O Narrador Como Lente, A Narrativa Como Luz

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Arco Escola-Cooperativa

Ensaios - 3° EM

Júlio César Bezerra

O Narrador como Lente e a Narrativa como Luz:


Reflexões sobre o Cinema de Adaptação

São Paulo

2023
1. Palavras à luz

Acho com alegria que ainda não chegou a hora de estrela de cinema de
Macabéa morrer. Pelo menos ainda não consigo adivinhar se lhe acontece o homem
louro e estrangeiro. Rezem por ela e que todos interrompam o que estão fazendo para
soprar-lhe vida, pois Macabéa está por enquanto solta no acaso como a porta
balançando ao vento no infinito.

A hora da estrela, Clarice Lispector.

Tudo no mundo começou com um sim. Um antigo professor de literatura,


durante o primeiro ano do ensino médio, pediu-me que lesse um livro; sem poder
recusar disse sim. O meu olhar penteava as frases como se fingisse ler, e não lia
mesmo, sabia que se esperasse o suficiente com as páginas abertas o professor as
mastigaria para mim, parágrafo por parágrafo. Não era muito de pensar, se
pensasse doía a moleira, amolecia os sentidos, queria ser naquela escola somente
um vulto, nem mesmo memória, meu desejo maior era fugir dali, e fugi, não só da
escola, mas morava agora também em uma nova casa no Butantã. Fiz a prova de
literatura como se literatura mecânica fosse, prestei atenção nas aulas, e sem saber
ao menos sobre o que se tratava, preenchi as linhas daquela folha de papel com
cada minucioso detalhe sobre a vida de Macabéa.

A hora da estrela, nos meses que seguiram a minha saída da escola, pegou
poeira na minha estante como se uma pergunta fizesse. E de fato lhe faltava uma
resposta. Pairava nas moléculas ao redor do livro uma dúvida, mas mesmo assim
não o tocava. Era um livro que minha mãe havia me emprestado; mesmo que
morássemos na mesma casa, na mesma sala, sabia que esse livro havia de
retornar à sua coleção algum dia, e receava desfazer-me dele: da mulher que ouvia
o rádio à janela, que comia creme facial de jantar; desfazer-me de sua presença era
como jogar aos mares uma carta nunca aberta. Decidi ler as palavras de Clarice e
perder o medo que sentia daquele livro, que até hoje assombra as estantes do meu
quarto.

À primeira leitura, comecei a entender suas dimensões para além do simples


relato da vida e morte de Macabéa – que não teve nem berço nem sepultura;
tornou-se claro que o livro não era somente sobre o sujeito narrado, nem mesmo
somente sobre seu narrador, Rodrigo S. M., que narra o livro pelos sapatos de
Macabéa. O livro era, na verdade, sobre eu, vós e ela: eu que por trás das páginas
leio, Rodrigo que através das páginas inventa, e Macabéa que nas páginas vive e
morre. A hora da estrela revelou-se como um livro sobre narrativa-em-si: sobre as
histórias de miséria, difíceis de inventar; da solidão, difícil de se dimensionar; do eu
e d’ela, difícil de se aproximar; da culpa que se engole antes de derramar.
No entanto, a culpa, envolta por nobre cálice, derrama suas manchas sobre
as páginas do livro, tingindo as páginas com a vida de Macabéa. Macabéa era para
mim um mártir. Morta pelo próprio criador, que, vivendo em tempos de morangos,
não soube lidar com o peso que era sua presença rubra. Presencia-se nas páginas
do livro um cruel filicídio, a pobre nordestina morta sob o punhal de seu próprio
autor, que não sabia mais o que fazer com o mesmo impulso que deu vida à sua
obra.

A hora da estrela foi um livro chocante de se ler uma segunda vez. Dessa
vez, era como se conhecesse a tonalidade de cada paisagem nublada que
compunha os cenários ao redor de Macabéa. Imaginava a matéria física de suas
palavras correndo por mim, já não podia mais ignorar, sentia Macabéa como uma
febre. Sentia a necessidade de resgatá-la, ou de vê-la resgatada, sentia Macabéa
presa naquelas páginas assim como eu, e, quanto mais eu lia, mais próxima a hora
de sua estrela chegava. Terminei o livro, dessa vez a culpa havia sido minha, eu,
que matara Macabéa.

Precisava vê-la, a ideia de que Macabéa havia sido capturada em filme me


trazia conforto, pois assim o livro vivia além de suas páginas, e a minha culpa de ter
assistido à sua morte se tornaria parte de uma memória coletiva. Mas, assim como
o livro naquele primeiro momento, aquele filme me assombrava. Sabia onde assistir
a ele, sabia como procurá-lo, mas mesmo assim eu era tomado por receio à mera
ideia de assistir a esse filme, um receio positivo, não me leve a mal. Sempre me
encantei por cinema; mesmo que fosse uma criança muito imaginativa, gostava que
o mundo fosse imaginado por mim, afinal naquele tempo tudo era especulação,
tinha certeza de poucas coisas. Encontrava consolo em imaginar Macabéa, quem
sabe por isso tinha tanto medo de olhar nos seus olhos.

Parte desse receio, imagino, vinha também do medo de simplesmente me


decepcionar. Pensava impossível enquadrar os ocos momentos da vida de
Macabéa, pensava que o único jeito de entendê-los era a partir dos pensamentos
que lhe surgiam como poeira, Macabéa tinha medo de falar. Questionava também o
princípio de se gravar um livro já escrito em technicolor, como escreve Rodrigo em
sua dedicatória. Por que alterar a experiência de uma obra que já continha cor,
sabor e imagem? Não gostava da ideia do filme até mesmo antes de assistir a ele,
talvez isso tenha azedado os olhos com que assisti ao farol do projetor.

