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DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO EM SOBRAL-CE

Rua Viriato de Medeiros, 1295, Centro, Sobral-CE, CEP: 62011-065, TEL: 88 3613.2125

EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUIZ(A) FEDERAL DA ___ VARA DA


SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SOBRAL - JUIZADO ESPECIAL FEDERAL

FRANCISCO BRUNO SOUSA FIGUEIRA1, brasileiro, em união


estável, autônomo, inscrito no RG: n° 20072702626, e no CPF nº
049.020.263-25, residente e domiciliado na rua Luz, 83, Centro, Viçosa
do Ceará-CE, CEP: 62308-000, Fones: (88) 98147-4171 e (88) 98138-5384,
vem com o devido respeito à presença de V. Exa., por meio da DEFENSORIA
PÚBLICA DA UNIÃO, situada na Rua Viriato de Medeiros, 1295, Centro –
Sobral/CE, pelo Defensor Público que ao final subscreve, promover a presente

AÇÃO ORDINÁRIA DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C ANTECIPAÇÃO DOS


EFEITOS DA TUTELA DE URGÊNCIA

em face da UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público, a ser citada


na pessoa do Procurador da União no Estado do Ceará, com endereço no
Edifício Office Duets Towers, Rua Vilebaldo Aguiar, 96, Cocó, Fortaleza/CE,
CEP:60.192-010, da CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, instituição financeira
sob a forma de empresa pública, inscrita no CNPJ n° 00.360.305/0001-04, com
sede em Brasília - DF e filial na Rua Sena Madureira, 800, 1º andar, Centro,
Fortaleza-CE, pelas razões de fato e de direito a seguir delineadas e da
DATAPREV, empresa pública federal, CNPJ: 42.422.253/0001-01, com sede
em Brasília-DF e unidade no Estado do Ceará na Av. Santos Dumont, 3060, 2º
e 3º andares, Aldeota, CEP 60150-162, Fortaleza-CE.

I – DA GRATUIDADE DA JUSTIÇA E PRERROGATIVAS DA DPU:

Inicialmente, exorta o postulante a concessão dos benefícios da


JUSTIÇA GRATUITA, com fulcro no art. 98 do CPC, por se tratar de
pessoa hipossuficiente, não dispondo, portanto, de recursos suficientes para

1 Processo de Assistência Jurídica (PAJ) – 2020/103-00133.

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arcar com o pagamento das custas processuais e honorários de advogado,


sem prejuízo do sustento próprio e de sua família, conforme declaração anexa.
Ademais, cabe transcrever o artigo 44, inciso I, da Lei Complementar
n°. 80/94, o qual postula como prerrogativa dos membros da Defensoria
Pública da União “receber, inclusive quando necessário, mediante entrega
dos autos com vista, intimação pessoal em qualquer processo e grau de
jurisdição ou instância administrativa, contando-se-lhes em dobro todos
os prazos”. (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
Assim sendo, a Defensoria Pública da União deverá ser intimada
pessoalmente de todos os atos do presente feito, sob pena de nulidade
processual.

II – DOS FATOS:

O requerente é trabalhador autônomo, sem inscrição como


microempreendedor individual ou registro de contribuições como segurado
contribuinte individual ou facultativo, consoante faz prova CNIS anexo, com
renda familiar total estimada em aproximadamente R$ 2.000,00 (dois mil reais),
de acordo com a Declaração de Composição e Renda Familiar anexa.
O cidadão compareceu à DPU Sobral relatando que teve sua
solicitação de auxílio-emergencial de R$ 600,00 (seiscentos reais), instituído
pela Lei 13.982, de 02 de abril de 2020, negada após protocolo de
requerimento no aplicativo para telefone celular disponibilizado pela CEF, de
acordo com “print” da tela anexo, sob o motivo de renda declarada em 2018
superior ao limite de R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e
nove reais e setenta centavos), requisito este previsto no inciso V do art. 2º da
supra citada lei, uma vez que, segundo o demonstrativo de Imposto de Renda
Pessoa Física – IRPF ano calendário 2018, o demandante teria auferido no ano
correspondente o montante de R$ 31.250,36 (trinta e um mil, duzentos e
cinquenta reais e trinta e seis centavos).
Destaque-se que tendo em vista a motivação da negativa não é
admitida, via aplicativo ou internet, contestação administrativa contra a decisão
de indeferimento.
Como notoriamente conhecido, o mencionado benefício surgiu no
ordenamento jurídico em virtude da necessidade de se instituir mecanismos
econômicos anticíclicos em favor das pessoas mais vulneráveis,
desempregados, trabalhadores autônomos precarizados dos mais variados
ramos de atividade, registrados ou não no Cadastro Único do Governo Federal
para acesso aos programas assistenciais – CadUnico, assim como para os

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beneficiários do programa Bolsa-Família, os quais compelidos a adotarem


