Um Homem Livre, Uma Cidade Feliz

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lorena galery

Série: Pequenas paisagens domésticas


Fotografia digital, 2011
brandão, c. a. l. um homem livre, uma cidade feliz

UM HOMEM LIVRE,
UMA CIDADE FELIZ
carlos antônio leite brandão *

resumo A cidade surge devido à fragilidade e à diversidade dos seres humanos, como apontado pelo humanista Leon
Battista Alberti (1404-1472). A partir desse princípio, este artigo discute a liberdade e a felicidade que ela ajuda a construir e
critica o modo contemporâneo de pensá-la e concebê-la.

palavras-chave O ser humano e a cidade. Cidade e felicidade. Cidade e liberdade.

A FREE MAN, A HAPPY CITY


abstract The fragility and the diversity of the human being is the origin of the city, like the humanist Leon Battista Alberti
(1404-1472) supposes. From this point, this paper discuss the freedom and the felicity that the city provides in order to cons-
truct and criticizes the way that the contemporary world thinks and conceives it.

keywords The human being and the city. City and happiness. City and freedom.

* Professor Associado de História e Teoria da Arquitetura, da Cidade e da Arte na Escola de Arquitetura da Universidade
Federal de Minas Gerais – UFMG (Brasil). Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
CNPq. E-mail: <[email protected]>.

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Alguns consideraram a água e o fogo estarem na origem do desenvolvimento das sociedades


humanas. Eu me persuadi que os tetos e as paredes, por sua conveniência e necessidade, são,
indubitavelmente, as causas mais importantes e eficazes para reunir os homens e os
1. “Nobis vero tecte parie- manter juntos. (ALBERTI, 1966) 1
tisque utilitatem atque ne-
cessitatem spectantibus, ad
homines conciliandos atque

E
uma continendos majorem
in modum valuisse”. ssas são palavras que abrem um dos mais importantes tratados de arquitetura
e urbanismo da história: o De re aedificatoria, de Leon Battista Alberti (1404-
1472). Pouquíssimos autores investigaram o sentido da arte de construir edifícios e
cidades como o fez Alberti, e esta é a maior grandeza deste tratado. O mesmo autor
expõe em outras obras sua concepção acerca do ser humano que empreende tais
construções. Em uma carta ao seu amigo Paolo Codagnello, de 1437, ele escreve que
a condição dos mortais é de “exílio, pobreza, perigos, enfermidades, ignomínias e
cárcere”, subordinada a uma fortuna quase sempre adversa (ALBERTI, 1843-1849,
t. V, p. 253-265). No Theogenius, Alberti escreve sermos um “animal inquieto, muito
impaciente e que nunca se satisfaz” (ALBERTI, 1966b, v. II, p. 92-93). Essa arro-
gância e falta de medida intrínseca ao ser humano faz com que a natureza seja fre-
quentemente obrigada a se rebelar contra ele e a castigá-lo e deprimi-lo.
Essas considerações foram pronunciadas há quase seis séculos atrás, quando
as cidades ainda estavam em processo de reinvenção, após o feudalismo e a Idade
Média. Voltarei a isto mais à frente. Por ora, o que me interessa sublinhar aqui é a
“razão antropológica” da cidade, aquilo que nos leva a fundá-la e reunir-nos nela.
A palavra “cidade” incorpora duas dimensões, a polis e a urbs. Por polis (grego) ou
civitas (latim) a cidade é entendida como a reunião das pessoas num agrupamento
coletivo, em torno de um Bem comum e de uma origem, um presente e um destino
que se quer compartilhados. Urbs é o termo que usamos para designar o espaço e
os edifícios que construímos para dar lugar a essa reunião. Construímos a cidade e
sua infraestrutura como um local para encontrarmo-nos com os outros e para cons-
truirmos a nós mesmos, a nossa liberdade e a nossa felicidade.

