O Narrador Como Lente, A Narrativa Como Luz
O Narrador Como Lente, A Narrativa Como Luz
O Narrador Como Lente, A Narrativa Como Luz
Ensaios - 3° EM
São Paulo
2023
1. Palavras à luz
Acho com alegria que ainda não chegou a hora de estrela de cinema de
Macabéa morrer. Pelo menos ainda não consigo adivinhar se lhe acontece o homem
louro e estrangeiro. Rezem por ela e que todos interrompam o que estão fazendo para
soprar-lhe vida, pois Macabéa está por enquanto solta no acaso como a porta
balançando ao vento no infinito.
A hora da estrela, nos meses que seguiram a minha saída da escola, pegou
poeira na minha estante como se uma pergunta fizesse. E de fato lhe faltava uma
resposta. Pairava nas moléculas ao redor do livro uma dúvida, mas mesmo assim
não o tocava. Era um livro que minha mãe havia me emprestado; mesmo que
morássemos na mesma casa, na mesma sala, sabia que esse livro havia de
retornar à sua coleção algum dia, e receava desfazer-me dele: da mulher que ouvia
o rádio à janela, que comia creme facial de jantar; desfazer-me de sua presença era
como jogar aos mares uma carta nunca aberta. Decidi ler as palavras de Clarice e
perder o medo que sentia daquele livro, que até hoje assombra as estantes do meu
quarto.
A hora da estrela foi um livro chocante de se ler uma segunda vez. Dessa
vez, era como se conhecesse a tonalidade de cada paisagem nublada que
compunha os cenários ao redor de Macabéa. Imaginava a matéria física de suas
palavras correndo por mim, já não podia mais ignorar, sentia Macabéa como uma
febre. Sentia a necessidade de resgatá-la, ou de vê-la resgatada, sentia Macabéa
presa naquelas páginas assim como eu, e, quanto mais eu lia, mais próxima a hora
de sua estrela chegava. Terminei o livro, dessa vez a culpa havia sido minha, eu,
que matara Macabéa.
Assisti a A hora da estrela de Suzana Amaral pela primeira vez em uma tela
de cinema no Cinusp, logo depois de um longo dia na escola. Estava animado, o
filme passaria somente uma vez naquele horário, chamei os meus colegas para que
me acompanhassem. Assisti ao filme com olhos de vidro, achava impossível
reconhecer aquele livro que havia me tocado tanto naquelas alienantes luzes que se
projetavam à minha frente. Estava decepcionado, revoltado, o filme limpara o
sangue escarlate de Macabéa das mãos de Rodrigo, que havia sido ocultado da
tragédia. Eu sabia, somente eu sabia quem era Rodrigo, olhava para meus amigos
e nenhum deles sequer notava sua falta, mas eu notava, sua falta era opaca, doía
olhar diretamente para Macabéa, como olhar ao sol; quis pensar no filme, mas me
faltava amparo, nada mais era como lembrava, como se os móveis tivessem
mudado sozinhos de lugar, sem ninguém para vigiá-los. Por que me incomodava
uma Macabéa livre? Sem autor, sem narrador, uma Macabéa responsável pela
própria vida, responsável por ter nascido, não inventada por um terceiro. A vida de
Macabéa, naquele filme, era inconsolável, pois não havia ninguém a quem culpá-la.
O filme assim, dá razão à Macabéa do livro, à Macabéa conformada com ter
simplesmente “nascido assim”. Havia no ar um senso enorme de injustiça, Macabéa
morreu, e eu não pude olhar nos olhos de quem a matou.
Lembre-se ainda que eu às vezes pintava quadros, e você também? Pois agora
comprei tintas de acrílico, pincéis e telas – é uma libertação pintar. Liberta mais do
que escrever.
Resta então do filme um gosto azedo na boca. O filme não foi capaz de
libertar nem Clarice nem Macabéa. Há ainda um resto de Clarice pulsando nas
artérias do filme; quanto à Macabéa, continua a mesma, difícil seria se não
continuasse. Mas dói mais a ausência de Rodrigo, procurei, mas não pude
encontrá-lo. Se Suzana Amaral pudesse dirigir como Clarice pinta, se colorisse e
contornasse em cada plano as palavras de Clarice, sob os olhos de Rodrigo, se
assim pudesse a obra adaptar, então, sim, sucederia o filme como uma fiel
adaptação ao imaginário de Clarice, e não se perderia nada entre tinta e luz.
