Um Homem Livre, Uma Cidade Feliz
Um Homem Livre, Uma Cidade Feliz
Um Homem Livre, Uma Cidade Feliz
UM HOMEM LIVRE,
UMA CIDADE FELIZ
carlos antônio leite brandão *
resumo A cidade surge devido à fragilidade e à diversidade dos seres humanos, como apontado pelo humanista Leon
Battista Alberti (1404-1472). A partir desse princípio, este artigo discute a liberdade e a felicidade que ela ajuda a construir e
critica o modo contemporâneo de pensá-la e concebê-la.
keywords The human being and the city. City and happiness. City and freedom.
* Professor Associado de História e Teoria da Arquitetura, da Cidade e da Arte na Escola de Arquitetura da Universidade
Federal de Minas Gerais – UFMG (Brasil). Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
CNPq. E-mail: <[email protected]>.
E
uma continendos majorem
in modum valuisse”. ssas são palavras que abrem um dos mais importantes tratados de arquitetura
e urbanismo da história: o De re aedificatoria, de Leon Battista Alberti (1404-
1472). Pouquíssimos autores investigaram o sentido da arte de construir edifícios e
cidades como o fez Alberti, e esta é a maior grandeza deste tratado. O mesmo autor
expõe em outras obras sua concepção acerca do ser humano que empreende tais
construções. Em uma carta ao seu amigo Paolo Codagnello, de 1437, ele escreve que
a condição dos mortais é de “exílio, pobreza, perigos, enfermidades, ignomínias e
cárcere”, subordinada a uma fortuna quase sempre adversa (ALBERTI, 1843-1849,
t. V, p. 253-265). No Theogenius, Alberti escreve sermos um “animal inquieto, muito
impaciente e que nunca se satisfaz” (ALBERTI, 1966b, v. II, p. 92-93). Essa arro-
gância e falta de medida intrínseca ao ser humano faz com que a natureza seja fre-
quentemente obrigada a se rebelar contra ele e a castigá-lo e deprimi-lo.
Essas considerações foram pronunciadas há quase seis séculos atrás, quando
as cidades ainda estavam em processo de reinvenção, após o feudalismo e a Idade
Média. Voltarei a isto mais à frente. Por ora, o que me interessa sublinhar aqui é a
“razão antropológica” da cidade, aquilo que nos leva a fundá-la e reunir-nos nela.
A palavra “cidade” incorpora duas dimensões, a polis e a urbs. Por polis (grego) ou
civitas (latim) a cidade é entendida como a reunião das pessoas num agrupamento
coletivo, em torno de um Bem comum e de uma origem, um presente e um destino
que se quer compartilhados. Urbs é o termo que usamos para designar o espaço e
os edifícios que construímos para dar lugar a essa reunião. Construímos a cidade e
sua infraestrutura como um local para encontrarmo-nos com os outros e para cons-
truirmos a nós mesmos, a nossa liberdade e a nossa felicidade.
clube, num condomínio ou numa “tribo”, costumamos nos encontrar apenas com os
iguais, com os que são os semelhantes a nós. É o encontro, o diálogo com os outros e
a troca de saberes, ideias, experiências, mercadorias e serviços que nos enriquecem e
que nos ajudam a construir nós mesmos.
Construir nós mesmos significa que não estamos prontos, que precisamos
construir-nos, construir a nossa vida e a nossa própria humanidade, construir o
“humano do homem”. Humanismo é isso: construir o humano do homem, o vir
virtutis, como diz Cícero. Esse é o trabalho da cultura, uma cultura que nos liberta
da natureza a que nascemos aferrados e nos projeta no horizonte do que somos, do
que fomos e, sobretudo, do que podemos ser, individual e coletivamente. O trabalho
da cultura é cultivar isso, o que exige projeto e exercício, tal como um ofício requer
o seu aprendizado lento, o seu laboratório e o seu ateliê. A cidade é o local da cultura
e o ateliê da universalidade e do aprendizado do humano.
Portanto, a cidade surge da nossa fragilidade original, a qual é convertida em
força mediante o encontro com o Outro, com o que é diverso de nós. Uma cidade é
mais rica quanto mais possibilidades e diversidade ela nos oferece, sobretudo se so-
mos jovens e queremos encontrar um caminho na vida que nos torne livres, como
fez o servo feudal que escapou da corveia e atravessou o muro para alcançar a “liber-
dade positiva” e o encontro que a cidade lhe permitia. Por isso, diz Alberti, as pare-
des e os tetos são os instrumentos fundamentais para reunir os homens e mantê-los
juntos. Sem eles, não há como encontrar, conversar, trocar experiências e construir.