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Temos dois entendimentos de liberdade: um, de origem anglo-saxônica e co-


nhecido como “liberdade negativa”, entende a liberdade como não constrangimen-
to de nossas ações e nossos desejos. Outro, de matriz renascentista, a “liberdade
positiva”, permeia a tradição italiana e a francesa e entende liberdade como o co-
nhecimento e a realização de potencialidades individuais e coletivas só possíveis
mediante a convivência, o encontro e o diálogo com o Outro. Esse é o sentido que
se encontra em um provérbio alemão do século XII, quando as cidades estavam se
refundando, após o período dos feudos, conventos e fortalezas aos quais os homens
estavam ligados por necessidade de proteção e segurança e por uma economia qua-
se que totalmente agrária: “o ar das cidades liberta!”
É este último sentido de liberdade o que está no cerne da reinvenção da cidade
e que justifica a epígrafe de Alberti. Enquanto indivíduos isolados, como nos feu-
dos medievais ou nos condomínios fechados do homem solipsista contemporâneo,
somos, no fundo, frágeis e condenados a reproduzir sempre as mesmas coisas e
a nós mesmos. Só reunindo-nos nas cidades podemos compensar a fragilidade de
nossa condição original, trocar experiências, habilidades, saberes, serviços e ideias,
suprir nossas carências e cultivar nossas possibilidades e potencialidades, como
a de falar numa conferência na qual outros podem nos ouvir, escrever um livro
ou produzir um quadro que os outros apreciam, explorar nossas competências
de engenheiro e nossas habilidades técnicas, gerenciais ou, até mesmo, psicoló-
gicas e afetivas. A Galeria do Ouvidor e o Mercado Central em Belo Horizonte,
por exemplo, com sua miríade de profissões que vão desde relojoeiro, entalhador,
restaurador de cadeiras de palhinha, açougueiro, vendedor de cereais, manicure,
cabeleireiro, consertador de brinquedos e costureiras, oferecem-nos um leque de
possibilidades para construir nossos caminhos, nossa vida e nossas profissões. Ne-
les, encontramos a diversidade da vida, de saberes e de sabores. Por isso, o mer-
cado, a praça, a loggia e a universidade são locais simbólicos da cidade: neles nos
encontramos com o Outro, com o diverso que nos completa, nos educa e nos dá
dimensões da vida, ideias, relatos e experiências que compartilhamos em conjun-
to, que nos abrem novas possibilidades e que são capazes de compensar aquele
isolamento e aquela fragilidade de nossa condição originária. Num shopping, num

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clube, num condomínio ou numa “tribo”, costumamos nos encontrar apenas com os
iguais, com os que são os semelhantes a nós. É o encontro, o diálogo com os outros e
a troca de saberes, ideias, experiências, mercadorias e serviços que nos enriquecem e
que nos ajudam a construir nós mesmos.

Construir nós mesmos significa que não estamos prontos, que precisamos
construir-nos, construir a nossa vida e a nossa própria humanidade, construir o
“humano do homem”. Humanismo é isso: construir o humano do homem, o vir
virtutis, como diz Cícero. Esse é o trabalho da cultura, uma cultura que nos liberta
da natureza a que nascemos aferrados e nos projeta no horizonte do que somos, do
que fomos e, sobretudo, do que podemos ser, individual e coletivamente. O trabalho
da cultura é cultivar isso, o que exige projeto e exercício, tal como um ofício requer
o seu aprendizado lento, o seu laboratório e o seu ateliê. A cidade é o local da cultura
e o ateliê da universalidade e do aprendizado do humano.
Portanto, a cidade surge da nossa fragilidade original, a qual é convertida em
força mediante o encontro com o Outro, com o que é diverso de nós. Uma cidade é
mais rica quanto mais possibilidades e diversidade ela nos oferece, sobretudo se so-
mos jovens e queremos encontrar um caminho na vida que nos torne livres, como

