Tese 2

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SERGIO FRANCISCO ENDLER

RÁDIO CONTINENTAL AM:


HISTÓRIA E NARRATIVAS,
EM PORTO ALEGRE, DE 1971 A 1981

São Leopoldo - RS
2004
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
CENTRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

RÁDIO CONTINENTAL AM:


HISTÓRIA E NARRATIVAS,
EM PORTO ALEGRE, DE 1971 A 1981

Tese de Doutorado

Orientador: Dr. Pedro Gilberto Gomes, SJ

São Leopoldo − RS
2004
Para
Guilherme, Paula e Nilda
Dedico a
Reinoldo Edmundo Endler,
James Richard Phelan,
Cecília Mensch Endler e
Amalie Phelan.
In memoriam
AGRADECIMENTOS

Em nome do Prof. Dr. Pedro Gilberto Gomes, agradeço à Universidade do


Vale do Rio dos Sinos. Agradeço a ele, igualmente, pelo trabalho
dedicado à Orientação da presente tese.

Em nome do Prof. Dr. José Luiz Braga, agradeço ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências da Comunicação. Em nome dele,
também, agradeço aos professores pesquisadores do referido
programa.

Ao Prof. Dr. Antonio Fausto Neto e ao Prof. Dr. Alberto Efendy


Maldonado, particularmente, agradeço pelas contribuições e
análises quando da Banca de Qualificação da presente tese.

Agradeço ao Prof. Ms. Jorge Pastorisa Jardim, quando Diretor do Centro


de Ciências da Comunicação, pelo apoio institucional dado ao
projeto de pesquisa.

Agradeço, igualmente, à Profa. Dra. Ione Ghislene Bentz, quando, então,


Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação, pela acolhida do projeto de tese.

Sou grato, também, aos trabalhadores da Rádio Continental, mulheres e


homens que fizeram e ofertaram o projeto da emissora e
contribuíram, significativamente, para a realização da presente
pesquisa, com seus depoimentos.
RESUMO

A pesquisa propõe uma história do protagonismo da Rádio Continental


AM, de Porto Alegre, com olhar analítico sobre a década iniciada em 1971,
período de maior realização peripecial da emissora. Metodologicamente, recursos
advindos da história oral e da nova história são articulados para a constituição do
corpus e da reflexividade sobre os fazeres radialísticos em repertório da Rádio. A
tese, neste sentido, empreende uma particular problematização sobre o uso de
entrevistas nas ciências sociais. A realização de uma história escrita, a partir das
sonoridades da Continental, oportuniza, também, instância para uma teorização do
radialismo. No desenvolvimento das interações sociais e históricas da emissora,
identificamos o que denominamos paidéia radiofônica. Ao sugerirmos as
articulações de estações, como plataformas para análise, e de mapas, para leituras
e localizações contextuais da emissora, as narrativas-slogans e metonímicas
ganham forma como expressões discursivas, estratégicas e identitárias. A
programação complexa exibe articulada uma série de atratividades para público
jovem, segmentado, em performance comunicacional inédita, dentro de território
da indústria cultural, já demarcado pela mundialização da cultura, onde convivem
o rock, a Música Popular Brasileira (MPB) e a chamada Música Popular Gaúcha
(MPG), também esta vislumbrada como uma das franjas sonoras da Continental.
São peripécias interpretadas o estilo sintético de 1120 é Notícia, a customização
da publicidade, o humor e a independência democrática das falas livres e editadas.

Palavras-chave: rádio; história oral; narrativas; cultura urbana


ABSTRACT

This research proposes tracing the history of a leading radio-station in


Porto Alegre, RS, Radio Continental AM, by analyzing its broadcasting activities
in the decade starting in 1971, during which period Radio Continental AM had
been particularly active and influential. As far as the research method is
concerned, both oral history and new history have been articulated in order to
form the corpus and also in order to examine how oral and new history reflected
on the daily radio broadcasting of the station. Along these lines, the research
studies the problems that the use of interviews in the domain of Social Sciences
may raise. The writing of a story based on whatever was broadcast by Radio
Continental AM is also a good opportunity for a theory of radio broadcasting to
be studied. By developing the historical and social interactions of Radio
Continental AM, we have identified what we have called a “radio-broadcasting
paideia”. By suggesting that the articulation of radio stations may be seen as
analysis platforms, and maps, which would serve as readings and contextual
locations of the radio stations, the slogan-narratives and the metonymy-narratives
have been turned into expressions of discourse, of strategy, and of an identity.
The Radio Continental programming is quite complex, articulating a series of
attractions geared towards young ´people. Its radio programs contemplate an
unprecedented variety of musical segments in an area strongly marked by world
culture, where rock, Brazilian Pop Music (MPB) and the so-called MPG (Gaucho
Pop Music), a characteristic sound fringe of Radio Continental, live together
peacefully. Such are the main features of the “1120 is news” synthetic style ,
characterized by customization of commercials, by good humor and by the
democratic independence of both free and edited speeches.

Key-words: Radio, oral history, narratives, urban culture


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 10

CAPÍTULO 1: A EMISSORA NO HORIZONTE DA PESQUISA............... 17


1.1 SINTONIZANDO A CONTINENTAL .......................................................... 17
1.2 TRANSCURSO, PERCURSO: TRAJETÓRIA ATÉ A REALIZAÇÃO DA
PESQUISA .................................................................................................... 22

CAPÍTULO 2: O PROBLEMA DA PESQUISA E AS ESTAÇÕES DA


CONTINENTAL ....................................................................... 30
2.1 O PROBLEMA DA PESQUISA ................................................................... 30
2.2 RELEVÂNCIA DESTA PESQUISA PARA O CAMPO DA
COMUNICAÇÃO ......................................................................................... 37
2.3 AS ESTAÇÕES: ÂNGULOS E PONTOS DE OBSERVAÇÃO................... 39

CAPÍTULO 3: A HISTÓRIA ORAL ENQUANTO MÉTODO .................... 55


3.1 HISTÓRIA DA HISTÓRIA ORAL: UMA ABORDAGEM ........................ 55
3.2 HISTÓRIA ORAL COMO METODOLOGIA E TÉCNICA DE
PESQUISA................................................................................................... 67
3.3 A HISTÓRIA ORAL NA PRESENTE PESQUISA E A ENTREVISTA-
RELATO COMO UMA CONSTRUÇÃO .................................................... 73

CAPÍTULO 4: A ENTREVISTA APLICADA E A REFLEXIVIDADE ...... 78


4.1 NOÇÕES E ESTUDOS SOBRE AS ENTREVISTAS NA PESQUISA ...... 78
4.2 QUESTÕES SOBRE AS ENTREVISTAS NA PRÁTICA DA PESQUISA
(APRESENTAÇÃO E TIPOLOGIA DAS ENTREVISTAS) ...................... 88
4.3 AS ENTREVISTAS-RELATO NA HISTÓRIA ORAL: LIMITAÇÕES E
DILEMAS DA PESQUISA .......................................................................... 94
4.4 AS CIRCUNSTÂNCIAS E AS CONSTRUÇÕES DE ENTREVISTAS ..... 97
4.5 A ESTRUTURAÇÃO DAS PERGUNTAS E DOS QUESTIONÁRIOS:
ROTEIROS.................................................................................................. 101
4.6 OS SUJEITOS DA CONTINENTAL: A REDE DE ENTREVISTADOS ... 105
4.7 O USO DO GRAVADOR E O ARQUIVO SONORO ............................... 114
CAPÍTULO 5: AS NARRATIVAS DA RÁDIO CONTINENTAL................ 117
5.1 SOBRE HISTÓRIA E NARRATIVA ......................................................... 117
5.2 SOBRE AS NARRATIVAS DA CONTINENTAL: CONCEITUAÇÃO E
TIPOLOGIA................................................................................................ 124
5.3 AS NARRATIVAS URBANAS: MODELOS CONSTRUÍDOS PELA
CONTINENTAL........................................................................................... 135
5.3.1 Narrativas Radiojornalísticas:............................................................... 136
5.3.2 Narrativas de “Discursos livres”: As Falas dos DJ’s ........................... 147
5.3.3 Narrativas Publicitárias.......................................................................... 158
5.3.4 Narrativas-slogans, Carimbos Sonoros.................................................. 165
5.3.5 Narrativas Metonímicas ......................................................................... 172
5.3.6 Outras Narrativas Auto-institucionais (de Identificação) ................... 182
5.3.7 Narrativas Musicais ................................................................................ 184
5.3.8 Narrativas Paródicas e Humorísticas.................................................... 190
CAPÍTULO 6: A INOVAÇÃO NA TRADIÇÃO E NA
CONTRAPOSIÇÃO .............................................................. 193
6.1 O RÁDIO COMO PROBLEMA EMPÍRICO-TEÓRICO........................... 193
6.2 O RÁDIO COMO FATO EMPÍRICO: DOS PIONEIROS À
PROGRAMAÇÃO SEGMENTADA ........................................................ 197
6.3 A RÁDIO CONTINENTAL COMO FATO EMPÍRICO PARA A
PESQUISA................................................................................................. 210
6.4 ESTADO DA ARTE SOBRE O RÁDIO: UMA ANGULAÇÃO............... 217

CAPÍTULO 7: AS PERIPÉCIAS E A INSTÂNCIA DA TEORIA .............234


7.1 HISTÓRIA DAS PERIPÉCIAS DA CONTINENTAL .................................236
7.1.1 O Depoimento de Fernando Westphalen ...............................................238
7.1.2 Raízes.........................................................................................................241
7.1.3 “Guasca Simples, Bonachão, Guapo de Marca e Sinal” ......................243
7.1.4 Sistema Globo Chega a Porto Alegre .....................................................247
7.1.5 Entre Monumentalidades Históricas......................................................251
7.1.6 A Continental entre Redes ......................................................................255
7.1.7 O Depoimento de Dona Marina ..............................................................258
7.1.8 O Golpe 1964, o Adeus a Jango e Roberto Carlos ................................261
7.1.9 Essa Gente e a Mania, o Disco ................................................................263
7.1.10 “Na Caiçara, a música não pára” .........................................................265
7.1.11 No Ar, o “Som Nosso de Cada Dia”......................................................268
7.1.12 Horóscopo da Pesada .............................................................................274
7.1.13 O Agente 1120.........................................................................................277
7.1.14 Luís Fernando Veríssimo ......................................................................278
7.1.15 “Cascalho” ..............................................................................................280
7.1.16 Surge “Johnny Megaton” ......................................................................286
7.1.17 Clube da Esquina ...................................................................................289
7.1.18 Rádio da Luta Ecológica e Política .......................................................291
7.1.19 Rádio, Cidade: outras Narrativas........................................................295
7.1.20 A Bomba..................................................................................................304
7.1.21 Vozes na Equipe .....................................................................................309
7.1.22 Ananda Apple .........................................................................................311
7.1.23 FMs no Dial.............................................................................................314
7.1.24 Música Daqui..........................................................................................318
7.1.25 “Vivendo a Vida de Lee” .......................................................................320
7.1.26 Os Concertos e os “Discocuecas” ..........................................................327
7.1.27 “Inconsciente Coletivo” .........................................................................330
7.1.28 Outra Nova Programação .....................................................................333
7.1.29 “Opinião Jovem”, com o Professor Fogaça .........................................341
7.1.30 Dedé, a Produtora .................................................................................345
7.1.31 Pery Souza ..............................................................................................347
7.1.32 Eleonora Rizzo........................................................................................348
7.1.33 O Radiojornalismo, segundo Adroaldo Corrêa .................................352
7.1.34 De Ordem .... Fica Proibido...................................................................356
7.1.35 Jornalista: Missão Cumprida, Emprego Perdido ...............................362
7.1.36 Continental: “Barriga” Nacional..........................................................366
7.1.37 Notícia sobre manifestação estudantil leva à prisão três
radialistas ................................................................................................368
7.1.38 “Haverá farta distribuição de latinhas”...............................................370
7.1.39 Melhor Música, Melhor Som da Cidade ..............................................372
7.1.40 A Maior Multa da História do Rádio ...................................................375
7.1.41 Por que a Continental não migrou para FM?......................................380
7.1.42 O Mapa....................................................................................................385
7.1.43 Palimpsesto 1120 ....................................................................................387
7.1.44 A Continental no Dial do Futuro...........................................................390
7.2 ASPECTOS TEÓRICOS DA PRODUÇÃO-ESCUTA ..............................392
7.3 A PAIDÉIA RADIOFÔNICA E A TEORIA DA ESCUTA..........................406

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................420

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................431


1 LIVROS, TESES, DISSERTAÇÕES, MONOGRAFIAS E PERIÓDICOS...431
2 ENTREVISTAS...............................................................................................454
INTRODUÇÃO

A pesquisa propõe uma história do protagonismo da Rádio Continental


AM, de Porto Alegre. O objetivo axial está em apresentar uma história coerente da
emissora, surgida em 1962, e desativada, praticamente, duas décadas após.
Através do acionamento de recursos teóricos e técnicos da história oral,
reconstituímos o surgimento da Rádio, o apogeu e queda desta, em ciclo
complexo, não linear, da sua existência peripecial. Nesse sentido, a recuperação
das narrativas radiofônicas mereceu especial atenção da pesquisa.

A começar pela inauguração da rádio, pelas mãos de Victor Issler,


empresário e deputado federal gaúcho, e, logo a seguir, pela negociação da licença
permissionária para a utilização do prefixo 1.120, obtida por Roberto Marinho
para o Sistema Globo de Rádio, buscamos uma narrativa que relatasse o apogeu
da emissora até o declínio derradeiro, relacionando questões de gestão
empresarial, opções técnicas-tecnológicas ao contexto social e histórico.

O presente trabalho, sobretudo factualmente, investe em duas direções.


Buscamos, primeiramente, a ampliação do ciclo histórico e vital do protagonismo
da emissora, até então reduzido pela interpretação do senso comum. Em segundo
lugar, com maior relevância, apostamos na investigação da construção histórica da
Rádio, a partir da nova configuração gerencial e radiojornalística da Continental,
ocorrida no verão de 1971, quando passa a adotar o slogan “O som nosso de cada
dia”, empreendendo programação cuja complexidade e interação social é
motivação central de análise, na reconstituição histórica da presente tese. Ali,
demarcamos ênfases na história peripecial.
11

As narrativas da Continental, na tese, surgem de relatos sobre a própria


emissora, a partir de entrevistas com os principais sujeitos da produção. Ali,
então, propõe a tese, a Continental se constitui em modelo paradigmático
inovador para o radialismo porto-alegrense e gaúcho, mesclando padrões
produtivos tradicionais com soluções advindas do centro do país e do exterior. A
tese desdobra-se na constituição do modelo Continental de inovação radialística
pela oposição ao padrão vigente (nova dicção, dramaturgia, ritmo, sonoridade,
público-alvo.

Sob aquela nova configuração, surge uma emissora com programação


pioneira para público dirigido, constituído, majoritariamente, por estudantes
secundaristas e universitários, residentes na Grande Porto Alegre. O presente
trabalho investiga, assim, os indícios daquilo que marca o caráter diferencial da
rádio, projetando-a no estabelecimento de uma linguagem inovadora, com
igualmente nova forma de oferta na articulação de uma programação. Este
fenômeno diferencial ofertado pela emissora é investigado no contexto da história
do radialismo local. O texto da Rádio Continental, aqui recuperado em forma de
narrativa histórica, entendida como forma e conteúdo, é também atualizado ora
pela ênfase em novos gêneros de música, especialmente a então jovem MPB
universitária e a recente música popular gaúcha urbana (MPG); ora construído
mediante articulações enunciativas de humor e sátira, em gêneros díspares como
encontrável no texto publicitário e no jornalístico. As narrativas da Continental
são examinadas como contribuições singulares, também no posicionamento
político-ideológico, a partir da atuação oposicionista da rádio, contra o
autoritarismo e censura vigentes então.

Metodologicamente, encontram-se recursos na história oral para o


estabelecimento de uma história peripecial da Continental, logo, corpus predileto
para a identificação histórica das peripécias teóricas da própria emissora. A Rádio
é apresentada, então, como voz autoral e enunciadora da cidade e, ao mesmo
tempo, contravoz de modelos radiofônicos existentes. A paidéia radiofônica,
sugerimos, tem início nestas estratégias.
12

Em síntese, no projeto de trabalho da presente pesquisa, apresentamos os


dois capítulos iniciais como verdadeira introdução e conjunto articulado
atualizador de questões para aproximação dos problemas centrais da tese. Já os
capítulos seguintes, estão destinados aos questionamentos e investigações teórico-
metodológicos da tese. Notadamente, tratamos de problematizar os conceitos-
chave referentes à história oral (Capítulo 3), à entrevista (Capítulo 4) e à narrativa
(Capítulo 5). No Capítulo 6, em resumo, enfocamos o rádio como problema
empírico-teórico maior. E, no Capítulo 7, de caráter ensaístico, buscamos explorar
a possibilidade de apresentação das peripécias da Continental enquanto registro de
uma escritura em macrogênero. Naquele espaço conclusivo, ainda, apresentamos
nossas contribuições sobre as instâncias específicas de produção-escuta da
Continental ensejando a configuração de uma paidéia radiofônica.

Em resumo, no capítulo 1, procuramos sintonizar, inicialmente, o


problema em torno do tema Continental, estabelecendo percurso para
desenvolvimento da presente pesquisa. Tratamos, ali, igualmente, de estabelecer
uma espécie de memorial, onde contemplamos, ao mesmo tempo, determinados
aspectos de nossa trajetória pessoal profissional em consonância aproximativa
com as questões específicas e dilemáticas da presente tese. Buscamos, no capítulo
1, pois, estabelecer o relato de uma trajetória, apontando percursos, transcursos,
até a realização da própria pesquisa, inclusive. Tratando-se de capítulo de
abertura, antecipamos, resumidamente, aspectos históricos relevantes sobre a
Continental, de modo a situar, minimamente, a emissora-problema dentro de um
panorama cronológico específico sobre o rádio entre nós. No primeiro capítulo,
assim, procuramos contemplar questões demarcadoras, ora referentes à trajetória
própria da Continental, ora quanto ao encaminhamento teórico-metodológico para
definição da história das peripécias em construção a seguir estruturada. A opção
estratégica pelo acionamento da história oral como método, então, recém-
esboçada, aparecerá melhor contemplada, sob corte analítico, no capítulo 3 da
presente tese.

No capítulo 2, buscamos aproximar a problematização do trabalho a partir


do estabelecimento das estações como pontos específicos para observações,
13

sondagens e indicativos de análises. E, em linhas gerais, intentamos apontar


aspectos particulares quanto à relevância da presente pesquisa para os estudos
acadêmicos dentro do campo da comunicação social. Neste direcionamento,
dentro da práxis textual, ali, iniciamos o estabelecimento de microrrede conceitual
própria da pesquisa. Igualmente, neste capítulo 2, aproximamos o foco do
trabalho, cujo objetivo eleito residiu na análise histórica do modelo real-concreto
de emissora paradigmática, bem como no interesse de observação das interações
sociais da Rádio com a cidade, com a cultura e com a política, sobretudo, com o
habitus midiático comunicacional, enquanto tal, à época. Neste sentido, chegamos
ao estabelecimento daquilo que denominamos, em ensaio, por estações. Através
destas estações, erguidas como pontes de observação e nexos interpelantes,
buscamos oportunizar o garimpo de documentos orais, sonoros e escritos para
elucidação dos diferentes questionamentos sobre a Continental. A pluralidade de
vozes apregoadas da Continental e a eventual competência múltipla de fazer
comunicação determinaram, igualmente, diferentes estações para análise e
observação prévias. Em meio ao que Bakhtin (1981) definiria como polifonia,
terminamos por destacar, na pesquisa, a identificação de uma vox radiofônica
plural da Continental, estruturada e estruturante, da cidadania juvenil. As questões
trazidas e oportunizadas pelas estações foram geradoras de um macrotexto
específico, concreto, realizadas no desenvolvimento da tese. As estações foram
promotoras do relato escrito final das peripécias da Rádio Continental.

No Capítulo 3, apresentamos estudos específicos sobre a história oral,


quando delineamos nossa indicação de metodologia para abordagens e
equacionamentos na especificidade da tese. Com Aceves Lozano (1994),
buscamos especificar a faceta metódica metodológica do processo de constituição
da tese com recursos desta história oral. Após investigar modelos, terminamos por
optar pelo estilo proposto de analista completo, muito embora, desde sempre,
aquela história da Rádio estivesse erguida sob as constatações de lacunas, de
falhas e de necessários fragmentos. De modo a viabilizar um relato das peripécias
da Continental, visitamos as diferentes contribuições teóricas atuais da história
oral. Colher, ordenar, sistematizar e criticar os processos de produção das fontes
14

orais configuraram, a partir dali, instância definidora dos caminhos para a


realização da tese. A partir daqueles estudos, pudemos avançar em busca de
resolução e complementação do trabalho historiográfico.

No Capítulo 4, demarcamos os questionamentos, especificamente, sobre o


emprego das entrevistas na história oral para, logo a seguir, abordarmos os
movimentos da prática dentro da presente pesquisa. A partir da configuração do
diálogo como instância ideal do processo de comunicação, chegamos às
articulações de derivação deste, seja na prática das rotinas produtivas do
jornalismo, seja na utilização da entrevista como recurso das ciências sociais. Pela
crítica destas atuações, estabelecemos recursos próprios para construção da
história da Continental desejada. As entrevistas, assim, na prática, podiam nutrir-
se no embate com as fontes orais relevantes, trazendo para o texto da tese os
registros sobre o não-sabido, o não-dito, sobre as zonas de sombra, sobre as
lembranças remotas ou recalcadas. Somente através da práxis processual das
entrevistas, poderíamos capturar o relato orgânico do conjunto de ações e
narrativas, sobre cenas e sons perdidos no tempo. A história temática da
Continental surgiria depreendida das entrevistas, pela oralidade constitutiva, pela
autoconstrução da memória individual e coletiva transformada em escrita pela
tese. Neste sentido, vislumbramos como fundamental as contribuições vigorosas
de Marre (1991).

No Capítulo 5, apresentamos nossos estudos específicos sobre as


narrativas, configuradas estas como mote central das ações comunicativas da
Continental. Neste bloco de estudos, buscamos elencar desdobramentos para
enfoques conceituais das formações discursivas, tendo por desafio a configuração
melhor explicada do conjunto de vozes autorais da Continental. As narrativas que
buscamos estudar localizamos numa sociedade histórica contemporânea, de forte
protagonismo das mídias e da reprodutibilidade técnica. Neste contexto, a história
das peripécias da Rádio não abriria mão de documentos escritos disponíveis e
necessários, mas aliaria a estes registros, necessariamente, o conjunto de fontes
orais, sonoras. Para o desenvolvimento do presente trabalho, necessitamos acionar
as narrativas em sentido amplo, quer pela forma, conteúdo ou pelo suporte. Neste
15

direcionamento, a conceituação de narrativa estabelecido por Barthes (1971)


tornar-se-ia central, associada à idéia metodológica de obtenção de “pontos de
saturação”, em Marre (1991), valendo-se do esboço de construção de histórias-
testemunho carreada por Le Goff (1993). Buscamos coligir, organizar e analisar as
narrativas da Continental, tomando-as como relevantes fenômenos expressivos e
constitutivos das peripécias da própria Rádio.

No Capítulo 6, buscamos configurar a Rádio Continental diante do


protagonismo das emissoras contemporâneas, à época, sob o filtro de uma visão
crítica e histórica possibilitada pela atualidade. Nesse sentido, ainda, procuramos
uma angulação específica, a partir de visão regional, para o estabelecimento do
estado da arte dos estudos sobre o rádio, entre nós. No Capítulo 6, ainda,
procuramos estabelecer estudos sobre o rádio enquanto problema empírico-
metodológico. Para tanto, acionamos as contribuições desde Gramsci (1978), para
abordagem da conflituosidade, chegando às estruturações propostas em Giddens
(1998), até a particularização de questionamentos sobre o fazer radiofônico e
radialístico oportunizados em Meditsch (2001) e Grisa (2003). Neste capítulo 6,
sobretudo, destacamos em recorte o estado da arte sob uma angulação regional,
onde buscamos ressaltar a existência relevante de determinado grupo de
pesquisadores gaúchos sobre o rádio, como ressaltamos. O recorte justifica-se, em
nossa avaliação, pelo conjunto amplificado de problematizações sobre o fazer
radialístico, conforme identificamos.

No Capítulo 7, pretendemos estabelecer o elenco das diferentes peripécias


da Continental, a partir de histórias relatadas, de textos e interpretações recortadas
pela pesquisa, de modo a oportunizar uma história em nexos coerentes da Rádio.
Igualmente, buscamos estudar, teoricamente, a particular existência da experiência
Continental, possibilitada pelo fluxo produção-escuta, protagonizando inédita
paidéia radiofônica moderna, como procuramos sugerir. No subcapítulo
específico de registro das peripécias da Rádio, buscamos acionar, na prática
textual, o conceito operativo sugerido de suspergênero, modo expressivo
selecionado para apresentação da polifonia Continental pela presente proposta de
trabalho de tese.
16

O presente trabalho de tese busca garantir relevância ao localizar,


identificar e analisar o ciclo vital, representado pela existência, protagonismo e
desaparecimento da Rádio Continental. Inicialmente, localizamos a emissora
postada entre dois marcos históricos monumentais, a saber, a Rede da Legalidade
e o Movimento Diretas-Já, marcos históricos igualmente midiáticos e
delimitadores, também na cronologia, das possibilidades real-concretas para a
Rádio em estudo. Dentro da atual proposta de trabalho, a Rádio Continental surge
erguida naquele macro espaço histórico, geográfico e político, sendo enquadrada e
analisada sob o prisma do lugar, embora este já estivesse matizado pela presença
de uma específica convergência da mundialização da cultura. Foi aquela particular
construção simbólica coletiva, ao mesmo tempo midiática, cultural e política da
Rádio Continental, que elegemos como peripécia a ser contada, a partir da tese,
acionando o protagonismo singular dos sujeitos comunicacionais e históricos da
paidéia porto-alegrense, a partir de 1971.
CAPÍTULO 1: A EMISSORA NO HORIZONTE DA PESQUISA

1.1 SINTONIZANDO A CONTINENTAL

Uma vez sintonizada a Rádio Continental como uma plataforma


selecionada para estudos da comunicação social, em Porto Alegre, tornou-se
possível constituir, ali, o objeto central para abordagem do problema da tese, aqui,
empreendida.

O objetivo axial do projeto de tese localiza-se na construção e no


estabelecimento de uma história em narrativa sobre a relevância midiática e
sociocultural da Rádio Continental AM de Porto Alegre, desde o surgimento
desta, na década de 1960, articulando especial focalização, enquanto
aprofundamento de análise, na existência desta emissora, em paralelo, durante os
anos de 1970, numa interpretação da emissora com a vida cultural da cidade.

Mídia e cultura, portanto, estão imbricados como angulações centrais da


problemática do conhecimento da pesquisa e, assim, pesquisados no trabalho de
história da Continental na tese.

O problema reside, desde a origem, justamente em saber contar a história


desta emissora, surgida em 1962, desaparecida no início da década de 1980,
constituindo-se, para o senso comum e para alguns estudiosos da comunicação
local, como marco referencial do saber fazer comunicacional radialístico porto-
alegrense e gaúcho. Sendo, entretanto, hoje, uma emissora cuja existência é
somente revivida e revalidada através da memória social, de modo frágil,
18

fragmentada e parcial, sendo, portanto, tomada a Continental enquanto marco


referencial do passado, aqui, tornado presente.

Dito assim, a questão da tese se aproxima, de certo modo, de uma


postulação dilemática agostiniana, quando o filósofo indaga sobre a ação
configurada do tempo, que transforma o passado em memória presente e o futuro
em expectativa presente. Para Santo Agostinho, talvez, “fosse próprio dizer que os
tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das
futuras”. Existindo, pois, três tempos na mente: “lembrança presente das coisas
passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas
futuras” (AGOSTINHO, 1987, p. 222). Tratou-se, na tese, justamente, de realizar
a história pretérita da Continental, em termos coerentes, coesos e, aqui, presentes,
atualizados em certa ordenação, didaticamente atualizada.

É por esta constituição e oferta que se configurou a Rádio em questão


como o problema empírico para resolução teórico-metodológico desta presente
pesquisa. O problema da tese, pois, é a história de uma Rádio que não existe mais,
que não está no ar, nem ao vivo, nem gravada. Não está no dial, nem ofertada ou
gravada em qualquer suporte, não está constituída, reproduzida, nem sintonizada
pelo público como emissora da atualidade.

Entretanto, a experiência desta Rádio gaúcha deixou indícios de vida e de


expressão na cultura, e foi em busca desta memória, das realizações
comunicacionais indiciais, como vestígios, de uma emissora histórica, real-
concreta, que se tratou de realizar a pesquisa. Constatou-se que a Continental
esteve presente, de diferentes modos, na memória pela interação social. Logo,
orgânica e culturalmente, merecia abordagem de estudo, de análise e método.

É esta dimensão histórica da Rádio Continental que é trazida, aqui, para


abordagem, como problema axial da tese. O próprio corpus histórico de pesquisa
constituído possibilitou, em outro estágio, a teorização sobre as peripécias da
emissora em ação na história passada.

O problema esteve, inicialmente, em obter, construir e, logo, ofertar uma


narrativa da Continental, metodologicamente, de modo pertinente em nível
19

acadêmico, sob forma estruturada, com lógica própria, dotada de racionalidade de


pesquisa.

Como se estabelecem e como se decifram estas inscrições, sonoridades,


vozes no espaço-tempo e, logo, como se escreve uma narrativa sobre este
conjunto-fenômeno Continental, uma história de uma emissora que já não está no
ar e que, para muitos, não existe nem nunca existiu, seja como experiência
empírica, seja como integrante da memória sociocultural? Foram estes,
inicialmente, os marcos desafios preliminares do projeto de estudo que, na ação da
pesquisa, dialogaram com os atores principais e, neste diálogo, ergueram a
história da Rádio fraturada, mediante teorização e método.

Para o senso comum e para uma parcela da tradição cultural da cidade,


utilizando-se de mecanismos de memória social preservada e, sobretudo,
transmitida através da linguagem oral, a Rádio Continental representou um
avanço muito grande para o processo de comunicação social em Porto Alegre.
Mas, esta própria memória parcial, tipicamente organizada pelo senso comum,
termina por concentrar-se em determinados aspectos, sem atingir a totalidade. A
presente pesquisa buscou, justamente, recuperar franjas, temporalidades,
fenômenos significativos da história total, até ali omitidos, esquecidos ou não
descobertos, ampliando o nível de conhecimento sobre o fenômeno.

A emissora tem sido referida, sobretudo, pelo caráter inovador da


linguagem radiofônica, pelo estabelecimento inédito, então, de uma programação
destinada ao público jovem, pela musicalidade e característica despojada de
locução e apresentação de programas, enfim, pelo modo de fazer rádio de uma
emissora ouvida e referida como precursora das FMs. Na tese, buscamos
comprovar estas qualidades.

Para outra referência de memória, a Rádio Continental significou exemplo


de contestação jovem e voz democrática contra o regime político vigente e a
repressão militar, então, existente. Pretendemos demonstrar como a Continental
foi atuante, ainda, na ação discursiva de defesa da ecologia.
20

É atitude constitutiva fundamental da presente tese, como veremos, a ação


de recuperar, relatar, investigar e construir a história estruturada, para leitura e
análise acadêmica, dos aspectos relevantes do fenômeno da memória social da
comunicação em rádio, de Porto Alegre, naquele período histórico.
Primeiramente, procuramos a profundidade de aspectos relevantes colhidos junto
ao senso comum. Entretanto, além desta necessária reflexividade sobre dados
freqüentemente elencados, buscamos novos fenômenos, a partir de determinados
rastros, indícios, vestígios de história.

A primeira resultante destas buscas ocorreu, justamente, na ampliação do


próprio ciclo de vida da Continental. Ampliada, esta temporalidade, até então não
desvendada, significou, igualmente, outro patamar para a existência em peripécias
da Continental. Pela ação da pesquisa, esta ampliação do ciclo de vida real da
Rádio terminou por identificar novo contingente significativo de peripécias que
pôde contribuir na tentativa de erguimento de uma narrativa histórica mais
complexa sobre a Continental. Vejamos, a seguir, o quadro cronológico sumário
desta ampliação, nas franjas de tempo, das redescobertas sobre a emissora, como
expressão da ação da pesquisa, com as peripécias, em resumo, ineditamente
referidas:

Em 1959, o empresário e político gaúcho Victor Issler, no Rio de Janeiro,


então capital do Brasil, toma conhecido sobre possibilidade de adquirir emissora
de rádio. Em 19 de maio daquele ano, em Porto Alegre, Issler registra a nova
empresa. Em 1962, sob a administração direta do filho Leônidas, a família Issler
inaugura a Continental.

Em 1963, depois de ter garantido, no ano anterior, a mudança do


consagrado “Repórter Esso” saído da Rádio Nacional para a Rádio Globo, o
empresário Roberto Marinho adquire a Continental AM, 1120, de Porto Alegre.
Como conseqüência, muda a razão social da Continental e, igualmente, o
gerenciamento. Até começar a década iniciada em 1970, a Continental teve
inúmeras experiências gerenciais-administrativas, com diferentes e efêmeros
modelos de programação. Gerentes vindos do centro do país, designados pela
família Marinho, tentavam, sem sucesso, implantar novos modelos de
21

programação. Os estilos variavam do modelo universal generalista ao modelo


mais popular-popularesco, sem, contudo, garantir expressão, quer quanto aos
níveis de audiência, quer quanto à comercialização, mesmo tendo, inclusive,
tentando implantar equipe esportiva, transmitindo futebol.

Com a chegada do verão de 1971, sob a direção de Fernando Westphalen,


a Continental conseguirá firmar-se, dando início à programação dirigida inédita
que a consagrará como modelo de rádio para jovens, ao longo de toda a década.

Em 1978, após a implantação de emissoras FMs, a partir da inauguração


da Itaí FM, em maio de 1975, o estilo, até então bem-sucedido da Continental, já
demonstra sinais de desgaste, devido à concorrência carreada pela nova qualidade
de som para as programações musicais em FMs e devido à abundância de ofertas
no mercado de programação para jovens. Westphalen retira-se e é substituído
pelo, até então, segundo homem na hierarquia da Continental, Marcus Aurélio
Wesendonk. O declínio terá continuidade nos próximos anos, até a retirada de
Wesendonk, substituído por Luiz Eduardo Moreira que, até ali, desempenhara a
função de gerente comercial, na formação original da emissora.

A década iniciada em 1980 guardaria, ainda, episódios importantes,


envolvendo negociações em torno do espólio comercial da Continental, posse e
direitos à marca da emissora. Ao longo dos anos, a Continental já provocara mais
de uma dúzia de diferentes formações e alterações oficiais de contrato social. Nos
primeiros anos da década de 1980, a Rede Brasil Sul de Comunicações (RBS)
trocará, com a Rede Globo, a posse da 1120 do dial, em Porto Alegre, por
emissora integrante do grupo RBS, em Brasília. Já o nome fantasia “Continental”
é negociado pela Globo com outra rede de emissoras gaúcha, Rede Rio-grandense
de Emissoras. E, assim, o empresário Otávio Gadret junta a almejada marca
Continental à das demais emissoras da rede, Caiçara, Pampa, Eldorado. Em 1º de
agosto de 1981, a Rádio Pampa passa a denominar-se Continental e esta, ainda
localizada no 1120 do dial, passa a chamar-se Rádio Globo. Posteriormente, a
RBS rebatizará a Rádio Globo com diversos nomes fantasia, hospedando ali
denominações como Rádio Educadora, Rádio CBN, chegando aos dias atuais,
com a Rádio Rural, ainda pertencente ao grupo, que atua com público dirigido,
22

sob slogan o som que o campo produz. O consagrado som nosso de cada dia,
definitivamente, constituíra-se em memória e história.

1.2 TRANSCURSO, PERCURSO: TRAJETÓRIA ATÉ A REALIZAÇÃO DA


PESQUISA

A presente tese nasce, marcadamente, como uma espécie de convergência


possível, construção vital, como espécie de desdobramento, como uma síntese
desejada de minha práxis existencial, profissional, acadêmica e intelectual.

Entendendo ser algo remoto, difuso e mesmo indeterminado aquele


momento original do surgimento consciente, ou mesmo inconsciente, de um
projeto de pesquisa, o presente trabalho, ao transformar-se em tese, não escapa
desta lógica .

Entretanto, antes de tudo, é possível afirmar que a Continental foi objeto


fundamental de nosso interesse, primeiramente, como ouvinte. A Continental foi
companhia afetiva e intelectual de juventude suburbana, vivida em lar modesto e,
ainda, sem televisão, ao longo da década de 1960 e início dos anos 70.

Conforme constata Schiffer (1991), em estudo antropológico sobre o


aparelho de rádio, nos Estados Unidos, é justamente o rádio o primeiro artefato
elétrico-eletrônico a penetrar o espaço doméstico. Fato idêntico ocorre em nossa
experiência.

Em nosso caso familiar, seria, igualmente, e durante muito tempo, o único


aparelho eletroeletrônico a ter vez no domínio do lar e, sobretudo, o primeiro meio
eletroeletrônico a midiatizar o mundo dentro de casa. Assim, se através da Rádio
Guaíba eu ouvia, muito a contragosto, sobretudo no horário de almoço, as hard
news trazidas pelo “Correspondente Renner” e, aficcionadamente, escutava muito
da programação esportiva sobre futebol, na mesma Guaíba, foi,
fundamentalmente, através do discurso radiofônico da Continental que obtive
23

outro tipo de informação, vale dizer, formação como ouvinte, jovem cidadão e
futuro jornalista e professor.

A Rádio Continental significou, para minha experiência como sujeito e


para meus amigos do Bairro Partenon, colegas do Ginásio Santo Antônio e, logo,
da tribo do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, uma nova onda de
entretenimento, uma outra oportunidade para informação e formação cultural, uma
abertura inédita para construção estética e articulação da opinião sobre cultura, em
geral, sobre política (local, nacional e internacional) e, sobretudo, sobre a música
rodada pela emissora.

Estamos em meados da década iniciada em 1970, a maioria das casas não


tem eletrola nem toca-discos, as emissoras FMs ainda não operam plenamente e
existem somente alguns aparelhos receptores, sendo estas verdadeiras novas
caixas mágicas de fazer “som puro”, para poucos. Já adquirir um LP é, à época,
um investimento no orçamento doméstico, mesmo para a classe média. Portanto, é
oportuna e prazerosa a programação inédita proporcionada por aquela emissora
que atualiza e mediatiza a nova música e o novo universo para jovens em Porto
Alegre.

Foi na Continental que ouvi Beatles e música urbana feita em Porto Alegre
pela primeira vez. Ouvi rock norte-americano e inglês, com sons e vozes cujas
existências até ali desconhecia, isto dentro de uma mesma programação musical
articulada com o samba brasileiro de raiz, apresentando ora Zé Keti, ora Paulinho
da Viola ou Clementina de Jesus, entre outras atrações. Ouvi milonga urbana, em
nova roupagem, rodando em espaço colado à sonoridade recente da MPB,
trazendo ora o novo vinil de Milton Nascimento, ora Chico Buarque ou Caetano
Veloso, entre outros.

