulas gerais a não
ser recomendar ao juiz “que assumisse como seu dever ser extremamente frugal
na sua utilização”3. Como perigo das cláusulas gerais ele viu: amolecimento do
pensamento, incerteza jurídica e arbitrariedade dos juízes. Procuramos ultra‑
passar estes perigos, que sem dúvida existem, não repelindo as cláusulas gerais,
o que hoje já não é possível, mas pelo seu progressivo preenchimento de sen‑
tido, determinação ou, para usar novamente a expressão, cuja plenitude de
significado Engisch4 magistralmente analisou, pela sua concretização através da
jurisprudência e da ciência. Deste modo, o caminho da jurisprudência é o da
paulatina progressão de caso para caso, através do qual os pontos individuais de
um sistema de coordenadas são, por assim dizer, primeiramente definidos; o
caminho da ciência é o de trabalhar, decompor e condensar intelectualmente
o material fornecido pela jurisprudência. Ao fazê-lo, trata-se principalmente

2
Sobre esta relação entre a interpretação e o desenvolvimento judicial do Direito, cf. o meu Metho-
denlehre der Rechtswissenschaft, 1960, p. 273 e seguintes.
3 Idem, p. 76

4 Die Idee der Konkretisierung in Recht und Rechtswissenschaft unserer Zeit, 1953.

RDC I (2023), 1, 167-190


178 Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik

de formar grupos de casos mediante uma análise casuística comparativa e de


descobrir as ideias e princípios orientadores de avaliação que a própria jurispru‑
dência utiliza ainda frequente e inconscientemente, ou para os quais se inclina.
É conhecido como desta forma, no mar aparentemente sem limites de decisões
baseadas na “boa fé”, grupos mais restritos e caracterizados de casos surgiram
gradualmente, dentro dos quais classificamos agora com relativa facilidade uma
grande massa de casos considerados “típicos”. Menciono as ideias centrais do
“venire contra factum proprium”, exercício abusivo de direitos, caducidade,
cessação da base do negócio, dever de lealdade nas relações laborais e sociais. A
fim de caracterizar o desempenho científico que a dogmática do Direito Civil
moderno alcançou ao trabalhar o disposto no § 242 BGB basta recordar a des‑
crição de Wolfgang Siebert no Soergels Kommentar.
Evidentemente, não se deve acreditar ser possível dissolver completamente
uma cláusula geral numa série de princípios individuais, cujo conteúdo seria
determinado de tal forma que o caso individual pudesse ser subsumido a esta
como a uma norma moldada na sua definitividade conceptual final. Pelo con‑
trário, também estes princípios mais específicos derivados da cláusula geral por
“concretização” ainda mantêm o carácter de uma cláusula geral (mais restrita)
e, além disso, a cláusula geral permanece por detrás como uma “norma de
cobertura” para casos que de outra forma não podem ser enquadrados. Na ter‑
minologia de Esser5: a cláusula geral mantém, para além de todas as “manifesta‑
ções judiciais”, algo do carácter do “princípio”. Resta, portanto, a necessidade
de uma ponderação avaliativa no caso individual, para a qual a dogmática só
pode fornecer padrões de comparação e pontos de julgamento cada vez mais
refinados. Dito de outra forma: não é possível uma racionalização completa
da aplicação do Direito; ela é, tal como hoje sabemos, se um ideal de todo,
então um ideal não realizável. Na teia constantemente envolvente do Direito
vivo em aplicação, precisamente porque é sempre uma questão de avaliações,
o impacto do pessoal, da individualidade humana do respetivo juiz, não pode
ser erradicado; e isso é talvez uma coisa boa no nosso tempo, que depende
demasiado da previsibilidade e do bom funcionamento das forças mecânicas.
Mas a dogmática tem de assegurar que o mero “impacto” permanece, que as
linhas condutoras [durchgehenden Linien] são cumpridas e se tornam mais claras,
que o desenvolvimento da lei no seu todo permanece previsível e que a exigência
de justiça para uma uniformidade das decisões é satisfeita até certo ponto, e cumpre
esta tarefa precisamente se captar a tipicidade dos casos e os pontos principais do
julgamento e – afirmando sem medo! – sistematizar.

5 Grundsatz und Norm in der richterlichen Fortbildung des Privatrechts, 1956.

RDC I (2023), 1, 167-190


Tendências de desenvolvimento da atual dogmática do Direito civil   179

II.

Além das cláusulas gerais, são as novas formações de tráfego jurídico, da


“jurisprudência cautelar”, que representam um novo desafio à dogmática
jurídica. Menciono apenas o problema fundamental das “condições gerais do
negócio jurídico”, depois a alienação fiduciária em garantia, a cessão em garan‑
tia, especialmente na sua forma mais abrangente como uma “cessão global”,
a reserva de propriedade simples, “alargada” e agravada por várias cláusulas, e
o direito de expectativa do comprador sob condição. Todas estas figuras não
se enquadram facilmente no sistema jurídico tradicional. As “condições gerais
do negócio jurídico” são criações da “autonomia privada” e, no entanto, são
capazes de a pôr em perigo, de inverter o seu significado. A propriedade fidu‑
ciária não se enquadra facilmente no nosso sistema de Direitos reais, tal como a
autorização de débito direto não se enquadra facilmente no sistema de Direito
das obrigações. No entanto, ambas se impuseram na jurisprudência apesar das
reservas dogmáticas e jurídico-políticas. A “alargada reserva de propriedade”,
a “cessão global” e o financiamento da compra a prestações levantaram novos
problemas para os quais não é possível encontrar uma solução apenas na lei. O
direito de expectativa do comprador condicional dificilmente pode ser conci‑
liado com a tradicional divisão estrita do Direito das obrigações e dos Direi‑
tos reais, como mostra a recente publicação de Raiser6. O mesmo se aplica, a
propósito, aos direitos obrigatórios de posse e outras “reificações” de posições
legais ao abrigo do Direito das obrigações, que G. Dulckeit tratou7. Mas de volta
às novas formações de tráfego jurídico. Desde a entrada em vigor do BGB, as
transações de pagamento desmaterializado de longe eclipsaram as transações em
numerário. Deveria isto ficar sem relevância para o conceito legal de dinheiro8?
O transporte massificado e esquematizado em meios de transporte em massa,
em que a compra prévia de um bilhete é omitida, torna necessário, também no
interesse do passageiro, que a relação de transporte comece com o embarque,
independentemente de nesse momento ser possível provar ou não uma vontade
jurídica negocial por parte do passageiro. Na minha opinião, qualquer pessoa
que queira cobrir estes processos com o conceito convencional de negócio
jurídico corre o risco de o expandir a tal ponto que este perde a sua verdadeira
substância; por conseguinte, justifica-se pelo menos a questão de saber se não
deveria ser reconhecido aqui um novo conceito – como o de comportamento

