02 Problemas Sanitários, Médicos e Sociais
02 Problemas Sanitários, Médicos e Sociais
02 Problemas Sanitários, Médicos e Sociais
A expressão vigilância sanitária é própria do Brasil, mas ações de regulação e vigilância sanitária são
práticas universais. Segundo Rosen, em todas as épocas houve intervenções do poder de autoridade
sobre as práticas de cura, os medicamentos, os alimentos, a água, o ambiente.
Vigilância Sanitária (VS) constitui um espaço institucional, historicamente determinado e integra a Sa-
úde Coletiva enquanto campo de conhecimento e âmbito de práticas. Cabe-lhe desenvolver ações es-
tratégicas no sistema de saúde, regulação sanitária das atividades relacionadas ao ciclo produção/con-
sumo de bens e serviços de interesse da saúde, da esfera privada e pública. Sua dinâmica se vincula
ao desenvolvimento científico e tecnológico e processos políticos que perpassam o Estado, o mercado
e as sociedades no âmbito interno e internacional.
No País, estão sob VS alimentos; medicamentos; produtos biológicos – vacinas, hemoderivados, ór-
gãos e tecidos para transplantes; produtos médico-hospitalares, odontológicos e laboratoriais, órteses
e próteses; saneantes; produtos de higiene, perfumes e cosméticos; serviços de saúde e relacionados
à saúde; controle sanitário de portos, aeroportos e fronteiras. Novas competências foram incluídas com
a criação da Anvisa, como a anuência de patentes de medicamentos, o controle sanitário dos produtos
do tabaco.
Qualquer produto, substância, processo ou serviço direta ou indiretamente relacionado à saúde pode
ser objeto de intervenção, cuja vigilância exige conhecimentos de diferentes disciplinas especializadas
da área da saúde e outras, como o Direito, que se articulam num conjunto organizado de práticas
técnicas e políticas, de natureza multiprofissional e interinstitucional voltadas à proteção da saúde.
O objetivo da VS é eliminar, diminuir e prevenir riscos à saúde inerentes à produção e ao uso de pro-
dutos e serviços de interesse da saúde ou às condições de seus ambientes. Para atuar a VS possui o
atributo do poder de polícia, de natureza administrativa, que lhe permite limitar o exercício dos direitos
individuais em benefício do interesse público.
Com este aparato de conhecimentos, funções e instrumentos, a VS atua principalmente por meio de
regulamentações sobre concessão de licenças sanitárias para a produção e comércio de bens e servi-
ços; registro de produtos para a fabricação e consumo; certificação de boas práticas de produção;
monitoramento da qualidade de produtos e serviços; fiscalização do cumprimento das normas; comu-
nicação e educação sobre riscos e vigilância de eventos adversos relacionados a esses bens.
Assinale-se a importância deste componente do sistema de saúde, cujas ações são essencialmente
preventivas. Como enfatiza Lucchese, vigilância sanitária é SUS (Sistema Único de Saúde) e é um
espaço privilegiado de intervenção do Estado que pode atuar para elevar a qualidade de produtos e
serviços e adequar os segmentos produtivos de interesse da saúde e os ambientes às demandas so-
ciais em saúde e necessidades do sistema de saúde.
O objetivo deste artigo é delinear uma visão geral da natureza e funções da VS e sua trajetória na
conformação do SUS, considerando a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e
do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) como relevantes pontos de inflexão. Recorreu-se
a fontes bibliográficas e documentos oficiais, cuja discussão foi enriquecida pela trajetória dos autores,
que trabalharam em órgãos de vigilância sanitária, além da experiência profissional como pesquisado-
res, docentes ou operadores de políticas públicas em saúde.
As ações preventivas definem-se como intervenções voltadas a evitar o surgimento de doenças espe-
cíficas, com redução de sua incidência e prevalência. Fundamentam-se na epidemiologia, na qual o
conceito de risco corresponde à probabilidade de ocorrência de um evento, em um período de obser-
vação, em população exposta a determinado fator de risco e é sempre coletivo 8. Este conceito de risco
é fundamental, mas insuficiente para a área de VS, cuja maior parte das ações são dirigidas à proteção
e defesa da saúde, tendo o risco como possibilidade 3, pela grande dificuldade em realizar cálculos de
probabilidade.