A Continental, portanto, primeiramente, é objeto e fonte de repertório


afetivo, intelectual e político-existencial de um ouvinte ideal.

O segundo momento de interesse pela Rádio Continental surge com o


início da vida profissional de radialista.
24

Ainda como aluno e bolsista junto à Rádio da Universidade da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tenho a oportunidade de
produzir e apresentar aquele que era, ao término da década iniciada em 1970, o
único programa de música popular daquela emissora, especializada em transmitir
música clássica erudita. Ladeado por Celestino Valenzuela e Vergara Marques,
apresento o programa “Clube da Esquina”, diariamente, com uma hora de
duração, rodando música popular brasileira (de Sivuca a Clara Nunes) e música
popular urbana gaúcha (Raul Ellwanger, Almôndegas, entre outros). A fonte de
inspiração para aquele “Clube da Esquina”, na redação do texto e na programação
musical, localizava-se na, já então, famosa Continental.

Mas a aproximação, a proximidade não estava restrita somente em relação


à programação. Pode-se começar pelo nome de batismo do programa − “Clube da
Esquina”, a lembrar a música homônima de Milton Nascimento, obra e Autor
cujas existências e presenças em Porto Alegre deveram-se, o próprio artista
mineiro confirmaria em depoimento isto, à divulgação generosa via programação
da Continental.

A contigüidade física, igualmente, possibilitava aproximações. O prédio da


Rádio da Universidade localiza-se, como ainda hoje, na rua Sarmento Leite, ao
lado do prédio da Faculdade de Arquitetura, local onde ocorreram inúmeras
“rodas de som”. Estas “rodas” possibilitaram espaço inédito para amostragem da
nova música urbana gaúcha e, circularmente, determinaram, a posteriori, que
muitas destas terminassem gravadas, apresentadas, programadas pela Continental.

Ainda, o prédio da Rádio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul


(UFRGS) dista cerca de duzentos metros da antiga “Esquina maldita”, quarteirão
na esquina com avenida Oswaldo Aranha, entre os números 200 e 232, onde se
localizavam os bares de estudantes, jornalistas, profissionais liberais e intelectuais
da cidade e, também, onde fulgurava o lendário Bar Alaska, do inesquecível
garçom-personagem Isaac. Esquina freqüentada pela esquerda intelectual, artística
e política da juventude estudantil da cidade, por causa disto “maldita” e, logo,
também, “visitada” por camburões da Brigada Militar, patrulhas da Polícia Civil e
da Polícia Federal, quando não por agentes secretos infiltrados.
25

A Continental era a emissora que faria a crônica radiofônica cotidiana


daqueles momentos, hoje tão anônimos quanto históricos, embora vitais para
aquela parcela de estudantes secundaristas e universitários, a maioria da classe
média, outros ricos, alguns pobres.

Naquele tempo, pessoalmente, o ouvinte ideal que fui encontra-se com


uma espécie de lector em fabula, alguém que nem sempre percebe,
conscientemente, que toda interpretação (de leitura ou de audição) está fundada
numa dialética que, na práxis, envolve a estratégia do emissor articulada à
fundamental resposta em construção do ouvinte/receptor. Naqueles dias, começo a
intuir que o ouvinte de rádio ideal, como o lector em fabula, está profundamente
inserido em um jogo onde “todo texto quer que alguém o ajude a funcionar”
(ECO, 1979, p.43).

A seguir, dando continuidade à carreira profissional de radialista, atuando


em diferentes emissoras (Rádio Gaúcha, Rádio Guaíba, Rádio Sucesso e Rádio
Difusora/Bandeirantes), ocupando diversas funções (produtor, editor, redator,
repórter, coordenador de equipe, coordenador de programação), convivendo com
inúmeros profissionais de diferentes formações e gerações de radialistas,
constatamos o crescente, e quase inabalável, consenso erguido em torno da fama
angariada pela qualidade técnica e comunicacional empreendida pela Continental.

Desde, então, o interesse pelo objeto Continental terá, sempre, aspectos


diferenciados. Em primeira instância, este interesse esteve em voltar-se para a
emissora enquanto instância de padrão técnico, cultural, radiofônico a ser
perseguido. Mas, a seguir, em outro momento, a ênfase da pesquisa já interpelava,
indagava e queria investigar sobre a complexidade da lenda, do mito construído
pela atuação real histórica da Continental.

O presente projeto de pesquisa, assim, passou a buscar, a procurar


investigar, com outros instrumentos de racionalidade, as narrativas do senso
comum, as formas do mito, as formas da lenda, em narrativas orais, com o
objetivo de mais conhecer, mais descobrir sobre a Rádio Continental.
26

Foi através destas indagações, destas interpelações que a Continental


passou a figurar como possibilidade de estudo sobre a comunicação social através
das urdiduras de diferentes narrativas, dentro de contextualizações de ordem
histórica, estabelecendo um conhecimento possível através de vestígios, como
queria François Simiand (apud BLOCH, 2001, p. 73).

A nossa dissertação de Mestrado, que tratou da questão da instauração do


moderno jornalismo brasileiro e da ficcionalização problematizadora deste
fenômeno (ENDLER, 1996), de algum modo, igualmente, contribuiu para o
desenvolvimento do atual projeto de pesquisa. Ali empreendemos estudos sobre
narrativa e narratividade, notadamente com Lukács (1965), Barthes (1970) e
Benjamin (1980). Também, aquela dissertação contemplou estudos e abordou
questões interpretativas sobre cultura, literatura e mídia brasileira, oportunizadas
pelas análises de Schwarz (1978), Arrigucci Jr. (1987) e Santiago (1989).

Antes disto, desde 1986, motivado pela experiência dentro da sala de aula,
teve início uma jornada de reflexão e questionamento sobre os fenômenos da
comunicação de massa, a partir da atuação profissional como professor de Teoria
da Comunicação para as habilitações de Jornalismo, Relações Públicas e
Publicidade e Propaganda, dentro do Curso de Comunicação Social, na Unisinos.

A seguir, a experiência é acrescida em oportunidades e desafios com o


direcionamento para as disciplinas de ensino e de prática do radialismo.

Como desdobramento das questões surgidas em sala de aula e como


resultado dos estudos teóricos até ali realizados, em 1997, empreendemos
pesquisa sobre modernidade técnica, programação e produção da Rádio
Farroupilha (ENDLER, 1998).

O passo seguinte confirmará interesse em estabelecer pesquisa sobre


conhecimento social e histórico, então, centrado na estruturação de um acervo de
vozes. O “Projeto Vox” busca contribuir com uma fração da história da
comunicação gaúcha através da formação de um acervo com depoimentos
gravados por jornalistas e radialistas sobre a práxis social e profissional
27

(ENDLER, 1997). Aquele será o primeiro acervo de vozes ofertado, através da


web, em ambiente acadêmico gaúcho.

O desenvolvimento do projeto possibilitará aos alunos participantes a


prática de técnicas de entrevista. Em 1999, parte desta experiência possibilitada
pelo “Projeto Vox” será documentada pela publicação do Caderno Vox, nos
volumes 1, 2 e 3. Além do desenvolvimento da prática de entrevistas, busca-se,
ali, a estruturação coletiva de certa reflexividade, sobre o fazer radialístico.

O presente projeto sobre a Rádio Continental estrutura-se contando com as


contribuições construídas pelo conjunto de atividades práticas e reflexões
incipientes do presente Autor enquanto pesquisador, professor, radialista e
ouvinte. É desta prática continuada da comunicação que surge, genuinamente, o
conjunto de dúvidas específicas que, a seguir, busca formulações iniciais para os
problemas da tese. É deste conjunto, igualmente, que nasce o desejo de pesquisar,
na história, uma experiência de autonomia de discurso que, no entanto, nunca se
completa.

Por fim, num cenário de necessidade de estudo aprofundado, decidimos


restringir nosso esforço concentrado para contribuir, parcialmente, com a
construção de uma história peripecial interpretativa da Rádio Continental.

Este interesse pelo conhecimento instaurou-se com uma questão posta


diante da fragmentação dos diálogos com os atores da história e da memória
social. Percebeu-se aquela possibilidade de erguimento de história, embora
fragmentada, fraturada, porque erguida pela precariedade dos diálogos parciais e,
também, fragmentados, apesar da atualização de interesses emancipatórios. É este
conjunto de circunstância concreta que “leva o ator a produzir, ao nível da
consciência (onde podem ser criticamente dominadas) as ocorrências e ações não
vistas que deram forma à situação atual (histórica) e a sustentam como uma
comunicação distorcida”, conforme a interpretação de Bauman (1977, p.173).

Segundo afirma Bauman, inspirado em Habermas, o conhecimento crítico


identifica e afirma que a realidade corrente tem o caráter de comunicação
28

distorcida. A possibilidade de construção de uma história das peripécias de uma


rádio como a Continental passava pelo prisma daquela distorção, igualmente.

É, assim, a análise, o aprofundamento, a escuta crítica desta “comunicação


distorcida”, o que procuramos investigar, em diferentes partes, na formação de
narrativas da emissora em estudo.

Conforme Bauman, o potencial emancipador do conhecimento só é


submetido a um exame e, na verdade, pode ser atualizado, com o início do
diálogo, “quando os ‘objetos’’ das afirmações teóricas se transformam em
interlocutores ativos no processo incipiente de autenticação” (1977, p. 177).

Na presente tese, a autenticação da pesquisa só pôde realizar-se,


plenamente, no processo, na práxis das entrevistas em diálogo. E, posteriormente,
através de diferentes esforços interpretativos. Como afirma Veyne (1998) “os
historiadores narram os fatos reais que têm o homem como ator”.

A estruturação da história da Rádio Continental que objetivamos construir,


como resultante do processo da pesquisa, vislumbrou onde a emissora interligava-
se, profundamente, à cidade em identidades. Indagamos como a emissora dava
conta de narrar o próprio cotidiano no tempo, fazendo memória, fazendo cultura,
radiofonizando valores e produtos da indústria cultural, desdobrando-se como ente
complexo, no contexto de uma particular construção de determinado agir
comunicativo em processo. Para tanto, lançamos mão de práticas e de técnicas,
oportunizadas pela história oral, na pesquisa problematizadas e adequadas ao
empreendimento final da tese.

A partir das primeiras constatações de estudo, foi necessário considerar a


natureza fragmentada, fragmentária e constitutiva do real, sobretudo, do real
tecido no tempo histórico não linear, como estipulamos.

Igualmente, foi preciso estar atento para a natureza do elevado grau de


subjetividade constitutiva, constante em toda memória individual do sujeito social
tornado persona, ou personagem pública, através dos relatos nas entrevistas
desdobradas. E, fundamentalmente, procurar a maior atenção perceptiva para a
instauração da pesquisa que, necessariamente, se constituía em diálogo com
29

sujeitos históricos, concretos, dotados de complexidade de identidade. A história


oral, como sabemos, assegura condição de documento ao depoimento pessoal.
Entretanto, a concretização desta, a práxis desta, cabe ao pesquisador em interação
com seus entrevistados reais.

De resto, cabia à pesquisa dar conta de macrotexto final, na tese, no qual


se realizasse encontro possível entre os meios e os estudos sobre as representações
individuais e os estudos e os conhecimentos acessados sobre as objetividades da
estrutura histórica e socioeconômica existentes.
CAPÍTULO 2: O PROBLEMA DA PESQUISA E AS ESTAÇÕES DA
CONTINENTAL

2.1 O PROBLEMA DA PESQUISA

O problema que animou o presente trabalho foi, fundamentalmente, um


problema de conhecimento, um questionamento epistemológico centrado nas
interpelações ao objeto empírico constituído, isto é, a Rádio Continental AM,
1120, sobretudo a partir da década iniciada em 1971.

Tratou-se de um problema de conhecimento em torno de um objeto


midiático e histórico que, inicialmente, necessitou ser constituído. O que foi a
Rádio? Como foi a existência, primeiramente, factual, daquela emissora? O que,
em suma, a Continental fez na cultura e como fez, radiofonicamente? Qual a
relevância daquelas realizações e feitos midiáticos para a cultura? Qual o modelo
de radialismo construído na práxis e como explicá-lo, para além de um modelo
extensionista de radiodifusão? O que esteve em curso? Quais as especificidades,
em detalhamento significativo, das interações sociais, radiojornalísticas, musicais,
publicitárias da emissora?

O conjunto de questionamentos delineados, ainda, demandava a


necessidade de um método, “caminho para chegar a um fim (originalmente, do
grego, méthodos)”, o programa distinguido para regular uma série completa de
operações, conforme sugere Ferreira (1975, p. 919). Ou como, ainda, indica
Houaiss e Villar, a construção do método enquanto sinônimo de “processo
31

organizado, lógico, sistemático de pesquisa”, conjunto de procedimentos técnicos,


meio de fazer coisas, desde a investigação até a apresentação desta (HOUAISS,
2001, p. 1910).

A história oral surge, neste contexto, enquanto solução encontrada para


avanço e desenvolvimento metodológico da pesquisa. Surge como solução a partir
da constatação primeira de obter-se, construir-se, vale dizer, constituir-se uma
possibilidade de narração histórica da Rádio Continental, sobretudo, a partir dos
depoimentos orais de seus protagonistas, em narrativas inéditas, originais. De
resto, a oralidade constituída, então, surgia como construção em lugar de qualquer
outra possível, porque inexistente.

Tratava-se de obter um modo, o “como” ter acesso, como registrar e


ordenar, logicamente, as narrativas. A história oral, assim, passava a significar
uma possibilidade de organizar o processo de investigação que interpela sobre a
história das interações comunicativas da Continental. A partir disso, surgiu o
elenco de questões, em profusão. Qual a qualidade e a natureza do conjunto de
narrativas orais que o grupo disponível de atores da Continental possibilitaria, na
atualidade? E, sobretudo, qual a narrativa histórica que poderia o pesquisador, ali,
presentemente, construir pela análise? Qual a singularidade da produção midiática
resgatável e o que dizer do discurso radiofônico em seus diferentes nichos? Como
a narrativa de tese poderia ultrapassar o mero descritivismo das ações midiáticas e
históricas da Continental? Como e por que, de que modo, ainda, a emissora-
problema garantiria ser agente de protagonismo inovador e destacado na mídia
gaúcha? Sem poder responder a todos questionamentos, a pesquisa teve
continuidade por necessidade programática e curiosidade profissional.

O elenco de questões organizadas encontrou, na metodologia da história


oral, a ponte para resolução ou encaminhamento de questões, atuando contra o
imobilismo e o impasse, mas não sem dificuldades. Ainda, assim, outra
problemática esteve posta: o que se pode erguer como história articulada e coesa,
a partir de uma narrativa pela oralidade, sobre uma emissora que existiu no
passado, configurada dentro de uma sociedade já fortemente midiatizada e dentro
do escopo da indústria cultural, embora plantada na periferia da economia global?
32

Rudiger (2002), em capítulo de obra onde problematiza a trajetória


histórica e os elementos de epistemologia da pesquisa social, alerta, ainda, para
outro problema que, igualmente, esteve presente na nossa investigação específica
no campo da comunicação.

Segundo Rudiger, a comunicação é uma área onde se acentuam, de


maneira extremada, as contradições da chamada cultura do profissionalismo, na
qual se “acredita que o saber pode ser reduzido à técnica e, portanto, a prática tem
primazia sobre a reflexão” (2002, p. 51).

Tratamos de dar prosseguimento à pesquisa, em meio àquela e outras


dificuldades delineadas. A saber, o distanciamento do objeto pelo tempo-espaço, a
recuperação das narrativas orais em meio à forte presença da midiatização, a
“cultura do profissionalismo” a marcar atuação e presença, tanto entre os valores
dos sujeitos dos depoimentos-relatos, quanto dentro da própria formação do
pesquisador, agora, instituído metodologicamente pelo auxílio das técnicas da
história oral.

Como estava a pesquisa a requerer, esta se estruturou a partir de dado


planejamento do processo de produção do conhecimento. E, para a resolução de
questões fundamentais, buscamos a configuração de figuras de centro do
problema, delimitado, sobretudo, em busca da viabilidade de ação teórica-
metodológica.

A pergunta fundamental que alimentou a pesquisa interpelava, construía,


rearticulava a história de uma emissora de rádio que se apresentou, na década de
1970, como um paradigma comunicacional inovador e, a partir disto, constituiu
um elo fundamental, dentro da rede de certos movimentos socioculturais
relevantes, atualizadores e articuladores de amálgamas da identidade de parcela da
juventude universitária e estudantil, em Porto Alegre.

A questão resultava centralizada em quais particularidades da interação


midiática, como e por que aquele modelo de comunicação em questão,
protagonizado, de fato, atuava? Em suma, qual a matriz, qual o modelo teórico-
prático real de emissora foi construído, cultural e historicamente, tornando-se
33

referência, quer pela inovação estética e de informação, quer pela elevada


qualificação técnica ou, ainda, pela ação ética e política no contexto local?

Assim, o objetivo axial da pesquisa estava definido em estabelecer uma


história em narrativa sobre a relevância radiofônica, midiática e sociocultural da
emissora-objeto. Para tanto, inicialmente, a presente tese elencou as indagativas,
quer quanto ao objeto central, quer quanto ao procedimento, em método,
buscando o modo apropriado para constituição de respostas.

A constituição da Rádio Continental, enquanto objeto central da tese, por


si só, já determinou significativo grau de complexidade de decisão e de ação.
Entretanto, a opção por oferecer uma história em narrativa da emissora acarretou
duas problemáticas maiores, a saber, a problemática da história e a problemática
da narrativa, provocando respectivo elenco de questões dilemáticas.

A opção pelo emprego da histórica oral como solução técnico-


metodológica, tendo por base o emprego daquilo que definimos como entrevista-
relato, para construção do aparato empírico, para constituição do corpus, para a
configuração plena da emissora-objeto, garantiu, concomitantemente, a obtenção
de relatos sobre o não-sabido, sobre o peripecial, e estabelecimento de que
possibilitam, ainda, novo patamar de compreensão sobre o protagonismo da
emissora.

Foi necessário categorizar a história oral como ação fundamental da


pesquisa, para algo além do mero artefato, embora o escopo desta, enquanto meio,
estivesse, desde sempre, plantado. Isto é, diante da questão ocorrente, dentro dos
diferentes enfoques propostos pelas ciências sociais, ficamos com aquele que
configura a história oral como recurso técnico-metodológico, e não somente como
técnica. No capítulo 3, aprofundaremos as questões da história oral na presente
pesquisa.

Se o desdobramento e emprego da história oral, enquanto solução teórico-


metodológica, possibilitava já a estruturação de uma narrativa pela urdidura
articulada pela oralidade; se, embora ali, já estivesse uma história original da
34

Continental, esta narrativa, per si, não era, ainda, a história crítica imaginada,
intentada pela pesquisa.

À história oral buscamos acrescentar uma correspondente metalinguagem


para constituição da história das peripécias da Rádio Continental, ofertando,
assim, sua correspondente teorização. A busca pela metalinguagem foi
estabelecida a partir de estudos sobre a história nova, e obtida, mais
concretamente, com as contribuições decisivas dos chamados historiadores
narrativistas. Também foram fundamentais as contribuições teórico-conceituais de
estudos específicos sobre a narrativa e a linguagem. A teorização encontra-se
detalhada no desenvolvimento progressivo de apresentação do texto da tese,
partindo-se de macro-referências, chegando-se às especificidades de teorizações
sobre o rádio e o sonoro.

Assim, se desde a oralidade captada dos sujeitos que fizeram a história da


Continental, constituía-se, ali, uma história oral das peripécias da emissora, já o
conjunto dos relatos ordenados possibilitou o surgimento de uma hermenêutica
crítica, e, logo, a história crítica da Rádio. A ação da pesquisa esteve em obter,
configurar, em detalhe, os relatos orais dos sujeitos, orquestrando a totalidade
daquilo que estes expressavam. Outra ação significativa da tese esteve, ainda, em
averiguar indícios, analisar teores, interpretar e indagar-se sobre os significados
daqueles depoimentos vivos.

Centralmente, a história das peripécias da Rádio Continental é a história de


fatos históricos sobre a mídia constituídos oralmente. São, portanto, fatos da
memória, leia-se, fatos da cultura. São fatos da cultura transmitidos oralmente,
necessariamente narrados, configurando para a pesquisa uma região de
convergência e conflito.

A história que buscamos constituir é aquela que resulta dos fatos


oralmente narrados sobre a emissora, contando com a fundamental co-autoria de
colaboradores de depoimentos e com a ação do pesquisador, este, sobretudo,
agindo no estabelecimento da narrativa final transescrita e interpretada.
35

Buscamos constituir, através da narrativa transescrita, uma narrativa


transcriativa dos relatos orais, servindo esta como elo de amarração, outro aspecto
do método em construção, pois, arquitetado e urdido de dentro do próprio tecido
da pesquisa desenvolvida na tese.

Assim, depois de configurada a Rádio Continental como fenômeno dotado


de totalidade empírico-teórica, buscamos analisar os aspectos outros da narrativa
desenvolvida e expressada como enunciação pela Continental, no tempo histórico.
Este aspecto da enunciação, também, é temática dentro da nossa própria narrativa
transescrita articulada e finalizada na tese.

Para este estudo das narrativas, não sobre a Rádio, mas, sobretudo, aquelas
narrativas pela emissora propriamente produzidas, ampliou-se a rede do
empreendimento da pesquisa. Tratava-se, então, naquele elenco de problemas, de
uma história parcial, por fragmentos, das narrativas radiofônicas produzidas no
tempo histórico passado, datado, circunscrito e interpretado, pelo trabalho de
exploração, de reconstituição e de análise.

Para este conjunto de estudos e análises, lançamos foco na abordagem


oferecida, sobretudo, por Walter Benjamin, notadamente onde o pensador alemão
problematiza a questão da narração na contemporaneidade. Aqui,
fundamentalmente, buscamos interpelar, com ouvido na produção própria da
Rádio Continental, o conjunto de dilemas propostos pela interpelação radical
inscrita pelo trabalho de O narrador (1983, p. 57-74).

A história da Continental, na pesquisa, é retirada e resulta constituída


pelos diferentes tipos e níveis de narrativas. Trata-se, pois, de uma história da
emissora estruturada no nível de uma polifonia possível, estabelecida a
contrapelo, a partir e para além do senso comum. Vale dizer, ouvimos a
Continental como a vox da criação coletiva e da contestação política dentro da
polis, em experimentos realizados dentro de Porto Alegre, a partir de 1972.

O problema da pesquisa, igualmente, estava em recuperar, tecer, interligar


para superar uma problemática do objeto fragmentado, distante, disperso,
36

enigmático – vale dizer – objeto “mudo”, até então, silenciado no tempo histórico
recente.

O problema da tese estava, também, na obtenção da reflexividade sobre o


fragmento e o precário e, logo, na aposta metodológica de abordar este conjunto
disperso através da narrativa. Narrativa, inicialmente, oral, individual e, pelo
resultado do conjunto de entrevistas-relatos, coletiva.

Através da narrativa escrita do Autor da pesquisa, orientada pelo empenho


de um trabalho de transcriação, o trabalho estabeleceu uma formulação para algo
além da transcrição escrita das falas. A escrita, na tese, não é apenas um dado
técnico operacional. Trata-se de elemento constitutivo fundamental, erguida como
experiência em si e, também, como uma oportunidade relacional fundamental
(LOPES, 2002).

Conjunto de narrativas, pois, igualmente, marcado pelo caráter e pelo


timbre de uma fragmentação já existente na raiz do objeto. Narrativas não lineares
e orientadas pelo problema da complexidade, do diálogo radical com as diferentes
vozes e angulações, narrativas interligadas pela articulação da escrita resultante da
pesquisa. Na escritura, assim, constituiu-se a articulação final resultante,
possibilitada desde a abordagem do empírico, do já vivido remoto, do revivido
pelo relato oral e pelo presente totalizador, atual e reatualizado pela reflexão
teórica sobre o problema circunscrito: a história da ação comunicativa midiática
da Rádio Continental AM, em Porto Alegre, escrita pela tese.

A narrativa sobre uma Rádio Continental cartógrafa, que narrou,


inscreveu, radiofonizou, de modo geopolítico, relevantes aspectos socioculturais
porto-alegrenses, em particular, e, igualmente, radiofonizou produtos e programas
da cultura internacional contemporânea, de modo inédito, entre nós. Na práxis, o
trabalho da tese identificou a radiofonização de aspectos da contra-hegemonia
política, não-partidária, cultural; tanto quanto a promoção, pelo rádio, de novas
formas híbridas do consumo globalizado, sobretudo, para segmentos da juventude
da classe média. Parcialmente, a memória desta experiência real-concreta, na
pesquisa, pôde ser constituída através da série de entrevistas-relatos, assim,
37

atualizada no tempo e interpretada, teórico-criticamente, quando da escuta-ativa e


da transcriação dos temas e dos depoimentos, pela ação de escritura do
pesquisador Autor.

2.2 RELEVÂNCIA DESTA PESQUISA PARA O CAMPO DA


COMUNICAÇÃO

O interesse que orientou a presente tese, primeiramente, esteve vinculado


ao desejo de intervir junto aos estudos específicos sobre o rádio, sabidamente,
fenômeno midiático comunicacional tão importante quanto não majoritário pelo
conjunto de estudos sistematizados e ofertados pela excelência acadêmica.
Assim, o presente trabalho propõe juntar-se à recente tradição universitária
brasileira, associando-o aos esforços crescentes de pesquisa acadêmica,
empreendidos em alguns programas de pós-graduação e núcleos de pesquisa nos
estudos sobre rádio.

Em segundo lugar, definido o radialismo como subárea a partir da qual o


problema de conhecimento seria focalizado, entendemos como pertinentes, na
identificação da Rádio Continental como objeto, as inúmeras referências advindas
do senso comum da experiência prática e da memória social, bem como a
manifesta curiosidade científica sobre o objeto, identificável nos cursos de
graduação em comunicação, como bem comprovam as diferentes dissertações de
conclusão de curso sobre a Continental. O desenvolvimento do anteprojeto de
tese, através de estudos preliminares e pré-entrevistas, pôde configurar a emissora
porto-alegrense como modelo paradigmático para a presente pesquisa. O
desenvolvimento do projeto de tese comprovou estes dados indiciais primeiros. A
inexistência de estudo aprofundado ou tese sobre a Continental, dando conta,
sistematizadamente, do protagonismo histórico peripecial da emissora, apontava
para mais um índice de justificativa da presente realização.

Dois outros fatos parecem indicativos, ainda, de justificativa para


relevância da pesquisa. Trata-se, conforme nossa observação, da própria
38

qualidade, singularidade, complexidade do objeto, identificável pelo


protagonismo da Continental no horizonte histórico do rádio gaúcho. Igualmente,
foi vetor de busca de relevância do atual trabalho, a tentativa empreendida de
realização da pesquisa, onde os esforços recaíram não apenas na significância
quanto ao “o que contar”, mas, sobretudo, na articulação deste “como” narrar com
o método. Estes esforços articulados – parece – auxiliaram a configurar relevância
para o trabalho desenvolvido pela tese.

Ao procurar instituir-se enquanto pesquisa qualitativa, articulando


vinculações entre os saberes das ciências sociais, a presente pesquisa buscou
contribuir com o campo da comunicação ao propor método próprio, onde as
narrativas orais articulam a história inédita, com fins acadêmicos, da emissora-
problema. Embora, sobretudo através das dissertações de conclusão de cursos de
graduação, a Rádio Continental tenha sido contemplada, parcialmente, com
estudos de mérito próprio, trata-se, aqui, de outra pesquisa, que busca o
aprofundamento das problemáticas, objetivando contribuir, ao mesmo tempo, para
o alargamento da compreensão sobre o fenômeno radiofônico, entre nós, e a
elevação do patamar quanto à reflexividade e à cientificidade específicas sobre a
Rádio Continental.

A pesquisa orientou-se para a escuta ativa das falas, enquanto relatos, mais
ou menos, fragmentários, sobre peripécias factuais e, mesmo, temas mitificados.
O modo encontrado foi não desconsiderá-los, mas buscar aspectos elucidativos,
diferentes racionalidades investigativas e teóricas, para enquadramentos dos
fenômenos. Ao término da trajetória, entendemos, ter contribuído, de algum
modo, para o conjunto de estudos sobre a entrevista, quer enquanto prática do
radialismo e jornalismo, quer enquanto método ou técnica da ciência social.

Vale lembrar, a técnica e a metodologia da história oral atuaram na


pesquisa como método, sobretudo, como modo de acesso ao corpus, não se
instituindo como finalidade última. O objetivo axial esteve em constituir a história
da Continental, para ali examinar o paradigma real-concreto, bem como as
interações sociais da emissora com a cidade, com a cultura, com a política e –
sobretudo – com a expressão do habitus midiático comunicacional, enquanto tal.
39

A pesquisa buscou contribuir com o processo de conhecimento da


comunicação social, em geral, e com algum nível de justificativa acadêmica, em
particular, quando enveredou pelo estabelecimento de microrrede conceitual
própria, na abordagem de estudo da Continental e do radialismo. Em resumo, foi
intento estabelecer rede conceitual própria, ainda que restrita, e teorização
específica, mesmo quando de ordem ensaística, sobre a Continental, em registro
autoral.

A presente pesquisa, ainda, buscou distinção enquanto estudo ao


vislumbrar macroteorias, no sentido de amparo enquanto metanarrativas,
norteadoras e explicativas de fenômenos--processos da comunicação e, aqui,
específicos do fenômeno--chave em estudo.

Resultante do trabalho de garimpo na investigação e tratando-se de uma


pesquisa histórica, a tese busca justificar-se, por fim, na obtenção de documentos,
(orais sonoros e escritos), sobre a Rádio Continental, até então inéditos,
desconhecidos e/ou dispersos.

2.3 AS ESTAÇÕES: ÂNGULOS E PONTOS DE OBSERVAÇÃO

Passamos a apresentar, a seguir, aspectos singulares e fatos relacionados


de relevâncias diferentes, mas que têm, em comum, o foco em fenômenos
importantes para o delineamento mais aprofundado da emissora-problema.

Buscamos dar a esta apresentação organicidade e trato de relacionar, em


nexos coerentes, os fenômenos, até então, não destacados por tal ênfase na
focalização. A pesquisa encontrou, nestes ângulos, as estações, pontos de
observação dos fenômenos da Continental.

Escolhemos o termo estação para a designação de cada um destes nexos


identificados. A palavra estação, como é sabido, apresenta diferentes e sentidos.
Inicialmente, destaquem-se aqueles em que a palavra designa, especificamente, a
estação de rádio, onde através de diferentes etapas de produção, de planos, são
40

oportunizadas a “apresentação, sistemática ou não, de audições radiofônicas [...]”,


conforme indica o Novo Dicionário Aurélio (1975, p.1143).

Aqui, entretanto, o termo estação desliza em busca de outro sentido. A


designação estação foi estabelecida enquanto ponto de observação e análise. Isto
é, usado como designativo de ângulo para observação da estação real, para
configuração real do problema de tese sobre a Rádio Continental. A estação, aqui,
é a plataforma de estações da pesquisa. A plataforma onde buscamos subsídios
para a reflexividade sobre a Continental, tendo por intenção o enquadramento do
problema proposto sob a ótica da conflituosidade.

A conflituosidade é vista como uma condição de produção para o


conhecimento. Esta derivação da teoria dos conflitos não se baseou, tão somente,
nos conflitos externos do objeto, mas se ampliou para as intradeterminações
teórico-metodológicos resultantes da abordagem das problemáticas.

Assim, a conflituosidade é causa, é condição da produção de


conhecimento. Levamos em conta aquilo que Louis Althusser indicava, quando da
análise de modelos epistemológicos gigantes, onde a hipótese da situação de
conflito provocava e renovava, “totalmente as condições anteriormente
reconhecidas como necessárias ao descobrimento científico” (ALTHUSSER,
1984).

Estabelecemos as estações da pesquisa, aqui inseridas, enquanto questões


a partir dos fatos, dentro de movimentos históricos, sociais, reais, situados. As
estações que, ao serem visitadas pela análise, foram recortadas de uma realidade
social não homogênea, dotada de totalidade complexa, conflitual.

Topicamente, entendemos que o conflito necessário está inscrito e desafia


os sujeitos de dentro das condições dadas da objetividade. Foi assim que
flagramos o questionamento sobre a Continental. E, assim, esta conflituosidade
foi percebida como situação de produção que nasceu, desenvolveu-se, na prática,
quando das interações de uma rádio em comunicação. E, depois, igualmente, se
fez presente, quando do momento da reflexividade sobre a história daquela práxis
comunicativa flagrada.
41

Constatamos, então, que uma grande emissora porta e articula, em si,


diferentes transmissores, tecnicamente instalados, para a necessária viabilidade de
radiodifusão pretendida. E, igualmente, esta emissora, torna-se múltipla em
termos de conteúdos, de departamentos, de produtos e de negócios empreendidos.
Assim, uma grande emissora, necessária e organicamente articulada, comporta,
produz e transmite uma diversidade de falas e produções que ensejam, também,
pluralidade de escutas, a partir das diferentes transmissões. O que queremos
problematizar, aqui, é o fato singular da Continental ser, ao longo de idêntico
tempo real histórico, uma emissora múltipla e organicamente articulada, sendo
várias emissoras dentro de uma, com coerência e articulação, mesmo não sendo,
em termos de potência técnica instalada, considerável como grande emissora.

A Continental foi múltipla ao exibir as diferentes formas e oportunidades


de espraiar-se em exercícios, práticas, rotinas de produção, espaços onde se
materializavam as falas radiofônicas inovadoras, as agendas culturais
novidadeiras, os discursos de contundências e impactos de políticas contestatórias,
a programação segmentada, direcionada em busca de sentidos e efeitos
surpreendentes. Aqui, notadamente, a referência à Continental diz respeito, como
recorte, àquele período áureo, exemplar, dionisíaco da Rádio.

A pluralidade da Continental ressurge, ainda, na pesquisa, quando esta


enlaça todo o período de existência histórica da emissora, ampliando o tempo
observado. Referimos, aqui, especificamente, o fato de as dissertações e relatos
escritos de imprensa sobre a Continental referirem, via-de-regra, apenas aspectos
parciais da fase mítica da emissora.

A Continental, enquanto emissora viva, conseguiu viabilizar, em meio ao


ambiente hostil, banalizador e emudecedor da ditadura política pós-1964, uma vox
de cidadania, ao mesmo tempo democrática e marcada, posicionada e
oposicionista, naquele específico espaço social, historicamente dado.

Esta vox plural, ao mesmo tempo auto-estruturante e potencializadora da


cidadania juvenil, buscamos articulá-la, conceitualmente, com aquilo que Bakhtin
(1981) aponta como polifonia, para o surgimento de determinada criação
42

romanesca, notadamente a partir dos romances de Dostoievski. O polifônico,


assim, é conceito intercambiável, desde lá, até a adaptação ao radiofônico da
Continental, onde a pluralidade de vozes é base para a multiplicidade da
expressão radiofônica, orgânica e ideologicamente articulada.

Os diferentes pontos de observação ensejam a descoberta de uma polifonia


Continental. A atitude investigativa, segundo Popper, tem início, para as ciências
naturais, bem como para as ciências sociais, sempre por problemas constituídos.
Tudo tem início porque algo pode nos causar espanto, diz Popper, lembrando, em
paródia, aquilo que os filósofos gregos diziam diante do desconhecido. Popper
avança na análise afirmando que para a resolução dos problemas, a ciência atua
como o senso comum. Isto é, emprega o método da tentativa e erro. Para ser mais
preciso, afirma Popper (2001, p. 17), “trata-se do método que consiste em
experimentar soluções para nosso problema e depois pôr de parte as falsas
considerando-as errôneas”.

Metodologicamente, o modelo de Popper é trifásico, iniciando-se o


processo a partir do problema, chegando-se às tentativas de elucidação do mesmo
e, em terceiro tempo, é construída a eliminação das soluções falsas ou
inadequadas, com a conseqüente elaboração argumentativa do modelo. Com esta
orientação, articulamos um modo possível de conhecimento em processo,
articulador de questões de descobrimento, de informação e de teorização.

Esquematizamos, em resumo, o modelo da sugestão epistemológica de


Karl Popper, no direcionamento do apregoado em life is problem solving, aqui,
atualizado para a pesquisa, indicando-se: 1) o problema da história da Rádio como
questão inicial; 2) as narrativas focalizadas e construídas, metodologicamente, a
partir dos relatos orais dos sujeitos históricos; 3) a argumentação seletiva,
teorizante e lógica, quando da escritura e apresentação da história.

Neste contexto, as estações são espaços, ambientes, nichos para


abordagem, ao mesmo tempo, dos pontos enigmas observáveis, promovidos e
articulados pelas focalizações sob diferentes ângulos, de modo a recuperar
narrativas e constituir a escritura de apresentação da tese.
43

Vejamos, aqui, as principais estações visitadas:

a) Primeira Estação:

A Rádio Continental representou a criação, concomitante, de uma


comunidade produtora e de uma comunidade de ouvintes constituídas,
basicamente, por jovens estudantes (universitários, pré-universitários), em
interação social inédita, para Porto Alegre, amalgamando fragmentos da cultura
mundializada para os sujeitos, até aquele momento, destituídos de pólo real e
simbólico para as identificações. A Continental ofertou soluções para demandas
sociais de comunicação e desejos subjetivos. O surgimento da pequena época de
ouro da emissora, a partir do verão de 1971, possibilitou, em parte, estas
interações diferenciadas.

Após a chegada dos universitários à Continental, sob a nova direção,


aquela experiência possibilita-nos uma averiguação do estabelecimento das novas
rotinas e práticas de produção, não somente jornalísticas, mas também
publicitárias e radiofônicas. A ação coletiva e cooperativada para produção e
venda de espaços comerciais e a articulada customização de peças publicitárias,
entre outros aspectos, marcaram o processo que introduzia padrão técnico
inovador.

Igualmente, a constituição de um inédito campo de público garantiu à


Continental uma vinculação orgânica fundamental, constituindo-a como meio de
interlocução midiática, cultural, política, de consumo e de identidade social para a
juventude estudantil porto-alegrense, então. O conjunto desta cultura partilhada
denominamos paidéia radiofônica, posteriormente analisada (Ver capítulo 7 da
presente tese).

A interlocução política, a luta contra a censura, o aspecto de resistência


cultural, exemplificado pelo acionamento da música popular brasileira
universitária, por si só, configuraram uma estação de articulações próprias,
fundamentais, teorizáveis. O mesmo pode ser dito quanto à questão identitária, a
partir dali, construída.
44

Na Continental, o posicionamento político oposicionista, o humor ou


ironia como padrão estético, a nova ênfase de consumo de produtos da indústria
cultural e, de resto, uma série de produtos resultantes da modernização brasileira,
conviveram, nem sempre em harmonia, no mesmo espaço de produção midiática,
como verificamos.

b) Segunda Estação:

A criação de diferentes personagens, como “Mr. Lee” (na realidade, uma


das personas vividas e criadas pelo radialista Julio Furst) e, igualmente, o DJ
“Cascalho” (Carlos Contursi), apresentador do programa Cascalho Time,
atualizaram a juventude porto-alegrense, sobretudo, quanto ao consumo de bens
culturais estrangeiros, bens materiais globalizados, mesclados aos ritmos e
consumos locais de música urbana.