[...] No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada.
Eu vos pergunto:
É óbvio que muito foi produzido também com a ajuda da Embrafilmes; filmes
como A idade da terra (1980) de Glauber Rocha, Mar de Rosas (1977) de Ana
Carolina, e, em anos posteriores aos anos de chumbo, filmes de subversão à
estética e temática semeada pelos anos da ditadura, como Pixote (1980) de Hector
Babenco e Eles não usam Black-Tie (1981) de Leon Hirszman. Por esses e muitos
outros motivos que a Embrafilmes se situa em um contexto ideologicamente cinza,
no entanto, nos interessa as questões de contexto permeadas pela fundação da
Estatal, assim como seu alcance em termos da produção de memória coletiva, que
permeia também inevitavelmente o campo da cultura.
Vejam, quem era pobre e dormia sozinho, agora escolhe grandes damas;
quem tinha de olhar seu rosto na água, agora tem espelho.
Mesmo os coronéis do país agora estão sem emprego. Aos grandes não se
relata mais nada.
Quem era mensageiro, agora envia um outro…
Dessa forma, filmar, assim como ser filmado, se trata de uma afirmação de
classe, assim como a detenção do objeto narrativo. Eu imagino que isso deve ser
levado em consideração quando se analisa a obra de Suzana Amaral, afinal,
trata-se também de uma revolução o momento em que Suzana põe suas mãos à
câmera, prestes a eternizar o sofrimento de Macabéa em luz: a detentora do objeto
que se filma, filma porque encontra em Macabéa um reflexo de si. O filme A Hora da
Estrela, trata-se, por essas lentes, de uma obra além de sua matriz, que sacrifica o
narrador a fim de ampliar o debate apresentado no livro para a forma
cinematográfica; no filme, as relações entre narrador e narrado apresentam-se além
de seu conteúdo formal, no limite em que Suzana não se manifesta no filme; essas
relações estão expressas no processo adaptativo, não comentado formalmente por
qualquer elemento técnico ou narrativo, mas ainda presente. Cabe ao espectador
procurar Rodrigo fora do filme, conjugando uma obra onde reflete-se o objeto
narrado de volta ao narrador, imaginando Suzana como parte desse processo que
se apresenta o livro, onde, hipoteticamente, inventa-se Macabéa a partir de Rodrigo,
e, conseguinte, Macabéa é apropriada e refletida de volta às lentes de Rodrigo.
Dessa maneira, o livro de Clarice Lispector é uma parte essencial da compreensão
do filme, que ora limita seu entendimento, ora o expande, tecendo uma rede de
intertextualidades entre as duas autoras, mesmo que compartilhem da mesma raiz.
Assim afirmo pela última vez que a omissão do narrador na obra de Suzana
Amaral trata-se de uma escolha ideológica, talvez pautada nas circunstâncias de
seu tempo, mas que deforma sobretudo o olhar de Clarice, substituído pelo olhar da
câmera. A Hora da Estrela de Suzana Amaral evidencia, em sua essência, o papel
transformador da transfiguração da narrativa literária a caminho da narrativa
cinematográfica, em que esse papel exerce uma alteração fundamental tanto da
forma narrativa, quanto da forma objetiva do enredo. Assim, a adaptação literária
para o cinema é uma ferramenta essencial de compreensão de um tempo histórico,
que atravessa a produção de um filme em todos os seus eixos; e, ademais, a
adaptação literária exerce também um papel transformador dentro do pensamento
cinematográfico, onde todas as elaborações estéticas e formais devem entrar em
cheque mediante a um processo transfigurativo de tradução entre texto e tela.
Manifesto aqui o verdadeiro potencial transformador do cinema, o cinema é uma
ferramenta cultural, portanto, o cinema é também uma ferramenta revolucionária,
sim.
Para não esquecer que ainda brilham moedas no fundo da fonte, encharcadas pelo sol
desse verão, e lembrar que, mesmo depois de tantos anos, ainda é tempo de
morangos, mais uma vez, sim.
6. Considerações finais