A Não-Dualidade

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Shunya - Budismo, zen, dzogchen Página 1 de 5

29 - A NÃO DUALIDADE
INTRODUÇÃO AO BUDISMO
Uma visão da doutrina budista através dos textos
Este é um trabalho de seleção e ordenação de textos
de vários autores e mestres budistas por
Karma Tenpa Darghye.

Não há nenhum interesse ou valor em estudar esse tema como mero


estimulo intelectual. Isso seria uma completa perda de tempo. O
conhecimento contido no ensinamento de Maitreya é incrivelmente
profundo, mas só vale a pena se for abordado com a devida motivação.
A não ser que nos empenhemos nesse estudo com a intenção de
erradicar nossos problemas psicológicos, seria melhor passar o nosso
tempo tentando produzir coca-cola, por exemplo; pelo menos,
mataríamos a nossa sede.

Provavelmente, todos já ouvimos falar sobre a meditação Mahamudra.


"Maha" quer dizer grande e "mudra" significa selo. Se eu tiver um selo
do governo ninguém me impedirá a passagem ou me incomodará.
Quando há um selo governamental em meu passaporte, tenho a
liberdade de ir para onde quiser. O selo do Mahamudra é parecido, mas
estamos falando aqui sobre um estado da mente que transcende nossa
simples visão dualista da existência. Esse é o grande selo que nos
liberta da prisão do sansara. O Mahamudra em si é a não-dualidade. É
a natureza absoluta e verdadeira de todos os fenômenos universais,
sejam eles interiores ou exteriores.

O que significa o termo "não-dualidade"? Todos os fenômenos


existentes sejam eles considerados bons ou maus, são por natureza
transcendentes a dualidade, transcendentes as nossas falsas
discriminações. Nada do que existe acontece fora da não-dualidade. Em
outras palavras, todas as energias existentes nascem dentro da não-
dualidade, funcionam dentro da não-dualidade e, por fim, desaparecem
na natureza da não-dualidade. Nós nascemos nesta Terra, vivemos e
desaparecemos sempre dentro do espaço da não-dualidade. Trata-se de
uma verdade simples e natural e não de uma filosofia fabricada pelo
Buda Maitreya. Estamos falando sobre fatos concretos e sobre a
natureza fundamental da realidade, nem mais nem menos.

Se quisermos compreender o Mahamudra, é essencial que


desenvolvamos a habilidade da arte da meditação. Mas para meditar
adequadamente, devemos ouvir primeiro uma exposição perfeita do
assunto. Isso nos dará uma compreensão exata e precisa do objetivo
da meditação. Se tivermos a clara intenção de por em prática essas
explicações sobre a meditação, então o mero fato de ouvir os
ensinamentos torna-se uma poderosa experiência, em vez de alguma
espécie de "viagem" intelectual superficial.

Compreender que a mente dualista, perdida em falsas discriminações, é


a origem do sofrimento sem começo nem fim da própria pessoa e dos
outros, é ter uma visão intuitiva verdadeiramente valiosa que irá
modificar profundamente a qualidade de nossa vida diária.

A mente dualista é contraditória por natureza. Ela estabelece um


diálogo interior que vem perturbando a nossa paz. Estamos sempre
pensando: "Talvez isto, talvez aquilo, talvez qualquer outra coisa" – e
assim por diante. O pensamento dualista perpetua o conflito dentro da
nossa mente. Ele nos torna agitados e profundamente confusos.
Quando chegamos a conclusão de que essa confusão é o resultado de

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urna mente condicionada pela visão dualista da realidade, então


poderemos fazer alguma coisa a respeito. Até lá, será impossível lutar
contra o problema, porque não identificamos corretamente sua
verdadeira causa. Não é suficiente tratar apenas dos sintomas. É claro
que devemos erradicar completamente a origem dos nossos problemas,
se quisermos ficar verdadeiramente livres deles.

Na medida em que a nossa compreensão e o nosso conhecimento do


Mahamudra se aprofundam, compreendemos que o modo como as
coisas nos parecem é uma mera projeção da nossa mente. Por
exemplo, não se trata da questão de se Madison, Wisconsin, existem ou
não, mas se o modo como os vemos de fato existe ou não. Deve ficar
claro que isso difere da visão niilista, que afirma que nada existe.
Estamos apenas procurando ter uma visão correta da realidade.

Para esclarecer ainda mais este ponto, podemos investigar as fantasias


que projetamos sobre os nossos amigos e sobre as pessoas com quem
convivemos ou que encontramos diariamente. Nossa mente dualista
projeta uma máscara de atração ou de rejeição sobre a imagem
mostrada por todas as pessoas que encontramos, ocasionando o
aparecimento de reações de desejo ou de aversão, que matizam nossas
atitudes e o nosso comportamento com relação a essas pessoas. E
começamos a discriminar: "Ele é bom" ou "Ela é má". Se essas atitudes
rígidas e preconceituosas já impossibilitam a comunicação adequada
com nossos amigos mais íntimos, o que dizer da comunicação com a
profunda sabedoria de um ser iluminado, de um Buda?

