Revista de Direito Civil: Ano VII (2023), 1
Revista de Direito Civil: Ano VII (2023), 1
Revista de Direito Civil: Ano VII (2023), 1
DE DIREITO CIVIL
Ano VII (2023), 1
REVISTA DE DIREITO CIVIL
Ano VII (2023), 1
Diretor: ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO
Comissão de redação
António Menezes Cordeiro
Miguel Teixeira de Sousa
Pedro Romano Martinez
Luís Menezes Leitão
Estatuto Editorial
http://www.cidp.pt/Archive/Docs/f977968173669.pdf
Consulta
https://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/revista-de-direito-civil/243/247/1/12
Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
DOUTRINA
RECENSÃO
1. Um vínculo complexo
*
Escrito destinado aos Estudos em Honra do Prof. Doutor António Pinto Monteiro.
1
Vide o nosso Tratado de Direito civil, VI – Direito das obrigações/Introdução; sistemas e Direito europeu;
dogmática geral, 3.ª ed., com a col. de A. Barreto Menezes Cordeiro (2019), 283 ss., com indicações.
2 Ou obrigação lato sensu, correspondendo a stricto sensu ao núcleo do dever de prestar; vide Gregor
Bachmann, no Münchener Kommentar zum BGB, 2 – Schuldrecht/Allgemeiner Teil I, 9.ª ed. (2022),
§ 241, Nr. 3‑4 (28).
9 Arndt/Teichmann, no Soergel BGB, 12.ª ed. (1990), prenot. § 241, Nr. 3 (2).
10 Rudolf Bruns, Das Schuldverhältnis als Organismus/Wegweisung und Missdeutung, FS Zepos 1973,
da extinção pelo cumprimento11. Felix Herholz explicitou essa ideia, nos finais
dos anos 20 do século passado, apresentando a relação obrigacional como uma
relação‑quadro constante, mau grado a mutabilidade do seu conteúdo12. Outras
afirmações sugestivas podem ser apontadas na literatura especializada13, sobres‑
saindo a visão dinâmica de Paul Oertmann14, a presença de uma realidade feno‑
menológica de Zepos15, a relação ampla como relação‑quadro, de Beuthien16, a
ideia de unidade complexa de Gernhuber17, ou a presença de uma estrutura, em
Larenz18. A relação obrigacional implicaria uma suma (Inbegriff) de elementos
diversificados.
11 Pense‑se na hipótese de ter sido estipulada uma cláusula penal, estruturalmente acessória; vide
António Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização (1990, 2.ª reimp., 2014), 798 pp., 86‑87.
12 Felix Herholz, Das Schuldverhältnis als konstante Rahmenbeziehung (Ein Rechtsgrund für negative
Interessenansprüche trotz Rücktritt und Wandlung), AcP 130 (1929), 257‑324 (260 e passim). Quanto a
Herholz e ao seu escrito (uma dissertação defendida em Königberg), Rudolf Bruns, Das Schuld-
verhältnis als Organismus cit., 78. A ideia da constância da obrigação, mau grado a mutabilidade do seu
conteúdo é, ainda, enfatizada por Karl Larenz, Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik,
JZ 1962, 105‑110 (108/I e II).
13 Vide Franz Dorn, Historische‑kritischer Kommentar zum BGB, II – Schuldrecht: Allgemeiner Teil / 1.
Teilband §§ 241‑304 (2007),§ 241, Nr. 71 (205‑207); Ernst Kramer, Münchener Kommentar zum
BGB, 2, 5.ª ed. (2003), intr., Nr. 13 (9) e Dirk Olzen, no Staudingers Kommentar zum BGB (2009),
§ 241, Nr. 39 (142).
14 Paul Oertmann, Bürgerliches Gesetzbuch/II – Das Recht der Schuldverhältnisse, 3.ª e 4.ª ed. (1910),
prenot. § 241, Nr. 3c, (2), referindo a relação obrigacional como uma “força viva”.
15 Panajiotis Zepos, Zu einer “gestalttheoretischen” Auffassung des Schuldverhältnisses cit., 488, 494 e
passim.
16
Volker Beuthien, Zweckerreichung und Zweckstörung im Schuldverhältnis (1969), XXIV + 331 pp., 7.
17 Joachim Gernhuber, Das Schuldverhältnis/Begründung und Änderung, Pflichten und Strukturen, Dritt-
conceito desenvolvido por Nicolai Hartmann, Der Aufbau der realen Welt, de que cita a edição de
1940. Vide Nicolai Hartmann, Der Aufbau der realen Welt, 3.ª ed. (1964), 241 e passim. Hartmann
explica que a estrutura interna (das innere Gefüge) não se separa das realidades, antes se determinando
mutuamente. Esse Autor utiliza a ideia de estruturas dinâmicas para explicar os corpos, as realidades
e as coisas – Nicolai Hartmann, Philosophie der Natur/Abriss der Speziellen Kategorienlehre, 2.ª ed.
(1980), 447, 449 e passim – numa ideia fecunda, quando transposta para as obrigações.
22 Jürgen Schmidt, no Staudingers Kommentar zum BGB, 13.ª ed. (1995), § 242, Nr. 902 (566). Nas
edições subsequentes, o tema deslocou‑se para o § 241 do BGB, mercê da reforma de 2001/2002; vide
Dirk Olsen, no Staudingers Kommentar, §§ 241‑243, Treu und Glauben (2019), § 241, Nr. 39 (151‑152).
23 Vide a habilitação (clássica) e já citada de Volker Beuthien, Zweckerreichung und Zweckstörung im
2. A ideia de “interesse”
28 Ulpiano, D. 19.1.1.pr = Okko Behrends e outros, Corpus iuris civilis, ed. bil. latim/alemão, III
(1999), 515.
29 Hugo Donellus, Opera omnia, Commentatorium de iure civile, IX (ed. 1832; o original é dos finais
30 Jeremy Bentham, An introduction to the Principles of Morals and Legislation (1789; utiliza‑se a ed. de
1823, reed. em 1908), 411 pp., onde o termo interest surge, de modo repetido: a propósito das pessoas
e a propósito da sociedade. Bentham não abordava o Direito enquanto tal, tendo dirigido múltiplas
críticas ao grande comentador, Sir William Blackstone (1723‑1780).
31 Em especial: Rudolf von Jhering, Der Zweck im Recht 1 (1877), XVI + 557 pp. e 2 (1883),
XXX + 716 pp.; com indicações, o nosso Tratado de Direito civil, I, 4.ª ed. (2019, reimp.), 437 ss..
32 Rudolf von Jhering, Geist des römischen Rechts auf den verschiedenen Stufen seiner Entwicklung III/1,
34 Tratado cit., I, 4.ª ed., 876 ss. e IV, 5.ª ed., 634 ss., respetivamente.
35 Ou iluminismo tardio, nas palavras de Franz Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, 2.ª ed.
(1967, reimp., 1996), 449. De todo o modo, Helmut Coing, Bentham’s importance in the development
of “Interessen jurisprudenz” and general jurisprudence, em The irish jurist 1 (1966), 336‑351 (336 ss.),
sonda a hipótese de uma influência de Bentham em Jhering, designadamente através da tradução
alemã de Friedrich Eduard Beneke (1798‑1854), Grundsätze der Civil‑ und Criminal‑Gesetzgebung,
(1) o interesse como uma representação de ordem geral, que visa expri‑
mir entidades de natureza económica, sem as identificar e pressupondo
uma atuação não‑aparente (subterrânea); por exemplo: os grandes inte‑
resses dominam o Mundo;
(2) o interesse como bordão de linguagem, que permite ao discurso jurí‑
dico arrimar‑se em algo de objetivo (isto é, alheio ao sujeito), mas sem
o designar; por exemplo: os interesses (e não os conceitos) são causais
das soluções, numa locução cara à jurisprudência dos interesses;
(3) o interesse em sentido preciso.
aus den Handschriften des englischen Rechtsgelehrten Jeremias Bentham, herausgegeben von Etienne Dumont/
Nach der zweiten, verbesserten und vermehrten Auflage für Deutschland bearbeitet und mit Anmerkungen 1
(1830), XXXII + 443 pp., no seu título completo; como se vê, trata‑se de uma edição criativa, diri‑
gida ao público alemão; compreende‑se, aí, na I secção, a rubrica Von den Principen der Moral und der
Gesetzgebung (27 ss.), com as ideias gerais da utilidade (27 ss.), sobre o escopo do Direito civil (239
ss.): corresponde a An introduction to the Principles of Morals and Legislation.
36 As obras básicas de Heck, a sua evolução e a literatura circundante podem ser confrontadas no
sociedades, I – Parte geral, col. A. Barreto Menezes Cordeiro, 5.ª ed. (2022), 776 ss..
38 Quanto aos dois primeiros, Fernando Pessoa Jorge, Direito das obrigações, 1 (1972), 92 ss..
39 Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo 1 (2008), 528‑529 e passim.
40
Vide uma enumeração no nosso Tratado cit., VI, 3.ª ed., 330‑335
41 O nosso Tratado de Direito civil, VIII – Direito das obrigações/Gestão de negócios, enriquecimento sem
43
Ernst A. Kramer, Münchener Kommentar zum BGB, 2, 5.ª ed. (2007), intr. Nr. 14 (9); nas edições
subsequentes, essa rubrica ficou a cargo de Wolfgang Ernst, com um texto diverso; na cit. 9.ª ed.,
vide Einl. SchuldR, Nr. 10 (5-6); Joachim Gernhuber, Das Schuldverhältnis/Begründung und Anderung/
/Pflichten und Strukturen/Drittwirkungen (1989), 9.
44 Já Karl Larenz, Entwicklungstendenzen der heutigen Zivilrechtsdogmatik, JZ 1962, 105‑110 (108/I);
vide Dirk Olzen, no Staudingers Kommentar (2005) cit., § 241, Nr. 44 (134), numa afirmação mati‑
zada (mas mantida) na ed. de 2009 cit., § 241, Nr. 45 (143): a presença do novo § 241/II deu um
apoio especial às imagens clássicas.
45 Com exemplos, Pessoa Jorge, Direito das obrigações cit., 1, 134 ss. e Antunes Varela, Das obriga-
ções em geral, 1, 10.ª ed. (2000), 121 ss., confundindo embora, este último, “deveres principais” com
“típicos” e mau grado evitar referir a matéria a propósito da estrutura da obrigação.
III. A ideia de obrigação como vínculo relativo a uma prestação deve ser
complementada: por razões intrínsecas, dispositivas ou linguísticas, a obrigação
reporta‑se a várias prestações. Mas porque não falar em várias obrigações?
Na verdade, a obrigação é um (pequeno) sistema que unifica, em torno de
um ponto de vista unitário, as diversas prestações que o sirvam. E isso não é
indiferente: torna‑se mesmo essencial, seja para permitir a comunicação, escla‑
recendo, com uma palavra, qual o sentido do conjunto, seja para fixar um
regime jurídico coerente.
Teremos, assim, uma prestação principal: aquela que, por razões intrínsecas,
dispositivas ou linguísticas funciona como ponto de vista unitário, em torno do
qual se irão ordenar as demais atuações. Estas serão as prestações secundárias.
II – Os deveres acessórios
tungsstörungsrechts des BGB mit den Vorschlägen der Schuldrechtskommission (2001), 424 pp.; Wolfgang
Schur, Leistung und Sorgfalt/zugleich ein Beitrag zur Lehre von der Pflicht im Bürgerlichen Recht (2001),
XX + 390 pp. (123 ss. e passim); Hans Christoph Grigoleit, Leistungspflichten und Schutzpflichten,
FS Canaris 1 (2007), 275‑306; Dieter Medicus, Zur Anwendbarkeit des allgemeinen Schuldrechts auf
Schutzpflichten, FS Canaris 1 (2007), 835‑855 (837 ss.); Dirk Olzen, no Staudingers Kommentar II,
§§ 241-243 (2009), § 241, Nr. 142 ss. (176 ss.); Peter Huber, Der Inhalt des Schuldverhältnisses, no
Staudinger/Eckpfeiler des Zivilrechts (2012/2013), 211-244, Nr. 2‑6 (212‑213) e passim; Ivo Bach, Der
Inhalt des Schuldverhältnisses, no Staudinger/Eckpfeiler des Zivilrechts, 7.ª ed. (2020), 307-350, F 1-F 7
(308-310); Krebs, no NomosKommentar, 2/1, 3.ª ed. (2016), § 241, Nr. 44 ss. (18 ss.); Hans Peter
Mansel, no Jauernig/ BGB, 17.ª ed. (2018), § 241, Nr. 9 ss. (208 ss.); Reiner Schulze, HandKommen-
tar, 10.ª ed. (2019), § 241, Nr. 4 ss. (279 ss.); Malte Kramme, no PWW/BGB, 15.ª ed. (2020), Nr.
17 ss. (346 ss.); Christian Grüneberg, no Grüneberg (ex‑Palandt), 82.ª ed. (2023), § 241 (266‑267).
49 A doutrina alemã, onde toda esta matéria foi desenvolvida, fala em Nebenpflichten (deveres late‑
rais), a não confundir com os Nebenleistungspflichten (deveres de prestar laterais: os “nossos” deveres
secundários). Aparecem, também, Schutzpflichten (deveres de proteção), Rücksichtspflichten (deveres
de consideração) e Sorgfaltflichten (deveres de cuidado).
50 Trata‑se, nas palavras de Peter Krebs, Sonderverbindung und ausserdeliktische Schutzpflichten (2000), 9,
de um dos principais novos conhecimentos de Direito das obrigações; na mesma linha, também a con‑
ferência de 20‑mai.‑1987, em Berlim, de Dieter Medicus, Probleme um das Schuldverhältnis (1987), 16.
51
Susanne Würthwein, Zur Schadensersatzpflicht cit., 180 ss. e 194 ss., com indicações.
52 Wolfgang Wiegang, Die Verhaltenspflichten cit., 563.
53 Friedrich Ludwig Keller, Pandekten/Vorlesungen, aus dem Nachlasse des Verfassers, 2.ª ed. (1866),
publ. por William Lewis, 1, § 249 (542‑545). A 1.ª ed., também póstuma, é de 1861.
54 Keller, Pandekten cit., 2.ª ed., 543.
55 Keller, Pandekten cit., 2.ª ed., 545; vide Susanne Würthwein, Zur Schadensersatzpflicht cit., 199‑200.
12‑jul.‑1894, RGZ 34 (1895), 1‑3 (2): acidente numa oficina. Podem ser confrontadas outras indi‑
cações em Susanne Würthwein, Zur Schadensersatzpflicht cit., 214 ss..
58
Muitas vezes era apontado, em seu lugar, Heinrich Stoll: nesse sentido, Larenz, Schuldrecht cit., I/1,
14.ª ed., 10‑11 e Kramer, no Münchener Kommentar cit., 2, 5.ª ed., Intr., Nr. 80 (37). Claus‑Wilhelm
Canaris, no seu decisivo Ansprüche wegen “positiver Vertragsverletzung” und “Schutzwirkung für Dritte”
bei nichtigen Verträge/Zugleich ein Beitrag zur Vereinheitlichung der Regeln über die Schutzpflichtverletzung,
JZ 1965, 475‑482 (476/I), limita‑se, na nota 7, a indicar Kress como precursor. Repondo a justiça
histórica: Dorn, no HKK/BGB cit. II/1 , § 241, Nr. 98 (235), bem como as indicações aí dadas em
pé‑de‑página. Quanto a esta questão: a anterioridade de Kress era conhecida nos meios da especiali‑
dade, sendo referida pelo próprio Stoll; vide o nosso Da boa fé no Direito civil (1984, 7.ª reimp., 2019),
598, nota 255 (esse texto data de 1983).
59 Hugo Kress, Lehrbuch des Allgemeinen Schuldrechts (1929), 654 pp..
63 Idem, 580‑581.
64 Heinrich Stoll, Abschied von der Lehre von der positiven Vertragsverletzung/Betrachtungen zum dreissig-
jähringen Bestand der Lehre, AcP 136 (1932), 257‑320 (262 e 314). Esta crítica já havia sido formulada
por Heinrich Lehmann (1906) em obra abaixo citada, nota 139.
/Zur Einordnung der Schutzpflichtverletzung in das Haftungssystem des Zivilrechts, JZ 1967, 649‑657 (653);
Ulrich Müller, Die Haftung des Stellvertreters bei culpa in contrahendo und positiver Forderungsverletzung,
NJW 1969, 2169‑2175 (2174); Walter Gerhardt, Die Haftungsfreizeichnung innerhalb des gesetzlichen
Schutzverhältnisses, JZ 1970, 535‑539 (535 ss.) e Der Haftungsmaßstab im gesetzlichen Schutzverhältnis
(Positiver Vertragsverletzung, culpa in contrahendo), JuS 1970, 597‑603 (598); Marina Frost, “Vorvertra-
gliche und “vertragliche” Schutzpflichten (1981), 212 e 241; Eduard Picker, Positive Forderungsverletzung
und culpa in contrahendo/Zur Problematik der Haftungen “zwischen” Vertrag und Delikt, AcP 183 (1983),
369‑520 (460 ss.) e Vertragliche und deliktische Schadenshaftung/Überlegungen zu einer Neustrukturierung
der Haftungssysteme, JZ 1987, 1041‑1058 (1047 ss.); Lothar A. Müller, Schutzpflichten im Bürgerlichen
Recht, JuS 1998, 894‑898 (896‑897).
70 Vide Dirk Olzen, no Staudinger cit., § 241, Nr. 386 (240); entre nós, Manuel Carneiro da
L + 326 pp., 220 ss. e 312 ss. e Vertragliche Schadensersatzpflichten ohne Vertrag?, JuS 1982, 637‑645 (645)..
73 Ernst von Caemmerer, Wandlungen des Deliktsrechts, FS 100. DJT (1960), 49‑136 (56‑58).
75 Dieter Medicus, Vertragliche und Deliktische Ersatzansprüche für Schäden aus Sachmängeln, FS Eduard
5. A experiência portuguesa
76 Quanto à evolução da matéria na nossa doutrina: Da boa fé, 608 ss., nota 288.
77 Adriano Vaz Serra, Impossibilidade superveniente e cumprimento imperfeito imputáveis ao devedor, BMJ
47 (1955), 5‑97 (65‑90 a 95‑97) e, genericamente, Objecto da obrigação/A prestação – suas espécies, con-
teúdo e requisitos, BMJ 74 (1958), 15‑283 (45‑77, 79‑80 e 262‑263).
78 Manuel de Andrade, Teoria geral das obrigações, 3.ª ed. (1958), 326‑327.
79
Fundamentalmente, Enneccerus/Lehmann, Recht der Schuldverhältnisse, 15.ª ed. (1958), na base de
edições anteriores, 234 ss. e Philipp Heck, Schuldrecht (1929), 118, que, neste ponto, não são repre‑
sentativos, nem traduzem os desenvolvimentos havidos desde Kress e de Stoll.
80 Vide o nosso Código Civil comentado, II – Das obrigações em geral (2021), 939.
Andrade, por Abílio Neto e Miguel J. A. Pupo Correia (1963‑64), 376‑380. Pereira Coelho veio
explicar que estava em causa um problema de alargamento da responsabilidade contratual. A essa luz,
impor‑se‑iam diversos deveres para as partes (os deveres acessórios). Distingue: o dever de custódia, o
dever de informação, o dever de prevenção ou de vigilância; e o dever de segurança. Afigura‑se que
o dever de prevenção já tem a ver com concretizações aquilianas. Quanto aos demais: a sua derivação
da boa‑fé, apontada por Pereira Coelho, veio antecipar o Código Civil de 1966.
82 Carlos Alberto da Mota Pinto, Cessão da posição contratual (1970), 335 ss. e, de modo mais
simplificado, Direito das obrigações (1973), 62‑74, retomado por Rui de Alarcão, Direito das obriga-
ções (1975), 54 ss. (61 ss.).
83
Carlos Mota Pinto, Cessão da posição contratual cit., 339.
84 Idem, 343 ss. e 354 ss., em importantes notas de rodapé.
85 Almeida Costa, Direito das obrigações cit., 12.ª ed., 77‑79, com indicações na nota 1. A 1.ª ed. é
de 1968.
86 Antunes Varela, Das obrigações em geral, 1, 10.ª ed., 125; a 1.ª ed. é de 1970.
87 A partir de Direito das obrigações 1, 149 ss. e passim (a 1.ª versão é de 1978).
88
Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo cit., 2, 1191 ss., com atenção à importante nota
3345 (deveres de proteção).
89 Nuno Manuel Pinto Oliveira, Os deveres acessórios 50 anos depois, RDC 2017, 239‑256.
90 STJ 12-jan.-2017 (Lopes do Rego), Proc. 40/13; RPt 7‑dez.‑2018 (Aristides Rodrigues de
94 RCb 28-mai.‑2019 (Barateiro Martins), Proc. 1442/18; RCb 23‑set.‑2021 (Fernando Bar‑
roso Cabanelas), Proc. 318/20; RCb 25‑jan.‑2022 (Arlindo Oliveira), Proc. 168/18; RPt
6. O regime
4‑mai.‑2022 (Fátima Andrade), Proc. 9938/20; RGm 11‑mai.‑2022 (Raquel Baptista Tava‑
res), Proc. 3/21.
95 Assim, como exemplos recentes: Dirk Olzen, no Staudingers Kommentar (2019), Nr. 434‑528
(266‑308); Malte Kramer, no PWW/BGB, 15.ª ed. (2020), § 241, Nr. 9‑20 (345‑347); Gregor
Bachmann, no Münchener Kommentar, 2, 9.ª ed. (2022), § 241, Nr. 55‑231 (40‑79); Christian Grü‑
neberg, no Grünebergs Kommentar (ex‑Palandt), 82.ª ed. (2023), § 241, Nr. 6‑8 (266‑267).
96 Dieter Medicus, Zur Anwendbarkeit des allgemeinen Schuldrechts auf Schutzpflichten, cit., 842 e
853‑855.
97 Já se defendeu uma “teoria da transformação”: de base legal, eles adquiririam base negocial com
o contrato … regressando à base legal caso houvesse anulação. Esta alquimia teria de ser sindicada à
luz do regime tendo, todavia, mais relevo teórico do que prático.
98 Mantém todo o interesse a pesquisa de Johannes Köndgen, Selbstbindung ohne Vertrag/Zur Haftung
aus geschäftsbezogenen Handeln (1981), 434 pp.; vide, aí, 97 ss. (teoria da vinculação quase‑contratual).
e da integração da lei (10.º). É óbvio que tudo isto opera articulada e conjunta‑
mente: todavia, a clivagem existe e traduz uma estruturação de raiz.
(1) o dever de prestar tem a configuração que resulte da sua fonte: para‑
digmaticamente um contrato; estamos em áreas disponíveis, pelo que
faz todo o sentido concretizar e aplicar a matéria, à luz dos cânones
negociais; todavia, a juridicidade e, daí, a eficácia dos negócios, advêm
do exterior, isto é, do Direito objetivo; ora este não é passivo: tem
valores que dão sentido ao seu sistema de reconhecimento de normas e
de situações; daí que resultem, além de limitações à autonomia privada,
complementações “legais” que se impõem a ambas as partes;
(2) os deveres acessórios, ainda quando reforcem e substancializem o dever
de prestar, dão corpo à dimensão axiológica heterónoma do Direito,
Pode haver deveres de prestar não‑contratuais; seguem, tendencialmente, o mesmo regime, filian‑
100
(1) Por força da relação obrigacional, o credor tem o direito de exigir, do devedor,
uma prestação. A prestação também pode consistir numa omissão.
(2) A relação obrigacional também pode, segundo o seu conteúdo, obrigar cada
parte ao respeito pelos direitos, pelos bens jurídicos e pelos interesses da outra
parte.
Em bom rigor, aquele salto deve ser dado. A obrigação pode tecer‑se em
torno do dever de prestar (o paradigma) ou em volta de um dever específico
de respeito e de cuidado. Foi até aí que chegaram os sábios autores da reforma
do BGB de 2001/2002. Esta matéria não é (apenas) lógica. Tem dimensões
histórico‑culturais sempre presentes e que não devem ser ignoradas.
8. Conduta ou resultado?
106
Quanto ao debate, remetemos para o nosso Tratado cit., VI, 3.ª ed., 598 ss..
107
René Demogue, Traité des obligations en général V (1925), n.º 1237 (536 ss.) e VI (1931), n.º 599
(644-645). Outra bibliografia pode ser consultada no presente Tratado VI, 2.ª ed., 477‑478.
108 Murad Ferid, Das Französische Zivilrecht 1 (1971), 408 ss..
9. A diligência requerida
109 Franz Wieacker, Leistungshandlung und Leistungserfolg im bürgerlichen Schuldrecht, FS Hans Carl
Nipperdey I (1965), 783‑813 (812 e passim).
110 Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts cit., 1, 14.ª ed., 18, I (235).
111
Reinhold Weber, BGB/RGRK, II, 12.ª ed. (1976), Vor § 362, Nr. 13 (8).