Construir e manter tetos, paredes, tubulações, esgotos, linhas de transmissão, pra-
ças e ruas é, simultaneamente, construir e
preservar nós mesmos. Todo projeto, seja
um projeto de arquitetura, de
distribuição de águas pela cidade
ou de educação, é uma oportuni-
dade por meio da qual construímos
uma pequena comunidade em tor-
no dele e elaboramos uma vida
em comum. O projeto não se
legitima apenas para providenciar um re-
sultado final, mas também para oferecer a oportunidade de in-
teragirmos e trocar experiências, saberes e pontos de vista sobre o bem comum que
a cidade deve realizar. Esses outros com os quais nos encontramos não são apenas
os vivos e os presentes na festa da cidade, mas também aqueles que nos procede-
ram e aqueles que nos sucederão. A cidade dialoga e se pensa também diante da
tradição que ela recebe e da tradição que ela funda. Ela, como diz Lewis Munford
em A cidade na história, é o lugar do acúmulo da vida, da experiência e de toda uma
sucessão de gerações que deixaram nela o seu trabalho e que permitiram que nos
encontrássemos aqui e agora, sob os tetos e as paredes que elas aprenderam lenta-
mente a construir e a fazer atravessar o tempo. Essa acumulação deságua naquilo
que deixamos para aqueles que nos sucederão e dos quais devemos, desde já, cui-
dar em nossos projetos e intervenções. Nossos filhos e netos, mesmo depois que
já tivermos ido, conversarão conosco por meio dos tetos, paredes, praças e águas
que lhes deixaremos para conviver e beber. Uma cidade não se faz em curto prazo
e não se volta para satisfazer apenas os desejos imediatos. Ela é uma res publica, ou
seja, um bem comum que deve resistir no tempo. Nenhuma cidade se faz como um
acampamento ou rancho, por mais rico ou pobre que seja, o qual se ergue apenas
Essa refeudalização, que nos conduz a uma espécie de barbárie cultural e tecnoló-
gica, assenta-se numa concepção antropológica bem diversa daquela albertiana: a
de que o indivíduo é autossuficiente, tem uma identidade que não passa por sua
interação com os outros (ao contrário, o diverso parece dever ser anulado) e é capaz
de ser feliz sozinho a partir do gozo e da mercadoria que ele adquire. Essa ideologia
permeia até mesmo suas relações com os amigos e com aqueles ou aquelas que diz
amar, mas que na verdade são considerados apenas como objetos a serem consumi-
dos ou como instrumentos para realização do próprio gozo. Esse gozo é efêmero e
insatisfatório. Por isso, ao começarmos este texto apontando a fragilidade de nossa
condição original, contrariamos justamente esta ideologia do “super-homem”, ter-
mo que peço licença a Nietzsche para utilizar aqui. Esse “super-homem” não precisa
da cidade e dos outros, até que lhe falte a água, caia-lhe a rede de energia ou surja
uma epidemia em escala mundial e da qual ele não é incólume em seu nicho cerca-
do de proteções de toda espécie.
O maior ornamento da cidade é o cidadão, e não os eventos, espetáculos e mo-
numentos que ela promove. Esse cidadão não é o espectador ou o consumidor da
cidade, mas o seu autor e para quem ela deve se dirigir. Seu poder de participação,
contudo, diminui cada dia, entre outras coisas devido ao crescimento exagerado de
cidades que incham sem limites e sem projeto. Um topos comum na urbanística
era o tamanho da cidade e o número de habitantes. Esse número, como em Platão,
Rousseau ou Lewis Munford era limitado porque ele deveria ater-se a uma dimen-
são na qual cada cidadão pudesse ter voz ativa na construção da cidade e nela ver a
si e à sua obra. Numa cidade fragmentada em grupos e habitada por milhões de pes-
soas cada vez menos interessadas no destino dela, mas apenas em consumi-la, essa
participação e reconhecimento ativos tornam-se cada vez mais remotos. Daí a neces-
sidade de pensarmos nossos grandes aglomerados urbanos a partir da construção
de diversas centralidades e da elaboração de uma nova geopolítica que os pense
como reuniões de várias cidades menores. Daí também a importância de se provi-
denciarem mecanismos de transporte e bens comuns que permitam uma melhor
distribuição populacional e uma geopolítica regional e nacional mais equilibrada.