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A proteção da saúde fundamenta-se num conceito estrutural de risco como possibilidade 9 de ocorrência
de eventos que poderão provocar danos à saúde, sem que necessariamente se possa definir qual o
evento e se algum ocorrerá. Do sentido de risco como possibilidade deriva a noção de risco potencial,
um conceito operativo para a VS, pois devido à natureza essencialmente preventiva de suas ações
deve acionar intervenções diversas face à possibilidade de que algo sob vigilância possa causar danos
à saúde direta ou indiretamente.
Com o desenvolvimento das forças produtivas, o escopo das ações de VS se ampliou, para regular,
por exemplo, os riscos relacionados ao trabalho; o transporte de cargas e pessoas, pelos riscos de
disseminação de vetores e agentes patogênicos; a pesquisa médico-farmacêutica; a propaganda de
interesse da saúde; atividades em eventos de massa e cada vez mais avaliação de riscos e vigilância
de eventos adversos de produtos e tecnologias utilizados em saúde.
Ao final dos anos 1990, o Brasil acumulava muitos eventos negativos relacionados à área de atuação
da VS, com grande destaque na mídia nacional e internacional. Entre 1996 e 1998, a falsificação de
medicamentos agravou-se; o Ministério da Saúde (MS) registrou 172 casos, entre eles medicamentos
de grande consumo como o Androcur® (acetato de ciprosterona), o Epivir® (lamivudina) e o Invirase®
(saquinavir). Roubos de cargas de medicamentos, venda de medicamentos ilegais (sem registro no
Brasil ou contrabandeados) e medicamentos de baixa qualidade ou validade vencida formavam um
quadro de grande preocupação e insegurança com os medicamentos no País.
A tragédia radioativa de Goiânia (GO) em 1987, devido ao abandono de uma ampola de Césio anteri-
ormente utilizada por um serviço de radioterapia; os óbitos de idosos na Clínica Santa Genoveva, em
1996, no Rio de Janeiro (RJ); de 71 pacientes de duas clínicas de hemodiálise, em Caruaru (PE), em
1996, devido à contaminação da água por algas as mortes de 85% dos bebês recém-nascidos no Hos-
pital Infantil N. Senhora de Nazaré, em 1996, em Boa Vista (RR); os 82 registros de problemas com o
uso do soro Ringer Lactato, com 32 óbitos de pacientes de hospitais da rede privada em Recife (PE),
em 1997, vítimas de acidentes tromboembólicos pela contaminação de soro do laboratório Endomed;®
e o caso da “pílula de farinha”, em 1998, com o anticoncepcional Microvlar®, da Schering do Brasil,
principalmente em São Paulo, entre outros, marcaram a saúde pública e expressaram a fragilidade da
regulação sanitária da época.
Nos estados e municípios a situação não era diferente, com estruturas acanhadas e insuficientes para
o cumprimento da missão da VS, prevista na legislação do SUS. A situação trazia muitos riscos à saúde
e incomodava até o setor produtivo, pela incerteza e demora da ação institucional.
Assim, foram criadas agências reguladoras para atividades em áreas de atuação do Estado que foram
privatizadas, criando-se duas agências na área social, a Anvisa e a Agência Nacional de Saúde Suple-
mentar (ANS)para regular a assistência suplementar.
A princípio, a criação da Anvisa provocou preocupações de que uma agência em separado ameaçasse
a unidade do SUS e temor de que o modelo de agência aproximasse a VS dos processos de privatiza-
ção de atividades então desenvolvidas pelo Estado. Mas a Lei nº 9.782/1999 enquadrou a Agência à
norma constitucional do SUS.
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A Lei nº 9.782/1999 formalizou o SNVS com um vazio quanto à configuração, organização, princípios
e diretrizes. Tal ausência, que persiste, enseja a realidade de um sistema fragmentado, sem direção,
fragilmente estruturado em laços de cooperação e responsabilidades e de eficácia relativa.
Apesar de avanços, a relação com os gestores estaduais e municipais se ressente da postura centra-
lizadora da Anvisa, que pouco contribui para efetivar a descentralização, ao não reconhecer regimen-
talmente competências técnicas e legais desses níveis em alguns processos de trabalho. Não houve
até o momento decisão política de consolidar o SNVS no âmbito do SUS.