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fez o servo feudal que escapou da corveia e atravessou o muro para alcançar a “liber-
dade positiva” e o encontro que a cidade lhe permitia. Por isso, diz Alberti, as pare-
des e os tetos são os instrumentos fundamentais para reunir os homens e mantê-los
juntos. Sem eles, não há como encontrar, conversar, trocar experiências e construir.
Construir e manter tetos, paredes, tubulações, esgotos, linhas de transmissão, pra-
ças e ruas é, simultaneamente, construir e
preservar nós mesmos. Todo projeto, seja
um projeto de arquitetura, de
distribuição de águas pela cidade
ou de educação, é uma oportuni-
dade por meio da qual construímos
uma pequena comunidade em tor-
no dele e elaboramos uma vida
em comum. O projeto não se
legitima apenas para providenciar um re-
sultado final, mas também para oferecer a oportunidade de in-
teragirmos e trocar experiências, saberes e pontos de vista sobre o bem comum que
a cidade deve realizar. Esses outros com os quais nos encontramos não são apenas
os vivos e os presentes na festa da cidade, mas também aqueles que nos procede-
ram e aqueles que nos sucederão. A cidade dialoga e se pensa também diante da
tradição que ela recebe e da tradição que ela funda. Ela, como diz Lewis Munford
em A cidade na história, é o lugar do acúmulo da vida, da experiência e de toda uma
sucessão de gerações que deixaram nela o seu trabalho e que permitiram que nos
encontrássemos aqui e agora, sob os tetos e as paredes que elas aprenderam lenta-
mente a construir e a fazer atravessar o tempo. Essa acumulação deságua naquilo
que deixamos para aqueles que nos sucederão e dos quais devemos, desde já, cui-
dar em nossos projetos e intervenções. Nossos filhos e netos, mesmo depois que
já tivermos ido, conversarão conosco por meio dos tetos, paredes, praças e águas
que lhes deixaremos para conviver e beber. Uma cidade não se faz em curto prazo
e não se volta para satisfazer apenas os desejos imediatos. Ela é uma res publica, ou
seja, um bem comum que deve resistir no tempo. Nenhuma cidade se faz como um
acampamento ou rancho, por mais rico ou pobre que seja, o qual se ergue apenas

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para atender a um propósito de curto prazo, como o de dar repouso ao gado
ou investigar os arredores para tentar encontrar riquezas minerais. Vila Rica,
atual Ouro Preto, só se tornou cidade quando as pessoas viram que poderiam
permanecer nela por muito tempo e legá-la como o melhor habitat possível
para os seus filhos e netos.

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Tais considerações conflitam em


vários aspectos com uma ideologia
que vige na edificação do homem e das
cidades contemporâneas, as quais se
concebem, muitas vezes, como o lugar
de espetáculos e eventos marcados no
calendário mundial da mídia e da in-
dústria do turismo, pensadas apenas
como lugar de diversões e de prazeres,
como Las Vegas, como as dreamlands
contemporâneas que transportam a
Disneylândia para as cidades atuais
do Oriente Médio ou da Ásia, como as
intervenções urbanas pensadas exclu-
sivamente para olimpíadas e copas do
mundo e que retalham as cidades em
vários monumentos e edificações feitas
de forma rápida e sem coesão entre si
ou ainda como as cidades concebidas
como paraísos de consumo e direcio-
nadas apenas para satisfazerem um
gozo e um consumo imediatos. Nada
disso faz justiça à liberdade e à educa-
ção do “humano do homem” para as
quais as cidades foram inventadas. As
cidades foram a maior invenção do ho-
mem ocidental e nasceram no século
XII, juntamente com as universidades,
como o local do diálogo, do encontro
e da troca. Elas não existiram sempre
e, enquanto polis e urbs, elas podem
estar em processo de desinvenção. Os

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vários condomínios fechados, a multiplicação das festas restritas e patrocinadas


pela esfera particular em detrimento da festa cívica e dos locais de encontro pro-
movidos pelo mundo público, a divisão da sociedade em tribos e gangues de toda
espécie e o predomínio da ideologia da segurança sobre a liberdade podem ser sin-
tomas disso. Quando as cidades foram inventadas,
elas erguiam muros para proteger aqueles que ne-
las vinham construir sua vida e sua liberdade.
Num mundo onde todas as fronteiras, até as
da intimidade, parecem abolidas, tais muros
externos à cidade foram derrubados, mas deram
origem a vários muros sociais, econômicos e físicos
que se multiplicaram no interior de cada uma delas.
Não se trata mais de construir uma identidade a
partir do encontro com o que é diverso de nós,
mas com aqueles que são iguais a nós e que seleciona-
mos em nossas comunidades condominiais ou nas comunidades virtuais em que
se sucedem na internet.
Cobra-se da cidade que ela satisfaça nossos desejos privados e nossas necessida-
des de consumo mais do que nos eduque a ser aquilo que deveríamos ser, que desen-
volva nossas potencialidades e que amplie nossas experiências e possibilidades de
vida, seja enquanto indivíduos, seja enquanto res publica. Cercados por fronteiras de
todas as espécies, os edifícios não conversam mais uns com os outros, como vemos
no bairro Belvedere, a contrapelo das belas lições de diálogos físicos que temos em
Belo Horizonte, como é o caso do SULACAP/SULAMERICA, situado na esquina da
Avenida Afonso Pena com a Rua da Bahia. A exigência de atendimento ao gozo ime-
diato e à satisfação particular de indivíduos e comunidades restritas impede-nos de
pensar a longo prazo e de construir um bem comum que permaneça e dure. Não se
trata de um problema dos administradores da cidade, mas de todo um pensamento
da cidade que a vê como local do gozo apenas, e não da construção e da educação do
bem comum. Creio estarmos numa época de refeudalização soft, com predomínio
das ideias de afastamento da cidade em vez de inclusão nela, e é preciso que sai-
bamos se é isto mesmo o que queremos ou não, se é esta a nossa decisão ou não.