112 Por exemplo: Roland Dubischar, Alternativkommentar zum BGB, 2 – Allgemeines Schuldrecht
(1980), XXII + 582 pp., Vorm §§ 362 ff. (474 ss.); Dirk Olzen, no Staudingers Kommentar, §§
362-396 (2016), Einl zu §§ 362 ff., Nr. 2 (5); Rolf Stürner, em Jauernig, Kommentar zum BGB
cit., 17.ª ed. (2018), § 362, Nr. 1 (518), Rhona Fetzer, no Münchener Kommentar zum BGB, 3,
9.ª ed. (2022), § 362, Nr. 2 (1334); Christian Grüneberg, no Grünebergs Kommentar zum BGB,
82.ª ed. (ex Palandt) (2023), § 362, Nr. 2 (620).
113 BGH 6-fev.-1954, BGHZ 12 (1954), 267-270 (268), referindo, todavia, que o BGB, em certos
preceitos, se reporta às obrigações visando a conduta; assim, no caso do § 242, relativo à boa‑fé; BGH
7-out.‑1965, BGHZ 44 (1966), 178-183 (179-180); BGH 25‑mar.‑1983, BGHZ 87 (1983), 162‑166
(162), referindo jurisprudência anterior; BGH 17-fev.-1994, NJW 1994, 1403‑1405 (1404/I); BGH
17-jun.-1994, NJW 1994, 2947‑2950 (2948/I).
114
Com muito material, desde o Direito romano: Martin Josef Schermaier, no HKK/BGB, II
(2007), 1063‑1177; pelo prisma do Direito vigente: Stefan Grundmann, no Münchener Kommentar
zum BGB, 2, 9.ª ed. (2022), § 276, Nr. 53‑82 (944‑960). Entre nós: João António Pinto Mon‑
teiro, Esforços e sacrifícios exigíveis no cumprimento contratual (2015, polic.), 31 ss. e passim.
115 Martin Josef Schermaler, no HKK/BGB II/1 (2007), §§ 276‑277, Nr. 78 ss. (1134 ss.).
§ 5 (95 ss.).
III. Seguindo Pessoa Jorge, podemos separar três planos distintos de dili‑
gência117: (1) diligência psicológica; (2) diligência normativa; (3) diligência
objetiva.
A diligência psicológica corresponde à tensão da vontade e da inteligência
necessárias para a execução de uma tarefa ou, aqui, para a efetivação da pres‑
tação. A diligência psicológica é muito variável, de pessoa para pessoa ou, para
uma dada pessoa, de acordo com o momento e as circunstâncias em que tenha
de ser exercida. Uma mesma tarefa representará, conforme as condições, um
gosto ou um sacrifício.
A diligência normativa dá‑nos o grau de esforço requerido pelo Direito,
para a execução de uma conduta devida ou prestação. Este grau poderá, con‑
forme os casos, ser superior ou inferior à diligência psicológica individualmente
envolvida.
A diligência objetiva é, por fim, o grau de esforço necessário para se atingir
um certo fim, independentemente da concreta pessoa envolvida e do esforço
exigível, pelo Direito.
VI. Finalmente, cabe determinar a bitola exigível. Aqui temos várias hipó‑
teses. Desde logo, a diligência pode ser fixada em abstrato ou em concreto.
Assim:
A diligência de que o devedor é capaz não deve ser bitola: ele pode ter
feito, em determinada ocasião, um esforço extraordinário sem que isso lhe
possa, para o futuro, ser sempre exigido. A diligência média posta nos próprios
negócios também não é critério: o devedor pode ser descuidado quanto ao que
é seu e esforçado no restante, ou vice‑versa. O mesmo óbice opera perante a
diligência normal do devedor. Em suma: a verdadeira clivagem põe‑se entre a
diligência em abstrato e a diligência em concreto, tomada como a que o deve‑
dor põe, normalmente, nas suas atuações. A solução cabe ao Direito positivo.
119
Pessoa Jorge, Direito das obrigações cit., 1, 88‑89.
120Guilherme Moreira, Instituições do Direito civil, 1 (1907), 596 ss.; Guilherme Moreira ocupava‑se
da culpa na responsabilidade aquiliana e na contratual; convolamos a ideia para os deveres contratuais
II. O Código Civil, ao contrário do que, por vezes, sucedia com o Código
de Seabra, veio fixar uma bitola geral de diligência em abstrato. Com efeito,
o Código de Seabra, na tradição das Ordenações, continha, nalguns preceitos,
uma bitola de diligência in concreto. Assim:
III. Referir o bonus pater familias não é, todavia, por si, um critério. Sem
mais precisões, ameaça tornar‑se numa fórmula vazia. No anteprojeto de BGB,
surgia um § 197 que fazia referência ao ordentlicher Hausvater (o bom pai de
e legais e para a diligência, o que parece não oferecer dúvidas. Também Paulo Cunha, Direito das
obrigações, II (1939), 256 ss., se orienta nesse sentido.
121 Lugares paralelos são os artigos 1124.º (pensador diligente) e 671.º, a) (proprietário diligente,
família)122. Essa remissão foi muito criticada, na época: era demasiado vaga.
Melhor seria encontrar uma fórmula que permitisse remeter para os diversos
grupos profissionais123. Otto von Gierke humoriza124, observando:
(…) [com] o cuidado de um ordenado pai de família, a atriz deve cumprir o seu
contrato de inclusão na companhia, a dançarina de ballet deve dançar, a cozinheira,
cozinhar e providenciar às compras do mercado.
Menger, que fez críticas sociais e ideológicas ao BGB, sublinha que o bom
pai de família é uma figura burguesa e egoísta, assim se atingindo a “estaca zero
da moralidade” (Nullpunkt der Sittlichkeit)125. Todavia, o “bom pai de famí‑
lia” é uma abstração, na qual é possível introduzir toda a ordem de precisões,
incluindo preocupações sociais. Assim, a concretização faz‑se inserindo o bom
pai de família na específica área de interesses e de competências técnicas em que
se coloque o devedor. Quem se dirija a um médico esperará encontrar a dili‑
gência do médico devidamente habilitado; no trânsito, os condutores usarão do
cuidado normal, dispondo dos conhecimentos habituais, em todos os cidadãos;
o banqueiro será um banqueiro competente, dispondo dos apetrechos que é de
esperar em tais circunstâncias e assim por diante126.
122 Horst Heinrich Jakobs/Werner Schubert (ed.), Die Beratung des Bürgerlichen Gesetzbuchs in
systematischer Zusammenstellung der unveröfftlichen Quellen/Recht der Schuldverhältnisse I, §§ 241‑432
(1978), 237. Dispunha o § 197 em causa:
Die in einem Schuldverhältnisse Stehenden haften sich gegenseitig nicht nur für absichtliche Verschul‑
dung, sondern selbst für geringe Fahrlässigkeit. Letztere verschulddet, wer nicht diejenige Sorgfalt ver‑
wendet, welche ein sorgsamer Hausvater anzuwenden pflegt.
123 Eduard Hölder, Zum allgemeinen Theile des Entwurfes eines bürgerlichen Gesetzbuches für das Deuts-
che Reich, AcP 73 (1888), 1‑160 (130‑134), com várias sugestões, Franz von Liszt, Die Grenzgebiete
zwischen Privatrecht und Stafrecht/Kriminalistische Bedenken gegen den Entwurf eines Bürgerlichen Gesetz-
buches für das Deutsche Reich (1889), 16‑17, explicando que o bonus pater familias romano nunca fora
recebido na Alemanha e Paul Laband, Zum zweiten Buch des Entwurfes eines bürgerlichen Gesetzbuches
für das Deutsche Reich. II. Abschnitt. Titel 1, Allgemeine Vorschriften, AcP 74 (1889), 1‑54 (3), citando,
aliás, Hölder.
124
Otto von Gierke, Der Entwurf eines bürgerlichen Gesetzbuches und das deutsche Recht, Schmollers
Jahrbuch 12 (1888), 57‑118 (81‑82; 82 o troço transcrito); este texto também surge citado em Scher‑
maier, HKK/BGB cit., §§ 276‑278, Nr. 78 (1136).
125 Anton Menger, Das bürgerliche Recht und die besitzlosen Volksklassen, 5.ª ed. (1927), 202‑204 (204);
há edições anteriores.
126 Manfred Löwisch, no Staudingers Kommentar zum BGB, II – Recht der Schuldverhältnisse,
§§ 255‑304 (Leistungstörungsrecht I) (2004), § 276, Nr. 30 (290); vide Stefan Grundmann, no Münche-
ner Kommentar cit., 2, 9.ª ed., § 276, Nr. 54‑55 (944‑945).
IV. O atual Direito, com particular consagração no Código Civil, não faz
distinção entre as prestações contratuais e as legais. Desde logo, como observa
Pessoa Jorge, por não ser hoje exato que, aquando da contratação, as partes se
conheçam, ao ponto de terem em conta as especiais qualidades uma da outra127.
De seguida, porque na atual dogmática, as prestações “contratuais” surgem em
feixes de deveres acessórios, de base legal. Ou não seria viável fazer destrinças,
no mesmo vínculo. Ficamo‑nos, por isso, pela bitola da diligência normativa,
dada pela figura tradicional do bonus pater familias, integrado na situação típica
onde o problema se ponha128.
VI. A quem cabe o ónus da prova de ter sido alcançado o grau de exigên‑
cia concretamente requerida? Quando o resultado almejado não seja obtido,
tal ónus corre pelo devedor, nos termos do artigo 799.º/1. Além desse pre‑
127 Pessoa Jorge, Direito das obrigações cit., 1, 90. Além disso, em muitas situações: pelo menos, não
parece adequado que se distinga, quanto à diligência, a pessoa que atue ao abrigo de um contrato,
dessa mesma pessoa quando o não faça; p. ex., tanta diligência se deverá exigir ao defensor oficioso
como ao advogado constituído, ou ao médico de serviço numa urgência, na qual compareça um
paciente, ou ao médico que haja celebrado um contrato de serviço médico, com esse mesmo paciente.
128 Vide Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos contratos (2011), 38 ss., com impor‑
66 (2006), 443‑488, Direito das sociedades, I – Parte geral, 5.ª ed. (2022), 763 ss. e Código das Sociedades
Comerciais anotado, 5.ª ed. (2022), anot. art. 64.º.
ceito, deve ter‑se presente que o devedor tem o domínio da situação (p. ex.,
o médico). Assim, só ele pode dar conta do que fez, perante o estado da arte.
IV – A dogmática do cumprimento
11. As teorias
Vamos ver.
II. As teorias do contrato têm várias versões. A primeira, dita teoria geral
do contrato, foi defendida, no século XX, por autores como Klein135, como
132 Sobre o tema, a obra de referência é a de Gesa Kim Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung/Eine
kritische Betrachtung der Erfüllungstheorien unter besonderer Berücksichtigung der Schuldrechtsmodernisierung
(Studien zum Privatrecht) (2013), XX + 421 pp..
133
Fritz Alexander, Die rechtliche Natur der Erfüllung (1902), 70 pp.; Ernst Ihrcke, Ist die Erfüllung
Rechtsgeschäft?/Nach gemeinem Recht und Bürgerlichem Gesetzbuch (1903), 69 pp.; Hermann Bauer,
Die rechtliche Natur der Erfüllung (1903), 91 pp.; Peter Klein, Die Natur der causa solvendi/ein Beitrag
zur Causa‑ und Kondiktionen‑Lehre (1903), VII + 67 pp.; Paul Kretschmar, Die Erfüllung (1906),
168 pp.; Gustav Boehmer, Der Erfüllungswille (1910), 98 pp.; Erich Fromm, Die Frage nach der Ver-
tragsnatur der Erfüllung (1912), VII + 36 pp..
134 Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts cit., 1, 14.ª ed., § 18, I (237); Dirk Olzen, no Staudingers
Kommentar cit., Vorbem zu §§ 362 ff., Nr. 9-12 (33-34); Joachim Wenzel, no Münchener Kommen-
tar zum BGB II, 7.ª ed. (2016), § 362, Nr. 6 ss. (2571 ss.), num desenvolvimento que já não figura
na 8.ª ed.; na edição seguinte, temos Rhona Fetzer, Münchener Kommentar zum BGB, 3, 9.ª ed.
(2022), § 362, Nr. 9-14 (1336-1339); Gesa Kim Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung cit., 6 ss.,
com muitas indicações.
135 Peter Klein, Die Natur der Causa solvendi (Ein Beitrag zur Causa- und Kondiktionen-Lehre) (1903),
45 ss.. A doutrina de Klein vem circunstanciadamente analisada em Gesa Kim Beckhaus, Die Recht-
snatur der Erfüllung cit., 6-9.
136
Andreas von Tuhr, Zur Lehre von der Anweisung, JhJb 48 (1904), 1-62 (5-6) e Allgemeiner Teil des
Deutschen Bürgerlichen Rechts, II/2 (1918), § 72 (83), referindo um acordo sobre a “causa”.
137 Friedrich Lent, Die Anweisung als Vollmacht und im Konkurse (1907), VI + 198 pp., 7 ss..
138 Bernhard Windscheid/Theodor Kipp, Lehrbuch des Pandektenrechts 2, 9.ª ed. (1906), § 342
(418‑419).
139 Heinrich Lehmann, Die Unterlassungspflicht im Bürgerlichen Recht (1906), 204 ss.; Ludwig Ennecce‑
rus/Heinrich Lehmann, Recht der Schuldverhältnisse/Ein Lehrbuch cit., 15.ª ed., § 60, II 2 e 3 (252-254).
140 Wolfgang Fikentscher, Schuldrecht, 9.ª ed. (1997), Nr. 269 (192). Outras indicações constam
/Ein Beitrag zur Lehre vom Rechtsgeschäft (1901), XIII + 404, 44-45, explicando a necessidade do
Erfolgsabsicht.
142 Leo Rosenberg, Der Verzug des Gläubigers, JhJb 43, 141-298 (211-212); para mais elementos:
Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung cit., 30 ss., com outras indicações.
146 Assim: Paul Oertmann, Kommentar zum BGB, 2 – Recht der Schuldverhältnisse, 3.ª/4.ª ed. (1910),
§ 362, Nr. 5 (257): não seria necessária uma vontade negocial; Philipp Heck, Grundriß des Schuldrechts
(1929, 2.ª reimp., 1974), 160 ss., 169 ss.; Rhona Fetzer, no Münchener Kommentar zum BGB, II,
9.ª ed. (2022), § 362, Nr. 10 (1336‑1337). Vide Rolf Stürner, no Jauernig, BGB/Kommentar, 17.ª
ed. (2018), § 362, Nr. 2 (609‑610).
147 BGH 3-dez.-1990, NJW 1991, 1294‑1297 (1295) e BGH 17-jul.-2007, NJW 2007, 3489‑3491
chung und Zweckstörung im Schuldverhältnis (1969), XXIV + 331 pp., 6 ss., 282 ss..
150 Ulrich Seibert, Erfüllung durch finale Leistungsbewirkung (1982), XXI + 147 pp., 40 ss. e passim
e 147 (conclusão).
151 Peter Bülow, Grundfragen der Erfüllung und ihrer Surrogate, JuS 1991, 529‑536 (531/I): a vontade
exteriorizada do devedor é necessária para se saber o que ele pretendeu e a que obrigação imputar
a sua atuação.
152 Karlheinz Muscheler/Wolfgang E. Bloch, Erfüllung und Erfüllungssurrogate, JuS 2000, 729‑740
(731‑732).
153 Hans Wieling, Empfängerhorizont: Auslegung der Zweckbestimmung und Eigentumserwerb, JZ 1977,
291‑296 (291).
154 Gesa Kim Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung cit., 51 ss., com indicações.
tificável enquanto tal, se não se tiver em conta o seu sentido final ou a sua
função.
155 Horst Ehmann, Die Funktion der Zweckvereinbarung bei der Erfüllung/Ein Beitrag zur causa solvendi,
JZ 1968, 549‑556 (553 ss.) e Ist die Erfüllung Realvertrag?, NJW 1969, 1833‑1837 (1836/II).
156 Werner Rother, Die Erfüllung durch abstraktes Rechtsgeschäft, AcP 169 (1969), 1‑33 (32‑33).
157
Hermann Weitnauer, Die Leistung, FS Ernst von Caemmerer (1978), 255‑293 (259), sublinhando
que esta orientação já surgia nos grandes romanistas do séc. XIX.
158 Gesa Kim Beckhaus, Die Rechtsnatur der Erfüllung cit., 23 ss., com indicações.
= NJW 1967, 1223 (1223/II) = WM 1967, 395‑397 (395/II) = DB 1967, 632‑633 = BB 1967,
432‑433.
161 Adriano Vaz Serra, Do cumprimento como modo de extinção das obrigações, BMJ 34 (1953), 5‑212
(10 ss.), com largas transcrições de Enneccerus/Lehmann e de Heck. Vide Carmelo Scuto, Sulla
natura giuridica del pagamento, RDComm XIII (1915) 1, 353‑373 (355 ss.).
162 Michele Giorgianni, Pagamento (diritto civile), NssDI XII (1965), 321‑339 (329); Rosario Nicolò,
L’adempimento, 3.ª ed. (1975), 556; Ludovico Barassi, La teoria generale delle obbligazioni, III (1964), 35.
163 Pense-se nas obrigações de non facere.
168 Walter Zeiss, Leistung, Zuwendungszweck und Erfüllung, JZ 1963, 7‑10; Horst Ehmann, Die Funk-
tion der Zweckvereinbarung bei der Erfüllung/Ein Beitrag zur causa solvendi, JZ 1968, 540‑556; Volker
Beuthien, Zweckerreichung und Zweckstörung im Schuldverhältnis cit., 281 ss.. Por isso, a realização da
prestação fora da perspetiva do cumprimento pode originar enriquecimento sem causa.
169Vide, além da literatura citada, Sascha Beck, Die Zuordnungsbestimmung im Rahmen der Leistung
(2008), 134 ss..
1. Enquadramento
* O presente estudo foi elaborado tendo em vista integrar o Livro de Homenagem ao Professor Antó‑
nio Pinto Monteiro, onde será publicado.
** O Autor beneficiou, largamente, de várias conversas, sobre a relação entre o Direito Civil e o
Direito da Proteção de Dados, com os Professores Maria de Lurdes Pereira, Maria Raquel Rei, Diogo
Pereira Duarte, Francisco Rodrigues Rocha e com os Drs. João Ferreira Pinto, Inês Oliveira e João
Gabriel. A todos agradecemos a disponibilidade e paciência. Agradecemos, ainda, à Professora Maria
Raquel Rei pelas várias sugestões e comentários efetuados a propósito de uma primeira versão do
estudo. As conclusões defendidas apenas responsabilizam, naturalmente, o seu Autor.
1 Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016,
relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à
livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Pro‑
teção de Dados).
2 Para uma análise sistematizada e transversal desta interação: Philipp Hacker, Datenprivatrecht: Neue
Technologien im Spannungsfeld von Datenschutzrecht und BGB, Mohr Siebeck: Tubinga (2020).
3 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito civil, I, 4.ª ed., Almedina: Coimbra (2014), 130‑131.
4
Roland Rixecker, Anhang zu § 12. Das Allgemeine Persönlichkeitsrecht (AllgPersönlR) em Münchener
Kommentar zum BGB, I, 9.ª ed., Beck: Munique (2021), Rn. 12
5 A. Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados: à luz do RGPD e da Lei n.º 58/2019,
schutz‑ und Vertragsrecht, Mohr Siebeck: Tubinga (2022), 18, nota 13.
7 Lei n.º 67/98, de 26 de outubro.
8
Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à
proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circu‑
lação desses dados.
9 Ansgar Ohly, Verändert das Internet unsere Vorstellung von Persönlichkeit und Persönlichkeitsrecht?, AfP
Informationelle Privatautonomie cit., 18‑19: considerando que, no espaço alemão, este desinteresse dog‑
mático é um reflexo da natureza de Direito público tradicionalmente atribuída ao Direito da proteção
conhece, entre nós11, qualquer decisão jurisprudencial em que ela tenha sido
analisada, apesar de serem vários os acórdãos onde isso se imporia.
A título exemplificativo, atente‑se ao acórdão RLx 8‑jul.‑202112. Aí, o
tribunal reconheceu que as imagens de vídeo constituíam dados pessoais; que
a sua subsequente divulgação consubstanciava um tratamento de dados pes‑
soais; e que os fundamentos invocados pelo responsável pelo tratamento não
eram subsumíveis a qualquer das causas de licitude do artigo 6.º do RGPD13.
Todavia, o tribunal aplicou o regime comum da responsabilidade civil e não o
regime positivado no artigo 82.º do RGPD, sem apontar qualquer razão.
de dados. Não conseguimos suportar este argumento, na medida em que, sendo correto, significaria
que a interação do ponto de vista constitucional fosse estudada, o que também não acontece.
11 No espaço alemão, o destaque vai para o seguinte acórdão do Tribunal Constitucional Federal
13
Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados cit., 165 ss.
14 História dos direitos de personalidade: António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito civil, IV, 5.ª
ed., com colaboração de A. Barreto Menezes Cordeiro, Almedina: Coimbra (2019), 45 ss; Diogo
Costa Gonçalves, Lições de direitos de personalidade: dogmática geral e tutela nuclear, Princípia: Cascais
(2022), 128 ss e Notas breves sobre as origens dos direitos de personalidade, II RDC (2017) 3, 655‑672;
Thomas Duve, Comentário aos §§ 1‑14 do BGB em HKK‑BGB, I, Mohr Siebeck: Tubinga (2003),
204 ss; Horst‑Peter Götting, Geschichte des Persönlichkeitsrecht em Götting/Schertz/Seitz Handbuch
Persönlichkeitsrecht: Presse‑ und Medienrecht, 2.ª ed. Beck: Munique (2019), 33 ss.
15 A expressão inerência é aqui empregue numa aceção ampla, de forma a designar a intrínseca liga‑
ção que existe entre cada direito subjetivo e um bem concreto, independentemente da sua natureza
real ou obrigacional.
II. Nos termos do disposto no artigo 4.º, 1) do RGPD, por dado pessoal
entende‑se toda “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou
identificável”17. Toda a informação é considerada relevante, para efeitos de
aplicação do RGPD. Não há, como o Tribunal Constitucional Federal ale‑
mão (Bundesverfassungsgericht – BVerfG) estabeleceu na década de 80 do século
passado, informação não merecedora de proteção jurídica, por muito insignifi‑
cante ou fútil que possa parecer18.
Com propósitos meramente exemplificativos, esta informação pode res‑
peitar (i) a elementos identificativos da pessoa – nome, data de nascimento,
número de cartão de cidadão ou morada; (ii) características físicas – sexo,
género, altura, peso, cor dos olhos ou do cabelo; (iii) considerações íntimas
– crenças, opiniões, desejos, posições políticas ou religiosas; (iv) profissionais
e académicas – títulos e graus ou estatutos profissionais e laborais; ou (v) patri‑
moniais: direitos de propriedade ou contratos celebrados. O conceito de infor‑
mação abrange tanto dados objetivos ou factuais – p. ex.: A vive em Lisboa;
como dados subjetivos – p. ex.: A não é um trabalhador honesto ou B é mau
pagador. A amplitude do conceito, historicamente criticada por alguma dou‑
trina, tem vindo a intensificar‑se em razão dos desenvolvimentos tecnológicos:
é hoje cada vez mais rara a informação que não se encontra online19. O RGPD
19 Bert‑Jaap Koops, The Trouble with European Data Protection Law, 4 IDPL (2014), 250‑261, 251
ss; Nadezhda Purtova, The Law of Everything. Broad Concept of Personal Data and Future of EU Data
Protection Law, 10 Law Innov Technol (2018), 40‑81.
III. Alguma doutrina alemã pretende distinguir os dois conceitos por refe‑
rência aos propósitos prosseguidos20: (i) o Direito da proteção de dados visa
limitar o tratamento de dados pessoais às situações legalmente permitidas; e (ii)
o regime dos direitos de personalidade visa regular, civilmente, violações de
direitos intrínsecos a cada pessoa, em todas as suas diferentes dimensões – física,
moral e social.
Do ponto de vista ontológico, o Direito da proteção de dados trabalha com
informações, procedendo, em grande medida, a uma coisificação dos sujeitos,
enquanto o Direito de personalidade, citando o artigo 70.º/1 do CC, “protege
os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua persona‑
lidade física ou moral”. E numa perspetiva constitucional, o direito à autode‑
terminação informacional, nos termos em que surge positivado no artigo 35.º
da CRP, está longe de cobrir os vários direitos de personalidade elencados nos
artigos 25.º e 26.º da CRP.
Todas estas distinções podem, genericamente, ser suportadas. Todavia, não
têm utilidade do ponto de vista prático‑aplicativo do Direito, na medida em
que não permitem afastar a sobreposição das matérias: a violação dos direitos de
personalidade especiais, independentemente da forma como essa se manifesta,
consubstancia, salvo nos casos da vida e da integridade física, concomitante‑
mente, tratamento de dados pessoais21.