6
Dingliche Anwartschaften, 1961
7
Die Verdinglichung obligatorischer Rechte, 1951.
8 Cf., sobre isto recentemente Simitis, AcP, vol. 159, 406, tal como a 5.ª ed. do meu Lehrbuch des

Schuldrechts, 1962, Vol. I, p. 132, 134.

RDC I (2023), 1, 167-190


180 Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik

socialmente típico enquanto fonte da obrigação –, o que seria diferente do


conceito de negócio jurídico, mas ainda próximo dele e ainda na área da “auto‑
nomia privada”, a qual deve ser entendida de forma ampla9.
Não se pode dizer que a dogmática tenha descurado estes problemas; todos
eles têm sido discutidos de certo modo repetidamente, durante várias décadas.
Se soluções uniformes ainda não prevaleceram em todo o lado, isto deve-se
em parte à abundância de aspetos contraditórios que devem ser considerados.
Acima de tudo, porém, assim o é porque os métodos de interpretação jurídica,
mesmo a “teleológica” e avaliativa, já não são suficientes. Afinal de contas,
todos estes fenómenos desenvolveram-se fora da lei e em parte mesmo con‑
tra a sua intenção e a sua imanente teleologia. Se nos perguntarmos como se
orienta atualmente a dogmática nestes casos, que métodos desenvolveu, surge o
seguinte: no início, existe normalmente uma descrição simples dos fenómenos,
ou seja, dos fenómenos do tráfego jurídicos e das decisões que lidam com eles.
Segue-se uma análise das causas sociológicas e dos interesses sociais e económi‑
cos envolvidos. A este respeito, estamos atualmente a seguir a doutrina metodo‑
lógica da jurisprudência dos interesses. Então, o Direito comparado usualmente
fornece uma visão das possíveis soluções concretizadas noutros ordenamentos.
Finalmente – e aqui é o ponto onde a “jurisprudência dos interesses” já não
nos ajuda mais – trata-se de classificar as soluções reconhecidas como desejáveis
no sistema jurídico e na sua estrutura conceptual. Contudo, se não se quiser
sacrificar novamente parte dos conhecimentos adquiridos referentes à rigidez
do sistema e à natureza indiferenciada dos conceitos convencionais, então a
única maneira é expandir o próprio sistema, diferenciar os conceitos, relativizar
os opostos conceptuais a fim de se chegar a uma nova síntese. O trabalho mais
recente de Raiser (sobre expectativas reais) fornece um exemplo de tal análise
conceptual com a sua tentativa, embora certamente bastante problemática, de
“dividir” os poderes de propriedade. A tentativa de v. Caemmerer de reestru‑
turar a sistemática da lei dos actos ilícitos também deve ser aqui mencionada10.
Parece-me que particularmente significativa para esta última tentativa é: o sis‑
tema atualmente em vigor já não é lido apenas a partir da lei, mas além disso a
partir dos pontos de vista segundo os quais a jurisprudência de facto se orienta.

9 Sobre isto veja-se o meu Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. I, 5.ª ed., 1962, p. 33 e ss.; Raiser, Vertragsfunk-
tion und Vertragsfreiheit, Estudos comemorativos para a Conferência de Juristas Alemães, 1960, Vol. I,
p. 101, especialmente p. 123 e ss.; recentemente, Wieacker, Willenserklärung und sozialtypisches Verhalten,
Estudos comemorativos para o Tribunal Superior regional de Celle, Gottingen, 1961, p. 263 e ss.
Wandlungen des Deliktsrechts, Estudos comemorativos para a Conferência de Juristas Alemães, 1960,
Vol. II, p. 49 e ss.
10 Grundsatz und Norm in der richterlichen Fortbildung des Privatrechts, 1956.