“Cascalho” apresentava as novidades da música internacional, em


programa patrocinado pela Pepsi-Cola. À época, somente em solo gaúcho, a
marca Coca-Cola não produzia o refrigerante mais consumido, ficando Porto
Alegre com uma preferência quanto à marca da cola diferente da preferência em
todo o Brasil. A Continental, podemos intuir, auxiliava na consolidação desta
preferência pela Pepsi em território porto-alegrense.

“Cascalho” inicialmente, imita “Big Boy” da Rádio Mundial, do Rio de


Janeiro. E inicia com o programa chamado “Bier Show”, patrocinado por empresa
gaúcha homônima de fabricação e comercialização de vestuário. Aqui,
“Cascalho”, enquanto atração e voz no rádio, é novidade absoluta, seja pelo ritmo,
pela dicção, pela tonalidade da voz, seja pelo formato quanto à comunicabilidade
gritada, quanto à ironia e ao deboche com os costumes e arautos de determinadas
tradições, em Porto Alegre, instituídos.

“Cascalho” incorpora gírias, interjeições, ritmos e falas da juventude à


época. E do seu microfone surgem, diariamente, as expressões como magrinho, o
seguinte, trilegal, bah, muito louco, tric-tric, marca diabo, entre outras. Algumas
destas expressões, inclusive, estão incorporadas ao Dicionário de Porto Alegrês
(FISCHER, 1999).
45

Este Autor, inclusive, comete pequeno erro, apesar da oportunidade e


qualidade da obra em questão, quando atribui a criação do termo marca diabo,
originalmente, ao comunicador “Cascalho” da Continental.

Na verdade, o comunicador da Continental apenas atualiza para novo


contexto uma expressão popular, com sentido de atribuição a algo de má
qualidade ou de valor pejorativo. A expressão, provavelmente, tem origem com
outro comunicador, mais antigo no tempo, em que pese a monumentalidade da sua
obra. Trata-se, na realidade, de Simões Lopes Neto, também investido na
condição de empresário, na Zona Sul do Estado, onde cria a marca de cigarros
populares Diabo. Dali em diante, no tempo, a marca diabo significou produto não
esmerado, ou de má qualidade, fora de contexto ou de valor, seja este material,
moral ou estético. “Cascalho”, no caso da Continental, consagrou a expressão
para designar (e rodar, para gozação e crítica aberta junto ao público, no ar) as
músicas de qualidade estética que ele considerava baixa, popularesca.

Ainda, “Cascalho” fala “porto-alegrês” entremeado de muitas expressões


em inglês. O padrão do programa “Cascalho Time”, que difere de todo o conjunto
da produção do rádio porto-alegrense praticado, ali, até então, ganha em
atratividade, também, ao incorporar vinhetas diversas, muitas destas produzidas
no Rio de Janeiro, com a qualidade do padrão técnico da Rádio Mundial, com o
aval da Globo.

“Mr. Lee” não é menos interessante. Ele carrega o patrocínio das Lojas
Renner, empresa que acabava de ganhar exclusividade para a comercialização no
país da marca Lee de jeans, até então importadas por butiques ou adquiridas por
contrabando. “Mr. Lee”, anteriormente, dedicara-se à música country norte-
americana, quando autodenominava-se Julius Brown, mas, logo, estava rodando
música pop em geral, MPB e, de modo inédito, começava a apresentar a jovem
música urbana de Porto Alegre. Nelson Coelho de Castro, Bebeto Alves e Os
Almôndegas (banda integrada por Kleiton & Kledir), entre outros, aparecem ali,
primeiro em fitas gravadas pela rádio, depois nos shows em auditórios e clubes
promovidos pela Continental. Posteriormente, em discos gravados, ainda em vinil.
46

A regionalização da produção de cultura globalizada, pré-internet, e a


regionalização do consumo de bens materiais supérfluos, isto é, uma construção
típica de globalização, é protagonizada pela Rádio Continental. Este fenômeno era
concretizado pela realização discursiva e manifesta, concretamente, na
programação e, também, nas práticas estratégicas de divulgação fora de estúdio,
sobretudo, em shows musicais.

c) Terceira Estação:

Concomitante às práticas de divulgação e de atualização de novos estilos


importados e às práticas de consumo de padrão estrangeiro em território local, a
Continental tornava-se porta-voz da resistência universitária e secundarista contra
o autoritarismo político vigente e atuava em defesa das liberdades civis, de
comportamento individual e de expressão social da juventude de classe média.
Estas práticas cotidianas de procura por maior informação, de resistência cultural
e de militância política defrontavam-se, freqüentemente, com agentes da repressão
política e da censura federal e local. Alguns dos episódios destes embates estão
documentados, ainda que de modo fragmentado, e integraram o corpus
configurado pela ação de nossa pesquisa.

d) Quarta Estação:

Entre as novidades introduzidas pela Continental, estava a figura do


comunicador, que não afastou o speaker tradicional, nem o locutor-noticiarista. O
comunicador intrometeu-se como novo modelo de falas e, também, estava
distante da figura do animador de auditório ou de estúdio, freqüente na
programação de emissoras mais populares. Este comunicador fugia da leitura
empostada, ou dramatizada da notícia e mais conversava enquanto apresenta os
programas, não raramente, de modo editorializado, posicionado. Esta atuação do
comunicador aproxima-se do trabalho de um narrador quando da apresentação de
notícias e quando das vinhetas faladas da Continental.

A redação, produção e apresentação de vinhetas faladas e sonoras


constituíam ações fundamentais para compreensão do fenômeno cultural e
47

radiofônico construído, historicamente, pela Continental, muito embora, estas


apresentações ficassem mais sob o encargo dos locutores-noticiaristas.

e) Quinta Estação:

O estudo da publicidade da Rádio, na tese, observou, desde o marketing


realizado em metalinguagem pela emissora até a produção dos próprios
comerciais pela Continental. Desde a década de 1930, por decreto assinado por
Getúlio Vargas, o rádio brasileiro podia veicular publicidade e propaganda. Mas,
com o início das transmissões da tevê, o rádio fica relegado a um segundo plano.
Passa a receber peças publicitárias em menor quantidade e de pior qualidade
técnica, quando não são estas, tão somente, a parte de áudio das peças gravadas
originalmente para exibição na tevê. A Rádio Continental, que conta com
publicitário no quadro diretivo, passou a produzir peças genuínas, exclusivas,
gravadas nos estúdios da própria emissora. Com isto, consegue estabelecer um
tipo de comunicação radiofônica inédita, que interliga e organiza a prática
elocutiva, discursiva através das diferentes instâncias ou gêneros produzidos.

O humor, a sátira, a paródia, assim, ocupavam e se destacavam, na


linguagem radiofônica da Continental, seja no registro de padrão informativo, na
apresentação dos programas musicais e de entretenimento, como também, nas
peças publicitárias.

Este padrão de linguagem da Continental é irradiado, até mesmo, quando a


emissora, simplesmente, informa a hora e a temperatura. Ou, ainda, informa o
próprio prefixo. Como, por exemplo, em: “Na Porto Alegre do ‘orelhão’
internacional... Continental − 1120 KHZ - ZYK 2-7-4” (HEINZELMANN;
SCHIMTZ, 1986).

f) Sexta Estação:

O padrão de rádio protagonizado pela Continental ultrapassou e interligou


as diferentes instâncias entre o núcleo de produção informativo, de
entretenimento, de publicidade e institucional. Na programação da Continental, o
informativo entretém, e a instância do entretenimento também informa. Já a
publicidade informa, diverte e vende. O espaço para a veiculação institucional
48

informa e diverte, além de institucionalizar a marca Continental no campo da


audiência. O broadcast foi pensado e articulado para integrar as diferentes peças
sonoras discursivas como um todo, sistematizado, integrado. Esta articulação
radiofônica garantiu certa uniformidade identitária ao padrão de realização à
Continental

g) Sétima Estação:

Demarcada a necessidade do estudo e da abordagem crítica das


formulações enunciativas, discursivas e de argumentação, em geral, utilizadas
pela Continental, em todos os níveis da grade de programação diária, podemos
depreender, dali, a oportunidade de configurar outro modelo de rádio
protagonizado pela Continental. Esta outra via era derivada dos registros de
humor, de ironia, de paródia ocorrentes, na programação, desde as peças
publicitárias (algumas produzidas nos próprios estúdios da Continental), até a
feitura do horóscopo (com a inclusão do décimo terceiro signo, denominado ora
“do exílio”, ora “do arruda”) e da composição redacional e das elocuções de
sínteses noticiosas diárias. Estas articulações de humor e sátira observamos como
parte de uma estratégia de impacto junto à audiência.

h) Oitava Estação:

Pretendeu-se averiguar e relatar a situação do radialismo em Porto Alegre,


na década de 1970, abordando as condições técnicas para funcionamento, a
produção cultural e a radiojornalística propriamente dita, demarcando as
iniciativas da Rádio Continental como diferenciadas, inovadoras, entre as demais
existentes. Na tese, basicamente, buscamos contextualizar e diferenciar a
Continental em meio às demais emissoras.

i) Nona Estação:

O texto sonoro-radiofônico da Continental, emitido-recebido em Porto


Alegre, articulava-se com um contexto cultural-político onde ressoavam, ainda ao
longo dos anos, iniciados em 1970, junto à juventude mais intelectualizada e
ouvinte da Rádio, tanto aquele conjunto de valores políticos libertários herdados
desde o Maio de 1968, quanto do ideário não menos complexo do imaginário
49

hippie e contracultural, pacifistas, erguido contra a Guerra do Vietnã e em


consonância com o coletivismo propagado por episódios como o Festival de
Woodstock, realizado em 1969. Textos e contextos, que articulavam e
confrontavam outros pares polares dali desdobrados, como encontrável na
radiofonização de música de protesto e autoritarismo, desejo de liberdade e
censura política empreendida pelo estado brasileiro à época. A contestação unia
valores éticos e morais de uso da juventude internacional, em geral, com o ideário
mais local, de luta antiditatorial e democratizante. A contestação política era
radiofônica, em diálogo com a chamada contracultura, em interação com a
chegada de renovação da sociedade pelos costumes e hábitos dos jovens. A
Continental protagonizou, em parte, estes valores e fenômenos no áudio.

j) Décima Estação:

A periodização da história da Continental, grosso modo, possibilitou uma


segmentação em grandes blocos, interligados, sucessivos pela flecha do tempo, de
importância social e midiática diferentes e diferenciados, quer seja pela
característica do fato em si, quer pela importância ou relevância que terminaram
assumindo no contexto da história e da memória social.

Erguidas as estações, tivemos a noção de uma história da Continental


possível de narrar, entretanto, tornada possível, também, desde que incorporadas
as descontinuidades, os vácuos, as indeterminações, os lapsos, lado a lado com o
estabelecido pelos relatos das entrevistas e nexos da pesquisa.

O trabalho das estações ainda que assentado sobre uma abordagem em


fragmentação do real concreto possibilitou uma visão global do fenômeno. Diante
disto, foi possível, por exemplo, identificar diferentes ênfases e microperíodos de
gestão da produção radiofônica dentro dos grandes blocos nomeados. Estas
estações, especificamente, trabalharam com a ampliação do espaço-ciclo de
temporalidade para a história da Continental e, ao mesmo tempo, ensejaram
melhor posição de procura e relativo aprofundamento do estudo de cada tempo
identificado como relevante.
50

Foram estas, acima apresentadas, as principais estações que o presente


estudo optou articular e visitar, inicialmente, observando o observável, buscando
estabelecer o sistêmico e novas variantes do processo histórico e midiático
objetivado pela pesquisa. Assim, buscamos encontrar “explicações satisfatórias”,
no dizer de Popper, para quem o explicans é o objeto de toda a nossa busca. E,
como regra geral, a priori, não é dado, “não é conhecido, [...] terá de ser
descoberto”. Assim, diz ele, a explicação científica (explicação causal), sempre
que for uma descoberta, há de ser a “explicação do conhecido pelo desconhecido”
(POPPER, 1987, p. 152).

As estações enquanto plataformas, torres de estudos e de observações


dadas, tiveram função significativa, iluminando o processo geral, em
continuidade, para as entrevistas e para as análises das narrativas da Continental.
Foram decisivas, igualmente, para o erguimento da trajetória peripecial final e
para as miradas teorizantes sobre a existência histórica da emissora.

Podemos, sumariamente, indicar que as questões estiveram interligadas


pelo procedimento investigativo e resumidamente articuladas em duas ênfases, a
saber:

1º. observação de diferentes procedimentos localizados, sobretudo, no pólo


de rotinas de produção e no de produção de sentido, para
estabelecimento do que foi e como foi o transcurso-percurso midiático
da Continental em suas interações sociais;

2º. observação centrada na investigação sobre o que lembram, sobre a


memória social articulada do sujeito sobre o que foi a Continental real
e historicamente dada.

A observação, basicamente, ocorreu através da condição de escuta-ativa


desenvolvida nas situações de entrevistas, onde as singularidades vivenciadas e as
condições de fala sobre e da Continental teciam a singular história da emissora,
constituindo, ao mesmo tempo, algo que podemos denominar a experiência
Continental.
51

Em conseqüência desta constatada experiência Continental que, em nossa


avaliação, extrapolou a simples escuta à estação, identificamos o que
denominamos por uma paidéia radiofônica, midiática da emissora, a envolver ao
mesmo tempo os sujeitos da instância da produção e os da recepção. A paidéia
midiática da Continental localizamos circunscrita ao contexto histórico da Porto
Alegre, sobretudo, a contar de 1970. A experiência desta determinada Paidéia
(JAEGER, 1989, p.16-45) conceito grego que denomina, ao mesmo tempo,
experiência, vivência integral de aprendizagem e formação, unindo corpo e
espírito, constata-se, teve valor para o grupo de sujeitos que viveram a
Continental tanto no eixo da produção-enunciação quanto para aquele postado no
sítio da recepção ativa. (Voltaremos à paidéia radiofônica da Continental, como
fenômeno para teorização, no capítulo final da tese). A paidéia radiofônica da
Continental, ainda, ensejou cultura compartilhada, também, por outros agentes,
como as emissoras futuras, que usufruíram e adaptaram soluções advindas da
Continental histórica.

Por ora, podemos afirmar que a paidéia enquanto fenômeno existente, para
a nossa interpretação, possibilitou uma espécie de articulação entre
particularidades dispersas. Como é sabido, são fundamentais, aqui, os elementos
produzidos e amalgamados pelas sabedorias locais, mesmo os discursos
fragmentalistas e/ou fragmentados protagonizados ou disseminados pela indústria
cultural, bem como elementos de conhecimento do domínio do senso comum e da
tradição em redes orais e de convivência. Esteve presente como uma orientação
para o trabalho da pesquisa, epistemologicamente, reconciliar, quando possível,
ou, pelo menos, buscar a possível articulação destes diferentes saberes, não
hegemônico, sem concordância com o que recomenda Santos (1989).

Para construir a narrativa final da tese, academicamente coerente,


pretendemos reconstituir e ordenar os diferentes níveis de narrativas possíveis.
Ordenar e constituir os diferentes níveis de narrativas sobre a emissora e pela
Rádio Continental significou, na práxis, utilizarmo-nos de diferentes modos e
recursos para reconstituição histórica, mesmo sabendo que a utilização de recursos
52

variados acarretava, igualmente, diferenciados tipos de dificuldades para a


pesquisa.

Especificamente, optamos por observar e constituir, pela ordenação e


investigação da pesquisa, os seguintes tipos e níveis, diferenciados e
relacionáveis, de narrativas possíveis:

1º. as narrativas do senso comum, representadas por relatos de tipo mítico,


transmitidas oralmente, por contigüidade física e cultural.
Basicamente, as construções narrativas daqueles que ouviram, real e
concretamente, a Continental;

2º. as narrativas do senso comum, representadas por reportagens e


abordagens midiáticas avulsas, ofertadas por jornais e periódicos de
época. Incluem-se aqui as gravações de programas de rádio e televisão
sobre a Continental. Inclui-se, aqui, por exemplo, a edição especial
sobre a Continental do programa “Gaúcha Fim de Semana”, de José
Alberto Andrade, na Rádio Gaúcha, detentor do Prêmio ARI de
Jornalismo – categoria Rádio, no ano 2000;

3º. as narrativas de caráter acadêmico, direcionadas, especificamente,


sobre o objeto empírico Continental, ou relacionáveis, integral ou
parcialmente, ao objeto ou à problemática em pauta. Referimos, aqui,
sobretudo, os trabalhos monográficos de conclusão de cursos de
graduação e as dissertações de mestrado. Entre estes trabalhos
apontamos, aqui, os desenvolvidos por Heinzelmann e Cristine
Schimtz (1986), por Holmes (1991), por Anele (1994), por Zukauskas
(1998), por Schossler (2000) e por Neves (2001);

4º. as narrativas orais, diretas, dos radialistas, jornalistas, músicos,


publicitários, equipe de técnicos de áudio e gravação, funcionários do
departamento pessoal e comercial, enfim, aqueles que trabalharam e
fizeram o modelo Continental de rádio;

5º. as narrativas produzidas pelos diversos modos do discurso radiofônico


(radiojornalístico de informação, de entretenimento, de opinião,
53

publicitário) desenvolvidas pela Continental e recuperadas através de


raros documentos sonoros gravados e fotocopiados a partir de textos
originais;

6º. as narrativas produzidas pela própria Rádio no ar, criando slogans e


provérbios e características sonoras que constroem, pelos fragmentos,
uma fala da rádio e uma cidade imaginária projetada e, logo, fixada e
preservada pela ação da memória social, dos sujeitos ouvintes e
produtores. Aqui, destacam-se os textos de caráter de auto-
institucionalização e auto-referência da própria emissora, constituindo-
se esta produção em fenômeno cultural e midiático notável,
memorável, vale dizer, e, portanto, destacado pela análise da pesquisa,
em texto à parte, como veremos, na pesquisa.

As narrativas orais, as sonoras, as visuais e as escritas possibilitadas pelo


trabalho da pesquisa, obtidas em fontes primárias ou secundárias, constituindo-se
em materialização de documentos inéditos ou reaproveitados pela reciclagem da
tese, concretizaram e articularam o texto-tese, que, em tensionamento, foi obtido a
partir da articulação deste conjunto tecido.

A partir daquilo que denominamos, inicialmente, Uma história dos


acontecimentos e das famas, projetou-se outra possibilidade. Esta denominação
colando-se, em conceito, àquilo que, adequadamente, Braga denominou de
história peripecial, quando estabeleceu uma história do Pasquim (1991, p. 21-
123).

Para a presente pesquisa, delineou-se a possibilidade de ultrapassagem de


alternativa reduzida de construir uma história apenas descritiva da Continental.

O conceito-chave de “descrições densas”, propugnado por Clifford Geertz,


contribuiu para os questionamentos e para a busca de relatos multifacetados,
sobretudo, a partir das ressalvas críticas de Russel Jacoby (1999, p. 170), quando
o Autor ressalta a impropriedade de considerarmos os acontecimentos
isoladamente.
54

Nesta tentativa de ultrapassagem buscávamos relevância ao caracterizar o


período selecionado através de suas características sistemáticas, marcantes,
evidentes, levantadas pela pré-pesquisa, e que garantiram pistas para as narrativas
sobre o objeto no período.

O exercício da pesquisa comprovou uma ampliação e novo período


histórico da Radio Continental, redimensionado pelo processo de abordagem. Foi
trabalho da presente pesquisa buscar iluminar aspectos precedentes e posteriores
desta fase mais conhecida e divulgada, pelo senso comum, da Rádio. E, a partir
destes duplos exercícios de ampliação do foco e busca de aprofundamento das
causas históricas outras, construir melhor interpretação acadêmica sobre o
fenômeno. Foi através deste exercício, por exemplo, que se tornou possível flagrar
a presença do Sistema Globo de Rádio, com atuação ativa no dial do rádio porto-
alegrense, em momentos distintos, relevantes, de interação histórica com a Rádio
Continental. Aquela presença não era mera aventura, nem estapafúrdio
investimento, e buscava ocupação comercial e estratégica, do ponto de vista
geopolítico, para a Rede Globo, em modos e períodos distintos.

Com isto, pela ampliação do tempo histórico de existência da Rádio e a


partir de novos fatos vislumbrados pela pré-pesquisa, podemos ver revelado maior
protagonismo da Continental. Pela proposta de trabalho, assim, podemos escrever
a tese não apenas afirmada, mas como algo elaborado, mostrado pelo relato final,
junto com as bases conhecidas de dados e de interpretação para afirmar valor,
identificável como gerado de um macrotexto específico, produzido pela história
da Continental.

As questões trazidas e oportunizadas pelas estações foram geradoras de um


macrotexto específico, concreto, realizadas no desenvolvimento da tese. As
estações foram promotoras do relato escrito final das peripécias da Continental.
CAPÍTULO 3: A HISTÓRIA ORAL ENQUANTO MÉTODO

3.1 HISTÓRIA DA HISTÓRIA ORAL: UMA ABORDAGEM

Antes de, modernamente, instituir-se como instrumento e/ou método no


campo das ciências sociais, de modo amplo, e nos diferentes enfoques e usos da
história, em especifico, a chamada história oral pode ser localizada, de algum
modo operante, nos primórdios da civilização ocidental.

Ao acatarmos a tradição que indica Heródoto como “o pai da história” e


Tucídides como “o primeiro historiador crítico”, então, já podemos localizar, na
Antigüidade clássica, questionamentos e problemáticas decorrentes do fazer
histórico, focalizados a partir da questão da oralidade. E, dali decorrendo, ainda,
dificuldades fundamentais, mas diversas, de apresentação da verdade, de
reconstituição dos fatos, de comprovação verossímil da realidade que tem/teve o
homem como sujeito principal. E, então, podemos demarcar, naquele período, os
primórdios, não somente de determinada interpretação da história geral, mas
problemáticas primeiras e fundantes da própria história oral, em específico.

Conforme Gagnebin, os discursos construídos por Heródoto e Tucídides


receberão, mais tarde, o nome de história. Entretanto, já se encontram, nestes
autores clássicos, explícita ou implicitamente, todo o conjunto das relações entre o
tempo da história dita real (como o conjunto dos acontecimentos) e o tempo da
história contada (a narração dos acontecimentos). Isto é, na definição de Gagnebin
(1997, p. 15), “a dinâmica temporal que preside à história enquanto saber
(disciplina, ‘ciência’, em alemão, também, Historie)”.
56

Heródoto, ao basear seus relatos na audição de testemunhas, estabelece, na


sua obra, uma primeira diferença essencial entre a narrativa “histórica” e as
narrativas míticas (como a da epopéia, por exemplo, em Homero). “Heródoto só
quer falar daquilo que viu ou daquilo de que ouviu falar”, ressalta Gagnebin
(1997, p. 17). Pela escuta e observação atentas, Heródoto realiza uma investigação
que privilegia a palavra de testemunhas vivas, que se configura através do ver e do
ouvir. Para Gagnebin (1997, p. 19), “Heródoto retoma e transforma a tarefa do
poeta arcaico: contar os acontecimentos passados, conservar a memória, resgatar o
passado, lutar contra o esquecimento. [...] Tarefa que religa o presente ao passado,
fundando a identidade de uma nação de um indivíduo [...]”.

Fundamentalmente, Heródoto, mesmo reconhecendo um tempo lendário,


de narrativas não cronológicas, oporá ao mythos aquilo que denomina em seus
textos de logos. Isto é, apresentará ao leitor uma narrativa lógica, de uma
realidade resgatada pela testemunha viva, do real pesquisável e pesquisado.

Dito de outro modo, ouvir-ver-narrar pela articulação do logos são ações


que o Heródoto historiador anteporá aos procedimentos narrativos do modo
mítico. Entretanto, segundo Gagnebin, Heródoto preserva o mythodes, o
maravilhoso, enquanto explicação do mundo.

Esta primeira demarcação, em Heródoto, como momento fundante de


utilização da oralidade, na história, pela ausência de documento escrito, merecerá,
em Tucídides, uma continuidade crítica. Este, em resumo, critica naquele a
crença, ainda que parcial, no mito (apesar de contestá-lo enquanto forma
narrativa) e, sobretudo, na memória. Heródoto queria salvar o memorável.
Tucídides, definitivamente, relega ao passado a deusa Mnemosyne.

Para Tucídides, a ocorrência freqüente das falhas de memória deve


provocar a modificação da atividade do historiador que precisa, deve duvidar do
memorialístico. A suspeita deve-se à imprecisão intrínseca da operação da
memória humana e devido à falta de objetividade acarretada por esta, na origem.
Em Tucídides, a memória não assegura nenhuma autenticidade; nem garante,
tampouco, a fidelidade do relato narrativo à realidade do mundo.
57

Se Heródoto, em resumo, significa a herança primeira da possibilidade de


uma história oral, Tucídides qualifica-se como o primeiro a estabelecer limites
para a utilização da memória oral e do uso dos relatos orais.

À relatividade da memória e à sedução, porém imprecisa, dos mythodes,


oporá a busca do historiador pelo “maior rigor possível”, pela dúvida a “qualquer
testemunha casual” e, em conseguinte, pelo estabelecimento da ação laboriosa do
historiador para fugir à simpatia enganadora do relato oral.

Em Heródoto, podemos recortar as ações do ouvir-ver-narrar, enquanto


contribuições fundamentais. Agora, em Tucídides, devemos acrescentar à práxis o
verbo duvidar. A dúvida recai sobre si mesmo, sobre a própria ação do historiador
e, ao mesmo tempo, sobre o método do historiador, o modo como este trabalho
apropria-se dos dados de realidade.

É notável, aqui, a insistência de Tucídides em afirmar que não


vai relatar as palavras realmente pronunciadas. [...] mas, se
Tucídides insiste nesse ponto é que ele quer ressaltar uma
impossibilidade mais essencial: não se pode acreditar na
memória para garantir a fidelidade do relato à realidade
(GAGNEBIN, 1997, p. 27).

Esse comentário de Gagnebin refere-se ao método explicitado pelo próprio


Tucídides, em passagem famosa, da obra História da Guerra do Peloponeso
(1999, p. 29):

Quanto aos discursos pronunciados [...] foi difícil recordar com


precisão rigorosa os que eu mesmo ouvi ou os que me foram
transmitidos por várias fontes. [...] Quanto aos acontecimentos
da guerra, considerei meu dever relatá-los, não como apurados
através de qualquer informante casual nem como era a minha
impressão pessoal, mas somente após investigar cada detalhe
com o maior rigor possível, seja no caso de eventos dos quais
eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos quais obtive
informações de terceiros. O empenho em apurar os fatos
constituiu uma tarefa laboriosa, pois testemunhas oculares [...]
nem sempre faziam os mesmos relatos [...], mas variavam de
acordo com suas simpatias, por um lado ou pelo outro, ou de
acordo com sua memória.

Preocupado em escrever uma história para o futuro, “com rigor, após


investigar cada detalhe”, Tucídides terminou por plantar questões fundamentais
58

para a história, como fazer científico em sentido amplo, e para a história oral, em
específico, com ressonâncias, inclusive, em determinados questionamentos em
nossa própria pesquisa.

Entre estas questões atualizadas, destacamos, detalhando a chave principal


do legado do historiador, indicado pelo conjunto da práxis ouvir-ver-narrar-
duvidar, as seguintes problemáticas: 1) a falibilidade da memória individual
humana; 2) condição de emocionalidade dos sujeitos dos depoimentos
fundamentais; 3) conflituosidade pela possibilidade de estabelecimento de
diferentes narrativas sobre um mesmo fato; 4) confronto entre aspectos do mito,
enquanto relato, e da necessidade do estabelecimento do logos; 5) dúvida
constante quanto à validade de qualquer depoimento fatual; 6) necessidade de
esforço redobrado do historiador pelo rigor e cuidado com o detalhe.

As questões acima são preliminares, mas também são fundamentais e


pertinentes pela permanência, ao longo dos tempos, e pela ressonância das
mesmas, tanto enquanto encaminhamentos ou mesmo afirmações de soluções
quanto de delineamento de problemas e questões dilemáticas de conhecimento e
domínio da história oral. São questões e equacionamentos que chegam à
contemporaneidade revestidas de novos ingredientes, novas interpelações,
sobretudo, pela introdução do elemento técnico e pela criação histórica recente da
sociedade humana altamente midiatizada.

Do ponto de vista daquilo que queremos observar, as pesquisas, valendo-se


dos diferentes usos da história oral, relacionam-se, ao longo do século XX, com
diferentes etapas de desenvolvimento conjunto da pesquisa qualitativa. E, neste
sentido, localizam-se, sobretudo, no contexto histórico do pós-guerra, como
ocorre, em bloco, com o conjunto das atividades do conhecimento científico e
tecnológico, o período de crises radicais, de alteração de padrões, de mudança ou
quebra de paradigmas (KUHN, 1978). Trata-se, ali, da instauração de novos
ciclos, com a busca de superação de crises, nos diversos campos da cientificidade,
a partir da constatação da falência do conceito de ciência iluminista, notadamente,
após a utilização de armas atômicas ao término do conflito bélico, na II Guerra,
59

quando milhões de seres humanos perdem a vida pelo emprego de armas


sofisticadas, desenvolvidas científica e tecnologicamente.

Mas, para acompanhar, em específico, o desenvolvimento da história oral,


foi necessário, novamente, retroceder, desta vez, até os primórdios do século XX,
para acompanhar, especificamente, um quadro plausível de periodização do
desenvolvimento do método e da técnica oral nas ciências sociais.

O início da utilização do método de história oral e de histórias de vida,


radicalmente, dependerá do ponto de origem epistemológico e gnoseológico
iniciais. Assim, historiadores indicam o século XIX como ponto de partida,
concomitantemente, para o início de histórias orais sobre tribos norte-americanas
sob ameaças e sobre hábitos e costumes de camponeses na Europa, sobretudo,
francesa (QUEIROZ, 1988). No Brasil, é possível identificar rudimentos do
emprego da técnica de história oral, a partir dos inúmeros relatos de viajantes,
algumas destas narrativas constituindo-se em meticulosos relatos sobre o Brasil
colônia e sobre a sociedade nacional pré-republicana. Exemplar pela importância,
neste sentido, aparece, entre nós, a obra Viagem ao Rio Grande do Sul, de Saint-
Hilaire (1779-1853).

No final do século XIX e início do século XX, a Sociologia e a


Antropologia norte-americana e européia, sobretudo, empregam a metodologia da
história oral e de histórias de vida para estabelecimento da experiência humana de
índios, operários e camponeses.

São estudos, na maioria, de índole realista, de estrato positivista. Ao


término da década iniciada em 1920, a chamada Escola de Chicago dedica-se a
resgatar o passado e a descrever o presente da vida de marginalizados norte-
americanos e imigrantes europeus. São estudos realistas, naturalistas, que
esbarram na ausência de maior requinte epistemológico reflexivo que aprofunde o
problema quantitativo. E, assim, o período é marcado pelo impasse, pela dúvida
de validade quanto à escuta do sujeito, interpelando-se esta enquanto ação
significativa para conhecimento do grupo, da classe, do gênero ou da sociedade de
origem, na pesquisa. Os relatos marcam a fase inicial da história oral e de vida que
60

se garantem pela vivência da experiência como acúmulo de conhecimento, pela


riqueza dos relatos, que assumem valor científico intrínseco, quase que
imanentista, pela narrativa oral-textual (MARRE, 1991).

Este período, até a II Guerra, é configurado como a primeira geração de


pesquisas da história oral moderna, como veremos, a seguir.

Em 1995, Philippe Joutard, da Academia de Toulose, França, apresenta,


durante o XVIII Congresso Internacional de Ciências Históricas, em Montreal,
Canadá, uma cronologia a partir de seus eixos de questionamentos sobre a história
oral (apud AMADO; FERREIRA, 2001, p. 43).

A primeira questão, para o pesquisador, encontra-se na necessidade de


enquadramento do nível de marginalização da história oral diante da história, no
âmbito acadêmico. A questão, ainda, nota Joutard, parece residir na freqüente
querela entre o escrito e o oral e, a partir daí, há a opção de alguns pela utilização
da expressão “arquivos orais”. O pesquisador, assim, inicia sua abordagem de
crítica pela problematização do próprio termo “história oral”.

Após reconhecer os notáveis desenvolvimentos da história oral nos


recentes 25 anos, Joutard pergunta-se quanto à natureza de vínculos entre as duas
correntes principais que, desde o início, dividiram o campo da história oral.

A primeira é aquela mais próxima das ciências políticas, voltada para a


abordagem das elites e dos notáveis. Já a segunda corrente, voltada para estudos
sobre as “populações sem história”, é situada na fronteira com a antropologia.

A nossa pesquisa situou-se em território híbrido entre os dois grandes


blocos, por diferentes motivações. Assim, quando ouvimos, para a constituição da
história da Rádio Continental, aqueles que seriam, à época, olimpianos, conforme
a expressão consagrada de Edgar Morin, a pesquisa figuraria na primeira corrente
descrita por Joutard. Mas, hoje, estando a maioria afastada dos holofotes da fama,
melhor dizendo, longe dos microfones, do público e do sucesso, mesmo que
circunscrito ou efêmero, na história, a ênfase esvazia-se. E, ainda, em nosso
projeto, ouvimos, igualmente, os funcionários, os colaboradores mais modestos do
61

quadro hierárquico da rádio, aqueles que, na plena acepção do termo, nunca


tiveram voz, no caso, histórica e radiofônica.

Igualmente, se a escolha de tratamento da mídia indicava a opção por


estudo de elenco de famosos, ao focalizar a história de uma rádio famosa, o
projeto pendularmente, outra vez, volta-se para a narração, para a construção
lógica de uma memória social de uma “população sem história”.

Parece próprio da história oral postar-se para atuar em territórios de


fronteiras. Assim, Joutard sublinha que, para a história oral, tem importância,
enquanto questionamento fundamental, ainda, o relacionamento desta com
disciplinas afins, também postadas em regiões limítrofes com a História, como a
Sociologia e a Lingüística.

Pela nossa observação da experiência brasileira, acrescentaríamos,


também, áreas da Psicologia e do Serviço Social, enquanto ramos de
conhecimentos em interface pela utilização, mesmo parcial, em determinados
projetos, da história oral. Em todos estes casos, está presente verdadeira gama de
novos problemas suscitados pela utilização da fonte oral.

Após ressaltar, a partir de mapeamento geográfico, a diferença de


aprofundamento em níveis de existência real da história oral, em diferentes países
e continentes, Joutard aponta aquilo que denomina por cronologia significativa do
desenvolvimento da história oral.

Ele divide este desenvolvimento cronológico em diferentes gerações, a


saber, a primeira geração sendo aquela preocupada em coligir material para
historiadores futuros. Segundo Joutard (apud AMADO; FERREIRA, 2001, p. 45),
“seu intento era modesto”, pois o aspecto fundamental da ação seria servir “como
um instrumento para os biógrafos vindouros”. Esta geração tem seu nascimento
localizado nos Estados Unidos, durante a década de 1950, e especializa-se no
estudo da vida dos notáveis, postando-se ao lado das ciências políticas.

Esforço semelhante verifica-se, também, no México. Lá, desde 1956,


vinculados aos serviços de desenvolvimento de arquivos sonoros do Instituto
62

Nacional de Antropologia, são registradas as recordações dos chefes da revolução


mexicana. Em 1976, esta tradição dá origem à criação do Archivo de la Palavra.

No Brasil, no mesmo período, e, igualmente, com propósitos de


estabelecer arquivos fidedignos e memorialísticos, é criado, no Rio de Janeiro, o
Museu da Imagem e do Som e, em São Paulo, o Centro de Pesquisas e
Documentação (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas.

Segundo Joutard, este período inicial de implantações é marcado por uma


baixa densidade reflexiva. Sendo exemplar, neste sentido lacunar, o trabalho que
fazem, sem reflexão metodológica, os diferentes correspondentes departamentais
do Comitê de História da II Guerra Mundial junto aos chefes da resistência.

Localizam-se, na Itália, a partir de trabalhos de sociólogos e de


antropólogos, próximos de partidos de esquerda, os primórdios de uma segunda
geração de historiadores que colocam a história oral para reconstruir a cultura
popular e partem de uma concepção muito mais ambiciosa. Ao final dos anos 60,
eles buscam o estabelecimento de uma história oral para além de uma simples
fonte complementar do material escrito. Segundo Dunaway (apud AMADO;
FERREIRA, 2001, p. 44), é uma história oral praticada por não-profissionais,
feministas, educadores, sindicalistas, que erguem esta história que se pretende
militante, e se acha à margem do mundo universitário (ou é por este rejeitada).
Trata-se, para Joutard (apud AMADO; FERREIRA, 2001, p. 45), da constituição
“de uma outra história”, próxima da antropologia, “que dá voz aos ‘povos sem
história’, iletrados, que valoriza os vencidos, os marginais e as diversas minorias,
operários, negros, mulheres”.

Essa vertente da história oral vincula-se à voga de ideais libertários, alguns


oriundos do movimento de Maio de 1968, mas, sobretudo dos movimentos
contestatórios de juventude, inclusive, de autocrítica ou contrários aos partidos
tradicionais de esquerda. Prega-se o não-conformismo sistemático. Conforme
análise de Joutard (apud AMADO; FERREIRA, 2001, p. 43), “em sua versão
mais radical, é uma história alternativa, não apenas em relação à história
acadêmica, mas também em relação a todas as construções historiográficas
63

baseadas no escrito”. Na Itália, esta vertente filia-se à idéia de aproximação com


as bases populares, distantes das estruturas partidárias de esquerda, em busca da
“verdade do povo”, graças ao testemunho oral. Já os estudos centrados na
recuperação e reflexão sobre depoimentos orais de integrantes da Resistência
encontram enorme desenvolvimento na Itália, como igualmente na Inglaterra,
sobretudo, com Thompson. E mesmo na América Latina, países como a
Argentina, onde a criação de um instituto privado, sob a influência da
Universidade de Colúmbia, retoma o espírito da primeira fase de desenvolvimento
da história oral, quando passa a realizar entrevistas com sindicalistas e dirigentes
políticos peronistas.

Data do início dos anos 1970, igualmente, o surgimento de estudos de


história oral mais significativos em território brasileiro. Seguindo tendência de
desenvolvimento em toda a América Latina, em 1975, a Fundação Getúlio Vargas
criou o primeiro programa de história oral destinado a colher depoimentos de
líderes políticos, desde 1920. O marco referencial de pioneirismo e cientificidade,
no campo das ciências sociais, localiza-se, aqui, nos trabalhos sobre o negro e o
racismo desenvolvidos por Florestan Fernandes, a partir de pesquisas do folclore,
entre 1941/1944, em sua primeira fase, e, a seguir, associado a Bastide, em nova
pesquisa que resultará na obra Brancos e Negros em São Paulo, em que volta a
abordar a questão do racismo, com a utilização de metodologia de pesquisa oral.
(BASTIDE; FERNANDES, 1971).