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Essa refeudalização, que nos conduz a uma espécie de barbárie cultural e tecnoló-
gica, assenta-se numa concepção antropológica bem diversa daquela albertiana: a
de que o indivíduo é autossuficiente, tem uma identidade que não passa por sua
interação com os outros (ao contrário, o diverso parece dever ser anulado) e é capaz
de ser feliz sozinho a partir do gozo e da mercadoria que ele adquire. Essa ideologia
permeia até mesmo suas relações com os amigos e com aqueles ou aquelas que diz
amar, mas que na verdade são considerados apenas como objetos a serem consumi-
dos ou como instrumentos para realização do próprio gozo. Esse gozo é efêmero e
insatisfatório. Por isso, ao começarmos este texto apontando a fragilidade de nossa
condição original, contrariamos justamente esta ideologia do “super-homem”, ter-
mo que peço licença a Nietzsche para utilizar aqui. Esse “super-homem” não precisa
da cidade e dos outros, até que lhe falte a água, caia-lhe a rede de energia ou surja
uma epidemia em escala mundial e da qual ele não é incólume em seu nicho cerca-
do de proteções de toda espécie.
O maior ornamento da cidade é o cidadão, e não os eventos, espetáculos e mo-
numentos que ela promove. Esse cidadão não é o espectador ou o consumidor da
cidade, mas o seu autor e para quem ela deve se dirigir. Seu poder de participação,
contudo, diminui cada dia, entre outras coisas devido ao crescimento exagerado de
cidades que incham sem limites e sem projeto. Um topos comum na urbanística
era o tamanho da cidade e o número de habitantes. Esse número, como em Platão,
Rousseau ou Lewis Munford era limitado porque ele deveria ater-se a uma dimen-
são na qual cada cidadão pudesse ter voz ativa na construção da cidade e nela ver a
si e à sua obra. Numa cidade fragmentada em grupos e habitada por milhões de pes-
soas cada vez menos interessadas no destino dela, mas apenas em consumi-la, essa
participação e reconhecimento ativos tornam-se cada vez mais remotos. Daí a neces-
sidade de pensarmos nossos grandes aglomerados urbanos a partir da construção
de diversas centralidades e da elaboração de uma nova geopolítica que os pense
como reuniões de várias cidades menores. Daí também a importância de se provi-
denciarem mecanismos de transporte e bens comuns que permitam uma melhor
distribuição populacional e uma geopolítica regional e nacional mais equilibrada.

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Cidade e felicidade

P recisamos da cidade porque somos frágeis, incompletos, precários e mortais.