20
Karl‑Nikolaus Peifer, Persönlichkeitsrechte im 21. Jahrhundert – Systematik und Herausforderungen, 68
JZ 18 (2013), 853‑864, e, mais recentemente, do mesmo Autor: Das Recht auf Vergessenwerden – ein
neuer Klassiker vom Karlsruher Schlossplatz Zugleich Besprechung von BVerfG „Recht auf Vergessen I und
II“, 122 GRUR 1 (2020), 34‑37, 36. É também essa a posição do Tribunal Constitucional Federal
alemão: BVerfG 6‑nov.‑2019, GRUR (2020), 74‑88
21 Rixecker, Anhang zu § 12. cit., Rn. 16: em idêntico sentido.
VI. Voltando à sobreposição dos dois Direitos, será de assumir, numa pers‑
petiva abstrata, ou seja, sem considerar as especificidades de cada regime, que o
RGPD regula todas as violações dos direitos de personalidade, com exceção do
direito à vida e do direito à integridade física – repare‑se que qualquer notícia,
fotografia ou imagem de vídeo relativa a eventuais violações do direito à vida
ou do direito à integridade física já é abrangida.
II. O acórdão, recebido com algum ceticismo por parte da doutrina local28,
para além de não analisar o RGPD – Direito vigente em território alemão –
desconsidera a jurisprudência constante do TJUE no sentido da aplicação deste
diploma à divulgação pública de dados pessoais com propósitos jornalísticos29.
Peifer, crítico do BVerfG, explora a possibilidade de a sua solução se sustentar
no artigo 85.º do RGPD. O preceito estabelece, genericamente, que os Esta‑
dos‑Membros devem conciliar o RGPD com as liberdades de expressão e de
imprensa. Todavia, como bem concluiu Peifer, não é possível daqui retirar
que, estando em causa estas liberdades, o RGPD não seja aplicável, nem, muito
23
Cit., 82.
24 Cit., 81.
25 Cit., 82.
26 Cit., 82.
28 Peifer, Das Recht auf Vergessenwerden cit., 36; Rixecker, Anhang zu § 12. cit., Rn. 16; Hacker,
Datenprivatrecht cit., 520 ss: acompanha o BVerfG na não sujeição do conceito alemão de direito à
autodeterminação informacional ao Direito da União, atendendo a que os titulares dos dados estão
sempre protegidos. Todavia, já não o faz a propósito dos regimes de responsabilidade civil; neste
ponto, esclarece, o artigo 82.º do RGPD é Direito especial, pelo que prevalece sempre sobre o BGB.
29 TJUE 24‑fev.‑2019, proc. C‑345/17 (Buivids); TJUE 16‑dez.‑2008, proc. C‑73/07 (Satamedia).
menos, que essa informação não seja subsumível ao conceito de dado pessoal30.
A aplicação do artigo 85.º do RGPD pressupõe sempre um exercício de pon‑
deração entre o direito à autodeterminação informacional e as liberdades de
expressão e de imprensa, em tudo semelhante ao que se verifica em relação à
colisão destas duas liberdades com o direito à integridade moral.
Nesse sentido, não cremos que seja possível sustentar que, partindo dos
mesmos factos – p. ex.: divulgação online de informação relativa à vida privada
de A – a solução preconizada, do ponto de vista da colisão com as liberdades de
expressão e de imprensa, seja distinta consoante se reconduza essa informação
ao direito à reserva sobre a intimidade da vida privada ou ao direito à autode‑
terminação informacional.
30
Peifer, Das Recht auf Vergessenwerden cit., 36.
31 Temos dúvidas que esta diferenciação pudesse ser aceite constitucionalmente.
II. O RGPD não fornece uma definição de titular dos dados. O seu preen‑
chimento é alcançado por intermédio do conceito de dados pessoais. Recu‑
pere‑se o disposto no artigo 4.º, 1) do RGPD: ““Dados pessoais”, informa‑
ção relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (“titular dos
dados”)”. Para efeitos do RGPD, apenas relevam os dados pessoais das pessoas
singulares, sendo que apenas estas são incluídas no conceito de titular dos dados,
indiretamente preenchido no artigo 4.º, 1) do RGPD32.
Ao contrário do que se verifica em relação aos dados pessoais das pessoas
falecidas33, o RGPD não contém qualquer cláusula de abertura ou aberta34
que permita aos Estados‑Membros estender o âmbito de aplicação material
do RGPD às pessoas coletivas. Trata‑se de uma opção legislativa e não de
uma característica intrínseca ou inata ao Direito da proteção de dados35. Por
contraste com o RGPD, a Diretiva 95/46/CE36 – diploma que o antecedeu –
continha uma cláusula de abertura com esse alcance37, tendo sido empregue por
alguns Estados‑Membros38.
O TJUE39, confrontado com a necessidade de interpretar o artigo 8.º/1 da
CDFUE – “Todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pes‑
soal que lhes digam respeito” – alcançou idêntico resultado, tendo afastado as
pessoas coletivas do seu âmbito de proteção40.
34
Sobre as cláusulas abertas ou de abertura: Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados
cit., 41.
35 Bart von der Sloot, Do Privacy and Data protection Rules Apply to Legal Persons and Should They?
A Proposal for a Two‑Third System, 31 CLSR (2015), 26‑45; Michael Knopp, Dürfen juristische Perso-
nen zum betrieblichen Datenschutzbeauftragten bestellt werden?, 39 DuD (2015), 98‑102.
36 Directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa
à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre cir‑
culação desses dados.
37 Considerando 24 da Directiva 95/46/CE.
38 P. ex.: Áustria.
40 Gregor Heissl, Können juristische Personen in ihrem Grundrecht auf Datenschutz verletzt sein?, EuR
(2017), 561‑571.
Ora, se o simples facto de utilizar uma rede social como o Facebook não torna
um utilizador do Facebook corresponsável por um tratamento de dados pessoais
efetuado por esta rede, importa, em contrapartida, sublinhar que o administrador
de uma página de fãs alojada no Facebook, com a criação de tal página, oferece à
Facebook a possibilidade de colocar cookies no computador ou em qualquer outro
aparelho da pessoa que tenha visitado a sua página de fãs, independentemente de
esta pessoa ter ou não conta no Facebook.
possa ser invocada para contestar esta posição, na medida em que se reporta
aos dados pessoais de utilizadores do Facebook que podem ser recolhidos na
decorrência da utilização da plataforma e não à disponibilização de dados pes‑
soais pelo próprio dono da página.
47
TJUE 5‑jun.‑2018, proc. C‑210/16 (Wirtschaftsakademie), 35.
48 Sobre o conceito de tratamento: Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados cit., 143 ss.
49 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito civil, II, 5.ª ed., com a colaboração de A. Barreto
Menezes Cordeiro, Almedina: Coimbra (2021), 83. Reimer, Anotação ao artigo 4.º, 2) do RGPD em
Sydow Europäische Datenschutzgrundverordnung Handkommentar, 2.ª ed., Nomos: Baden‑Baden (2018),
Rn. 47: considerando que o tratamento pressupõe sempre uma ação.
50 Kühling/Raab, Anotação ao 2.º do RGPD em Kühling/Buchner Datenschutz‑Grundverordnung,
53 O conceito de ficheiro foi especialmente analisado em TJUE 10‑jul.‑2018, proc. C‑25/17 (Tes-
temunhas de Jeová).
59 Considerando 15, p. 3: “Os ficheiros ou os conjuntos de ficheiros bem como as suas capas, que
não estejam estruturados de acordo com critérios específicos, não deverão ser abrangidos pelo âmbito
de aplicação do presente regulamento”.
6.
Tratamentos efetuados no exercício de atividades exclusivamente
pessoais ou domésticas
que procedeu à transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva (UE) 2016/680, de 27 de abril,
relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas
autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações
penais ou execução de sanções penais, e à livre circulação desses dados, e que revoga a Decisão‑Qua‑
dro 2008/977/JAI do Conselho.
64 Alguma doutrina mostra‑se critica desta exceção, em virtude da capacidade que as pessoas comuns
Was bleibt vom Europäischen Datenschutzrecht? – Überlegungen zum Ratsentwurf der DS‑GVO, 5 ZD
(2015), 455‑450, 456; Peter Gola/Niels Lepperhoff, Reichweite des Haushalts‑ und Familienprivilegs
bei der Datenverarbeitung, 6 ZD (2016), 9‑12.
65
Considerando 18, p. 1 do RGPD.
66 Barreto Menezes Cordeiro, Direito da proteção de dados cit., 89.
67 TJUE 11‑dez.‑2014, proc. C‑212/13 (Ryneš v Úřad), 31; TJUE 10‑jul.‑2018, proc. C‑25/17
no sentido de que tem apenas por objecto as actividades que se inserem no quadro da vida privada
ou familiar dos particulares”. Em idêntico sentido, TJUE 6‑nov.‑2003, proc. C‑101/01 (Lindqvist),
47 e TJUE 10‑jul.‑2018, proc. C‑25/17 (Testemunhas de Jeová), 42.
70 Ernst, Anotação ao artigo 2.º do RGPD em Paal/Pauly Datenschutz‑Grundverordnung – Bundesdatens-
72 Considerando 18 do RGPD.
73 Gola/Lepperhoff, Reichweite des Haushalts‑ und Familienprivilegs cit., 10.
74 TJUE 11‑dez.‑2014, proc. C‑212/13 (Ryneš v Úřad), Rn. 33: “Uma videovigilância como a que
está em causa no processo principal, na medida em que se estende, ainda que parcialmente, ao espaço
público e, por esse motivo, se dirige para fora da esfera privada da pessoa que procede ao tratamento de
dados por esse meio, não pode ser considerada uma atividade exclusivamente “pessoal ou doméstica””.
75
A divulgação a um número determinado e reduzido de pessoas conserva a aplicação da exceção:
Kühling/Raab, Anotação ao 2.º do RGPD em Kühling/Buchner cit., Rn. 24; Peter Schantz, Die
Datenschutz‑Grundverordnung – Beginn einer neuen Zeitrechnung im Datenschutzrecht, 69 NJW (2016),
1841‑1847, 1843.
76 TJUE 6‑nov.‑2003, proc. C‑101/01 (Lindqvist), 47: “Esta excepção deve, portanto, ser interpre‑
tada como tendo unicamente por objecto as actividades que se inserem no âmbito da vida privada
ou familiar dos particulares, o que não é manifestamente o caso do tratamento de dados de carácter
pessoal que consiste na sua publicação na Internet de maneira que esses dados são disponibilizados a
um número indeterminado de pessoas”; TJUE 16‑dez.‑2008, proc. C‑73/07, (Satameida), 44; TJUE
11‑dez.‑2014, proc. C‑212/13 (Ryneš v Úřad), 33; TJUE 10‑jul.‑2018, proc. C‑25/17 (Testemu-
nhas de Jeová), 42.
77 TJUE 11‑dez.‑2014, proc. C‑212/13 (Ryneš v Úřad), Rn. 33.
atribuídos aos titulares dos dados, sem paralelo no CC, moldam todo o regime
do consentimento.
8. Conclusões
efectiva, a mora do credor pressupõe que ainda não foi causada uma lesão
definitiva do crédito, antes se verificando que a sua satisfação foi retardada por
um facto atinente ao próprio titular2. Além disso, a culpa do lesado exige, no
mínimo, um acto evitável deste último, ao passo que, como veremos, a mora
do credor se basta com circunstâncias atinentes à sua esfera de risco.
A culpa do lesado tem, assim, um espaço próprio no âmbito da responsabi‑
lidade obrigacional, intervindo no momento em que o devedor, confrontado
com o pedido de indemnização dos danos causados ao credor com o incum‑
primento da prestação ou dos deveres acessórios, alega que um facto censurável
do próprio credor (lesado) também concorreu para a produção dos referidos
prejuízos ou, inclusive, determinou de modo exclusivo a sua verificação.
Será o caso, por exemplo, do consumidor que não se apercebe de que o
prazo de validade do produto adquirido já expirara, do locatário prejudicado
pelos vícios da coisa locada (artigo 1032.º) ser também responsável pelo agra‑
vamento dos seus danos em virtude de ter feito uma utilização imprudente do
locado, contrariando o dever imposto pelo artigo 1038.º, alínea d) ou ainda
do inquilino que deu uma queda quando descia de forma apressada as escadas
do prédio que estavam mal iluminadas. De igual modo, pode acontecer com
a pessoa que, fazendo‑se deslocar num transporte público, se apeia do veículo
em andamento, tornando‑se a única responsável pelas suas próprias lesões ou
do visitante do jardim zoológico ferido por um animal selvagem, ao introduzir
a mão numa fresta da jaula que não tinha sido detectada pelos guardas (artigo
571.º)3.
Comprovado que um facto culposo do credor contribuiu ou determinou
em exclusivo os danos, competirá ao Tribunal decidir se o ressarcimento deve
ser totalmente atribuído, reduzido ou suprimido, ponderando a gravidade rela‑
tiva das culpas de lesante e lesado e a respectiva eficácia causal.
2 Doravante, todas as normas legais citadas sem indicação de fonte, reportam‑se ao Código Civil
português em vigor.
3 Em RL Proc. N.º 1250/13 (Maria Teresa Albuquerque), 12‑10‑2017, tratou‑se uma hipótese
4
Segundo Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora,
Volume II, 4.ª edição, 1997, p. 84 (nota 1 ao artigo 813.º), “motivo justificado” tem que ser um
motivo legal, como, por exemplo, a oferta de apenas uma parte da prestação ou a oferta em local
diferente do convencionado. Para Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Coimbra,
Almedina, 2009, p. 1080, “motivo justificado” é um fundamento legítimo e Luís Menezes Leitão,
Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 13.ª edição, 2021, p. 244, também exemplifica as hipóteses
de falta de motivo justificado com casos de prestação não oferecida em termos legais.
5 Vaz Serra, A mora do credor, BMJ, número especial, Lisboa (1955), p. 413, fazia depender a solução
destas hipóteses de ser ou não usual que o credor aceitasse pagamentos nessas condições.
Actualmente, deve ter‑se presente o preceituado no artigo 63.º‑E, n.º 1 e 3 da Lei Geral Tributária:
“é proibido pagar ou receber em numerário em transacções de qualquer natureza que envolvam
montantes iguais ou superiores a 3.000 euros, ou o seu equivalente em moeda estrangeira”, sendo o
limite fixado em 10 mil euros quando “realizado por pessoas singulares não residentes em território
português e desde que não atuem na qualidade de empresários ou comerciantes”.
6 É um exemplo trabalhado por Maria de Lurdes Pereira, Anotação ao artigo 813.º do Código Civil, in
Novo Coronavirus e Crise Contratual, (Anotação ao Código Civil), Lisboa, AAFDL, 2020, p. 136.
7 Considerando que o credor em mora não viola uma obrigação, mas desrespeita um ónus, Inocêncio
Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 315. Segundo
António Menezes Cordeiro, A mora do credor, pp. 157 e seguintes, a mora do credor, em termos
de natureza jurídica, é um encargo, ou seja, uma conduta necessária para a produção de certo efeito.
8 Também António Menezes Cordeiro, A mora do credor, Código Civil – Livro do Cinquentená‑
rio, Volume I, Almedina, 2019, p. 150, considera pacífica a desnecessidade de culpa e ilicitude do
credor. Maria de Lurdes Pereira, Conceito de prestação e destino da contraprestação, Coimbra, Alme‑
dina, 2001, pp. 287 ss, defende igualmente um conceito alargado de mora do credor, de modo a
abranger as circunstâncias impeditivas do cumprimento que têm origem na esfera de riscos do credor.
9 Exemplo típico é dado pelo dever legal de utilização de cinto de segurança do condutor e passagei‑
ros transportados em veículos a motor (artigo 82.º, CE), que também beneficia o próprio vinculado,
enquanto elemento do tráfego em geral.
10 Importa, contudo, recordar que o obstáculo relativo à esfera do credor pode impedir o devedor de
oferecer a prestação, caso em que nem sequer existe mora do credor. De todo o modo, este tipo de
hipóteses ingressam no campo de aplicação da previsão estabelecida no artigo 841.º, n.º 1, alínea a),
podendo o devedor exonerar‑se por intermédio da consignação em depósito; caso se trate de uma
prestação de facto, o devedor pode recorrer, por analogia, à interpelação admonitória (artigo 808.º).
IV. Antes disso, importa ainda esclarecer que só há mora do credor enquanto
não se der a impossibilidade da prestação. Nem sempre, contudo, é fácil separar
os impedimentos ao cumprimento da prestação que geram impossibilidade,
daqueles que apenas implicam mora do credor.
Segundo a orientação clássica, deve, para esse efeito, distinguir‑se conforme
a prestação pudesse ser ou não cumprida caso contasse com a colaboração do
credor. Por exemplo, se um cirurgião é contratado para realizar uma operação
e o paciente falece antes, existe impossibilidade da prestação, mas se o doente
contrai uma infecção que obsta à cirurgia enquanto não for debelada, existe
mora do credor11.
A fronteira entre as duas situações torna‑se ainda patente em outras hipó‑
teses. Em primeiro lugar, quando, durante a mora do credor, a prestação se
impossibilite por razões acidentais; nesse caso, a mora do credor cessa, aplican‑
do‑se o artigo 815.º, n.º 2 adiante analisado, uma vez que, ao incorrer em mora,
o credor suporta o risco de se impossibilitar a prestação a cargo do devedor.
Em segundo lugar, pode suceder que a falta de colaboração do credor pro‑
voque a imediata impossibilidade definitiva da prestação, em virtude de esta
ser, por exemplo, de prazo absolutamente fixo (v. g., o fotógrafo contratado
pelos noivos não foi avisado da mudança do local do casamento). Em termos
técnicos, não se deve reconduzir tais hipóteses à mora do credor, dado que esta
pressupõe que a prestação ainda se possa realizar. Quando a falta de colaboração
do credor provoca a impossibilidade definitiva da prestação e não o seu mero
retardamento, a norma directamente aplicável é o artigo 795.º, n.º 2 quando se
trate de contratos bilaterais12.
Em termos práticos, a questão apresenta, porém, escassa relevância, dado
que ambos os preceitos (artigos 815.º, n.º 2 e 795.º, n.º 2) mantêm o cre‑
11 Sobre a distinção entre mora do credor e impossibilidade da prestação, Vaz Serra, A mora do cre-
dor, pp. 382 e ss, seguindo a linha de orientação defendida por Enneccerus/Lehmann, Luís Mene‑
zes Leitão, Direito das Obrigações, Volume II, pp. 244‑245 (nota 521), Maria De Lurdes Pereira,
Conceito de prestação e destino da contraprestação, pp. 141 e ss e 267 e ss.
12 Em sentido contrário, Baptista Machado, Risco contratual e mora do credor, Obra Dispersa, Volume
I, Scientia Juridica, Braga, 1991, pp. 334‑339 (nota 62), por considerar que o artigo 795.º, n.º 2 supõe
um acto da iniciativa do credor, ao passo que os artigos 813.º e seguintes supõem uma “omissão”
do credor. Não nos parece, porém, que haja fundamento legal para tal discriminação que restringe o
campo de aplicação do artigo 795.º, nº 2. A “causa imputável ao credor” de que se ocupa este pre‑
ceito tanto pode residir num comportamento activo como omissivo.
13 Baptista Machado, Risco contratual e mora do credor (maxime, pp. 315 e ss), com o apoio de Bran‑
dão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Porto, Universidade Católica
Editora, 3.ª edição, 2019, pp. 262 e 271. Também Nuno Pinto de Oliveira, Princípios de Direito
dos Contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 482 e ss, defende a aplicação analógica de alguns
artigos do regime legal à “mora justificada”. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume II, 7.ª
Edição, Coimbra, Almedina, 1997, p. 162, também admite que o conceito de “motivo justificado”
se preencha com um caso de força maior, como a doença grave e inesperada do credor.
14
Como acima se salientou, há falta de motivo justificado para recusar a prestação quando esta foi
oferecida em termos legais.
15 Como observa Baptista Machado, Risco contratual e mora do credor, p. 317, o preceito do artigo
816.º representa uma concretização do princípio geral de que todo o aumento do custo da prestação
que tenha origem numa contingência da esfera do credor há‑de ser suportada por este.
16 Baptista Machado, Risco contratual e mora do credor, pp. 317‑318 e 320, exemplifica a solução com
a hipótese de o retratando não posar por doença nas datas pré‑fixadas e depois o pintor se incapaci‑
tar ou o credor falecer. Em tal caso, o pintor só poderá exigir o ressarcimento nos termos do artigo
1227.º, não tendo o credor que pagar o preço acordado segundo o artigo 815.º, n.º 2, mas apenas
o trabalho já executado e as despesas realizadas para preparar o cumprimento da prestação (artigo
1227.º), aplicável por analogia. Também não se justifica a aplicação do artigo 795.º, n. º 2, dado que,
nestes casos, o facto impeditivo da prestação não é imputável ao credor, mas apenas relativo à sua pessoa.
Por último, importa ter presente que a mora do credor se extingue quando
este, ainda que tardiamente, presta a colaboração necessária ao cumprimento
(é a purgação da mora, encarada na óptica do credor), cabendo então ao devedor
realizar a prestação de imediato.
Outra causa de extinção da mora do credor consiste na consignação em
depósito efectuada pelo devedor (artigo 841.º, n.º 1, alínea b)), se o depósito
não for impugnado ou a impugnação for improcedente.
Caso se trate de uma prestação de facto, em que pela natureza das coisas
não é possível a consignação em depósito, o devedor, por analogia com o artigo
808.º e para evitar a sua vinculação por tempo indeterminado, pode requerer
ao tribunal que fixe um prazo para o credor colaborar no cumprimento, sob
pena de a obrigação se extinguir.
Finalmente, a mora do credor cessa quando, nos termos já analisados do
artigo 815.º, a prestação a cargo do devedor se impossibilitar.
* Licenciada e Mestre em Direito Privado pela Escola do Porto da Universidade Católica Portuguesa.
LL.M em International Business Law pela London School of Economics and Political Sciences. Dou‑
toranda na Faculdade de Direito da Universidade de Cambridge.
1 2022/0303(COD).
2 P. 1 da Proposta de Diretiva.
3
As principais obrigações recaem diretamente sobre o fornecedor (cf. considerando 27 do Regu‑
lamento). O fornecedor está obrigado, nos termos da remissão operada com base no artigo 16.º do
Regulamento IA, a implementar um sistema de gestão de risco (artigo 9.º), a adotar práticas adequa‑
das de governação e gestão de dados (artigo 10.º), a supervisionar adequadamente o sistema (artigo
14.º), a adotar mecanismos que alcancem um nível apropriado de exatidão, solidez e cibersegurança
dos sistemas (artigo 15.º do Regulamento IA), entre outros. O fornecedor é aquele que desenvolveu
um sistema de inteligência artificial ou tem um sistema desenvolvido, com vista à sua colocação em
serviço no mercado (cf. artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento IA). O devedor será, em regra, um mero
utilizador, a não ser que o sistema tenha sido colocado ao serviço diretamente sob o nome ou marca
do devedor (cf. artigo 28.º do Regulamento IA). Na última hipótese, o devedor-utilizador terá as
mesmas obrigações do fornecedor.
4 Cf. artigo 29.º do Regulamento IA.
ficial a dados de entrada sob o seu controlo que não são pertinentes tendo em
conta a sua finalidade.
Em suma. A Proposta de Diretiva não resolve adequadamente o problema
que tinha entre mãos, problema que era também o nosso: evitar que a respon‑
sabilidade dependa da identificação clara, por parte do credor, de uma falha que
se encontra na esfera de domínio do devedor. É verdade que estamos perante
uma mera proposta, que virá a ser sujeita a discussão nos próximos tempos,
relativa a relações extracontratuais (e não ao domínio contratual que nos ocupa)
e que tem por objeto sistemas de alto-risco, o que significa que nunca poderia
resolver por completo as nossas inquietações. Todavia, e uma vez que a Pro‑
posta de Diretiva faz referência a um Regulamento que estabelece obrigações
de diligência diretamente destinadas a evitar certos danos, teria sido simples
inverter simplesmente o ónus da prova da ilicitude, como se nos afigura mais
correto.
O objetivo do nosso texto original era o de tornar viável a responsabiliza‑
ção do utilizador, sem perverter os princípios fundamentais do sistema jurídico
vigentes no quadro da responsabilidade civil contratual. Decidimos publicá-lo
agora porque pensamos que adquiriu a valia de demonstrar a insuficiência das
medidas implementadas na Proposta de Diretiva, podendo vir a ser útil nas
discussões e redações futuras da legislação sobre o tema.
Note-se que o texto começa por referir-se a uma Resolução aprovada
em 2020 cuja abordagem foi claramente abandonada através da publicação da
Proposta de Diretiva. Decidimos manter a referência a esse diploma porque
representa uma outra opção de solução, e porque apoia a conclusão final a que
quisemos, e queremos, chegar.