O ano de 1975 é considerado marco de qualidade para o conjunto da


história oral. Naquele ano, dois encontros internacionais de pesquisadores
garantem a afirmação de uma corrente, superando a fase de estudos isolados
empreendidos por pesquisadores pioneiros, como Vilanova, que trabalhara
sozinha, na Espanha, de 1969 até 1975.

O XIV Congresso Internacional de Ciências Jurídicas de São Francisco


promoveu mesa-redonda denominada “A História Oral como uma Nova
Metodologia”. No ano seguinte, organiza-se aquele que será considerado como o
primeiro colóquio internacional, exclusivamente voltado para a história oral, em
Bolonha, na Itália. Segundo Joutard, estavam ali, plenamente afirmadas, as
64

ênfases de estudos orais centrados nos depoimentos de operários e das classes


populares, ladeados por estudos voltados para as tradições populares e para a
história do cotidiano contemporânea.

A década seguinte marcará etapa de nova maturidade da história oral, em


diferentes centros de estudos, na Europa e na América, e o alargamento de
fronteiras, com a implantação de projetos significativos na Ásia, sobretudo, no
Japão. Será a década, também, da maturidade de publicações especializadas, como
a Historia y Fuente Oral, criação do grupo de Barcelona, em 1989, que abrigará,
com destaque, a produção internacional. E, ainda, a Oral History, publicação da
Sociedade de História Oral Inglesa, fundada por Paul Thompson e o
Internacional Journal of Oral History, dirigido por Ronald Grele. Estados
Unidos, Itália, Canadá e Brasil, entre outros, são países que criam revistas e
periódicos, de maior ou menor expressão, mas todos voltados para a reflexão e
metodologia da história oral.

Foi a década, ainda, em que museus e arquivos, alguns antes mesmo do


interesse manifesto das universidades, abriram portas, espaços e exposições
contemplando novos programas de história oral, exposições e mostras, como o
Museu do Delfim, em Grenoble, e a Maison de la Vilette, em Paris.

A década de 1980, por fim, é também caracterizada pela presença da


produção latino-americana em congressos e fóruns internacionais.

Já a próxima década, segundo a interpretação de Dunaway, assinalará o


advento de uma quarta geração da história oral, a contar daqueles primeiros
movimentos, para ele, nascidos no início dos anos 1960, que vive envolvido e
circunscrito “em um mundo de som e de oralidade”. A influência desta etapa,
novamente, localiza-se nos Estados Unidos, com a contribuição controvertida dos
críticos pós-modernistas, com notada projeção dos valores subjetivos e individuais
(apud AMADO; FERREIRA, 2001, p. 50).

Como reflexão propiciada pela presente pesquisa e pela nossa observação


da recente história da comunicação social, queremos estabelecer, ainda que
resumidamente, uma outra pequena cronologia da história oral.
65

Localizamos a primeira etapa desta cronologia na década iniciada em 1970


que, para nós, tem marco, verdadeiramente, de desenvolvimento, quer quanto à
quantidade, quer quanto à qualidade, a partir dos anos pós-golpe militar, quando,
tecnicamente, a sociedade brasileira passa a conviver mais intensamente com a
indústria cultural. Assim, a década de 1970 é importante, primeiro, pela
oportunidade das ofertas de meios, com a disponibilidade técnica do uso massivo
dos gravadores portáteis e das fitas K-7. Esta primeira fase, entre nós, de
desenvolvimento da história oral pela oportunidade de meios técnicos de gravação
e reprodutibilidade, é convergente com o desenvolvimento de forças sociais e
políticas. Lá, cria-se o momento histórico em que a sociedade brasileira, em geral,
e a comunidade acadêmica e as lideranças políticas oposicionistas, em particular,
procuram novas formas, novos meios de recuperar a memória social e incrementar
a consciência democrática e de cidadania.

O próximo marco, em nossa análise, vincula, igualmente, nova onda de


ofertas de meios técnicos e tecnológicos à nova etapa da luta pela democratização
e direitos civis. O videocassete e as diferentes formas de uso deste suporte técnico
marcarão a década, abundante em experiências de registro, de documentários e de
experimentos de fixação da memória visual. Se o período anterior foi altamente
sonoro, pelo suporte nos gravadores e fitas K-7, este será fortemente visual, pelo
acesso ao videocassete e pelo emprego de câmeras de vídeo também portáteis.
Nos anos 1980, o substrato político e social, ainda, mas de modo diferente, refere-
se à democratização, pela construção do pluripartidarismo, pelo movimento das
“diretas já”, pelo advento da chamada “abertura política”, dita “lenta, gradual e
restrita”, conforme a definição do general Ernesto Geisel.

Joutard, igualmente, destaca a presença do elemento técnico como


protagonista, em escala internacional, do desenvolvimento da história oral. Ele
destaca a multiplicação de videogramas que complementam ou mesmo substituem
os fonogramas, como uma exemplificação deste período. Em 1995, ele realiza
pesquisa junto à rede escolar, onde constata a substituição do gravador pela
câmera de vídeo.
66

Atualmente, em nosso entendimento, e tendo em vista usos práticos


complexos, de atuação para captação de dados e realização de entrevistas,
apontaríamos uma novíssima etapa da utilização de meios técnicos para
estabelecimento da história oral. Neste ambiente da sociedade da informação, com
a constituição da sociedade do conhecimento através das redes (Manuel Castells),
ou sob a égide de uma cultura da modernidade líquida (Zygmunt Bauman), os
recursos técnicos de interação pela voz, de gravação e de reprodução da voz estão
centralizados no uso do computador, na interação a distância pela internet, no
registro de dados pelo disquete e no armazenamento e estruturação de arquivos a
partir dos discos de CD e de CD-rom.

Na atual fase tecnológica da sociedade fortemente midiatizada, como foi


possível constatar ao longo do desenvolvimento de nossa pesquisa, a estruturação
da história oral, ao mesmo tempo, vê-se trespassada pela presença do elemento
técnico que serve como braço de apoio operativo e/ou atua como instância
problematizadora, ou, ainda, até mesmo, de obliteração de processos de
investigação e de depoimentos orais.

A década de 1990 será marcada, no Brasil, por um período de significativa


expansão da história oral, com a criação da Associação Brasileira de História
Oral, em 1994, a conseqüente publicação de seu Boletim, a disseminação de
encontros e seminários, como os ocorridos em 1994, 1995 e 1996,
respectivamente, no Rio de Janeiro, São Paulo/Londrina e Campinas. É
significativo, avaliam as especialistas, o incremento da produção científico-
intelectual do campo no mesmo período (apud AMADO; FERREIRA, 2001, p.
IX-X).

No Rio Grande do Sul, a Universidade do Vale do Rio dos Sinos possui,


junto ao Programa de Pós-Graduação em História, o Núcleo de História Oral,
promotor de encontros regionais regulares. Embora vinculados ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Cogo (1998) e Gomes (2001) têm
produzido resultados de pesquisa qualitativa, notadamente sobre audiência
televisiva, com emprego de metodologia da história oral e história de vida. Junto à
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, recentemente, grupo de
67

pesquisadores da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação realizou um


estudo que examinou a chegada da televisão a cabo em Porto Alegre, utilizando
como uma das técnicas do elenco metodológico as histórias de família e histórias
de vida (CAPARELLI, 1998). Junto à mesma instituição, especificamente dentro
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação, Grisa defendeu,
em 1999, a dissertação de mestrado intitulada Os Sentidos Culturais da Escuta:
Rádio e Audiência Popular, na qual utiliza metodologia da história oral e de vida
para estabelecimento dos sentidos e significações da escuta, entre mulheres de
classes populares, sintonizadas no programa de Sergio Zambiasi, da Rádio
Farroupilha AM, de Porto Alegre, sob a ótica da metodologia qualitativa
estabelecida pelo mexicano Jesús Galindo Cáceres (GRISA, 2003).

3.2 HISTÓRIA ORAL COMO METODOLOGIA E TÉCNICA DE PESQUISA

A história oral como caminho, como método para chegar a um fim, a uma
finalidade, em processo de conhecimento, inicialmente, surgiu como possibilidade
de trabalho durante o desenvolvimento do “Projeto Vox”, embrião da atual
pesquisa, como já referimos, anteriormente.

Entretanto, é dentro do contexto dos seminários do Programa de Pós-


Graduação em Comunicação Social, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos -
Unisinos, principalmente, pelo trabalho coletivo garantido pelo corpo docente e
pelo corpo de alunos-candidatos, com seus diferentes projetos de pesquisa em
construção, quando a história oral constitui-se em proposta de trabalho
fundamental, quer seja para a constituição do corpus da pesquisa, quer seja como
alternativa para construção das interpelações e eventuais respostas sobre a Rádio
Continental pesquisada. Os estudos e os debates, ali instituídos, oportunizaram
um encaminhamento para melhor aproximação com as teorias, as experiências e
as diferentes técnicas da história oral. Igualmente, a partir das necessidades, ali
constatadas, buscamos interlocução, durante 2001, com o Núcleo de História Oral
do Programa de Pós-Graduação em História, na Unisinos, possibilitado por
68

entrevistas com a professora-doutora Ieda Gutfreind. Esta interlocução auxiliou na


organização e método de trabalho para realização das entrevistas de pesquisa
norteadas pela história oral.

Iniciamos o processo de trabalho moldando um acervo de vozes de


entrevistados para, depois, concluir com as interpretações, valendo-nos sempre da
história oral como método para poder contar uma história da emissora pesquisada.
A história oral proporcionou programa organizativo de uma série de operações
para realização de um fim, isto é, a construção de uma história, academicamente
constituída, da Continental.

Atualmente, diferentes especialistas apontam o crescente interesse pelo


emprego das metodologias e técnicas da história oral, a partir de questão centrada
na oralidade humana, como voga interdisciplinar, com interesses de fronteiras
para diferentes tipos de saberes acadêmicos, para integrantes de diferentes grupos,
sejam de antropólogos, de historiadores, de psicólogos ou de pesquisadores do
campo da comunicação social. No entendimento de Aceves Lozano (1994, p.
143), abordar o fenômeno da oralidade é sinônimo de aproximação contundente
de um aspecto central importantíssimo da vida dos seres humanos. Para o Autor,
esta atitude significa entrar em contato central com “o processo de comunicação, o
desenvolvimento da linguagem, a criação de uma parte muito importante da
cultura e da esfera simbólica humanas”.

Assim, se a história oral tem garantido, notadamente, espaço nas práticas


da antropologia, enquanto tendência de recurso centrada na oralidade, esta se
desloca, na atualidade, como metodologia e técnica de largo emprego para as
ciências sociais, em geral, e não raramente em projetos de pesquisa movidos por
interesses e necessidades de espectros interdisciplinares, tal qual ocorre com o
presente projeto.

Becker (1999, p. 108), em conhecida obra sobre métodos de pesquisa em


ciências sociais, ao abordar as interações de pesquisadores entrevistadores e
entrevistados, aponta o emprego de questionários e técnicas de história de vida
como soluções científicas adequadas para dilemas de conhecimento na pesquisa.
69

E, assim, uma história de vida, ainda que ele ressalte não ser o único tipo de
informação que possa garantir a tarefa, “propicia uma base sobre a qual
pressuposições podem ser feitas de modo realista, como uma aproximação, grosso
modo, da direção na qual se encontra a verdade”.

Becker (1999, p. 109) distingue, entre as contribuições distintas que a


história de vida e a história oral são capazes de dar, e aponta uma como
fundamental. “A história de vida, mais do que qualquer outra técnica, exceto,
talvez, a observação participante, pode dar um sentido à superexplorada noção de
processo”.

Para maior resolução do processo, pesquisamos e adotamos uma tipologia


proposta por Aceves Lozano (1994, p. 45-50) quanto às práticas e estilos da
história oral. Segundo aquele pesquisador, tomando como ponto de observação a
realidade mexicana que, segundo ele, é fortemente influenciada pelas experiências
norte-americanas e européias, existem duas grandes modalidades ou estilos de
ação quanto ao empreendimento da história oral em projetos de pesquisa.

Para Aceves Lozano, a produção bibliográfica recente permite distinguir e


contrastar, de modo amplo e não definitivo, dois estilos primordiais, inicialmente,
dedicados a uma tarefa central, que é a constituição de arquivos de fontes orais.

Embora norteados pelo mesmo foco na ação central arquivística, os dois


estilos ou práticas indicadas utilizam os arquivos constituídos, os acervos
originais de modos diferentes. Aceves Lozano denomina o primeiro estilo de
faceta técnica, e o segundo de faceta metódica. O Autor, ainda, subdivide cada
um dos dois estilos em duas novas modalidades.

Em resumo, dessa forma, temos a faceta técnica subdividida em duas


variantes, denominadas: 1) arquivísitica-documentalista; 2) difusor populista. E
no outro núcleo, temos, na faceta metódica: 1) reducionista e 2) analista
completo.

Na configuração de Aceves Lozano, as variantes da faceta técnica têm


uma configuração fortemente empiricista. “Pragmática por princípio, limita-se a
executar corretamente a técnica sem maiores pretensões científicas ou
70

acadêmicas, com uma relativa e às vezes evidente rejeição às posturas teóricas”,


conforme indica Aceves Lozano.

Já as práticas e estilos de pesquisa em história oral configuradas dentro da


faceta metódica tendem a adotar, ao contrário, componentes da reflexão teórica e
demonstram interesses explícitos pela gama de conceitualização e abstração. Para
Lozano, “a essa postura interessa desenvolver reflexões sobre o método de
pesquisa adotado e não só executar regras ou receitas de procedimento”. A
presente pesquisa, ao filiar-se dentro do campo da pesquisa qualitativa, estruturou-
se orientada pelas duas vertentes oriundas da faceta metódica.

O estilo arquivista-documentalista cultiva a história oral, sobretudo, como


ação destinada a criar, a organizar arquivos de documentos procedentes de
entrevistas gravadas, transcritas, para atualização possível e futura de
historiadores, analistas, pesquisadores interessados na análise qualitativa do
acervo estruturado. Embora atividade sistemática, o estilo de ação destina-se,
sobretudo, à oferta de matéria-prima com perspectivas mais amplas para pesquisas
futuras.

Já o estilo difusor populista é aquele que torna instrumental a ação de


historiador oral a serviço dos setores explorados e/ou excluídos socialmente. No
dizer de Aceves Lozano (1994), a história oral é para eles “o instrumento e a
resposta mais acabada que os intelectuais da história podem oferecer aos setores
historicamente explorados”. O objetivo do trabalho, então, organiza-se para
conseguir alguma forma de atuação sobre a realidade social injusta. “Quando
muito, esse técnico sistematiza, ordena, expõe e narra os acontecimentos, sem
variar a lógica de exposição nem os torneios de frases próprios dos depoimentos.
É o rigor da fidelidade por princípio”. Conforme Aceves Lozano, a pressa e a
obsessão em oferecer o depoimento oral impede este estilo de pesquisa de atingir
patamar mais elevado, com reflexão e tarefa teórica própria, transformando o
historiador oral em historiador social, reduzido à condição de compilador, ainda
que interessado.
71

Localizado no quadrante da faceta metódica, o estilo reducionista concebe


a história oral como instrumento teórico de apoio. Esse estilo de pesquisa não
atribui, integralmente, valor nem evidência à oralidade em si mesma. O oral, para
esta gama de pesquisadores, surge mais como complemento para comprovação
fatual ou ilustrativa, espécie de testemunhal, com todo o conjunto reconstituído a
serviço do postulado teórico estabelecido a priori. Embora reducionista, este estilo
é utilizado com freqüência, ao recorrer à evidência oral como modo de expressar
teorias e idéias estruturadas em outro contexto, diferente daquele onde nasce a
história oral original. Segundo Aceves Lozano (1994), neste estilo de pesquisa, “a
demonstração de um argumento teórico constitui em si a justificação da existência
ou inexistência das fontes orais”. E, com isto, reduzindo, drasticamente, a
possibilidade de criação de uma história oral, propriamente dita, como ação
concreta de pesquisa.

Ultrapassado a primeira instância, representada pela prática arquivista-


documentalista da faceta técnica, no desenvolvimento do presente projeto de
pesquisa, o objetivo de conseguir ultrapassar as limitações acarretadas pela prática
reducionista da faceta metódica significou enorme demanda de superação da
práxis científica do pesquisador, num amplo esforço cujos resultados constatados
são, entretanto, parciais.

De qualquer modo, tanto quanto foi possível estabelecer, o presente


projeto buscou superar o modelo populista, tanto quanto os demais redutores,
como aquele que lança o pesquisador na condição de mero arquivista, ainda que
de depoimentos orais significativas, originais e importantes para uma história
social.

Nossa orientação metodológica, pois, aqui, vai ao encontro, mais uma vez,
pelo estabelecido por Aceves Lozano, quando este bem define o processo de
trabalho daquilo que denomina estilo do analista completo dos historiadores orais
(sejam estes antropólogos, sociólogos, historiadores profissionais etc). Segundo
Aceves Lozano, estes pesquisadores

[...] consideram a fonte oral em si mesma e não só como mero


apoio factual ou de ilustração qualitativa. Na prática, eles
72

colhem, ordenam, sistematizam e criticam o processo de


produção da fonte. Analisam, interpretam e situam
historicamente os depoimentos e as evidências orais (1994).

Como parte do processo de trabalho, o analista completo utiliza outras


fontes tradicionais do trabalho historiográfico como complemento para as
entrevistas, relatos e recuperação das fontes orais. Tampouco, deve limitar-se à
utilização de uma única técnica ou a um único método. As possibilidades de
aberturas para o diálogo estão, igualmente, no fazer uso de interações
epistemológicas, trocas e importações pertinentes no contato com diferentes
disciplinas. Cabe ao estilo aqui delineado considerar a evidência oral como fonte
importante, fundamental, e, ainda, como um meio entre outros para a constituição
da história humana centrada naquele grupo ou classe onde a oralidade está
construída como valor cultural, social e simbólico. Assim, o trabalho do
pesquisador torna-se um construir entre meios, através e com a oralidade, ao
mesmo tempo valorizada, recortada e interpelada, enquanto aspecto dotado de
valor como elevado documento humano, no tempo e no espaço da nossa sociedade
atual.

Conclusivamente, Aceves Lozano afirma que esta postura, justamente


denominada estilo do analista completo, conjuga e combina

[...] acertos e propostas dos diferentes estilos examinados,


sustenta que a versão da história da sociedade que se constrói é
tão válida quanto aquela que deriva da consulta de fontes
documentais como arquivos e registros fiscais ou policiais, por
exemplo (1994, p. 21).

A qualidade da prática de pesquisa está na decisão de assegurar ao


processo o mesmo critério de busca por evidências orais como em qualquer outro
recurso tradicional obtido dentro do procedimento historiográfico. Este nível de
controle crítico empreendemos nas entrevistas e buscas documentais, embora a
pesquisa partisse sempre do pressuposto de existência da boa-fé como norma do
procedimento investigativo, da situação das entrevistas e da interação das falas
entre o pesquisador-entrevistador e os entrevistados.
73

3.3 A HISTÓRIA ORAL NA PRESENTE PESQUISA E A ENTREVISTA-


RELATO COMO UMA CONSTRUÇÃO

O estilo ou prática de ação da pesquisa, objetivado como desenvolvimento,


dentro do modelo metódico do analista completo, na presente tese, busca
articular-se com uma possível teoria do mosaico. Esta teoria, fundamentalmente,
visa a uma ordenação e a uma iluminação do processo geral de entrevistas-relatos,
como veremos a seguir. O mosaico, também, aparece como forma para o texto
final da história das peripécias.

A perspectiva de uma possível teoria do mosaico, transportada para a


circunstância deste nosso projeto, relacionável ao emprego da história oral e à
articulação desta com as entrevistas-relatos, surgiu com uma leitura nossa de
estudos empreendidos por Becker (1999, p. 122).

Nos estudos focalizados, Becker analisa a tradição da Escola de Chicago,


especificamente os estudos de sociologia urbana, onde o interacionismo simbólico
contempla os estudos locais e a perspectiva do conceito-valor de comunidade.
Becker refere, em específico, a pesquisa desenvolvida por Park e equipe, que
relaciona a perspectiva de cidade em abstrato, aproximando a abstração com a
Chicago real, enquanto objeto de conhecimento. É neste contexto que Becker
refere uma teoria do mosaico, na qual a construção de um pequeno fragmento
próprio contribui para a compreensão do todo:

A imagem do mosaico é útil para pensarmos sobre este tipo de


empreendimento científico. Cada peça acrescentada num
mosaico contribui um pouco para nossa compreensão do quadro
como um todo. Quando muitas pessoas já foram colocadas,
podemos ver, mais ou menos claramente, os objetos e as
pessoas que estão no quadro, e sua relação uns com os
outros.Diferentes fragmentos contribuem diferentemente para
nossa compreensão [...] Nenhuma das peças tem um função
maior a cumprir, se não tivermos a sua contribuição, há ainda
outras maneiras para chegarmos a compreensão do todo (1999,
p. 104-105).

Além de ressaltar que aquele estudo sobre a Chicago dos anos 1920
possuía elevado sabor etnográfico, Becker refere, ainda, outros aspectos que nos
74

interessam mais: “a pesquisa levava em consideração as peculiaridades locais,


explorando aquelas coisas que eram distintamente verdadeiras”. E, assim
procedendo, os pesquisadores, liderados por Park,

completaram parcialmente um mosaico de grande complexidade


e detalhe, com a própria cidade como tema, um “caso” que
poderia ser empregado para testar uma grande variedade de
teorias, e no qual as interconexões de um sem-número de
fenômenos não relacionados podem ser avaliadas, ainda que de
modo imperfeito (1999, p. 105).

Este mosaico montado onde estabelecemos interconexões entre as partes e


o todo, mesmo que de modo imperfeito, carreamos como concepção para o
exercício de construção de uma história da Rádio Continental, onde as diferentes
entrevistas-relatos, associadas às demais narrativas coligidas, costuram e
constroem o todo final pela escritura do Autor-pesquisador.

Em nossa pesquisa, a resultante do mosaico urdido está no final do texto.


Dito de outro modo, as características históricas do modelo radiofônico-
radialístico da Rádio Continental são apresentadas, sistematizadas e encontram-se
narradas no último capítulo da presente tese. Para tanto, é fundamental, ainda,
outro conceito aplicado. Trata-se da idéia de contrabiografias desenvolvida por
Poirier (1983, p. 64).

A idéia de contrabiografia, preciosa para a presente pesquisa, parte da


realidade das entrevistas, onde se realiza, por assim dizer, dada biografia a muitas
vozes. Ali, a imagem que o sujeito tem de si próprio, bem como o depoimento
deste sujeito sobre fato ou fenômeno, tornam-se dignos de pluralidade de vozes e
de pontos de observação pelo conjunto de sujeitos depoentes. Isto é, cada
narrativa pode ser configurada num contexto de contraplano e contra-
argumentação, tornando-se, muitas vezes, ponto de partida para novos
aprofundamentos ou, até mesmo, simples elucidações sobre fatos importantes ou
pontuais. O aspecto contra, que não necessariamente é mero ponto de vista
contrário, em oposição, “do contra”, serve, na realidade, como estratégia ou modo
fundamental para se chegar ao ponto de saturação, estágio importante sobre algo
que se quisera conhecer até ali. Em termos teóricos, na tese, encontramos
75

guarnição, para articulação da contrabiografia já na dialética aristotélica e, mais


recentemente, em Bakhtin (1986, p. 146), quando este sustenta a “recepção ativa
do discurso do outrem”. A contrabiografia problematiza, na prática, a hipótese
bakhtiniana da heteroglossia, isto é, a existência de discursos rivais no texto.

Outra importante orientação ordenadora das ações de pesquisa e do


emprego da história oral, sobretudo como pólo de interpelação das práticas de
entrevistas, encontramos em historiadores como Ginzburg e Darnton. Destes
historiadores, recortamos a idéia, o movimento, a construção em conceito de uma
história a partir do fenômeno do rastro. Estes dois historiadores ensejam, na
verdade, uma dada teorização da pesquisa histórica a partir de indícios. Nós,
então, fizemos operar as ocorrências de rastros e de indícios, desde a concepção
temática, a preparação da lista de entrevistados, a prioridade dos questionamentos,
até a prática e desenvolvimento das entrevistas, propriamente ditas, com a
focalização dos principais dilemas, suas lacunas e incertezas.

A possibilidade de oferta de uma teoria dos indícios, traz-nos Ginzburg


(1997, p. 148-152) e surge com uma perspectiva ontológica, quando o historiador
busca, em modelos epistemológicos, tanto longínquos quanto modernos, os
pressupostos da suspeição e da dúvida, quando não científicas, pelo menos
metódicas, curiosas, interessadas.

Neste diapasão, Ginzburg destaca tanto o modelo hipocrático da dúvida,


mais distante no tempo e na história, como também o paradigma freudiano, este já
mais recente e fundante da modernidade atual, como sabemos. Ginzburg indica
que o foco na suspeição e a busca de indícios particulares terminam por acarretar
a possibilidade de um conhecimento qualitativo, designativo próprio das ciências
humanas contemporâneas.

O Autor vai mais além, quando refere o rigor elástico para designar o
qualitativo do paradigma indicial. A concepção do indicado rigor elástico está
relacionada com a idéia de contra-sentido. Darnton (1986, p. XVII), que propõe,
igualmente, uma dada teoria dos indícios, sugerindo, sempre, ir “apressando o
passo sempre que tropeçar numa surpresa”, refere a necessidade de abrir-se um
caminho através de um universo mental estranho.
76

Ginzburg não deixa de interpelar, significativamente, quanto ao rigor,


sequer possível, de um dado paradigma indicial. Ele refere aquilo que denomina
de desagradável dilema das ciências humanas. Isto é, ou assumem um status
científico débil, para chegar a resultados relevantes, ou assumem um status
cientifico forte, para chegar a resultados de escassa relevância. Depois de referir
que, no século XX, somente a Lingüística logrou fugir do desígnio do dilema,
sem, contudo, fazer chegar a conquista até outros campos do saber científico,
Ginzburg volta-se, novamente, para a interpelação do rigor.

A questão, para ele, está em sequer sabermos se é, realmente, desejável


este tipo de rigor, tal qual defende a ciência antropocêntrica e quantitativa. O
Autor pergunta-se: será desejável este tipo de rigor para as formas de saber mais
interligadas às experiências do cotidiano? E conclui, com mais precisão, dizendo
que a dúvida recai sobre aquelas formas de saber do cotidiano e sobre todas as
situações nas quais a unicidade, vale dizer, a particularidade dos dados e a
impossibilidade de substituição dos mesmos parecem algo inquestionável para
aqueles envolvidos na experiência.

Por fim, diante da interpelação quanto à possibilidade de rigor de um


paradigma indicial, qualitativo, Ginzburg lança mão de um termo que aponta com
relutância. Isto é, revela o receio por pisar em “campo minado” quando aponta
para a necessidade de articulação e uso da intuição. Com escrúpulo, indica que se
a pretendemos usar, devemos fazê-lo como sinônimo de “recapitulación fulmínea
de procesos racionales” (GINZBURG, 1997, p. 164). E, para tanto, devemos
distinguir uma intuição baixa de outra alta.

A sugestão está em deter-se na intuição baixa, radicada nos sentidos


humanos, mas capacitada para superá-los, ultrapassando os mesmos sentidos da
empiria. Ginzburg a compara com a “firãsa”: uma noção complexa, que
designava a capacidade de passar de modo imediato do conhecido para o
desconhecido, através da observação dos indícios. Termo amplamente usado pela
antiga fisionomística árabe, esta palavra retirada do vocabulário dos sufíes, usava-
se tanto para designar as intuições místicas como as diferentes formas humanas de
sagacidade, a “firãsa no es outra cosa que el órgano del saber indicial”, conforme
77

o Autor. Para ele, esta intuição vincula, estreitamente, o animal homem com as
demais espécies animais e está, enquanto forma de conhecimento, muito longe de
qualquer forma superior, não sendo, pois, sinônimo de domínio ou privilégio de
poucos elegidos.

Cabe ao paradigma indicial buscar as minúsculas singularidades como


rastros, mas sem perder-se, sem abandonar a idéia de busca da totalidade.

Ao contrário: a existência de um nexo profundo, que explica os


fenômenos superficiais, deve ser recalcada no momento mesmo
em que se afirma que um conhecimento direto deste nexo não
resulta possível. Se a realidade é impenetrável, existem zonas
privilegiadas – provas, indícios – que permitem decifrá-la
(GINZBURG, 1997, p. 162).

Esta é a idéia que constitui, segundo o Autor, a medula do paradigma


indicial ou sintomático. É esta a orientação que empreendemos à pesquisa,
articulando-a ao conceito operado de contrabiografias.

Neste sentido, a presente pesquisa busca a articulação possível entre a


identificação do contra-sentido, oportunizada pelo corpus, pelo conjunto de
contrabiografias, sendo este um caminho, uma realização da pesquisa dos
indícios, que são identificados através do processo reflexivo e prático de
construção das entrevistas-relatos.

As entrevistas-relatos, na tese, ensejaram a própria operacionalização da


história oral temática, isto é, a estruturação da história oral temática da Rádio
Continental. Estas entrevistas, fundamentalmente, deram formato ao corpus e
integraram, na organização da pesquisa, o elenco de atividades que possibilitou a
coleta de dados. É junto ao corpo vivo da história narrada pelos sujeitos que
fizeram a Continental que trabalhamos. Se a fonte oral, no projeto, garantiu-nos o
volume de informação, coube ao corpus estabelecido sofrer, merecer os
questionamentos e reflexões de pesquisa. Este corpus sistematizado, pré e pós-
observado, deu origem às perguntas para a hipótese de análise, apresentada no
ultimo capítulo desta tese, focalizada sobre o protagonismo e o modelo midiático
e radiofônico da emissora pesquisada.
CAPÍTULO 4: A ENTREVISTA APLICADA E A REFLEXIVIDADE

Não é tranqüilo nem de fácil resolução o conjunto de questionamentos em


torno da história oral. Como foi possível investigarmos, a contar do próprio
conceito, passando pelas diferentes instâncias de embate, entre estas aquela
quanto à justificativa de validação, o elenco de problematizações engloba desde
quesitos da logística até a instância teórica e metodológica.

Entre os diferentes questionamentos que assolam o emprego da história


oral, como técnica e método nos diferentes projetos de pesquisa, estruturados por
pesquisadores de diferentes formações, surge, freqüentemente, um conjunto de
indagações sobre a prática da entrevista. Isto também ocorreu com o nosso projeto
de pesquisa. E, dada esta natureza própria de organização, os questionamentos
sobre a entrevista merecem, aqui, capítulo à parte, com estudos, equacionamentos
e limitações erguidas, conforme passamos a apresentar, a seguir. Julgamos
oportuno distinguir aqueles dilemas específicos, centrados na realização das
entrevistas, muito embora estejam estes relacionados com o plano geral do
emprego da história oral no projeto.

4.1 NOÇÕES E ESTUDOS SOBRE AS ENTREVISTAS NA PESQUISA

Ao término da jornada de existência histórica de uma emissora, ao


concluir-se um ciclo daquela existência, mesmo que nada, por inteiro, resultasse
79

gravado, nenhuma linha escrita ou documentada restasse estruturada, ainda assim


restaria, individual e coletivamente, fragmentos da memória social. É esta, na
origem, a hipótese de trabalho que escolhemos. A Continental, mesmo que nada
houvesse restado, ainda assim, existiriam os sujeitos da história, aqueles que
fizeram a rádio, os sujeitos das entrevistas que dariam, e, de fato, deram, origem à
história oral temática sobre a Rádio Continental.

É a possibilidade da construção desta história temática, fragmentada, que é


oportunizada pela técnica e emprego de entrevistas. Estas são, inicialmente, fontes
orais de informação. A seguir, possibilitam o corpus para a reflexão, quando
oferecemos uma narrativa de tese estruturada, coesa e coerente, que busca
justificar-se academicamente e que, desejosamente, seja uma pesquisa
contribuinte para o desenvolvimento do conjunto de estudos sobre a comunicação
social.

Na tese, as entrevistas foram erguidas no direcionamento pela constituição


e estruturação, para análise, desta história oral fragmentada, mas ocorrente e
possibilitadora do todo, formadora de um conjunto histórico narrável sobre a
Continental.

O trabalho estava em dar corpo, narrar, historicizar a aventura coletiva e


humana da Rádio Continental. Assim, a tese identificou, no corpo lacunar social
geral, a história e a memória coletiva sobre a Continental, aquilo que se pôde
identificar como um problema de conhecimento recortado para estudo.

E foi justamente este caráter de estudo sobre um conjunto de fragmentos


que pôde, potencialmente, encaminhar, ao mesmo tempo, um tipo de resolução
para a lacuna de conhecimento e um modo próprio, de processualidade própria, de
pesquisa e metodologia de abordagem do ainda, então, desconhecido. Em nosso
caso específico, uma história crítica da Rádio Continental, com emprego da
metodologia advinda da história oral, a partir das entrevistas.

Dentro deste contexto, o aparato metodológico nutriu-se de aspectos


relevantes da história oral, e a história somente pôde deixar-se capturar através da
práxis técnica e processual das entrevistas, a maior parte delas, face a face. Foi,
80

assim, através das falas das entrevistas que se pôde descortinar, trazer à tona, as
lembranças remotas, os silêncios, as zonas de sombra, o ainda não-dito.

Dito de outra maneira, a pesquisa nasceu da necessidade primordial de


contar uma história sobre um meio produtor sob reprodutibilidade técnica do som,
cujo protagonismo maior teve lugar no passado recente. Na realização da
pesquisa, utilizamos a história oral como fonte de dispositivos, além e aquém
máquinas, para dar ouvidos às diferentes narrativas e aos diferentes modos de
expressão para reconstituição da existência da Rádio.

A história da Continental, relato orgânico sobre conjunto de ações e


narrativas, sobre “cenas e sons perdidos” no tempo, somente pôde deixar-se
capturar a partir e através da práxis processual das entrevistas. Através das falas
recuperadas pelas entrevistas se descortinaram, vieram à tona, as lembranças
remotas, os silêncios, os rituais, os traumas, as zonas de sombra e de luz, o ainda
não-dito, o já-sabido e o fragmento consagrado pela memória individual. Foi a
partir desta configuração que se pôde examinar os relatos construídos, as
expressões narradas da memória individual e coletiva, oportunizando, na tese, a
consolidação das peripécias da Continental como um texto final sobre dada
memória comum (POLLAK, 1989) social dos seus protagonistas, então, jovens
urbanos, em Porto Alegre.

Na tese, as entrevistas estão a serviço de uma busca pela exteriorização


deste conjunto disforme da memória que passa a revelar o não-sabido, o não-
instituído. Logo, elementos advindos da memória subterrânea afloraram como
subsídios para organização da memória enquadrada, no sentido de garantir, para o
texto final da tese, aquilo que pretendíamos como expressão da memória comum
sobre a Rádio.

É necessária uma reflexão, aqui, sobre esta nova associação entre técnica
de entrevista, memória e história oral. Mesmo considerando-se como verdadeira a
afirmação que indica que a conversação é o modelo comunicacional, por
excelência, servindo esta, até como metáfora exemplar, indicativa, para expressar
o objeto de toda a comunicação social, verificamos como problemática esta
81

idealização da entrevista, sobretudo, dentro do universo das práticas midiáticas


comunicacionais e, mesmo, científicas de pesquisa.

A entrevista move-se com fins específicos, é ação dirigida, não raro


apresenta-se hierarquizada, por vezes invasiva, em outras mostra caráter
imperativo, positivista e até mesmo coisificante do outro, do interlocutor.
Transcorre sob limitação preestabelecida de tempo e, sobretudo, sob uma lógica
de produção racional específica que delimita o espaço, a ambiência, a
intencionalidade da entrevista. A prática do jornalismo, em muitas oportunidades,
apresenta esta espécie de deturpação do modelo dialogal-interacional mais
qualificado. Mas não apenas o jornalismo acusa a coisificação atuante como valor,
justo ali, onde deveria estar a liberdade para o diálogo entre seres diferentes,
tornados semelhantes, e idênticos, em direitos nas falas, na autoconstrução de
verdades.

Entretanto, estes atributos em desvio, para a prática de entrevistas,


podemos constatar, cotidianamente, com mais freqüência, nas realizações
midiáticas do que, propriamente, dentro dos escopos da pesquisa social. Como
contrabalanço, como fator redutor dos efeitos positivistas e, excessivamente
pragmáticos, instrumentalizantes, oriundos das técnicas de entrevistas jornalísticas
de vulgarização da informação, buscamos refúgio na práxis de entrevista reflexiva
retirada da história oral e de vida, na práxis da presente tese.

Assim, a história oral, enquanto teorização e metodologia, na tese, passou


a possibilitar perspectivas de interlocução, de escuta e de fala, individual e social.
Iniciamos pela concepção de diferenciação do sujeito e, em conseqüência, com a
prática de interlocução e interação social pelo conhecimento do sujeito através da
entrevista, segundo o viés da história oral.

Com isto, “é possível pensar que aquilo que está em jogo é a construção da
Continental como um sujeito da tua pesquisa”, conforme sugestão de Gutfreind,
em entrevista para o Autor, ainda no desenrolar desta pesquisa.

Este deslocamento da Continental da condição de objeto para a situação de


sujeito da pesquisa provocou novas interpelações dentro da processualidade da
82

pesquisa e significou maior protagonismo nas falas dos sujeitos concretos,


mulheres e homens, que fizeram a Continental, e, agora, a refaziam através de
suas narrativas, suas falas.

Diante destas oportunidades, podemos inferir, então, que elevar o objeto


de pesquisa à condição de sujeito não significava sinônimo de condicionar o
pesquisador a uma pretensa posição ou condição neutral dentro de todo o
processo. Significou, igualmente, que, na situação de entrevistas orais, o
pesquisador não devia funcionar como uma espécie de “todo-ouvidos”, mero
receptador de informações e declarações pessoais, algo como receptáculo, ou um
“tipo humano” de gravador.

A lógica preponderante na realização das entrevistas foi a da interação


social, comunicacional, estabelecida livremente entre sujeitos ativos, com fins de
estabelecimento e apropriação de conhecimento humano e coletivo. Em nosso
caso específico, em busca da história temática sobre a Continental, seu fazer
radiofônico, sua ação real, social e cultural, em fenômenos recuperados em
narrativa pela entrevista oral.

Se o uso de entrevistas e de testemunhos orais possibilitou uma história


oral da Continental, esclarecendo episódios, relatando trajetos, eventos e
processos, individuais e coletivos, fenômenos que, de outro modo, não seriam
apresentados, elucidados, revelados, trazidos para o corpo da pesquisa e do relato
de estudo; de outra parte, esta prática acarretou, sempre, um conjunto de amplas
dificuldades. Amado e Ferreira (1996, p. 14), inspiradas em Mikka, fazem um
importante delineamento:

O testemunho oral representa o núcleo da investigação, nunca


sua parte acessória; isso obriga o historiador a levar em conta
perspectivas nem sempre presentes em outros trabalhos
históricos, como, por exemplo, as relações entre escrita e
oralidade, memória e história ou tradição oral e história.