RDC I (2023), 1, 167-190


Tendências de desenvolvimento da atual dogmática do Direito civil   181

No mesmo sentido orientam-se os trabalhos de Esser sobre responsabilidade


pelo risco, sobre dever de garantia em geral; as obras de Wilburg11 e v. Caemme-
rer12 sobre enriquecimento sem causa, e de Heinrich Stoll e Ernst Wolf13 sobre as
consequências da rescisão. O que todos têm em comum é que não renunciam
à classificação sistemática; pelo contrário, dedicam-lhe uma grande parte dos
seus esforços, mas ao fazê-lo não tomam o sistema conceptual tradicional como
uma base inalterável, mas esforçam-se por expandir o seu enquadramento e
introduzir novas distinções exigidas pela matéria.
Eu gostaria de ilustrar este tipo de conceptualização em maior detalhe, uti‑
lizando um exemplo que considero particularmente adequado para o esclare‑
cer. Refiro-me ao conceito estruturante de relação obrigacional [Schuldverhält-
nisses]. O BGB define-a, como é conhecido, como uma relação jurídica em
virtude da qual o credor tem o direito de exigir uma determinada prestação
ao devedor. De acordo com esta definição, correspondente à conceção mais
antiga, a relação obrigacional é idêntica ao direito individual de crédito, que
corresponde à obrigação por parte do devedor de realizar a respetiva prestação.
O direito de crédito e a obrigação do devedor são conceitos correspondentes;
o objeto de um e do outro é a prestação específica, que geralmente consiste
num resultado a ser alcançado pelo devedor. Podemos, portanto, caracterizar
a relação de dívida neste sentido mais restrito como uma relação prestacional
[Leistungsbeziehung] existente entre determinadas pessoas. É tratada, por exem‑
plo, no § 362 I BGB.
Pouco depois da entrada em vigor do BGB, a doutrina reconheceu que
tais relações prestacionais estão quase sempre inseridas numa relação jurídica de
tipo mais abrangente, para a qual o termo “relação obrigacional” é por sua vez
apropriado, mas agora entendido num sentido mais amplo. Em cada contrato
mútuo, por exemplo, temos pelo menos 2 créditos e, portanto, relações pres‑
tacionais que estão ligadas uma à outra pelo objetivo da troca e que dependem
em certa medida uma da outra. No entanto, além disso, quase todas as rela‑
ções obrigacionais, em especial as chamadas obrigações duradouras, tal como a
locação, a locação usufrutuária [Pacht] [*1], o mandato, o contrato de sociedade,
dão origem a numerosos deveres acessórios de conduta [*2] os quais estão mais
ou menos relacionados com o dever de prestar ou com o propósito da rela‑
ção obrigacional, mas os quais devem ser diferenciados da relação prestacional.
Estes deveres são em particular os de preparação, informação e de guarda, e

11
Die Lehre von der ungerechtfertigten Bereicherung, 1934.
12
Estudos comemorativos para Rabel, 1954, Vol. I, p. 333; Estudos comemorativos para Lewald,
1953, p. 443; Estudos comemorativos para Boehmer, 1954, p. 145.
13 Stoll, AcP, Vol. 131, 114; Wolf, AcP, Vol. 153, 97.

RDC I (2023), 1, 167-190


182 Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik

deveres de consideração mútua e do tratamento cuidado dos interesses confia‑


dos da outra parte. Por exemplo, o locatário tem o dever de usar o locado com
cuidado e de notificar o locador de qualquer dano não reparado; o locador tem
o dever não apenas de manter o locado mas também de realizar as reparações
necessárias de forma a que o locatário não seja prejudicado e que o seu direito
de uso não seja comprometido mais do que o inevitável. O vendedor de uma
máquina tem o dever de informar o comprador sobre a sua utilização adequada,
especialmente se existe um perigo para a integridade física ou para a vida; ele
tem de usar a diligência devida na embalagem e, caso haja assumido, no trans‑
porte. Alguns desses deveres acessórios de conduta podem ser expressamente
acordados; a maioria resulta do espírito do contrato ou do princípio da boa fé,
tal como concretizados pela jurisprudência. No caso de alguns, pode-se falar de
verdadeiros deveres acessórios de prestação, nomeadamente se o seu conteúdo
é tão definido e significativo que o seu cumprimento pode ser judicialmente
exigido em separado. Muitos são, contudo, circunstanciais; eles não estão cons‑
titutivamente determinados e não podem ser objeto de uma ação de cumpri‑
mento; ao invés, o seu significado reside no facto de que o seu incumprimento
culposo constitui o fundamento de uma pretensão indemnizatória e, portanto,
de um dever de prestar secundário. Também tais deveres secundários de prestar,
os quais substituem o dever primário de prestar ou existem em paralelo, bem
como os deveres de liquidação [Abwicklungspflichten] no caso de cessação das
obrigações duradouras ou em caso de resolução14 ainda se inserem no escopo da
relação obrigacional “num sentido mais lato”. Por conseguinte, não se trata de
uma relação de prestação única, mas de um complexo de deveres de prestação
e de outros deveres de conduta, bem como de créditos, direitos potestativos
[Gestaltungsrechten] [*3] e responsabilidades legais [rechtlichen Zuständigkeiten], ou
seja, uma relação jurídica na qual é característica a existência de um dever de
prestar ou de vários deveres de prestar, mas a qual está longe de se esgotar neles.
Não me importa neste momento definir em maior detalhe a noção de
relação obrigacional neste sentido mais lato. Heinrich Siber, quem primeiro a
distinguiu claramente da relação de prestação individual, falava da relação obri‑
gacional como um “organismo”. Contudo, só se pode tratar de uma forma
de expressão figurativa. Pois as relações legais pertencem a um patamar de
existência diferente do dos seres vivos, dos organismos, nomeadamente a um
patamar de validade objetiva. Outros falaram da relação obrigacional como
uma “relação constante de enquadramento”; Esser15 fala da relação obrigacional

14
Cf. o trabalhos mencionados na nota de rodapé anterior de Stoll e Wolf, bem como o meu Lehrbuch
des Schuldrechts, Vol. I, 5.ª ed., 1962, p. 279 e ss.
15 No seu [manual de] Direito das Obrigações, 2.ª ed., 1960, § 25.