Se investigarmos persistentemente as maquinações interiores da


mente, seremos finalmente capazes de mudar nossa maneira
habitualmente rígida de perceber o universo e de deixar espaço e luz
dentro da nossa consciência. Com o tempo, teremos um discernimento
do que significa, na verdade, a não-dualidade. Nessa altura,
deveríamos simplesmente meditar sem manter pensamentos
intelectuais ou discursivos. Com forte determinação, devemos apenas
deixar a mente meditar intencionalmente sobre a visão da não-
dualidade, além de sujeito/objeto, do bom/mau e assim por diante. A
visão da não-dualidade pode ser tão vívida e poderosa que quase
julgamos poder alcançá-la e tocá-la. É muito importante matizar a
mente apenas com essa nova experiência de alegria e luminosidade,
sem buscá-la através de análise. Devemos compreender diretamente
que a não-dualidade é a verdade universal da realidade. Ao dirigir
nossa mente ao longo do caminho do dharma, é melhor não esperar
demais logo no começo. O caminho é um processo gradual que deve
ser percorrido passo a passo. Antes que alguém possa seguir práticas
que tragam resultados rápidos e profundos, há outras técnicas
preparatórias que devem ser realizadas. (...)

Ajuda bastante perceber que a compreensão da não-dualidade


apresenta muitos níveis ou graus. Do ponto de vista filosófico, há duas
escolas indianas de pensamento budista mahayana: a Chittamatrin, ou
escola Mente Única, e a Madhyamika, ou escola do Caminho do Meio,
com a sua subdivisão Prasangika ou Conseqüencialista. Ambas as
escolas concordam que a visão dualista é enganadora, e por isso irreal,
e ambas defendem que a não-dualidade é a natureza absoluta de todas
as coisas e por isso é verdadeira. Apesar das escolas Mente Única e
Madhyamika concordarem nesses aspectos, sua compreensão do que é
a não-dualidade varia um pouco.

Do ponto de vista Madhyamika, a doutrina Mente Única apresenta uma

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abordagem que ajuda a visão da verdade convencional, mas não


descreve com precisão a natureza absoluta e verdadeira da realidade.
Em outras palavras, os Madhyamikas declaram que a visão Mente Única
da realidade ainda esta maculada por crenças supersticiosas. Apesar
disso, os Madhyamikas concordam que, se formos capazes de
compreender a visão da Mente Única, ficaremos aptos a praticar os
métodos profundos do yoga tântrico, alcançando elevados e
inimagináveis níveis de compreensão.

O importante é saber que a escola Mente Única argumenta que todas as


coisas do mundo sensorial são simples manifestações da energia mental
e não existem externamente. De acordo com os Madhyamikas, é mais
correto dizer que a existência de todas as coisas depende do
reconhecimento de uma consciência atributiva. Ambas as escolas dão
grande importância ao papel da mente na determinação do modo como
as entidades surgem, mas a escola Madhyamika diz que afirmar a não-
existência de quaisquer fenômenos externos – que não existe nada, a
não ser a mente – é um erro. Semelhante visão desvia-se do verdadeiro
caminho do meio que transcende todos os extremos.

Os meditadores da Mente Única destroem a visão dualista por julgarem


que todos os objetos no campo dos seis sentidos nada mais são do que
meras projeções mentais. Todos os fenômenos relativos aparecem e
desaparecem como as bolhas de uma garrafa de coca-cola. Nessa
analogia, a coca-cola corresponde à própria mente, enquanto as bolhas
que surgem dentro dela são os fenômenos relativos percebidos pelos
seis sentidos. Podem as bolhas de coca-cola serem separadas da coca-
cola? Não. Como elas não são separáveis, são não-dualistas. Quando
tivermos uma profunda compreensão consciente desse fato, ficarão
estremecidas as bases do samsara.

Os conseqüencialistas transcendem o dualismo através da constatação


de ambas as coisas: mente e objeto. O campo dos sentidos é ilusório e
vazio; não tem existência própria. Sujeito e objeto são mutuamente
interdependentes: não podem existir independentemente um do outro.
Por essa razão, os Madhyamikas não concordam com a posição da
escola Mente Única de que a mente em si – como fonte e essência de
onde surgem todos os fenômenos relativos – tenha verdadeira e
inerentemente existência própria. De acordo com os Madhyamikas,
todos os fenômenos, incluindo-se a mente, são vazios até mesmo do
mais leve traço de existência própria.

O plenamente desperto Lama Tzong-khapa, na sua obra The Heart of


Perfection (O Coração da Perfeição) explicou que devemos primeiro
dominar a visão da escola Mente Única, porque dessa posição elevada
podemos progredir facilmente para a visão superior e mais sublime dos
Madhyamikas. É exatamente por essa razão que o Buda Maitreya
explicou a doutrina da escola Mente Única. Ela é a ponte confiável para
passarmos de uma perspectiva completamente materialista para a visão
transcendental da realidade, que ultrapassa todos os extremos.