Para nosso trabalho, a história temática da Continental surge depreendida


da oralidade, das entrevistas, da reconstrução da memória transformada em
escrita. O fio condutor da história oral é o conjunto de entrevistas. Em nosso caso
83

específico, além das problematizações destacadas, deve-se adicionar o


componente comunicacional-midiático em si, fator de tensionamento,
interferências e interfaces inéditas com os fatores já nomeados, como a memória,
por exemplo. Em suma, o que sublinhamos é que a oralidade que buscamos, a
história oral construída mostrou-se informada, tocada, quando não transformada,
pela midiatização imperante. A comunidade pesquisada mostrou-se, com
vantagens e com desvantagens para a prática da pesquisa, conforme intuíamos e,
depois, comprovamos, como uma comunidade radiofônica, de sujeitos que
dominam, em diferentes níveis, técnicas de comunicação. Uma exemplificação
deste fenômeno transpareceu durante as gravações, quando do uso de gravador
para as entrevistas, conforme detalhamos no último subloco do presente capítulo.

Diante dos dados de realidade e defrontando-nos com diferentes


dificuldades práticas para as entrevistas, novamente, valemo-nos da literatura e da
experiência com pesquisa sobre história oral. O texto é algo prescritivo, longo,
mas de importância clínica, ao referir que

Em regra, o entrevistador deve, antes de mais nada, saber ficar


em silêncio, aprender a ouvir sem a prioris [...]. Deve adaptar-se
à psicologia da testemunha, respeitá-la, estar disposto a tomar
pacientemente a conversa, suscitar a recordação através de um
questionamento discreto se a testemunha for pouco loquaz,
orientá-la sem precipitação, não a impedindo de perder-se em
digressões, caso ela o seja em demasia, repetir em voz alta as
suas palavras se estas não forem claramente audíveis, procurar
não falar ao mesmo tempo que ela, não insistir quando (esta)
evita uma recordação dolorosa, não se precipitar em perguntar
de novo porque as recordações precisam às vezes de um tempo
para vir à tona, repetir a mesma pergunta de diferentes maneiras
para tentar vencer resistências [...] As opções serão guiadas pela
maior ou menor capacidade da testemunha para exprimir-se
com clareza e precisão (TOURTIER-BONAZZI, 1991, p. 182).

As técnicas de entrevistas e de depoimentos orais tiveram emprego e


interessavam, também, aos diversos níveis de resolução e de equacionamento do
processo geral. O emprego das técnicas de entrevistas ocorreu em nível empírico,
mas esteve sempre relacionado com a oportunidade e a profundidade da reflexão
empreendida na tese.
84

Marre defende o não-dirigismo, a prática não-diretiva da entrevista e do


diálogo de história oral e de vida, dentro de um contexto qualitativo de construção
do conhecimento, em busca de relatos, por inteiro, integrais, completos das fontes,
que serão, necessariamente, analisadas como coletivo (grupo social primário, a
unidade básica de pesquisa). Para tanto, sugere que o posicionamento do
entrevistador na relação com o entrevistado deva caracterizar-se por atributos,
quatro destes fundamentais.

A primeira característica é o direito à palavra que o entrevistado tem.


Aqui, Marre refere o fato de o objeto, nas ciências sociais, ser o sujeito humano,
pensante. E destaca, com Bertaux (apud MARRE, 1991, p. 115), que “se uma
oportunidade de falar livremente lhes é dada, as pessoas revelam que sabem
bastante a respeito do assunto do qual se trata na entrevista”.

A segunda característica aponta para o que denomina microrrelação,


estabelecida entre pesquisador e pesquisado, que é de “igualdade substancial, uma
interação onde “Ninguém deseja subordinar o outro a seu próprio discurso. Há um
sentimento e um interesse autêntico de criar entre os dois essa igualdade
substancial” (idem, 115-116), que favorece a reminiscência dos comportamentos,
possibilita driblar as versões oficiais e as imagens auto-instituídas que a sociedade
atribui a si mesma.

A terceira característica aponta para a empatia, colocada no lugar da


neutralidade do pesquisador, dotado de atenção aos “diversos níveis da
verbalização em ato e toda a riqueza da experiência humana”. Não se trata,
apenas, de uma simpatia, mas de um vivenciar, trata-se “de uma disposição
interna e ativa do pesquisador para acompanhar, de um modo ativo, crítico e
inteligente o que está sendo expresso” (BERTAUX, 1991, p. 116). O respeito
máximo ao próprio processo de verbalização permanece, num contexto onde tudo
pode ser dito. A dificuldade interposta ao pesquisador, aqui, está em penetrar,
vivenciar e analisar o mundo do outro, observando, junto ao pesquisado, “seu
processo multidimensional de construção oral e não linear da verbalização da sua
própria experiência” (BERTAUX apud MARRE, 1991, p. 116).
85

A quarta característica, segundo Marre sugere, está no decorrer da coleta


da história de vida, o pesquisador corre riscos, pois, “cada interação verdadeira ou
momentos de verbalização seqüencial criam, entre pesquisador e pesquisado,
reações”. É neste espaço interacional e reativo que o entrevistador, tanto quanto o
entrevistado em auto-exposição, deve correr riscos de exposição, também, na
atuação do diálogo, no movimento de interpretação e análise.

Em nossa experiência, foi a partir das entrevistas realizadas que chegamos


à concepção indicativa que apontava para a possibilidade de construção de uma
história temática da Continental a partir da utilização de narrativas, sobretudo,
orais, mas, a partir dali, também, de modo mais ampliado, as narrativas sonoras e
escritas incorporadas pela necessidade de respostas.

No enfoque de análise do ato de entrevistar, localizamos o embate entre


duas tendências marcantes, de alta relevância para nosso projeto, por cotejar numa
tipologia, ainda que restrita, a entrevista de cunho jornalístico e aquela acionada
pelas ciências sociais. Trata-se de conhecido estudo de Morin (1973), em que o
pensador francês estabelece fronteira entre as entrevistas nas ciências sociais e
aquelas empreendidas no rádio e na televisão. Estas últimas são subdivididas,
grosso modo, em entrevistas que visam à especularização do humano e aquelas
que visam ou possibilitam à compreensão do humano. Morin sugere duas
possibilidades técnicas: a entrevista extensiva e a intensiva. O Autor apega-se,
também, à entrevista intensiva, de caráter aberto, democrático, não diretiva e
inter-humana, no sentido de garantir o diálogo como uma prática humana
fundamental.

Além da entrevista extensiva, com diálogos não-diretivos, podemos


identificar outros exemplos dialogais da tipologia estudada por Morin, no campo
do jornalismo, entre os quais destacamos: a) a “entrevista diálogo”, isto é, aquela
que ocorre de comum acordo entre entrevistado e entrevistador, buscando-se uma
resposta comum satisfatória para ambos. Aqui, a possibilidade do diálogo
instaura-se a partir da superação do fato diverso, do imediato, da conversação
comezinha; b) a “entrevista neoconfissão”, sendo este modelo aquele onde o
destaque maior é o entrevistado, em detrimento e quase apagamento do
86

entrevistado. Esta prática nasce e desenvolve-se a partir do modelo de entrevista


em profundidade advinda da psicologia social.

Resumidamente, pode-se afirmar que a prática de entrevista, em nosso


projeto de pesquisa, defronta-se, em tensão, com os limites e com as
potencialidades dos dois modelos teóricos acima apresentados. O terceiro modelo
utilizado nasce, justamente, da aposta pelo tensionamento dos dois anteriores e
está fundado, mais uma vez, na possibilidade de instalar-se o processo do diálogo,
isto é, não privilegiando tão-somente a resposta civilizadamente arquitetada, nem
o interlocutor; mas enfatizando, sobretudo, o jogo dialogal como uma construção
interlocutória, em processo.

Dentro do projeto de pesquisa, ainda, interessaram algumas teorizações


sobre a entrevista psicológica, especialmente as de orientação psicanalítica, à
medida que estas configuram e relativizam o objeto empírico, submetendo-o, a um
só tempo, às construções e às clivagens da ordem do real, do imaginário e do
simbólico. É onde o discurso, sobretudo nas entrevistas orais, surge como uma
narrativa erguida entre uma falta, uma falha e o desejo dos próprios sujeitos.

Aqui, entretanto, não se trata de uma teorização estruturada e, menos


ainda, de uma teorização aplicada, retirada de Freud e Lacan, embora, como já
enunciamos o interesse tenha se instituído, em latência e, portanto, bem ao gosto
da própria psicanálise, com intervenções relativas, de atividade indireta,
oferecendo inspiração à pesquisa, notadamente nos diálogos, onde mesmo o
silêncio do entrevistado pode figurar como uma possível pista ou rastro.

Ao tomar o diálogo como dilema de conhecimento, o filósofo Martin


Buber, ontologicamente, estabelece diferenciação entre aquelas que seriam as
lógicas dialogais de dois tipos: a lógica do propagandista e a lógica do professor.
Constatamos, no primeiro modelo, como uma lógica de imposição, de oferta e
venda, com ênfase numa artimanha e numa retórica de convencimento do outro.
Já o segundo modelo seria aquele mais propriamente dialogal, dialógico, para
fincar num termo de Buber, de maior abertura para a voz do outro. Apesar da
tendência em buscarmos aplicação deste segundo modelo, de instauração de
87

abertura para o diálogo, na prática da entrevista, Buber (1982, p. 151) ressalva que
“[...] onde quer que os homens mantenham relações entre si, uma ou outra atitude
é encontrada em maior ou menor escala”. Na prática de pesquisa, esta ressalva
funcionou como um alerta para a possibilidade de ocorrência, freqüente ou
intensa, da lógica do propagandista, para a qual prestamos atenção.

No processo, retiramos o termo editar do leito técnico do jargão


jornalístico, instabilizando o conceito para aplicação em nosso panorama de
entrevistas de pesquisa. A edição esteve na seletividade das falas e quando do
processo escritural das peripécias.

Entendemos que a prática de entrevistas, que a realização de perguntas e a


construção de depoimentos orais deviam ser e estar direcionadas para a
concretização, em ato, das narrativas objetivadas em torno da história temática da
Continental. Para tanto, as entrevistas e os diálogos objetivaram intentar e
direcionaram-se para os eixos de interesses, organizativos, voltados para: 1º) a
questão jornalística; 2º) a questão das diversas formas de entretenimento (o gênero
humorístico, por exemplo); 3º) a questão musical local, nacional, internacional;
4º) a questão auto-referencial, institucional (onde ocorre a midiatização da própria
emissora); 5º) a questão do patrocínio, da comercialização e da venda de espaços;
6º) a questão da linguagem da publicidade e propaganda; 7º) a questão política,
enquanto retórica contra-hegemônica, democratizante e oposicionista.

Estes eixos de interesses que possibilitaram as instâncias de pesquisa


foram os pontos-de-partida para as entrevistas e pólos de interpelação da Rádio
Continental enquanto objeto. Vale reafirmar, o objetivo geral das entrevistas
esteve em construir, através das falas individuais, uma ordenada, organizada,
analisada e interpretada fala coletiva, logo transcrita, representativa, sendo esta a
nossa construída história da Continental. Tem importância seminal, pois, o
conjunto de entrevistas-relato.

Em nossa tese, a entrevista busca fazer falar a memória, no processo da


história da Continental, porque, dizendo com Pontelli (1997, p. 16), “se
considerarmos a história um processo, e não um depósito de dados, podemos
88

constatar que, à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se


concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas”.

4.2 QUESTÕES SOBRE AS ENTREVISTAS NA PRÁTICA DA PESQUISA


(APRESENTAÇÃO E TIPOLOGIA DAS ENTREVISTAS)

A entrevista é a expressão de um diálogo humano objetivando fins. Em sua


base técnica operativa e em sua ancestralidade histórica, estrutura-se a partir do
diálogo humano, centrado na oralidade verbal. Isto é, diálogo, inicialmente, sem
outro suporte, além do corpo e da própria voz humana.

Pode-se dizer que a entrevista nasce de uma curiosidade humana vaga,


vasta ou específica. A curiosidade ou interesse mostra-se, sobretudo, relacional,
no qual sujeitos diferentes encontram-se em determinado contexto social e
histórico. A especificidade desta curiosidade, ou interesse, ou necessidade, pode
estar localizada num determinado problema psicológico, artístico, filosófico ou,
mais recentemente, dentro do campo midiático, comunicacional, em busca pela
informação.

Assim, a entrevista é um específico modo de interação comunicacional


com objetivos diferentes para os sujeitos dentro da história pessoal ou coletiva
contemporânea. Na origem da entrevista, esteve, está ou estará algum tipo de
problema de conhecimento e, vale dizer, algum tipo de problema de estruturação
de linguagem. Ou seja, a entrevista acarreta, igualmente, um problema de forma-
conteúdo e, ainda, outro que indica o fluxo expressão-difusão.

Desde a Antigüidade clássica, onde, por amostragem, a exemplaridade do


fenômeno pode ser lida, ainda hoje, nos diferentes textos dos Diálogos, de Platão,
até a complexidade cultural do século XX, onde a sessão psicanalítica é um
fenômeno indicativo, paradigmático, o diálogo humano é um modo próprio de
fazer cultura pela expressão da fala e pela oralidade. Se, no exemplo platônico, o
89

que está em debate, entre outras questões, é o confronto entre logos e mythos e, se
a questão freudiana tenciona o acesso ao inconsciente e ao desejo do sujeito,
ambos constituem modelos próprios de problematização da linguagem e
objetivam o melhor conhecimento. Dito de outro modo e ressalvadas as diferenças
acentuadas pelas sociedades históricas, em ambos os exemplos resplandece a
construção humana voltada para o auto-esclarecimento.

As ciências sociais, em geral, e as ciências da comunicação, em específico,


filiam-se dentro desta larga tradição de busca intensa pelo esclarecimento e pela
autoconstrução humana pelo conhecimento. A prática comunicacional massiva-
midiática e a produção de conhecimento científico, entretanto, podem fugir destas
características, localizando-se pela determinação ideológica, ou pela
sobredeterminação do mercado, como fatores ativos, internos ou externos ao
processo como agente do obscurantismo ou excessivamente centrado no
pragmatismo do lucro econômico.

O advento massivo dos meios de comunicação conseguiu acelerar a


necessidade, a procura, a curiosidade e o fenômeno da lucratividade pelo
conhecimento, agora, mesmo de ordem factual. Assim, a informação que passa a
ter valor social a partir da revolução comercial, na era das grandes navegações e
dos descobrimentos, em crescente demanda, chegará até a revolução industrial e
aos tempos pós-modernos, garantindo valor estratégico e vital para sobrevivência
do estado-nação e do cidadão, individualmente. De modo crescente e de modo,
inclusive, para alguns críticos, a problematizar o conceito de cidadania para o
sujeito e de estado-nação para os países contemporâneos, ergue-se a chamada
sociedade do conhecimento, onde a informação e os processos de industrialização
da notícias e do entretenimento assumem valores sociais e estratégicos crescentes,
sejam pela importância mercadológica, financeira, seja pela inferência ideológica
ou política.

As ciências sociais, recentemente, tratam de problematizar, pela crítica da


ciência, a questão do caráter positivo deste conhecimento, também, pela
quantificação e pelo caráter fortemente administrativo deste saber, erguendo-se
em contraposição a possibilidade de uma outra ênfase, interessada na qualidade do
90

conhecimento, no saber humano crítico e em busca da autonomia humana


contemporânea. Verifica-se, então, o limiar histórico onde a tecnociência pode
atuar fortemente como herdeira de um iluminismo humanista, transformando-se
em meio de libertação ou, pelo menos, de democratização da sociedade, ou esta
tecnociência consagra-se, globalmente, em rede, como instrumento sofisticado
para espoliação, exploração e submissão do sujeito humano das massas.

A presente tese, articulada em busca de um conhecimento qualitativo,


empreende projeto dialógico que quer comprovar e demonstrar o quanto a
experiência radiofônica da Continental contribuiu, ainda que parcial e
fragmentariamente, para a comunicação social articulada com a defesa da
autonomia humana e para a democratização da cultura porto-alegrense, então.

É justamente através de processos metodológicos qualitativos que a


ciência social possibilita, através de diferenciadas técnicas, a oportunidade de
análise e de crítica, por exemplo, dos próprios processos de interação midiáticos
massivos. É neste contexto que, em contraposição ao diálogo tornado pragmático,
sintético, objetivado, positivista, sintético ou de índole estatística, surgem
possibilidades de práxis da entrevista face a face, em profundidade, de valoração
do sujeito e das falas, com oportunidade inédita para construção de relatos de vida
(individual ou coletiva), valendo-se de recursos da história oral e de práticas de
construção de narrativas. O presente trabalho de pesquisa coloca-se, de modo
heterodoxo, dentro desta perspectiva e orientação metodológica, defrontando-se,
desde a origem até a conclusão, com a necessidade da realização de entrevistas e
da construção dos relatos, tanto quanto com o estabelecimento das diferentes
narrativas para a análise final.

Aqui, novamente, é importante retornar ao processo de entrevista como


ponto crucial da tese.

Caracterizada a entrevista como modo próprio de construção de resolução


para determinado problema de conhecimento, deteve-se a prática empírica da
pesquisa na realização das mesmas e na concomitante atuação atenta de análise
relacional dos fatos pelas falas e narrativas ali oportunamente constituídos. Mas
91

esta ênfase não foi suficiente diante das diferentes demandas e necessidades de
conhecimento do problema em foco.

Voltada, originalmente, para o estabelecimento de entrevistas face a face,


de profundidade, com articulação de recursos técnicos oportunizados pela
histórica oral, a pesquisa, na prática, necessitou, logo, ampliar e utilizar outro
repertório. A ampliação deste repertório já esteve, quando da constituição do
acervo geral de informações, sabidamente mais amplo e anterior ao específico
corpus da própria pesquisa.

A ampliação inicial esteve, primeiramente, na freqüente revisão dos


questionários de entrevista; ao mesmo tempo, configurando uma listagem maior
de questões e, posteriormente, necessitando criar questionários cada vez mais
especificados para os diferentes atores entrevistados. Naqueles momentos, a
pesquisa qualitativa deparou-se com problemas, também de ordem quantitativa,
referentes às indagações e, logo, também referentes aos dados obtidos.

O conflito qualitativo-quantitativo também abarcou o modo de acesso às


falas, alterando, substantivamente, a idéia de estabelecimento de uma história oral
original, constituída, só e exclusivamente, através de depoimentos face a face, em
profundidade.

No âmago da questão, o problema esteve sempre dentro do escopo próprio


de trabalhos localizados dentro do campo da história oral e de vida onde o relato
dos sujeitos entrevistados problematizou a própria distância temporal dos
fenômenos buscados, atualizados pela memória.

A distância no tempo, a caracterização deste como fenômeno assimétrico,


a problematização do tempo como barreira para melhor configuração da memória
social, a partir de depoimentos individuais, constituíram-se em problemas
qualitativos para estabelecimento das narrativas que, entretanto ocorreram, mesmo
exibindo lacunas, fragmentos, fraturas, mas, ainda assim, configurando e
oferecendo, materialmente, os diferentes tipos de depoimentos para a análise final.

A diáspora vivenciada pelos entrevistados, configurada, sobretudo, apenas


pelo distanciamento no tempo histórico destes, em relação aos fenômenos
92

protagonizados por eles, quando do tempo de vida da Rádio Continental,


constituiu, assim, uma dificuldade central para melhor recuperação da história das
peripécias da emissora inicialmente planejada. De fato, a distância no tempo e a
distância física do objeto determinam a constituição, necessariamente, de uma
história fragmentada, ainda que coerente.

Ocorre que esta diáspora, igualmente, desdobrou-se em termos


geográficos, logo constatada pela migração humana e profissional de inúmeros
atores, com deslocamentos residenciais e profissionais definitivos, sobretudo, para
os estados de Santa Catarina, São Paulo e Rio de Janeiro.

Os atores, distanciados no tempo histórico e distantes, igualmente, no


espaço geográfico, exigiram que as práticas de realização das entrevistas
erguessem novos formatos, redefinindo tipologias, outras ênfases, novas
realizações também devido ao necessário uso de outros suportes, além do
gravador, para a necessária concretização e materialização do jogo proposto de
perguntas e respostas, agora não somente em território local, mas também regional
e nacional.

Em resumo, grosso modo, articulamos três tipos de entrevistas, três


diferentes modalidades quanto ao acionamento de dispositivos, no caso, três
diferenciados suportes, determinando diferentes angulações para questionamentos
e diferenciação, também, quanto aos conteúdos. Assim, tivemos, os três tipos pela
entrevista presencial, a entrevista por telefone e a entrevista pelo uso da internet,
via computador. Não raro, como podemos constatar, foi necessária a articulação
de mais de um destes três diferentes modos referidos.

Evidentemente, o uso do telefone foi, desde sempre, usual e necessário,


sobretudo, para os diferentes tipos de agendamentos. Entretanto, as distâncias
tempo-espaciais determinaram imperativos de ação como, por exemplo, o de
termos a entrevista realizada, exclusivamente, utilizando-se o telefone como
suporte. O mesmo pode ser dito, aqui, para aqueles casos onde a solução esteve no
desenvolvimento prático das entrevistas através de diálogos via correio eletrônico.
93

Se o uso de telefone, como suporte inicial da conversação maior,


projetando em agenda mútua, espaço para a entrevista face a face, em
profundidade, se este uso foi uma constate, já a utilização do telefone como
suporte principal pôde ser usado quando da eventualidade de realização da
entrevista face a face não consentida. Na prática, o episódio de entrevista não
consentida, via telefone, ocorreu somente uma vez.

Já a utilização do correio eletrônico, além do acionamento óbvio inicial


para agendamento de entrevistas face a face, também guarda especificidades e
dificuldades dignas de registro na pesquisa.

O público-alvo de entrevistados, na maioria, disponibilizava tanto o uso de


telefone (fixo e móvel), quanto o referido uso de endereço no correio eletrônico.
Assim, com bastante facilidade, embora com certa operosidade, foi possível
constituirmos tanto a lista telefônica quanto a mail list dos virtuais entrevistados.
A dificuldade maior referente ao uso do correio eletrônico, na verdade, esteve
relacionado com o baixo índice de retorno efetivo de respostas, que exigiu, em
inúmeros casos, ou o reforço do questionário, via telefone, ou o abandono
definitivo daquele potencial entrevistado pela inexistência de respostas.

Em resumo, a variedade da prática de entrevistas em nossa pesquisa,


embora circunscrita, incluiu desde a entrevista inicial de abordagem (que pôde ser
presencial, ao vivo; via telefone, ou via correio eletrônico), e se realizou,
efetivamente, qualitativa e quantitativamente, através da entrevista presencial, de
profundidade, face a face. Embora incluindo, ainda, em nossa práxis, igualmente,
as entrevistas exclusivamente realizadas por telefone e via e-mail.

A pesquisa, assim, terminou por estabelecer e empreender, na prática, uma


pequena tipologia de entrevistas, assunto de carpintaria da pesquisa, onde a grande
preponderância, aliada à ênfase de considerar veraz cada depoimento obtido e de
estabelecer uma conduta de audiência ativa em cada sessão de interpelação para
construção de narrativas, esteve no uso articulado, sempre, de dois ou mais
suportes. Em resumo, para cada entrevista face a face foi necessário articular, por
vezes antes, por vezes depois, o uso do telefone e/ou e-mail, ora para o
94

agendamento, ora para a complementaridade de dados, ora em ambas as direções


da prática.

4.3 AS ENTREVISTAS-RELATO NA HISTÓRIA ORAL: LIMITAÇÕES E


DILEMAS DA PESQUISA

O conjunto de questões ou dilemas sobre o emprego das entrevistas na


construção da história oral e de vida está relacionado com problemas
epistemológicos profundos, portanto, de difícil resolução e, até mesmo, de
complexa formatação para abordagem.

Um destes questionamentos, por exemplo, nasce com autoria de Lévi-


Strauss, pois o antropólogo estruturalista advoga a limitação ou, até mesmo, a não
recomendação de uso da entrevista e da história de vida articulada como uma
impossibilidade, porque, para ele, a experiência individual não constitui,
propriamente, um objeto científico. Trata-se, na verdade, de uma conclusão
embutida em um sistema de racionalidade que, como sabemos, privilegia a idéia
conceito de estrutura. Mas, isto não dá garantias ao estruturalismo de pairar como
única voz da antropologia, no caso, a fustigar a história oral e de vida.

Assim, na retaguarda histórica de Lévi-Strauss, o também antropólogo


francês Marcel Mauss recomenda o uso da técnica. Por motivos e métodos outros,
Roger Bastide critica o posicionamento estruturalista de Lévi-Strauss, por
entender que este tenta livrar-se da subjetividade e da irracionalidade, enquanto
problemas de conhecimento legítimos para o campo da pesquisa social (apud
MORIN, 1993, p. 86).

Outro questionamento de fundo está vinculado à limitação teórico-


analítico localizada na origem dos estudos e pesquisas da história oral, e atribuída
à Escola de Chicago, pois, segundo este mote da crítica, àqueles sociólogos e, por
conseguinte, a toda a tradição de pesquisa dali derivada, faltava capacidade
interpretativa e metodológica de rigor científico. De resto, conforme destaca
95

Marre (1991, p. 89-141), a questão erguida prende-se à interpelação se é possível


interpretar, conhecer, verdadeiramente, uma sociedade ou grupo ou classe social a
partir de uma única história ou de poucos casos estudados.

As questões de fundo perduram, não chegando a constituir privilégio da


história oral, em si, nem das técnicas de entrevista, em particular, seja no presente
projeto, seja no campo de rotinas de produção das mídias, ou no emprego das
práticas clínicas da psicologia ou psicanálise; seja, ainda, pelas ressalvas advindas
dos diferentes empregos do neopositivismo, ou da historiografia mais tradicional,
centrada no uso estrito de arquivos escritos ou tão-somente de documentais
lavrados.

A história oral, entretanto, encontra guarida teórica e campo para o


desenvolvimento científico ao estabelecer diálogo com amplos setores das
ciências sociais. Em qualquer uma das hipóteses, entretanto, a suspeita perdura,
“para o bem ou para o mal”, em torno da validação do documento oral, do arquivo
e da história oral como um todo. Por que isto?

Por que, então, suspeitar, de forma mais rigorosa e sistemática, do


documento oral em si? A interpelação vem de dentro do campo da historiografia,
com Voldman, pesquisadora francesa dedicada à história oral, desde o início dos
anos 1980, com vinculação junto ao Instituto de História do Tempo Presente. Ela
encaminha uma possibilidade de resposta ao referir a necessidade constante de
emprego do que chama precauções metodológicas. Precauções de método, com
ressonância direta sobre as práticas, pois: “Às vezes, a palavra gravada encerra
armadilhas, principalmente devido à força de persuasão e à convicção da
’testemunha’” (VOLDMAN, 2001, p. 250).

Mesmo concordando, em parte, com Arlette Farge, quando e onde esta faz
ressalva para a relação de “fascínio do historiador com seu próprio arquivo” e,
mesmo referindo o impacto pela importância na pesquisa deste arquivo, que se
mostra “belo porém traiçoeiro”, para a realidade cotidiana do pesquisador, pois o
arquivo teria como “corolário de sua beleza toda uma encenação de ilusão”,
Voldman termina por propugnar que nada é mais importante para aquele que
96

trabalha com arquivo e história oral do que o “desejo de explicação”, algo dotado
de valor principal, que se apodera dos historiadores que lidam com as fontes orais.
Mas, para tanto, são necessários o cuidado processual e o rigor metodológico.

Voldman, defendendo o rigor metodológico, ainda, indica a necessidade de


estudar o documento oral, não somente como fonte para a pesquisa, mas também
do ponto de vista da sua construção pelo historiador. Ao solicitar uma testemunha,
segundo a autora, o pesquisador procede a uma verdadeira “invenção” de fontes.
Circunstância verdadeira, tal qual podemos aferir em nosso projeto de pesquisa ao
longo do seu desenvolvimento. “A invenção da fonte coloca-se, aqui, de maneira
prática”, afirma a pesquisadora (idem, 2001, p. 250-251). A relação fonte e
pesquisador suscita, no empreendimento real da pesquisa, um conjunto aberto de
questionamentos, todos eles relevantes para a realização da pesquisa, nos aspectos
referentes à saída para o campo, situação e tipologia dos encontros com sujeitos
da pesquisa, profundidades e quantidades de conhecimentos obtidos e, por fim,
perfil e funcionalidade do documento oral obtido. Voldman e Bertaux são dois,
entre elenco de pesquisadores de história oral, que buscam diferentes ordenações
para o conjunto de questões envolvendo fontes, pesquisa, arquivo e documento
oral (BERTAUX, 1993). Bertaux sugere explicitação em torno do número de
entrevistados e caráter destes depoimentos, opina sobre procedimentos de coleta
de dados e indaga sobre a interpretação e modo de transcrição dos relatos.
Voldman, igualmente, reafirma a necessidade de precauções metodológicas diante
do uso do documento oral. E sublinha, conforme texto já referido, suas principais
indagações como “a quem devemos nos dirigir e como? Podemos contestar
abertamente o interlocutor durante a entrevista? Como utilizar o que se ouviu? Por
qual processo a fonte assim constituída servirá de material probatório?”
(VOLDMAN, 2001, p. 251-252) Este conjunto de interpelações que Voldman
qualifica como fundamentais para aquilo que denomina como “a invenção da
fonte” pelo pesquisador, associado às perguntas oportunizadas por Bertaux,
encampamos como questionamentos de nossa pesquisa e buscamos abordá-los,
nos textos a seguir.
97

4.4 AS CIRCUNSTÂNCIAS E AS CONSTRUÇÕES DE ENTREVISTAS

Chamamos de circunstâncias de entrevista e, aqui, queremos melhor


examiná-las, diante do desenrolar de nossa pesquisa, àquele conjunto de ações que
possibilita a operação particular de coleta de depoimentos orais, gravados com
fins documentais e de conhecimento, objetivando dar conta do problema
delineado pelo projeto geral da pesquisa.

Ultrapassado o questionamento quanto à credibilidade acerca do


documento oral, enquanto instrumento para estabelecimento de verdade
historiográfica, o dilema recai sobre o pesquisador e sua prática, enquanto usuário
direto de processos metodológicos, que lida, no cotidiano, com a própria
complexidade da palavra viva das fontes. O que está em jogo, aqui, precisamente,
é a possibilidade de se construir o modo mais apropriado de entrevistar, de
abordar a fonte oral, de obtenção e caracterização do depoimento oral.

Examinando o lugar próprio da palavra, ao investigar a palavra-fonte, na


situação de entrevista, Voldman caracteriza esta como fenômeno biqualificado,
dotado de “riqueza e fraqueza”. Nesta circunstância, conforme Voldman (2001, p.
37), “de modo mais ou menos pacífico, a entrevista é um jogo de esconde-esconde
entre o historiador e seu interlocutor”.

Adotamos a idéia de entrevista como um jogo. Mas, vejamos, o embate


entre “aquele que sabe” e “aquele que sabe que viveu”, isto é, entre o historiador e
a sua fonte.

O primeiro, instalado numa posição de inquisidor, se apresenta


como “aquele que sabe” ou que saberá, porque sua missão é
estabelecer a verdade. O segundo, intimado a fornecer
informações que permitirão que essa operação, freqüentemente
é forçado a ficar na defensiva, de tão evidente que é a suspeita
do entrevistador, enquanto ele próprio sente que possui a força
da convicção “daquele que viveu” (VOLDMAN, 2001, p. 37).

O embate, assim colocado, entre um tipo de “inquisidor” e outro investido


de “inquerido”, termina por acarretar uma ampliação do coeficiente de dúvida do
98

pesquisador. Isto porque, se para o historiador que opera com documentos escritos
declarativos é necessário praticar uma dúvida sistemática, da qual somente o
cruzamento com outras informações permite a elucidação, para o historiador que
trabalha com a palavra-fonte a questão é dupla, pois “[...] o historiador que ouve a
palavra-fonte expressa uma dúvida sobre a dúvida, pois duas subjetividades
imediatas se conjugam, tanto para esclarecer quanto para confundir as pistas”
(VOLDMAN, 2001, p. 37).

Em nossa circunstância de pesquisa, diante do quadro das dificuldades


acima expostas, procuramos disparar aquilo que Gomes (1996) propõe, isto é,
articular um procedimento de partida com a busca concreta de solução
epistemológica. Assim, vejamos a questão em torno da palavra-fonte. Acatamos a
idéia que esta seja, ao mesmo tempo, uma palavra-fonte que esclarece e que pode
confundir. No entanto, a problemática em torno deste fenômeno não está na
questão da oralidade em si, mas reside naquilo que é intrínseco à natureza da
palavra e, por conseguinte, transposta para a situacionalidade das entrevistas.

Sobre este aspecto, Morin observa que “entrevista, evidentemente, se


funda na mais duvidosa e mais rica das fontes, a palavra. Ela corre o risco
permanente de dissimulação ou da fabulação” (1973, p. 28).

Assim, a palavra-fonte, digamos, pode ser denominada de “palavra-ponte”,


no sentido daquilo que possibilita enquanto acesso ao não-sabido. Pode,
igualmente, ser “palavra-biombo”, naquilo que oblitera ou esconde, na
enunciação, alguma verdade ou fração de verdade, no jogo entre enunciador e
ouvinte. Mas, novamente, estes tipos de circunstâncias, isto é, a efetivação ou não
da comunicação, a ocorrência ou não de desvio ou ruído da mesma, não ocorre
devido ao fenômeno da oralidade, mas dadas às características complexas da
linguagem humana, seja esta expressa pela escrita ou constituída pela oralidade.

Queremos destacar que, para efetivação das entrevistas em nossa pesquisa,


estivemos atentos para a abertura, a fenda, oportunizada pela fratura existente da
chamada palavra-correspondência aristotélica. Ora, desde que a cultura humana
constata a possibilidade de não correspondência entre a coisa examinada e o nome
99

da coisa referida, pode-se duvidar, discutir e interpelar a natureza da comunicação


dali advinda. O desenvolvimento dos meios de comunicação de massa,
obviamente, dá nova forma a este problema original, problema de linguagem, de
resto abordado por estudos profícuos, desde Friedrich Nietzsche, Henri-Louis
Bérgson, Sigmund Freud, Ferdinand de Saussure e, mais recentemente, Jacques
Lacan, que subverte a equação lingüística saussuriana entre significado e
significante.

Voldman, em outra parte da sua observação, sugere que, ao realizar


entrevistas, o historiador deve trabalhar munido de técnicas próprias, porém deve
buscar, também, empréstimos em outras disciplinas vizinhas. A indicação para
visitações e empréstimos aponta para duas direções. Primeiro, indica servir-se da
sociologia na condução e na formulação das pesquisas. A seguir, refere que se
deve não negligenciar “com elementos de psicologia, psicossociologia e
psicanálise” (2001, p. 38). Conforme Voldman , não se trata de fixar o trabalho do
historiador na interpretação da mensagem que é comunicada, mas de perceber, “de
saber que o não-dito, a hesitação, o silêncio, a repetição desnecessária, o lapso, a
divagação e a associação são elementos integrantes e até estruturantes do discurso
e do relato” (2001, p. 38).

De nossa percepção na pesquisa, podemos aferir que estes fenômenos


garantem diferenciada situação, como um ponto de observação distinto para a
constituição da história oral em construção. Assim, nossa orientação de pesquisa
esteve centrada na possibilidade de obter, nas entrevistas-relato, a efetivação do
enredo, da trama, da história, incluindo, eventualmente, os lapsos, os silêncios e as
divagações.

Inspiração teórica, igualmente, encontramos com a psicologia social, com


a psicologia interacionista e geral, que dispensam atenção para a circunstância de
entrevista como desafio para o conhecimento, em diferentes autores e pesquisas.
Carl Rogers defende a entrevista não impositiva, com o uso de dispositivo de
entrevistas não diretivas. Nahoum afirma que “a entrevista é uma situação
psicossocial complexa” (apud MEDINA, 1986, p. 9), e sublinha que esta
100

complexidade psicossocial da entrevista é, praticamente, indissociável de alguma


prática profissional.

Em nossa experiência, a complexidade psicossocial esteve associada, na


prática da pesquisa, pela interação profissional com o jornalismo e, mais
precisamente, com o radialismo, tanto na esfera do pesquisador, quanto naquela
ocupada pela maioria do grupo pesquisado.

É neste lugar que construímos o conceito de entrevista-relato, orientado


para a abertura, propugnada por Buber, que vai do diálogo ao dialógico, numa
articulação com a lógica da pedagogia, para estruturação das entrevistas de
compreensão do humano que, no desenvolvimento do estabelecido, ainda por
Morin, desdobra-se nas tipologias da entrevista-diálogo e neoconfissão. Em todas
as instâncias, o trabalho do pesquisador está em intervir e refletir ao ordenar
conhecimento.

Diante das inúmeras dúvidas em situações de entrevistas e dos diferentes


relatos dos sujeitos, a nossa orientação esteve em garantir estatuto de veracidade
para cada circunstância singular. Assim, a dúvida sistemática, metodológica, pôde
articular-se com uma orientação ética de pesquisa, que busca preservar cada
depoimento como veraz. Voldman (2001, p. 38) defende, igualmente, esta postura
e sugere ao pesquisador “não [...] desesperar-se com mentiras mais ou menos
fáceis de desmascarar nem com o que pode ser tomado como contraverdades da
palavra-fonte”.

De resto, cabe ao historiador fazer seleções, instituir nexos, reexaminar, à


luz de outras fontes, o conjunto do não-sabido, daquilo que está dúbio ou exposto
confusamente. Voldman reitera que é obrigação do historiador, como em qualquer
estudo, criticar o material oriundo da palavra-fonte.

Em nossa pesquisa, nos espaços de entrevistas, prevaleceu uma postura


idêntica àquela prescrita por Alessandro Portelli, quando recomenda, diante de
falas dramáticas, difíceis, drásticas, uma “apreciação reverente” das falas e dos
entrevistados. Em nosso caso, a “apreciação reverente” antecedia a análise e a
interpretação, postura que, entretanto, nunca abriu mão pela busca de
101

estabelecimento de um certo círculo hermenêutico interpretativo, inclusive, das


próprias auto-recomendações técnicas de entrevista do pesquisador, como das
falas dos entrevistados. Certa hermenêutica, aqui, no sentido limite de uma
exegese possível, uma interpretação “que coloca em jogo o problema geral da
compreensão” (cf. RICOEUR, 1978, p. 7-8).

4.5 A ESTRUTURAÇÃO DAS PERGUNTAS E DOS QUESTIONÁRIOS:


ROTEIROS

Embora orientado para o caráter qualitativo da metodologia, não é possível


empreender pesquisa sem tocar, de algum modo, em questões quantitativas,
referentes a dados, mais ou menos importantes, para a estruturação do corpus.

O desafio de construção de um roteiro de pesquisa, com definição do tipo


de questionário, a lista de perguntas e entrevistados em comunidade estão entre
estas questões de aparente cunho quantitativo, mas que formam conjunto
indagativo que fustiga o qualitativo pelo quantitativo.