Se, por um lado esse sistema está normativamente delineado, por outro sofreu o que se pode chamar
de reestruturação incompleta, pois apenas o componente federal foi reformado estruturalmente.
A natureza sistêmica do SNVS, formado de partes que operam politicamente o SUS, confirma o pres-
suposto de que a proteção da saúde coletiva contra os riscos sanitários, que têm origem nos processos
sociais, embora tenha o suporte imprescindível do conhecimento técnico-científico, é tarefa de natureza
política e assim deve ser percebida e cobrada aos gestores da saúde.
A descentralização das ações de VS é, além de um princípio norteador, uma estratégia de seu fortale-
cimento nas três esferas de governo. Para ser efetiva, deve ser acompanhada dos recursos financeiros,
apoio técnico e instrumentos de gestão que se façam necessários ao fortalecimento dos entes federa-
dos, conforme as diretrizes e princípios do SUS; descentralização com responsabilidade institucional e
não apenas como apoio extemporâneo às demandas da Agência, em atividades pontuais, face à pro-
ximidade política e geográfica de estados e municípios aos loci dos problemas identificados.
No caso da Anvisa, a arrecadação de taxas representa parte considerável de seu orçamento anual,
mas, quando ocorre algum superávit, os valores ficam em conta do tesouro nacional, impedidos de
serem utilizados em outra finalidade e não têm retorno direto ao orçamento da Agência, tampouco
podem ser destinados aos demais parceiros do sistema.
Entretanto, pode-se dizer que desde a criação da Anvisa a atuação dos entes do SNVS foi bastante
melhorada, com qualificação de pessoal, melhor estrutura física e outros recursos de controle e fiscali-
zação sanitária; e que a ação do SNVS foi o principal determinante para que atualmente não ocorram,
na mesma proporção, os casos calamitosos e os temores do final da década de 1990 comentados.
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Os fatos dos anos 1990 mostraram que o SUS foi vítima de sua própria fragilidade: hospitais públicos
e privados contratados/conveniados compravam medicamentos falsificados ou adulterados de empre-
sas produtoras ou atacadistas ilegais ou fraudulentas; prestadores de serviços ao SUS realizavam
atendimento desqualificado que, em vários casos, levou à morte muitos pacientes.
Infere-se que a plena estruturação da VS é crucial à implementação do SUS, sobretudo pelo seu poder
normativo e fiscalizador dos serviços conveniados ou contratados e dos insumos diagnósticos e tera-
pêuticos utilizados nos serviços. E embora integrem as atribuições da VS, as ações de controle sanitário
dos serviços de saúde não têm sido aquinhoadas suficientemente para desenvolver competências
quanto à qualidade da assistência.
Dados, recentemente divulgados como parte de um estudo feito pela Faculdade de Medicina da Uni-
versidade Federal de Minas Gerais, sob encomenda do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar21,
revelam uma situação preocupante na rede de serviços de saúde. A cada dia 829 brasileiros morrem
devido a eventos adversos, em hospitais públicos ou privados. Foram 302.610 óbitos, em 2016. Ade-
mais, tais eventos ocasionam sequelas que comprometem habilidades para as tarefas cotidianas, além
de sofrimento psíquico e aumento do custo assistencial.
O estudo se baseou em dados de 133 hospitais, durante um ano, considerando erros de diagnóstico,
de dosagem ou de administração de medicamentos, uso incorreto de equipamentos, infecções hospi-
talares etc. Estes eventos adversos são classificados como plenamente evitáveis. O número de óbitos
impressiona e seria a segunda causa de morte, atrás apenas das doenças do aparelho circulatório,
conforme sistemas de informação do MS.
Tais fatos ressaltam a importância do tema qualidade dos serviços de saúde e a imperiosa necessidade
de instauração da cultura de segurança do paciente, conceito compreendido como o objetivo de reduzir
a um mínimo aceitável o risco de dano desnecessário associado ao cuidado de saúde. A ação da VS
mostra-se essencial ao êxito do Programa Nacional de Segurança do Paciente, instituído com a Porta-
ria ministerial nº 529 de 01/04/2013, seguida da Resolução da Anvisa nº 36 de 25/07/2013.