Cidade e felicidade
e não se mentir é a regra da engenharia, da arquitetura e do urbanismo, o critério demos denominar decorum.
Este decoro é de tal natureza
no qual pautar nossos projetos, nossas intervenções, nossa escolha de materiais e que não pode ser separado
da honestidade; pois tudo que
nossa interpretação dos contextos. Essa qualidade tem um nome: “decoro”, prépon é decente é também honesto,
em grego, ou seja, ser próprio a alguém, a alguma coisa, a algum lugar.2 Ter decoro e tudo o que é honesto é
igualmente decoroso. Mas
é não criar uma mentira, como a de uma felicidade destinada ao malogro e apenas qual seja a diferença entre o
honesto e o decente, é mais
a ser consumida. A alegria verdadeira não é a que nos oferecem para consumir ou
fácil compreender do que
para comprar, mas a que construímos. Não é a da felicidade do simulacro, mas a explicar, uma vez que para
conhecer que algo seja decente
da felicidade em ato e que exige nosso corpo, nossa ação e nossa história para ser é preciso primeiro que seja
precedido pela honestidade.
alcançada, tal como a amizade também exige para ser construída.
[...] E, assim, este decoro de
Nossa felicidade maior é conquistar-nos a nós mesmos, desenvolver as poten- que falo integra a honestidade,
de uma maneira tão clara e
cialidades em nós veladas, fazer-nos “livres” e construir um cosmos em conjunto e perceptível, que para o reco-
mediante trocas com os outros e com a diversidade da vida, nas várias dimensões nhecermos não é necessária
muita argúcia” (Cf. CÍCERO,
para as quais ela nos convoca. Essa troca é impedida quando somos orientados 1893, Livro I, capítulo XXVII,
os itálicos são nossos). Para
para apenas consumir ou por eventos e espetáculos que promovem o desapego de realizarmos as traduções dos
nós a nós mesmos, como fazem muitas das modas, das cidades e das comunidades trechos de Cícero, recorre-
mos também às edições das
contemporâneas, virtuais ou não. Isso se acentua na sociedade de consumo de Obras completas de Marco
Tulio Cicerón, tradução de
massa, na qual somos inclinados a desejar sempre o brinquedo, a casa, a cidade,
D. Manuel de Valbuena, e à
os costumes e os produtos que não temos, e até o corpo e o(a) namorado(a) de edição brasileira CÍCERO.
Os deveres, tradução de Luiz
outros(as). Assim, a cidade de acontecimentos e espetáculos internacionais ou a Feracine.
casa, o cabelo e a roupa propagandeados nas revistas especializadas ou nos am-
bientes sofisticados tornam-se nosso objeto de desejo. Esse desejo, contudo, ofusca
a felicidade “em ato” que pode estar a reluzir nas coisas, nos fatos e nas pessoas
que conformam o cosmos familiar e historicamente construído pelos que nos an-
tecederam e que legaremos aos que nos sucederão. Sofremos por não termos aqui-
lo que desejamos e temos tédio e depressão quando reconhecemos não sermos
mais felizes ao tê-lo. Quanto mais esperamos ser felizes com a posse dele, mais
infelizes somos: a esperança da felicidade nos afasta dela e acaba por nos trazer
frustração e tédio, como nos diz Comte-Sponville (2011).
Precisamos, portanto, elaborar uma felicidade mais substancial e duradoura,
não calcada na ideia de falta, de esperança ou de sonho, a qual sempre vem acom-
panhada do sofrimento dessa espera, da frustração de não ter realizado este sonho
ou do tédio de, ao ter alcançado aquilo que era objeto de nosso desejo, verificar que
ele não nos tornou realmente mais felizes e melhores. Nossa vida deve, então, com-
portar os registros da alegria e do prazer de desejar aquilo que já temos, de desejar
aquilo que já fazemos e de desejar aquilo que já conhecemos. Assim, por exemplo,
há um prazer e uma alegria de estarmos onde desejamos estar, de passear onde de-
sejamos passear, de dar os passos que desejamos dar, de habitar onde construímos
nosso habitar e de trabalhar onde trabalhamos para os outros e para nós mesmos,
onde nos reconhecemos e exploramos as nossas potencialidades da forma melhor
possível. Isso é bem diferente de considerarmos nossa felicidade estar sempre em
outro lugar. A “felicidade sob a norma da verdade” encontra-se justamente no possí-
vel que incorporamos como uma vontade e como um projeto factível para nós: uma
“vontade”, e não uma esperança ou um desejo difuso que acaba abrindo o espaço
futuro do tédio e da depressão. A felicidade de um engenheiro, de um técnico, de
um arquiteto ou de um designer, sugere-nos Valéry, está em só desejar e conceber
aquilo que ele faz e só fazer aquilo que ele concebe e deseja:
Sou avaro de divagações, concebo como se executasse. Jamais contemplo, no espaço infor-
me de minh’alma, esses edifícios imaginários que estão para os edifícios reais como
as quimeras e as górgonas estão para os animais verdadeiros. Ao contrário, o que penso
é factível e o que faço refere-se ao inteligível. (VALÉRY, 1996, p. 51, itálicos nossos).