medidas de isolamento social para o combate à pandemia da Coronavirus
Disease 19 – COVID-19, praticadas em todo o Brasil por força da Emergência
em Saúde Pública de Importância Internacional - ESPII declarada pela
Organização Mundial de Saúde – OMS, endossada no ordenamento jurídico
nacional pela Lei pela Lei 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, reconhecida
pelo Decreto Legislativo 6 de 2020 como calamidade pública para efeitos
fiscais, e que vem sendo observada pelos Estados e municípios do país devido
à declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional –
ESPIN, por meio da Portaria 188, de 03 de fevereiro de 2020 do Ministério da
Saúde – MS.
Nada obstante, o requerente muito embora não negue que tenha
tido rendimentos superiores ao requisito legal acima indicado, no ano de 2018,
atualmente, desde abril 2019, portanto, ao tempo do requerimento
administrativo do benefício, encontra-se sem rendimentos, situação agora
agravada pela impossibilidade de realizar suas atividades como pintor
autônomo em razão das medidas de isolamento social determinadas para o
Estado do Ceará, por meio do decreto 33.510, de 16 de março de 2020,
recentemente prorrogado pelo decreto 33. 544, de 19 de abril de 2020,
imprescindíveis ao controle da curva de contaminação e para evitar a
sobrecarga do sistema público de saúde.
De acordo com sua CTPS, CNIS e extrato do FGTS anexos, o
assistido mantinha vínculo com a Prefeitura de Viçosa do Ceará como
professor temporário, por dois anos, relação laboral esta iniciada em
20/04/2017 e encerrada em 20/04/2019. A contar desse período, vinha
desempenhando atividades na informalidade como pintor, porém, atualmente,
devido ao distanciamento social, está completamente sem renda.
Como se argumentará a seguir, entende-se que a exigência
normativa encartada no inciso V do art. 2º da Lei 13.982 finda por
desconsiderar o contexto econômico existente ao tempo da solicitação da
prestação social, para eleger como fator de contenção ao acesso desse
recurso uma circunstância contingente, transitória e retroativa, inapta a servir
como critério de justa avaliação, atual e real, das condições socioeconômicas
do cidadão postulante, vindo a se tornar, isto sim, numa barreira ilegítima,
porquanto capaz de criar distinções não acobertadas pelas ideias-força de
isonomia e justiça social, escopos maiores nos quais se mira a instituição da
política assistencial.

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A propósito do assunto, está em tramitação o PL 873/2020 2, com


prazo para sanção ou veto presidencial a escoar em 14/05/2020, que entre
outros temas, amplia o alcance do benefício emergencial a diversas outras
categorias de trabalhadores autônomos prejudicados financeiramente pelas
medidas de isolamento social, além de aprimorar certos aspectos da legislação
instituidora do auxílio, entre os quais a revogação da exigência de observância
do limite de isenção de imposto de renda relativo ao ano-calendário de 2018.
Contudo, ainda é incerto se o Governo Federal acatará simplesmente a
mudança ou suscitará alguma objeção, considerando a orientação ideológico-
econômica prevalecente nos altos escalões do Palácio do Planalto mesmo num
cenário de crise sanitária e econômica intensa no bojo do qual a politização
vem turvando as saídas cooperadas, técnicas e científicas para a problemática.
A despeito dessa discussão, a demanda em trazida tem justamente
a finalidade de buscar na jurisdição provimento capaz de exercer o adequado
controle de juridicidade da política, que conquanto seja muito bem-vinda para
ajudar a combater o desespero de milhões de famílias brasileiras
hipossuficientes, trouxe em seu âmago critérios de seleção bastante
questionáveis, sendo mister a avaliação dos elementos que caracterizam essas
alegações sob o plano da Constituição.
Ademais, importante sempre registrar que o pano de fundo da lide é
assegurar prestação de índole alimentar para o jurisdicionado e sua família, daí
porque a patente urgência da pretensão coadunada à atual conjuntura
pandêmica.

III – DO AUXÍLIO EMERGENCIAL E SEUS REQUISITOS:

Como já declinado antecipadamente, o Auxílio Emergencial é um


benefício financeiro destinado aos trabalhadores informais,
microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, e tem
por objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise
causada pela pandemia do Coronavírus - COVID 19.
Surgiu no ordenamento jurídico pátrio após diversas pressões da
sociedade civil e de parlamentares como garantia de um mínimo existencial
aos trabalhadores informais, que hoje são calculados em aproximadamente 38 3
(trinta e oito) milhões de brasileiros, que ficaram sem perceber renda em
virtude das medidas de isolamento social praticadas pelos Estados e

2 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141174.
3 https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2019/09/ibge-sem-carteira-assinada-
informalidade/

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municípios por orientação da OMS e do Ministério da Saúde, como a melhor


alternativa existente para reduzir os níveis de contaminação e evitar o colapso
do sistema de saúde.
Trata-se de benefício a ser pago em 3 (três) prestações mensais,
por instituições financeiras públicas federais, que ficam autorizadas a realizar o
seu pagamento por meio de conta do tipo poupança social digital, de abertura
automática em nome dos beneficiários, de acordo com calendário divulgado
pela CEF, nos seguintes moldes:
1ª Parcela:
- Cidadãos cadastrados no Cadastro Único e que não estão no Bolsa Família: a
partir de 09/04/2020;
- Cidadãos que fizeram o cadastramento por meio do site ou APP Auxílio
Emergencial – 3 dias úteis após a validação dos dados pelo Governo Federal. -
Dataprev, a partir do dia 14/04/2020.

2ª Parcela:
- Cidadão cadastrado no Cadastro Único e cidadão cadastrado no site ou app,
a ser paga entre os dias 27/04 a 30/04, em escalas organizadas de acordo com
o mês de nascimento do beneficiário.

3ª Parcela:
- Cidadão cadastrado no Cadastro Único e cidadão cadastrado no site ou app,
a ser paga entre os dias 26/05 a 29/05, em escalas organizadas de acordo com
o mês de nascimento do beneficiário.
Os beneficiários do programa Bolsa-família, por sua vez, perceberão os valores
nas respectivas datas de pagamento do programa.

De acordo com o art. 2º, da Lei 13.982, de 02 de abril de 2020, são


requisitos básicos do auxílio:

Art. 2º Durante o período de 3 (três) meses, a contar da


publicação desta Lei, será concedido auxílio emergencial
no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais ao
trabalhador que cumpra cumulativamente os seguintes
requisitos:
I - seja maior de 18 (dezoito) anos de idade;

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II - não tenha emprego formal ativo;


III - não seja titular de benefício previdenciário ou
assistencial ou beneficiário do seguro-desemprego ou de
programa de transferência de renda federal, ressalvado,
nos termos dos §§ 1º e 2º, o Bolsa Família;
IV - cuja renda familiar mensal per capita seja de até 1/2
(meio) salário-mínimo ou a renda familiar mensal total
seja de até 3 (três) salários mínimos;
V - que, no ano de 2018, não tenha recebido rendimentos
tributáveis acima de R$ 28.559,70 (vinte e oito mil,
quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos);
e
VI - que exerça atividade na condição de:
a) microempreendedor individual (MEI);
b) contribuinte individual do Regime Geral de Previdência
Social que contribua na forma do caput ou do inciso I do §
2º do art. 21 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991; ou
c) trabalhador informal, seja empregado, autônomo ou
desempregado, de qualquer natureza, inclusive o
intermitente inativo, inscrito no Cadastro Único para
Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) até 20
de março de 2020, ou que, nos termos de autodeclaração,
cumpra o requisito do inciso IV.