Autores apontam que o uso inadequado, equivocado ou abusivo de medicamentos prescritos constitui
a terceira causa de morte no mundo, depois das doenças cardíacas e das neoplasias 23. Os Estados
Unidos da América e a Europa vivem duas epidemias altamente letais, devido ao uso do tabaco e dos
medicamentos, o que tem preocupado e induzido estados nacionais a formular políticas de proteção
da saúde que, no Brasil, tem alcançado destacada atuação da VS.
Corroborando com outros autores, como Angell, Gøtzche aponta o grande e delicado problema da ma-
nipulação de dados e da falta de transparência nos ensaios clínicos, que fundamentam as decisões
dos agentes reguladores de medicamentos.
Embora ainda não se disponha de estudos que retratem com mais clareza a situação no Brasil, além
desses exemplos de objetos de grande repercussão nas condições de saúde e na determinação do
perfil de demandas por serviços de saúde, pode-se citar a questão dos alimentos e sua relação com as
epidemias de hipertensão, obesidade e diabetes e a problemática dos agrotóxicos que, à semelhança
dos medicamentos, têm uso abusivo, banalizado e altamente preocupante, com danos consideráveis à
saúde, como desregulação endócrina, problemas neurológicos, psíquicos e genéticos e neoplasias,
entre outros25.
Além destes assuntos mais críticos, conformadores da nova modernidade de uma sociedade altamente
tecnológica, a VS deve zelar pela segurança sanitária do cotidiano da população; desde a higiene dos
restaurantes frequentados pelas classes abastadas, até as lanchonetes, quiosques e agentes das co-
midas de rua que alimentam um contingente expressivo das classes populares; da veracidade dos
rótulos dos produtos relacionados à saúde, até o preço dos medicamentos; desde os agrotóxicos nos
alimentos vegetais, até os resíduos de produtos veterinários nos alimentos de origem animal.
Em geral, o progresso tecnológico impõe a necessidade de uma vigilância cada vez maior, profissionais
mais qualificados e experientes, estruturas mais aparelhadas e sistemas de controle mais complexos26.
Ademais, mecanismos de contraposição e neutralização de argumentos de grupos de representação e
de políticos, que defendem interesses econômicos particulares dos agentes envolvidos.
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A complexidade da regulação sanitária se evidencia ao atuar em funções muito sensíveis aos interes-
ses econômicos, como o controle do tabagismo, a avaliação toxicológica de agrotóxicos, a qualidade
dos alimentos, os preços dos medicamentos, sua eficácia e segurança. Os contenciosos decorrentes
da mediação entre os interesses dos segmentos regulados e as políticas públicas de proteção da saúde
demonstram a repercussão para a saúde da população, ao se tratar a regulação sanitária apenas com
parâmetros da economia de mercado.
Reflexão recente aponta a necessidade de revisão do conceito de promoção da saúde, para além do
apelo à responsabilização dos indivíduos e à criação de ambientes saudáveis. Os atuais estilos de vida
que predispõem à epidemia de condições crônicas, decorrem, principalmente, da articulação entre o
desenvolvimento econômico e o avanço das forças produtivas, planejado de forma global pelas grandes
corporações.
Ao identificar os determinantes dos estilos de vida, abre-se um novo caminho para a ação regulatória
e estratégica do Estado no enfrentamento de fatores de risco que concorrem para a epidemia de do-
enças crônicas, que aflige a sociedade e os sistemas de saúde. Esta ação passa pela responsabiliza-
ção social dos principais agentes econômicos, públicos e privados; uma regulação estatal sobre a pro-
dução industrial, em áreas de forte conexão com as questões de saúde, entre elas, as responsáveis
por produtos que disseminam fatores de risco para doenças como o diabetes, as doenças cardiovas-
culares, o câncer e outras condições crônicas.
Pode-se perceber que o aperfeiçoamento das políticas regulatórias requer engajamento e adesão de
outros órgãos públicos na formulação de políticas de alcance sócio sanitário e atuação na regulação
internacional, buscando novas políticas globais que assumam o protagonismo da preservação da sa-
úde humana e que interesses setoriais transversais, fruto de pressão organizada de lobbies, não se
sobreponham aos interesses de preservação da vida no planeta.