internacionais que importamos para nossos ambientes, nossas cidades, nossas pra-
ças, nossas ruas, nossos dormitórios e nossos lavatórios. Não somos mais felizes
porque produzimos copas do mundo, olimpíadas, grandes eventos e grandes ex-
posições artísticas e festivais do que quer que seja. Não somos mais felizes por
obtermos uma nova engenhoca eletrônica, um novo aparelho de TV ou um novo
tapete para a sala. O que nos faz felizes é desejar o que fazemos, desejar o que traba-
lhamos, desejar o com quem convivemos, desejar o que sabemos e fruir o presente
que nos é dado. Este presente tem várias dimensões e não se esgota na “estaca do
instante”, como diz Nietzsche, à qual o animal está sempre preso. Somos humanos
e temos uma história, uma memória, projetos e fantasias de futuro que dão sabor e
densidade ao nosso presente.
A cidade feliz nada espera dos deuses, da natureza, da sorte ou da fortuna. A
essa fortuna ela opõe a sua própria virtù, como diziam os humanistas do século
XV e Maquiavel. A cidade da
virtù – do vir virtutis, ou seja,
do “humano do homem” –
constrói e é responsável pelo
seu presente, projeta o seu futuro,
aprende a construir a polis mais
própria à sua memória, aos seus costumes, aos seus cidadãos e aos que lhes su-
cederão. Ela não deseja importar a história e o futuro de outros centros, como
Paris, Londres, Nova Iorque ou Bilbao. E nem de outros tempos. O cidadão feliz
nada espera. Ele contenta-se com o real sobre o qual pode agir, decidir, conhecer
e fruir, o que geralmente nos é interditado mediante proibições de a sociedade
civil apropriar-se da polis ou por meio da importação de modelos e modismos que
nos fecham os olhos para a nossa própria realidade, para a nossa história e para
os nossos “desejos verdadeiros”. Amamos verdadeiramente quando gozamos com
aquele com quem somos, com quem nos sentimos contentes e que nos faz desco-
brir nossas potencialidades. Pensar uma cidade feliz é “regozijar-se com”, é estar
bem com os outros, e não com medo dos outros e seguros em nossos condomínios
e tribos. Amar a cidade é agradecer por ela existir e providenciar este “regozijar-se
com”, como Rousseau observava nas festas cívicas que ele preferiria aos eventos
Referências
ALBERTI, L. B. De re aedificatoria. L’architettura (a cura di Renato Bonelli e Paolo Portoghesi).
Texto latino e tradução para o italiano de Giovanni Orlandi. Milano: Il Polifilo, 1966a.
ALBERTI, L. B. Theogenius. In: ______. Opere volgari (a cura di Cecil Grayson). Bari: Gius.
Laterza & Figli, 1966b. v. II, p. 92-93.
ALBERTI, L. B. Epistola consolatoria a Codagnello. In: ______. Opere volgari di Leon Battista
Alberti per la più parte inedite e tratte degli autografi (a cura di Anicio Bonucci). Firenze: Galileiana,
1843-1849. t. V, p. 253-265.
CÍCERO, M. T. De officiis. Livro I, capítulo XXVII. In: Obras completas de Marco Tulio Cicerón.
Tradução de D. Manuel de Valbuena. Madrid: Librería de la Viuda de Hernando y C., 1893.
KIERKEGAARD, S. Diário de um sedutor. Tradução de Carlos Grifo. São Paulo: Abril Cultural,
1984.
VALÉRY, P. Eupalinos ou O arquiteto. Tradução de Olga Reggiani. São Paulo: Ed. 34, 1996.