O regulamento da lei, Decreto 10.316/2020, define em seu art. 2º o


trabalhador informal como sendo:

II - pessoa com idade igual ou superior a dezoito anos que


não seja beneficiário do seguro desemprego e que:
a) preste serviços na condição de empregado, nos termos
do disposto no art. 3º da Consolidação das Leis do
Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943,
sem a formalização do contrato de trabalho;
b) preste serviços na condição de empregado
intermitente, nos termos do disposto no § 3º do art. 443
da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo
Decreto-Lei nº 5.452, de 1943, sem a formalização do
contrato de trabalho;
c) exerça atividade profissional na condição de
trabalhador autônomo; ou
d) esteja desempregado;

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No caso do requerente, trata-se de trabalhador autônomo sem renda


atual, maior de 18 (dezoito anos), sem emprego formal, não titular de benefício
previdenciário, assistencial, seguro-desemprego ou de programa de
transferência de renda federal, inclusive o Bolsa Família.
Por sua vez, a renda total do grupo familiar, assim declarada, é
inferior ao montante de 3 (três) salários mínimos. Aqui é forçoso ressalvar que
os requisitos do inciso IV da lei são alternativos e não cumulativos, por simples
inferência gramatical e teleológica depreendida da utilização consciente pelo
legislador da conjunção alternativa “ou”. Logo, caso o postulante ainda que
apresente renda per capita familiar superior a ½ salário mínimo, desde que a
renda total do grupo familiar atenda ao limite de 3 (três) salários mínimos,
estará satisfeita a condição. O mesmo se diga na hipótese de o beneficiário
pertencer a um grupo familiar com renda total superior a 3 (três) salários
mínimos, mas cuja renda per capita não ultrapasse ½ salário mínimo.
Na situação do ora demandante, levando em conta a renda familiar
declarada em confronto com os demais documentos anexos que denotam a
ausência de vínculo empregatício formal ou qualquer outra fonte de sustento
decorrente da previdência ou de programas governamentais de distribuição de
renda, fica nítido que preenche o requisito, porquanto a renda familiar geral é
significativamente inferior a R$ 3.135,00 (três mil, cento e trinta e cinco reais), o
correspondente aos 3 (três) salários mínimos.
A única fonte de renda da família provém do salário da companheira
como professora do município de Viçosa do Ceará, na ordem de pouco mais de
R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais), conforme se verifica no contracheque
anexado a esta exordial.
Contudo, malgrado essa seja a renda atual do grupo familiar,
utilizada como referência para o protocolo do requerimento do auxílio-
emergencial, a negativa do pagamento se deu pela superação do patamar de
R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta
centavos) em rendimentos recebidos no ano de 2018, critério eleito pela
legislação como condicionante para acionar o benefício, que se revela
desarrazoada, inequânime e que em última instância ofende os objetivos
vislumbrados com a política assistencial num momento de dupla comoção na
saúde e na economia.

IV – DO CONTROLE DE JURIDICIDADE. NECESSIDADE DE


AFASTAMENTO DE CRITÉRIO EXORBITANTE NO CASO CONCRETO.

Retomando mais uma vez a discussão, tem-se que a recusa


administrativa à concessão do auxílio-emergencial ao requerente merece a
devida correção como forma de afirmação de mínimos parâmetros de justiça.

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Em um Estado Democrático de Direito, ao Judiciário compete


interpretar a Constituição e as leis, resguardando direitos e assegurando o
respeito ao ordenamento jurídico. Assim sendo, a sua atividade sempre deve
ter como fundamento uma norma jurídica democraticamente deliberada.
Neste sentido, toda política pública, ou melhor, toda atuação Poder
Público poderá ser objeto de controle pelo Judiciário, pois, por ser realizada,
necessariamente, com observância ao princípios e regras legais e
constitucionais, competirá ao magistrado apreciá-la em decorrência da função
que lhe é inerente.
Modernamente, em decorrência do fenômeno jurídico da
constitucionalização do Direito, os atos administrativos não mais devem estar
vocacionados à via de mão única da legalidade estrita centrada na lei formal -
leis ordinárias, atos infralegais, meros atos de execução - mas ao revés, devem
observar o ordenamento jurídico em sua integridade, cujo ápice é a
Constituição da República e sua tábua de valores consagradores da dignidade
da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), em prol de uma sociedade livre, justa e
solidária (art. 3º, I, da CF).
Portanto, a Administração ao aplicar in concreto a lei no exercício de
suas atividades executivas, deve antes prestar deferência à Constituição e aos
princípios que integram a sua unidade axiológica, estabelecendo uma filtragem
constitucional de disposições concretas que muitas vezes não têm aptidão para
distinguir, apenas na expressão de sua literalidade, as diversas situações da
vida que assomam diante do aplicador da norma e que se levadas a efeito sem
um mínimo de consciência crítica podem gerar um ato de extrema injustiça,
contrariando a própria finalidade do Direito a pretexto de se estar nada mais
fazendo do que cumprir o princípio da legalidade.
Sabe-se que esse discurso de atrelamento desmensurado à
legalidade, em contextos históricos não muito distantes de nosso tempo, já
serviu de pano de fundo para verdadeiros atentados contra a dignidade
humana.
Sem embargo, não se está a discursar contra a atenção ao princípio
da legalidade por parte da Administração, apenas chamando a atenção para o
fato de que essa observância deve servir como um dentre tantos pontos de
partida na aplicação da lei, desse modo afastando-se do esquema único de
obediência à legalidade estrita, principalmente quando não seja adequada ao
cumprimento das finalidades atreladas às garantias dos direitos fundamentais.
Essa concepção pode ser facilmente traduzida a partir de uma nova
compreensão do princípio da legalidade, não mais tomado em sua feição
liberal, de apego às normas escritas e à interpretação literal, mas inserida num
contexto muito mais amplo em que a Constituição e não a lei ordinária é
protagonista, do que se infere a primazia dos valores constitucionais
expressados nos princípios explícitos e implícitos, estes dedutíveis da própria
base ideológica em que assentada a Lei Fundamental, considerando um
contexto democrático, pluralista de respeito à dignidade da pessoa humana.