Seres do desejo, fundamos cidades – e mercados, praças e universidades
que nelas colocamos – para trocarmos experiências, saberes, memórias, compe-
tências, produtos e afetos capazes de compensarem a fragilidade da nossa nature-
za antropológica e da nossa condição moderna. Estudamos e praticamos filosofia,
artes, ciências e técnicas também por essa razão. Por meio disso elaboramos, entre
outras coisas, uma sabedoria mediante a qual tentamos desvelar o núcleo e as
potencialidades de nossa vida e reconhecer a nossa “verdade”. Em grego, verdade
é aletheia, desvelamento do que se encontra oculto e espera ser “re-presentado”
ou “presentificado”. A verdade é “produção da verdade”, o ato de, mediante nos-
sos saberes, nossas ações e nossas produções colocar essa verdade à nossa frente,
construir aquilo de que somos capazes e construirmos a nós mesmos. Produzir a
verdade é produzir-se a si próprio e fazer dela o ponto de partida com o qual cons-
truímos nosso mundo, nossos objetos, nossas casas, nossas praças, nossas ruas e
nós mesmos.
Não somos prontos e acabados, somos um “pro-jeto”, um “vir-a-ser”, um da-
sein, como diz o filósofo alemão M. Heidegger. O que tentamos alcançar nesse
“projeto”, com todos os desdobramentos e atividades que ele implica, é a felici-
dade. Tudo o que fazemos tem como objetivo sermos felizes, ao final das contas.
De que adianta trabalharmos, estudarmos, construir nossas casas e cidades, fazer
arte ou filosofia se não para buscar a felicidade que nos falta? Mas essa “felicidade
existencial” não é a mesma que obteríamos ingerindo uma pílula da felicidade ou
uma droga, divertindo-nos na Disneylândia e imaginando-nos na Cocanha, uma
região paradisíaca do imaginário medieval, ou em qualquer outro tipo de país e
de paisagem onírica ou virtual. Esses territórios carecem da verdade, da polis e da
urbanidade dentro das quais construímos e reconhecemos a nós mesmos median-
te o estabelecimento de relações e trocas com os outros com base na verdade e na
integridade. A felicidade de que falamos e que a cidade articula, portanto, diferen-
cia-se por emoldurar-se pela verdade. Habitar o mundo, relacionar-nos conosco
mesmos e com os outros e desenvolver nossos costumes e nosso ethos (familiar,

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profissional, urbano e mundial) sob a norma da verdade é o que alicerça as cons-


truções, as produções e as ações capazes de nos educar e nos conferir identidade
e integridade. O trabalho do engenheiro, do sanitarista, do intelectual, do arqui-
teto, do topógrafo ou do administrador dedica-se a fazer-nos habitar de um modo
melhor e produzir uma vida melhor e um bem-estar que sejam verdadeiros. Essa
verdade está presente na tradição, no contexto, na conveniência a um determinado
modo de viver e de habitar próprio a uma determinada cultura e que não é global,
midiático ou turístico. Em vez das dreamlands e das cidades dos espetáculos, dos
museus, dos monumentos e das falsas alegrias dos eventos e dos calendários tu-
rísticos, devemos optar, antes, pela verdade e pela honestas, pois é essa experiência 2. “Aqui se contém o
que os gregos chamam de
da verdade o que nos transforma, nos congrega e nos torna melhores. Não mentir πρέπον, e que em latim po-

e não se mentir é a regra da engenharia, da arquitetura e do urbanismo, o critério demos denominar decorum.
Este decoro é de tal natureza
no qual pautar nossos projetos, nossas intervenções, nossa escolha de materiais e que não pode ser separado
da honestidade; pois tudo que
nossa interpretação dos contextos. Essa qualidade tem um nome: “decoro”, prépon é decente é também honesto,
em grego, ou seja, ser próprio a alguém, a alguma coisa, a algum lugar.2 Ter decoro e tudo o que é honesto é
igualmente decoroso. Mas
é não criar uma mentira, como a de uma felicidade destinada ao malogro e apenas qual seja a diferença entre o
honesto e o decente, é mais
a ser consumida. A alegria verdadeira não é a que nos oferecem para consumir ou
fácil compreender do que
para comprar, mas a que construímos. Não é a da felicidade do simulacro, mas a explicar, uma vez que para
conhecer que algo seja decente
da felicidade em ato e que exige nosso corpo, nossa ação e nossa história para ser é preciso primeiro que seja
precedido pela honestidade.
alcançada, tal como a amizade também exige para ser construída.
[...] E, assim, este decoro de
Nossa felicidade maior é conquistar-nos a nós mesmos, desenvolver as poten- que falo integra a honestidade,
de uma maneira tão clara e
cialidades em nós veladas, fazer-nos “livres” e construir um cosmos em conjunto e perceptível, que para o reco-
mediante trocas com os outros e com a diversidade da vida, nas várias dimensões nhecermos não é necessária
muita argúcia” (Cf. CÍCERO,
para as quais ela nos convoca. Essa troca é impedida quando somos orientados 1893, Livro I, capítulo XXVII,
os itálicos são nossos). Para
para apenas consumir ou por eventos e espetáculos que promovem o desapego de realizarmos as traduções dos
nós a nós mesmos, como fazem muitas das modas, das cidades e das comunidades trechos de Cícero, recorre-
mos também às edições das
contemporâneas, virtuais ou não. Isso se acentua na sociedade de consumo de Obras completas de Marco
Tulio Cicerón, tradução de
massa, na qual somos inclinados a desejar sempre o brinquedo, a casa, a cidade,
D. Manuel de Valbuena, e à
os costumes e os produtos que não temos, e até o corpo e o(a) namorado(a) de edição brasileira CÍCERO.
Os deveres, tradução de Luiz
outros(as). Assim, a cidade de acontecimentos e espetáculos internacionais ou a Feracine.
casa, o cabelo e a roupa propagandeados nas revistas especializadas ou nos am-
bientes sofisticados tornam-se nosso objeto de desejo. Esse desejo, contudo, ofusca