RDC I (2023), 1, 167-190


Tendências de desenvolvimento da atual dogmática do Direito civil   183

como um “vínculo abrangente” [übergreifender Bindung], como um “laço social


finalisticamente-orientado” [zweckbedingten sozialen Band]. Tudo isto exprime
certos momentos estruturais que são, de facto, essenciais: a relação obrigacional
é o laço que mantém ligado os deveres individuais de prestação, de liquidação
e de conduta; ela tem uma certa constância, ou seja, uma duração e existência
temporal; ela é, no que diz respeito ao respetivo conteúdo, mutável e é fina‑
listicamente-orientada no que diz respeito ao conjunto das prestações devidas.
Ela é, como já expressei, uma estrutura, uma conexão objetiva propositada de
relações legais concretas16. Em contraste com a relação prestacional, com o

16 Cfr. o meu Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. I, 5.ª ed., p. 19 e ss. Recentemente Ernst Wolf, [em]
Estudos comemorativos para H. Herrfahrdt, 1961, p. 199 e ss., objetou à minha conceptualização da
seguinte forma: a doutrina em vigor assume com razão que as relações prestacionais individuais (i.
e., o direito de crédito e o dever de prestar) decorreriam da relação obrigacional na qual se baseiam,
ou seja, seriam os seus efeitos legais. Como tal, não podem ser parcialmente idênticas a esta, nem a sua
soma, nem a estrutura composta por estas. A relação obrigacional também não é um “mero para‑
digma”, mas uma “real relação humana”. A réplica a isto é: a relação obrigacional como uma “relação
humana real”, em contraste com o paradigma das relações jurídicas, seria a “relação da vida” [Lebens-
verhältnis], a qual se apresenta como a execução real da conduta exigida pela relação obrigacional
(como “relação jurídica”). Evidentemente, pode-se formar também uma conceptualização social da
relação obrigacional que implique a factualidade de certa conduta; este conceito (sociológico-legal)
não é o conceito legal (conceito dogmático) em causa na relação obrigacional. Contudo, no que
diz respeito à expressão frequentemente ouvida, de que a relação obrigacional é a “fonte”, a “ori‑
gem” do crédito e do dever individuais que desta “derivam”, isto é apenas uma figura de expressão
que não resiste a uma crítica teorética-legal. A ordem jurídica associa numa “proposição jurídica”
[Rechtssatz] factos genéricos não escritos a uma determinada consequência legal igualmente genérica.
O sentido desta conexão ou atribuição é o de uma ordenação de vigência [Geltungsanordnungen] (cf.
o meu Methodenlehre der Rechtswissenschaft, p. 149 e ss.). Na base desta ordenação de vigência contida
em cada proposição jurídica, a consequência jurídica é despoletada, sempre que a previsão é realizada
por uma situação factual concreta, como uma relação jurídica “concreta” decisiva para esta situação,
i. e., vigora. Assim, a consequência legal de previsões legais tais como a de conclusão de um contrato
obrigacional, a prática de uma acção ilícita [unerlaubte Handlung], a ausência de cobertura legal para
um enriquecimento, é a formação de deveres legais e portanto de uma relação obrigacional, e a de
previsões legais tais como de modificação contratual, insolvência subsequente, mora, resolução ou
conversão ligam-se à modificação ou a cessação de uma relação obrigacional previamente estabelecida
(ou de uma obrigação individual). Todas estas consequências legais ocorrem precisamente por causa
da atribuição por uma norma legal no momento da ocorrência de previsões legais relevantes como
“aplicáveis” entre estas pessoas (para si especialmente relevantes), sem ser necessário a inserção de uma
causa intermédia, tal como Wolf quer que se considere “a relação obrigacional” no sentido da “relação
original” ou “fonte” dos direitos e dos deveres. Contudo, o facto de uma relação obrigacional já
estar concluída é frequentemente um elemento entre outros da previsão legal para se fundamentarem
outras consequências legais, como o § 278, por exemplo, demonstra. Isto leva à aparência enganosa
de que “a” relação obrigacional automaticamente gera novas consequências legais “por si só” através
de um processo de desenvolvimento similar ao de um organismo natural. Mas esta aparência engana.
Relações legais concretas, as quais são tanto créditos individuais, deveres de prestação e de conduta,

RDC I (2023), 1, 167-190


184 Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik

crédito individual, é uma entidade de ordem mais alta, i. e., uma estrutura mais
complexa.
A minha única preocupação de momento é a de demonstrar o valor que
este conceito estrutural de relação obrigacional, o qual tem sido trabalhado
na dogmática recente, tem para o domínio intelectual dos fenómenos. Vou
restringir-me novamente a alguns pontos de vista. Primeiramente, o conceito
torna possível considerar a identidade da relação obrigacional como uma tal estru‑
tura em mutação, incluindo quanto às pessoas envolvidas. Enquanto a dogmá‑
tica anterior apenas conhecia a transferência do crédito individual, uma assun‑
ção do dever concreto de prestação, a dogmática moderna também conhece a
transferência de toda a relação obrigacional, seja através de um negócio jurídico, de
uma assunção contratual [Vertragsübernahme] [*4], seja através de um facto suces‑
sório legal. A assunção contratual é agora reconhecida como uma disposição
do crédito distinta do negócio dispositivo, correspondente a uma reconhecida
necessidade do tráfego. Ela desempenha um papel extraordinário no Direito do
trabalho. Não foi por coincidência que Siber foi um dos primeiros a detetar a
possibilidade de uma assunção contratual.
Em segundo lugar, o conceito estrutural de relação obrigacional possibilita
compreender a função da denúncia como um meio de cessação de uma relação
obrigacional duradoura. A denúncia não extingue o crédito individual que
haja entretanto surgido; ela apenas impede a formação de novos créditos –
com exceção dos deveres de liquidação – no quadro desta relação obrigacional,
colocando um fim à sua continuação. Também no caso do dito aviso de ven‑
cimento do mútuo, é de facto não apenas um caso de obtenção de vencimento
do crédito do mútuo, mas o da cessação da relação obrigacional mutuária como
uma relação obrigacional duradoura que visa a transferência temporária – one‑
rosa ou não onerosa – de capital17.