* * *
atendendo ao princípio, que toma como um princípio geral, de que quem cria,
mantém ou controla uma fonte de perigo deve ser responsável pelos danos ou
prejuízos causados pela atividade9, o Parlamento Europeu identifica o “ope‑
rador” como aquele que exerce controlo sobre um risco relacionado com a
operação e funcionamento do sistema e propõe uma agravação dos requisitos
de aferição da sua responsabilidade civil. Deste modo, a Resolução postula uma
abordagem baseada no tipo de risco em causa, nos seguintes termos: quanto aos
sistemas de inteligência artificial de alto risco, cuja operação autónoma envolve
uma probabilidade considerável de causar danos a uma ou mais pessoas, os
operadores devem suportar uma responsabilidade civil independente de culpa
por quaisquer prejuízos ou danos causados por uma atividade, um dispositivo
ou um processo físico ou virtual baseado nesse sistema10; relativamente aos
demais sistemas de inteligência artificial, ou seja, aos que não são considerados
de alto risco, é estabelecida uma presunção de culpa do operador, que pode
exonerar-se provando que respeitou o seu dever de diligência11. Este diploma
é extremamente importante, na medida em que reconhece que não deve ser o
lesado a arcar com o ónus de identificar uma certa medida de diligência que o
operador (que melhor conhece e gere o sistema eletrónico) omitiu, e indicia
que a via da responsabilidade civil objetiva ou da presunção de culpa12 são as
soluções mais acertadas para resolver o problema.
O regime proposto pela Resolução não especifica a modalidade de respon‑
sabilidade civil a que se aplica, mas destina-se à indemnização de danos causados
à vida, à saúde, à integridade física ou ao património, ou de danos não patrimo‑
niais significativos que resultem numa perda económica verificável. Segundo
10
Considerando 14 da Resolução e artigo 4.º do Anexo à Resolução. A responsabilidade é objetiva
uma vez que o operador é responsável mesmo que tenha atuado com a devida diligência. Contudo,
a Resolução admite que o operador se possa eximir de responsabilidade se provar que os danos foram
causados por motivos de força maior.
11 Considerando 20 da Resolução e artigo 8.º do Anexo à Resolução. Curiosamente, a norma que
estabelece a referida presunção de culpa acaba por configurar uma limitação do grau de diligência
exigida ao operador, porquanto se estabelece que o operador “só” pode ilidir a presunção de culpa
que sobre si recai se provar que “foi observada a devida diligência através da execução das seguintes
ações: seleção de um sistema de IA adequado para as tarefas e capacidades em causa, correta coloca‑
ção em operação do sistema de IA, controlo das atividades e manutenção da fiabilidade da operação,
graças à instalação regular de todas as atualizações disponíveis”. Significa isto que basta provar que
empregou as referidas diligências para se poder afirmar a sua irresponsabilidade, o que parece consa‑
grar uma limitação da sua responsabilidade na prática.
12 Embora em Portugal, no domínio da responsabilidade civil extracontratual, o artigo 493.º, n.º 2,
Henrique Sousa Antunes, esta formulação abarca várias dimensões dos direitos
de personalidade ou ofensas à propriedade intangível, tais como a violação ou
destruição de dados pessoais13. Esta delimitação parece afastar a grande maioria
dos danos resultantes do simples não cumprimento de obrigações contratuais,
o que está de acordo com a norma segundo a qual a Resolução “não prejudica
quaisquer outras ações de responsabilidade resultantes de relações contratuais”14.
Em todo o caso, a Resolução constitui ainda uma mera proposta, o que
significa que as suas soluções, baseadas na responsabilidade civil objetiva ou na
presunção de culpa do devedor, se encontram por implementar. O objetivo
do presente trabalho é o de descortinar, ainda no plano do direito vigente, se
existe alguma forma de atingir os objetivos propostos pela Resolução no plano
contratual, isto é, responsabilizar o devedor, independentemente de culpa (ou
presumindo-se esta), relativamente a danos provocados na esfera jurídica do
credor resultantes do não cumprimento, por forma eletrónica, de uma obriga‑
ção constituída pelo primeiro e que não foi cumprida devido a uma falha do
sistema.
Principia, p. 39, Menezes Cordeiro, António (2017), Tratado de Direito Civil, vol. VIII, 1.ª ed.,
Coimbra: Almedina, p. 421, Menezes Leitão, Luís (2017), Direito das Obrigações, vol. 1, 14.ª ed.,
Coimbra: Almedina, p. 361.
16 Cf., por exemplo, a anotação ao artigo 483.º de Vaz de Sequeira, Elsa em Brandão Proença,
José Carlos (2019), Comentário ao Código Civil - Direito das Obrigações, 1.ª ed., Lisboa: Universidade
Católica Portuguesa, no pressuposto de que o proibido é apenas o de se transformar a exceção em
regra, segundo os ensinamentos de Castanheira Neves (2013), Metodologia Jurídica. Problemas funda-
mentais, 1.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 272, e de Baptista Machado, João (1983), Introdução
ao direito e ao discurso legitimador, Coimbra: Almedina, p. 327. Já em termos mais amplos, Hörster,
Heinrich Ewald, Eva Moreira da Silva (2019), A parte geral do Código Civil Português, 2.ª ed., Coim‑
bra: Almedina, pp. 85 e 86, consideram que a responsabilidade pelo risco constitui, ao lado da res‑
ponsabilidade por factos ilícitos, uma modalidade autónoma com fundamentos próprios, que se aplica
quando a responsabilidade individual não se puder apurar e se verificar a velha máxima ubi commoda,
ibi incommoda, dando mesmo como exemplo o funcionamento de instalações técnicas sofisticadas, a
informatização de muitos processos e o fabrico robotizado em grandes séries.
17 Embora a culpa se presuma, como resulta do artigo 493.º do Código Civil.
18 Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de novembro. A título póstumo face à versão original do texto, temos
(e.g., através da teoria da eficácia externa das obrigações), isso pressuporia que os agentes eletróni‑
cos fossem titulares de personalidade jurídica, pois só assim seriam titulares de uma esfera jurídica e
poderiam estar adstritos a obrigações, o que não se verifica.
23 Seguindo a terminologia utilizada por Menezes Cordeiro, António (1997), Da responsabilidade
serklärungen”, Archiv für die civilistische Praxis, 1982, p. 168 recusa a aplicação do § 278.º do BGB (o
nosso artigo 800.º) aos auxiliares eletrónicos com o argumento de que o artigo se baseia em culpa
humana, pressupondo que o resultado fosse previsível e evitável.
e os dados a que este tem acesso, mas aqui já estaríamos a avaliar o comporta‑
mento do próprio devedor, e por conseguinte, estaríamos fora do âmbito do
artigo 800.º.
Em suma, a aplicabilidade do artigo 800.º à matéria em análise pressupõe
que o “comportamento” do auxiliar, a falha de um sistema mecânico, seja apre‑
ciado na esfera jurídica de uma pessoa humana, o que é problemático porque os
mecanismos eletrónicos em si são involuntários, no sentido de não serem con‑
troláveis pela vontade. No fundo, e não há grande volta a dar a esta conclusão,
o artigo 800.º pressupõe que o auxiliar seja uma pessoa humana.
4. Abre-se este parágrafo para explicar que o legislador poderia ter con‑
sagrado uma outra solução – o que, reiteramos, não fez. Carneiro da Frada
defende que teria sido possível trilhar um caminho mais límpido e simples,
se se tivesse consignado abertamente uma responsabilidade objetiva pela uti‑
lização de terceiros no cumprimento do programa obrigacional. Na prática,
e pelas razões expostas anteriormente, estaríamos fora do âmbito do artigo
800.º, embora o fundamento para a responsabilidade objetiva se devesse reti‑
rar, segundo o autor, dos princípios subjacentes a essa norma. O artigo 800.º
é perspetivado por Carneiro da Frada como uma consagração do princípio ubi
commoda, ibi incommoda28, considerando que o tráfico negocial, num quadro
de divisão e especialização do trabalho, postula irrecusavelmente a garantia do
devedor pelo adequado desempenho dos terceiros de que se serve. Além disso,
uma vez que o devedor tem inteira liberdade para definir o programa de rea‑
lização da prestação (princípio da intangibilidade da prestação), sem interfe‑
rência do credor29, não é justo que possa lançar sobre o credor os correspon‑
dentes riscos, não só porque é o devedor quem beneficia com o recurso aos
auxiliares30, aumentando o seu raio de ação negocial e potenciando os seus
28
Carneiro da Frada, ob. cit, p. 307.
29 Carneiro da Frada, “A responsabilidade objectiva por facto de outrem face à distinção entre
responsabilidade obrigacional e aquiliana”, Direito e Justiça, 12 (1998), pp. 303-304, explicando que
“verificado o incumprimento de uma obrigação de prestação de facto fungível, preclude em prin‑
cípio ao credor que satisfaça coativamente o seu interesse obrigando o devedor a mudar as pessoas a
quem ele incumbira de realizar a prestação. Apenas lhe é permitido obter a execução específica da
prestação promovendo a prestação por um terceiro à custa do devedor (cf. art. 828).” Acrescenta‑
mos que, nos termos do artigo 767.º do Código Civil, o credor só excecionalmente se pode recusar
a receber uma prestação de terceiro.
30 Não são de desconsiderar em absoluto os argumentos de alguns autores alemães, citados por Rocha,
ob. cit., p. 84, que negam a aplicabilidade do § 278.º do BGB (o nosso artigo 800.º) aos agentes ele‑
trónicos, entendendo que a automatização diminui a possibilidade de erros e possibilita a diminui‑
ção de custos, o que, num sistema de concorrência, só beneficia o credor. Porém, Jordano Fraga,
lucros31, como só ele poderá calcular e controlar a maior parte desses riscos32.
A aceitação desta hipótese de responsabilidade objetiva pela utilização de ter‑
ceiros no cumprimento do programa obrigacional seria útil, uma vez que tor‑
naria dispensável analisar se a omissão do comportamento devido corresponde
ou não, objetivamente, a uma falta de diligência. O devedor responsabilizar‑
-se-ia objetivamente pelas falhas dos agentes eletrónicos que se traduzissem no
não cumprimento de uma obrigação33.
Esta perspetiva foi desenvolvida em Itália por Trimarchi que desenvolveu o
conceito de “esfera de risco”, onde inclui todas as causas internas à organização
do devedor, excluindo apenas os eventos estranhos ao círculo de atividade do
devedor, desprovidos de qualquer ligação, mesmo ocasional, com a própria ati‑
vidade, defendendo que o devedor deve assumir responsabilidade por qualquer
falha localizada na sua esfera de risco34. Segundo este entendimento, o devedor
é chamado a responder em todos os casos em que o não cumprimento se fique
a dever a disfunções no seu âmbito organizacional, mesmo que tenha utilizado
os mecanismos adequados para evitar as avarias e tenha mantido cuidadosa‑
mente os seus meios de produção. A ideia estruturante da “esfera de risco” é a
de que, como este tipo de eventos se aproxima mais do âmbito de controlo do
Francisco (1994), La responsabilidad del deudor por los auxiliares que utiliza en el cumplimiento, Madrid:
Civitas, p. 442, replica que as vantagens que possam resultar para o credor da utilização de auxiliares
serão indiretas, e não põem em causa que o destinatário principal seja o devedor.
31 Ferreira Múrias, Pedro, “A responsabilidade por actos de auxiliares e o entendimento dualista
dor na culpa do auxiliar poderá não constituir sempre a solução mais adequada para o problema”,
apontando para uma responsabilidade pelo risco da empresa.
34 Trimarchi, Pietro, “Incentivi e rischio nella responsabilità contrattuale”, Rivista di diritto civile, 54
(2008), p. 194. Visintini, Giovanna (2005), Trattato breve della responsabilità civile, 3.ª ed., Milão: Cedam,
p. 192, aderindo à tese de Trimarchi, e procurando demonstrar o seu acolhimento jurisprudencial.
devedor, deve ser este, e não o credor, a arcar com as consequências de uma
eventual falha35.
Trimarchi sustenta esta construção com base numa análise económica da
responsabilidade contratual, e considera que esta solução é mais eficiente, uma
vez que incentiva o devedor a cumprir. Isto é, sabendo o devedor que será res‑
ponsável por qualquer disfunção interna da sua organização, é instado a empe‑
nhar o esforço, despesas e medidas que lhe pareçam justificadas para evitar o
dano. Em segundo lugar, sob o ponto de vista da justiça da repartição de riscos,
estes passam a ser suportados pela parte que melhor os pode prever, controlar
e gerir e, assim, calcular e acautelar o seu possível impacto, nomeadamente
através da contratação de seguros. Em terceiro lugar, e em termos de prova, a
responsabilidade do devedor deixa de depender da avaliação exata da causa da
falha (nem sempre determinável), o que gera maior simplicidade e certeza no
julgamento36. Finalmente, Trimarchi alega que esta solução é exigida de modo
a garantir a coerência normativa com as regras que impõem que o devedor
responda pelo não cumprimento dos seus auxiliares (mesmo sem culpa da sua
parte)37, com as normas que atribuem ao devedor o risco do perecimento do
bem genérico, antes da concentração38, com o princípio de que a não solvabi‑
lidade financeira não constitui uma hipótese de impossibilidade (o que significa
que o devedor se responsabiliza por garantir que tem recursos suficientes para
desenvolver a sua atividade empresarial) e, por fim, numa interpretação algo
35 Nas palavras de Brandão Proença, José Carlos (2019), Lições de cumprimento e não cumprimento
das obrigações, 3.ª ed., Porto: Universidade Católica Portuguesa, p. 217, “não se pode esquecer que
existem vicissitudes mais próximas dos contraentes (por ex., doença do devedor, greve localizada,
falhas, avarias e anomalias do material utilizado, utilização de auxiliares com efeitos danosos, doença
do credor, incêndio na sua fábrica, inundação ou curto-circuito no seu domicílio), suscetíveis de
integrar, para alguns, as chamadas ‘esferas de risco’, implicando, nalguns casos, soluções mais particu‑
lares (na linha de uma mera imputação objetiva) e propiciando maior possibilidade de prevenção ou
minimização de efeitos”. A questão é que, como vimos, a teoria se aplica mesmo que o devedor não
tenha tido, no caso concreto, qualquer hipótese de evitar o dano. A propósito de greves localizadas
que sejam causas de impossibilidade de prestar, Visintini, ob. cit., p. 198 admite que os tribunais
italianos procuram apurar se o devedor incumpriu deveres para com os empregados em greve ou se
resistiu a reivindicações, no sentido de determinar se a causa, a greve, é, ou não, imputável ao deve‑
dor. Contudo, conclui, na linha de Trimarchi, que seria mais correto considerar simplesmente que a
greve da empresa é uma disfunção do devedor e que, como tal, é uma causa imputável a este último.
36 Trimarchi, ob. cit., p. 349. Segundo Visintini, ob. cit., p. 200, uma vez que cabe ao devedor
provar que a causa da impossibilidade de cumprir não lhe é imputável, este último responsabiliza‑
-se caso não demonstre a origem externa da causa, o que significa na prática que assume o risco de
ocorrência de causas desconhecidas.
37 Como, entre nós, resulta do artigo 800.º do Código Civil.
39 Em inglês, utiliza-se a expressão “beyond his control”, o que Trimarchi parece interpretar como
sendo sinónimo de fora da esfera de controlo. A versão portuguesa contém, corretamente, a expres‑
são “alheio à sua vontade”.
40 Trimarchi, ob. cit., p. 355.
41 Trimarchi, Pietro (2017), La responsabilità civile: atti illeciti, rischio, danno, 1.ª ed., Milão: Giuffrè
Francis Lefebvre, p. 285. Embora haja autores que refutem tal restrição, tal como Visintini, Gio‑
vanna (1979), La responsabilità contrattuale, Nápoles: Jovene, p. 73, que contesta que se deva distin‑
guir, neste domínio, entre pessoa singular e empresa, propondo que o regime se estenda a toda a
responsabilidade profissional.
42 Trimarchi, Pietro, “Incentivi e rischio nella responsabilità contrattuale”, Rivista di diritto civile,
54 (2008), p. 350.
43 Monateri, Pier Giuseppe (1998), La responsabilità civile, Turim: UTET, pp. 6-10.
45
Baptista Machado, João (1991), “Risco contratual e mora do credor”, in Obra Dispersa, vol. I,
Braga: Scientia Iuridica, p. 292.
46 Ibid, p. 274.
47
Ibid, 274 e 289.
48
Ibid, 280 e 339.
49 Ibid, 287-288.
50 Antunes Varela, João de Matos (1997), Das obrigações em geral, vol. II, 7.ª ed., Coimbra: Alme‑
dina, p. 67.
51 Recorrendo à formulação de Monteiro Pires, ob. cit, p. 612.
52
Pessoa Jorge, ob. cit., p. 315.
53 As partes podem assumir uma obrigação de garantia relativamente ao resultado, nos termos da
qual o devedor será responsável haja o que houver, não tendo possibilidade de se exonerar através
da invocação de uma causa estranha que haja tornado a obrigação impossível, cf. Antunes Varela,
ob. cit., p. 74.
54 Como conclui Madaleno, ob. cit., p. 1011, pese embora seja indiscutível que são muitos os casos
em que se verifica a responsabilidade objetiva do devedor por fato de outrem, não é possível extra‑
polar este regime para um princípio geral.
(por oposição à força maior, que constituiria uma causa estranha à atividade)55.
Seriam casos fortuitos aqueles relativamente aos quais se pode descobrir um
qualquer nexo de causalidade, mesmo material, com a esfera das atividades e
dos meios do devedor. E dava o exemplo de um acidente ocorrido com uma
máquina de um operário, que decepou a mão de um funcionário. Dado que a
máquina pertencia aos meios industriais do operário, meios que ele estabelece
e administra, com os quais colhe lucro, apesar de se ter demonstrado que “a
máquina funcionava bem, que o mecanismo era impecável, e que não havia
qualquer imputabilidade a atribuir ao dono da fábrica”, o acidente classifica-se
como um mero caso fortuito56. O que o autor concluiu, e aqui é que bate o
ponto, é que, no ordenamento jurídico português, o referido critério de dis‑
tinção entre força maior e caso fortuito seria absolutamente irrelevante, porque
os efeitos são os mesmos, e nos dois casos o devedor fica isento de responsabi‑
lidade57. A distinção, explicava, só teria relevância se o devedor se responsabi‑
lizasse quanto aos casos fortuitos, ficando exonerado relativamente a circuns‑
tâncias de força maior. Admitindo que tal teria por consequência implementar
um regime de responsabilidade objetiva, concluiu que tal distinção é feita pelo
legislador exclusivamente a propósito de matérias especiais58.
55 Cunha, Paulo (1943), Direito das obrigações: o objecto da relação obrigacional: apontamentos das aulas
da 2a cadeira de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa: Universidade de
Lisboa, p. 275.
56 Ibid, p. 275.
57 Ibid, p. 276.
58 Ibid, p. 277.
59 Antunes Varela, João de Matos e Pires de Lima (1961), Noções fundamentais de direito civil, vol. 1,
Coimbra: Coimbra Editora, p. 388. No mesmo sentido, Cunha, ob. cit., p. 249 e Galvão Telles,
Inocêncio (1980), Direito das obrigações, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 196.
causa por Pessoa Jorge, por levar a adotar, até certo ponto, o mecanismo da
responsabilidade objetiva no não-cumprimento das obrigações, é afastada pelo
atual Código, que não impõe qualquer restrição aos meios de ilidir tal presun‑
ção60. Neste sentido, o devedor pode fazer a prova direta da ausência de culpa,
demonstrando por exemplo que realizou as condutas impostas pela diligência
normativa (que atuou da forma que lhe era exigível)61.
Demonstrador deste entendimento é o Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de 3 de outubro de 201362, que discutiu um caso em que uma empresa
de fornecimento de energia interrompeu provisoriamente a prestação de servi‑
ços devido a um acidente com uma cegonha, eletrocutada nas linhas de distri‑
buição. O contrato celebrado entre as partes continha um elenco exemplifica‑
tivo de causas fortuitas ou de força maior (e.g., greve geral, alteração da ordem
pública, etc.), relativamente às quais o devedor se não responsabilizava, e do
qual se excluía aquilo a que se designava como “causas próprias”, em que se
encontravam as interrupções provocadas por animais. A referência ao conceito
de “causas próprias” parece “internalizar” a passagem de cegonhas, elemen‑
tos tecnicamente estranhos ao devedor, na esfera de organização do devedor.
É como se as partes tivessem acordado que as cegonhas pertencem à “empresa”
do devedor, o que importa o reconhecimento de que, tal como relativamente
a todos os elementos da sua organização – que o devedor conhece e controla -,
a passagem das cegonhas é previsível e controlável.
Caso se aplicasse, no nosso ordenamento jurídico, o conceito de esfera
de risco segundo a doutrina defendida por Trimarchi, o não cumprimento da
obrigação devido a um facto incluído na esfera de organização do devedor per‑
mitiria, por si só, responsabilizar o agente. Porém, o Tribunal analisou o com‑
portamento do devedor à luz do cumprimento dos seus deveres de cuidado,
tendo considerado que, tendo ficado demonstrado que as linhas eram regular‑
60
Pessoa Jorge, ob. cit., p. 132.
61 Ibid, p. 133. Como explica Monteiro Pires, ob. cit., pp. 617-618, “o devedor pode, porém, ilidir
a presunção, provando não ter culpa e, realce-se novamente, não ter culpa significa ter agido com a
diligência exigível, ter cumprido os deveres de cuidado a que estava obrigado. O devedor pode pro‑
var que a impossibilidade se ficou a dever a um ‘caso fortuito’ ou de ‘força maior’, de modo a ilidir a
presunção de culpa, mas também pode ilidir esta presunção com outros fundamentos. É a prova das
circunstâncias que comprovam a ausência de culpa, e não dos factos que atestam a impossibilidade
da prestação, que permitirá a exoneração do devedor. Note-se, porém, que o devedor pode provar
a concreta circunstância fortuita que o impediu de cumprir – por exemplo, que certa entidade com
poderes públicos impôs uma restrição impeditiva da integral execução do contrato -, mas pode tam‑
bém ilidir a presunção provando, apenas, que agiu com a diligência que lhe é exigível”.
62 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de outubro de 2013, n.º 3584/04.0TVLSB.L1.S1
que ele não estava em condições de adotar, poderiam ter evitado a eletrocussão
das cegonhas.
Porém, numa obrigação de meios, o devedor apenas se compromete a
desenvolver, prudente e diligentemente, certa atividade para a obtenção de um
determinado efeito65. Uma vez que o conteúdo da obrigação em si se refere
à tomada de medidas diligentes, a prova da ilicitude, que recai sobre o credor
como fundamento do seu direito de crédito, nos termos do artigo 342.º do
Código Civil, exige a demonstração de que o devedor omitiu ou não adotou
os meios adequados para cumprir a obrigação, e de que portanto a conduta
do devedor não correspondeu à diligência a que se tinha vinculado. A omis‑
são da mais elevada medida de cuidado exterior é, aqui, apreciada em sede de
tipicidade e ilicitude66. Segundo Vaz Serra, incumbe sobre o credor a prova da
medida de diligência do devedor, em face da obrigação que assumiu, devendo
este último tão simplesmente provar que usou essa diligência e, se foi impedido
de a empregar, que tal se deu por facto a si não imputável67. É, portanto, sobre
o credor que impende o ónus de concretizar a medida da diligência devida no
caso concreto68.
Significa isto que, nas obrigações de meios, a prova do ilícito é particu‑
larmente exigente para o credor, já que este se obriga a provar que o devedor
não evitou o que podia efetivamente ter evitado (não fez tudo o que podia ter
feito), sendo certo que normalmente o credor pouco sabe acerca do sistema
eletrónico que pertence ao devedor, e tem muita dificuldade em identificar que
tipo de comportamentos poderia o devedor ter adotado para prevenir a lesão.
Para evitar esta conclusão, desenvolveu-se na Alemanha, há alguns anos, a
doutrina de repartição do ónus da prova segundo esferas de risco, encabeçada
por Prölls. O princípio de que parte esta teoria é o de que, quando é difícil ao
lesado provar a violação dos deveres do lesante, ou quando a causa dos danos
provém de um espaço sob o domínio da organização deste, deve ser este último
(mais próximo) a suportar o encargo de aclarar os factos e a arrostar com as
65 Ibid, p. 1039.
66
Segundo a definição de Pinto Oliveira, Nuno Manuel (2007), “Contributo para a “moderniza‑
ção” das disposições do código civil português sobre a impossibilidade da prestação”, in Estudos sobre
o não cumprimento das obrigações, Coimbra: Almedina, p. 239.
67 Vaz Serra, Adriano, “Culpa do devedor ou do agente”, Boletim do Ministério da Justiça, 68 (1957),
p. 144.
68 Não nos parece necessário entrar aqui na discussão em volta do conteúdo do ilícito, que é a de
69 Tudo isto é explicado por Ribeiro de Faria, Jorge, “Da prova na responsabilidade civil médica:
reflexões em torno do direito alemão”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 1 (2004),
pp. 151 e ss., alicerçado nos fundamentos teóricos desenvolvidos na Alemanha e com referência a
decisões jurisprudenciais.