Assisti a A hora da estrela de Suzana Amaral pela primeira vez em uma tela
de cinema no Cinusp, logo depois de um longo dia na escola. Estava animado, o
filme passaria somente uma vez naquele horário, chamei os meus colegas para que
me acompanhassem. Assisti ao filme com olhos de vidro, achava impossível
reconhecer aquele livro que havia me tocado tanto naquelas alienantes luzes que se
projetavam à minha frente. Estava decepcionado, revoltado, o filme limpara o
sangue escarlate de Macabéa das mãos de Rodrigo, que havia sido ocultado da
tragédia. Eu sabia, somente eu sabia quem era Rodrigo, olhava para meus amigos
e nenhum deles sequer notava sua falta, mas eu notava, sua falta era opaca, doía
olhar diretamente para Macabéa, como olhar ao sol; quis pensar no filme, mas me
faltava amparo, nada mais era como lembrava, como se os móveis tivessem
mudado sozinhos de lugar, sem ninguém para vigiá-los. Por que me incomodava
uma Macabéa livre? Sem autor, sem narrador, uma Macabéa responsável pela
própria vida, responsável por ter nascido, não inventada por um terceiro. A vida de
Macabéa, naquele filme, era inconsolável, pois não havia ninguém a quem culpá-la.
O filme assim, dá razão à Macabéa do livro, à Macabéa conformada com ter
simplesmente “nascido assim”. Havia no ar um senso enorme de injustiça, Macabéa
morreu, e eu não pude olhar nos olhos de quem a matou.

Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública.


Trata-se de livro inacabado porque lhe falta resposta. Resposta esta que alguém no
mundo ma dê. Vós? É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu
também preciso.

Amém para nós todos.

A hora da estrela, Clarice Lispector.


2. A natureza morta de Clarice Lispector

“Medo”, Clarice Lispector 16 de Maio de 1976.

Rio, 25 de julho de 1975

Pedro, meu querido filho, como vai?

Lembre-se ainda que eu às vezes pintava quadros, e você também? Pois agora
comprei tintas de acrílico, pincéis e telas – é uma libertação pintar. Liberta mais do
que escrever.

Pouco se sabe quanto à opinião de Clarice Lispector quanto à sétima arte.


Sabe-se, no entanto, que Clarice era uma grande apreciadora das artes plásticas,
dizia ela que escrevia na falta de pintar. Existia em Clarice um grito que buscava
direito, um sopro que enchia seus pulmões. Nunca seguiu carreira nas artes
plásticas, aventurou-se na pintura somente mais tarde em sua vida, quando pôde
descansar. Clarice pintava como se com o pincel escrevesse, como se cada traço
fosse também parte de uma história, não fugia da sua sina de escritora, nem
tentava. Trazia nos seus quadros o mesmo pulsar ancião responsável pelos seus
dotes literários, ao mesmo cavo coração que nela batia.
Clarice morreu antes de ver qualquer uma de suas obras adaptadas; era a
narradora única de suas histórias, escrevia o mundo numa casa de bonecas. As
primeiras adaptações da obra de Clarice para o cinema estrearam ambas no ano de
1985, 8 anos posteriores à sua morte: Estrela Nua, vagamente inspirado na obra de
Clarice e dirigida por José Antônio Garcia e Ícaro Martins, com composições de
Arrigo Barnabé; e A Hora da Estrela, adaptada da obra homônima, dirigida por
Suzana Amaral. Há muito o que se falar do filme como uma adaptação; para além
da ausência do narrador-personagem, o filme de Suzana Amaral insiste em alterar
os pequenos detalhes do livro: os nomes das colegas de quarto de Macabéa, que
no livro são todas chamadas Maria, mas que recebem outros nomes e
personalidade própria no filme. A expansão dos personagens do livro é uma
escolha, do meu ponto de vista, muito particular, como se a diretora, ao adaptar o
livro, tentasse preencher o vazio do mundo de Macabéa com personagens caricatos
que salgam a obra, como se transformasse a vida contida no livro em uma
hiper-realidade, onde as coisas ao seu redor respirassem mais do que a própria
Macabéa, transformada também uma caricatura de si. Nesse sentido, há uma
impressão de insatisfação com a obra que se adaptou, como se não bastassem os
limites pintados por Clarice, como se fosse necessário pintar além das molduras do
quadro, e, no processo, retirar do quadro o seu núcleo. Há uma decepção de
Suzana Amaral com a própria obra à qual se tenta adaptar, e eu imagino que seja aí
que mora o problema.

Existem também outros contrastes entre a obra e a adaptação, como a


mudança geográfica do espaço da história, retirando Macabéa de seu apartamento
na área portuária do Rio de Janeiro, e encaixando-a no grande contexto de
imigração nordeste-sudestina que teve seu polo na cidade de São Paulo, como se o
sal do mar não comportasse as febris noites de sono de Macabéa. E por um lado
essa mudança é compreensível, localizar Macabéa em um contexto
imigratório-político acrescenta à contextualização da obra e firma-a mais no chão,
mesmo que esse chão sejam as duras calçadas da capital paulista. Ademais, São
Paulo, como uma grande metrópole, comporta a narrativa emocional de A hora da
estrela, que passa por temas recorrentes de solidão e falta-de-sí. No entanto, retirar
A hora da estrela de seu contexto original, principalmente em uma adaptação
póstuma à morte da autora da novela, conjuga uma importante perda quanto à
memória afetiva presente na obra. Clarice, ao situar Macabéa na mesma cidade de
onde escreve, faz uma escolha contextual consciente, anda pelas ruas pensando
em Macabéa, encontra-a nas feiras e nas praças, nas listas telefônicas procura seu
nome e, nas horas mais quietas da noite, dorme ao som do rádio de Macabéa.
Clarice Lispector poderia somente escrever Macabéa se habitasse as mesmas ruas
em que Macabéa andou, e dormir as mesmas noites de febre que Macabéa dormiu.
Compartilhavam, no fundo de si, o mesmo âmago.