tal como a “relação obrigacional num sentido geral” entendida como um todo, as quais se formam
em virtude da sua inerente referência significativa, não pertencem ao mundo dos seres vivos e nem
ao dos fenómenos corpóreos, mas ao das relações de vigência legais [rechtlichen Geltungsbeziehungen],
que por sua vez constituem uma componente do mundo das circunstâncias objetivas-espirituais.
Comparações com o mundo do corpo, e aqui novamente com os seres vivos naturais, devem ser
enganosas, assim que se quiser ver mais do que uma descrição pictórica. Correta na comparação da
relação obrigacional com um “organismo” é uma vez que as consequências legais individuais, com
base nos factos da criação da relação obrigacional de acordo com uma norma legal, que ocorrem em
parte imediatamente, em parte e em conexão com outros factos em sucessão cronológica, continuam
e expiram, não permanecem ao lado uns dos outros sem se relacionarem, mas são internamente rela‑
cionadas uns com os outros pelo propósito de toda a relação obrigacional (ou da maioria dos seus
propósitos), representam um todo em termos de significado. Para além disto, a comparação falha.
17 Cf. o meu Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. II, 4.ª ed., 1960, p. 158 e ss.

RDC I (2023), 1, 167-190


Tendências de desenvolvimento da atual dogmática do Direito civil   185

Em terceiro lugar, o conceito apresentado possibilita compreender a relação


de liquidação emergente da resolução como a continuação da antiga relação obriga‑
cional com um novo propósito e, assim, permite compreender a continuação
dos deveres de conduta e dos deveres secundários de prestação já estabelecidos
(em particular o dever de indemnização). Isto foi tornado claro especialmente
por H. Stoll e E. Wolf.
Em quarto lugar, apenas o conceito amplo de relação obrigacional permite
distinguir os deveres de prestar de outros deveres de conduta, os quais Stoll, de
forma demasiado restrita, apelou de “deveres de proteção”. Eu recordo: o sig‑
nificado destes “outros deveres de conduta”, os quais não tornam constitutiva‑
mente uma ação de prestar possível, reside no facto da sua violação poder resul‑
tar num dever de indemnização e portanto num dever de prestar secundário. E
é que aqui que radica uma nova expansão do conceito de relação obrigacional.
A doutrina atual conhece relações obrigacionais que, pelo menos no início, se
esgotam na formação de deveres de conduta: eu descrevo-as como relações obri-
gacionais sem o dever primário de prestar18. Isto incluí, acima de tudo, a atualmente
reconhecida relação obrigacional, a qual se constitui com o começo das nego‑
ciações contratuais ou também com um contacto negocial. Ela estabelece, tal
como por sua vez particularmente H. Stoll demonstrou, atuais “deveres de protec-
ção” entre as partes contratantes independentemente da subsequente conclusão
do contrato, nomeadamente deveres acrescidos de cuidado [Sorgfaltspflichten],
de guarda [Obhutspflichten], de informação [Aufklärungspflichten] e deveres de
notificação [Mitteilungspflichten], mas ainda nenhum dever primário de prestar.
Finalmente, a doutrina e a jurisprudência atuais reconhecem os contratos
com eficácia de protecção a favor de terceiros19. Estes não fundamentam para determi‑
nados terceiros, não sendo partes contratuais, mas estando incluídos no escopo
do contrato devido à sua relação com o credor e à sua “proximidade com a
prestação”20, qualquer crédito à prestação contratual (tal como os verdadeiros
contratos concedentes de direitos a favor de um terceiro), mas estabelecem cer‑
tos deveres de proteção ou de diligência a seu favor. Com o reconhecimento
de tais efeitos de protecção a favor de terceiros, a ficção de um verdadeiro
contrato, gerador de um direito de crédito a favor de um terceiro, o qual pre‑
viamente serviu à jurisprudência, podia ser abandonada.
É claro que não se pode dizer que um dos fenómenos da nossa vida jurídica
aqui mencionados – a assunção contratual, a função da denúncia de uma rela‑

18
Cf., a propósito, o meu Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. I, 5.ª ed., 1962, p. 9 e 39.
19
Cf. o meu manual Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. I, 5.ª ed., 1962, p. 199 e ss.
20 Gernhuber utiliza esta expressão no seu tratado “Drittwirkungen des Schuldverhältnisses kraft Leistungs-

nähe”, Estudos comemorativos para Nikisch, 1958, p. 249

RDC I (2023), 1, 167-190


186 Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik

ção obrigacional duradoura, a manutenção das obrigações secundárias de pres‑


tação em caso de resolução, a responsabilidade pela dita culpa in contrahendo e os
deveres de proteção a favor de terceiros imanentes de um contrato – poderia ser
construtivamente derivado, no sentido da jurisprudência dos conceitos, do con‑
ceito estrutural da relação obrigacional, conhecido como “organismo” ou estru‑
tura. Ao invés, são formações que são exigidas e também legitimadas em parte
por uma exigência do tráfego, em parte pela natureza das coisas ou pelo poder
persuasivo interno de uma “ideia geral legal”. Mas enquanto era conhecido o
conceito restrito de relação obrigacional como relação prestacional, não se podia
classificá-la corretamente no nosso sistema de Direito das obrigações e portanto
dominá-la intelectualmente. Esforços foram feitos, em derivar a obrigação de
compensação com base na culpa in contrahendo perante um contrato concluído
posteriormente ou em ficcionar um contrato especial de manutenção; a assunção
de dívida foi decomposta numa soma de atribuições de crédito e de assunções de
dívida, mediante o qual o resultado desejado foi apenas parcialmente atingido.
Acima de tudo, não foi possível chegar a um conceito estrutural de deveres e aí se
radica a abundância dos deveres de conduta deduzidos do § 242 pela jurisprudên‑
cia, os quais apenas comportam uma obrigação secundária de prestar, o que causa
certa perplexidade. Apenas o reconhecimento da relação obrigacional como uma
estrutura sobrevivente à mudança de relações prestacionais, deveres de conduta e
outras consequências legais, possibilitou à dogmática fazer justiça aos fenómenos
mencionados e integrá-los perfeitamente no sistema do Direito das obrigações.