Quando exponho temas dessa espécie, tento evitar ser demasiado


filosófico – insistindo em dizer que a "Mente Única diz isto", que "A
escola Madhyamika defende aquilo" – especialmente quando estamos
tratando de textos tão sutis e profundos como este. Em termos gerais,
esse ensinamento do Buda Maitreya é considerado um texto da escola
Mente Única; contudo, não é necessário confina-lo a essa interpretação.
Esse texto completo serve também perfeitamente para uma explicação
Madhymika da realidade e dos dois níveis da verdade. É essencial

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conhecer bem esses dois níveis da verdade porque, quando os


harmonizamos com sucesso, chegamos a uma verdadeira compreensão
das coisas como elas na verdade são, e ficamos livres de todos os
sofrimentos e das suas causas.

Eu gostaria de voltar mais uma vez a esse ponto. Todos os fenômenos


tem duas qualidades ou naturezas características. Uma é a sua
aparência relativa, sua cor, sua forma, sua qualidade, sua textura, e
assim por diante. Isso é apontado como a "verdade enganadora",
porque ela parece existir independentemente das causas e condições.
Nos termos desse nível de realidade, discriminamos sujeito e objeto,
isto e aquilo, e assim por diante. Apesar de todos os fenômenos
participarem dessa natureza relativa, eles nascem, existem e
desaparecem, sem nunca se afastarem da esfera da não-dualidade. O
segundo nível da verdade é a natureza não-dualista, absoluta e
verdadeira de todas as coisas, que coexistem espontaneamente com
todos os fenômenos.

Os fenômenos em si e a natureza absoluta dos fenômenos tem


qualidades distintas; não se trata da mesma coisa. Todos os fenômenos
possuem simultaneamente um modo de existência relativo ou
convencional, como também uma natureza absoluta e verdadeira, que
é não-dualista. Certas energias vem juntas e produzem um fenômeno
relativo. Seu modo de existência relativo é dualista e aparece nos
termos de uma relação entre sujeito e objeto, apesar de todas as coisas
surgirem dentro do espaço da não-dualidade.

Os fenômenos relativos (samsara) são como bolhas. Eles representam a


visão dualista da mente dualista. Por isso, não existem nem são
verdadeiramente, reais. A natureza verdadeira e absoluta (dharma) é
não-dualista. Por isso, é real ou verdadeira. Apesar dos fenômenos
relativos e da visão dualista existirem e atuarem, em última análise
eles não são verdadeiros. Esse é o ponto fundamental da questão.

Quando dizemos que todos os fenômenos relativos tem a natureza da


não-dualidade, não queremos dizer com isso que toda existência seja o
vazio ou a verdade absoluta. Toda existência relativa não é verdade
absoluta. Os fenômenos relativos não são fenômenos absolutos. Mas
toda energia existente, seja relativa ou absoluta, apresenta a natureza
característica da não-dualidade.

Quero explicar isso melhor. Quando contemplamos a não-dualidade, a


visão dualista deve desaparecer. Por isso, podemos dizer que não-
dualidade significa natureza absoluta. Mas será que podemos afirmar
que toda não-dualidade seja natureza absoluta? Não. Por que não?
Porque, apesar de todos os fenômenos participarem da natureza da
não-dualidade, precisamos compreende-la para entender a realidade
convencional. Minha cabeça, por exemplo, tem a natureza da não-
dualidade e, mesmo assim, não posso dizer que a cabeça seja a
verdade absoluta ou o vazio. Para perceber a minha cabeça não é
necessário perceber a não-dualidade. Ainda assim, pode persistir uma
dúvida: "Se a cabeça tem a natureza característica da não-dualidade,
por que, então, quando se percebe a minha cabeça não se percebe a
própria não-dualidade?" Porque existe o véu da mente dualista entre
vocês e a minha cabeça.

Isso pode ficar mais claro com outro exemplo. Qual é o mais
abrangente: a população dos Estados Unidos ou a população de
Madison, Wisconsin? A população dos Estados Unidos inclui a população

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de Madison, mas os habitantes de Madison não abrangem a população


dos Estados Unidos. A não-dualidade é como a população dos Estados
Unidos, e todos os fenômenos relativos são como os habitantes de
Madison. Todos os fenômenos relativos são abarcados pela não-
dualidade porque eles surgem dentro do espaço da não-dualidade;
todos os fenômenos relativos apresentam a característica de não-
dualidade.

Concluindo, para compreender a não-dualidade, precisamos


compreender o vazio. Por isso, podemos dizer que a não-dualidade é o
vazio. Mas todas as bolhas dos fenômenos relativos, apesar delas
próprias serem afinal não-duais, não são o vazio. A verdade relativa e a
absoluta não se integram, mas ambas são integradas pela não-
dualidade. Se pudermos compreender as características distintivas tão
bem como as naturezas não-contraditórias desses dois níveis da
verdade, alcançaremos a libertação até mesmo das ilusões mais sutis
da mente. Não pode haver um motivo maior nem mais forte para o
estudo e a meditação do que esse.

Extrato de seis semanas de aulas do Lama Yeshe

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