Resta então do filme um gosto azedo na boca. O filme não foi capaz de
libertar nem Clarice nem Macabéa. Há ainda um resto de Clarice pulsando nas
artérias do filme; quanto à Macabéa, continua a mesma, difícil seria se não
continuasse. Mas dói mais a ausência de Rodrigo, procurei, mas não pude
encontrá-lo. Se Suzana Amaral pudesse dirigir como Clarice pinta, se colorisse e
contornasse em cada plano as palavras de Clarice, sob os olhos de Rodrigo, se
assim pudesse a obra adaptar, então, sim, sucederia o filme como uma fiel
adaptação ao imaginário de Clarice, e não se perderia nada entre tinta e luz.

3. A lente como voz

[...] No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada.
Eu vos pergunto:

— Qual é o peso da luz?


A hora da estrela, Clarice Lispector.

Pode-se dizer que o estranhamento principal da adaptação de A hora da


estrela para o cinema é, para o olho mais apurado, a ausência do narrador intruso.
De uma forma contra-intuitiva, a ausência do objeto locutor no filme expõe um sabor
amargo, mesmo que a norma construída da forma cinematográfica indique
naturalidade na ausência de um narrador; afinal, o narrador se esconde em pleno
campo, e oculta-se no sacrifício de narrar, pois, se não tomasse parte nesse ritual,
não haveria sequer o que ser visto, e a sala de cinema que aguarda a projeção
continuaria escura.

A omissão do narrador como personagem dentro da composição narrativa no


cinema data desde o começo da forma cinematográfica; estamos acostumados a
interpretar a câmera como um espectro, e o filme propriamente dito como um
momento de suspensão da realidade, em que podemos abdicar da própria
materialidade do mundo ao nosso redor em troca de alguns momentos de distância
de qualquer realidade tangível. De maneira objetiva, o primo expositor dos fatos
narrados é, e sempre será dentro do cinema, a câmera.

O cinema (como expressão estética), desde sua gênese, bebeu da fonte do


saber literário; afinal, nos anos em que esse tempo se situa, já se estudara a forma
literária há séculos. Isso não qualifica dizer que o cinema não passou, naquele
tempo, por intensas fases de experimentação: tanto nos âmbitos estéticos, formais,
quanto nos políticos, de função; mas, no processo de solidificação da forma
cinematográfica nas mesmas colunas da literatura e do teatro, que também
passavam por intensas transformações, o cinema escorou-se nas artes milenares
de seus vizinhos, conjugando assim, a fundação do cinema narrativo sobre os
saberes da literatura e do teatro, que borravam cada vez mais as bordas entre lírico
e dramático, prosa e poesia. No momento em que efetivamente se estabeleceu o
momento transitivo do abandono da tradição das atualidades para o começo do
cinema narrativo, com a popularização das técnicas de montagem e edição junto
com o emprego dos roteiros e roteiristas, olhou-se cada vez mais para a tradição
literária como forma de inspiração. Georges Méliès, conhecido pioneiro da fundação
do cinema, sequenciava seus filmes a partir de um narrador letárgico, que assiste
inerte e impensante do topo de um trono. O narrador no cinema de Méliès não é
senão uma convenção para que se mostre o que se deseja mostrar; ele, nesses
filmes, não reage porque sequer se movimenta; afinal o desejo do narrador era
inseparavelmente o desejo do diretor, que se fundiam em um só no exercício da
fotografia. Dessa forma, condensou-se no cinema incipiente do começo do século
XX, a figura do narrador como uma antiga convenção herdada da forma literária
clássica, que no entanto havia sido superada pelos artifícios da fotografia,
dispensando a necessidade do narrador dentro da obra cinematográfica como
ser-pensante, que reage e interfere na execução amena da narrativa
cinematográfica tradicional. Obviamente essa afirmação não se aplica a qualquer
tipo de adaptação, assim como nem toda obra literária baseia-se em um narrador
intruso e parcial; no entanto, quando se articulam o desejo do diretor e o desejo do
narrador em um só monólito, oculta-se a forma literária no cinema, pois não se
expõe o narrador como entidade singular na narrativa, e sim como uma extensão
dos desejos do autor. Nessa lógica, a credibilidade da palavra no cinema narrativo
não é senão a do diretor, que controla a narrativa adaptada à sua própria forma.
Afinal, o narrador é, senão, uma ferramenta de abstração do mundo material, que
toma forma para exibir um recorte do real, uma parcela do invisível projetada numa
sala escura e suspensa. Afirmo novamente, o narrador é a câmera.