III.

Volto ao ponto inicial. A situação da atual ciência do Direito civil é caracterizada


pelo facto de que esta não lida apenas com a interpretação da lei, mas é confron‑
tada com um “Direito não escrito” formado maioritariamente pela jurisprudência,
o qual se fundamenta em parte nas cláusulas gerais, em parte nas necessidades do
tráfego jurídico e naquilo que Esser designa de preceitos ou princípios, i. e., tem
as suas raízes em ideias gerais legais. Contudo, enquanto a Lei, como uma criação
planeada, carrega um sistema e portanto uma unidade e ordem em si, esta nova
substância legal não tem uma sistemática própria e evade-se geralmente da simples
subsunção de acordo com os conceitos do sistema legal. No entanto, não é difusa.
A unidade englobante reside na capacidade de variação do conteúdo pretendido na cláu‑
sula geral, nas conexões factuais e na estrutura factual-lógica das relações legais. Reco‑
nhecer estes e torná-los claros na matéria é portanto uma das principais tarefas da
dogmática legal, a qual só desta forma é capaz de chegar aos conceitos relevantes.
O que ficou aqui demonstrado não é qualquer regresso à “jurisprudência
dos conceitos”. Também ultrapassa os objetivos e a abordagem metodológica da

RDC I (2023), 1, 167-190


Tendências de desenvolvimento da atual dogmática do Direito civil   187

antiga jurisprudência dos interesses. “Conceitos legais”, muito significativos para a


autocompreensão da atual dogmática do Direito civil, “são a precipitação de ideias
factuais e de distinções”, como afirmou Esser. Os conceitos, contra cuja predo‑
minância a jurisprudência dos interesses anteriormente lutou, eram na sua maio‑
ria não factuais, ou melhor: eram factuais mas em grande medida conceitos gerais
desprovidos de sentido, conceitos formais, que apenas conseguiram assegurar uma
unidade formal externa, da matéria jurídica. Como a jurisprudência dos interes‑
ses corretamente reconheceu, eles não geraram aquilo que deles era suposto ser
extraído. Onde o conceito, com o seu conteúdo fáctico, haja perdido o seu signi‑
ficado, aí o domínio do conceito assim mal compreendido na verdade representa
um perigo para o desenvolvimento do Direito ou, se isto apenas puder ser feito
através de construções artificiais, para a credibilidade da jurisprudência como uma
ciência. A dogmática afunda então muito facilmente para uma brincadeira lógica. A
“fuga” para a vastidão das cláusulas gerais, a grande preocupação de Hedemann, foi
também uma fuga à estreiteza do sistema fechado de conceitos formais e abstratos,
cuja inadequação, especialmente perante os fenómenos do nosso século, foi sentida
não só pela doutrina do direito livre. No entanto, a superação deste movimento de
fuga não se dá através da manifesta impossível renúncia ao uso de cláusulas gerais,
nem através do regresso ao domínio dos conceitos formais. Realiza-se hoje, por
um lado, através do preenchimento das cláusulas gerais com um significado con‑
creto e diferenciado baseado em casos típicos e, por outro lado, através da recupe‑
ração de conceitos factuais que contêm uma declaração real acerca de significados
e contextos factuais jurídicos, tendo assim não apenas um valor de ordenação, mas
também um de conhecimento. Ambos pressupõem um trabalho constante sobre
os problemas que a própria vida jurídica coloca constantemente à jurisprudência.

[Notas da tradução]
[*1] Também foi proposta a tradução para apenas arrendamento (cf. Jayme/Neuss, Wörterbuch
Recht und Wirtschaft, Vol. II, 2.ª ed., C.H.Beck, Munique, 2013, p. 359). A diferença face à
locação (Mietvertrag), pelo menos uma das fundamentais, é a possibilidade de o locatário nes‑
toutro contrato (Pacht) fazer seus os frutos (cf. § 99 BGB) gerados pelo locado, por oposição ao
primeiro; aliás, isto corresponde a uma das obrigações principais do locador, para além da de con‑
ceder o gozo do locado em si. A propósito, confronte-se o disposto nos §§ 535 e 581 (1) BGB;
na doutrina v. Wolf/Eckert/Günter, Handbuch des gewerblichen Miet-, Pacht- und Leasingrechts:
Höchst- und obergerichtliche Rechtsprechung, 11.ª ed., RWS: Colónia (2017), bem como, expressa‑
mente, o Autor deste texto, Karl Larenz, em Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. II, Parte 1, Beson‑
derer Teil, 13.ª ed., C.H.Beck: Munique (1986), I, § 49, pp. 278-279, quando afirma «Von der
Miete unterscheidet sich die Pacht demnach dadurch, daß der Pächter nicht nur zum Gebrauch,
sondern auch und vornehmlich zum Fruchtgenuß berechtigt ist» [«O arrendamento difere, por‑
tanto, da locação usufrutuária na medida em que o locatário-usufrutuário não tem só o direito de usar,
mas também e principalmente o de fruir»; itálico nosso, segundo a tradução proposta]; cf., nos
manuais de referência, sem propósito exaustivo, também Fikentscher/Heinemann, Schuldrecht,