70
Uma ideia semelhante pode ser encontrada na tese de Miranda Barbosa, Mafalda, “Haftungs‑
begründende Kausalität e haftungsausfüllende Kausalität /Causalidade fundamentadora e causalidade
preenchedora da responsabilidade”, Revista da Faculdade de Direito e Ciência Política da Universidade Lusó-
fona do Porto, 2 (2017), na sua proposta de definição do conceito de nexo de causalidade. Segundo a
autora, a imputação objetiva requer a assunção de uma esfera de risco, sendo imputáveis ao lesado os
danos que tenham a sua raiz naquela esfera. Porém, a doutrina de Miranda Barbosa não opera uma
inversão do ónus da prova do nexo de causalidade. Considera apenas que, ao ser tratado o nexo impu‑
tacional como uma questão normativa, a questão passa a estar dependente de um juízo do julgador.
71 Teoria da distribuição dinâmica do ónus da prova, defendida entre nós, por exemplo, por Morais
juntou canos de cobre e canos de ferro zincado, o que veio a determinar suces‑
sivas roturas de canos, presume-se a previsibilidade e a evitabilidade do resul‑
tado, passando a pertencer ao médico e ao empreiteiro o ónus de provar que o
dano (direto) não foi causado por ele, que o dano se teria produzido de igual
forma mesmo que tivesse observado o cuidado exigível.73
A verdade é que na prática, como explica Ribeiro de Faria, a aceitação da
teoria de Prölss justifica-se porque o dever de diligência do médico (obrigação
de meios) se deixa justapor ao dever de proteção por parte do mesmo médico,
de forma que, se ele não deve a cura do doente (caso em que se teria uma obri‑
gação de resultado típico), deve todavia não só o tratamento adequado como
a não lesão do doente em certas circunstâncias (caso do erro grosseiro) e, dessa
forma, a obrigação de meios transmuta-se, nesta precisa medida, numa obriga‑
ção de resultado, abrindo-se o caminho para a inversão da prova de que fala e
que aceita a jurisprudência alemã74. Na verdade, o transportador não está apenas
obrigado a um dever de diligência na realização do transporte, mas também a
não lesar o transportado, fazendo-se impender sobre o transportador o ónus da
prova de que o resultado (a eventual lesão do transportado) era inevitável ou
não foi causado por ele75.
78 Ibid, p. 316.
79 Além disso, a legislação impõe que os prestadores de serviços bancários reembolsem e suportem
os prejuízos resultantes de operações de pagamento não autorizadas, a não ser que provem que a
intromissão se deveu à violação de obrigações contratuais por parte do cliente. Esta segunda parte
da legislação impõe-lhes, portanto, uma responsabilidade objetiva (afastada, contudo, pela culpa do
lesado). Porém, a simples conversão de obrigações de meios em obrigações de resultado não tem este
efeito, porque o devedor pode sempre provar que foi diligente.
* * *
80
Ribeiro de Faria, ob. cit., p. 180.
81 Sinde Monteiro, Jorge (1991), “Aspectos particulares da responsabilidade médica”, in Direito da
saúde e da bioética, Lisboa: Lex, p. 151.
82 A propósito do Acórdão em análise, Luz dos Santos, Hugo, “Plaidoyer por uma “distribuição
dinâmica do ónus da prova” e pela “teoria das esferas de risco” à luz do recente acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, de 18/12/2013: o (admirável) “mundo novo” no homebanking?”, Revista Ele‑
trónica de Direito (2014), defende a aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ónus da prova,
o que teria o mesmo resultado (embora nos pareça que a técnica proposta é mais límpida e simples).
O autor conclui que esta teoria deveria ser aplicada ao caso concreto no sentido de tornar inadmissí‑
vel exigir-se ao consumidor a prova do mau funcionamento do sistema informático do homebanking,
porquanto é o prestador de serviços quem não só tem maior facilidade em demonstrar a versão factual
que lhe aproveita (de que a utilização fraudulenta do serviço de homebanking por parte de terceiros
não se ficou a dever ao mau funcionamento do sistema informático), mas também porque o facto
respeita pessoalmente ao devedor, na medida em que emerge dos deveres de proteção do patrimó‑
nio e do direito de auto-determinação informacional dos utilizadores do serviço de homebanking e,
ainda, do dever de monitorização do sistema informático emergente da obrigação de prestação de
serviços de homebanking.
SOFIA DAVID ** 2
Resumo: Neste artigo vamos ocupar-nos dos contratos inteligentes (ou smart con-
tracts) e do desenvolvimento da designada “on-chain arbitration” na resolução dos
litígios advenientes dos contratos inteligentes e da tecnologia blockchain.
Abstract: In this paper we will discuss smart contracts and the development of
the so-called on-chain arbitration for resolution of disputes arising from smart
contracts and blockchain technology.
*
Assistente-Convidada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e doutoranda na mesma
Faculdade. Investigadora do Centro de Investigação de Direito Privado.
** Advogada qualificada em Portugal e em Inglaterra. Licenciada pela Universidade Católica Por‑
1. Introdução
II. Neste texto a discussão não será, porém, tão extensa. Sem prejuízo de
algumas considerações preliminares para enquadramento dessa tecnologia, ire‑
mos focar-nos, sobretudo, na perspetiva litigiosa decorrente ou associada àque‑
les contratos inteligentes. Em especial, no papel da arbitragem na resolução
desses litígios.
É que, conforme sublinha Riikka Koulu, “[the] use of new information
and communication technologies both inside the courts and in private online
dispute resolution services is quickly changing everyday conflict management.
However, the implications of the increasingly disruptive role of technology in
dispute resolution remain largely undiscussed”1. Poder-se-ia, por isso, começar
por discutir da maior ou menor abertura à transformação tecnológica no campo
jurídico. No entanto, a nós interessar-nos-á abordar especificamente as impli‑
cações de uma realidade em movimento.
Alguns technologists acreditam que os smart contracts podem substituir, inte‑
gralmente, tanto o direito dos contratos, como a atividade dos tribunais (judi‑
ciais ou arbitrais). Esta tese assenta na defesa do código de base dos smart contracts
como suficiente para a contratualização e resolução dos litígios daí resultantes ou
àqueles associados. Não acreditamos que assim seja. Pelo menos para já.
Os smart contracts são uma realidade contratual (ainda) insuficiente. Assim
o ilustram as dificuldades relacionadas com (i) o reconhecimento da validade
destes contratos nos diversos ordenamentos jurídicos, (ii) a imprevisibilidade
1Riikka Koulu, “Law, technology and dispute resolution privatisation of coersion”, Taylor &
Francis, 2019.
2
Norton Rose Fulbright, Arbitrating Smart Contract disputes, 2017, disponível em http://www.
nortonrosefulbright.com/knowledge/publications/157162/arbitrating-smart-contract-disputes.
3 Ainda, sobre o enquadramento da blockchain, veja-se Sthéfano Bruno Santos Divino, “Smart
I. O conceito de smart contract foi proposto por Nick Szabo, que o define
como “a computerised transaction protocol that executes the terms of a con‑
tract”7. Por outras palavras, temos aqui “um conjunto de promessas incor‑
poradas em formato digital, incluindo protocolos através dos quais as partes
cumprem essas promessas”8.
II. A tecnologia dos smart contracts tem sido utilizada em diversos contextos.
A nossa análise centra-se na execução de contratos jurídicos: os designados
“smart legal contracts”.
chain utiliza uma linguagem de programação que permitiu o desenvolvimento dos smart con‑
tracts. Nesta plataforma, os smart contracts são implementados na forma de “contas” com um
saldo que sofre alterações quando sujeitas a transações. Cf. https://ethereum.org/en/developers/
docs/smart-contracts/
6
Primavera De Filippi/Aaron Wright, Blockchain and the Law, Harvard University Press, 2018,
p. 28.
7 Nick Szabo, Smart Contracts, 1994, disponível em http://www.fon.hum.uva.nl/rob/Courses/
InformationInSpeech/CDROM/Literature/LOTwinterschool2006/szabo.best.vwh.net/smart.
contracts.html.
8 Tradução nossa de Nick Szabo, Smart Contracts: Building Blocks for Digital Markets, 1996, dis‑
ponível em http://www.fon.hum.uva.nl/rob/Courses/InformationInSpeech/CDROM/Litera‑
ture/LOTwinterschool2006/szabo.best.vwh.net/smart_contracts_2.html.
II. Mas nem todas as cláusulas são suscetíveis de serem automatizáveis por
um smart contract. Esta constatação reflete a distinção entre as designadas cláusulas
operacionais (i.e. as que seguem a lógica booleana) e as cláusulas não operacionais
9
Isda, Linklaters LLP, Smart contracts and Distributed Ledger – A Legal Perspective, 2017, p. 14,
disponível em https://www.isda.org/a/6EKDE/smart-contracts-and-distributed-ledger-a-le‑
gal-perspective.pdf.
10 Ibrahim Mohamed Nour Shehata, Arbitration of Smart Contracts Part 1 – Introduction to Smart
(assim, as que não requerem uma ação determinística, mas que se referem, em
abstrato, à relação entre as partes, como as cláusulas de lei aplicável, pactos de
competência, representações e garantias, ou quaisquer outras cláusulas que uti‑
lizem conceitos indeterminados ou subjetivos, como a boa fé, melhores esfor‑
ços, razoabilidade ou alteração das circunstância).12
III. Atualmente, a tecnologia dos smart contracts assenta ainda no literalismo
da linguagem utilizada, pelo que é excluída a possibilidade de interpretação das
cláusulas e da vontade negocial das partes no momento da execução. É que a
tradução de cláusulas que requerem um grau de discricionariedade em código
informático significaria perder grande parte da funcionalidade da linguagem
jurídica tradicional.
Não obstante, os smart contracts são já amplamente utilizados quer no âmbito
de ativos que existam (ou estejam representados) na blockchain13, quer em indús‑
trias como os seguros, o setor financeiro, o mercado imobiliário, distribui‑
ção ou propriedade intelectual14. Estes contratos têm, ainda, um proclamado
potencial de utilização conjunta com a tecnologia da internet of things15.
12 Cf. Relatório da UK Law Commission “Smart legal contracts Advice to Government”, 2021
13 Os smart contracts são uteis para transferir tokens, i.e., representações digitais, ditas “sintéticas”,
de ativos físicos ou digitais. Um exemplo de uma aplicação que desenvolve esta possibilidade é a
Color Coin, que permite que certos ativos como ações, ouro, moeda ou direitos de propriedade
intelectual sejam representados por tokens sejam comercializados numa plataforma blockchain.
14 Cf. Relatório da UK Law Commission “Smart legal contracts Advice to Government”, 2021.
15
Os objetos inteligentes e a internet of things, ainda que apresentem um futuro muito promis‑
sor, não se encontram plenamente implementados no mercado. Contudo, já existe e encontra-se
bastante desenvolvida a possibilidade de automatização de contratos relacionados com criptomoe‑
das e ativos sintéticos, que representam digitalmente direitos de propriedade - cf. Nick Szabo,
Smart Contracts, cit.
16 Anurag Ban/Maxine Viertmann, The Not-So-Distant Future: Blockchain and the legal profession,
3.1. Justificação
19 Sobre as vantagens e limites dos smart contracts neste âmbito, vide Rodrigo Ustárroz Cantali,
“Smart Contracts e Direito Contratual: Primeiras Impressões Sobre Suas Vantagens e Limites”,
RJLB, n.º 3, 2022.
20
As plataformas mais utilizadas são a Ethereum, a Hyperledger, a Counterparty ou a Polkadot.
21
Em especial, atento o anonimato das partes como característica destes contratos. Sobre esta maté‑
ria, vide Michael Buchwald, “Smart Contract Dispute Resolution: The Inescapable Flaws of
Blockchain-Based Arbitration”, University of Pennsylvania Law Review, Vol. 168, 2020, p. 1378 e ss.
22 Sobre o desenvolvimento de alguns destes pontos, veja-se International arbitration report (Norton Rose
23
Sobre esta matéria e na defesa desta realidade, vide Maxime Chevalier, “From Smart Contract
Litigation to Blockchain Arbitration, a New Decentralized Approach Leading Towards the Block‑
chain Arbitral Order”, Journal of International Dispute Settlement, pp. 558-584, 2021.
24 Maxime Chevalier, “From Smart …”, cit., p. 560.
25 Lawtech – Digital Dispute Resolution Rules (UK Jurisdiction Taskforce), disponível online, 2021.
29 Idêntica crítica é avançada por Mauricio Virues Carrera, “Accommodating Kleros as a Decen‑
tralised Dispute Resolution Tool for Civil Justice Systems: Theoretical Model and Case of Appli‑
cation”, disponível online.
30 Sobre este caso, vide Mauricio Virues Carrera, “Accommodating Kleros …”, cit., p. 16.
4. Observações finais
32
Michael Buchwald, “Smart Contract …”, cit., p. 1387.
33 Michael Buchwald, “Smart Contract …”, cit., p. 1387. Assim, “On JUR, for instance, the party
initiating the dispute must propose a particularized remedy upon initiation. The defending party
then has twenty-four hours to counter with an alternative solution. This supposedly builds in the
flexibility for narrowly tailored outcomes, unlike the pre-coded relief options utilized by Kleros.”.
*
Assistente Convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Investigadora do
Centro de Investigação de Direito Privado
** Por vontade da autora, o presente escrito não segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa.
Abstract: Risk is one of the essential elements of the insurance policy, and it does
not present itself as an immutable reality. Thus, in the performance of the contract,
changes may be observed resulting in an aggravation or risk reduction. These brief
considerations aim to account for the risk reduction regime currently in force in
the national legal system.
*** Abreviaturas: CC – Código Civil; CC Comentado I – Código Civil Comentado I, Parte Geral,
(coord.) António Menezes Cordeiro, Almedina: Coimbra (2020); CC Comentado II – Código Civil
Comentado II, Das Obrigações em Geral, (coord.) António Menezes Cordeiro, Almedina: Coimbra
(2021); CCom – Código Comercial; CPC – Código de Processo Civil; CRP – Constituição da
República Portuguesa; e.g. – exempli gratia; i.e. – id est; LCS – Lei do Contrato de Seguro; LCS Ano‑
tada – Lei do Contrato de Seguro, Anotada, Pedro Romano Martinez (et al.), 4.ª ed., Almedina: Coimbra
(2020); PDECS – Princípios do Direito Europeu do Contrato de Seguro; RJCS – Regime Jurídico
do Contrato de Seguro; ROA – Revista da Ordem dos Advogados; VVG – Versicherungsvertragsgesetz.
4 Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, com
2.
O regime de alteração do risco e os deveres de informação – artigo
91.º do RJCS
1 Vejam‑se os recentes escritos sobre diminuição do risco e a Covid‑19: Luís Poças, O surto de
COVID‑19 e a diminuição do risco seguro, Revista de Direito Comercial, Liber Amicorum Pedro
Pais de Vasconcelos (2020), 881‑926. Acessível em Revista de Direito Comercial: https://www.
revistadedireitocomercial.com/o‑surto‑de‑covid‑19‑e‑a‑diminuicao‑do‑risco‑seguro (consultado a
19‑jun.‑2021); Francisco Rodrigues Rocha, A redução do risco no seguro automóvel durante a pandemia
de Covid‑19. Breves notas, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. LXI,1,
(2020), 221‑236 e Maria Elisabete Ramos, Contrato de Seguro e cobertura de riscos associados
à pandemia de COVID‑19, ROA, Ano 80, Vol. III‑IV (Julho – Dezembro), (2020), 767‑799.
2 Cf. artigo 1.º do RJCS.
3 Sobre o risco enquanto elemento essencial do contrato de seguro: Martinez, Direito cit., 57‑58,
Vasques, Contrato cit., 125‑131; Margarida Lima Rego, O contrato e a apólice de seguro, Temas de
Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2016), 15‑37, 20‑21; Cordeiro, Direito cit.,
535‑545; Rego, O risco cit., 389‑390; Luís Poças, O dever de declaração inicial do risco no contrato
de seguro, Almedina: Coimbra (2013), 86 e ss.; José Vítor dos Santos Amaral, Contrato de Seguro,
Responsabilidade Automóvel e Boa‑fé, Almedina: Coimbra (2020), 38‑39 e 56‑57; Maria Manuel
Ramalho Sousa Chichorro, O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, 1.ª
ed., Coimbra Editora: Coimbra (2010), 118‑123; Rita Gonçalves Ferreira da Silva, Do Contrato de
Seguro de Responsabilidade Civil Geral, Coimbra Editora: Coimbra (2007), 200‑201; José Engrá‑
cia Antunes, O Contrato de Seguro na LCS de 2008, ROA, Ano 69, Vol. III/IV, (2009), 815‑858.
Acessível em ROA: https://portal.oa.pt/upl/%7Be96274ba‑f961‑4442‑a4e4‑46f b5338440e%7D.
pdf (consultado a 26‑jun.‑2021), 822 e 840‑843; Luiz da Cunha Gonçalves, Comentário ao Código
Comercial Português, Vol. II, Empresa Editora José Bastos: Lisboa (1916), 502 e 528‑529; José Moi‑
tinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa Edi‑
tora: Lisboa (1971), 23‑24; Joaquin Garrigues, Contrato de seguro terrestre, s.n.: Madrid (1973), 14
e ss. e 130 e M. Miguel Traviesas, Sobre o contrato de seguro terrestre, Revista de Derecho Privado,
Vol. IV, Serie D, Madrid, s.d., 25 e 39.
4 Cf. artigos 24.º, 25.º e 26.º do RJCS. Acerca da declaração inicial do risco, veja‑se por todos
Poças, O dever, cit., em especial 323 e ss.; Luís Poças, O dever de descrição exacta e completa do risco a
segurar, Problemas e Soluções de Direito dos Seguros, Almedina: Coimbra (2019), 9‑37 e ainda Luís
Poças, Seguro Automóvel: Oponibilidade de Meios de Defesa aos Lesados, Almedina: Coimbra (2020),
20‑26. Cf. também, Rego, O risco cit., 390; Joana Galvão Teles, Deveres de informação das partes,
Temas de Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2016), 363‑380; Manuel da Costa
Martins, Contributo para a delimitação do âmbito da boa‑fé no contrato de seguro, III Congresso Nacio‑
nal de Direito dos Seguros, Almedina: Coimbra (2003), 169‑198,175‑182 e Cordeiro, Direito cit.,
631‑640. Assinalando a proximidade da declaração inicial do risco com o instituto do agravamento
do risco, veja‑se Poças, O dever, cit., 673‑675 e O dever de descrição cit., 10‑11. Cf. ainda, António
Santos Abrantes Geraldes, O novo regime do contrato de seguro. Antigas e novas questões, Intervenção
no Colóquio organizado pela AIDA‑PORTUGAL (Secção Portuguesa da Associação Interna‑
cional de Direito dos Seguros), 10 de Março de 2010. Acessível em: http://www.trl.mj.pt/PDF/
REGIME.pdf (consultado a 29‑jun.‑2021), 2‑9, sobre as principais alterações no regime da decla‑
ração inicial do risco com a aprovação do RJCS. Na doutrina estrangeira, cf. Axelle Astegiano‑La
Rizza, La déclaration initiale des risques par le souscripteur, Recueil Dalloz, n.º 27 (12 juillet), (2012),
Paris, 1753‑1760, no regime francês, e no regime espanhol cf. Herminia Campuzano Tomé, El
cumplimento del deber de declaración del riesgo. Especial problemática derivada de los seguros vinculado a con-
tratos de préstamo, Revista de Derecho Patrimonial, 21,(2008), 105‑133.
5 Teles, Deveres cit., 363.
O dever de informação do tomador do seguro na fase pré‑contratual, II Congresso Nacional de Direito dos
Seguros, Almedina: Coimbra (2001), 75‑113, ainda por referência ao regime anterior ao RJCS
e Júlio Vieira Gomes, O dever de informação do (candidato a) tomador do seguro na fase pré‑contratual, à
luz do Decreto‑lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Car‑
los Ferreira de Almeida, Vol. II, Almedina: Coimbra (2011), 387‑445, considerando já o RJCS.
Em geral sobre os deveres de informação no contrato de seguro, cf. Cordeiro, Direito cit., 603 e
ss.; Chichorro, O Contrato cit., 75 e ss. e Antunes, O Contrato cit., 830‑831. Cf. ainda, Martins,
Contributo cit.,172‑174, o Autor entende que estes deveres decorrem do princípio da boa‑fé na sua
vertente objectiva. De modo semelhante, veja‑se também Amaral, Contrato cit.,187‑188.
9
José Vasques, Contrato de seguro: elementos essenciais e características, Scientia Ivridica, Tomo LV, n.º
307, (Julho‑ Setembro), (2006), 493‑525, 502‑503, tal decorre de o contrato de seguro ser um
contrato de execução sucessiva e configura uma obrigação contratual não se tratando apenas de
uma extensão da declaração inicial de risco.
10 Rego, O risco cit., 395, notando que relativamente ao segurador não existe um dever de comu‑
nicar alterações no risco, mas sim de actualizar a informação prestada nos termos dos artigos 18.º
a 21.º do RJCS, que se destina a esclarecer o tomador acerca das condições do contrato. Ainda
sobre as restantes informações que devem ser prestadas pelo segurador, 395‑398. Veja‑se também
o disposto no artigo 91.º/2 do RJCS. Acerca dos deveres de informação do segurador, cf. Teles,
Deveres cit., 329‑362 e Maria Inês de Oliveira Martins, Regime do Jurídico do contrato de seguro em Por-
tugal, Actualidad Jurídica Iberoamericana, IDIBE, n.º5 ter (Dezembro), (2016), 199‑231. Acessível
em IDIBE: http://idibe.org/wp‑content/uploads/2013/09/255.pdf (consultado a 30‑jun.‑2021),
206‑208.
11 Arnaldo Costa Oliveira, Anotação ao artigo 91.º RJCS em LCS Anotada, 355‑356, o Autor entende
que as matérias abrangidas por estes deveres de informação não se restringem àquelas que sejam
relativas ao risco. O âmbito das informações a ser prestadas inclui todas as referenciadas nos arti‑
gos 18.º a 21.º e 24.º do RJCS.
12 Maria Inês de Oliveira Martins, Distribuição do risco no contrato de seguro: os limites à imposição de
condutas de administração do risco ao segurado, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da
Costa Andrade, Vol. III, Outros Temas de Direito e Economia e de História, Boletim da Facul‑
dade de Direito da Universidade de Coimbra, (2017), 301‑329, 302, referindo que as condutas de
informação a cargo do segurado têm por função a gestão ou administração do risco, considerando
que é o segurado que permanece em contacto com a pessoa ou os bens seguros. Veja‑se ainda,
Gomes, O dever de informação do (candidato) cit., 389, sublinhando que a solução oposta forçaria
o segurador a longas investigações, dispendiosas e delicadas, repercutindo‑se negativamente no
valor dos prémios
13 Neste sentido, Rego, O risco cit., 398.
16 Arnaldo Costa Oliveira, Anotação ao artigo 91.º RJCS em LCS Anotada, 355‑356, referindo que
o objecto principal do artigo 91.º do RJCS, são as matérias contidas na informação inicial do
segurador ao tomador do seguro e as alterações susceptíveis de interessar a terceiros beneficiá‑
rios de direitos decorrentes do contrato. Considerando a limitação do nosso estudo, não iremos
abordar estas matérias.
17 Sublinhando que a afinidade entre o instituto da diminuição do risco e da declaração pré‑con‑
o artigo L113‑41 do Code des assurances francês, o § 41 do VVG 2008. Cf. ainda o artigo 6.º da
Proposta de Directiva do Conselho, de 28‑Jul.‑1979, e as alterações introduzidas na revisão de
31‑Dez.‑1980 e também o artigo 4:301 dos PDECS.
21 Código Comercial, aprovado pela Carta de Lei, de 28 de Junho de 1888. O artigo 446.º refe‑
re‑se apenas ao agravamento do risco, no seguro contra incêndio. Sobre este preceito, cf. Adriano
Anthero, Comentario ao Codigo Commercial Portuguez, Vol. II, Typographia “Artes & Letras”: Porto
(1915), 194 e Gonçalves, Comentário cit., 530‑532 e 586, o Autor parecia afastar a hipótese de
redução do prémio, no caso de existir uma diminuição do risco, a não ser que tal estivesse expres‑
samente previsto na apólice. Referindo apenas uma aplicação analógica na hipótese de agrava‑
mento, veja‑se ainda Gomes, O dever cit., 108‑109 e também Almeida, O Contrato cit., 92‑93.
22 Sobre a diminuição do risco na legislação anterior ao RJCS, veja‑se Vasques, Contrato cit., 275,
referindo que a diminuição do risco implicaria uma alteração nas condições do contrato, nomeada‑
mente no prémio exigido. O Autor defende que tal resultaria de uma aplicação analógica do artigo
446.º CCom, mas também do princípio da correspectividade das prestações. Veja‑se ainda, Arnaldo
Costa Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 360; Martinez, Direito cit., 99 e Mar‑
tins, Contributo cit.,192‑194.