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Assoma então o princípio da Juridicidade ou da Legalidade


Qualificada ou ainda Constitucionalidade, pois o foco agora não mais está
voltado à lei, mas na Constituição e sua unidade axiológica, à qual a
Administração ou quem lhe faça as vezes deve prestar máxima deferência.
No que se refere à definição desse princípio, convém transpor as
lições de Gustavo Binenbojm (Uma Teoria do Direito Administrativo, 2ª Ed.,
2008, p. 143) ao lecionar que:

A ideia de juridicidade administrativa traduz-se, assim, na


vinculação da Administração Pública ao ordenamento
jurídico como um todo, a partir do sistema de princípios e
regras delineado na Constituição. A juridicidade
administrativa poderá, portanto: (I) decorrer diretamente
da normativa constitucional; (II) assumir a feição de uma
vinculação estrita à lei (formal ou material); (III) abrir à
disciplina regulamentar (presidencial ou setorial),
autônoma ou de execução, conforme os espaços
normativos (e sua peculiar disciplina) estabelecidos
constitucionalmente.

Infere-se claramente da lição citada que cabe à Administração não


se eximir totalmente de atuar conforme a legalidade, mas sem olvidar dos
princípios e regras contemplados na Constituição. Trata-se de um modo de ver
o direito como integridade, em que o cerne axiológico gravita em torno da Lei
Fundamental, norma superior que confere fundamento de validade a todas as
demais normas integrantes do ordenamento jurídico, e que, à obviedade, deve
servir de norte hermenêutico para a confecção de atos administrativos, assim
como para a sua interpretação/aplicação.
A jurisprudência, de igual modo, já vem acolhendo essa nova
compreensão de legalidade ao ressoar que “O princípio da legalidade
administrativa, textualmente previsto no art. 37, caput, da CF/88, diversamente
do princípio fundamental da legalidade, ínsito no art. 5º, II, também da
Constituição Federal, condiciona o agir da Administração aos ditames da Lei.
2. No entanto, em uma visão contemporânea, esse princípio deve ser lido a
partir do contexto axiológico neoconstitucionalista, acolhidos pelo Estado de
Direito, na concepção da juridicidade” (TRF5, AC 00021361220124058103,
Rel. Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, Data: 28/08/2014).
Dentro dessa perspectiva, o Poder Judiciário, como agente tutelar
dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, conformação esta
amoldada a um Estado Democrático de Direito fundado numa Constituição que
se pretenda dotada de força normativa, ao se deparar com uma violação da
legalidade, tem o dever de agir quando provocado de maneira a liquidar a
ameaça ou lesão a direito, sobretudo quando a pretexto de exercer o poder
discricionário, a Administração exorbite os seus limites e passe atuar de forma

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arbitrária abusiva, assumindo comportamento ofensivo aos direitos subjetivos


dos administrados.
O Poder Judiciário não só tem o poder para determinar a atuação do
Estado em caso de omissão, mas tem a obrigação de fazê-lo, pois “os poderes
constituídos estão obrigados a colocar à disposição das pessoas tais
prestações, seja qual for o plano de governo ou a orientação política do grupo
que, a cada momento, estiver no poder”.
Neste mesmo sentido, se posiciona o julgado do Supremo Tribunal
Federal:

“(...)
- A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior
ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto
constitucional - qualifica-se como comportamento
revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que,
mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a
Constituição, também ofende direitos que nela se fundam
e também impede, por ausência de medidas
concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e
princípios da Lei Fundamental." (RTJ 185/794-796, Rel.
Min. CELSO DE MELLO, Pleno)
(...)
É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das
funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta
Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e
de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA
DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976", p. 207, item n. 05,
1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o
encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e
Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em
bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder
Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes,
por descumprirem os encargos político-jurídicos que
sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal
comportamento, a eficácia e a integridade de direitos
individuais e/ou coletivos impregnados de estatura
constitucional, ainda que derivados de cláusulas
revestidas de conteúdo programático.” (STF, ADPF 45,
Decisão Monocrática Rel. Min. Celso de Mello, j.
29.04.2004, Informativo nº 345).

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Para rechaçar qualquer alegação de ingerência do Poder Judiciário


sobre a função de execução de políticas públicas pela Administração, o STF,
rotineiramente, vem consolidando o entendimento segundo o qual:

EMENTA EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS


COMO AGRAVO REGIMENTAL. DIREITO
PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE PASSIVA AD
CAUSAM. ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA. DEBATE DE
ÂMBITO INFRACONSTITUCIONAL. CONTROLE DE
LEGALIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS PELO
PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS
PODERES. OFENSA NÃO CONFIGURADA. ACÓRDÃO
RECORRIDO PUBLICADO EM 08.4.2010. A suposta
ofensa aos postulados constitucionais invocados no apelo
extremo somente poderia ser constatada a partir da
análise da legislação infraconstitucional, o que torna
oblíqua e reflexa eventual ofensa, insuscetível, portanto,
de viabilizar o conhecimento do recurso extraordinário. O
exame da legalidade dos atos administrativos pelo Poder
Judiciário não ofende o princípio da separação dos
Poderes. Precedentes. Embargos de declaração
recebidos como agravo regimental, ao qual se nega
provimento. (STF, ARE 723019 ED / SP - SÃO PAULO,
Rel. Min. ROSA WEBER, Data: 10/03/2015).