RDC I (2023), 1, 167-190


188 Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik

Allgemeiner und Besonderer Teil, 11.ª ed., De Gruyter: Berlim/Boston (2017), § 78, I, pp.
644-645, Dirk Looschelders, Schuldrecht, Besonderer Teil, 16.ª ed., Vahlen: Munique (2021),
p. 231, Brox/Walker, Besonderes Schuldrecht, 46.ª ed., C.H.Beck: Munique (2022), § 14, p. 277,
e, por fim, Schäfer, Schuldrecht. Besonderer Teil. Nomos: Baden-Baden (2021), § 6, p. 137.
[*2] Traduzimos para deveres acessórios o vocábulo Nebenpflichten (deveres laterais, em sentido
literal), em linha com a proposta inicial de Menezes Cordeiro (em Violação positiva do contrato
– Anotação ao Acordão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31 de Janeiro de 1980, Separata da Revista
da Ordem dos Advogados: Lisboa, 1982, maxime p. 132, notas de rodapé 8 e 10, desenvolvendo
a ideia indiciada em Direito das Obrigações, I, AAFDL: Lisboa, 1980, pp. 304-05, cujo enquadra‑
mento dogmático seria posteriormente aprofundado em Da Boa Fé no Direito Civil, maxime pp.
586 e ss.; todavia, nos Estudos em Homenagem a Claus-Wilhelm Canaris, o ilustre Professor fez
menção a um conceito próximo, note-se, ao de Nebenleistungspflichten, em Die Dogmatisierung des
Systemdenkens durch Treu und Glauben, FS Canaris (70.º aniversário), C.H.Beck: Munique, 2007,
pp. 857-869 (860-861); recentemente, v. o ilustre Professor em Tratado de Direito Civil. Vol. VI.
Direito das Obrigações, 3.ª ed., Almedina: Coimbra, 2019, p. 516, e respetiva nota 1729), a qual
merece, hoje, a adesão generalizada da nossa doutrina; neste sentido e por todos, com indicação de
outras propostas, v., também recentemente, Rui Ataíde, Direito das Obrigações. Vol. I. Introdu‑
ção. Conceito e características. Modalidades. Fontes das Obrigações, Gestlegal: Coimbra (2022),
p. 41 (nota de rodapé 26).
[*3] À letra, direitos conformativos. Em Portugal, os Gestaltungsrechten correspondem aos direitos
potestativos, pese embora algumas hesitações iniciais quanto a esta equivalência. A favor desta cor‑
respondência, v. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica. Vol. I. Sujeitos e Objeto,
Coimbra (1983), pp. 12-13; recentemente, David Festas, Breves considerações sobre poderes potes-
tativos, Código Civil – Livro do Cinquentenário. Livro I, Almedina: Coimbra (2019), pp. 301-
367 (302, 304 e 325; notas de rodapé 11 e 79), com um brilhante aprofundamento da doutrina
além-Reno. Sobre o conceito de direito potestativo, v., ainda, no seu exponencial máximo para
a doutrina nacional, sem propósito exaustivo, João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito
Civil, Vol. I, AAFDL: Lisboa (1978), 363 e ss., José de Oliveira Ascensão, Direito Civil. Teo-
ria Geral, Vol. III – Relações e Situações Jurídicas, Coimbra Editora: Coimbra (2002), maxime
pp. 76-77, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. I, 4.ª ed., Almedina:
Coimbra (2012), p. 895 e ss., Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil (com António
Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto), 5.ª ed., Gestlegal: Coimbra (2020), pp. 178-184, Luís A.
Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II. Fontes Conteúdo e Garantia da
Relação Jurídica, 3.ª ed., Universidade Católica Editora: Lisboa (2001), p. 552 e ss. (e respetiva
nota de rodapé 2 na p. 552), Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II,
Almedina: Coimbra (2002), p. 151, Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª
ed., Gestlegal: Coimbra (2020), 137 e ss., e Heinrich Horster, Nótula referente a alguns aspectos
pontuais dos direitos potestativos: motivada pela L. n.º 24/89, Revista de direito e economia, ano
15 (1989), pp. 347-357. Todavia, criticando o valor desta situação jurídica, a qual poderia ser
reconduzida a uma categoria das faculdades jurídicas, v. Luís Cabral de Moncada, Lições de
Direito Civil. Parte Geral, Atlântida: Coimbra (1931-1932), p. 56.
[*4] À letra, assunção do contrato (v., idem, o conceito paralelo de Vertragsübertragung, cessão do
contrato). A figura corresponde, embora não inteiramente, à nossa cessão da posição contratual (art.
424.º e ss. do nosso Código Civil). Atribuída a Siber (Die schuldrechtliche Vertragsfreiheit, Jherings
Jahrbücher für die Dogmatik des bürgerlichen Rechts, Vol. 70, 1921), a Vertragsübernahme não se
encontra regulada na parte geral do direito das obrigações no código civil alemão, contrariamente
à cessão de créditos (§§ 398 e ss. BGB; de fonte negocial, cumpre notar a cessão legal § 412 BGB