A afirmação da autoria do diretor entra, muitas vezes, em conflito com a


parcialidade narrativa presente no cerne da figura do narrador, assim opondo a
autoria cinematográfica com a autoria literária; serrando a execução autoral do filme,
praticada pela figura do diretor, da fidelidade adaptativa, que parte da identificação
do estilo literário dentro forma cinematográfica. Essa classificação polariza a
identificação do estilo narrativo dentro de um filme, onde, ao olhar da crítica popular,
ora se sobrepõe o estilo narrativo do diretor, ora se apoia na fidelidade à forma
literária adaptada, podendo ser tanto pautadas à forma quanto ao conteúdo.
Pauta-se muito a lógica da autoria cinematográfica quando discutidas as
adaptações literárias; retornado ao filme de Suzana Amaral, há uma clara dedicação
à autoria do roteiro, que inclui muitas escolhas que expandem a constelação da
obra, no entanto, a alteração da narrativa de uma obra e, portanto, seus temas,
implicam em adição à simple decisão autoral, uma escolha ideológica à obra
autoral, reforçando uma cisão entre os autores do percurso A e B, sendo A a
transmissão bruta das ideias do autor por via da obra, e B a reformulação desse
material, mediada pela equipe cinematográfica. Partindo da concepção de que toda
escolha dentro de uma obra é intencional, toda escolha então, seria também uma
escolha ideológica pautada no viés de quem a controla. E dessa forma, o cinema é
uma parte essencial do roteiro cultural-literário da modernidade, onde se presta
credibilidade às escolhas do autor sobre a leitura da obra. No entanto, a adaptação
cinematográfica seria também uma ferramenta criativa às capacidades do diretor,
que se propõe ao processo de tradução entre literatura e cinema.

Dadas as circunstâncias descritas, cabe a pergunta: Qual seria, então, o


propósito do cinema adaptativo no percurso cultural?. Essa pergunta, quando
derrama-se a taça no chão, tinge vários cantos do processo cinematográfico; desde
a escolha do material, à absorção da obra, ao roteiro e a concretização da
linguagem cinematográfica, até o impacto no público, que consome, e os espaços
de cultura, onde se consome, que serão afetados ou afetarão o legado da obra
adaptada, somados à sua matéria original que retorna à superfície.

Muito se pode dizer à respeito das diferenças entre a obra cinematográfica de


A Hora da Estrela, e o livro de Clarice Lispector, porém, para verdadeiramente
analisar qualquer uma das duas obras, é, a partir desse debate, crucial a cisão entre
um material e outro, onde a subtração entre os dois expõe o verdadeiro sentido da
obra adaptativa e suas escolhas autorais. A adaptação cinematográfica, assim lida,
torna-se um grito no escuro, a própria projeção invertida da câmara escura, e,
sobretudo, a deformação das lentes do autor.

Suzana Amaral, ao adaptar a obra, talvez realmente desejasse mais à


Macabéa, talvez visse nela um pedaço de si, talvez sentisse profundamente a nota
de Clarice, que ressonava, e que, talvez, também desejasse mais. Eu não culpo
Suzana Amaral por sua obra, não a culpo por ter concedido a si o direito ao grito
pelo qual Clarice tanto lutou; no entanto, é necessária a cisão entre as autoras, e a
inevitável oposição de suas obras. Suzana filma Macabéa por outras lentes, em um
vago futuro de Clarice, presa em uma página fechada sobre a mesa.
4. O pranto em película

A pobreza é a carga autodestrutiva máxima de cada homem e repercute


psiquicamente de tal forma que este pobre homem se converte num animal de duas
cabeças; uma é fatalista e submissa à razão que o explora como escravo. A outra, na
medida em que o pobre não pode explicar o absurdo de sua própria pobreza, é
naturalmente mística.

Glauber Rocha, Programe, Suplemento Especial da Tribuna da Bahia,


três de setembro de 1981.

A discussão da autoria cinematográfica pode se tornar, no entanto,


autoimune, ao pautar a verdade da obra em suas duas metades, assim, regulando a
credibilidade da obra somente aos seus laços com a obra original, tornando assim o
consumo da adaptação, ausente da leitura complementar de sua obra original, uma
experiência incompleta e iludida, impossibilitando diante dessas condições uma
experiência “verdadeira” do cinema adaptativo ausente do suporte de suas bases
predecessoras. Muitos intelectuais e cineastas, assim como eu, defendem o filme
adaptado como uma obra externa, que coincide com o objeto de adaptação bruto
somente em sua concepção, podendo assim divergir ou convergir em quaisquer
pontos. Grandes marcos do cinema global vieram da cisão da obra cinematográfica
com sua inspiração literária, como, por exemplo, O Iluminado, de Stanley Kubrick,
que, a partir de extensas liberdades formais do diretor, diverge tanto da obra original
que até mesmo o seu autor, Stephen King, o condena como uma “má adaptação”,
adaptação a qual o filme, muito claramente, nunca se dispôs a ser.

As críticas à “má adaptação” se apoiam na ideia de que o cinema e a


literatura se expressam no mesmo eixo, concepção que abdica das individualidades
e recursos formais de cada forma expressiva. A literatura pode somente basear seu
uso de imagem a partir da composição e flexão da semântica, enquanto o cinema
dispõe de recursos tanto verbais quanto fotográficos na conjugação do roteiro,
assim, não é justo comparar as formas expressivas de cada recurso, tendo em vista
que a escolha formal faz também parte das escolhas tomadas por um autor ao
escrever uma obra. Quais seriam os recursos estéticos dispostos nos objetos do
cinema que revelam aquilo o que a palavra não consegue, e afinal, quais as
consequências da consagração desses objetos?