Na celeuma ora versada, muito embora não seja um mero ato


administrativo esteja sendo confrontado senão um texto normativo, logo, uma
lei em sentido formal, o ônus argumentativo para o seu afastamento deve ser
ainda mais fortemente desincumbido, pois na prática o juízo exercerá, no
microcosmos do caso concreto, o papel de legislador negativo,
desconsiderando a aplicabilidade de uma lei à luz de fundamentos deveras
consistentes assentados em valores fundantes da Carta Magna, ou seja, um
autêntico com controle de constitucionalidade difuso efetivado nos liames
do problema concreto trazido à análise.
Acerca do tema, sem pretensões de exaurimento por entender
desnecessário ao propósito almejado, o modelo brasileiro de controle de
constitucionalidade é de natureza híbrida, isto é, além do regime de controle
concentrado a ser provocado pelos legitimados do art. 103, da CF, qualquer
juiz pode, ao apreciar um caso concreto, exercitar o controle de legalidade sob
o pálio da Constituição, sobretudo quando a questão constitucional seja
prejudicial ao julgamento do mérito da lide.

IV.1. DAS RAZÕES PARA A INCONSTITUCIONALIDADE DA REGRA DO


ART. 2º, V, DA LEI 13.982.

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Pois bem. Recapitulando o que foi acima dito, o inciso V do art. 2º da


Lei 13.982 impôs como requisito para o acesso ao auxílio-emergencial que o
trabalhador não tenha recebido rendimentos tributáveis acima do limite de
isenção do imposto de renda no ano de 2018, definido em R$ 28.559,70 (vinte
e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos). Todavia,
aparentando ser uma regra de cunho objetivo, sem margem para relativização,
fica flagrante que se trata de um limitador sem qualquer suporte em parâmetros
de razoabilidade, violando de maneira direta a igualdade material (art. 5º, I, da
CF), a dignidade humana (art. 1º, III, da CF), a proteção do trabalho (art. 1º, IV,
da CF), bem como os compromissos com a erradicação da pobreza e
marginalização (art. 3º, III).
De acordo com as concepções mais famigeradas dentro da
hermenêutica constitucional, se defende que as espécies normativas regras se
aplicam pela metodologia do “tudo ou nada” e que os princípios teriam uma
dimensão de peso (Dworkin). As primeiras seriam consideradas válidas,
devendo ser aplicadas se a hipótese de incidência fosse preenchida ou
afastadas se inválidas. Os princípios, por sua vez, não determinariam a decisão
de modo absoluto, devendo ser conjugados com outros fundamentos para se
afirmarem.
Para Alexy, os princípios seriam “mandados de otimização”,
aplicáveis em vários graus segundo as possibilidades fáticas e jurídicas. As
regras, de seu turno, simplesmente valem e deve-se fazer exatamente o que
ela exige, nada mais, nada menos ou, em caso de conflito, deve-se ou criar
uma exceção à regra ou declarar a sua invalidade.
Sem embargo do prestígio dessas metodologias, nenhuma das duas
concepções ontológicas aborda, em suas linhas gerais, a colisão entre regras e
princípios, tal como a apresentada na demanda aqui tratada. De um lado, se
tem a regra eleita arbitrariamente pelo legislador cuja finalidade parece ser a de
evitar que pessoas não necessitadas tenham acesso ao auxílio-emergencial,
ao pressupor que o indivíduo cujos rendimentos anuais em 2018 tenham
ultrapassado o limite de isenção do imposto de renda, detém capacidade
financeira de suportar o isolamento social, ainda que seja um trabalhador
autônomo informal impedido de exercer sua atividade em decorrência das
medidas restritivas a aglomerações.
Acontece que a condicionante se arrima numa circunstância
contingente, transitória e passada, portanto dissonante da realidade financeira
atual do cidadão que necessita do benefício. A crise sanitária que originou a
adoção do isolamento social e por tabela a drástica queda da atividade
econômica, principalmente para os trabalhadores autônomos mais
precarizados, que estão sem fonte de renda por falta de demanda e
obstaculizados em ofertar seus produtos ou serviços, é um acontecimento
posterior e imprevisível. Ninguém em 2018/2019, nem mesmo a comunidade
científica, o mercado financeiro ou os governos nacionais tinha capacidade de
previsibilidade dos impactos à saúde e às finanças de um evento de trágica

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magnitude como a pandemia de COVID-19, basta atentar para o noticiário


diariamente mostrando nações desenvolvidas como EUA, Itália, França, Reino
Unido, com realidades desesperadoras com milhares de mortos, população
temerosa, colapso no sistema de saúde, falta de leitos e respiradores, um
verdadeiro pandemônio global.
No Brasil não é diferente, país com maior número de mortos e
infectados na América do Sul, chegando a 73.511 infectados e 5.103 mortes,
vem apresentando curva crescente de letalidade 4, quebrando sinistros recordes
de óbitos, não se poderia exigir de um cidadão comum, desprovido de
especiais dotes de clarividência, fosse dispor de fôlego orçamentário para
encarar essa crise desde o ano de 2018, mormente ao se levar em conta os
efeitos financeiros já causados à economia nacional, com redução de todas as
estimativas de crescimento econômico em 0% 5, ainda sem prognósticos
confiáveis para o futuro após a pandemia.
Quer-se com isso dizer, em síntese, que jamais uma realidade
distante de um fator posterior imponderável, de efeitos imprevisíveis, poderá
ser tomada como critério legítimo de restrição, principalmente quando o dado
levado em consideração para o controle de acesso à política assistencial está
sujeito a um fluxo cujo dinamismo inerente (rebus sic stantibus) atinge com
maior vigor os trabalhadores informais, público alvo do auxílio-emergencial,
mais propensos a rendimentos incertos e dependentes exclusivamente de si
mesmos, porquanto protagonistas de uma verdadeira luta diária pela
sobrevivência, literalmente viver um dia após o outro. Cerca de 41% da
população brasileira se encontra nessa condição6.
Nessa toada, em sendo o fim por trás da regra a aferição da
vulnerabilidade da pessoa solicitante do benefício, já que se trata de uma
prestação assistencial direcionada a assegurar uma renda mínima às famílias
de trabalhadores informais e desempregados durante a pandemia, seria muito
mais condizente com esse desiderato se a avaliação das condições de
vulnerabilidade do requerente fosse feita considerando a situação econômica
do indivíduo ao tempo em que postulou a concessão do auxílio e não a
situação financeira correspondente há pelo menos dois anos, muito diversa da
realidade presente, o que se torna ainda mais latente em relação aos
autônomos precarizados, passando a norma a ser dotada de um odioso efeito
prático anti-isonômico, totalmente desvirtuada de seu escopo primordial.
A propósito da exata compreensão da igualdade de tratamento, Ingo
Sarlet7 admoesta que:

4 https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/29/casos-de-coronavirus-e-
numero-de-mortes-no-brasil-em-29-de-abril.ghtml
5 https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/03/26/banco-central-corta-previsao-de-
crescimento-economico-para-0-em-2020
6 https://www.cartacapital.com.br/economia/ibge-pais-bate-recorde-com-38-milhoes-de-
brasileiros-na-informalidade/
7 Curso de Direito Constitucional. São Paulo: RT, 2012, p. 531.

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(...) o princípio (e direito) da igualdade abrange pelo


menos três dimensões: a) proibição do arbítrio, de
modo que tanto se encontram vedadas diferenciações
destituídas de justificação razoável com base na
pauta de valores constitucional, quando proibido
tratamento igual para situações manifestamente
desiguais; b) proibição de discriminação, portanto, de
diferenciações que tenham por base categorias
meramente subjetivas; c) obrigação de tratamento
diferenciado com vistas à compensação de uma
igualdade de oportunidades, o que pressupõe a
eliminação, pelo Poder Público, de desigualdades de
natureza social, econômica e cultural.

Veja-se que essa exigência é descompassada com a do inciso IV do


art. 2º, que considera a renda geral ou per capita do grupo familiar ao tempo do
requerimento e, por óbvio, da análise dos requisitos para a concessão, assim
como a previsão de inscrição no CadÚnico atualizada pelo menos até 20 de
março de 2020, para os casos da letra “c” do inciso VI. Fica assente que a
condicionante centrada na observância do limite de isenção de IRPF para o
ano 2018 não apenas se revela anacrônica, por desconsiderar a natureza
intermitente da renda dos trabalhadores informais ou fazedores de “bicos”,
como se verte ainda numa exigência excessiva em contradição com outras
contempladas no próprio texto normativo focadas nas condições atuais de
renda do solicitante e de sua família.
Ademais, a Lei 13.982/2020 se integrou à Lei 8.742/93 (famigerada
LOAS), alterando-a. É uma norma integrativa, portanto, que veio agregar ao
sistema de assistência social o auxílio-emergencial. Isso significa dizer que as
diretrizes aplicadas à LOAS devem, sob os influxos de uma visão sistêmica, ser
estendidas à interpretação das regras trazidas pela novel legislação. Desta
feita, pode-se seguramente afirmar que o benefício instituído por aquela
legislação cumpre o objetivo de conferir proteção social, que visa à garantia da
vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos (art. 2º, I, da
LOAS), mirando a satisfação do princípio da supremacia do atendimento às
necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica (art. 4º,
I, da LOAS). A partir da leitura desses axiomas explicitados na própria LOAS,
também se pode inferir que a exigência ora rechaçada contraria o próprio
sistema em que está inserida, estando inquinada de
ilegalidade/inconstitucionalidade.
Mantendo o raciocínio, a mesma LOAS traz a famosa previsão do
Benefício de Prestação Continuada - BPC, em seu art. 20, cujos §§ 1º e 3º
preconizam a atualidade das circunstâncias de miserabilidade do grupo
familiar. Para este dispositivo, a verificação das condições de vulnerabilidade
da família do segurado deve ser realizada quando do requerimento do

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benefício, ou seja, o órgão concedente irá respaldar uma decisão pela


concessão ou não do BPC mirando a situação fática daquele momento, pouco
importando a realidade passada, salvo comprovação de que esta tenha alguma
repercussão vantajosa no presente capaz de tornar dispensável o pagamento
do benefício.
Fazendo coro às lições de Celso Antônio Bandeira de Melo 8,
adicionando às violações ao direito material como até aqui exposto, sustenta-
se que a regra atacada está eivada de inviabilidade lógica, “por erigir como
elemento relevante situação fática atualmente irreproduzível”, ao se considerar
a conjuntura da crise em que surgiu o auxílio-emergencial, as condições gerais
dos trabalhadores informais no país e do próprio demandante, no particular, a
denotar que, atualmente, sua renda está aquém do limite de isenção do IRPF,
porquanto inferior a 3 (três) salários mínimos.
Convém trazer à tona os ensinamentos de Humberto Ávila 9 ao tecer
comentários críticos às teorias mais difundidas no Brasil a respeito da distinção
entre princípios e regras. Sustenta o autor citado:

“a distinção entre princípios e regras não pode ser


baseada no suposto método tudo ou nada de aplicação as
regras, pois também elas precisam, para que sejam
implementadas suas consequências, de um processo
prévio – e, por vezes, longo e complexo como o dos
princípios – de interpretação que demonstre quais as
consequências que serão implementadas”.