RDC I (2023), 1, 167-190


Tendências de desenvolvimento da atual dogmática do Direito civil   189

e judicial §§ 828 e ss. ZPO) e à assunção de dívida (§§ 414 e ss. BGB). Isto, em si, corresponde
a um aspeto lacunar, alvo de várias críticas (neste sentido, Fikentscher/Heinemann, Schul-
drecht, Allgemeiner und Besonderer Teil, 11.ª ed., De Gruyter: Berlim/Boston (2017), § 61, IV,
p. 445). Uma das principais críticas a este entendimento é a que o mesmo pode conduzir o
intérprete à errada – e, hoje, indefensável – conclusão de que a assunção do contrato corresponde
e se satisfaz com a simples cumulação de uma cessão de créditos e a correspetiva assunção de
dívida, relativa à contraprestação (assim decidiu o BGH, em 10 de novembro de 1960, quanto à
possibilidade de assunção de um contrato de fornecimento eletricidade, conquanto se processava,
assim entendeu o douto tribunal, na ausência da previsão legal expressa da figura, «eine Verbin‑
dung von Abtretung und Schuld übernähme» [uma combinação entre uma cessão e assunção de
dívida]; NJW 1961, 453-455). Nesta linha de argumentação, desconsiderar-se-ia – e aqui reside a
sua maior falha – toda a complexidade da posição de parte contratual (Vertragspartner) in totum, além
do simples crédito e débito de natureza principal: pense-se nas prestações secundárias, acessórias,
bem como nas garantias prestadas, as quais acrescem ao singelo direito de crédito e de débito no
fenómeno transmissivo, totalmente desconsideradas por aquela posição. Aliás, foi precisamente
este entendimento (do legislador), presentemente criticado, o que justificou a omissão da sua
consagração expressa no código civil alemão (assim, Larenz, Lehrbuch des Schhuldrechts, Vol. I.
Allgemeiner Teil, 14.ª ed., C.H.Beck: Munique, 1987, III § 35, p. 617). Sem prejuízo de não se
encontrar expressamente prevista no código civil alemão, a figura permeia no direito civil, num
conjunto de manifestações típicas, inclusive no próprio código civil, as quais há muito justifica‑
ram a sua autonomização, nomeadamente a transmissão (1) da posição do senhorio no contrato
de arrendamento para o terceiro que haja adquirido o locado (§ 566 BGB) e (2) da posição de
empregador que haja adquirido um negócio, relativamente aos respetivos trabalhadores (§ 613a
BGB); sobre outras figuras, v. Schlechtriem/Schmidt-Kessel (Schuldrecht Allgemeiner Teil, 6.ª
ed., Mohr Siebeck: Tubinga, 2005, pp. 376). Insiste-se: tanto a fenomenologia legal, incontor‑
nável e não subsumível aos institutos existentes (os quais visam, como vimos, a singularidade
do crédito e do débito), como as novas exigências do tráfego jurídico, assumem-se a razão
fundamental que conduziu à autonomização dogmática da assunção do contrato no direito alemão.
Sem prejuízo, a figura não se confunde, nem poderia, note-se, com a Vertragsbeitritt, acessão no
contrato. Nesta, por seu turno, a nova parte fica vinculada juntamente com uma das anteriores.
A principal diferença entre as figuras é esta, portanto: na acessão no contrato os antigos contraentes
não são afastados, não há uma transferência do débito ou do crédito em singelo. Esta permanência
dos anteriores contraentes determina que a esta acessão pode consubstanciar, do lado passivo,
uma assunção de dívida solidária ou parciária, ou, do lado ativo, uma acessão no crédito também
de tipo solidária ou não; embora haja aqui a necessidade de reunir o consentimento de todas
as partes envolvidas (assim, Fikentscher/Heinemann, ibidem). Esta última figura (da acessão no
crédito) merecia, aliás, entre nós, um estudo aprofundado. Sobre o conceito inicial, da assunção do
contrato (Vertragsübernahme) no direito alemão, além dos AA. já mencionados, v., por todos, numa
explicação clara, as obras mais recentes de Brox/Walker, Allgemeines Schuldrecht, 45.ª ed.,
C.H.Beck: Munique (2021), pp. 445-446, Lange, Schuldrecht AT, 6.ª ed., C.H.Beck: Munique
(2021), pp. 66-67, e de Medicus/Lorenz, Schuldrecht I, Allgemeiner Teil, 22.ª ed., C.H.Beck:
Munique (2021), p. 358.

RDC I (2023), 1, 167-190


Política e Ética Editoriais
Critérios de Publicação
na
Revista de Direito Civil

1. A publicação de textos na Revista de Direito Civil (RDC) depende de


parecer prévio favorável da Comissão de Revisão, para verificação do cum‑
primento dos correspondentes critérios de publicação.
2. Os artigos a publicar na RDC devem:
(i) Cumprir os critérios de elevada qualidade científica, incluindo rigor,
clareza e fundamentação científica, fixados no Estatuto Editorial da
Revista;
(ii) Ser inéditos;
(iii) Cumprir o limite de 90.000 caracteres (cerca de 30 páginas), incluindo
espaços e notas de rodapé;
(iv) Incluir os nomes dos autores no corpo do texto em caracteres normais
e os referidos em notas de pé-de-página em versalete;
(v) Incluir os títulos de monografias, obras coletivas e revistas em itálico e
os de textos inseridos em revistas e em obras coletivas entre aspas, em
caracteres normais;
(vi) Incluir resumos em português e em inglês, com 500 caracteres cada.
3. Os textos a incluir na secção “Breves Comentários”, incluindo breves ano‑
tações de jurisprudência e recensões devem cumprir os critérios definidos
para os artigos, salvo quanto ao limite de caracteres, que é de 25.000, e à
extensão dos resumos, de 150 caracteres cada.
4. Os textos devem ser submetidos em versão final. Só há umas provas antes da
publicação, na qual se admitem correções de gralhas, mas não a introdução
de texto novo.

Você também pode gostar