Cabe, na análise contextual da obra de Suzana Amaral, olhar


cronologicamente a formulação do cinema de adaptação no Brasil, tal como sua
validação internacional em primeiro momento, com a propulsão global do Cinema
Novo. O cinema nacional, em meados da década de 60, passava por um momento
de intensa crise identitária; revelou-se a partir do grande relógio da história a
posição cardinal da vida na periferia. Com o desenvolvimento da indústria cultural
estadunidense e uma cultura de massas cada vez mais imperialista, a arte, no
Brasil, foi posta em uma bifurcação na trilha do seu desenvolvimento; foi
demandado do cinema um movimento em que ou seguia-se trilha desenvolvendo
uma indústria cultural fundada na exportação, ou se rejeitava as normas formais da
estética cinematográfica, como uma espécie de anti-cinema. Dessa forma,
desenvolveu-se, no campo intelectual das artes de esquerda, dois grandes
movimentos cinematográficos: O cinema marginal, fundado na subversão das
normas e leis do cinema europeu, visando expor a matéria periférica e marginal do
Brasil; e o Cinema Novo, fundado na tradição cinematográfica dos grandes festivais
europeus, como o festival de Cannes e o festival de Viena, pautados em um senso
estético secular europeu, que, segundo os pensadores do Cinema Novo, poderia
ser produzido a partir da puríssima matéria, mesmo nas condições periféricas da
produção de cultura no Brasil, partindo simplesmente do preceito de “uma câmera
na mão e uma idéia na cabeça”.

O Cinema Novo teve grande repercussão nesses festivais de cinema,


apresentando um retrato sensível, viabilizado pelo desenvolvimento da técnica
cinematográfica trabalhada na Europa, que tingia uma nova poeira à antiga parede
descamada do Brasil. Um dos trabalhos mais notáveis desse movimento é Vidas
Secas (1963), dirigido por Nelson Pereira dos Santos a partir da obra homônima de
Graciliano Ramos. O filme em seu produto final agrada tanto aos “puritanos” do
cinema narrativo, ao representar em película fielmente os acontecimentos do livro,
quanto aos interessados no filme como uma formulação estética singular, que rejeita
sua interpretação dentro de um vácuo e formula, imageticamente, a seca e a fome
no Nordeste do Brasil. O filme também recebe seu mérito pela transcrição das
peculiaridades narrativas do romance, que é narrado em discurso indireto livre. No
filme, o narrador participa da direção no momento em que, assim como no livro, a
câmera escolhe focar em um membro da família por vez, conjugando a transcrição
fiel da estrutura narrativa do romance para o cinema, mas sem deixar de também
aproveitar-se das especificidades formais das ferramentas expressivas
cinematográficas.

A escolha do discurso indireto livre, tanto no filme quanto no livro, pauta a


quebra da barreira narrador/narrado, em que o autor, externo às convulsões do
enredo, convida-se e convida-nos a participar da turbulência psíquica da trama,
onde o enredo se transforma, para o leitor, em uma onda de consciência,
interrompida somente pela segmentação cronológica da obra em capítulos (ordem
alterada na adaptação cinematográfica), em que objeto e sujeito se borram em um
só quebrando a ordem eu/eles convencionada na forma tanto literária quanto
cinematográfica. Assim, em oposição a A Hora da Estrela, que convida o leitor a
compreender seus personagens a partir da segregação entre a psicologia dos dois,
Vidas Secas, apesar de tratar de alguma forma da mesma matéria social da miséria,
convida o leitor a abdicar de sua própria psicologia para a aproximação da tormenta
de seus personagens, por alguns safos momentos de leitura.

O filme de Nelson Pereira dos Santos insere-se em um contexto muito


importante para o desenvolvimento do cinema nacional, quando as tensões políticas
exigiam que se alcançassem as massas da maneira mais cristalina possível,
tornando o desenvolvimento das estéticas de esquerda uma grande pauta no
mundo das artes que se ocupavam com o exercício de militância. No entanto,
tornavam-se cada vez mais escassos no Brasil os recursos para a produção de um
cinema de qualidade comercial, que na época estava sendo estabelecida pela
intrusa indústria Hollywoodiana de cinema americano, que ocupava um espaço
considerável no consumo cultural das massas populares brasileiras, conjugando
assim, no olho dos economistas da época, uma demanda baixa para a produção
nacional de cinema, já que essa demanda estava sendo suprida pelo material
ideológico que vinha dos Estados Unidos. O público geral não estava acostumado
com a intensidade das estéticas de esquerda, pautadas na flexão da elaboração
formal para a comunicação com o público a partir do rompimento da convenção
formal do cinema. Consumia-se menos e menos o “cinema de guerrilha” a não ser
pelos verdadeiros estudiosos e interessados nesse tipo de cinema, que detinham
conhecimento sobre as questões formais e críticas da arte. Glauber Rocha,
aclamado diretor do Cinema Novo, por exemplo, fundou seus princípios estéticos
em filmes como Limite (1931) de Mário Peixoto, e nas obras de autores como Mário
Faustino e o próprio Graciliano Ramos.

O filme Limite, especificamente, nos interessa como uma comprovação da


inviabilidade do consumo desse tipo de cinema pelo público geral na época, por
questões relativas à difícil distribuição da produção artística independente, antes da
popularização efetiva dos procedimentos de cópia do filme físico, no cinema
(completamente ou semi) independente e do mimeógrafo, na literatura marginal. A
partir de registros e documentos históricos escassos, é possível notar que o filme
haveria sido rodado somente em escassas sessões de cinema em cineclubes
acadêmicos, um dos quais participava Glauber Rocha em seus anos incipientes.
Dessa forma, a exposição do público a um cinema “verdadeiramente” estético, de
esquerda, era limitada somente aos espaços de estudo e prestígio intelectual,
fazendo com que o desenvolvimento de uma estética nacional tomasse lugar
somente às margens da indústria cinematográfica que se desenvolvia nos polos de
influência global (sobre o Brasil: principalmente a estadunidense, que traçava
relações com o país desde o cinema de Carmen Miranda).