Uma das formas de o Estado de Bem-Estar Social intervir na garantia dos direitos sociais é pela emis-
são de normas e leis – da Constituição às normas infralegais – e pelo fortalecimento do controle juris-
dicional da aplicação desta legislação pelos tribunais constitucionais. Esse é um dos determinantes da
atuação febril dos parlamentos contemporâneos.
A sociedade atual tecnológica exige respostas rápidas para questões novas ou muito específicas. For-
midável quantidade de tecnologias, seguidamente produzidas, deve passar por avaliação dos riscos
que envolvem seu processo de produção, uso ou consumo. E precisam de monitoramento sistemático,
pois muitos dos seus efeitos só se revelam após longos períodos de uso e de estudos.
Assim, o Estado se manifesta crescentemente com outros instrumentos jurídicos que não a lei, de
conteúdos cada vez mais técnicos, para regulamentar questões que não podem e não devem esperar
por longos e difíceis processos de definições, típicos do Poder Legislativo. Não podem porque a história
da saúde pública já comprovou que a ausência de regulamentação e fiscalização sanitária tempestiva
é causa básica de numerosas tragédias.
Não devem porque são questões específicas, de conteúdo técnico-científico, cujo debate não se coa-
duna com as normas generalistas que o Legislativo deve formular. Grande parte dessa autoridade re-
gulatória é então exercida por agentes reguladores – agências, institutos, comissões, conselhos – for-
mados por especialistas que utilizam a ciência para propor critérios técnicos de argumentação.
A competência regulatória da VS, em especial da Anvisa, sempre foi motivo de controvérsias e fortes
reações ao exercício de suas funções regimentais, patrocinadas por segmentos empresariais e parla-
mentares que, em face de situações pontuais e interesses corporativos com forte poder de pressão em
outros poderes do Estado, divergem das decisões da autoridade sanitária. Em muitos casos essas
divergências extrapolam as negociações entre os agentes reguladores estatais e o setor regulado e
passam a transitar pelas hostes do Judiciário e do Legislativo na forma de contestação e litigância.
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Questionam, em primeiro lugar, o papel das agências reguladoras, não só da Anvisa, no exercício legal
de suas competências, com argumentos de extrapolação de competências. Em segundo, tentam con-
fundir a opinião pública sobre um suposto desvio de função das agências e de invasão nas competên-
cias exclusivas do Legislativo. Em terceiro lugar, apontam o Judiciário, do alto de sua suposta neutra-
lidade política e guardião dos preceitos constitucionais, para dirimir dúvidas, porventura existentes, so-
bre a extensão dos limites legais delegados à Agência em sua prerrogativa de proteção da saúde.
O poder público não deve cercear o direito constitucional de acesso ao Judiciário em busca de direitos
supostamente negados ao cidadão ou a entidades representativas de interesses comuns. Mas esse
direito deve ser garantido por meio de instrumentos que respeitem a harmonia e a independência dos
poderes, que, embora interdependentes entre si, têm atribuições e competências firmadas na Consti-
tuição30.
O caso mais emblemático foi o da fosfoetanolamina sintética, por uma espécie de convulsão social que
provocou. Destaca-se a força da crença popular para mover interesses de políticos, no sentido de aten-
der suas reivindicações, desconsiderando a legislação sanitária. Junte-se a ação de setores do Judici-
ário e mesmo do Executivo em respaldar decisões fora dos parâmetros científicos adotados 31. Causou
estranheza a associação entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e a Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
O primeiro, por alocar valores expressivos para uma pesquisa sobre os efeitos de um suposto medica-
mento, e o segundo, por aprovar ensaios clínicos protocolares sem comprovação de dados pré-clínicos
que o justificassem. Já o Judiciário, por decisão monocrática de um dos ministros da Suprema Corte,
ordenou a entrega do “medicamento” aos pacientes que o demandavam, sem qualquer evidência cien-
tifica de eficácia que justificasse tal decisão. Do Congresso Nacional vieram cenas grotescas de políti-
cos durante as audiências públicas convocadas para discutir o tema, e aprovação em tempo recorde
da Lei n° 13.269 de 13 de abril de 2016, atualmente revogada por liminar do STF, até a decisão final
desta Corte.