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a felicidade “em ato” que pode estar a reluzir nas coisas, nos fatos e nas pessoas
que conformam o cosmos familiar e historicamente construído pelos que nos an-
tecederam e que legaremos aos que nos sucederão. Sofremos por não termos aqui-
lo que desejamos e temos tédio e depressão quando reconhecemos não sermos
mais felizes ao tê-lo. Quanto mais esperamos ser felizes com a posse dele, mais
infelizes somos: a esperança da felicidade nos afasta dela e acaba por nos trazer
frustração e tédio, como nos diz Comte-Sponville (2011).
Precisamos, portanto, elaborar uma felicidade mais substancial e duradoura,
não calcada na ideia de falta, de esperança ou de sonho, a qual sempre vem acom-
panhada do sofrimento dessa espera, da frustração de não ter realizado este sonho
ou do tédio de, ao ter alcançado aquilo que era objeto de nosso desejo, verificar que
ele não nos tornou realmente mais felizes e melhores. Nossa vida deve, então, com-
portar os registros da alegria e do prazer de desejar aquilo que já temos, de desejar
aquilo que já fazemos e de desejar aquilo que já conhecemos. Assim, por exemplo,
há um prazer e uma alegria de estarmos onde desejamos estar, de passear onde de-
sejamos passear, de dar os passos que desejamos dar, de habitar onde construímos
nosso habitar e de trabalhar onde trabalhamos para os outros e para nós mesmos,
onde nos reconhecemos e exploramos as nossas potencialidades da forma melhor
possível. Isso é bem diferente de considerarmos nossa felicidade estar sempre em
outro lugar. A “felicidade sob a norma da verdade” encontra-se justamente no possí-
vel que incorporamos como uma vontade e como um projeto factível para nós: uma
“vontade”, e não uma esperança ou um desejo difuso que acaba abrindo o espaço
futuro do tédio e da depressão. A felicidade de um engenheiro, de um técnico, de
um arquiteto ou de um designer, sugere-nos Valéry, está em só desejar e conceber
aquilo que ele faz e só fazer aquilo que ele concebe e deseja:

Sou avaro de divagações, concebo como se executasse. Jamais contemplo, no espaço infor-
me de minh’alma, esses edifícios imaginários que estão para os edifícios reais como
as quimeras e as górgonas estão para os animais verdadeiros. Ao contrário, o que penso
é factível e o que faço refere-se ao inteligível. (VALÉRY, 1996, p. 51, itálicos nossos).

A felicidade da engenharia e da técnica ou a de construirmos a nós mesmos


depende do que podemos engenhar, produzir, apropriar e usar, e não daquilo que
poderíamos adquirir a partir da admiração do que vemos nas revistas, sites e ­eventos