Assim, Vidas Secas, apesar da lustrosa aclamação internacional, não vingou


na tentativa de elaborar uma fundação estética para o cinema de massas, dado que
o alcance desse tipo de cinema já se conjugava limitado.
Com a violenta repressão dos movimentos de esquerda, principalmente após
o ato institucional 5 (popularmente conhecido como AI5), tornou-se cada vez mais
inconcebível a possibilidade de uma elaboração da cultura de massas que não
fosse coagida pela ideologia semeada pelos órgãos da ditadura. Em um regime
panóptico, que se somava com uma crise geral da economia nacional, tornavam-se
cada vez mais escassas as produções independentes, que também, por uma
questão de sigilo e segurança, ocupavam cada vez menos o espaço físico do
cinema. Nesse contexto de escassez de recursos para a produção cultural ou
sequer para a fundação de uma indústria cinematográfica Brasileira, investiu-se, a
partir da gestão governamental, na produção de material televisivo, e na criação de
editais para a produção de cinema. E é nesse contexto tumultuoso que se inicia a
era da Embrafilmes.

Fundada em 1969, a Embrafilmes (Empresa Brasileira de Filmes, S.A.),


vinculada à secretaria de educação e cultura do regime militar, cumpriu o papel de
investir na produção e distribuição de filmes, a partir de um orçamento anual de
cerca de 12 milhões de dólares, distribuído em cerca de 25 editais para filmes,
dispondo-se assim, como uma forma de fomentação à uma incipiente indústria
cultural brasileira. No entanto, o órgão, que padecia de grande viés ideológico no
financiamento da produção cinematográfica, tanto no campo da ficção quanto no
campo da pedagogia, era condicionado, e gestionado, pelo regime de repressão
que pregava suas raízes no povo. A Embrafilmes foi um órgão complexo de caráter
dúbio, que ora possibilitava o cinema, ora o restringia, tanto pela minuciosa censura
quanto pelos seus desnecessários processos burocráticos, que permeavam a vida
nos anos de chumbo; marcando essa era do cinema nacional como um tempo de
luta pela própria possibilidade de produzir cinema, em que produzir cinema
significava caminhar contra o vento forte que soprava das trombetas do planalto. O
que regeu então como estética nacional foram os filmes de amplo consumo do
público nacional interno, que o consumia mais consistentemente do que outros tipos
de filme, dos quais se destacam as pornochanchadas e os filmes didáticos, que
recebiam uma atenção sempre maior dos editais, por gerar mais público do que as
produções cinematográficas propriamente-ditas, e, consequentemente, mais lucro
do que elas. E é nesse contexto que se bate a última estaca do projeto Brasileiro de
cinema moderno, onde o Cinema Novo, abafado pelos ares da ditadura, mede seus
últimos esforços contra os golpes do martelo e o velar da sepultura, dando início à
uma era nebulosa do cinema nacional.

É óbvio que muito foi produzido também com a ajuda da Embrafilmes; filmes
como A idade da terra (1980) de Glauber Rocha, Mar de Rosas (1977) de Ana
Carolina, e, em anos posteriores aos anos de chumbo, filmes de subversão à
estética e temática semeada pelos anos da ditadura, como Pixote (1980) de Hector
Babenco e Eles não usam Black-Tie (1981) de Leon Hirszman. Por esses e muitos
outros motivos que a Embrafilmes se situa em um contexto ideologicamente cinza,
no entanto, nos interessa as questões de contexto permeadas pela fundação da
Estatal, assim como seu alcance em termos da produção de memória coletiva, que
permeia também inevitavelmente o campo da cultura.

A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, foi financiado e distribuído a partir do


orçamento de uma estatal da Embrafilmes. O filme, que estreou nos cinemas do
Brasil no dia 25 de abril de 1985, recebeu, assim como Vidas Secas, vasta
aclamação da crítica e do público, e fez sua rota pelos festivais mais importantes de
cinema do mundo, como o festival internacional de Berlim, onde ganhou a
premiação do urso de prata; e nos Estados Unidos, umbigo da indústria cultural,
onde concorreu também como indicação brasileira à cerimônia do Oscar,
concorrendo pela categoria de melhor filme estrangeiro em 1986. O filme foi um
grande sucesso tanto localmente quanto internacionalmente, evidenciando a
universalidade de sua narrativa e de sua linguagem, que não se restringem ao
cenário único das questões político-sociais, que atravessaram a produção do filme e
da obra de Clarice Lispector.

Essas indicações sugerem tanto questões relativas à qualidade intelectual do


filme, reconhecida pelas mais diversas instituições acadêmicas de crítica
cinematográfica, quanto às qualidades de sua produção e concepção, que em uma
análise mais atenta, será possível notar certos padrões para o reconhecimento da
linguagem cinematográfica em contextos internacionais. Pensando na Embrafilmes
como um órgão exportador da produção cinematográfica (onde a qualidade da
exportação era também duvidosa) e núcleo da indústria cultural brasileira durante a
segunda metade do século XX, flutuam à superfície as evidências de um filme
produzido sem conotações contextuais. Se cita a origem de Macabéa e se evidencia
sua situação de miséria, no entanto, nada sobre a narrativa do filme restringe-se ao
contexto de São Paulo, cidade que o filme propositalmente escolhe mas no entanto
não trabalha nada sobre, ou também faz referência às grandes questões
imigratórias no brasil do século XX, contexto o qual se insere a personagem mas,
novamente, não se aprofunda de maneira alguma. Todos esses são indícios de um
filme brasileiro criado dentro do vácuo da própria história, os personagens do filme,
principalmente Macabéa, se tornam objetos de projeção ao invés das evidências
culturais construídas por Clarice, de uma pobreza que se mistifica na falta de razão
à sua própria existência e de um narrador burguês que aliena a pobreza na falta de
saber o que fazer com a sua própria culpa. Sem narrador e sem contexto, a obra é
enxugada de suas rugas, polida em um produto para exportação. A Hora da Estrela,
é senão um diagnóstico do projeto cultural da Embrafilmes, onde o cinema
desamparado regressa à prática literária a fim de encontrar nela um novo começo, e
nesse sentido, e em muitos, o filme foi, de fato, um grande sucesso.