23
Contra este entendimento, veja‑se Poças, O surto cit., 885‑886, o Autor entende que seria de
afastar uma aplicação analógica essencialmente por três motivos: (i) o preceito em causa regulava
a situação simétrica (agravamento do risco), (ii) a norma em questão não atribuía ao segurador
um direito de alteração do prémio, mas apenas de resolução do contrato e (iii) destinando‑se a
regular apenas o seguro de incêndio, o artigo 446.º do CCom não seria suficiente para reconhecer
um princípio geral de equilíbrio das prestações no contrato de seguro e que consequentemente
fundamentasse uma alteração do valor do prémio por verificação de uma diminuição do risco.
24 Sobre a ratio do regime da diminuição do risco cf. infra 11.
25 Vejam‑se os preceitos já referidos: o artigo 13.º da LCS espanhola, o artigo 1897.º do Codice
civile italiano, o artigo L113‑41 do Code des assurances francês, o § 41 do VVG 2008. Cf. ainda o
artigo 6.º da Proposta de Directiva do Conselho, de 28‑jul‑1979, e as alterações introduzidas na
revisão de 31‑Dez.‑1980 e também o artigo 4:301 dos PDECS. Com detalhadas referências sobre
esta ponto, cf. Rocha, A redução cit., 223‑224 (em especial na nota de rodapé 7). No direito bra‑
4.1.
A variação do valor dos bens ou do interesse seguro, a extinção do risco e
alteração da natureza do risco seguro
sileiro esta matéria é regulada pelo artigo 770.º do CC, sobre este preceito veja‑se Luiza Moreira
Petersen, O Risco do Contrato de Seguro, Roncarati: São Paulo (2018), 154‑155. Sobre esta matéria
nos PDECS, cf. Restatement of European Insurance Contract Law, Principles of European Insurance
Contract Law, 2.ª ed., Otto Schimdt: Köln (2016), 204 e ss., e em especial sobre as soluções dos
vários ordenamentos jurídicos, 205‑206.
26
Referindo‑se ao risco como o elemento‑chave ou central do tipo legal do contrato de seguro,
Antunes, O Contrato cit., 843.
27 A noção de risco é passível de assumir uma pluralidade de sentidos. Sobre este ponto, cf. Poças,
O surto cit., 887‑888 e O dever, cit., 90, o Autor assinala que o termo pode designar o evento de
que depende a prestação do segurador, o objecto do seguro, a probabilidade de ocorrência desse
evento, a possível dimensão do sinistro ou o objecto da garantia do segurador. Sublinhando a
polissemia da palavra risco, veja‑se Gomes, Algumas cit., 10; Maria Inês de Oliveira Martins, O
Seguro de Vida Enquanto Tipo Contratual Legal, 1.ª ed., Coimbra Editora: Coimbra (2010),127 e
Poças, Aproximação cit., 44‑45, notando que a noção de risco também não reúne consenso entre
os vários ramos do conhecimento, com especial enfoque na noção económica de risco. Veja‑se
ainda Petersen, O Risco cit.,80‑81, notando que a imprecisão da noção de risco decorre da sua
dimensão interdisciplinar.
28 De forma semelhante, veja‑se Poças, O surto cit., 888 e Fernando Sánchez Calero, Artículo 13.
Comunicación de la disminución del riesgo, Ley de Contrato de Seguro (dir. Fernando Sánchez Calero),
RJCS em LCS Anotada, 259, referindo que se trata da probabilidade da ocorrência do evento
danoso, construção que deve ser articulada com a noção de sinistro, enquanto verificação do
evento que despoleta o acionamento da cobertura do risco e ainda Pedro Soares Martinez, Teoria
e prática dos seguros, 2.ª ed., Lisboa (1961), 19‑20, definindo o risco como a possibilidade do segu‑
rado sofrer um prejuízo.
30 A noção do artigo 51.º do RJCS, é mais ampla, incluindo também os custos de aquisição, de
gestão e de cobrança e ainda os custos relacionados com a emissão da apólice, cf. Poças, O dever,
cit.,112. Sobre as várias noções de prémio, veja‑se, Margarida Lima Rego, O prémio, Temas de
Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2016), 265‑286, 271‑272, referindo que quando
se somam os encargos fiscais e parafiscais, referidos no artigo 51.º/2 do RJCS, estamos perante o
prémio total. Podemos distinguir ainda o prémio puro ou acturial – resultante da avaliação estrita
do risco coberto pelo seguro, e o prémio de risco. Cf. ainda Antunes, O Contrato cit., 847‑848,
notando que o artigo 51.º do RJCS, refere‑se ao prémio bruto, designando o preço total, líquido
de impostos, a pagar pelo tomador em contrapartida da cobertura do risco prestada pelo segurador.
31 Poças, O dever, cit., 112.
32 Neste sentido, Poças, O surto cit., 888‑889. Sobre a variação do valor da coisa segura, em con‑
creto sobre o seu aumento, veja‑se Gomes, Algumas cit., 27. O Autor nota que o aumento do valor
da coisa segura, não é, em regra, um incremento do risco, não obstante, em alguns casos, poder
ter um impacto nas consequências prováveis do sinistro, se este se verificar. Rejeitando a aplicação
do regime no caso da diminuição do valor do interesse seguro, veja‑se Arnaldo Costa Oliveira,
Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 362, argumentando que tal resultaria numa solu‑
ção desequilibrada a favor do segurador. Esse desequilíbrio resultaria da dilação temporal até a
actualização do prémio. Na doutrina italiana, cf. Marco Rosseti, Il contenuto oggettivo del contrato
di assicurazione, Capitolo Quinto, Le assicurazioni private, Tomo I, UTET: Torino (2006), 1067,
referindo que a doutrina maioritária entende que a redução do valor da coisa segura é regulada
pelo disposto no artigo 1909.º do Codice.
33 Poças, O surto cit., 889, referindo que nestes casos a alteração contratual será proposta pelo
tomador do seguro ao segurador, que este aceitará sem reservas, produzindo‑se os seus efeitos de
forma imediata ou na anuidade seguinte, consoante os termos contratuais acordados pelas partes.
34 Por exemplo, se estivermos a falar de um seguro contra furto o valor do bem tem reflexo no
risco assumido pelo segurador. Existe uma maior probabilidade de o bem ser furtado se for mais
valioso. Assim, se por algum motivo o bem desvalorizar, além de uma variação do bem, estamos
igualmente perante uma diminuição do risco, uma vez que a probabilidade de o bem ser furtado
passa a ser menor.
35 Cf. infra 7.3.
36 Acerca desta distinção, no ordenamento jurídico espanhol, veja‑se Sánchez Calero, Artículo 13
38 Veja‑se o disposto nos artigos 1.º, 24.º, 37.º/2 alínea d), 44.º e 110.º/1 do RJCS. Sobre este ponto,
veja‑se ainda Rego, O risco cit., 390‑391, abordando as diferenças entre a inexistência de risco ou
de interesse no seguro. Cf. também Vasques, Anotação ao artigo 44.º RJCS em LCS Anotada, 260
e Poças, O dever, cit., 87.
39 Sobre o referido preceito, veja‑se, com maior detalhe, Vasques, Anotação ao artigo 44.º RJCS em
LCS Anotada, 258‑262. Sobre a inexistência do risco vd. também Poças, O dever, cit., 676‑680.
40 Assim, Almeida, O Contrato cit., 85.
41 Expressão utilizada por Rego, O Contrato de Seguro e Terceiros cit., 458‑459 e O risco cit., 401.
‑fé no Direito civil, 7.ª Reimpressão, Almedina: Coimbra (2020), 903‑1114; Cordeiro, Comentário
ao artigo 437.º em CC Comentado II, 270 e ss.; Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, cit., 131 e ss..
44 Também a temática da alteração das circunstâncias ganhou uma nova dimensão com a situação
pandémica provocada pela Covid‑19. Com indicações bibliográficas, veja‑se Cordeiro, Comen-
tário ao artigo 437.º em CC Comentado II, 280 e também António Menezes Cordeiro, Covid‑19 e
boa‑fé, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. LXI,1, (2020), 23‑43,
em especial 27‑32 e 41‑42.
437.º em CC Comentado II, 276‑279; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª
ed. (revista e actualizada), 6.ª Reimpressão, Almedina: Coimbra (2018), 336‑342.
48 Referindo que o contrato de seguro é um contrato aleatório: Martinez, Direito cit., 51 e 59 ss.;
Vasques, Contrato cit.,104‑105; Poças, O dever cit., 123‑125. De modo ligeiramente distinto, cf.
Cordeiro, Direito cit., 599‑600, referindo que o contrato de seguro é um contrato sinalagmático
que comporta um factor de aleatoriedade.
49 Vasques, Anotação ao artigo 94.º RJCS (Comentários Complementares) em LCS Anotada, 375.
Esta solução é expressamente adoptada noutros ordenamentos jurídicos, v.g. o artigo 1469.º do
Codice Civile italiano. Sobre o regime aplicável no ordenamento jurídico italiano, Rego, O Con-
trato de Seguro e Terceiros cit., 464‑463.
50 Assim, Costa, Direito cit., 344; Rocha, A redução cit., 228‑229; Vasques, Anotação ao artigo 94.º
53 Martinez, Anotação ao artigo 92.º RJCS (Comentários Complementares) em LCS Anotada, 363,
referindo que a alteração que ocorra nos termos do artigo 92.º apenas permite a modificação do
contrato.
54 Vasques, Anotação ao artigo 94.º RJCS (Comentários Complementares) em LCS Anotada, 376‑377,
frisando que a alteração das circunstâncias é aplicável nos seguros de danos e nos seguros de pes‑
soas, sem qualquer restrição, ao contrário do que sucede com o regime do agravamento do risco.
55
Rego, O Contrato de Seguro e Terceiros cit., 457‑458.
56 Neste sentido, ainda que com algumas reservas, cf. Rocha, A redução cit., 230, referindo que
estamos perante circunstâncias que se integram no próprio conteúdo negocial e não apenas na sua
base. Notando que existe uma aproximação entre os dois institutos, cf. Poças, O surto cit., 890‑891.
57 Veja‑se Rego, O risco cit., 408, a Autora sublinha que o afastamento do regime não conduz à
tica para determinação das consequências. Contudo, parece‑nos que estes casos se aproximam
mais de transformações do risco.
58 Sublinhando a falta de rigor do texto legal, cf. Poças, O surto cit., 889. Sobre o preceito, veja‑
‑se ainda Oliveira, Anotação ao artigo 191.º RJCS em LCS Anotada, 569‑570, referindo factos que
podem ser agravadores do risco e não estar relacionados com o estado de saúde da pessoa segura,
e.g. mudança de profissão ou local de residência.
59 Sobre este artigo, veja‑se Brito, Anotação ao artigo 215.º RJCS em LCS Anotada, 637‑638.
60
No mesmo sentido, Poças, O surto cit., 900.
61 Oliveira, Anotação ao artigo 190.º RJCS em LCS Anotada, 569‑570, referindo que atendendo às
características destes contratos é calculado um prémio médio para um risco variável. O Autor
acrescenta que além das razões técnicas, a desaplicação do regime do agravamento do risco se
deve a uma razão de política legislativa, relacionada com a protecção dos consumidores. Sobre a
inaplicabilidade do regime aos seguros de vida e seguros de saúde, veja‑se ainda Cordeiro, Direito
cit., 846 e 853.
62 Considerando que imprevisibilidade da diminuição é irrelevante cf. Poças, O surto cit., 901. O
510‑512.
65
O princípio geral da liberdade contratual está consagrado no artigo 405.º do CC para a gene‑
ralidade dos contratos e é constitucionalmente tutelado pelo artigo 61.º da CRP. Sobre as várias
vertentes do princípio da liberdade contratual, em especial no contrato de seguro, cf. Joana Gal‑
vão Teles, Liberdade contratual e os seus limites – Imperatividade absoluta e imperatividade relativa, Temas
de Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2016), 103‑115, 104‑105.
66 Não esquecendo que a liberdade contratual existe dentro dos limites da lei, artigo 405.º/1 do
CC, aplicando‑se também as normas de carácter geral consagradas na lei civil (e.g. normas rela‑
tivas à capacidade).
67 Pode questionar‑se se o elenco do artigo 12.º do RJCS é taxativo ou se é possível atribuir carácter
imperativo a mais normas. Neste sentido, defendendo que o preceito é meramente exemplifica‑
tivo veja‑se Cordeiro, Direito cit., 513‑514; Amaral, Contrato cit., 79; Martinez, Anotação ao artigo
12.º RJCS em LCS Anotada, 69; Teles, Liberdade cit., 109. Note‑se que, parte destes Autores nada
das, previstas no artigo 13.º, podem ser substituídas por cláusulas contratuais,
desde que estas estabeleçam um regime mais favorável ao tomador do seguro,
ao segurado ou ao beneficiário da prestação. A imperatividade relativa, radica
na ideia de que no contrato de seguro existe uma parte mais fraca, que deve
beneficiar de uma protecção legal assente em imperativos mínimos68.
O n.º 1 do artigo 92.º do RJCS, integra o elenco de normas relativamente
imperativas do artigo 13.º/1. Não obstante, não há qualquer menção ao n.º 2
do artigo 92.º, circunstância que motiva a doutrina questionar a natureza desta
norma69.
Relativamente ao disposto no n.º 1, é consensual que, tratando‑se de uma
norma relativamente imperativa, o contrato pode regular a matéria de forma
distinta desde que as estipulações contratuais se traduzam em condições mais
favoráveis para o tomador, segurado ou beneficiário, podendo concretizar‑se
em inúmeras possibilidades70.
No que concerne ao n.º 2, alguns autores defendem tratar‑se de uma
incongruência na enumeração legal, devendo considerar‑se que esta disposi‑
ção é também relativamente imperativa, à semelhança do n.º 1 do referido
preceito71. Este entendimento assenta na ideia de que se a resolução pudesse
ser afastada pelas partes, tal resultaria em cláusulas abusivas que permitiriam a
manutenção de um contrato em que não há correspondência entre as presta‑
ções do sinalagma72.
refere quanto à taxatividade das normas relativamente imperativas, elencadas no artigo 13.º/1 do
RJCS. Martinez, Anotação ao artigo 13.º RJCS em LCS Anotada, 71‑72, refere que a enumeração
do artigo 13.º é tendencialmente taxativa.
68 Martinez, Anotação ao artigo 13.º RJCS em LCS Anotada, 71, referindo que pretende proteger‑
‑se a parte contratualmente mais fraca (o tomador) ou aqueles que o seguro protege ou beneficia
(segurado ou beneficiário). No mesmo sentido, Teles, Liberdade cit., 114‑115.
69 Sobre a imperatividade do artigo 92.º/2 do RJCS, veja‑se Poças, O surto cit., 917‑918; Oliveira,
Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 362‑363; Gomes, Algumas cit., 41‑42 e Rocha, A
redução cit., 230.
70
Exemplificando algumas condições mais favoráveis, cf. Poças, O surto cit., 917, incluindo um
alargamento do período de tempo a que se reportam os efeitos da redução e também prazos mais
curtos para a proposta de redução do segurador.
71 Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 362‑363. De modo similar, veja‑se
ainda Rocha, A redução cit., 230. Note‑se que este entendimento tem por base uma concepção
do artigo 13.º do RJCS, como sendo uma enumeração não taxativa. Neste sentido, cf. também
Amaral, Contrato cit., 82. Rejeitando a imperatividade relativa do artigo 92.º/2, Poças, O surto
cit., 917‑918 e Gomes, Algumas cit., 42.
72 Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 362‑363, tal seria evidente nos contratos
a longo prazo, em especial nos seguros de vida e de doença. Contra, cf. Gomes, Algumas cit., 42,
referindo que mesmos nestes casos as cláusulas não serão necessariamente abusivas.
73 Neste sentido, veja‑se Poças, O surto cit., 918, sublinhando que a resolução assume um inte‑
resse prático limitado.
74 Gomes, Algumas cit., 42, o Autor nota que mesmo que se entenda que o elenco do artigo 13.º/1
não é taxativo, tal não conduz necessariamente à inclusão do 92.º/2 do RJCS no elenco das nor‑
mas relativamente imperativas.
75 De acordo com o artigo 9.º/3 do CC, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete deve
presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e se exprimiu em termos adequa‑
dos. Sobre este preceito, veja‑se Cordeiro, Comentário ao artigo 9.º em CC Comentado I, 102‑103.
76 Neste sentido, Poças, O surto cit., 918.
77 Sobre este artigo, veja‑se Martinez, Anotação ao artigo 116.º RJCS em LCS Anotada, 416‑417.
O Autor refere que a justa causa não se circunscreve a causa subjectivas, relevando igualmente
causas objectivas, tais como uma alteração significativa do risco, não imputável a nenhuma das
partes. Deste modo, a justa causa também abarca as hipóteses de alteração das circunstâncias,
artigo 437.º do CC.
78 Martinez, Anotação ao artigo 116.º RJCS em LCS Anotada, 416 e também Martinez, Da Cessa-
nota de rodapé 12, com a indicação normas semelhantes de outros ordenamentos jurídicos e que
recorrem a critérios distintos.
81 Poças, O surto cit., 894, acrescentando que a diminuição do risco tem que ser certa, efectiva,
tem que ser evidente, clara, de tal modo que não sobre margem para dúvidas
quanto à sua verificação. Este pressuposto garante que não se suscita a aplicação
do regime nos casos em que estamos perante circunstâncias em que a diminui‑
ção do risco seja duvidosa, limitando, assim, as hipóteses em que os tomadores
podem recorrer a este instituto82.
A aferição do preenchimento deste pressuposto deve ser feita casuistica‑
mente, na medida em que dependerá da configuração do risco coberto em
cada contrato de seguro83. Note‑se que muitas vezes as circunstâncias que
determinam a diminuição de determinados riscos, podem revelar‑se potencia‑
doras relativamente ao agravamento de outros riscos igualmente cobertos pelo
contrato84.
objectiva, demonstrável e cuja verificação não suscite dúvidas. De modo distinto, veja‑se Rego,
O risco cit., 402, referindo que o critério determinante será o do segurador e não um critério
objectivo utilizado pelo intérprete aplicador.
82
Neste sentido, veja‑se Poças, O surto cit., 894 e Rego, O risco cit., 403, referindo que caso não
existisse esta limitação, o regime seria prejudicial por poder dar a azo a muitos pedidos de redução
de prémio. Esta limitação é reforçada também pelo segundo requisito: a diminuição tem que ser
duradoura. Cf. ainda Rocha, A redução cit., 225, o Autor nota que há também um certo favore‑
cimento da actividade seguradora, considerando o seu interesse público.
83 Neste sentido, veja‑se Poças, O surto cit., 894, o Autor refere que deve ter‑se em atenção a
tente o equilíbrio das posições das partes85. Ficam assim excluídas as altera‑
ções momentâneas e de curta duração que não tenham impacto no contrato.
Apesar de duradoura, não se exige que a diminuição seja definitiva, admitin‑
do‑se, assim, a relevância de situações em que diminuição do risco é apenas
temporária86.
Todavia, por motivos de segurança jurídica, é importante determinar de
modo mais preciso o que é uma alteração duradoura. De acordo com alguma
doutrina, um critério possível para considerar uma diminuição do risco como
duradoura será o período de um ano87. Esta referência temporal, justifica‑
‑se atendendo ao princípio da anuidade contratual, vertido no artigo 40.º do
RJCS. Destarte, não serão relevantes alterações do risco que perdurem apenas
durante um período que seja inferior à própria anuidade contratual.
Apesar de ser um critério atendível, parece‑nos que deve ser rejeitado, por
ser demasiado restritivo. Este critério parte do pressuposto que o contrato de
seguro vigora pelo período de um ano. Todavia, as partes podem estipular que
o contrato tenha uma duração inferior. Concluímos que nestes casos o critério
seria desajustado.
Entendemos que não é possível estabelecer um critério temporal específico
e que seja aplicável a todos os contratos. Pelo contrário, o período da dimi‑
nuição deve ser analisado casuisticamente considerando a duração do contrato
de seguro em causa. No nosso entendimento este pressuposto está dependente
de uma conjugação com o último e que analisaremos de seguida: o reflexo nas
condições do contrato.
Em suma, uma alteração será duradoura, e consequentemente relevante,
desde que perdure durante tempo suficiente para ter reflexo nas condições do
contrato.
Por fim, a diminuição do risco que seja inequívoca e duradoura, tem que
ter reflexo nas condições do contrato. Este último pressuposto também carece
de alguma densificação, sendo necessário determinar o que deve entender‑se
por reflexo e condições do contrato.
85
Neste sentido, Poças, O surto cit., 895
86
Poças, O surto cit., 895, Rocha, A redução cit., 226.
87 Poças, O surto cit., 895, notando que fora destes casos a afectação do equilíbrio das prestações
88 De modo semelhante, cf. Rocha, A redução cit., 226, tecendo algumas críticas à redacção do
preceito.
89 Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 360. No mesmo sentido, Poças, O
surto cit., 896 e Rocha, A redução cit., 226, invocando o disposto no § 313 (1) do BGB. De forma
semelhante, veja‑se ainda Rego, O risco cit., 402‑403, referindo que só o segurador tem a capa‑
cidade técnica adequada para assegurar uma medição rigorosa do risco, pelo menos sempre que
ciência acturial permita assegurar esse rigor. Não concordamos inteiramente com esta afirmação,
90
Rocha, A redução cit., 226, invocando o disposto no §41 do VVG 2008. No mesmo sentido,
veja‑se Poças, O surto cit., 896‑897 e Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 360,
dando nota que nos casos em que há o desaparecimento de uma circunstância agravante é mais
fácil a percepção externa da necessidade de diminuição do prémio. Esta percepção torna‑se mais
evidente, uma vez que é prática comum do seguradores que a tarifação seja estabelecida através
de uma tarifa‑base que depois fica sujeita a aumentos ou diminuições consoante se verifiquem
circunstâncias agravantes ou atenuantes. Cf. ainda Klimke, Anotação ao §41 VVG, BeckOk VVG,
Sven Marlow/Udo Spuhl (hrsg.), Auflage 12, C.H. Beck: München (2021), Rn. 5‑7, referindo‑se
também ao desaparecimento ou irrelevância das circunstâncias de aumento de risco. Sobre o §41
VVG, veja‑se ainda, Rixecker, Anotação ao §41 VVG, VVG Kommentar, Langheid/Rixecker
(hrsg.), Auflage 6, C.H. Beck: München (2019), Rn. 1‑4 e Christoph Karczewski, Anotação ao §
41 VVG, Versicherungsvertragsgesetz Handkommentar, Rüffer/Halbach/Schimikowski (hrsg.),
Auflage 4, Nomos: Köln (2020), Rn. 1‑3.
91 Poças, O surto cit., 897, o Autor entende que também podem estar em causa circunstâncias que
foram erroneamente declaradas pelo tomador ou pelo segurado, aquando da declaração inicial do
risco, e que tenham determinado um prémio mais elevado. No mesmo sentido, cf. Restatement,
Principles cit., 205 e Klimke, Anotação ao §41 VVG, BeckOk VVG, Sven Marlow/Udo Spuhl (hrsg.),
Auflage 12, C.H. Beck: München (2021), Rn. 8, sendo que esta solução está expressamente pre‑
vista no §41 VVG. Cf. ainda, Reiff, Anotação ao §41 VVG, Versicherungsvertragsgesetz, Prölss/
Martin (hrsg.), Auflage 31, C.H. Beck: München (2021), Rn. 9‑10, referindo que é irrelevante
se o segurado cometeu erro culposo. Na doutrina alemã tem igualmente sido defendida a aplica‑
ção analógica do §41 às hipóteses em que o tomador não comunicou circunstâncias que podiam
determinar uma redução do risco, cf. Staudinger, Anotação ao § 41 VVG, Müncheter Kommentar
zum VVG, Langheid/Wandt (hrsg.), Auflage 2, C.H. Beck: München (2016), Rn. 4‑5.
92 Esta é a fórmula utilizada no artigo 13.º da LCS espanhola. Sobre este preceito, veja‑se Tapia
defende que o critério determinante será sempre o do segurador e não um qualquer outro critério
objectivo escolhido pelo intérprete aplicador.
94 Restatement, Principles cit., 204‑205.
95
Poças, O surto cit., 922, referindo que essa expectativa pode ou não ser verbalizada pelo tomador.
96 Neste sentido, Rego, O risco cit., 404.
97 Poças, O surto cit., 923‑924.
98 Neste sentido, Rego, O risco cit., 403‑404; Rocha, A redução cit., 226‑227; Poças, O surto cit.,
918‑919 e Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 362. De forma distinta, veja‑se
Gomes, Algumas cit., 41; Martins, Contributo cit.,192 e Sánchez Calero, Artículo 13 cit., 275‑276
que referem tratar‑se de uma faculdade do tomador.
99
Sobre a definição de ónus, cf. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. III,
Coimbra Editora: Coimbra (2002), 102‑103; Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil
II, 5.ª ed., Universidade Católica Editora: Lisboa (2010), 654‑657. Cf ainda, António Menezes
Cordeiro, Tratado de Direito Civil I, 4.ª ed., Almedina: Coimbra (2012), 918‑919, para este Autor,
no Direito civil deve falar‑se em ónus material ou encargo.