Segundo essa doutrina, mesmo as regras compreendidas como


normas de consequência predeterminada, devem ser interpretadas à luz das
possibilidades fáticas e jurídicas. Assim sendo, o exercício de entendimento
que aqui se busca perpassa por esse modo de visualizar o papel das regras no
ordenamento posto. No caso em comento, o requisito do inciso V do art. 2º da
Lei 13.982/2020, esbarra em princípios norteadores do sistema de assistência
social acima invocados enquanto limites jurídicos ao âmbito de aplicação da
regra, cuja consequência, se aplicada irrestritamente, conquanto vise a afastar
do acesso ao auxílio-emergencial pessoas relativamente abastadas - o que é
um fim justo, diga-se – encerra por exorbitar a desigualdade de tratamento
entre sujeitos que no estado de coisas atual estão em similar situação de
penúria existencial, vertendo-se, pois, em um excesso de controle estéril,
devido à sua imprestabilidade para traduzir a hipossuficiência econômica do
pretendente beneficiário quando do pedido junto à CEF.
As regras, nessa perspectiva, são suscetíveis à derrotabilidade ou
superação diante da complexidade do caso concreto, como metodologia
vocacionada a assegurar uma intepretação adequada às súplicas de justiça,

8 Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p. 25.
9 Teoria dos princípios, 6ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 48.

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desde que devidamente externadas as razões de ponderação, fortes nos fins


que justificam o ajuste da norma sem ser necessário, para tanto, expurgar o
texto legal.
De igual sorte, a regra ora abjurada arrefece diante do filtro da
proporcionalidade/razoabilidade, na medida em que se torna um anteparo à
percepção do auxílio-emergencial inadequado, por remeter a fato passado
sujeito às alterações do cenário econômico, sobremaneira com o advento de
crise imprevisível com repercussões econômicas pujantes sobre os
trabalhadores informais, desnecessário, pois o método mais consentâneo e
consequentemente menos gravoso a esses solicitantes seria a avaliação de
seus rendimentos com base na situação vivenciada pelo grupo familiar
contemporânea ao requerimento, portanto, contextualizada ao momento da
crise, tampouco proporcional em sentido estrito, posto que culmina no
incremento da desigualdade entre cidadãos em mesmas condições, alijando
grande fração da população brasileira, numa conjuntura de declínio intenso da
engrenagem econômica, pairando incerteza generalizada desse saldo para o
futuro do país.
O magistério abalizado de Luís Roberto Barroso 10 confere lastro aos
argumentos elencados quando registra que:

O princípio da razoabilidade-proporcionalidade, termos


aqui empregados de modo fungível, não está expresso na
Constituição, mas tem seu fundamento nas ideias de
devido processo legal substantivo e na justiça. Trata-se
de um valioso instrumento de proteção dos direitos
fundamentais e do interesse público, por permitir o
controle da discricionariedade dos atos do Poder Público
e por funcionar como medida com que uma norma deve
ser interpretada no caso concreto para a melhor
realização do fim constitucional nela embutido ou
decorrente do sistema. Em resumo sumário, o princípio da
razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos
legislativos ou administrativos quando: a) não haja
adequação entre o fim perseguido e o instrumento
empregado (adequação); b) a medida não seja exigível ou
necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para
chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação de
excesso); c) os custos superem os benefícios, ou seja, o
que se perde com a medida é de maior relevo do que
aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido
estrito). O princípio pode operar, também, no sentido de
permitir que o juiz gradue o peso da norma, em
determinada incidência, de modo a permitir que ela não

10 Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 304/305.

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produza um resultado indesejado pelo sistema, fazendo


assim a justiça do caso concreto.

Pelo exposto, a regra prevista no art. 2º, inciso V, da Lei


13.982/2020 deve ser afastada pelo juízo, para ser interpretada em
conformidade com o espírito da Constituição, com o objetivo de ser viabilizado
o pagamento do auxílio emergencial ao requerente, por preencher, na
atualidade, todos os requisitos para acessá-lo ou que seja determinado aos
réus nova avaliação para o requerimento, excluindo a exigência denunciada,
tudo a bem da preservação dos valores constitucionais prevalecentes da
igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade/razoabilidade, da
proteção do trabalho, bem como os compromissos com a erradicação da
pobreza e marginalização.

5. DA TUTELA DE URGÊNCIA/EVIDÊNCIA ANTECIPADA:

Possível, no caso em tela, a concessão da tutela provisória de


urgência, conforme disposto no art. 300 do CPC para concessão liminar dos
valores do Auxílio Emergencial, posto que já expirada a data da 1ª parcela,
conforme cronograma do Governo Federal.
Quanto aos requisitos, o FUMUS BONI IURIS pode ser verificado
através dos documentos anexados que comprovam que a parte autora faz jus
ao Auxílio Emergencial. Eis que cumpre com todos os elementos do Art. 2º da
Lei 13.982/2020 e do Art. 3º ao 7º do Decreto 10.316/2020.
No que concerne ao requisito enumerado no inciso V do art. 2º, sua
inconstitucionalidade é manifesta, pelos fundamentos acima aduzidos, ante
todos os princípios constitucionais violados, não de modo genérico, mas em
suas expressões concretas, em compasso com as finalidades buscadas com a
arquitetura do programa de assistência social do Estado brasileiro adotado pela
Carta Magna.
Diz o art. 6º do Decreto 10.316/2020, que (...) “após a verificação do
cumprimento dos critérios estabelecidos na Lei nº 13.982, de 2020, os
beneficiários serão incluídos na folha de pagamento do auxílio emergencial”.
Ademais, comprovada a situação de extrema vulnerabilidade
econômica, sendo a família de baixa renda e enfrentando o desemprego o que
comprova o estado de emergência do demandante.
Quanto à urgência, trata-se de verba de caráter alimentar,
mostrando-se presente, neste caso, o PERICULUM IN MORA. Deve-se notar
que a parte requerente necessita do benefício eventual para garantir sua
própria subsistência, desde a alimentação até a manutenção da dignidade de
sua família.