Cronologicamente, segue a mesma prática habituada em A Hora da Estrela


no filme Central do Brasil (1998) de Walter Salles, um filme que parte de um pouco
mais de fundamento cultural quanto ao seu enredo, mas que não implora por
contexto, pois o contexto do filme é contido dentro de si, partindo de apresentações
formais do espaço e do tempo da narrativa. O filme, no entanto, se formula em um
contexto pós-Embrafilmes, conhecido como o período de retomada do cinema
Brasileiro, onde se cria um vácuo na cronologia entre o fim da Embrafilmes em
1990, decretado por Fernando Collor, e o retorno gradual das estatais de cinema a
partir de 1992 com o retorno efetivo pontuado em 1995, marcado pela estreia de
Carlota Joaquina, Princesa do Brasil de Carla Camurati. Central do Brasil, dessa
forma, representa uma tentativa efetiva de exposição internacional do cinema
nacional, que havia sido esquecido pelos longos anos de sua ausência. Portanto,
não condeno Central do Brasil, mas afirmo que sua formulação a partir dos
elementos que A Hora da Estrela descobriu motivar a crítica estrangeira foi uma
escolha consciente fundada no estado materialmente crítico em que o cinema
Brasileiro se encontrava durante a década de 90. Assim, a criação de uma
identidade nacional a partir da dissociação dos elementos estéticos da cultura
Brasileira de seu contexto, e a apropriação das convenções da indústria cultural,
servem, senão, para agradar a crítica internacional e o público local, que se
encontra desfamiliarizado com a própria situação, portanto não estranha sua
omissão.
5. Cinema e autoria

Vejam, quem era pobre e dormia sozinho, agora escolhe grandes damas;
quem tinha de olhar seu rosto na água, agora tem espelho.
Mesmo os coronéis do país agora estão sem emprego. Aos grandes não se
relata mais nada.
Quem era mensageiro, agora envia um outro…

Bertolt Brecht, Cinco dificuldades de escrever a verdade.

Por muito tempo pensou-se o narrador como um artifício narrativo exclusivo


da literatura, no entanto, entende-se como narrador aquele cujos olhos projetam a
luz da narrativa; seja o narrador literário, cinematográfico ou qualquer outra forma
em que esse recurso formal se articula. O pensamento narrativo está, ao contrário
do que usualmente presume-se sobre a linguagem cinematográfica, no centro de
sua forma, ocupando uma função inerente do processo cinematográfico, que
evidencia-se a partir do narrador e das ferramentas de seu autor. Assim, exprime-se
o narrador como figura absoluta do relato, que transmite-se a partir das expressões
do Objeto-Locutor, artista da imagem: feita palavra ou cinema.

Adaptar, no âmbito do cinema, significa, então, tomar propulsão para


contestar as questões formais da literatura, como uma superação da ferramenta
intelectualizante do veículo literário. Assim, a voz cinematográfica assume-se de
maior intenção revolucionária, negando os aspectos formais da literatura e
superando, a partir da imagem fotográfica, os limites da forma literária, e dessa
forma mapeando também os limites do cinema. Assim, cabe ao cinema ativo
tensionar os limites de sua atuação, como forma convencionada de comunicação no
tempo presente, borrando as margens entre ficção, cinema e realidade para formar
um interlocutor ciente de seu tempo e de suas questões, afinal, creio eu que
exige-se uma materialidade das questões imagéticas para a identificação temática
de um contexto social. No entanto, quando o cinema toma palco a literatura se
esconde em segundo plano. Resta à literatura o papel de repertório para uma
cultura que não a identifica mais como tempo-presente.

Essas contradições expõem-se também no filme de Suzana Amaral, onde o


livro de Clarice é tratado, senão, como relíquia cultural, novamente em segundo
plano ao filme. Há uma promessa em A Hora da Estrela de Clarice, uma promessa
de elaboração do outro, do florescer da alma e o penar de seu caminho às estrelas,
uma promessa da própria dificuldade de se olhar além. O filme, ao omitir os pilares
narrativos de Clarice, ignora a guturalidade da obra, onde o autor narra senão uma
expressão de seu sujeito, impressa no outro na forma de Macabéa. Macabéa é
atingida pelo autor do filme, não há dúvidas, porém, a cisão de sujeito e objeto
expressa pela forma em que se expõe o autor do livro pauta justamente, na sua
omissão, a ausência do caráter problematizante da autoria do outro. Clarice, em sua
obra, escreve fundamentalmente sobre o processo narrativo, Rodrigo e Macabéa
são na verdade, dentro dos símbolos da autora, expressões do eu e do outro,
assim, se conjuga uma obra sobre a culpa inerente do processo narrativo como um
processo de classe, delimitando aquele que escreve e aquele que é escrito; ou no
cinema, aquele que filma e quem se filma. Afirmar a autoria em um filme assim
significa também responsabilizar-se por suas decisões.