100 Deste modo, cf. Poças, O surto cit., 923‑924, mencionando que a comunicação releva apenas
404.
102
Neste sentido, Rocha, A redução cit., 226‑227.
103Esta solução aproxima‑se da consagrada no ordenamento jurídico alemão. Cf. Klimke, Ano-
tação ao §41 VVG, BeckOk VVG, Sven Marlow/Udo Spuhl (hrsg.), Auflage 12, C.H. Beck:
München (2021), Rn. 14, referindo que a segurador deve informar o tomador de acordo com o
§6 Abs. 4 VVG.
104 Poças, O surto cit., 901, o Autor nota que o RJCS estabelece uma ideia de que o risco assumido
pelo segurador tem apenas expressão no montante do prémio pago pelo tomador, em especial atra‑
vés da regra proporcional do prémio consagrada nos artigos 26.º/4, alínea a) e 94.º/1, alínea b). Com
maiores desenvolvimentos acerca da regra proporcional de prémio, cf. Poças, O dever cit., 525‑530.
105 Poças, O surto cit., 902, por exemplo, através de uma alteração de exclusões de garantia que
108 Poças, O surto cit., 903, referindo que existe apenas uma orientação genérica no artigo 52.º/2
do RJCS. Este preceito estabelece que na falta ou insuficiência de determinação do prémio pelas
partes, este deve ser adequado e proporcionado aos riscos a cobrir pelo segurador e calculado de
acordo com os princípios da técnica seguradora, atendendo ainda às especificidades das categorias
de seguros em questão e as concretas circunstâncias em que os riscos são assumidos. Sobre este
preceito veja‑se José Pereira Morgado, Anotação ao artigo 52.º RJCS em LCS Anotada, 284‑286.
109 De forma semelhante, Rego, O risco cit., 403, defendendo que cabe ao segurador a mediação
do risco e consequentemente o apuramento do valor exacto da redução. Referindo que a redu‑
ção deve ser proporcional à redução do risco, veja‑se Rocha, A redução cit., 226 e ainda Sánchez
Calero, Artículo 13 cit., 281.
110 De forma semelhante, veja‑se Poças, O surto cit., 903‑904, o Autor assinala que se o reajusta‑
mento fosse quantitativamente determinado ope legis, através de um critério legalmente estabe‑
lecido, não seria necessária a aceitação por parte do tomador. A necessidade de aprovação pelo
tomador reforça ideia de que estamos perante uma modificação contratual.
111 Neste sentido, Poças, O surto cit., 898‑899, referindo que é a tarifa mais recente que consubs‑
do tomador quanto à verificação de uma diminuição do risco é uma declaração negocial e não
uma declaração de ciência.
113 Poças, O surto cit., 904‑906; Rocha, A redução cit., 227,
114 Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 361. O Autor refere ainda que alterna‑
tivamente se poderia invocar o prazo consagrado no artigo 27.º/1 do RJCS, sendo de afastar essa
possibilidade uma vez que a declaração inicial do risco é mais próxima da situação em causa e o
seu regime deve ter‑se como regime‑regra da comunicação do risco ao segurador. Afastando a
aplicação do artigo 27.º do RJCS, veja‑se Gomes, Algumas cit., 43.
115
Rejeitando igualmente uma aplicação analógica do artigo 26.º/2, veja‑se Poças, O surto cit.,
904‑ 905. O Autor invoca essencialmente três argumentos: (i) o artigo 26.º/2, regula matéria rela‑
cionada com a declaração inicial do risco, sendo o artigo 93.º/2 mais próximo sistematicamente;
(ii) o artigo 26.º/2 tem por objectivo fixar um prazo de dilação quanto aos efeitos da cessação do
contrato para que o tomador possa contratar atempadamente com um novo segurador, por sua
vez o que se pretende com a aplicação do 93.º/2 é que as partes tenham tempo para reflectir na
modificação do contrato e (iii) o artigo 26.º/2 confere ao silêncio do tomador o sentido de recusa,
enquanto que o artigo 93.º/2 confere o sentido de aceitação em harmonia com o princípio da
conservação dos negócios jurídicos.
116 Cf. supra 2. Assinalando a proximidade da declaração inicial do risco com o instituto do agra‑
vamento do risco, veja‑se Poças, O dever, cit., 673‑675 e O dever de descrição cit., 10‑11 e tam‑
bém Gomes, Algumas cit.11‑12, referindo que o regime do agravamento do risco era por vezes
encarado como uma continuação lógica do dever pré‑contratual de informação que recai sobre
o tomador ou segurado.
117 Observe‑se o disposto no artigo 26.º/1 alíneas a) e b).
118 De forma semelhante, Poças, O surto cit., 904, referindo que regula uma situação perfeita‑
mente simétrica.
119 Neste sentido, Klimke, Anotação ao §41 VVG, BeckOk VVG, Sven Marlow/Udo Spuhl (hrsg.),
Auflage 12, C.H. Beck: München (2021), Rn. 10, indicando que o tomador também não precisa
de quantificar o valor da redução.
120 Este prazo surge também em consonância com o disposto no artigo 4:301 dos PDECS.
121
Defendendo a aplicação de um prazo de 30 dias, veja‑se também Oliveira, Anotação ao artigo 92.º
RJCS em LCS Anotada, 362‑363. No entanto o Autor, parecer continuar a invocar uma aplicação
analógica do disposto no artigo 26.º/2 do RJCS,
122 Veja‑se o disposto no artigo 93.º/2, alínea a) do RJCS.
123 O RJCS não inclui uma definição de registo duradouro. Todavia, é frequente a utilização do
termo suporte duradouro, definido noutros diplomas da ordem jurídica nacional. Veja‑se, a título
de exemplo, o artigo 4.º/ alínea x) do Regime Jurídico da Distribuição de Seguros e Resseguros,
aprovado pela Lei n.º 7/2019, de 16 de Janeiro. Assim, “suporte duradouro”, refere‑se a qualquer
instrumento que permita o armazenamento e posterior consulta de forma fiável.
segurador seja aceite pelo tomador; ou (iii) momento em que o segurador teve
conhecimento da diminuição do risco124.
Encontramos a primeira possibilidade no artigo 13.º da LCS espanhola,
sendo uma decorrência do princípio da indivisibilidade do prémio125/126. Con‑
tudo, esta solução não parece ser compatível com o regime nacional e não tem
sido defendida pela doutrina portuguesa127.
Como referimos anteriormente, a redução do prémio processa‑se através de
uma modificação contratual, que carece do consentimento do tomador. Desta
feita, poderia considerar‑se que seria esse momento em que se iniciaria a pro‑
dução do seus efeitos, numa lógica de encontro de vontades de ambas as decla‑
rações negociais (proposta do segurador e aceitação por parte do tomador)128.
Todavia, a segunda alternativa parece não ser suficiente para explicar o
regime consagrado no artigo 92.º do RJCS. O n.º 1 dispõe que o segurador
deve proceder à redução do prémio no momento em que tenha conhecimento
da diminuição do risco. Esta disposição coincide com a terceira possibilidade
que apresentámos129.
Parece‑nos que solução passa por uma conjugação das duas últimas pos‑
sibilidades. A produção de efeitos só pode verificar‑se depois de a proposta
do segurador ser aceite pelo tomador, todavia por força do disposto no artigo
92.º/1, os efeitos devem retroagir à data em que o segurador teve conheci‑
mento da diminuição do risco130.
Não obstante, importa ter presente que o prémio é pago antecipadamente,
pelo que na maioria dos casos o segurador já recebeu os montantes referentes
124
Poças, O surto cit., 913‑916.
125 Sobre este preceito, veja‑se Tapia Hermida, Manual cit., 181 e Sánchez Calero, Artículo 13 cit.,
275 e ss.. Acerca do afastamento do princípio da indivisibilidade do prémio na ordem jurídica
nacional, veja‑se Rego, O prémio cit., 283‑286 e José Moitinho de Almeida, O novo regime jurídico
do contrato de seguro. Breves considerações sobre a protecção dos segurados, Cadernos de Direito Privado,
Vol. I, n.º 26, (2009), 3‑17, 7‑8.
126 Na doutrina italiana, referindo esta solução veja‑se Rosseti, Il contenuto cit., 1068.
128
Mais precisamente quando o segurador tomasse conhecimento da aceitação do tomador, ou
este nada dizendo, decorrido o prazo de 30 dias, por força de uma aplicação analógica do dis‑
posto no artigo 93.º/2, alínea a). Esta solução é apoiada pelo regime geral do artigo 224.º do CC.
Sobre este preceito, veja‑se, Cordeiro, Comentário ao artigo 224.º em CC Comentado II, 656‑657.
129 Defendendo expressamente esta solução, veja‑se Rego, O risco cit., 404; Poças, O surto cit., 914
131 Só não será assim na hipótese de estar pendente o seu pagamento, caso em que deve ser logo
efectuada a redução, antes da sua cobrança. Com uma solução semelhante, veja‑se Oliveira, Ano-
tação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 361.
132 Referindo que a redução do prémio dará origem a um estorno do prémio pro rata temporis por
aplicação analógica do artigo 26.º/3 do RJCS, veja‑se Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em
LCS Anotada, 360 e Rego, O risco cit., 404.
133 Neste sentido, Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 360‑361. Referindo
também obrigação do estorno do sobreprémio pro rata temporis, através de uma aplicação analógica
do disposto no artigo 26.º/3, veja‑se Rocha, A redução cit., 228. O Autor invoca também uma
aplicação extensiva do artigo 104.º do RJCS quanto ao vencimento da obrigação, aplicando um
prazo de 30 dias a contar da data do apuramento dos factos.
134
Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 360‑361, o Autor refere uma aplicação
analógica do artigo 26.º/2 do RJCS, mas parece‑nos que a referência correcta será ao artigo 26.º/3,
na medida em que é nesse preceito é que se estabelece como é feita a devolução do prémio. No
mesmo sentido, Rego, O risco cit., 404. Note‑se que o RJCS faz ainda referência ao pagamento
pro rata temporis nos artigos 17.º/3, 107.º/2 e 118.º/3.
135 Oliveira, Anotação ao artigo 92.º RJCS em LCS Anotada, 361, o Autor refere ainda que esta é a
solução prevista no artigo 11.º/5 do DL n.º 183/88, de 24 de Maio, com as alterações introduzidas
pelo DL n.º 31/2007, de 14 de Fevereiro, relativamente aos seguros de crédito e de caução. Além
disso, é também a solução expressamente adoptada na legislação espanhola e francesa. Contra
este entendimento, veja‑se Poças, O surto cit., 915, em especial nota de rodapé 58. O Autor afasta
uma aplicação analógica do artigo 26.º/2, uma vez que tal preceito apenas define os trâmites e os
prazos de cessação do contrato em caso de omissões ou inexactidões negligentes. Recusa ainda
uma eventual analogia com o disposto no artigo 26.º/3, uma vez que o preceito em causa define
a devolução pro rata temporis do prémio em caso de cessação antecipada do contrato e não em caso
de alteração do mesmo.
136 Rego, O risco cit., 404.
137 Rego, O risco cit., 404, a Autora refere que se assim não fosse teria de se aplicar o disposto
no artigo 777.º do CC e a matéria estaria sujeita à vontade das partes, por força do princípio da
liberdade contratual.
138
Poças, O surto cit., 915‑916, em especial a nota de rodapé 60, note‑se que o Autor defende a
aplicação do prazo de 30 dias, por força de uma aplicação do artigo 104.º do RJCS, mas não a contar
do momento em se apuram as circunstâncias que deram origem à diminuição do risco. O Autor
sublinha que a ratio e o alcance do artigo 104.º do RJCS, permitem defender a sua aplicação nesta
situação. O que se pretende é conceder ao segurador um prazo que permita a operacionalização da
prestação a que está obrigado. O prazo de 30 dias é também consentâneo e igual ao estabelecido
no artigo 60.º/1 do RJCS, relativamente ao pagamento do prémio por parte do tomador. Sobre
este preceito, veja‑se José Pereira Morgado, Anotação ao artigo 60.º RJCS em LCS Anotada, 297‑298.
139 Esta solução encontra apoio legal no artigo 11.º do RJCS, que refere que o contrato de seguro
se rege pelo princípio da liberdade contratual. Também o regime geral do CC, artigo 777.º, faz
referência à falta de estipulação das partes ou de disposição legal aplicável.
140 Rego, O risco cit., 404.
145 Poças, O surto cit., 921, esclarecendo que não se trata de uma obrigação em sentido técnico, pois
o fundamento não é a relação obrigacional. De forma distinta, veja‑se Rocha, A redução cit., 227,
o Autor entende que o segurador tem o dever de propor uma modificação do negócio e portanto
um dever de renegociar, podendo assim recusar a redução desde que com a devida fundamentação.
Não podemos concordar com esta posição, pela seguinte ordem de razões: é devida uma redução
desde que estejam preenchidos os pressupostos do artigo 92.º/1 RJCS, em especial o último – “o
reflexo nas condições do contrato”. Ora se se concluiu que a diminuição do risco tem reflexo nas
condições do contrato, esse reflexo traduzir‑se‑á, como vimos anteriormente, no prémio. Deste
modo o segurador tem de proceder à redução, não havendo margem para negociação.
146 Defendendo que este direito surge pela necessidade de se conservar a proporcionalidade entre
que a diferente redacção dos preceitos, não comporta necessariamente uma divergência de regime.
148 Poças, O surto cit., 908‑910; Rocha, A redução cit., 228.
149 De acordo com o artigo 20.º da CRP e o artigo 2 .º/2 do CPC, a todos tem que ser assegurado
o acesso ao direito e aos tribunais, pelo que deve ser possível garantir através de diversas acções
que os direitos juridicamente protegidos gozam de tutela adequada.
150 Nomeadamente, o tomador pode ter mais seguros contratados na mesma companhia, motivos
de confiança por ser cliente há vários anos ou até simplesmente por motivos de proximidade ou
facilidade de acesso, e/ou nos contactos.
151 O preenchimentos dos pressupostos deve ser demonstrado pelo tomador, nos termos do artigo
342.º/1 do CC. Temos presente de que a prova pode ser difícil, nomeadamente no que toca ao
último pressuposto, o reflexo nas condições do contrato. Contudo, não é uma prova impossível
e por esse motivo não deve ser negada a possibilidade de recurso judicial.
152 Aludindo também aos critérios do artigo 52.º/2 do RJCS, veja‑se Poças, O surto cit., 909‑910
e Rocha, A redução cit., 228, apelando também ao disposto no artigo 437.º do CC. Em especial
sobre o artigo 52.º/2, veja‑se Morgado, Anotação ao artigo 52.º RJCS em LCS Anotada, 285, o
Autor defende que este preceito não se aplica apenas nos casos de omissão ou incompletude, mas
também como afloração de princípios gerais a observar em geral no cálculo do prémio. Sobre este
preceito, veja‑se ainda Rego, O prémio cit., 281‑283, a Autora parece entender que o segurador
não se encontra vinculado a um dever de calcular os prémios que aplica a todos os seus clientes
à luz dos princípios da adequação e proporcionalidade e no respeito pelos princípios da técnica
seguradora, havendo todavia um dever de não discriminação injustificada entre os mesmos. O
cálculo do prémio deve ainda ser feito dentro dos limites impostos pelo sistema, nomeadamente
o princípio da boa‑fé e a proibição de usura, ibid. 283.
153 De forma semelhante, veja‑se Poças, O surto cit., 911, o Autor refere que a resolução pode ocorrer
em duas situações: (i) incumprimento pelo segurador do dever legal de redução do prémio e (ii)
redução do prémio em moldes insatisfatórios para o tomador. No primeiro caso a resolução surge
como uma sanção jurídica e no segundo desempenha a função de remediar a relação contratual na
inviabilidade de conservação do negócio jurídico. De forma ligeiramente distinta, veja‑se Rocha,
A redução cit., 228, o Autor entende que o tomador apenas pode recorrer à resolução na falta de
acordo ou quando o segurador incumpra extensivamente o dever de renegociar.
154 Notando que a resolução tem um carácter subsidiário face à redução do prémio, Rocha, A
122‑ 228; Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, 12.ª ed., Reimpressão, Almedina:
Coimbra (2018), 102‑105; Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Reimpressão,
Coimbra Editora: Coimbra (2014), 454‑464; António Menezes Cordeiro, Comentário aos artigos
432.º a 436.º em CC Comentado II, 247‑ 270; Costa, Direito cit., 317‑322. No contrato de seguro,
veja‑se ainda Cordeiro, Direito cit., 772‑774; Antunes, O Contrato cit., 858 e também Luís Poças,
O poder de desvinculação discricionária do segurador, Problemas e Soluções de Direito dos Seguros,
Almedina: Coimbra (2019), 129‑162, 138‑139.
157 Sobre esta qualificação, cf. Martinez, Da Cessação cit., 68‑69.
do RJCS (artigos 23.º/3, 34.º/6 e 37.º/4), onde também se verifica este fundamento de resolução
do contrato de seguro. Os referidos preceitos, reforçam a ideia de que existe uma regra geral da
retroactividade da resolução do contrato ao momento determinante para o reconhecimento de
uma justa causa de resolução.
161 Sobre a resolução em sede de alteração das circunstâncias, cf. Martinez, Da Cessação cit., 77‑78
163
Referindo que o tomador tem a faculdade de resolver o contrato, tendo em consideração os
seus interesses, cf. Sánchez Calero, Artículo 13 cit., 283. Acrescentamos que podem existir motivos
para o tomador não querer resolver o contrato, tais como a preferência por aquela seguradora por
razões de confiança, contratação de vários seguros ou até mesmo simplesmente por facilidade em
termos de proximidade/contacto com a instituição ou até com mediadores.
164 Cf. artigo 436.º do CC e 92.º/2 do RJCS. A declaração do tomador pode ser expressa ou tácita,
viabilidade do seu fundamento. Note‑se, contudo, que nestes casos o tribunal não decreta a reso‑
lução, mas apenas reconhece se estavam preenchidos (ou não) os requisitos necessários para o seu
exercício. Neste sentido, veja‑se Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, cit., 105 e Telles, Direito cit.,
à forma de declaração, de acordo com a lei civil, a mesma não estaria sujeita
a forma especial166. Todavia, parece‑nos que deve ser aplicado o disposto no
artigo 120.º/1 do RJCS, devendo a declaração revestir a forma escrita ou ser
prestada por outro meio que permita o seu registo duradouro. De referir ainda
que o direito de resolução do tomador está sujeito ao prazo de prescrição refe‑
rido no artigo 121.º/2 do RJCS167. No entanto, se o tomador continuar a
executar o contrato e não manifestar interesse na desvinculação, apesar de não
ter ocorrido o prazo de prescrição, o exercício do direito de resolução ficará
inviabilizado168.
O principal efeito da resolução é a dissolução do vínculo contratual169,
sendo necessário determinar a que momento se devem reportar os efeitos da
extinção. Assim, verifica‑se uma imediata extinção do vínculo contratual, a
partir do momento em que a declaração do tomador seja recebida ou conhe‑
cida pelo segurador170. A partir desse momento as partes deixam de estar vincu‑
ladas pelo contrato de seguro no que toca ao futuro. Mais complexo é determi‑
nar se a cessação do contrato tem eficácia ex nunc ou ex tunc, uma vez que não
encontramos uma solução legal, directamente aplicável ao contrato de seguro
no RJCS. De notar que a resposta a esta questão se reveste de grande impor‑
tância, uma vez que a produção dos efeitos da resolução é imprescindível para
determinar o período em que há cobertura, na hipótese de ocorrência de um
sinistro.
A lei civil determina que, no que toca à resolução, a regra geral é a extin‑
ção do vínculo com eficácia retroactiva, artigo 434.º/1 do CC, havendo uma
reconstituição da situação anterior à celebração do contrato. No entanto, exis‑
tem excepções a esta regra, sendo que nesses casos a resolução apenas produz
efeitos ex nunc, havendo possibilidade de salvaguardar algumas situações jurí‑
dicas171. Cumpre então averiguar se o contrato de seguro se pode reconduzir a
algumas dessas excepções.
460‑461, referindo que estamos perante acções de simples apreciação, ou quando muito acções
de condenação, mas nunca perante acções constitutivas.
166 Cf. artigos 219.º, 224.º e 436.º/1 do CC
167 Cf. artigo 121/.º2 do RJCS, que refere que os direitos emergentes do contrato de seguro pres‑
crevem no prazo de cinco anos a contar da data em que o titular teve conhecimento do direito,
sem prejuízo da prescrição ordinária a contar do facto que lhe deu causa.
168 Neste sentido, Martinez, Da Cessação cit., 167, referindo que não é frequente que o direito de
das Obrigações, Vol. II, cit., 104, referindo que nos contratos de execução continuada a eficácia
retroactiva contrariaria a finalidade extintiva da resolução.
175
Com um exemplo (fornecimento de bens tornado inútil, por deficiência dos bens fornecidos,
relativamente aos bens que já foram entregues), cf. Cordeiro, Comentário ao artigo 434.º em CC
Comentado II, 264.
176 Poças, O surto cit., 911‑912.
177 Neste sentido, Poças, O surto cit., 911‑912; Rocha, A redução cit., 228 e também Rego, O risco
cit., 404‑405, referindo que este momento é expressamente referido no artigo 92.º/2 do RJCS.
A Autora faz também alusão à justa causa, invocando inclusive outros preceitos do RJCS (v.g.
artigos 23.º/3, 34.º/6 e 37.º/4), onde também se verifica este fundamento de resolução do contrato
de seguro. Os referidos preceitos, reforçam a ideia de que existe uma regra geral da retroactivi‑
179 Cf. artigos 107.º/1 e 2 do RJCS. No mesmo sentido veja‑se Restatement, Principles cit., 205,
104.º na hipótese de estorno do prémio já cobrado quando o segurador procede à sua diminui‑
ção. Cf. supra 10.2.
181 José Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro – Estudos, Coimbra Editora: Coimbra (2009),
262‑263.
185 Sánchez Calero, Artículo 13 cit., 276, referindo que o fundamento é semelhante ao do regime
do agravamento do risco, uma vez que há uma alteração das circunstâncias em que o contrato
foi celebrado.
186 Poças, O dever cit., 675.
187 Poças, O surto cit., 893. Cf. ainda Amaral, Contrato cit., 188, referindo que este regime assenta
ainda na boa‑fé.
12. Conclusões
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xão, que necessariamente a precede. Não deixa, contudo, de ser uma excelente
sinopse das principais ilações, as quais, dúvidas não haja, só podem ser decor‑
rentes de um longo e maturado processo de apuramento conceptual – sobre o
qual não podemos alongar-nos, de momento. Ou melhor, as conclusões apre‑
sentadas quanto ao conceito de relação obrigacional olvidam, na sua aparente
simplicidade, toda a discussão clássica existente quanto ao sentido e o objeto da
obrigação. Muito menos nesta explicação se esgota toda a linha argumentativa
que justifica, a nosso ver, a bondade da posição do Autor. A verdade é que o
tema é recorrente na doutrina, inclusive na estrangeira, e Larenz aborda-o neste
momento somente em réplica às críticas que foram dirigidas à sua proposta;
a qual se encontra – novamente – melhor densificada no respetivo manual.
Muito se discutiu sobre o conceito e estrutura da obrigação ou, enfim, da
relação obrigacional como um todo: nos primórdios da discussão, as doutri‑
nas personalistas (uma das quais famosamente defendida, p. ex., por Winds‑
cheid) invocavam que o objeto do vínculo seria um direito a um comporta-
mento, a uma conduta do devedor; outras, realistas, apelavam, ao invés, ao seu
património (aos bens, em concreto), através do qual o credor poderia sempre
obter a satisfação do seu direito, inclusive de forma coerciva. Não é possí‑
vel, em rigor, categorizar todos os subentendimentos reportados a cada um
destes dois, chamemos-lhes assim, macro-entendimentos, pelo menos pretensa‑
mente. Há zonas de sobreposição, em conflito positivo de abrangência, e isso
impede-nos entrar, de momento, em maior detalhe e de apresentar conclusões
perto de um qualquer enquadramento dicotómico de todas estas propostas.
Precisamente por isto não é, suspeitamos, possível de alcançar essa categori‑
zação absoluta, sem uma inflexão dos critérios distintivos e sem o abandono
do rigor técnico sempre exigível. Se aquela separação de águas foi precursora
dos termos da discussão, nem por isso impediu a tentativa de criação de pon‑
tes: surgiram, posteriormente, as teses mistas, qual cabeça bifronte de Jano, as
quais apostaram na combinação de ambos os aspetos, pessoais e patrimoniais,
em discussão; a mais famosa das quais foi, como é sabido, a da Schuld und Haf-
tung (dívida e responsabilidade). Acima de tudo – tal como foi exemplarmente
identificado, entre nós, por Menezes Cordeiro, no volume VI do Tratado de
Direito Civil –, existe um outro tipo de proposta (um quarto tipo, em con‑
creto, segundo a exposição aqui seguida), de destacar: segundo aquele, a obri‑
gação tem uma natureza verdadeiramente complexa, desprendida de propósitos
salomónicos, precisamente a maior crítica apontada às conceções anteriores.