Igualmente, as questões como qual o número adequado de entrevistas a


realizar, quem entrevistar, necessariamente, e qual a quantidade ideal de perguntas
no questionário de abordagem, apenas, aparentemente, são interpelações meras e
iniciais, que dizem respeito tão somente ao elenco de práticas da logística. A
logística, aqui, mostra-se refém do método. No entanto, é importante ressaltar que
esta logística tem, igualmente, importância prática fundamental, ou seja, não está
descolada do corpo e do método da pesquisa. Pelo contrário, ela auxilia,
fundamentalmente, a constituir o objeto na construção metodológica. Se o método
é ponte para o conhecimento, esta logística empresta mão-de-obra à matéria-prima
do processo.

Vejamos a questão do encaminhamento técnico do questionário.


Inicialmente, pensamos nas entrevistas, exclusivamente, em termos de
profundidade, também chamadas de entrevistas de técnicas intensivas, com pleno
102

emprego pela psicologia, notadamente. Ocorreu, então, que o transcorrer da


pesquisa mostrou que não bastavam somente as entrevistas de profundidade. A
seguir, também houve mutação na lista de perguntas, inicialmente projetadas para
pouco menos de vinte, chegando a atingir, por processo de adição de dúvidas
sobre fatos, diretas, número final superior a uma centena.. Por fim, voltamos a
utilizar questionário de menor porte, mas de caráter mais operacional e orgânico,
com perguntas pontuais para todos os entrevistados, no núcleo da lista, com
perguntas particulares e individualizadas, diante de situacionalidades igualmente
diferenciadas de entrevistas.

Assim, por óbvio, as perguntas, quanto ao protagonismo de cada


entrevistado e qual o episódio mais importante, significativo vivenciado, pela
testemunha, com e pela Continental, estiveram em todos os episódios. Mas, diante
de um músico, por exemplo, acrescentamos questões específicas sobre as
condições dos estúdios da rádio, sobre os shows externos e sobre série de
gravações de fitas e discos oportunizadas pela Continental. Já diante de integrante
da equipe do radiojornalismo, por exemplo, nossa curiosidade esteve em resgatar
o modelo prático da emissora nas suas rotinas produtivas e os episódios de
conflitos com a censura. Assim, sucessivamente, diante de cada um dos
integrantes do grupo primário social selecionado, buscamos subsídios para contar
a história temática da Rádio.

De algum modo, as variações de tipos de questionários quanto à


profundidade, mudando para extensividade, e, posteriormente, de busca por uma
adaptação do qualitativo à pragmática e economia da pesquisa, acompanharam,
igualmente, a variação de dois modelos fundamentais de entrevistador. O modelo
de entrevistador esteve sendo alterado, pendularmente, entre o modelo de
interlocutor confessional, em busca de entrevistas do tipo “neoconfissões”, em
profundidade, para outro tipo, igualmente ambicioso, representado por aquele do
mediador social, que busca resgatar o tempo passado, atualizando-o, aqui e agora,
em nova narrativa.

As variações ocorreram, igualmente, diante da escolha de modelos


diferentes de questionários utilizados, indicados pela tradição acadêmica. Assim,
103

diante da possibilidade de uso dos modelos de perguntas abertas, semi-abertas e


fechadas (RICHARDSON, 1991, p.144), optamos, na prática, pelo emprego de
modelo híbrido. Assim, embora, em sua maior parte, os questionários utilizassem
perguntas semi-abertas, usamos perguntas abertas, em circunstâncias de “abertura
de panorama”, para novas frentes de conversação. Igualmente, usamos perguntas
fechadas, ideais conforme a literatura, para aferir opinião ou preferência
individual, nas chamadas perguntas de intensidade. Nestes casos, as perguntas
fechadas facilitam a obtenção de respostas, operacionalizadas em nossos
questionários para comparar, por exemplo, a Rádio Continental com a Rádio
Mundial e, também, com a Rádio Guaíba, em busca de quantificação de música e
informação jornalística.

A maior parte dos questionários, entretanto, utilizou perguntas face a face,


do tipo semi-abertas, sobretudo, por possibilitarem maior índice de descobertas
sobre temas e aspectos desconhecidos pelo pesquisador e por proporcionarem
variedade de respostas aos sujeitos entrevistados, conforme sugestão de Labes
(1998).

Se cada entrevistado pressupõe um questionário personalizado, ou, ao


menos, semipersonalizado, um procedimento de aplicação destes questionários
indica para a necessidade de adaptação. Adaptação do questionário àquela
circunstância de entrevista, mesmo e a partir da existência do roteiro original e a
conseqüente adaptação do entrevistador à psicologia do entrevistado. No dizer de
Tourtier-Bonazzi (1991, p. 237), “o entrevistador deverá adaptar-se à testemunha
e nunca dar por encerrada uma entrevista antes de acabar o questionário”.

Conforme nossa experiência, é discutível a idéia de cumprir a realização


do questionário, sempre, até o final. Nossa prática indicou que, para alguns
entrevistados, existe até um limite físico para o trabalho de depoimento e
recuperação da memória. Por isto, é importante não perder de vista os objetivos de
determinada entrevista, não abrir mão das dúvidas, lacunas por preencher, não
abandonarmos a busca de compreensão maior pelas ações e atividades
transcorridas no passado. No entanto, são necessários equilíbrio e bom senso para
perceber quando, em dada circunstância, entrevistado e entrevistador chegaram ao
104

teto dos trabalhos, por cansaço ou outra limitação, naquela determinada sessão de
trabalho.

Não existe uma regra geral que limite o tempo de realização de entrevistas,
o mesmo podendo ser dito sobre o local ideal para o encontro entrevistado e
entrevistador. Em nossa experiência, procuramos, em todas as circunstâncias,
garantir certa privacidade ou, no mínimo, espaço físico que possibilitasse algum
recolhimento, quando das sessões de trabalho. Para tanto, inclusive, foi útil, desde
os agendamentos das entrevistas, referir a necessidade de uso de gravador. A
partir desta sinalização, por iniciativa do próprio entrevistado, ou por reforço
nosso quanto à necessidade de local com algum nível de isolamento, garantimos,
na maior parte das vezes, local adequado, tanto para realização técnica das
gravações sem maior incidência de ruído indesejado, quanto para a necessária
interação humana, interpessoal, de aproximação para o trabalho de entrevistas.

Quanto ao limite de tempo para as entrevistas, novamente, não há, na


literatura, regra geral indicativa. Em nossa experiência, ficamos centrados em
torno da unidade de hora, sendo os sessenta minutos uma marca de referência,
baliza, quando não seguida em pontualidade, sendo ultrapassada somente com a
anuência, explícita ou implícita, do entrevistado. Desde a pré-agenda, para os
encontros ao vivo e gravados, manifestamos nossa necessidade e limitação de
cerca de uma hora para realização de cada entrevista.

Na prática, igualmente, foi possível testar o posicionamento de pesquisa


que, desde a concepção, em nível de anteprojeto até a realização, propugnou pela
lógica de não-intervenção direta e de não-dirigismo nas entrevistas. Entretanto, na
concretude de realização, algumas ressalvas precisam ser cotejadas com estas
nossas premissas. Vejamos.

Em sendo verdadeiro, conforme constatamos em inúmeros eventos, o


entrevistado, com liberdade para falar, constrói riqueza documental pela variedade
e profundidade dos relatos; igualmente, é verdadeiro que, deixado inteiramente
livre o entrevistado, com igual freqüência, ocorre o risco de dispersão,
afastamento e confusão na urdidura dos relatos durante a entrevista.
105

Assim, o importante, aqui, é sugerir a atenção constante do entrevistador,


que funciona como mediador do processo, coordenando seu próprio interesse na
pesquisa, que está articulado com a abertura necessária ao diálogo, que ora será
dirigido, quando da necessidade de obtenção de respostas pontuais, ora terá a
lógica do free speach, oportunizado ao entrevistado, para que este desça a
minúcias ou revele dados ancestrais necessários à lógica de seu relato original. Em
todos os episódios, na nossa experiência prática, foi importante projetar e lembrar,
nas rotinas produtivas, que, naquela circunstância de entrevistas, a singularidade
do processo esteve garantida pela aposta de relação ativa entre dois sujeitos
diferentes, num espaço onde o monólogo, mesmo ocorrendo, não era a regra geral
nem maior.

Dito de outro modo, buscamos, para nossas entrevistas, um espaço de


característica a possibilitar certa maiêutica. Originalmente, maiêutica é termo de
Platão, que refere a arte da parteira como método ou metáfora para a busca do
conhecimento através do diálogo. Em Teeteto, Platão afirma que

Tenho isso em comum com as parteiras: sou estéril de


sabedoria; e aquilo que [...] muitos censuram em mim, que
interrogo os outros, mas não respondo por mim, porque não
tenho pensamentos sábios a expor, é censura justa”
(ABBAGNAND, 1998, p. 637).

Procuramos, na maior parte das vezes, realizar a entrevista semidirigida,


porque esta modalidade, no dizer de Tourtier-Bonazzi (1991, p. 237), “é com
freqüência um meio-termo entre um monólogo de uma testemunha e um
interrogatório direto”.

4.6 OS SUJEITOS DA CONTINENTAL: A REDE DE ENTREVISTADOS

A presentificação do empírico na história oral ocorre através da situação


real de entrevista e de diálogo. Esta presentificação ocorre através da série de
relatos, cujo conjunto constitui o presente como verdadeiro elo entre o passado e o
futuro.
106

É neste sentido que Voldman (2001, p.256) indica o testemunho oral como
sendo “um elemento no qual se apóia a escrita da história e que, como tal, está
sujeito à verificação”. Aprendemos, no trabalho da tese, que a fonte de entrevista
estava a serviço, fundamentalmente, da informação e esclarecimento de dados. Já
o corpus estruturava-se, basicamente, para sofrer a análise pretendida.

Longe de resolver a questão quanto à dificuldade, a de não “falar somente


a verdade”, “pois o mundo, como é sabido, está cheio de perjuros”, afirma
Voldman (2001, p. 256), este status de testemunho dado pelo historiador ao
interlocutor tem uma particularidade significativa. É o próprio historiador que
“controla essa coleta: ele é quem convoca, ele é quem exige juramento, ele é
quem julga”. É ele quem relata o relato do outro, diríamos nós.

Esta condição de relator-autor da narrativa do outro é, ao mesmo tempo,


necessária e problemática para o desenvolvimento da pesquisa. É necessária,
fundamental para o processo, porque sem ela não haveria autoria nem instância
social decisória e pró-ativa na gestão do empreendimento, mas torna-se
problemática se congelada num modelo unidimensional e unidirecional,
rigidamente hierarquizado, do diálogo.

Aqui, sobretudo, vale lembrar, sem que isto dê garantia de solução ao


problema, que todo o modelo comunicacional ideal (de Aristóteles a Habermas)
está centrado na dupla necessidade de uma técnica articulada a uma ética criadora.
Dito de outro modo, o domínio e acesso à retórica e à dialética é comum ao “eu” e
ao “outro” no diálogo, e esta interação dialogal deve ocorrer entre iguais em
eticidade.

A situação de diálogo em entrevista, ainda, porta alguma outra


potencialidade positiva, como sugere Pallares-Burke, em trabalho onde indaga
renomados historiadores sobre diferentes pressupostos em torno do próprio fazer
história. Para ela, a entrevista é como “uma espécie de gênero intermediário entre
o pensamento e a escrita elaborada”, circunstância esta que garante à entrevista
uma melhor capacidade para surpreender a idéia em movimento (BURKE, 2000,
p.13).
107

É neste sentido que ganha importância a sugestão de Ferraroti (apud


MARRE, 1991, p. 108), ao refletir sobre o uso da história oral e de vida como
técnica de investigação social, quando pergunta por que “não substituir a biografia
natural, pela biografia de um grupo primário como unidade heurística de base”.
Neste caso, é o próprio Marre (1991, p.108) quem afirma, “a unidade de
investigação não é uma autobiografia oral ou escrita, mas várias histórias de vida
entrelaçadas e constitutivas das várias posições e itinerários da trajetória do
grupo”. Na pesquisa, buscamos estabelecer o grupo primário como unidade de
base de trabalho para a constituição da história oral temática da Rádio
Continental.

É neste enquadramento que direcionamos nossa ação de entrevista e, para


tanto, elaboramos, dentro da pesquisa, a lista de nomes próprios dos
interlocutores, testemunhos, entrevistados, entre jornalistas, radialistas, técnicos,
músicos, publicitários, funcionários, atores sociais, actantes fundamentais ao
processo, com experiência de vida profissional, maior ou menor, relacionada com
a existência real da Continental.

A questão da seleção dos entrevistados, entretanto, não é questão pacífica


e tem demandado inúmeras frentes de investigações, empreendidas por inúmeros
pesquisadores. Entre estes questionamentos, encontra-se o número adequado de
entrevistados e a interpelação quanto ao perfil deste corpo de testemunhas. Marre
(1991) propõe um abandono da noção quantitativa estatística para outro viés.
Segundo ele, é preferível um enquadramento dos eleitos por uma
representatividade qualitativa, a partir da escolha dos eleitos levando-se em conta
a capacidade virtual do sujeito diante dos fatos, juízos, fenômenos abordados e
indispensáveis ao relato geral da pesquisa. Em nossa experiência, embora o
corpus, aparentemente, representasse questão superada, por ser unívoca a
realidade de tal grupo enquanto sujeitos relevantes para a história da Continental,
ainda assim, tivemos dificuldades, lacunas e dúvidas para a realização.

Definido o grupo, ainda restavam questões de economia e rentabilidade


prática da pesquisa. Desde o anteprojeto, após levantamento de dados iniciais, ali,
108

então, já estava colocada a necessidade de seleção de subgrupo fundamental


principal retirado do grupo geral pré-selecionado. Vejamos.

O primeiro grupo geral de virtuais entrevistados, constituímos através da


primeira etapa da pesquisa e possibilitou a indicação dos seguintes nomes:
Adroaldo Corrêa (coordenador de jornalismo), Ananda Apple (apresentadora),
André Jockymann (redator), Antonio Carlos Bianchinni (locutor), Antonio Carlos
Contursi (DJ “Cascalho”), Antonio Carlos Niderauer (locutor), Augusto Almeida
(operador técnico), Bertoldo Lauer Filho (diretor de operações), Carlos Cesar
Cardoso Couto Coconutt (operador de aúdio), Carlos Prates (programador), Cíntia
Nahra (repórter e redatora), Clarisse Nahra (secretária), Clóvis Dias Costa
(produtor e apresentador), Clóvis Eberli (redator), Dedé Ribeiro (produtora),
Eduardo Meditsch (redator), Eleonora Rizzo (repórter), Eliseo Pacheco (locutor),
Elói Terra (redator), Elói Zorzetto (locutor), Emílio Chagas (redator), Fernando
Westphalen (diretor e publicitário), Francisco Anelli Filho (técnico), Heitor
Moraes (boy, assistente produção e programação), Ivan Pinheiro Machado
(redator), João Batista Schüller (programador musical e DJ Jonhy Mekaton), João
Natalício (técnico de gravação), José Fogaça (apresentador), Júlio Furst (DJ
“Julius Brown” e “Mr. Lee”), Luis Antonio Borba (locutor), Luís Fernando
Veríssimo (cronista), Luís Milman (redator), Luiz Carlos Merten (redator), Luiz
Coronel (publicitário), Luiz Eduardo Moreira (diretor comercial), Marcus Aurélio
Wesendonk (apresentador e diretor de programação), Marina Lima (secretária),
Mario Marona (editor), Marlene de Lima Praz (funcionária), Miriam Gusmão
(repórter), Nelson “Mola” Ferrão (editor), Oscar Flores (redator), Paulo Acosta
(redator), Paulo de Tarso Riccordi (redator), Paulo Verri (repórter), Rui Carvalho
(locutor), Vladimir Oliveira (locutor), Wladymir Ungaretti (coordenador de
jornalismo).

Esta lista, em muitos nomes alterada, por inclusão e por exclusão, foi o
núcleo da unidade básica da pesquisa, ponto de partida. Deste grupo, retiramos
nomes e relatos para pesquisa, realmente, empreendida. A resultante dos relatos
aparece, no capítulo 7, sob a forma de Peripécias da Continental.
109

Já lista completa das entrevistas, mais relevantes e empreendidas,


encontra-se em espaço à parte, ao término da presente tese.

Junto a estes profissionais da Continental, muito embora não fossem


funcionários contratados pela mesma, inúmeros jovens músicos, em meados da
década de 1970, passaram a conviver com a Rádio, no dia-a-dia, transformando-
se, também, em atores fundamentais da experiência da emissora e tornaram-se,
igualmente, fontes virtuais para interlocução da pesquisa.

No primeiro momento, então, localizamos e listamos os nomes de Nelson


Coelho de Castro, Bebeto Alves, Raul Ellwanger, Cláudio Vera Cruz, Alexandre
Vieira e Ângela Lângaro (do grupo Inconsciente Coletivo), Paulinho Buffara,
Fernando Ribeiro, Giba Giba, Hermes Aquino, Kleiton e Kledir (grupo
Almôndegas) e, ainda, os integrantes do grupo Discocuecas.

Integram o grupo inicial de virtuais entrevistados, pois, conforme os dois


blocos acima nomeados, dois subgrupos constituídos, basicamente: a) pelo
conjunto de trabalhadores vinculados à Continental e, b) o outro, integrado por
músicos, compositores e intérpretes na Continental.

A coleta de informações e dados sobre os entrevistados foi possibilitada


pela pesquisa em jornais e periódicos (entre estes, Zero Hora, em 06 de outubro
de 1996, e Folha da Manhã, em 17 de junho de 1978), mas, principalmente,
através das pré-entrevistas, com escutas de sondagem, com Cíntia Nahra, Carlos
César Couto e Marcus Aurélio Wesendonk; e com Claudia Heinzelmann,
jornalista, com atuação na Rádio da Universidade (UFRGS) que realizara trabalho
monográfico de conclusão de curso de graduação sobre a Continental.

Inicialmente, dentro do escopo do anteprojeto, pensamos em constituir um


subgrupo, basicamente, formado por ouvintes e radioamantes da Continental.
Entretanto, por questões de logística e economia da pesquisa, abandonamos a
idéia que, mais adiante, no desenrolar do projeto, foi retomada, em outros termos,
como veremos. Pensamos, ainda, em constituir um grupo de foco, formado por
professores de radialismo, espécie de fórum de experts, idéia que, igualmente,
necessitamos alijar do processo.
110

No desenvolvimento geral da pesquisa, além dos subgrupos, com seus


nomes principais, começaram a despontar individualidades, nomes, sujeitos, não
enquadrados, até então, mas de importância significativa e crescente, tal qual os
novos dados de realidade e verdade de pesquisa indicavam.

Chegamos ao nome de Aldo Caye, ex-comissário de bordo da Varig,


apontado como colaborador e programador honorário da emissora, de rara
contribuição, pela qualidade e constância, para a programação musical
internacional da emissora. O problema em torno da figura histórica de Caye, para
a pesquisa, estava no seu desaparecimento. Caye morrera em 1995 e restava-nos,
então, procurar por algum depoimento, da família ou de amizade, para tentar
suprir a lacuna. Em vida, Caye, aproveitando os vôos internacionais que fazia,
semanalmente, garantia para a Continental a chegada, em Porto Alegre, dos
principais lançamentos musicais, praticamente, ao mesmo tempo em que estes
eram vendidos nas grandes praças da indústria fonográfica mundial. Esta façanha,
numa era pré-internet, possibilitou a chegada ao sul do País, em tempo recorde,
por exemplo, dos lançamentos dos discos, em vinil, das músicas Gimme Shelter,
dos Rolling Stones, e de Imagine e Happy Xmas (War is Over), de John Lennon.
Os lançamentos de música internacional, em primeira mão, pela Continental,
incluíam, ainda, músicas da Europa, sobretudo, a música italiana, de grande
projeção, a partir de 1970. As rotas de Caye incluíam Nova Iorque, Los Angeles,
Roma e Paris, alternadamente.

Caye representa apenas um, dentre outros inúmeros nomes de sujeitos da


pesquisa que, sem ter vínculo profissional direto com a Continental, entretanto,
integraram aquilo que se pode denominar de grupo social em torno da emissora,
sujeitos da paidéia, pertencimento este ocorrendo mais pelo trabalho real
desenvolvido do que pela natureza da origem profissional do protagonista
envolvido.

Outro exemplo, constituindo novo e pequeno subgrupo, podemos indicar


com aqueles que denominamos por “ouvintes ideais”. Depois de abandonada a
idéia de criação do chamado “Fórum dos experts”, constituído por profissionais
do radialismo que, necessariamente, foram ouvintes da Continental e, pela mesma
111

lógica de economia de recursos e necessidade logística, ter abandonado a hipótese


de constituir para entrevistar, como novo grupo, um “fórum de ouvintes”, que,
necessariamente, demandaria outros exercícios em torno da teoria da recepção,
chegamos, finalmente, à realidade oferecida, na prática, pelos sujeitos
denominados “ouvintes ideais”.

Os chamados “ouvintes ideais” foram identificados, ao longo do


desenvolvimento da pesquisa, sendo que dois deles no ano de 2002, e o terceiro
em 2003, e provocaram espaço como sujeitos da pesquisa devido ao protagonismo
diferenciado e qualificado que demonstraram possuir. São representativos, únicos
e fundamentais, segundo a nossa análise, para a constituição da história da
Continental. Selecionamos dois deles para entrevistas e interagimos, a distância,
com o terceiro nome dos “ouvintes ideais”. São eles, pela ordem que aparecem
para a pesquisa, Emílio Pacheco, Luiz Juarez Pinheiro e Lucio Flávio Haeser.

Emílio Pacheco é o primeiro ouvinte ideal que entrevistamos, por


indicação do músico Nelson Coelho de Castro, que soubera dele como
pesquisador dedicado à história da Continental e à música porto-alegrense mais
recente. Emílio, jornalista formado e bancário por necessidade de sobrevivência,
como se auto-refere, além de confirmar a condição de pesquisador com valiosas
informações sobre a Continental, indica o nome de Luiz Juarez Pinheiro, a quem
conhecera, através da rede web, numa conversação, a distância, sobre música
urbana.

Pinheiro, mesmo sendo gaúcho, reside em Curitiba desde a infância. E lá,


através da Rádio Iguaçu, grava direto do aparelho de rádio algumas edições do
programa “Vivendo a vida de Lee”, com Julio Furst, produzido, aqui, pela
Continental. Emílio e Pinheiro, assim, se constituem fontes importantíssimas para
o estabelecimento da história temática da Continental.

Também tendo sido ouvinte apaixonado da Continental, na adolescência,


em Santa Cruz do Sul, mas, atualmente, residente em Florianópolis, Lucio Flávio
Haeser surge para nossa pesquisa com vinculação profissional à história da
Continental. É através de pequena nota, intitulada “1.120 é Notícia”, slogan da
112

própria emissora para anunciar suas edições de radiojornalismo, na sessão


Contracapa, assinada por Roger Lerina, do Segundo Caderno, do jornal Zero
Hora, no dia 20 de setembro de 2003, onde se pode ler que “o jornalista Lucio
Haeser e o técnico de som Francisco Anele Filho preparam um livro que vai
recuperar de um (sic) dos períodos mais bacanas do rádio e da música porto-
alegrenses. É a história da Rádio Continental a 1.120 [...]”.Lucio estivera, a
contar do ano 2002, a tratar, com outros recursos e métodos, da mesma emissora
que se transformara em objeto de nossa pesquisa, a partir de 2001. Embora mais
recente, com outra metodologia e interesse, Lucio antecipara-se, na celebração de
um contrato profissional, com o operador de som Francisco Anele Filho. Pelo
périplo percorrido e pela condição inicial de radioapaixonado, incluímos Lucio no
subgrupo de ouvintes ideais, uma vez que Anele já integrava o subgrupo principal
inicial da nossa pesquisa sobre a Continental.

Aqui, é importante destacar da prática da pesquisa dois importantes


movimentos diferenciados para a constituição do grupo base, que estabelece
elenco de sujeitos entrevistados. Estes dois fenômenos constatados na dinâmica da
pesquisa, também é importante destacar, tiveram protagonismo na constituição
das fontes desde o momento de constituição da pré-pesquisa até a etapa derradeira
de fechamento do corpus da pesquisa.

O primeiro movimento dinâmico de constituição de fontes que queremos


referir diz respeito àquilo que funcionou, em nossa pesquisa, como espécie de
“corrente” humana, onde um relato de entrevistado revelava, pelo menos, outro
nome, podendo indicar todo um novo grupo de possíveis entrevistados. Esta
lógica, referida, entre outros, por Marre (1991), denominada por ele como técnica
“bola de neve”, é indicada, ali, para coleta de informação. Em nossa prática,
entretanto, queremos ressaltar, esta corrente esteve a serviço do fim último de
atingir o ponto de saturação sobre os temas. A corrente que, em nossa pesquisa,
ganhou contornos de uma espécie de microrrede de informação, chegou, mesmo, a
alterar rotas iniciais da pesquisa. Esta corrente, na pesquisa, transformou-se em
espécie de micromídia, pelo boca a boca, que inclui, ainda, o uso do telefone, do
fax e da internet, como suportes.
113

O segundo fenômeno como movimento dinâmico dentro da pesquisa para


constituição das fontes diz respeito, justamente, ao fenômeno da midiatização.
Julgamos importante esta constatação, isto é, que a história oral e de vida,
sobretudo para uma temática localizada no campo da comunicação, é,
necessariamente, uma história oral que transcorre, é traçada e constituída,
igualmente, entremeios. Isto é, registramos, entrevistamos e analisamos falas
humanas, mas é preciso considerar falas humanas num lugar onde as mídias
atuam, interagem e auxiliam na reconstituição histórica, em nosso exemplo, de
uma emissora de rádio.

As entrevistas com este grupo social, na totalidade, foram vitais para a


realização do projeto, quando este empreende pesquisa que estabelece uma
história temática crítica, de uma emissora surgida há 40 anos, e cujo encerramento
de atividades, oficialmente, ocorreu já há mais de duas décadas, em 1981,
precisamente.

O ciclo histórico de existência da Continental, igualmente, terminou sendo


decisivo na constituição, tanto em qualidade quanto em quantidade, da unidade
básica de pesquisa. Refiro-me, basicamente, ao fato de, no anteprojeto, possuir
apenas mero esboço de períodos cronológicos da emissora. Com o
desenvolvimento da pesquisa, esta cronologia inicial foi alterada, determinando
mudanças em extensão horizontal, porque constatamos período histórico
cronológico mais amplo para pesquisa, determinando, ainda, necessidade de novas
entrevistas de profundidade, uma vez modificada a relação de importância de
determinados fases ou períodos da emissora.

A relação final de nomes entrevistados, bem como a indicação do modo e


suporte utilizado para cada uma das sessões de escuta, aparecem especificados em
espaço próprio da presente tese. Aqui, esboçamos, fundamentalmente, os dois
eixos principais ordenadores do processo de seleção para os sujeitos entrevistados.

Primeiramente, escolhemos, após mapearmos as funções e rotinas de


trabalho na emissora, os nomes principais em cada uma das instâncias. Assim, ali
estão representados os sujeitos, respectivamente, da direção, da programação
114

musical, da locução, dos DJ’s, da publicidade, do jornalismo, da equipe técnica,


da equipe de gravação, do quadro de funcionários – incluindo a secretaria até o
comercial.

Em segundo lugar, buscamos pelo menos um nome representativo e


fundamental de cada uma das etapas ou períodos históricos principais da
emissora, em ciclos, que iniciam em 1962 e findam no início de 1982.

Todos estes movimentos, contudo, estiveram orientados para a busca de


diversidade qualitativa nas instâncias de escuta e entrevistas de trabalho. O fim
último destes movimentos de procura pela diversificação qualificada esteve,
sempre, orientado para aquilo que Marre (1991) sugere, em consonância com
outros pesquisadores do campo, o atingir o ponto de saturação. Na verdade,
conforme a pesquisa que empreendemos, ponto de saturação sempre em relação a
determinado patamar da pesquisa empreendida. Mas que, na verdade, revela-se,
ponto de saturação que, praticamente, nunca tem fim, posto que se abre, a cada
novo limiar ou fronteira, para a oportunidade de outro conhecimento possível na
história.

4.7 O USO DO GRAVADOR E O ARQUIVO SONORO

A década de 1960, a mesma em que ocorre a inauguração da Continental,


é crucial quanto ao emprego e uso de gravadores nas relações sociais, em geral, e
na produção e consumo da comunicação social, em particular. A questão,
igualmente, tem ressonância junto ao desenvolvimento das ciências sociais
aplicadas no país. É, sobretudo, a partir do final daquela década, que o fenômeno
da portabilidade para equipamentos de gravação passa a crescer em importância,
viabilizando o crescimento da produção, nas emissoras de rádio e agências de
propaganda e do consumo. As fitas magnéticas, seja para uso em gravadores de
porte profissional ou para utilização em minigravadores cassete, transformam-se
em importante suporte para a fonte oral humana e para a fonte sonora, em geral,
sobretudo, na gravação e reprodução de música, produzida em escala de consumo
115

de massa. O início da década de 1970, também, marca o surto de utilização por


número, a partir dali, sempre crescente de pesquisadores e cientistas, através das
técnicas de pesquisa participante e, mesmo, da história oral e de vida, nos seus
primórdios.

A seguir, resumidamente, queremos reportar nossas reflexões a partir de


observações construídas no desenvolvimento da presente pesquisa, quando da
utilização prática de minigravador, para documentação das entrevistas e
constituição de acervo de depoimentos orais sonoros.

A primeira observação diz respeito ao grupo de entrevistados. O grupo, na


sua maioria, esteve integrado por pessoas familiarizadas com o uso de microfone
e, também, com as rotinas de gravações sonoras. Logo, o problema com inibição,
ou algum constrangimento de alguma ordem, referido pela literatura como espécie
de obstáculo de acesso às fontes, não teve, em nosso caso, relevância. Apenas,
podemos perceber que algum tipo de inibição surgiu, justamente, quando das
entrevistas com pessoal não profissional de locução ou técnica, isto é, junto aos
funcionários da secretaria, do atendimento e do comercial da emissora. Para a
maioria dos entrevistados, a presença do gravador, nas situações de entrevistas,
não significou aparecimento de instrumento inibidor. Pelo contrário, o
questionamento que nós fizemos foi sobre, justamente, esta aparente naturalização
de elemento técnico na entrevista. Qual a importância, no jogo dialógico, desta
aparente e marcada naturalização da presença do gravador nas situações de
entrevistas?

A experiência prática jornalística nos ensinou a não iniciarmos, de chofre,


nenhum diálogo gravado. Assim, durante as entrevistas para a pesquisa, voltamos
ao velho ritual, fazendo espaço de anteparo, antes do início das entrevistas, como
forma de quebrar o gelo e modo de aproximação para o diálogo com as fontes.

Logo, outra medida, em sentido inverso, utilizada como modo de


desaquecimento humanizado ao término das entrevistas, para evitar quebra
abrupta do diálogo e do contato entrevistador-fonte, terminou por possibilitar
inédito espaço para interação. Em resumo, este despretensioso epílogo pós-
116

entrevistas terminou revelando-se espaço para obtenção de informações novas e


valiosas.

Assim, tão logo desligávamos o gravador, podíamos constatar dois


fenômenos. O primeiro é que havia uma fonte durante a gravação e havia uma
fonte mudada, com outro desempenho e protagonismo verbal, tão logo
desligássemos o gravador. E, logo, numa mesma circunstância de entrevista,
tínhamos diante de nós a mesma fonte, mas com dois repertórios de informação
diferenciados. Passamos, a partir desta constatação, a provocar episódios,
ampliados até no porte cronológico, como espaços nobres possibilitadores desta
interação de epílogo, na verdade, de “pós-entrevista” real.

Exemplar, neste sentido, também pela qualidade do depoimento, foi a


entrevista da funcionária Marlene de Lima Praz. Desligado o gravador,
meditativa, ela afirmou: “Na verdade, eles não acreditavam na FM como rádio de
verdade”. O depoimento era valioso porque dava um indicativo forte, uma
motivação explicitada para a não aquisição de emissora FM pela Continental.

O gravador, em situações triviais, tem sido apontado como eventual


elemento técnico inibidor da entrevista direta com fontes orais, em diferentes
relatos de cientistas sociais. O mesmo fenômeno é aludido, também, em situações
freqüentes da entrevista jornalística. Em nossa experiência, no entanto, o gravador
atuou como pólo de atração, como galvanizador das falas e dos depoimentos. Ao
invés de inibidor, o gravador funcionou como estimulador, facilitador, propulsor
dos relatos orais. A possibilidade técnica de formatar o depoimento oral, através
do suporte gravado em fitas K-7, ao que tudo indicou, dava garantias e certa
valorização documentada para cada depoimento individual.
CAPÍTULO 5: AS NARRATIVAS DA RÁDIO CONTINENTAL

5.1 SOBRE HISTÓRIA E NARRATIVA

A concepção de história como, propriamente, história do homem,


contemporaneamente, traduz-se em história do homem, necessariamente, que vive
em sociedade. Para nosso estudo, isto significa dizer história do homem que vive
entre os meios de comunicação de massa, porque história empreendida, realizada
e, logo, narrada por sujeitos midiatizados, num estágio dado da chamada indústria
cultural, num país periférico e dependente, dentro do sistema internacional do
capitalismo mundial, localizado nos primórdios da chamada sociedade da
informação. O mesmo contexto, obviamente, onde nasce, desenvolve-se e
desaparece a produção sonoro-discursivo da Continental, enquanto emissora real-
concreta, localizada em Porto Alegre.

Assim, se desde a Antigüidade, a história significou reunião e reflexão


sobre documentos escritos, para nós, atualmente, recoloca-se a questão em termos
de documentos midiáticos, ou comunicacionais, tais como fitas cassete, vídeos,
cds, dvds etc. No caso específico desta pesquisa, sobretudo, de depoimentos
inéditos gravados em fitas cassete, a partir de entrevistas centradas na existência
real-concreta da Rádio Continental, tal qual a experiência dos atores selecionados
destaca, através de suas narrativas orais, em um mundo midiatizado.

Esta situacionalidade da Rádio Continental é que enseja o ineditismo de


nossa pesquisa, a exigir, também, modo próprio para abordagem da história de
118

uma mídia volátil (como constitutivamente ocorre ser uma emissora de rádio),
uma emissora distante no tempo (portanto, refém de um resgate obrigatoriamente
advindo do exercício individual e coletivo da memória, através de
mnemotécnicas). E, sobretudo, a oportunidade de narrar a história de uma rádio
que, não possuindo acervo nem completo, nem sequer abundante de programas,
produtos ou documentos, possibilitou, fragmentariamente, pistas, indícios e peças
isoladas, algumas destas em suporte técnico de mídia, de modo a instigar,
provocar a criação de uma história da Continental, hoje, caracterizada por este
ser-estar entre meios de comunicação de massa.

Este conjunto de mudanças provocado pela midiatização, em nossa


pesquisa, muito mais do que provocar questões relativas à história dos suportes
técnicos que jogam, de fato, importante papel no contexto, significa, muito mais,
uma problematização para a historiografia, enquanto história da história, e
encaminhamento de questões, também, para a teoria da história e para a teoria da
comunicação, bem como problemas focais que demandam estudos específicos da
teoria da literatura e da narratividade. Assim, uma certa epistemologia da história
e da comunicação nasce da constatação da existência em fragmentos de uma
emissora de rádio, em fenômenos e fatos atualizados pelas narrativas de seus
protagonistas.

Diferentemente da configuração e lógicas da matemática, tanto quanto do


cabedal proposto para a ciência da natureza ou para o conjunto de estudos que
sustentam e alimentam as ciências da vida, a história nasce como conhecimento
que, ao mesmo tempo, importa-se com o ver, o vivenciar e, logo, com o narrar o
vivido, o verificado ou observável da experiência humana imediata ou longínqua
no desenrolar dos tempos selecionados.

O primórdio e a base da história estão, pois, neste viver e narrar, quando


não pelo mesmo protagonista, por alguém autorizado e validado através de uma
autonarrativa ou narrativa construída pelo outro, o historiador. Na
contemporaneidade, entre meios de comunicação, esta ênfase perdura, mas é
deslocada, problematizada, fustigada pela intromissão recente das mídias e dos
comunicadores e jornalistas, em disputa pelo protagonista de sujeitos narradores
119

do mundo. As narrativas inéditas dos atores que fizeram a Continental, associadas


aos fragmentos e documentos recuperados, possibilitam a história crítica da
emissora, nas suas interações sociais de informação, entretenimento e formação de
opinião de parcela dos jovens, majoritariamente universitários e secundaristas,
porto-alegrenses. Em nossa pesquisa, a “história imediata” é recuperada pela
história mediatizada das narrativas orais que são, aqui, transcritas e recriadas pelo
pesquisador.

Manifesta-se a este respeito Le Goff, quando constata que

Este aspecto da história-relato, da história-testemunho, jamais


deixou de estar presente no desenvolvimento da ciência
histórica. Paradoxalmente, hoje se assiste à crítica deste tipo de
história pela vontade de colocar a explicação no lugar da
narração, mas também, ao mesmo tempo, presencia-se o
renascimento da história-testemunho através do “retorno do
evento” ligado aos novos media, ao surgimento de jornalistas
entre os historiadores e ao desenvolvimento da “história
imediata” (1993, p. 9).

Em nossa pesquisa, assim, aspectos da logística, das rotinas produtivas do


jornalismo e, ainda, de suas produções enquanto produtos, encontram-se com a
ênfase de construção de uma história da Continental que busca privilegiar a
narração. Estas características de partida, no entanto, de algum modo eletivas, pela
necessidade ou gosto da pesquisa, não levam ao abandono outra ênfase,
representada pela busca de instauração da reflexão. Dito de outro modo, a
pesquisa se constitui em uma narrativa histórica sobre a Continental que não abre
mão da reflexividade, quer ao examinar este reconstruir do universo narrado, isto
é, a reflexividade centrada na análise dos diálogos de entrevistas, da linguagem e
da expressividade das narrativas; quer a busca da reflexividade sobre a realidade
do próprio universo histórico, em si, abordado e protagonizado pelos homens e
mulheres, como sujeitos únicos da Rádio Continental real-concreta.

É a reflexividade em perspectiva de orientação básica ao trabalho da


pesquisa que direciona, orienta e induz à racionalidade do processo geral,
racionalidade que busca reconstituir, em exposição, o modelo único e histórico
estabelecido pela Rádio Continental. Em suma, é o acionamento desta
120

racionalidade reflexiva no processo que garante ao pesquisador fugir da


concepção da história como mero relato trivial.

A reflexividade, localizada na arquitetura e no erguimento das narrativas,


encontra-se, também, na própria concepção do fato histórico e na noção,
necessariamente crítica, de documento. Ao enfatizar a constituição da história, a
partir das narrativas, estabelecemos uma noção crítica ao fato histórico, que não é
mais um objeto dado e acabado, pois resulta da interação do depoimento, da
narrativa oral e da participação do pesquisador. O mesmo processo atinge a noção
elementar de documento, não mais objeto ou material bruto, objetivo, inocente ou
ingênuo.