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internacionais que importamos para nossos ambientes, nossas cidades, nossas pra-
ças, nossas ruas, nossos dormitórios e nossos lavatórios. Não somos mais felizes
porque produzimos copas do mundo, olimpíadas, grandes eventos e grandes ex-
posições artísticas e festivais do que quer que seja. Não somos mais felizes por
obtermos uma nova engenhoca eletrônica, um novo aparelho de TV ou um novo
tapete para a sala. O que nos faz felizes é desejar o que fazemos, desejar o que traba-
lhamos, desejar o com quem convivemos, desejar o que sabemos e fruir o presente
que nos é dado. Este presente tem várias dimensões e não se esgota na “estaca do
instante”, como diz Nietzsche, à qual o animal está sempre preso. Somos humanos
e temos uma história, uma memória, projetos e fantasias de futuro que dão sabor e
densidade ao nosso presente.
A cidade feliz nada espera dos deuses, da natureza, da sorte ou da fortuna. A
essa fortuna ela opõe a sua própria virtù, como diziam os humanistas do século
XV e Maquiavel. A cidade da
virtù – do vir virtutis, ou seja,
do “humano do homem” –
constrói e é responsável pelo
seu presente, projeta o seu futuro,
aprende a construir a polis mais
própria à sua memória, aos seus costumes, aos seus cidadãos e aos que lhes su-
cederão. Ela não deseja importar a história e o futuro de outros centros, como
Paris, Londres, Nova Iorque ou Bilbao. E nem de outros tempos. O cidadão feliz
nada espera. Ele contenta-se com o real sobre o qual pode agir, decidir, conhecer
e fruir, o que geralmente nos é interditado mediante proibições de a sociedade
civil apropriar-se da polis ou por meio da importação de modelos e modismos que
nos fecham os olhos para a nossa própria realidade, para a nossa história e para
os nossos “desejos verdadeiros”. Amamos verdadeiramente quando gozamos com
aquele com quem somos, com quem nos sentimos contentes e que nos faz desco-
brir nossas potencialidades. Pensar uma cidade feliz é “regozijar-se com”, é estar
bem com os outros, e não com medo dos outros e seguros em nossos condomínios
e tribos. Amar a cidade é agradecer por ela existir e providenciar este “regozijar-se
com”, como Rousseau observava nas festas cívicas que ele preferiria aos eventos

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de massa e pré-formatados pela mídia e pela indústria do turismo e do consumo.


Quando pensamos a cidade como algo que possuímos e consumimos, acabamos
por desgastá-la, tal como o objeto amoroso se pensado também dessa forma, até
que nos falte uma outra cidade, que projetemos ilusões ou que ela e sua liberdade
valham menos do que a segurança, o isolamento e o idílico refúgio junto ao cam-
po e à natureza. Sair da sucessão dos instantes e perceber o tempo e o presente
como uma eternidade na qual se encontra, por exemplo, um amor ou uma verdade
inesperada dentro de um real que eu habito e com o qual mantenho e aprofundo o
contato, como ao ser verdadeiramente amado, é fruto da experiência e da vivência
“ordinária”, e não “extraordinária”. De tanto buscarmos o extraordinário, o excep-
cional e o fabuloso, acabamos tornando-nos insensíveis para o que é ordinário,
banal e comum, e que, no entanto, fundamenta e possibilita nossa existência. Ex-
pressão disso é considerarmos o artista, o cientista e o intelectual como os expo-
entes da cultura e da sabedoria, em detrimento de trabalhos que talvez sejam até
mesmo mais fundamentais, como o do técnico que leva água e energia até nossas
casas; como o do lixeiro que, como um mágico, faz desaparecer de nossos olhos os
detritos que produzimos em quantidades cada vez maiores; como o pai de família
que conduz sua vida sob a ótica do dever a cumprir e da continuidade do tempo,
da cidade e da comunidade à qual ele pertence, mais do que do gozo e do prazer
individual e efêmero que somos quase sempre “obrigados” a desfrutar, muitas
vezes mediante ingressos e convites caríssimos.3 3. Sobre o contraste entre a
vida ética do “pai de família”
Regozijar-se com os que nos precederam é o trabalho da memória, inclusive e a vida “estética” de D. Juan
e do hedonismo contemporâ-
da memória histórica, da restauração e da revitalização de obras, bairros, praças e
neo, cf. KIERKEGAARD, 1984,
ruas. Regozijar-se com os que nos sucederão é projetar com eles, como se eles já e sobretudo, 1959.

estivessem presentes, e trabalhar com a fantasia e com responsabilidade. Não se


sonha com a cidade feliz: constrói-se ela na medida em que agimos mais nela, em
que a conhecemos mais e em que aprendemos a amá-la mais. A cidade feliz não
está nem no passado e nem no futuro. Já estamos nela. A cidade que se constrói,
que se conhece, que se ama e que não nos vem importada ou comprada pela mídia
é o fruto de um projeto e de um programa que existem no presente e no passado
e que cumpre ser desvelado, como se fosse uma verdade oculta. Esse é o trabalho
a ser realizado: fazer do nosso sonho uma vontade e pô-la em marcha; viver uma