A primeira proposta de Siber, explorada neste texto e refutada por Larenz
(cf., a propósito, a nota de rodapé n.º 17 deste estudo), é aperfeiçoada com
a remoção da natureza organicista da ideia (ponto crítico da analogia sobre a
qual assenta), substituída, por seu turno, pela cirúrgica referência à natureza
1
Apenas a primeira parte do segundo volume foi publicada em 1986. Para a revisão da segunda
parte, teríamos de esperar até 1994, após o falecimento de Larenz, no ano imediatamente anterior.
A alteração dessoutro volume seria feita pela mão de Claus-Wilhelm Canaris (v. Lehrbuch des Schul-
drechts, Vol. II, Besonderer Teil, Parte II, 13.ª ed., C.H.Beck: Munique, 1984, na nota prévia, V-VII).
2 V. a anotação deste A. à decisão do BGH, de 25 de abril de 1956 (NJW 1956, 1193-1194), embora
o termo já constasse da primeira edição do primeiro volume do seu manual de direito das obriga‑
ções, datado de 1953 (também com esta indicação, v. Canaris, Deutschsprachige Zivilrechtslehrer des
20. Jahrhunderts in Berichten ihrer Schüler, Vol. II, De Gruyter: Berlim, 2011, pp. 264-295, 291, nota
de rodapé 103).
3 Utilizada pela primeira vez – note-se que o próprio A. confessa isto na nota de rodapé 19 deste
estudo – na quinta edição do primeiro volume do seu manual de obrigações, com data de 1962.
4 Esta ideia havia sido desenvolvida pelo Autor em Wegweiser zu richterlicher Rechtsschöpfung. Eine recht-
smetbodologische Untersuchung, FS Nikish. Mohr: Tubinga (1958), pp. 276-305 (296, 297); cujo estudo
é inclusivamente assumido, na primeira nota deste artigo, como um dos sustentáculos da conceção
científico-teórica subjacente às suas observações.
5 Deutschsprachige Zivilrechtslehrer des 20. Jahrhunderts in Berichten ihrer Schüler, II, p. 289. A expressão
é atribuída a Dreier (Karl Larenz über seine Haltung im „Dritten Reich“, JZ 1993, 454-457; logo no
primeiro parágrafo).
* * *
* As considerações seguintes reproduzem a palestra inaugural dada pelo Autor a 31 de maio de 1961
na Universidade de Munique. A sua publicação, inicialmente não planeada, foi feita a pedido de
alguns ouvintes. Deixei a redação inalterada e apenas acrescentei algumas notas que, com uma única
excepção, são somente referências bibliográficas. Devido à concepção científico-teórica subjacente
às observações, posso referir em geral, para além do meu Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 1960, o
meu tratado Über den Wissenschaftscharakter der Rechtswissenschaft, Estudos comemorativos para Legaz
y Lacambra, Santiago de Compostela, Vol. I, 1960, p. 179.
Tendências de desenvolvimento da atual dogmática do Direito civil 175
I.
2 Die Flucht in die Generalklauseln, eine Gefahr für Recht und Staat, 1933.
na sua “aplicação” pelos tribunais, se torna mais específica de caso para caso, em
que a decisão individual, ou mais corretamente, uma série de decisões compa‑
ráveis, se torna uma fonte adicional de conhecimento para o conteúdo da norma no
decurso da interpretação. Isto, por sua vez, representa apenas a consequência
do facto de toda a interpretação jurídica “per se” ser, mesmo que para o próprio
intérprete não seja, desde logo o início de um desenvolvimento judicial do
Direito [Rechtsfortbildung].2
Assim, a jurisprudência atual ganhou um entendimento bem diferente do
funcionamento e do carácter das cláusulas gerais do de Hedemann. Não vemos
a cláusula geral simplesmente como uma autorização para o juiz decidir, no
sentido da doutrina do direito livre, de acordo com padrões puramente irra‑
cionais, como por exemplo valores pessoais ou o “sentido de justiça”. Dito
de outra forma: a tarefa da ciência, a possibilidade da utilização de métodos
racionais na aplicação do Direito, não termina onde começa o domínio das
cláusulas gerais. Quanto mais a jurisprudência avançou no desenvolvimento
do significado das cláusulas gerais através de decisões exemplares, mais se torna
proeminente o momento racional de comparar, distinguir, ponderar e reco‑
nhecer o que é comum, mesmo que a decisão final do caso individual, que
conclui a avaliação da ponderação, ainda retenha um momento irracional. A
margem de manobra restante é cada vez mais limitada por uma abordagem
metodicamente consciente – mesmo que este processo nunca chegue ao fim
em resultado da diferenciação infinita dos fenómenos da vida. No fundo, Hede-
mann não conhecia outro conselho contra a expansão das cláusulas gerais a não
ser recomendar ao juiz “que assumisse como seu dever ser extremamente frugal
na sua utilização”3. Como perigo das cláusulas gerais ele viu: amolecimento do
pensamento, incerteza jurídica e arbitrariedade dos juízes. Procuramos ultra‑
passar estes perigos, que sem dúvida existem, não repelindo as cláusulas gerais,
o que hoje já não é possível, mas pelo seu progressivo preenchimento de sen‑
tido, determinação ou, para usar novamente a expressão, cuja plenitude de
significado Engisch4 magistralmente analisou, pela sua concretização através da
jurisprudência e da ciência. Deste modo, o caminho da jurisprudência é o da
paulatina progressão de caso para caso, através do qual os pontos individuais de
um sistema de coordenadas são, por assim dizer, primeiramente definidos; o
caminho da ciência é o de trabalhar, decompor e condensar intelectualmente
o material fornecido pela jurisprudência. Ao fazê-lo, trata-se principalmente
2
Sobre esta relação entre a interpretação e o desenvolvimento judicial do Direito, cf. o meu Metho-
denlehre der Rechtswissenschaft, 1960, p. 273 e seguintes.
3 Idem, p. 76
4 Die Idee der Konkretisierung in Recht und Rechtswissenschaft unserer Zeit, 1953.
II.
6
Dingliche Anwartschaften, 1961
7
Die Verdinglichung obligatorischer Rechte, 1951.
8 Cf., sobre isto recentemente Simitis, AcP, vol. 159, 406, tal como a 5.ª ed. do meu Lehrbuch des
9 Sobre isto veja-se o meu Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. I, 5.ª ed., 1962, p. 33 e ss.; Raiser, Vertragsfunk-
tion und Vertragsfreiheit, Estudos comemorativos para a Conferência de Juristas Alemães, 1960, Vol. I,
p. 101, especialmente p. 123 e ss.; recentemente, Wieacker, Willenserklärung und sozialtypisches Verhalten,
Estudos comemorativos para o Tribunal Superior regional de Celle, Gottingen, 1961, p. 263 e ss.
Wandlungen des Deliktsrechts, Estudos comemorativos para a Conferência de Juristas Alemães, 1960,
Vol. II, p. 49 e ss.
10 Grundsatz und Norm in der richterlichen Fortbildung des Privatrechts, 1956.
11
Die Lehre von der ungerechtfertigten Bereicherung, 1934.
12
Estudos comemorativos para Rabel, 1954, Vol. I, p. 333; Estudos comemorativos para Lewald,
1953, p. 443; Estudos comemorativos para Boehmer, 1954, p. 145.
13 Stoll, AcP, Vol. 131, 114; Wolf, AcP, Vol. 153, 97.
14
Cf. o trabalhos mencionados na nota de rodapé anterior de Stoll e Wolf, bem como o meu Lehrbuch
des Schuldrechts, Vol. I, 5.ª ed., 1962, p. 279 e ss.
15 No seu [manual de] Direito das Obrigações, 2.ª ed., 1960, § 25.
16 Cfr. o meu Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. I, 5.ª ed., p. 19 e ss. Recentemente Ernst Wolf, [em]
Estudos comemorativos para H. Herrfahrdt, 1961, p. 199 e ss., objetou à minha conceptualização da
seguinte forma: a doutrina em vigor assume com razão que as relações prestacionais individuais (i.
e., o direito de crédito e o dever de prestar) decorreriam da relação obrigacional na qual se baseiam,
ou seja, seriam os seus efeitos legais. Como tal, não podem ser parcialmente idênticas a esta, nem a sua
soma, nem a estrutura composta por estas. A relação obrigacional também não é um “mero para‑
digma”, mas uma “real relação humana”. A réplica a isto é: a relação obrigacional como uma “relação
humana real”, em contraste com o paradigma das relações jurídicas, seria a “relação da vida” [Lebens-
verhältnis], a qual se apresenta como a execução real da conduta exigida pela relação obrigacional
(como “relação jurídica”). Evidentemente, pode-se formar também uma conceptualização social da
relação obrigacional que implique a factualidade de certa conduta; este conceito (sociológico-legal)
não é o conceito legal (conceito dogmático) em causa na relação obrigacional. Contudo, no que
diz respeito à expressão frequentemente ouvida, de que a relação obrigacional é a “fonte”, a “ori‑
gem” do crédito e do dever individuais que desta “derivam”, isto é apenas uma figura de expressão
que não resiste a uma crítica teorética-legal. A ordem jurídica associa numa “proposição jurídica”
[Rechtssatz] factos genéricos não escritos a uma determinada consequência legal igualmente genérica.
O sentido desta conexão ou atribuição é o de uma ordenação de vigência [Geltungsanordnungen] (cf.
o meu Methodenlehre der Rechtswissenschaft, p. 149 e ss.). Na base desta ordenação de vigência contida
em cada proposição jurídica, a consequência jurídica é despoletada, sempre que a previsão é realizada
por uma situação factual concreta, como uma relação jurídica “concreta” decisiva para esta situação,
i. e., vigora. Assim, a consequência legal de previsões legais tais como a de conclusão de um contrato
obrigacional, a prática de uma acção ilícita [unerlaubte Handlung], a ausência de cobertura legal para
um enriquecimento, é a formação de deveres legais e portanto de uma relação obrigacional, e a de
previsões legais tais como de modificação contratual, insolvência subsequente, mora, resolução ou
conversão ligam-se à modificação ou a cessação de uma relação obrigacional previamente estabelecida
(ou de uma obrigação individual). Todas estas consequências legais ocorrem precisamente por causa
da atribuição por uma norma legal no momento da ocorrência de previsões legais relevantes como
“aplicáveis” entre estas pessoas (para si especialmente relevantes), sem ser necessário a inserção de uma
causa intermédia, tal como Wolf quer que se considere “a relação obrigacional” no sentido da “relação
original” ou “fonte” dos direitos e dos deveres. Contudo, o facto de uma relação obrigacional já
estar concluída é frequentemente um elemento entre outros da previsão legal para se fundamentarem
outras consequências legais, como o § 278, por exemplo, demonstra. Isto leva à aparência enganosa
de que “a” relação obrigacional automaticamente gera novas consequências legais “por si só” através
de um processo de desenvolvimento similar ao de um organismo natural. Mas esta aparência engana.
Relações legais concretas, as quais são tanto créditos individuais, deveres de prestação e de conduta,
crédito individual, é uma entidade de ordem mais alta, i. e., uma estrutura mais
complexa.
A minha única preocupação de momento é a de demonstrar o valor que
este conceito estrutural de relação obrigacional, o qual tem sido trabalhado
na dogmática recente, tem para o domínio intelectual dos fenómenos. Vou
restringir-me novamente a alguns pontos de vista. Primeiramente, o conceito
torna possível considerar a identidade da relação obrigacional como uma tal estru‑
tura em mutação, incluindo quanto às pessoas envolvidas. Enquanto a dogmá‑
tica anterior apenas conhecia a transferência do crédito individual, uma assun‑
ção do dever concreto de prestação, a dogmática moderna também conhece a
transferência de toda a relação obrigacional, seja através de um negócio jurídico, de
uma assunção contratual [Vertragsübernahme] [*4], seja através de um facto suces‑
sório legal. A assunção contratual é agora reconhecida como uma disposição
do crédito distinta do negócio dispositivo, correspondente a uma reconhecida
necessidade do tráfego. Ela desempenha um papel extraordinário no Direito do
trabalho. Não foi por coincidência que Siber foi um dos primeiros a detetar a
possibilidade de uma assunção contratual.
Em segundo lugar, o conceito estrutural de relação obrigacional possibilita
compreender a função da denúncia como um meio de cessação de uma relação
obrigacional duradoura. A denúncia não extingue o crédito individual que
haja entretanto surgido; ela apenas impede a formação de novos créditos –
com exceção dos deveres de liquidação – no quadro desta relação obrigacional,
colocando um fim à sua continuação. Também no caso do dito aviso de ven‑
cimento do mútuo, é de facto não apenas um caso de obtenção de vencimento
do crédito do mútuo, mas o da cessação da relação obrigacional mutuária como
uma relação obrigacional duradoura que visa a transferência temporária – one‑
rosa ou não onerosa – de capital17.
tal como a “relação obrigacional num sentido geral” entendida como um todo, as quais se formam
em virtude da sua inerente referência significativa, não pertencem ao mundo dos seres vivos e nem
ao dos fenómenos corpóreos, mas ao das relações de vigência legais [rechtlichen Geltungsbeziehungen],
que por sua vez constituem uma componente do mundo das circunstâncias objetivas-espirituais.
Comparações com o mundo do corpo, e aqui novamente com os seres vivos naturais, devem ser
enganosas, assim que se quiser ver mais do que uma descrição pictórica. Correta na comparação da
relação obrigacional com um “organismo” é uma vez que as consequências legais individuais, com
base nos factos da criação da relação obrigacional de acordo com uma norma legal, que ocorrem em
parte imediatamente, em parte e em conexão com outros factos em sucessão cronológica, continuam
e expiram, não permanecem ao lado uns dos outros sem se relacionarem, mas são internamente rela‑
cionadas uns com os outros pelo propósito de toda a relação obrigacional (ou da maioria dos seus
propósitos), representam um todo em termos de significado. Para além disto, a comparação falha.
17 Cf. o meu Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. II, 4.ª ed., 1960, p. 158 e ss.
18
Cf., a propósito, o meu Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. I, 5.ª ed., 1962, p. 9 e 39.
19
Cf. o meu manual Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. I, 5.ª ed., 1962, p. 199 e ss.
20 Gernhuber utiliza esta expressão no seu tratado “Drittwirkungen des Schuldverhältnisses kraft Leistungs-
III.
[Notas da tradução]
[*1] Também foi proposta a tradução para apenas arrendamento (cf. Jayme/Neuss, Wörterbuch
Recht und Wirtschaft, Vol. II, 2.ª ed., C.H.Beck, Munique, 2013, p. 359). A diferença face à
locação (Mietvertrag), pelo menos uma das fundamentais, é a possibilidade de o locatário nes‑
toutro contrato (Pacht) fazer seus os frutos (cf. § 99 BGB) gerados pelo locado, por oposição ao
primeiro; aliás, isto corresponde a uma das obrigações principais do locador, para além da de con‑
ceder o gozo do locado em si. A propósito, confronte-se o disposto nos §§ 535 e 581 (1) BGB;
na doutrina v. Wolf/Eckert/Günter, Handbuch des gewerblichen Miet-, Pacht- und Leasingrechts:
Höchst- und obergerichtliche Rechtsprechung, 11.ª ed., RWS: Colónia (2017), bem como, expressa‑
mente, o Autor deste texto, Karl Larenz, em Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. II, Parte 1, Beson‑
derer Teil, 13.ª ed., C.H.Beck: Munique (1986), I, § 49, pp. 278-279, quando afirma «Von der
Miete unterscheidet sich die Pacht demnach dadurch, daß der Pächter nicht nur zum Gebrauch,
sondern auch und vornehmlich zum Fruchtgenuß berechtigt ist» [«O arrendamento difere, por‑
tanto, da locação usufrutuária na medida em que o locatário-usufrutuário não tem só o direito de usar,
mas também e principalmente o de fruir»; itálico nosso, segundo a tradução proposta]; cf., nos
manuais de referência, sem propósito exaustivo, também Fikentscher/Heinemann, Schuldrecht,
Allgemeiner und Besonderer Teil, 11.ª ed., De Gruyter: Berlim/Boston (2017), § 78, I, pp.
644-645, Dirk Looschelders, Schuldrecht, Besonderer Teil, 16.ª ed., Vahlen: Munique (2021),
p. 231, Brox/Walker, Besonderes Schuldrecht, 46.ª ed., C.H.Beck: Munique (2022), § 14, p. 277,
e, por fim, Schäfer, Schuldrecht. Besonderer Teil. Nomos: Baden-Baden (2021), § 6, p. 137.
[*2] Traduzimos para deveres acessórios o vocábulo Nebenpflichten (deveres laterais, em sentido
literal), em linha com a proposta inicial de Menezes Cordeiro (em Violação positiva do contrato
– Anotação ao Acordão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31 de Janeiro de 1980, Separata da Revista
da Ordem dos Advogados: Lisboa, 1982, maxime p. 132, notas de rodapé 8 e 10, desenvolvendo
a ideia indiciada em Direito das Obrigações, I, AAFDL: Lisboa, 1980, pp. 304-05, cujo enquadra‑
mento dogmático seria posteriormente aprofundado em Da Boa Fé no Direito Civil, maxime pp.
586 e ss.; todavia, nos Estudos em Homenagem a Claus-Wilhelm Canaris, o ilustre Professor fez
menção a um conceito próximo, note-se, ao de Nebenleistungspflichten, em Die Dogmatisierung des
Systemdenkens durch Treu und Glauben, FS Canaris (70.º aniversário), C.H.Beck: Munique, 2007,
pp. 857-869 (860-861); recentemente, v. o ilustre Professor em Tratado de Direito Civil. Vol. VI.
Direito das Obrigações, 3.ª ed., Almedina: Coimbra, 2019, p. 516, e respetiva nota 1729), a qual
merece, hoje, a adesão generalizada da nossa doutrina; neste sentido e por todos, com indicação de
outras propostas, v., também recentemente, Rui Ataíde, Direito das Obrigações. Vol. I. Introdu‑
ção. Conceito e características. Modalidades. Fontes das Obrigações, Gestlegal: Coimbra (2022),
p. 41 (nota de rodapé 26).
[*3] À letra, direitos conformativos. Em Portugal, os Gestaltungsrechten correspondem aos direitos
potestativos, pese embora algumas hesitações iniciais quanto a esta equivalência. A favor desta cor‑
respondência, v. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica. Vol. I. Sujeitos e Objeto,
Coimbra (1983), pp. 12-13; recentemente, David Festas, Breves considerações sobre poderes potes-
tativos, Código Civil – Livro do Cinquentenário. Livro I, Almedina: Coimbra (2019), pp. 301-
367 (302, 304 e 325; notas de rodapé 11 e 79), com um brilhante aprofundamento da doutrina
além-Reno. Sobre o conceito de direito potestativo, v., ainda, no seu exponencial máximo para
a doutrina nacional, sem propósito exaustivo, João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito
Civil, Vol. I, AAFDL: Lisboa (1978), 363 e ss., José de Oliveira Ascensão, Direito Civil. Teo-
ria Geral, Vol. III – Relações e Situações Jurídicas, Coimbra Editora: Coimbra (2002), maxime
pp. 76-77, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. I, 4.ª ed., Almedina:
Coimbra (2012), p. 895 e ss., Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil (com António
Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto), 5.ª ed., Gestlegal: Coimbra (2020), pp. 178-184, Luís A.
Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II. Fontes Conteúdo e Garantia da
Relação Jurídica, 3.ª ed., Universidade Católica Editora: Lisboa (2001), p. 552 e ss. (e respetiva
nota de rodapé 2 na p. 552), Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II,
Almedina: Coimbra (2002), p. 151, Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª
ed., Gestlegal: Coimbra (2020), 137 e ss., e Heinrich Horster, Nótula referente a alguns aspectos
pontuais dos direitos potestativos: motivada pela L. n.º 24/89, Revista de direito e economia, ano
15 (1989), pp. 347-357. Todavia, criticando o valor desta situação jurídica, a qual poderia ser
reconduzida a uma categoria das faculdades jurídicas, v. Luís Cabral de Moncada, Lições de
Direito Civil. Parte Geral, Atlântida: Coimbra (1931-1932), p. 56.
[*4] À letra, assunção do contrato (v., idem, o conceito paralelo de Vertragsübertragung, cessão do
contrato). A figura corresponde, embora não inteiramente, à nossa cessão da posição contratual (art.
424.º e ss. do nosso Código Civil). Atribuída a Siber (Die schuldrechtliche Vertragsfreiheit, Jherings
Jahrbücher für die Dogmatik des bürgerlichen Rechts, Vol. 70, 1921), a Vertragsübernahme não se
encontra regulada na parte geral do direito das obrigações no código civil alemão, contrariamente
à cessão de créditos (§§ 398 e ss. BGB; de fonte negocial, cumpre notar a cessão legal § 412 BGB
e judicial §§ 828 e ss. ZPO) e à assunção de dívida (§§ 414 e ss. BGB). Isto, em si, corresponde
a um aspeto lacunar, alvo de várias críticas (neste sentido, Fikentscher/Heinemann, Schul-
drecht, Allgemeiner und Besonderer Teil, 11.ª ed., De Gruyter: Berlim/Boston (2017), § 61, IV,
p. 445). Uma das principais críticas a este entendimento é a que o mesmo pode conduzir o
intérprete à errada – e, hoje, indefensável – conclusão de que a assunção do contrato corresponde
e se satisfaz com a simples cumulação de uma cessão de créditos e a correspetiva assunção de
dívida, relativa à contraprestação (assim decidiu o BGH, em 10 de novembro de 1960, quanto à
possibilidade de assunção de um contrato de fornecimento eletricidade, conquanto se processava,
assim entendeu o douto tribunal, na ausência da previsão legal expressa da figura, «eine Verbin‑
dung von Abtretung und Schuld übernähme» [uma combinação entre uma cessão e assunção de
dívida]; NJW 1961, 453-455). Nesta linha de argumentação, desconsiderar-se-ia – e aqui reside a
sua maior falha – toda a complexidade da posição de parte contratual (Vertragspartner) in totum, além
do simples crédito e débito de natureza principal: pense-se nas prestações secundárias, acessórias,
bem como nas garantias prestadas, as quais acrescem ao singelo direito de crédito e de débito no
fenómeno transmissivo, totalmente desconsideradas por aquela posição. Aliás, foi precisamente
este entendimento (do legislador), presentemente criticado, o que justificou a omissão da sua
consagração expressa no código civil alemão (assim, Larenz, Lehrbuch des Schhuldrechts, Vol. I.
Allgemeiner Teil, 14.ª ed., C.H.Beck: Munique, 1987, III § 35, p. 617). Sem prejuízo de não se
encontrar expressamente prevista no código civil alemão, a figura permeia no direito civil, num
conjunto de manifestações típicas, inclusive no próprio código civil, as quais há muito justifica‑
ram a sua autonomização, nomeadamente a transmissão (1) da posição do senhorio no contrato
de arrendamento para o terceiro que haja adquirido o locado (§ 566 BGB) e (2) da posição de
empregador que haja adquirido um negócio, relativamente aos respetivos trabalhadores (§ 613a
BGB); sobre outras figuras, v. Schlechtriem/Schmidt-Kessel (Schuldrecht Allgemeiner Teil, 6.ª
ed., Mohr Siebeck: Tubinga, 2005, pp. 376). Insiste-se: tanto a fenomenologia legal, incontor‑
nável e não subsumível aos institutos existentes (os quais visam, como vimos, a singularidade
do crédito e do débito), como as novas exigências do tráfego jurídico, assumem-se a razão
fundamental que conduziu à autonomização dogmática da assunção do contrato no direito alemão.
Sem prejuízo, a figura não se confunde, nem poderia, note-se, com a Vertragsbeitritt, acessão no
contrato. Nesta, por seu turno, a nova parte fica vinculada juntamente com uma das anteriores.
A principal diferença entre as figuras é esta, portanto: na acessão no contrato os antigos contraentes
não são afastados, não há uma transferência do débito ou do crédito em singelo. Esta permanência
dos anteriores contraentes determina que a esta acessão pode consubstanciar, do lado passivo,
uma assunção de dívida solidária ou parciária, ou, do lado ativo, uma acessão no crédito também
de tipo solidária ou não; embora haja aqui a necessidade de reunir o consentimento de todas
as partes envolvidas (assim, Fikentscher/Heinemann, ibidem). Esta última figura (da acessão no
crédito) merecia, aliás, entre nós, um estudo aprofundado. Sobre o conceito inicial, da assunção do
contrato (Vertragsübernahme) no direito alemão, além dos AA. já mencionados, v., por todos, numa
explicação clara, as obras mais recentes de Brox/Walker, Allgemeines Schuldrecht, 45.ª ed.,
C.H.Beck: Munique (2021), pp. 445-446, Lange, Schuldrecht AT, 6.ª ed., C.H.Beck: Munique
(2021), pp. 66-67, e de Medicus/Lorenz, Schuldrecht I, Allgemeiner Teil, 22.ª ed., C.H.Beck:
Munique (2021), p. 358.