Contemporaneamente, a noção de documento amplia-se em profundidade


e quantidade e abarca desde a concepção de documento como monumento, como
em Le Goff e Foucault, até a idéia de documento enquanto dado isolado ou
conjunto para estatísticas e processos informáticos, numa concepção de história
quantitativa. Em nossa pesquisa, o conjunto de documentos nasce de etnotextos,
configurados em narrativas inéditas que constituem o arquivo oral para a história
singular da Continental.

É sob esta angulação que estabelecemos as funções sociais da Rádio


Continental, isto é, as especificidades destas em interações com o universo
sociocultural e político de Porto Alegre, como espaço privilegiado para a
reconstituição histórica da emissora em si.

Concluído o ciclo de observação e análise histórica do conjunto de


realizações radiofônicas da Rádio Continental, sobretudo no período iniciado em
1971 e concluído em 1979, podemos inferir que a interação social da emissora
esteve disseminada a serviço da comunidade de ouvintes, sobretudo, em três
direções. A saber, a Rádio Continental, em resumo, produziu: 1º) entretenimento;
2º) informação; e 3º) formação de opinião (através da oferta de conteúdos e
produções ideológicas, éticas, morais, culturais etc.). Esta compartimentação serve
como exercício de análise, muito embora, na prática e de fato, as três direções-
metas, como num elo, atuassem e desenvolvessem movimentos articulados e
121

interpenetrados dentro da programação global da emissora. Esta articulação da


programação integral foi objetivada como qualidade pela ação dos produtores da
Continental.

Estas três direções, estes três objetivos, metas desenvolvidas –


classicamente – podem ser encontrados, igualmente, na interação social histórica
de outras emissoras brasileiras, sobretudo, a partir da II Guerra Mundial, período
identificado como o do início da maioridade em qualidade técnica do rádio
brasileiro. A nossa pesquisa, pois, além de identificá-las na experiência da
Continental, tratou de interpretá-las.

Desde já, pode-se apontar como certo o fenômeno que distingue a


experiência da Continental das demais emissoras. É que o empreender, o
desenvolver e o garantir, de fato, deste conjunto de metas/objetivos, triplo e
organizadamente dado, como realização na prática da programação, foi logrado,
tão somente, historicamente, por emissoras de grande porte. A Continental, pois,
conseguiu desenvolver programação que oferecia as três funções sociais principais
sem ter poder econômico e político, tanto regional quanto nacionalmente, de
grande emissora. Mesmo as condições de gerenciamento, produção, infra-
estrutura técnica e operacional, em muitos itens, a Continental partia de
configuração modesta, quando não restrita, de emissora de médio ou até pequeno
porte.

Outros fatores singulares e dignos de distinção, quanto à história da


Continental, estão relacionados à posição da emissora no dial do sistema de
radiodifusão porto-alegrense, materializando-se num ponto do registro sem
tradição, nem quantidade de audiência, até então, e, igualmente, pela posição
geopolítica da emissora, localizada em Porto Alegre, necessitando erguer-se
contra alguns legados culturais e contra tantos outros valores políticos
hegemônicos, resistindo a uma geografia social, sob alguns aspectos, adversa.

Por fim, podemos afirmar que muito da singularidade histórica da Rádio


Continental desenvolve-se nesta inédita criação, montagem, moldagem e
122

oferecimento público de informação, de entretenimento e formação de opinião, no


cotidiano, ao longo de praticamente toda a década, a partir de 1971.

O detalhamento destas construções radiofônicas, no desenvolvimento


diário de oferecimento da programação, bem como a ressonância desta junto ao
público, na ocupação de dado espaço social através destas ações, no rádio e na
cultura porto-alegrense, são fatores distinguíveis como principais desta história da
Continental. Estes fatores são atualizados pelos atores, protagonistas, que
apresentam estas especificidades em diferentes estágios e narrativas.

A história da Continental que erguemos persegue a apresentação e


recuperação destes diferentes registros de narrativas. Assim, a presente pesquisa,
como sugere Vayne (1968, p. 423), constata que a história “quer uma série de
acontecimentos, quer a narração desta série de acontecimentos”. A presente
pesquisa busca construir a história da Continental enquanto elenco explícito de
narrativas, aqui recuperadas e atualizadas, pelo resgate da análise, advindas da
memória oral.

Conforme observância ao estabelecido por historiadores modernos e


cientistas socais, a história é a ciência da evolução das sociedades humanas (LE
GOFF, 1993, p. 16). Em nossa pesquisa, particularmente, a evolução constatada
indica o modo de fazer rádio, a produção diferenciada diante das adversidades
dadas. A presente pesquisa está centrada na exploração deste fazer. À exploração,
no processo, articula-se a indagação. O resgate destes passos está na narração.

Sob esta ótica, indicamos que o rádio protagonizado pela Continental é,


sobretudo, som e sentido. Inicialmente, sentido porque a sonoridade, qualquer que
seja esta, provoca efeito sensível sobre o ouvido humano.

Mas aqui, no caso específico da Continental, buscamos unir som


radiofônico, de determinada especificidade e qualidade, audível quando na
programação e recuperado pela memória, em seu conjunto de marcas e
significações históricas dentro da cultura. Assim, o rádio, aqui, é constatado como
somatório de som e sentido sob registro, rigorosamente, histórico, de interação
relacional na sociedade em que nasce e propaga-se.
123

Em sendo fenômeno aceito, com menor ou maior ênfase, pela ciência, que
a história é também uma prática social, como indica Michel de Certeau (1982, p.
104), buscamos e ressaltamos o caráter único, inédito, de cada um dos eventos,
historicamente, dados. E é, diante desta busca pelo estabelecimento e
compreensão da especificidade, pelo entendimento deste particular diante do
geral, que se verifica a associação, para o historiador, entre a explicação racional e
a urdidura do relato.

No dizer de Le Goff (1993, p. 16), esta necessidade premente do


historiador de misturar relato e explicação racional fizeram da história um gênero
literário, “uma arte ao mesmo tempo que uma ciência”, na expressão do
historiador. Mas, ressalta ele, se isto foi válido de Tucídides a Michelet, se foi
válido da Antiguidade até o século XIX, isto é menos verdadeiro para o século
XX e, de certo, problemático para vigorar no século XXI. Segundo Le Goff (1993,
p. 120), o problema está no tecnicismo. Mas, se o tecnicismo da ciência histórica,
reinante e crescente, tornou mais difícil para o historiador “parecer também
escritor”, existe, sempre, uma “escritura da história”. De qualquer modo, estamos
sempre no território da história-problema, enquanto desafio à racionalidade que,
entretanto, ergue-se, somente, mediante o relato.

Não devemos sucumbir ao apelo romântico, à maneira de Michelet, ensina


Le Goff (1993), que apregoa “uma ressurreição integral do passado”, ou cair na
armadilha positivista à La Ranke, para buscar no pretérito “aquilo que realmente
aconteceu”. Ficamos, sobretudo, com a proposição relacional sugerida por Bloch
(2001, p. 44-50), quando este articula as relações entre o passado e o presente,
buscando, não somente compreender o atual pelo remoto, como indica a sugestão
tradicional de história, mas, igualmente, compreender o passado pelo presente,
como estabelece em estudo.

A complexidade do saber histórico arrasa qualquer tentativa de


estabelecimento definitivo à priori para a questão do resgate do passado, do
anterior, seja do longínquo ou mesmo do passado próximo. A problematização
desta procura por cientificidade no resgate histórico está na crítica trazida pela
124

filosofia, quando Ricouer (1961) refere que as dificuldades do historiador não são
vícios do método, mas trata-se de “equívocos bem fundamentados”.

Para aquele pensador,

a história só é história na medida em que não consente nem no


discurso absoluto, nem na singularidade absoluta, na medida
em que o seu sentido se mantém confuso, misturado...[...] A
história na verdade é o reino do inexato. Esta descoberta não é
inútil; justifica o historiador. Justifica todas as suas incertezas.
O método histórico só pode ser um método inexato... A história
quer ser objetiva e não pode sê-lo. Quer fazer reviver e só pode
reconstruir. Ela quer tornar as coisas contemporâneas, mas ao
mesmo tempo tem de reconstituir a distância e a profundidade
da lonjura histórica (RICOUER, 1961, p. 226).

A narratividade, baseada em alguns de seus princípios, ainda que


redutores, e por isto, ao mesmo tempo, “viciados”, surge como possibilitadora de
continuidade, de resgate do processo humano e histórico. Em nossa pesquisa, esta
narratividade é como o fio condutor, mesmo que sujeita à criticidade
canibalizadora da filosofia da história, quando não, igualmente, se oferece como
alvo fácil para o míssel crítico da historiografia.

Por ora, ficamos com as instâncias mínimas da expressividade, da


delimitação e da estruturalidade, conjunto de propriedades formais de texto, aqui,
refuncionalizados como sistema de signos para constituição da história da Rádio
Continental. Através deste conjunto, podemos definir e avançar para o estágio de
estabelecimento de texto émico em articulação ao conceito de texto ético, retirados
da Teoria da Literatura (AGUIAR E SILVA, 1983, p. 565-571).

5.2 SOBRE AS NARRATIVAS DA CONTINENTAL: CONCEITUAÇÃO E


TIPOLOGIA

Passamos a apresentar e a desenvolver, a seguir, aquilo que denominamos


de narrativas da Continental. Inicialmente, tentamos esclarecer nossa motivação
pela escolha do próprio termo. No desenvolvimento da questão, apresentamos e
125

designamos as construções textuais selecionadas como narrativas. São estas


narrativas, pois, que surgirão como equacionamentos ordenadores que associam, a
seguir, a investigação conceitual e a própria opção designativa e organizadora de
processo para o pesquisador.

Antes, estabelecemos, ordenamos e apresentamos, de imediato, dois


grandes grupos de narrativas da Rádio Continental, aqui, articulados pelo trabalho
da pesquisa. Isto é, alinhamos as narrativas em dois grandes blocos, em dois
diferentes grupos básicos, de construção comunicacional e cultural,
primeiramente, da emissora e, logo a seguir, sobre esta realizada, empreendida, na
prática e realidade histórica recuperada, por diferentes agentes e instâncias.

Inicialmente, selecionamos, com destaque, as narrativas empreendidas pela


própria Continental, produzidas na existência real da emissora, porque
acompanhar, processualmente, aquele desenrolar das mesmas, na prática,
significou conseguir, enquanto realização da pesquisa, restabelecer para analisar o
modelo particular da rádio emissora pesquisada. Consideramos, assim, como o
grupo de narrativas da Continental todo aquele conjunto produtivo particular
daquela mídia, pela mesma retransmitido, inserido dentro do corpo da
programação da emissora, radiofonizado, à época, e recuperado, por nós, pela
ação da pesquisa e pelo presente relato de tese.

Em segundo lugar, buscamos as narrativas empreendidas sobre a


Continental. Ou seja, pesquisamos, exaustivamente, aquelas narrativas
estabelecidas sobre a ação comunicativa da referida emissora no tempo histórico
estudado. Buscamos, então, as narrativas desenvolvidas tendo como objeto e foco
central a trajetória trilhada pela Rádio Continental, observada, abordada sob
angulação ou parcialidade específica, durante determinado ciclo histórico, e pela
pesquisa selecionado, nesta presente abordagem de estudo. Consideramos
narrativas sobre a Continental, sobretudo, aquelas empreendidas por terceiros, em
jornais, revistas, documentos outros e textos. Eventualmente, recortamos,
consideramos e utilizamos como narrativas sobre a Continental peças aleatórias,
determinados documentos ou fragmentos pela emissora produzidos, desde que não
tenham sido veiculados pela própria rádio emissora em questão.
126

Designamos narrativas, indistintamente, tanto da Continental (para aquelas


produzidas pela própria emissora), quanto aquelas sobre a emissora estabelecida e
estudada, todas as diferentes formações discursivas e textos por aquela rádio
oportunizados, quer durante, quer após a existência real-concreta histórica da
mesma, na cidade de Porto Alegre, especialmente, na década iniciada em 1970.

Até chegarmos à designação de narrativas, para o conjunto de produções


culturais, midiáticas e radiofônicas da Continental, como, igualmente, para o
conjunto de estudos escritos, documentos encontrados e testemunhos orais sobre a
rádio estabelecidos e recolhidos pela ação da pesquisa, acompanhamos os estudos
de orientação semiótica e semiológica sobre forma e conteúdo, texto e signo, na
dimensão sintática e no estudo ao nível semântico-pragmático. Igualmente,
fizemos pesquisa em textos teóricos da análise do discurso e utilizamos conteúdos
da teoria da literatura, em aplicação heterodoxa, para o exame do conjunto das
narrativas.

Assim, iniciamos com a concordância do estabelecimento, quase de modo


unívoco, por inúmeros teóricos de diferentes orientações, que determina ser texto
a expressão singular de tudo aquilo que reúne, material e simbolicamente, numa
expressão dada, alguma forma (estrutura sintática) e algum conteúdo (nível
semântico-pragmático). Logo, são textos sonoros da narrativa Continental tudo
aquilo que se estrutura em forma e conteúdo próprios, tendo por suporte a base
técnica elétrico-eletrônica, assegurada pela articulação e uso de microfones,
transmissores e antenas.

Neste encaminhamento, o conceito de texto, logo, amplia-se,


direcionando-se para aquele, ainda mais complexo e amplo, de signo. Em torno da
questão, vejamos Décio Pignatari (1982, p. 28), para quem

embora a palavra texto tenha como referente “conjunto verbal”,


podemos estendê-la aos signos em geral, definindo texto como
um processo de signos que tendem a eludir seus referentes,
tornando-se referentes de si mesmos e criando um campo
referencial próprio.
127

Nosso objetivo foi chegar até a expressão daquilo que a Continental


realizou como narrativas, configuradas enquanto conjunto de registro sonoro, da
expressão escrita, da projeção musical, do texto jornalístico e da construção
simbólica publicitária, conjunto articulado de narrativas constitutivas de padrão
radialístico-radiofônico.

A pesquisa resgatou, igualmente, as narrativas sobre a Continental,


conjunto de configurações discursivas diversas, produções de informação e
também conceituais erguidas, a posteriori, sobre a Continental, que encontramos
e enfrentamos como problematizações da tese.

Para o nosso entendimento, denominamos de narrativa Continental aqueles


textos ou conjunto de signos cuja produção expressiva, verbal e não-verbal,
mostra-se particular e histórica, a partir da situada enunciação, que, logo, instaura
enunciador e audiência. Em nossa pesquisa, a situacionalidade da enunciação
termina por tipificar, ou tornar exemplar, determinado tipo de narrativa, recortada
para análise da pesquisa e denominada, como fenômeno central, por narrativa da
Continental. Sendo esta narrativa, texto ou signo, sempre uma produção
estabelecida pela ou sobre a Rádio Continental, necessariamente.

Entendemos que todo ato de linguagem, todo ato de fala, em suma, que
todo discurso, com esta ou aquela cifra de significação, é, igualmente, um modo,
uma forma específica de ação. Na presente pesquisa, a especificidade da ação,
para nosso juízo, está centrada em algum tipo de narração, vale dizer, enunciação.
Por isto, foi preciso investir em questionamentos que levaram a nossa
problematização sobre narrativas até a região de fronteiras entre a teoria da
literatura, a análise do discurso, a lingüística e a semiótica.

A narrativa Continental, por nós entendida, é, sobretudo, um dispositivo


que articula texto escrito, palavra falada, som, silêncio, música, como
componentes, como ingredientes, ao mesmo tempo, individualizados e
articulados, na ação comunicativa, pelo todo. Se a potência desta narrativa
Continental está mais na articulação produtiva e comunicativa dos termos, se está
128

no conjunto enquanto totalidade, no todo articulado, como dispositivo, já, aqui, a


nossa ênfase, nossa proposta de trabalho, reside em outra possibilidade.

Neste presente capítulo, trata-se de realizar uma análise, torna-se opção da


pesquisa, justamente, a individuação das partes, a busca pelo seccionamento, a
tentativa de análise parcial, a contar da especificidade de cada tipo de texto, desde
o verbal, seguindo pela oralidade, pelo estudo de sons, de música, como modo de
operar, como possibilidade de estudo e de configuração do modelo da Continental
constituído pela tese. Em resumo, seccionamos o todo em partes para podermos
analisar, estudar e, também, relatar o estudado, separadamente, destacando
aspectos importantes de cada questão relevante. A totalidade, o todo articulado, o
conjunto das narrativas enquanto tal será retomado e analisado, a seguir, no corpo
da tese, em capítulo teórico específico.

Por ora, neste capítulo, de modo estrito, partiu-se da lingüística, iniciando-


se com a textual, notadamente aquela estabelecida, em concomitância, com o
tempo áureo da Continental, década iniciada em 1970, que elege o objeto central
do problema, localizando-o na especificidade da textualidade em si, tendo esta
textualidade as propriedades de coesão e de coerência, que fazem com que um
texto seja, praticamente, irredutível a uma simples seqüência de frases
(MAINGUENEAU, 1998, p. 142). Este enquadramento possibilita o tipo de
pesquisa que pode ser efetuado a partir de diferentes pontos de vista, tendo como
ordenador o sentido.

A saber, torna-se possível partir do ponto de vista do produtor, por


exemplo, para determinar qual processo é acionado para a produção de um texto
que forma uma unidade. Ainda, pode-se centrar a pesquisa no ponto de
observação do chamado co-enunciador, para estabelecimento daquilo que seria
um determinado modo de compreensão do texto, ou, mesmo, posicionar a
pesquisa, desde um ponto de vista do analista-especialista, com a necessária
hierarquização dos textos dados.

Retemos, entretanto, certas especificidades de ensinamentos fundamentais


advindos da lingüística moderna, sobretudo, aqueles possibilitados pelos
129

embasamentos centrais, quando buscam definições conceituais para o


discernimento de problemas, investigando e criando termos, tais como, enunciado,
discurso, fala, entre outros.

Na problemática anterior à análise do discurso, o termo central discurso


somente poderia ser sinônimo de enunciado, do ponto de vista frasal terminal,
lingüístico. Ora, contemporaneamente, discurso é a linguagem posta em ação, a
língua assumida pelo falante, sendo, assim, sinônimo de fala. Também, o discurso
é, aqui, sinônimo de enunciado, ao tornar-se a unidade igual ou superior à frase,
constituído por uma determinada seqüência, com um começo, um meio e um fim
(DUBOIS, 1993, p. 193).

Neste desenvolvimento de conceituações, graças aos estudos de Ferdinand


de Saussure, Jacques Lacan e Emile Benveniste, as frases não constituem mais
uma classe formal de unidades que se opõem entre si, como os fonemas se opõem
aos fonemas. A frase, agora, é a unidade do discurso; deixa-se o domínio da
língua como sistema de signos e a língua funciona como instrumento de
comunicação, trata-se de estudar a frase como unidade de discurso.

Com freqüência, o termo “texto” recebe denominação variável, como


vimos, confundindo-se, ora em contigüidade, ou mesmo fusão, com os conceitos
de discurso e enunciado. Já constatamos que texto pode ser definido como uma
seqüência lingüística autônoma, seja esta oral, sonora ou escrita, produzida por
uma fonte ou várias, enquanto enunciadores numa determinada situação de
comunicação. Brown e Yule (1983) definem texto como “o registro verbal de um
ato de comunicação“.Como se pode depreender desta afirmação, conforme a
crítica de Mainguenau (1998), a definição acarreta problemas, pois, na escrita,
sobrexiste o problema do suporte, visto que texto manuscrito, ou impresso, de
diferentes maneiras, não segue sendo o mesmo texto. Já, na oral, o problema
reflete-se na reprodução ou transcrição da entonação, dos silêncios, pausas, etc.

Em nosso caso, trata-se de pesquisar as narrativas como especificidades de


processos discursivos, de modo a identificar encadeamentos e tipos diferentes de
realização.
130

Não menos complexas, igualmente, dotadas de articulações lógicas


racionais, auto-suficientes, bem-estruturadas se mostram, especificamente, as
contribuições conceituais oriundas da semiótica, aqui direcionadas para a
elucidação da questão central da narrativa, conforme podemos estudar.

Partimos da possibilidade de definir a narrativa simples, enquanto conceito


inicial. Trata-se, aqui, daquela narração reduzível a uma frase, onde ocorre uma
passagem de estado, uma transformação narrada. Parte-se de um estado anterior
para outro ulterior. É esta qualidade primária que constitui um programa narrativo.

Para a semiótica, o termo narrativa, no nível das estruturas discursivas,


designa a unidade, situada numa dimensão pragmática, de caráter figurativo,
obtida pelo procedimento da debreagem enunciativa. Na esteira de Propp, a
narrativa inscreve-se em coordenadas espaço-temporais, como uma sucessão
temporal de funções, no sentido de ações. Segundo Greimas e Courtés (1979, p.
296-297), no entanto, a narratividade não concerne apenas a uma classe de
discursos. Para estes autores, as estruturas semióticas, ditas narrativas, regem as
estruturas discursivas: “No projeto semiótico, que é o nosso, a narratividade
generalizada – liberada do sentido restritivo que ligava as formas figurativas das
narrativas – ocorrências – é considerada como o princípio organizador de qualquer
discurso”.

Assim, as estruturas narrativas podem ser definidas como constitutivas do


nível profundo do processo semiótico. Para nossa interpretação, com isto, a
narrativa, bem como a qualidade desta, a narratividade, ultrapassa o problema
anteposto por Benveniste, quando aquele mestre opõe história a discurso (no
sentido restrito). Como é sabido, neste caso, para Benveniste, o critério é a
categoria da pessoa. A não-pessoa caracteriza o enlace da história. Enquanto isto,
a pessoa, instituída como o “eu” e o “tu”, é própria do discurso, do diálogo.

A narratividade, aqui, seria aquela dada propriedade que caracteriza


determinado tipo de discurso, como qualidade a partir da qual seriam distinguidos
os discursos narrativos dos discursos não-narrativos.
131

Novamente, segundo Greimas e Courtés (1979, p. 295), o próprio


Benveniste e Genette socorrem com a preferência em não distinguir duas classes
independentes de discursos, mas se referem à problemática como dois níveis
discursivos autônomos: “Adotamos uma organização relativamente próxima: o
nível discursivo e, para nós, do domínio da enunciação, enquanto o nível narrativo
corresponde ao que se pode denominar enunciado”.

Para nossa perspectiva de pesquisa, assim, estabelecemos que todo


enunciado pertence, de algum modo, ao nível narrativo. Já todo e qualquer
enunciado pode, ou não, sê-lo.

Vislumbramos respaldo, ainda, em certa teoria da literatura que comunga


com a semiótica determinadas abordagens em delimitadas zonas conceituais,
muito embora desenvolva resoluções de equacionamentos próprias, isentas, na
específica abordagem da polissêmica quanto ao termo narrativa. Vejamos, a
seguir.

Massaud Moisés (1985, p. 355) recorre à etimologia e refere uma tradução


do termo latino narratione identificado como ação de narrar, de tornar conhecido.
Parte, a seguir, o estudioso para o enquadramento conceitual e dupla enumeração
de sentido e uso do termo. Segundo investiga o Autor, logo, o vocábulo narração
abarca duas acepções, direcionando-se para um enquadramento na arte retórica e
outro posicionado no campo da prosa de ficção.

No primeiro caso, narração constitui uma das partes mais importantes do


discurso, a narrativa que, conforme aquilo que estabelece o Manual de Retórica
Literária, de Lausberg (1966, p. 261), se define como a “exposição
pormenorizada, parcial, encarecedora do que de modo sintético e direto se
expressa na proposição”. Definição esta, aqui, presa à tradição semelhante da
antiga definição lingüística acima revista.

No segundo caso, no campo da teoria e da crítica literária, mais


propriamente, o termo narração aparecerá, de modo excessivo, na opinião do
Autor, como sinônimo amplo de fábula, história, ação, configurando o que
denomina “uma abusiva extensão semântica”. O Autor sugere a utilização, com a
132

qual concordamos, do termo “narrativa” para uso e denominação genérica,


destinando o vocábulo “narração” para o domínio mais específico, termo
designativo de recurso expressivo da prosa de ficção. São recursos expressivos,
ainda, ao lado da narração, também, a descrição, o diálogo e a dissertação. Por
fim, destacamos, com Massaud Moisés (1985, p. 356), a ressalva de que é
“possível divisar-lhe a presença (da narração) sempre que se observa a
enumeração de acontecimentos ou fatos”.

Avançamos com as propostas trazidas por Petitjean (1989), quando este


estabelece as tipologias dos discursos em três classes, a saber, as tipologias
enunciativas, as tipologias comunicacionais e as tipologias situacionais.

As primeiras fundam a sua relação entre o enunciado e a situação de


enunciação (com seus três pólos: interlocutores, momento, lugar da enunciação).
Neste caso, a tipologia fundadora é a de Benveniste, com a clássica diferenciação
proposta entre discurso e história.

Em segundo lugar, as tipologias comunicacionais classificam os discursos


a partir das intenções comunicacionais manifestas e encontram aplicação, por
exemplo, na grade proposta por Jakobson (1995, p. 123-135), através da
formulação que distingue os discursos pela maneira segundo a qual os mesmos
hierarquizam as “funções da linguagem” (emotiva, referencial, fática, poética,
conativa, metalingüística).

Por fim, as terceiras são as tipologias situacionais que apontam como


destaque para a interação social, como o espaço de domínio, no qual se exercem
os discursos. Nestas tipologias, estão localizados os discursos produzidos por
áreas delimitadas, por zonas, por bairros etc. Igualmente, identificamos, além dos
discursos de lugar, os diferentes tipos de discursos de gêneros, entre os quais
destacamos os gêneros jornalísticos. Uma derivação destas tipologias recorta os
corpus articulados com e sobre posicionamentos socioistóricos. Através deste
enfoque, a formação discursiva recebe a denominação de arquivo, sobretudo, por
sugestão da Escola francesa da análise do discurso.
133

Foucault, Pêcheux e Maingueneau, entre outros, referem-se ao termo


arquivo, valendo-se do mesmo de três formas diferentes. Para nosso trabalho,
retemos o empregado pelo último Autor acima-referido.

Para Maingueneau (1991, p. 15), a opção por utilizar denominação


arquivo, em detrimento de formação discursiva tem dupla função. Primeiro,
marcar, delimitando os tipos de fenômenos interessantes à pesquisa,
necessariamente, pelos enunciados localizados em um mesmo posicionamento
socioistórico. Segundo, valendo-se da etimologia grega de arquivo (archéion),
sublinhar, em destaque, que os objetos são inseparáveis de uma memória e das
instituições de origem que conferem autoridade, ao mesmo tempo em que
garantem a própria legitimidade através dele.

É neste sentido, semelhante ao esquema acima descrito, que o arquivo da


comunidade dos sujeitos que fizeram a Rádio Continental é articulado, na
constituição da história peripecial daquela emissora, com a validação social e
histórica da própria emissora, enquanto ente, instituição.

A configuração de arquivo se articula, de algum modo, com a definição de


documento. Aqui, documento é estabelecido em contraposição à formação de
texto, enquanto formação semanticamente rica. Assim, documento é aquele
enunciado que busca uma univocidade enquanto descrição do mundo, sem suscitar
emoção, nem estranhamento etc (PEYART; MORAND, 1992).

Existem, ainda, duas outras contribuições teórico-investigativas que, aqui,


destacamos pela importância de iluminação na presente pesquisa. A primeira
destas, com Bronckart (1985), ao examinar o funcionamento do discurso,
identifica e isola quatro tipos diferentes daquilo que denomina por arquétipos
discursivos. São estes quatro: discursos em situação, relato conversacional,
discurso teórico, narração. Logo, associa a estes uma imensa variedade de tipos
efetivos.

Outra contribuição, igualmente interessada nos grandes tipos, vem de


Bakhtin (1993, p. 100-102), quando estabelece haver, de um lado, a imensa gama
de gêneros primeiros, aqueles apresentados, desenvolvidos pelas interações
134

sociais da vida cotidiana e, historicamente, ao lado deste, os gêneros segundos, do


discurso literário, jurídico, científico, etc. A cultura vive a complexidade dos
gêneros. Deste modo, em cada uma das manifestações lítero-verbais, a
consciência lingüística, socioideológica, concreta, orienta-se, ativamente, para o
pluridiscurso. As narrativas da Rádio Continental são formas do pluridiscurso
identificadas através de nossa pesquisa, entretanto, assumindo formas particulares
de narrar o universo-mundo em mutação da cidade de Porto Alegre, a partir de
1971, naquele espaço de enunciação construído pela Continental.

Podemos, então, identificar, inicialmente, em apresentação isolada, como


angulação para a abordagem posterior, as narrativas da Continental sobre a
emissora aqui pesquisada.

São narrativas exemplares que, analisadas isoladamente, são dotadas de


características próprias, de propriedades singulares, de modo a configurá-las
dentro de um determinado gênero, grupo ou tipificação, como veremos. Mas,
sobretudo, são narrativas que, mesmo recuperadas sob o registro da
descontinuidade, com as marcas das falhas, ou sob a constatação da falta, são
construções relacionáveis, legítimas, expressivas e comunicadoras: são as vozes
narrativas da Continental que assumem força e formação discursiva maior, dando
idéia aproximada, hoje, daquilo que foi o conjunto da programação, ao vivo, da
emissora em seu tempo histórico de vida.

Sob esta angulação, o conjunto de narrativas da Continental, logo a seguir


exposto, indicativamente, traduz, expressa e apresenta uma criação singular, um
modo próprio local, uma capacidade humana específica de comunicar, por meio
de sistemas de signos vocais, verbais, sonoros e escritos – amplificados pelos
microfones, pela central técnica, pelos transmissores e pela antena da emissora,
articulando performances técnicas correntes da engenharia de radiodifusão, com
outras mais complexas, de expressividade comunicativa e interativa, propulsoras
de funções simbólicas fundamentais, marcantes no imaginário juvenil, na
memória cultural, urbana e na vida socioistórica de Porto Alegre, de ontem,
sobretudo, e, de algum modo, ainda hoje, na atualidade líquida (BAUMAN,
2001).
135

As diferentes narrativas, a seguir apresentadas, estão divididas em dois


grupos. Primeiro, aquelas que foram produzidas pela Continental. Em segundo, as
narrativas que foram produzidas sobre as experiências e peripécias daquela
emissora, aqui recuperadas. São estas as narrativas que foram estudadas,
pesquisadas e estão dispostas de modo a possibilitar o relato acadêmico coerente,
coeso, dotado de racionalidade, para possibilitar uma reconstituição de modelo
histórico radialístico e radiofônico da própria rádio em questão.

5.3 AS NARRATIVAS URBANAS: MODELOS CONSTRUÍDOS PELA


CONTINENTAL

Primeiramente, pretendemos fugir daquele conceito mais estreito de


narrativa, que encarcera o termo tornando-o, apenas, designativo de fenômeno
expressivo da literatura de ficção ou efeito expresso, escrito desta. Nosso enfoque
recai em Barthes (1972, p. 19-20), quando ele entende que

Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há, em primeiro


lugar, uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre
substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que
o homem lhe confiasse suas narrativas. A narrativa pode ser
sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela
imagem fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de
todas estas substâncias; está presente no mito, na lenda, na
fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na
tragédia, no drama, inclusive está na comédia, na pantomima, a
pintura, no vitral, nos cinema, nas histórias em quadrinho, no
fait divers, na conversação. Além disso, sob estas formas quase
infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em
todos os lugares, em todas as sociedades... internacional, trans-
histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida.

Denominamos por conjunto de narrativas urbanas da Rádio Continental


aquele elenco de produções, estabelecidos pela emissora, ao longo do tempo
histórico, ofertado através da programação geral da emissora. Estão, aqui,
compreendidos os diferentes textos, dotados de forma e conteúdo, incluindo-se
136

entre estes, os discursos orais, os textos sonoros, os musicais, os publicitários e os


jornalísticos. São narrativas, igualmente, as diferentes formações discursivas,
sejam de gênero jornalístico, sejam publicitários ou de auto-institucionalização da
emissora. São consideradas narrativas urbanas da Continental todas as diferentes
sonoridades, construídas pelas vozes humanas, pelos instrumentos sonoros e
mecânicos, pela reprodução musical, pela apresentação em estúdio em
programação “ao vivo” ou gravadas, empreendidas por agentes/atores locais,
nacionais ou estrangeiros, com ritmos, sotaques, timbres diferenciados.
Dispositivos narrativos diferenciados, com identidade própria da emissora,
produtores de sentidos, de construções simbólicas de significado social, com
ressonância na vida socioistórica de Porto Alegre à época. São narrativas, pois,
onde as formações discursivas e as enunciações com timbres locais aliam-se à
produção de arte-fatos da comunicação social dirigida.

Como modo de recuperação desta produção diferenciada das narrativas


urbanas da Continental, selecionamos e indicamos as modalidades para o estudo.
A saber, exemplificamos, a seguir, as diferentes narrativas urbanas da
Continental, analisadas conforme particularidades próprias: 1) radiojornalísticas;
2) “discurso livre” (falas dos DJ’s); 3) publicitárias; 4) slogans e carimbos
sonoros; 5) metonímicas; 6) auto-institucionalização (de identificação); 7)
musicais; 8) paródicas e humorísticas.

5.3.1 Narrativas Radiojornalísticas

O rádio é som e sentido. E o sentido social e histórico de uma emissora


pode ser garantido, pode chegar para o ouvinte pela transmissão de sons através
das narrativas jornalísticas, em especial, das produzidas pelos programas de
síntese noticiosa e pela versão padrão, completa, de radiojornal, que amplia o
padrão da síntese por ativar maiores recursos justapostos à apresentação de
notícia, pela inclusão da reportagem, do comentarista profissional, do analista
leigo etc.
137

Por isto, urge como necessário, seja para uma rádio-emissora de pequeno,
médio ou grande porte, possuir, em alguma escala, estrutura produtiva de
radiojornalismo. Isto se tornou verdadeiro, para cada categoria e porte de
emissora, possuindo esta, ou não, equipe completa de redação e/ou departamento
de jornalismo. No Brasil, inclusive, a legislação vigente determina
proporcionalidade percentual de programação voltada para a informação, em
relação, sobretudo, à veiculação de publicidade e propaganda e à quantidade de
programação musical e de entretenimento, em geral.

Aqui nos orientamos para a singularidade sublinhada pela teoria do


agendamento, quando esta ressalta que “as notícias acontecem na conjunção de
acontecimentos e de textos. Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia cria
o acontecimento” (TRAQUINA, 2000, p. 26).

Neste direcionamento, ainda, as notícias são consideradas como


construções, narrativas, “estórias” e chega-se, assim, à configuração da notícia
como realidade construída, pública e possuidora de validade interna própria,
conforme aponta Traquina (2000, p. 27).

As narrativas radiojornalísticas da Continental, ainda, tiveram aspectos


peculiares, com diferenciação comprovável, identificável desde a rotina no eixo
da produção de notícias, a partir da captação, preparo, pré-produção, até a
apresentação, no ar, de programas noticiosos.

Igualmente, além dos aspectos técnicos, das peculiaridades das rotinas de


produção, de estratégias redacionais e de locução-apresentação, a Continental
criou e notabilizou discurso político-ideológico próprio, de oposição ao
militarismo, de antagonismo aos governos municipal, estadual e federal. O
discurso da Continental, assim, buscava o “saber de reconhecimento” onde outras
emissoras sequer atuavam, agregando esta prática aos demais valores-notícia,
como valoração da proximidade geográfica e notoriedade. Mas, entre os valores-
notícia, o conflito e as narrativas de oposição ao autoritarismo assumiam destaque
na programação noticiosa.
138

Sem deixar de buscar o lucro empresarial próprio, de anunciantes e


terceiros, a emissora divulgou valores de comportamento como o pacifismo, de
defesa dos direitos humanos e da liberdade de expressão, de democracia para o
Brasil, bem como de justiça social para todos e paz entre os povos.

Muitos dos valores éticos, morais, políticos, culturais e humanos foram


propagados pela Continental, ideologicamente, através das narrativas de sínteses
noticiosas.

Mesmo numa emissora marcada pelo repertório e pelo código do


anticonvencional, pela orientação oposicionista, pelo caráter contestatório, e sendo
produzida por uma maioria de jovens, o espaço destinado para a transmissão de
notícias terminou sendo, como em outras emissoras regulares, o local de hard
news, de temas sérios, de questões sociais cruciais, de indagações políticas
relevantes.

O caráter diferenciado, de modo a marcar, indelevelmente, a narrativa


radiojornalística da Continental, entretanto, esteve, igualmente, neste território,
tradicionalmente, tão sisudo, de formalidade seca − quando não dramática − na
escrita, na roupagem da trilha sonora característica e no timbre da locução-
apresentação dos programas de síntese noticiosa. Ainda que, como afirmamos
anteriormente, apesar dos esforços de instalação da criatividade e da inovação
protagonizados pela equipe Continental, a tradição ainda operasse e marcasse, de
diferentes modos, a narrativa e o produto mass-midiático final apresentados.

Isto se deve, em nossa opinião, à existência, primeiramente, do contágio


pela ação de um forte padrão histórico, e, hoje, de um fantasma, igualmente, com
força de onipresença. A tradição histórica construída ergue-se pelo modelo-padrão
radiofônico empreendido pelo “Repórter Esso”. Aquele programa, como é sabido,
nasce sob impacto da II Guerra Mundial, em agosto de 1941, com o patrocínio de
empresa multinacional de petróleo, para atualizar ouvintes do Brasil e da América
Latina, com as recentes e urgentes informações sobre o conflito mundial, a partir
do ponto de vista das Forças Aliadas e, sobretudo, do governo norte-americano.
(para mais detalhes, ver KLOCKNER, 2003). O “Repórter Esso”, “testemunha
139

ocular da história”, termina por marcar a sociedade brasileira e por criar um


padrão de programa de síntese noticiosa único, eficaz, rígido e inolvidável para os
radialistas do futuro.

O “Repórter Esso”, assim, fixará marcas no fazer radiojornalístico, a


começar pela roupagem, pela trilha de abertura característica, com reprodução de
conjunto de instrumentos de sopros, fortes, marciais, como a anunciar a gravidade
e a urgência das notícias a serem divulgadas. O padrão marcial estava, igualmente,
na dramaturgia de locução-apresentação, e as notícias, no conteúdo, relatavam
fatos trágicos, bélicos, sobretudo, notícias duras sobre a realidade brasileira e do
mundo. Este dado padrão estabelecido pelas transmissões do Repórter Esso
marcará, em grande parte, o fazer específico do radiojornalismo brasileiro, a partir
de então, e até os dias de hoje, seja na produção, seja na apresentação de
programas de síntese noticiosa e radiojornal, com ressonância, inclusive, na
formatação do telejornalismo nacional.

A Rádio Continental, de modo particular, viveu, em tensão, o desafio de


tentar ultrapassar, de recriar aquela tradição imposta pelo “Repórter Esso”. A
tensão vivida esteve na contradição de necessitar ultrapassá-la e, ao mesmo
tempo, de necessitar provar, para a sociedade e para o mercado, a capacidade
alocada de saber fazer, de poder repetir, em termos, o padrão Esso, com eficácia e
competência radiojornalística, décadas após o modelo original ter entrado,
triunfalmente, no ar.

A moldagem de modelo próprio para a redação, para a produção e


apresentação de síntese noticiosa da Continental, representado, sobretudo, pelo
consagrado programa “1.120 é Notícia”, terá, ainda, outro padrão, em diálogo,
qual seja, aquele ofertado pela Rádio Guaíba, através do “Correspondente
Renner”.