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À similitude, para a identificação desse pressuposto da tutela


de urgência/evidência antecipada, forçoso não descurar do contexto em
que surgiu o benefício, como prestação material emergencial para suprir
o mínimo existencial dos trabalhadores e pessoas mais pobres, sem fonte
de renda, durante o isolamento social, que deprime ferozmente a
demanda por produtos e serviços, acarretando desesperadoras
consequências econômicas negativas para esses obreiros autônomos.
Nessa senda, é importante que o magistrado analise o requerimento sob a
égide de um contexto excepcional, emergencial e não com a mesma visão
de uma quadra de normalidade social-econômica.
Assim como a instituição do auxílio-emergencial pelo
Congresso se operou de maneira extraordinária, entre outras medidas
adotadas pelos demais poderes como a apelidada “PEC do Orçamento de
Guerra”, contratação de profissionais de saúde em regime de
excepcionalidade11 além das medidas administrativas como “Lockdown”
no Estado do Maranhão e agora também decretada para o Estado do
Ceará a partir do dia 08/05/202012, é imperioso que o juízo também se
insira nesse universo para avaliar os pressupostos das tutelas de
urgência em sintonia com a gravidade trazida pelos fatos notórios vividos
no país com reflexos rigorosos em todos os indivíduos.
Inclusive, o Superior Tribunal de Justiça em 20.04.2020, afirmou que
o atraso de DIAS no recebimento do auxílio emergencial pode ser devastador
ao indivíduo.
O relator ministro João Otávio de Noronha, presidente do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), sustou os efeitos da liminar do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região (TRF1) que havia suspendido a exigência de
regularização do CPF para o recebimento do auxílio emergencial durante a
pandemia do novo coronavírus (Covid-19). Segundo o ministro, a referida
análise geraria inevitável atraso na distribuição do Auxílio Emergencial, caso
suspendesse a exigência de regularização do CPF, segue trecho da sua
manifestação:

(...)Se, em circunstâncias normais, a possibilidade do


atraso de 48 horas nas operações referentes ao
pagamento de auxílio à população representa
intercorrência administrável do ponto de vista da gestão
pública, no atual quadro de desaceleração abrupta das
atividades comerciais e laborais do setor privado, retardar,
ainda que por alguns dias, o recebimento do benefício
emergencial acarretará consequências desastrosas à
economia nacional e, por conseguinte, à população".(...)

11 https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46528-ministerio-da-saude-convoca-5-mil-
medicos-contra-coronavirus
12 https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/05/05/interna-brasil,851597/
governador-do-ceara-anuncia-lockdown-em-fortaleza-a-partir-de-sexta.shtml

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(SLS nº 2692 / PA (2020/0089719-9) autuado em


17/04/2020, União X TRF1ª Região - Número
Único:0089719-38.2020.3.00.0000, Relator (a):Min.
Presidente do STJ).

Relativamente à irreversibilidade do provimento, o princípio da


proporcionalidade autoriza a antecipação do auxílio, já que a vida e a dignidade
da parte autora são bens que possuem maior grandeza e importância em
relação aos valores a serem pagos pelos Réus.
Note-se que a Doutrina majoritária considera que, podendo se
converter em perdas e danos, não é considerado irreversível. Sendo assim,
não há de se falar em irreversibilidade da decisão.
Assim, por todos estes motivos, encontram-se satisfeitos os
requisitos previstos no artigo 300 do CPC e faz-se urgente a concessão da
tutela provisória de urgência, por meio de ordem para que os Réus efetuem o
pagamento dos valores devidos à parte autora de forma imediata.

6. DOS PEDIDOS

Diante todo o exposto, requer a parte autora:

a) A concessão de Assistência Judiciária Gratuita, haja vista a parte


autora ser pessoa pobre na acepção legal do termo, em conformidade com o
disposto no art. 98 e ss do Código de Processo Civil;
b) A observância das prerrogativas da Defensoria Pública da União;
c) Em sede de tutela de urgência antecipada, afastada a regra do
art. 2º, V, da Lei 13.982/2020, após a devida interpretação conforme à
Constituição, nos termos do art. 300 do CPC, sem a oitiva da parte contrária,
ante a prova inequívoca dos fatos e a existência de justo receio de danos de
natureza irreparável ou de difícil reparação, a fim de que sejam os réus
instados a reavaliarem o pedido do demandante afastando a condicionante do
art. 2º, inciso V, da Lei 13.982/2020, em prazo razoável e, concedendo o
auxílio, confirmado o preenchimento dos demais requisitos legais para a
concessão;
d) A citação dos réus por meio de seus procuradores, para,
querendo, contestar os termos da presente demanda;
e) Ao final, afastada a regra do art. 2º, V, da Lei 13.982/2020, após a
devida interpretação conforme à Constituição, a fim de que seja confirmada a
tutela antecipada determinando aos réus nova análise do requerimento, sem a
condicionante do art. 2º, inciso V, da Lei 13.982/2020, em prazo razoável,

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concedendo o benefício, caso confirmado o preenchimento de todos os seus


requisitos;
f) A condenação dos réus nas custas e honorários de sucumbência,
em caso de recurso, nos termos do art. 55 da Lei nº 9.099/95, em favor da
Defensoria Pública da União, consoante o já decidido pelo E. STF na AR 1937
AgR. Os honorários deverão ser depositados em favor do Fundo de
Aparelhamento da Defensoria Pública da União (CNPJ 00.375.114/0001-16,
Agência 0002-Caixa Econômica Federal, Operação 006, Conta Governo
10.000-5 – Favorecido: Defensoria Pública da União);
g) A produção de todos os meios de prova em direito admitidos;
h) Requer o julgamento antecipado do mérito com base no Art.
355,CPC, posto que o presente litigio versa apenas sobre questão de direito,
dispensando a produção de provas.
Dá a causa o valor de R$ 1.800,00 (mil e oitocentos reais).

Nestes termos,
Pede deferimento.
Sobral/CE, 14 de maio de 2020.

Fernando Antônio Holanda Pereira Júnior


Defensor Público Federal

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