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Cantos do mundo
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E-book170 páginas2 horas

Cantos do mundo

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Sobre este e-book

Depois de Retrato desnatural, um livro que mescla poemas, contos, crônicas e outras formas textuais, Evando Nascimento retorna ao universo da experimentação e lança a coletânea de contos CANTOS DO MUNDO. Um livro instigante e provocativo, dividido em 3 partes: climas e paisagens; bestiário e cantos do mundo. Com forte teor autobiográfico, traz, ainda, textos que se desdobram em histórias de amor, separação, cartas fictícias, elucubrações filosóficas.

CANTOS DO MUNDO propõe a discussão sobre elementos contemporâneos: o esfacelamento da perspectiva de futuro, os vínculos sociais e afetivos frágeis, a hipervalorização do consumo, a fragmentação do sujeito. Evando nos brinda com uma sucessão de viagens, cores, cheiros, sentimentos. Os quatro cantos de um mundo muito grande onde a existência é um barco sem rumo, sempre em movimento.
IdiomaPortuguês
EditoraRecord
Data de lançamento12 de set. de 2011
ISBN9788501096081
Cantos do mundo

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    Cantos do mundo - Evando Nascimento

    Aos leitores, verdadeiros proprietários de

    qualquer coisa publicada, pertence

    naturalmente este livro.

    Tudo gira em torno de rostos,

    coisas, animais e nomes

    — reais ou imaginários.

    SUMÁRIO

    I. CLIMAS, PAISAGENS

    Para Elisa

    Vida de aquário

    Leilão

    Tigres tigres

    Mata

    Arte nova

    II. BESTIÁRIO

    Sopro

    O último show (Um testemunho)

    Edens

    O oco

    Na sepultura (Pós-escrito)

    Políptico animal

    Arquipélagos (Através)

    III. CANTOS DO MUNDO

    Candomblé Lisboa

    O dia em que Walter Benjamin daria aulas na USP

    Grua

    Obsessão

    À espera (Warum? Warum?)

    E se comêssemos o piloto?

    I. CLIMAS, PAISAGENS

    PARA ELISA

    Para Francisco Bosco

    Todos já tinham recolhido suas pranchas, os últimos veículos zarparam firme em direção à terra, algumas luzes acendiam nas casas do Recreio. Não era a primeira vez que ficava sozinha, apreciava aquele recolhimento, agora que maio tramava suas luzes e os ares daquelas paragens estavam cada vez mais distantes do calor de janeiro, fevereiro. O outono tropical era sua estação preferida, quando as tardes e manhãs raiavam azuis, mas nada lembrava os eflúvios do estio. Aí se sentia mais peixe do que nunca — há quanto tempo, desconhecia.

    Entre as primeiras recordações de infância, estava a miniprancha que o pai lhe dera para brincar de bodyboard no Leblon, ele, o campeão de natação, carregado de medalhas e orgulho, mas que se fora cedo, quando ela ainda despontava aos onze anos. Conviveram tempo suficiente para ela conhecer a masculinidade em sua plenitude, eram companheiros de grandes aventuras, tal pai, qual filha. Aonde quer que fosse, o pai a levava, como bichinho de estimação, mesmo por vezes ela se via no vestiário masculino, como em casa. Era o filho que ele não conseguira ter, sua infiel cria. Os amigos do pai se acostumaram, nem mais a tinham como menina, porém como um dos seus em miniatura. E ela aceitava o dúbio papel, inclinada que era ao imaginário hermafroditismo.

    Até que o acaso, servo cruel do destino, partiu o fio de sua existência, ou antes, da do pai. Rodavam de moto a toda velocidade, quando numa curva, do nada, um veículo desproporcional os atingiu em cheio, lançando-os metros para trás. O motorista fugiu, o corpo do pai protegeu o seu, que nada sofreu, somente leves ferimentos. Não teve tempo de ver qualquer outra coisa, desmaiou quem sabe de susto, e já era a sirene da ambulância tocando, a polícia anotando o sinistro, os moradores do local comentando a morte de alguém. Nem bem veio à consciência e a notícia da perda a invadiu por inteiro, geleira em areia quente; não havia dúvida, o pai partira, a vida partira, ela já se despedia da infância bem antes da hora, sem volta possível. Era o início do infindo adeus. Daddy is dead, para sempre. Fim de partida.

    Nos anos seguintes, aqueles minutos desfilariam em sua mente, filme incontrolável, em duas sequências: numa primeira o pai sorria e a acariciava com a viril doçura habitual; na segunda, após breve interrupção, a sala às escuras, já eram dois corpos rolando no acostamento, entre pedras e mato, mato e mato, próximo à ribanceira, bem à beira. Chorava. A mãe se casou novamente, um ano depois, com homem mais jovem, que queria muito bem a ambas. Mas ela, a linda Elisa, é que tinha dificuldade de substituir o retrato do pai por outro, permanecia como esposa fiel, cujo marido todavia.

    Cresceu para as ondas, integrou-se a um grupo frequentador da Prainha, em que era a única garota. Gostava daquilo, sentia-se muito à vontade entre rapazes, e estes a respeitavam como um dos seus, quase não a viam mais como mulher. Só teve um breve namoro com um deles, quando acabou ficaram amigos, e ninguém mais ousou se aproximar daquele ser selvagem, que a cada dia se esculpia entre concha e anêmona, cavalo-marinho e água-viva. A certa luz reflexa era dotada de incrível feminilidade, belíssima com seus contornos delicados, os pelos dourados ao sol, o castanho esbranquiçado dos cabelos maltratados. Contudo, o mau-trato combinava com ela, dando-lhe toda a singularidade que faltava decerto a outras meninas de sua idade, frequentadoras de shoppings.