Do Executivo, a sanção sem vetos desta lei, pela Presidente da República, apesar de parecer contrário
da Anvisa e do Ministério da Saúde. O ambiente de conturbação política à época é a explicação mais
plausível para a sanção integral do texto recebido do Congresso Nacional.
Outros destaques emblemáticos de litigância contra regulações da Anvisa foram as resoluções da Di-
retoria Colegiada, nº 14/2012, que restringe o uso de substâncias aromatizantes em cigarros e nº
52/2011, que proibiu o uso das substâncias anfepramona, femproporex e mazindol e definiu medidas
de controle da prescrição e dispensação de medicamentos que contenham a sibutramina.
Estes são exemplos da relação tensa entre os agentes reguladores e os poderes Legislativo e Judiciário
no país. Relação em geral conflituosa, em que nem sempre prevalecem argumentos de proteção da
saúde e que retardam ou obstruem a concretização do direito à saúde, previsto na Constituição Federal,
que fortalece outro bem jurídico fundamental, o da dignidade humana.
Desafios e perspectivas
Apesar de significativos avanços, em especial após a Anvisa, o SNVS precisa de avaliação constante
quanto à efetividade de seus fundamentos teóricos e práticos e do seu modelo; também precisa ser
planejado sistematicamente, na busca da superação das dificuldades e deficiências. O SUS e seu con-
texto de necessidades é o referencial básico.
Nessa direção, alguns desafios, entre tantos, se colocam para todos os componentes do SNVS 32:
a. A formulação de uma política nacional de VS, um dos componentes da promoção da saúde e pre-
venção de danos no SUS, que defina objetivos e metas, as grandes linhas de estruturação do SNVS e
as principais estratégias; que oriente a atuação às necessidades do SUS, à melhoria da qualidade dos
serviços de saúde e ao enfrentamento das doenças crônicas; que repense a organização e gestão do
SNVS e a descentralização como prioridade para fortalecer os demais entes.
b. A definição de um modelo de identificação dos principais riscos à saúde, em cada região e locali-
dade. Em constante escassez de recursos, é imperativo trabalhar com prioridades, apesar de parte
expressiva do trabalho da VS ser demanda dos segmentos regulados, por força de lei. É necessário
construir uma concepção de risco adequada à singularidade dos objetos de ação, que ajude a pensar
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a revisão dos instrumentos tradicionais de controle; pautar-se pela situação de saúde da população
com trabalho articulado com as vigilâncias epidemiológica, ambiental e em saúde do trabalhador, e
com instâncias que atuam com avaliações de riscos à saúde.
c. O enfrentamento da desigualdade, para não tratar igualmente os desiguais; uma regulação que
diferencie os riscos à saúde relacionados aos pequenos negócios daqueles das imensas corporações
transnacionais; avançar na regulação com inclusão produtiva, em aproximação às entidades dos pe-
quenos produtores; encontrar alternativas para viabilizar a produção artesanal de alimentos e as práti-
cas e culinárias tradicionais, que preservam a cultura, a biodiversidade e a autonomia das regiões do
país.
e. O debate sobre carreiras para a força de trabalho da VS nos estados e municípios, à semelhança
das outras áreas estatais de regulação e fiscalização; ampliar e reforçar a qualificação dos trabalhado-
res com enfoque na atuação sobre os riscos à saúde nos diferentes territórios.
g. Esforço na comunicação de risco para contribuir com a consciência sanitária da sociedade brasileira
e que reforce os argumentos técnicos e científicos perante os interesses majoritariamente econômicos
das grandes corporações empresariais e seus poderosos mecanismos de pressão sobre os poderes
republicanos.
Ao longo dos trinta anos do SUS, a VS emergiu de seu gueto institucional, vista como essencialmente
burocrática, que atendia às demandas formais dos segmentos regulados com pouca ou nenhuma vin-
culação com o sistema de saúde. Tornou-se mais visível, em especial no final dos anos 1990, quando
ocorreram verdadeiras tragédias sanitárias face à impotência do Estado para seu enfrentamento. A
criação da Anvisa e melhor estruturação do SNVS em seu vínculo com o SUS foram fatores decisivos,
que reforçam a visibilidade da VS e a perspectiva de sua organização no SUS.
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