Dessa forma, filmar, assim como ser filmado, se trata de uma afirmação de
classe, assim como a detenção do objeto narrativo. Eu imagino que isso deve ser
levado em consideração quando se analisa a obra de Suzana Amaral, afinal,
trata-se também de uma revolução o momento em que Suzana põe suas mãos à
câmera, prestes a eternizar o sofrimento de Macabéa em luz: a detentora do objeto
que se filma, filma porque encontra em Macabéa um reflexo de si. O filme A Hora da
Estrela, trata-se, por essas lentes, de uma obra além de sua matriz, que sacrifica o
narrador a fim de ampliar o debate apresentado no livro para a forma
cinematográfica; no filme, as relações entre narrador e narrado apresentam-se além
de seu conteúdo formal, no limite em que Suzana não se manifesta no filme; essas
relações estão expressas no processo adaptativo, não comentado formalmente por
qualquer elemento técnico ou narrativo, mas ainda presente. Cabe ao espectador
procurar Rodrigo fora do filme, conjugando uma obra onde reflete-se o objeto
narrado de volta ao narrador, imaginando Suzana como parte desse processo que
se apresenta o livro, onde, hipoteticamente, inventa-se Macabéa a partir de Rodrigo,
e, conseguinte, Macabéa é apropriada e refletida de volta às lentes de Rodrigo.
Dessa maneira, o livro de Clarice Lispector é uma parte essencial da compreensão
do filme, que ora limita seu entendimento, ora o expande, tecendo uma rede de
intertextualidades entre as duas autoras, mesmo que compartilhem da mesma raiz.

No entanto, retorno à minha posição original, mesmo tendo em conta o futuro


frutífero prometido pelo filme, por razões formais, o roteiro se esvai qualquer caráter
revolucionário implicado pelos laços marcados entre as obras, diluindo a potência
emocional do texto original em múltiplos momentos, com escolhas toscas marcadas
pela concretização de um caráter nada sério do cinema nacional fomentado pelo
financiamento da indústria da chanchada como a indústria nacional do cinema.
Imagino eu que isso possa ter marcado profundamente a produção de filmes no
brasil; sucesso público, por esses parâmetros, significa fazer escolhas drásticas no
roteiro, escolhas essas que removem o caráter melancólico inerente no corpo das
obras de Clarice. O filme, nesse sentido, zomba de si, permeando uma disseriedade
relativa às obras cinematográficas dirigidas por mulheres, marcado talvez pelo
financiamento da embrafilmes, que sempre manteve punho sobre seus editais.

Olhando para o futuro posterior à A Hora da Estrela, muito mudou entre


esses dois tempos: houve um retorno à uma produção cinematográfica
verdadeiramente nacional com a instituição da Ancine na virada de século, onde os
cineastas do Brasil puderam finalmente retornar à elaboração das questões
estéticas, que iniciaram-se nos tempos do Cinema Novo, mas que se encontravam
suspensas até o final da ditadura e o retorno da livre prática cultural. Mesmo hoje se
venera muito a obra de Suzana Amaral como um verdadeiro grito no escuro, em
tempos onde não havia o direito ao grito, em que era preciso esguiar-se por
burocracias repressoras e longos processos editais para que se obtivesse qualquer
chance de grito durante um tempo histórico de abafamento.

A Hora da Estrela, em sumo, se trata de um compromisso com a verdade, um


compromisso com o diálogo aos mecanismos internos da ideologia no campo da
cultura. Assim, qualquer modulação de seu núcleo, a história de Macabéa, é
permeada pelas implicações levantadas pela obra original, afinal, Clarice escreve a
obra com razão de seus elementos, conjugando um edifício que cai na remoção de
qualquer uma de suas fundações; digresso, não cai, mas carece dos mesmos
princípios, instituindo que sua alteração significa, sobretudo, um impasse com as
questões formais instituídas por Clarice.

Assim afirmo pela última vez que a omissão do narrador na obra de Suzana
Amaral trata-se de uma escolha ideológica, talvez pautada nas circunstâncias de
seu tempo, mas que deforma sobretudo o olhar de Clarice, substituído pelo olhar da
câmera. A Hora da Estrela de Suzana Amaral evidencia, em sua essência, o papel
transformador da transfiguração da narrativa literária a caminho da narrativa
cinematográfica, em que esse papel exerce uma alteração fundamental tanto da
forma narrativa, quanto da forma objetiva do enredo. Assim, a adaptação literária
para o cinema é uma ferramenta essencial de compreensão de um tempo histórico,
que atravessa a produção de um filme em todos os seus eixos; e, ademais, a
adaptação literária exerce também um papel transformador dentro do pensamento
cinematográfico, onde todas as elaborações estéticas e formais devem entrar em
cheque mediante a um processo transfigurativo de tradução entre texto e tela.
Manifesto aqui o verdadeiro potencial transformador do cinema, o cinema é uma
ferramenta cultural, portanto, o cinema é também uma ferramenta revolucionária,
sim.

Para não esquecer que ainda brilham moedas no fundo da fonte, encharcadas pelo sol
desse verão, e lembrar que, mesmo depois de tantos anos, ainda é tempo de
morangos, mais uma vez, sim.
6. Considerações finais

Esse trata-se de um ensaio ainda sem resposta, e enquanto não houver


resposta continuo a escrever. Lembro-me de um dos últimos comentários da minha
orientadora relativos a este mesmo ensaio, “você não quer parar de escrever não
é?”, essa pergunta ecoou profundamente pela sala, sim, de fato falta muito a
escrever sobre o tema. Quanto mais penso nesse comentário mais noto a
importância de pontuar os finalmentes desse tema, percebo que, sim, escreveria
para sempre, porque me falta escrever, mas medito também a importância do
ensaio como norteador de uma discussão, e portanto, uma cadeia de pensamentos
que aguarda libertação. Termino finalmente meu ensaio com a esperança de que as
ideias aqui tecidas encontrem liberdade no mundo afora, e que possam libertar
também outras discussões. Agradeço profundamente o apoio da minha orientadora
Ivone por soar nas grutas dos meus ouvidos um novo jeito de libertar as palavras
em mim, afinal, o conhecimento liberta a todos, novamente sim.

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