    Era por não usar cremes, nem vestir as roupas da moda, que sua esbelteza realçava acima da comunidade insípida das outras adolescentes. Digamos que ela fazia tudo para destratar sua beleza, a qual por isso mesmo retornava mais exuberante, como uma vaga que os rochedos tentam reter e que rebenta mais acima das pedras, inundando as escarpas e amolecendo o mundo lítico. Essa era ela, a formosura incontrolável que poderia se perder por entre areia, pedra e sal, mas que se mantinha viva, à flor d’água, somente para nossos deslumbrados olhos. E seus próprios olhos cambiavam com a cor inconstante do mar, pois quando a manhã reluzia esverdeada numa praia desconhecida, lá se viam dois pares de esmeraldas no fundo de pequenas grutas; porém, se o dia e as águas pendiam para azul, lilás ou cinza, o colorido da íris se fundia com o da massa aquosa, onde ela submergia e depois voltava, galopando ondas e espumas. A líquida amazona.

    Ela era o mar, o mar era ela. Ela e o mar, como filha e pai, ela, a deserdada de afeto, já que a mãe biológica nunca a amara de fato, pois também aguardara um menino. Há sempre esses delírios familiares, pais que esperam filhos ou filhas, e filhas ou filhos que hipoteticamente nascem em lugar de outro ou de outra. Ou ainda, filhos e filhas que sonham ter outros pais. Ela só sonhava, quase toda noite, com o pai que partira, o nadador ímpar, atleta de uma técnica tão refinada que em breve se difundiria pelo continente e ganharia o mundo. Mas a brevidade da vida encurtou a grandiosidade da arte, naquele dia partido. No máximo, conseguira deixar uma pequena e heroica placa no clube a que pertencia.

    Talvez estivesse esperando alguém como ele, e ninguém resumia os dotes paternos, de alegria, disciplina, tenacidade, além de supertalento para a água e para a sofreguidão da vida. Como não podia tê-lo, nem reencontrá-lo, em costa alguma, nunca mais, passou aos poucos a imitá-lo. Cortava os cabelos bem curtos, vestia apenas calças, até a andadura tinha algo de másculo, o que combinava perfeitamente com sua dourada juventude. Os rapazes falavam as coisas mais terríveis em sua frente, típicas da espécie e da idade, e ela ouvia serena, como se nada lhe tocasse, nenhuma grosseria a estremecia. Aquele era seu mundo, o universo dos homens, o único que lhe lembrava todo o tempo o pai, apagando a face indiferente da mãe.

    Sua técnica de surfar era reverenciada pelos colegas, por pouco não competia com eles nos torneios, mas finalmente ainda se rendia à condição feminina, antiga expressão que ainda ecoava naquele final dos anos 1980 — pouco depois, o mundo viria abaixo, e uma nova página da história principiaria. Era a garota que todos viam como menino do Rio, muito séria e arredia, mas também capaz das maiores gentilezas, quando a ocasião comparecia. Todos a tinham como gente boa, coração dissoluto, libérrimo, apesar da dor, que só ela sabia.

    Assim, a tarde se convertia em noite ali na Prainha. Todos tinham ido embora, mas ela preferira ficar, como de hábito, amava perceber o escurecimento da água como substância indefinida que lhe penetrava a pele, feição de antimatéria. Ela era o mar, mais uma vez, era ela, apenas ela, Elisa, deslizando na superfície lisa, lisa, lisa, até montar no crespo das ondas e perfurar. O mar cobria imensidão, ela, minúsculo fragmento. O crepúsculo era agora só uma cinta vermelha no horizonte, cindindo seus olhos em duas metades, inferior e superior, sobre negro azul. A lua emergia gigante no outro extremo, a temperatura estava perfeita, o mundo sem conflitos, os peixes seus irmãos, as últimas aves, as estrelas, nada destoava do que ela, absoluta sereia, sentia.

    Eis senão quando, viu as duas cabeças que apontavam na extremidade sul do litoral, por entre as pedras, vindas do Abricó. Respirou fundo, inalando a intensa maresia; não era a primeira vez que acontecia, passariam e depois ela pegaria suas coisas, para ir embora. Os pequenos pontos ganharam corpo e se aproximaram da mochila que deixara na areia, o carro escondido entre arbustos. Esses tais não fizeram como tantos outros, noutros dias. Pararam e esperaram, sem pressa alguma. A noite afinal caiu inteira e nem a lua conseguia negar que era no semibreu que as coisas se mexiam. Lá estava ela em sua prancha, aguardando que fossem embora os invasores da hora que era somente sua, no fim do dia. O mundo lhe pertencia, como ignoravam?

    Poderia nadar até um ponto mais acima, em rota de escape, mas sabia que eles a seguiriam. Até que não aguentou mais, a resistência chegara ao limite, foi se aproximando da areia, arrastando a cauda e agitando levemente os braços, como quem indaga. Não tinha como voltar, o mar se fechara a suas costas, seguia o destino como quem vai ao cadafalso. Não gritou, nada implorou, nem contestou. Não. Fechou os olhos, fingindo dormir eras, deixou os astros girarem, ouviu cada onda rebentar, e era no peito que a coisa remoía, resfolegante; eram jovens igual a ela, mas pouco gentis, nenhuma galanteria. Quando tudo acabou, não quis correr para o carro, pedir ajuda, caçar os agressores. Foi caminhando lentamente, sentou-se no banco, ligou o rádio, ouviu a música e se afogou acima das estrelas. Por que eu? Repetia, repetia, repetia. A brisa levava as palavras vazias.

    No dia seguinte, narrou aos

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