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relação com o futuro no presente real; dar-nos um projeto e ativar a imaginação e a


utopia não as confundindo com quimeras; tornar este futuro conhecido desde já e
dependente de nós, no presente, preparado e construído como projeto; estabelecer
uma relação com o passado dentro de um presente “expandido” e assim dar-nos
uma memória, dar-nos a alegria de um encontro transgeracional e a alegria da gra-
tidão, da fidelidade e da confiança geradas por essa história. O mesmo deveríamos
fazer em relação àqueles que amamos em corpo e alma.
Estamos na história, antes de estarmos no espaço. Não somos felizes todo o
tempo. A felicidade ou o lugar feliz que habitamos, seja a cidade ou nossa casa, são
os lugares que dão lugar e que possibilitam que a verdade e os momentos felizes,
como o dos encontros com os outros e conosco mesmo, aconteçam. Não há uma
felicidade contínua, perpétua e fixada de uma vez por todas. Não se vive sempre
alegremente, a não ser que sejamos idiotas ou que nos abasteçamos sempre de
pílulas da felicidade que nos afastem do encontro com a verdade. A verdade é a
norma. A história e os espaços felizes são aqueles em que a alegria é possível acon-
tecer. A engenharia, a técnica, a arquitetura, o urbanismo, as artes, as ciências, a
literatura, a cultura, a economia, a filosofia e a política não nos fazem felizes por
si mesmas, mas podem favorecer o acontecimento dessa felicidade e desse senti-
mento de transcender a história e regozijar-se com o outro, com a cidade, com o
pôr do sol e com a água que se derrama de um chafariz. A cidade e o espaço felizes
não são amáveis por eles mesmos, mas porque os amamos. Assim também, é o
amor que sentimos pelo outro o que lhe dá valor e faz dele objeto do regozijo de
viver a história, de criar o futuro e de recriar o passado com ele. Criar e recriar
significam transformar o que é e deixar-se transformar por ele, em profundidade.
Essa transformação e essa construção incessante do mundo, se feitas na verdade,
operam a transformação e a construção de nós mesmos. É isso o que nos faz fe-
lizes, pois permite conquistar não objetos externos, mas a nós mesmos “na ver-
dade”. Haver-se, se haver, se habendi, habitar a si mesmo. O trabalho do técnico,
como aquele que lida com distribuição e encanamento de águas, esgotos, lixos e
energias as mais diversas, tem tanto valor como o do poeta: ambos produzem a
verdade que emoldura a felicidade e o bem comum que são decorosos, apropriados
e possíveis de engenhar e construir.

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Referências
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Texto latino e tradução para o italiano de Giovanni Orlandi. Milano: Il Polifilo, 1966a.

ALBERTI, L. B. Theogenius. In: ______. Opere volgari (a cura di Cecil Grayson). Bari: Gius.
Laterza & Figli, 1966b. v. II, p. 92-93.

ALBERTI, L. B. Epistola consolatoria a Codagnello. In: ______. Opere volgari di Leon Battista
Alberti per la più parte inedite e tratte degli autografi (a cura di Anicio Bonucci). Firenze: Galileiana,
1843-1849. t. V, p. 253-265.

CÍCERO, M. T. De officiis. Livro I, capítulo XXVII. In: Obras completas de Marco Tulio Cicerón.
Tradução de D. Manuel de Valbuena. Madrid: Librería de la Viuda de Hernando y C., 1893.

CÍCERO, M. T. Os deveres. Tradução de Luiz Feracine. São Paulo: Escala, 2008.

COMTE-SPONVILLE, A. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

KIERKEGAARD, S. Diário de um sedutor. Tradução de Carlos Grifo. São Paulo: Abril Cultural,
1984.

KIERKEGAARD, S. Estética y ética en la formación de la personalidad. Tradução de Armand Morot.


Buenos Aires: Editorial Nova, 1959.

MUMFORD, L. A cidade na história – suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo:


Martins Fontes, 1998.

VALÉRY, P. Eupalinos ou O arquiteto. Tradução de Olga Reggiani. São Paulo: Ed. 34, 1996.

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