A Rádio Guaíba existe, oficialmente, desde 30 de abril de 1957. E o


“Correspondente Renner” data do mesmo ano, antecedendo, no ar, em cinco dias,
a própria data de inauguração oficial da Guaíba (GALVANI, 1996, p. 183). O
“Renner” é congênere regional do “Esso”. Enquanto aquele tem fama nacional e,
140

aqui, é transmitido pela Rádio Farroupilha, integrante de rede que constitui o


primeiro império jornalístico brasileiro (Diários e Emissoras Associados, de Assis
Chateaubriand), o “Correspondente Renner” é produzido pelo grupo de
comunicação hegemônico, à época, no Rio Grande do Sul, a Companhia
Jornalística Caldas Júnior. A exemplo do “Esso”, o “Renner” nasce a partir de
ação de empresa multinacional, no caso, a sucursal gaúcha da norte-americana
Grant Advertising. O “Correspondente” tem nome fantasia vinculado ao
patrocinador exclusivo, A. J. Renner Indústria do Vestuário.

O “Renner”, pois, será, ao mesmo tempo, o modelo-padrão regional e o


fantasma local vigente sobre o imaginário da jovem equipe da Continental. Mas,
pela contigüidade física e cultural se constroem pontes, repasses, trocas de
profissionais e, com as atuações profissionais, reconstrói-se, recoloca-se, em novo
arranjo, a tradição, agora, a serviço da construção do novo radiojornalismo a ser
erguido no 1120 do dial.

Alguns dos locutores-noticiaristas e locutores-comerciais da Continental


têm como procedência profissional a Rádio Guaíba, incluindo os dois primeiros
nomes da hierarquia organizacional da Continental, também eles locutores. Aqui,
tem importância não apenas a procedência, mas o fato de aquela emissora porto-
alegrense existir como principal referência de qualidade técnica, como
constatamos. A apresentação do programa de síntese 1120 é Notícia segue esta
mesma lógica. O padrão técnico de locução, incluindo a chamada “qualidade de
voz”, está garantido com isto. A ênfase da Continental, no entanto, será, ainda,
pela busca permanente pela inovação, embora conviva com a referência ao
chamado “estilo Guaíba”, mesmo por antítese à nova programação que “não pode
interessar a pessoa com mais de 40 anos”, como apregoava Fernando Westphalen.

A partir desta decisão, busca-se uma síntese noticiosa mais conversacional,


mais editada pela opinião, com o padrão de apresentação associando nova
impostação, nova postura de vozes com o novo registro, ora irônico, ora
despojado e límpido, na descrição-narração da realidade. Para tanto, é
fundamental contar, pois, com novo padrão de redação. Utiliza-se a leitura atenta
das fontes disponíveis. A edição é a interpretação dos fatos ocorridos e analisados.
141

A procura por inovações não reside somente num único aspecto e


impregna diversas instâncias das rotinas de produção. Busca atingir a cada um dos
detalhes da totalidade do programa, do artefato final, a começar pela música
padrão característica do programa e a continuar pela estrutura e inserção das
edições na grade da programação. A escolha pela hora cheia, como marco para
apresentação, somente a partir de 1990, seria utilizada por emissoras como a
Gaúcha.

Tradicionalmente, tomando-se o “Correspondente Renner” como exemplo


padrão, aquele programa de síntese noticiosa tinha, e ainda tem, quatro edições
diárias, com programetes de dez minutos de duração para cada edição. Já o “1120
é Notícia” tinha edição completa de três minutos para cada programete e ocorria
em dezessete vezes, ao dia, sempre ao final da chamada hora cheia. Esta mudança
estrutural na grade de programação garantia para a Continental, ao mesmo tempo,
maior freqüência para edição de hard news, mais agilidade para deslocar-se diante
dos gigantes na produção da informação e possibilidade de solidificação da
imagem da emissora como, fortemente, atuante em radiojornalismo. Além disso, a
hora cheia era marco referencial para a própria lembrança dos ouvintes.

Já a trilha musical característica para as edições do programa “1120 é


Notícia” nasceu com sonoridade que, igualmente, marcou pela inovação. Para
tanto, perdeu aquele aspecto solene de toque instrumental marcial, retumbante, de
outros programas congêneres. No lugar do som mais forte das trombetas, onde
ainda estão os instrumentos de sopro, existia, agora, uma outra tonalidade, com
outra intensidade e outra significação sonora. No lugar do pesado som marcial,
tonitruante, entrava o ritmo envolvente, agora, inspirado na agilidade do mambo.
Trata-se de uma trilha recortada, em montagem de estúdio, com tempo total de
cerca de dez segundos, retirada da parte final do Overture de West Side Story,
trilha original composta por Leonard Bernstein, para filme homônimo.

Se a música trilha característica não podia contar, por exemplo, como


fizera a Rádio Guaíba, com a contratação por demanda do jingle-maker Miguel
Gustavo que tivera, ainda, o auxílio do maestro Guerra Peixe, para compor com
exclusividade a característica do “Correspondente Renner”, a Continental
142

inovava, substituindo o som marcial pelo ritmo mais ágil do mambo. A


criatividade, na Continental, buscava, assim, suplantar alguma modelagem antiga,
porém, igualmente, significava, o modo próprio para superação da falta de
recursos econômicos para a contratação de profissionais.

Esta mesma estratégia pela criatividade aparecerá para superação da


defasagem de montagem do modelo clássico de equipe de reportagem.

Na base de operações do programa de síntese noticiosa, os locutores


mantinham excelência, assegurando padrão de voz “estilo Rádio Guaíba”, em
novo espaço, com nova redação e edição. Intentam mudanças, introduzindo
novidades, na busca por um novo padrão redacional para síntese noticiosa, agora,
mais editorializado, mais posicionado, em contraposição à fórmula padrão de
síntese noticiosa que buscava, como estratégia, esconder determinados
posicionamentos políticos e ideológicos.

Justamente, a estratégia Continental estava articulada com o mostrar-se,


com o posicionar-se, com o marcar, no texto, certa irreverência oposicionista e
contestatória. A ordem dada pela direção da Continental para seus redatores é
subverter a linguagem padrão para os programas noticiosos. Não é proibido
perseguir o lead jornalístico, mas a linguagem sisuda de outros radiojornais
deveria dar lugar, ali, para o despojamento, para a notícia com gírias, para a
redação de informação posicionada, a partir de um enunciador que via e revelava
o mundo com olhos, imaginários, visões e vozes da juventude porto-alegrense
oposicionista e democrática. A ordem foi usar gíria e informalidade na linguagem
até o limite do possível do aceitável pelo ouvido da tradição. O limite estava,
igualmente, rente ao nível da intolerância da censura oficial.

Vejamos, como exemplo, o padrão de redação noticiosa empreendida em


edições esparsas, do dia 17 de novembro de 1979, conforme a apresentação
utilizada pela emissora à época. No original, cada texto aparecia em lauda única,
com todas as palavras grafadas em caixa alta (maiúsculas), seguindo convenção
especial, à época, para “facilitar a leitura” na apresentação dos locutores. Foram
estes os textos:
143

EM NOTA CONJUNTA, OS GOVERNOS DA ARGENTINA E DA


GRÃ-BRETANHA ANUNCIARAM ONTEM O RESTABELECIMENTO
DAS RELAÇÕES DIPLOMÁ-TICAS ENTRE OS DOIS PAÍSES.
DURANTE QUASE QUATRO ANOS, ARGENTINA E GRÃ-
BRETANHA TIVERAM UM RELACIONAMENTO APENAS EM NÍVEL
DE ENCARREGADO DE NEGÓCIO.//

O PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL COMENTOU ONTEM A


SENTENÇA DO JUIZ MARIO LOPES, QUE INDEFERIU O MANDADO
DE SEGURAN-ÇA DA ARENA. CLEON GUATIMOZIM DISSE QUE A
“SENTENÇA COMPROVA QUE AGIMOS BEM AO REINTEGRAR
MARCOS KLASMANN E GLÊNIO PERES À CÂMARA DE
VEREADORES, DE ONDE JAMAIS DEVERIAM TER SAÍDO”//
O DIRETÓRIO DA ARENA JAMAIS DEVERIA TER TEN-TADO
IMPEDIR O RETORNO DOS VEREADORES MARCOS KLASMANN E
GLÊNIO PERES À CÂMARA MUNICIPAL. PALAVRAS DO
SECRETÁRIO-GERAL DA ARENA, DEPUTADO GUIDO MOESCH,
AO COMENTAR, ONTEM, A DECISÃO DO JUIZ MARIO LOPES DE
INDEFERIR O MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO POR
GODÓI BEZERRA.

Conforme nossa observação, hoje, podemos dizer que aquela redação, nos
exemplos examinados, apresentava problemas quanto à grafia e à pontuação.

A grafia, valendo-se de caixa alta para todas as palavras, era estratégia


ineficaz e não seria consagrada pelo uso.

Quanto à pontuação, há problema pela não utilização de vírgulas, por


exemplo, nos dois textos acima, mas, sobretudo, por erros pela separação silábica,
por exemplo, nas palavras “diplomá-ticas”, no primeiro texto; “seguran-ça”, no
segundo; “ten-tado”, no terceiro, etc. Convencionalmente, em rádio, não
utilizamos a separação de sílabas, por esta dificultar a compreensão e leitura, no
ar, de termos, ao vivo, pelos locutores (BARBERO, 2001, p. 66). Igualmente, é
recomendado o uso de barras de sinalização, após cada uso de ponto, seja em final
de frase (recomendação não seguida pelo modelo de redação examinado), seja ao
término do texto e do ponto final (recomendação corretamente empreendida pelo
modelo).

Vejamos mais exemplos, da mesma data:

TEMPORARIAMENTE A PRODUÇÃO DE PETRÓLEO DA ARÁBIA


SAUDITA E DO KWAIT PODERÁ SER AUMENTADA. O OBJETIVO É
144

ESTABILIZAR O MERCADO INTERNACIONAL POR CAUSA DA


SUSPENSÃO DAS EXPORTAÇÕES IRANIANAS AOS STATES.//
SEGUNDA-FEIRA O SENADOR BIÔNICO TARSO DUTRA TEM
REUNIÃO COM A EXECUTIVA REGIONAL DA ARENA, AQUI NO
PORTINHO. TENTARÁ UNIR O PARTIDO A FAVOR DA REFORMA
DO GOVERNO – NUMA JOGADA PARA DIMINUIR AS
DISSIDÊNCIAS. À NOITE TARSO DUTRA VIAJA PARA BRASÍLIA
PARA VOTAR O PROJETO GOVERNISTA.//
OS PARLAMENTARES QUE JÁ SE BANDIARAM PARA O PTB NÃO
PRETENDEM VOTAR A FAVOR DA SUB-LEGENDA NEM DA
EXTINÇÃO DOS PARTIDOS, COMO QUER A REFORMA PARTIDÁRIA
DO GOVERNO. O DEPUTADO PETEBISTA JOSÉ COSTA É QUEM DÁ
A INFORMAÇÃO.//

Destacamos a informalidade na abordagem de hard news, através do


acionamento de gírias e expressões descontraídas. Assim, na questão internacional
do petróleo, aparece menção aos Estados Unidos como States. No outro texto,
Tarso Dutra é senador biônico, expressão que ficaria consagrada pelo uso, para
indicar aqueles parlamentares empossados por decreto presidencial. No mesmo
texto, aparece a expressão “numa jogada”. E, no último texto, surge “bandiaram”,
todos estes exemplos, à época, novidades em rádio, nos espaços sérios dos
programas de síntese noticiosa. A marca da síntese noticiosa da Rádio estava no
modo conversacional, na tentativa de levar “um papo”, fazer uma conversa com o
ouvinte.

Ainda no âmbito, no espectro da inovação redacional, trazida à emissora


graças à chegada de jovens universitários no radiojornalismo, um novo modelo
teórico para a redação-apresentação de notícias foi desenvolvido e implantado.

Não há impedimento algum em manter ênfase em notícias apresentadas na


ordem direta, com sujeito, verbo e complemento, em sucessão lógica e escorreita.
Entretanto, a novidade chegou com a nova orientação para editar as notícias em
blocos articulados, de tal modo que, ao concluir a apresentação da primeira
notícia, a segunda, imediatamente, tenha algum nexo relacional, alguma
associação lógica possível com a informação anterior. E, assim, sucessivamente, a
costura redacional deveria manter associação de sentido ao longo de todo o
programa de síntese noticiosa, com duração de três minutos, nas edições de “1120
é Notícia”.
145

Este aspecto de lógica de sentido em continuidade com amarração e nexos


entre os diferentes textos, em detrimento do modelo anterior de redação-
apresentação, que era, somente, de lógica por proximidade aleatória simples, ou
de cortes por editorias, abstratamente, significava a garantia de nova marca
identitária para a voz da Continental, pelo artefato e pela artimanha de narrativas
próprias. No caso específico da redação de notícias, também, marcava o público
ouvinte a rede conteudística, informando, democraticamente, o máximo possível
sobre a realidade local, regional e nacional, até o limite permitido pela praxe da
censura oficial.

Já o princípio teórico utilizado, ali, encontrava-se, ao menos em parte, em


diálogo de sintonia com as sugestões escritas por Rosenthal Calmon Alves, no
artigo Radiojornalismo e linguagem coloquial, no Caderno de Jornalismo JB,
edição 45, de 1974. Segundo Eduardo Meditsch, em entrevista para o Autor,
coube ao jornalista Wladymir Ungaretti, presumivelmente, a responsabilidade
pela introdução daquela inovação teórica na redação da Continental (Ungaretti,
então, era chefe de redação e, hoje, é professor junto à Faculdade de
Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS).

Antes de Rosenthal, em 1973, a Revista Signo, periódico especializado em


comunicação e de existência efêmera resumia, em artigo não assinado, aspectos
teóricos que norteavam, em parte, a prática radialística da Continental.

Afirmava o texto:

Sendo o rádio o veículo da maior aceitabilidade para


comunicar-se com o jeitinho sem-cerimônia do jovem de hoje,
basta, portanto, ser jovem e informal como ele. Esta é a arma
da Continental, uma linguagem decodificável, com muito
colorido e criatividade e, principalmente, sem as tradicionais e
rígidas normas radio-jornalísticas (sic) aplicadas ainda hoje em
muitas das nossas emissoras [...]. (Assim) as notícias, os
slogans inseridos, os comerciais, o papo dos locutores, tudo
muito bem encaixado no desenrolar da programação musical,.
De maneira a lembrar e não cansar, fator pelo qual se utiliza a
forma do bate-papo gostoso e amigo [...] (REVISTA Signo,
1973, p. 25)
146

A teorização para o estabelecimento broadcost empreendido pela


Continental, ao que tudo indica, recebeu mais de uma contribuição. E teve, na
práxis, desde as orientações pessoais de Fernando Westphalen, que pretendia uma
rádio “inteligente e que conversasse com o ouvinte” até leituras interpretativas,
que incluíam desde Rosenthal até McLuhan.

Se o modelo de redação era novo, enquanto padrão de escrita, a novidade


estava, igualmente, agora, no esqueleto, na organização editorial de cada
programa de síntese noticiosa, na busca pelo estabelecimento de nova
oportunidade de sentido social à notícia. Inovada a redação pela inclusão de gírias,
por certo tom de informalidade, pela procura cotidiana por construir, como efeito,
certa agilidade redacional; inovada a edição e o desencadear dos textos,
igualmente, mais editorializados e mais opinativos que a tradição, mudaria,
igualmente, ainda, a locução-apresentação. Agora, o locutor-noticiarista, como o
locutor-apresentador, não podia ser, tão-somente, o leitor de voz encorpada para
textos noticiosos dramatizados no ar. O profissional da voz da notícia da
Continental limitará a dramatização forçada, aproximando a interpretação o mais
possível da informalidade da fala. Igualmente, fará novo uso das pausas, ensejará
espaço para a interpretação irônica, para a reticência lacunar em texto de notícia.
O locutor-noticiarista brindará, enfim, o ouvinte com novo repertório de palavras
e imagens, nova dramaturgia, nova locução de notícias do mundo para a aldeia.

O conjunto de medidas, além de assegurar, em garantia, à rádio o prestígio


com a roupagem da novidade, dava à Continental oportunidade de driblar uma
carência de infra-estrutura. A Rádio Continental, por limitação de porte
econômico e gerencial, não possuía departamento de jornalismo completo, com
integrantes em todas as funções, ao molde de grandes emissoras, com editorias
estanques, nem sequer contava com equipe completa de reportagem. Por isto, a
necessidade premente, diária, de garantir, nas rotinas de serviço de radioescuta,
sobretudo, na articulação novidadeira e de competência redacional, o caráter
informativo, novidadeiro, editorializado e distintivo de produção radiojornalística.
A construção do modelo informativo-narrativo de síntese noticiosa da Continental
constituiu marco memorável de solução editorial-jornalística em meio às
147

adversidades, assegurando sucesso para aquele novo modelo empreendido de


narrativas urbanas, em Porto Alegre.

Quais seriam, houvesse a possibilidade de prosseguimento, as atualizações


daquele conjunto de medidas discursivas, de novas narrações de notícias,
aplicadas pela Continental sobre a tradição. Quais seriam as repercussões, quais
os novos tipos de programas de síntese noticiosa, caso não houvesse o trauma de
interrupção do modelo Continental? O trauma possibilita, apenas, o espaço para se
erguer as questões.

Além das diferentes edições, a cada hora cheia, do programa “1120 é


Notícia”, a Continental, ainda, oferecia os programetes “Mala direta” e “Telex
Ipiranga”, constitutivos, igualmente, do modelo de narrativa Continental de
atualizar, informar, radiojornalisticamente, o mundo para o público ouvinte.

Aquela modernização empreendida e consagrada pela Continental seria


implantada, nos anos seguintes, por grandes e diferentes emissoras.

Há alguma influência daquele modelo, por exemplo, em programas


informativos, nos de sínteses noticiosas, hoje. O maior deles está no “Notícia na
Hora Certa”, da Rádio Gaúcha, no ar, ao término da década de 1990. A mesma
influência pode se verificar em programas similares, nas Rádios Guaíba e
Bandeirantes, embora em registros autorais próprios.

5.3.2 Narrativas de “Discursos Livres”: As Falas dos DJ’s

Outro aspecto importante da narrativa Continental esteve caracterizado


pelo discurso dos diferentes disc jockeys e, também, pelos chamados
comunicadores da emissora, muito embora, na prática, como foi possível
constatar, tenha existido diferença de perfil e de prática para cada um dos
subgrupos de profissionais.

À pesquisa, sobretudo, interessou o conjunto de falas dos DJ’s, porque foi


com aquele grupo de profissionais que identificamos a nova narrativa do rádio.
148

Desde o aparecimento deles, sob a condição identificada como novos personagens


da locução, em Porto Alegre, instala-se a novidade no som dos rádios receptores,
com o novo ritmo daquelas falas, novo sotaque, nova dicção e velocidade
empreendidos pela experiência dos DJ’s.

Para as narrativas dos chamados comunicadores, verificava-se menor teor


de novidade e, assim sendo, as mesmas estavam mais próximas das falas dos
padrões tradicionais de apresentação de programas radiofônicos. Ainda assim,
algumas particularidades marcantes diferenciavam e, ao mesmo tempo,
constituíam estas narrativas da Continental realizadas pelos comunicadores. Cabia
àqueles profissionais a tarefa de amarrar, com suas falas, explicitamente, textos
noticiosos, músicas e propagandas.

Na verdade, tanto para os DJ’s, quanto para os comunicadores, as


narrativas não brotaram somente das falas humanas, mas dos compósitos, dos
artefatos midiáticos, das realizações das produções finais, dos conjuntos humanos
e técnicos que incluíam associação visceral entre vozes dos locutores, músicas
gravadas ou “ao vivo”, registros de marcas eletrônicas, carimbos sonoros,
vinhetas, trilhas e características da emissora através da própria programação.

Distinguidamente, na Rádio Continental, a construção deliberada daquele


conjunto articulado, o todo integrado da programação, tornou-se marca registrada.
Este fenômeno se originou depois de ter sido claro objetivo de gestão, planejado e
construído, desde o aparecimento da nova direção, a contar de 1971, que trabalhou
para moldar aquele modelo, bem-definido de broadcast, onde cada parte
específica do todo não podia ter característica dissonante, constituir algo à parte
da articulação do conjunto da programação.

Em nossa pesquisa, isolamos o interdiscurso para podermos estudar cada


narrativa, de algum modo, isoladamente. Apenas, como estratégia de análise, e
mesmo incorrendo em erro ou risco, para a concretização desta abordagem,
didaticamente, seccionamos, para apresentação, alguns diferentes aspectos eleitos
das diversas narrativas destacadas da Continental. Muito embora, como já
sublinhamos, constatamos, na pesquisa, a ocorrência de linguagem mais do que
149

articulada, mas, sobretudo, pensada de modo a erguer broadcast coeso, lógico e


interligado. Na verdade, o conjunto de narrativas constituiu exemplo de
macrotexto original, aqui, separado, tão somente, por efeito didático do trabalho
de análise da pesquisa. Não perdemos de vista o fato de cada parte integrar,
organicamente, o todo da programação e, com esta perspectiva, fizemos os
estudos de casos isolados de narrativas.

Particularizando, então, denominamos por “falas livres”, pois, sejam


aquelas as dos comunicadores, sejam as dos DJ’s apresentadores, ambos os
modelos, observáveis pelo resgate da pesquisa, estiveram mais livres da
impostação, da necessidade de leitura obrigatória do texto noticioso ou do roteiro
rígido, ainda que o texto noticioso da Continental fosse, também, ágil,
estabelecido em discurso direto, mas de aspecto formal mais conversacional, bem
ao gosto de toda a linha de programação Continental, como vimos.

É importante ressaltar que estas “falas livres”, tanto de comunicadores


como de novos DJ’s, entretanto, ocorriam dentro de estilos próprios, com
modelos-padrão de apresentação. Todos os programas da emissora, notadamente
musicais, igualmente, possuíam padrão de apresentação, mas a codificação, aqui,
era diferente, e terminava por emprestar, ao conjunto como produto final, nova
forma e novo conteúdo comunicável. Isto é, os programas dos DJ’s e demais
apresentadores narravam e descreviam o mundo de modo diferenciado do padrão
noticioso, constituindo, com isto, novo capítulo do modelo interativo para a
narrativa Continental.

Vejamos, historicamente, algumas particularidades desta formação


discursiva comunicacional, fundamentalmente, através da “falas livres” dos DJ’s.

As “falas livres” das narrativas dos DJ’s e comunicadores da Continental


expressam uma nova linguagem, um novo ethos, uma nova estética para o rádio,
com novos sons musicais, informativos, culturais. As “falas livres” narram ou
descrevem a nova ambiência, novos cenários da cidade, descortinados,
igualmente, por novo modo de abordagem por aquela linguagem radiofônica,
então, inédita, no ar.
150

As principais características destas “falas livres” estão, na nova


coloquialidade, em substituição à impostação, na maior velocidade de
apresentação das falas. Havia maior rapidez das narrativas associadas ao volume
mais elevado da voz. Havia uma dicção mais gutural em substituição ao padrão
“aveludado” de colocação de voz. Existiam anúncios e suportes de marketing
pessoal para cada entrada individual no ar, com respectiva vinheta sonora
caracterizando, personalizando e fixando, junto ao ouvinte, cada intervenção de
DJ’s e, mesmo, de comunicadores.

Nitidamente, identificamos, nas falas dos DJ’s, aquilo que caracterizaria


uma nova performance no ar, integradora, no discurso, de nova forma aos novos
conteúdos. A comunicação, então, buscava integrar linguagem e espírito jovem,
em falas articuladoras de músicas, notícias e doses de depoimentos pessoais,
“personalizando” aquele espaço do estúdio e, também, fazendo ponte dali com as
audiências.

A Continental inovava e antecipava, com aquilo que denominamos por


“falas livres” dos DJ’s, estratégia comunicacional que, posteriormente, seria,
largamente, utilizada pelos comunicadores nas emissoras de FM. Este fenômeno
seria identificável, cerca de uma década depois, quando Neves (1985, p. 38)
apontava: “O sucesso atual do FM deve-se em grande parte à habilidade do disc
jockey em costurar música e locução num discurso sempre alegre e ritmado, que define
o estilo de sua comunicação”.

A expressão “costurar”, naquela década repleta de novidades


protagonizadas pela Continental, a contar de 1971, era, então, moeda corrente e
muito preciosa para aqueles homens que pensavam e faziam a programação, tão
articuladamente quanto possível, da pioneira emissora.

Em termos de conteúdos de mensagem, as “falas livres” traziam para o


rádio porto-alegrense algumas novas ênfases, a saber, abundância de novas gírias
usadas pelos jovens universitários e estudantes secundaristas. Em segundo lugar,
outra característica marcante das falas esteve no acionamento intensivo do rock e
do pop internacional articulado ao emprego freqüente de termos em língua
inglesa. Por fim, a “fala livre” significou, também, discursos de humor e ironia no
151

ar, fossem contra a ditadura militar, ou contra algum costume social mais
conservador, ou, ainda, especialmente, contra determinado tipo de musicalidade.
Sobretudo, discursos de ataque à música popular brasileira antiga, representada,
por exemplo, por Silvio Caldas; e à chamada música marca-diabo, cujos
protótipos estiveram, inúmeras vezes mencionados, em Jerry Adriani e Nélson
Ned. As falas dos DJ’s e comunicadores, igualmente, anunciaram aquilo que os
programadores musicais da Continental elegeram como musicalidade distinta,
seleta e selecionada para público ouvinte da emissora, com isso trazendo para o
dial as músicas dos jovens compositores e intérpretes da música popular
brasileira, como Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton
Nascimento, Gonzaga Jr., entre outros, até então, praticamente, desconhecidos ou
não ouvidos, porque não programados em emissoras de rádio para o grande
público. A mesma parcela de novidade foi garantida com a inclusão da nova
música urbana de Porto Alegre, com grande freqüência, na grade diária de
programação da emissora.

Junto com as novas músicas, chegavam as novas falas e, nestas falas dos
DJ’s, estavam as gírias. Entre as gírias que a “fala livre” atualizaria o rádio,
trazidas das ruas, das escolas, dos parques, dos teatros, dos cinemas, das casas e
das festas, estavam os novos termos neoprediletos da juventude. Entre esses,
podemos citar: cocota, sarro, magrinhagem, trilegal, tric-tric, sacada, bixo,
bolação, entre outros. Estavam as inúmeras palavras, os novos sentidos que, a
partir dali, tornaram-se ainda mais incorporadas ao falar de Porto Alegre e,
inclusive, muitos terminaram integrados ao padrão culto (FISCHER, 1999 e
2000).

Alguns destes termos eram, por exemplo, magrinhagem, a-fim, botar na


roda, na mão grande, baita, refri, fazer um grau, revertério, marca diabo, tiriça,
palavras de semânticas de caráter fortemente local, constitutivas, sobretudo, do
vocabulário usado pelo jovem urbano.

Estas novas palavras apareciam associadas a outras de uso corrente, desde


o advento da chamada música de Jovem Guarda, tornadas de consumo massivo
152

televisivo, mas, até então, ausentes do rádio gaúcho, identificadas em expressões


tais como legal, papo, super, cara, dica, transa etc.

Já os termos em língua inglesa figuravam, cada vez mais, desde o emprego


intenso na denominação de bandas locais e de músicas estrangeiras, freqüentes na
programação Continental, incluindo, inclusive, a própria denominação de
inúmeros programas e programetes (como, por exemplo, “Billboard via telex”,
“The fourts”, “Beatlemania”, “Flash Back”). Entre os termos em língua inglesa,
tornaram-se freqüentes as menções de best, first, beer, night, concert. Este
acionar do inglês falado esteve, sobretudo, nas apresentações de personagens DJ’s
como “Mr. Lee”, “Julius Brown”, “Bier Boy” e “Cascalho”, o Toni Charles. A
própria linguagem de auto-institucionalização da emissora usou deste artifício e,
assim, entre os inúmeros slogans autodenominativos acionados pela Continental,
apareceram, por exemplo, Continental, the first; Continental, super hot;
Continental, the best.

Em nosso entendimento, a Continental instaurou-se como espécie de elo


midiático, atuou com, entre e através de um nexo de fatores e influências
mediadoras. Porto Alegre e Continental, a partir, sobretudo, de 1971, participam,
ativamente, de uma particular e delimitada rede plurilingüística, multicultural,
imersas numa ambiência sociocultural de multimediações (MARTÍN-BARBERO,
1987, p. 228), caracterizadas pela pluralidade de vozes e atores diversos.

A canção Deu pra ti, de Kleiton e Kledir, pode ser interpretada como
espécie de súmula ou legado poético sobre aquele tempo-espaço, onde estavam
presentes, entre outros fenômenos, o plurilingüismo e a cultura mundializada
(ORTIZ, 1994, p. 164-165), atualizados pelos falares porto-alegrenses, em
contigüidade com as narrativas da Continental, via discursos urdidos na década
iniciada em 1970.

Canção, termo e trajetória de compositores de Deu pra ti, ao mesmo


tempo, constituem exemplaridade e demonstração de plurilingüismo e
pluridiscursividade, sob efeito de uma sociedade multimediada.
153

Kleiton e Kledir nascem, musicalmente, dentro da Rádio Continental, após


surgimento em mostras universitárias de música. À época, integram grupo de
cerca de 20 pessoas, Os Almôndegas. O sucesso na rádio leva ao disco e, dali, para
turnê de shows em todo o país e exposição na televisão e na mídia impressa
nacional.

Já a expressão deu pra ti cumpre ciclo interessante na cultura. Surge nas


ruas, sem autoria, sem dono, como criação coletiva. Na origem, tem sinônimo de
“basta”, “ponto final”, “fim”, “já era”, “estou noutra”. Muitas vezes, a expressão
completa refere deu pra ti, baixo astral, indicando, então, que o eu do discurso
está pondo fim àquela situação de desagrado e indo para outra nova circunstância.
Logo, a expressão que foi criação coletiva e anônima transforma-se em nome de
show musical de Augusto Licks e Nei Lisboa, filme de Giba Assis Brasil e, já
ultrapassada a barreira de 1980, música homônima de Kleiton e Kledir.

Na letra, o universo recriado expressa o plurilingüismo e multiculturalismo


vivido à época áurea da Rádio Continental:

Deu pra ti
Baixo astral
Vou pra Porto Alegre, tchau
Quando eu ando assim meio down
Vou pra Porto e.... bah... tri legal
Coisas de magia, sei lá
Paralelo 30
Alô tchurma do Bonfim
As guria tão tri afim
Garopaba ou Bar João
Beladona e chimarrão
Que saudade da Redenção
Do Fogaça e do Falcão
Cobertor de orelha pro frio
E a galera no Beira Rio.

Diante de tais marcas, disposto o discurso de legado poético de geração e


da década, não se tornou difícil, para nossa compreensão, na pesquisa, referir, no
conjunto, aquela canção, bem como a base radiofônica onde tudo nascera, aquela
emissora onde surgiram Kleiton e Kledir, e, então, verificarmos aquelas produções
154

como fenômenos em diálogo, interações marcadas por uma espécie de hibridismo


cultural, como identificado por Canclini (1997).

As narrativas da Continental induzem, introduzem, no cenário regional,


novo tipo de articulação entre o estrangeiro e o nacional e, assim, a
homogeneidade não se completa, devido às falas e às formas de narrativas locais:
“Quem mais bebe beladona e chimarrão?” “Onde vivem, quem são Fogaça e
Falcão?” “Cobertor de orelha para o frio?” Antes, constatamos que a Continental
viveu uma cultura mesclada, complexa, cultura erguida, ao mesmo tempo, de
blocos de submissão e arquiteturas de apropriação, de modos de repetição de
formas e novíssimos continentes de conteúdos e de criação. Houve uma
apropriação múltipla de patrimônios culturais. E, a partir disso, ocorreu a criação
radialística. Houve coexistência de discursos contraditórios, mas, ainda,
articulados, a serviço da programação, para oferecimento de produtos culturais e
venda de mercadorias por publicidade. Houve, ainda, a Continental das narrativas
de oposição, que fizeram marcas socioculturais inéditas, pela voz radiofônica que
dizia não.

Em nosso entendimento, as “falas livres” das narrativas da Continental


constituíram falas particularizadas, urdidas pelo grupo social local, para a
comunicação e interação com audiência sob novo pacto de cultura, ainda que,
novamente, fortemente tocada pelo estrangeiro, internacionalizada.

O exterior invadia o interior da cidade, o âmago cultural desta. As “falas


livres” das narrativas da Continental enunciavam este movimento e faziam mais,
ao enunciar, igualmente, a voz local, o continente porto-alegrense, lado a lado
com as falas de certo cosmopolitismo, com notícias sobre o sujeito gaúcho e
brasileiro.

O mundo movia-se e projetava-se em novas ondas, em novas invasões


culturais, sobretudo, aquelas advindas da forte expressão da indústria cultural
norte-americana. Porto Alegre, culturalmente, abria-se e dialogava, de modo
próprio, dentro deste novo contexto. As mudanças na cidade eram culturais e eram
físicas. A Continental buscava dar voz, também, a esta singularidade, onde a
155

cultura movia-se, em nova territorialidade. Paralelamente à chegada deste novo


modo da cultura de expressão internacional, dentro do contexto de comunidade-
mundo, a própria cidade de Porto Alegre, à época, protagonizou inúmeras
mudanças estruturais e arquitetônicas, tornando-se local privilegiado para o
aparecimento e estabelecimento de novas falas. Logo, a cidade em mutação
transformou o habitat por onde circulava a tribo Continental em novo fragmento
do habitus, em momento histórico particular, quando criações quase dialetais e
novas formas expressivas foram urdidas, incluindo, para tanto, inclusive,
fragmentos de língua estrangeira, sobretudo, o inglês, mas também o espanhol,
lado a lado com aspectos consagrados da cultura e expressão porto-alegrense,
gaúcha e brasileira.

É neste contexto que Porto Alegre, na “fala livre” dos DJ’s da Continental,
pela primeira vez na história, foi rebatizada de “Porto City”, ao longo da
programação diária. A transformação designativa, com alteração do nome da antes
também denominada “cantada e conhecida Porto dos Casais” (nome dado em
alusão aos colonizadores açorianos), transformava-se, segundo esta nova versão,
em “Porto City”, pela enunciação específica da Continental. Para nosso modo de
interpretação, aquela nova alusão de nome à cidade era algo paradigmático e
ocorria ao mesmo ritmo e tempo que a cidade vivia uma transformação radical,
real do espaço urbano e do pólo cultural que, já então, era Porto Alegre.

Com a chegada e o avançar da década iniciada em 1970, então, Porto


Alegre ganhava obras arquitetônicas e de engenharia de grande porte, como, por
exemplo, o novo Túnel da Conceição; a inauguração recente do estádio Gigante
da Beira Rio, em 1969; a entrega à população do Parque Moinhos de Vento, (logo,
denominado Parcão), à época, intensamente, freqüentado e transformado em novo
espaço passarela para exibição de corpos e automóveis de jovens da classe média
e alta; já o prédio do Planetário surgia e aguçava o imaginário de adultos e
crianças da cidade, com novas imagens e perspectivas do universo; também, com
o tombamento da Usina do Gasômetro, anunciava-se, logo, que a Prefeitura
Municipal instalaria lá, um futuro centro cultural; já existia o atual Centro
Municipal de Cultura e, dentro deste, o Ateliê Livre, o Teatro Renascença e a
156

nova Biblioteca Pública Municipal, integrados no mesmo prédio; aparecia o


Teatro de Câmara, na República; inaugurava-se o Centro Comercial da Azenha
(logo, anunciado como o primeiro shopping-center da cidade) e, dentro deste, o
Café Paris, o primeiro naquele gênero na cidade; havia a nova Avenida
Perimetral; criava-se a Reserva Ecológica e Parque Estadual de Itapoã, e a recente
Free-way deixava Porto Alegre mais próxima do Atlântico, entre outras obras
importantes.

Em Porto Alegre, também, iniciava inédito e intenso aporte de produtos da


indústria cultural de massa e de consumo jovem, como jeans, discos “compactos”
(“simples” e “duplos”, pequenos discos, em vinil, assim denominados por
conterem duas ou quatro músicas gravadas), discos long-plays (igualmente, em
versão simples ou dupla, e denominado, por abreviação, “Lp”), fitas K-7, T-shirts,
aqui, abrasileiradas pela denominação de “camisetas”. A década, a partir de 1970,
assinala surto de desenvolvimento industrial brasileiro, em geral, e notável
crescimento da produção automobilística nacional, conforme dados do IBGE.
Com isto, Porto Alegre, igualmente, passa a consumir mais carros e novas motos.
A Continental, nas falas dos DJ’s, oferecia espaço para anunciantes de produtos
automotores e, ao mesmo tempo, fazia rodar novas levas de trilhas sonoras
musicais para ouvintes, automobilistas e motoqueiros, ávidos por novidades ou
por atualização de repertórios.

Parte destas transformações culturais e de consumo foram protagonizadas


pela ação narrativa dos DJ’s. Ao radiofonizar aquela Porto City, inseriam a
capital dos gaúchos em novo ciclo de consumo e cultura internacional. A narrativa
“livre” dos DJ’s, ao mesmo tempo, noticiava a invasão cultural sobre Porto Alegre
e expandia a territorialidade da cidade, não mais restrita aos limites meramente
geográficos e culturais até então vigentes.

No entanto, pela narrativa Continental, Porto Alegre, igualmente, era


denominada de Portinho, ou, simplesmente Porto. Estas designações, por nossa
pesquisa destacadas, servem para a colocação em paralelo; destacamos como
construção cultural controversa, justaposta em relação àquela outra, a Porto City,
ambas marcadas e construídas pelo idêntico grupo social. Fragmentos de discurso,
157

com marcações de expressão da cultura norte-americana, convivem com novas


formas afetivas de designar a própria cidade, agora, ao mesmo tempo, pólo com
pretensões estrangeiras, quando não de buscas e pulsares cosmopolitas, mas ainda
dotada de traços e marcas locais.

No mesmo contexto, estava Porto City que marcava, na referência, através


da narrativa Continental, as transações culturais, reais e imaginárias, da própria
cidade com pólos distantes de atração, como Nova Iorque, Los Angeles, Londres e
Paris. Paralelo a isto, já a designação Portinho enquadrava a capital dos gaúchos
quase como uma pequena cidade bucólica; talvez, mesmo, um grande bairro,
também simplificado pela fala dos seus habitantes como Porto, um porto seguro e
acolhedor para jovens atônitos com a velocidade e dureza do mundo.
Inquestionavelmente, aquele Portinho, também construído pela narrativa
Continental, era um espaço idealizado, ao mesmo tempo territorial e mítico, onde
a comunidade jovem urbana de classe média e alta, formada por estudantes
secundaristas, pré-universitários e acadêmicos, vivia e sonhava, ouvindo a
Continental, ouvindo muita música, defendendo a democracia e se aproximando
dos bens de consumo de padrão internacional, agora, possibilitados pelo surto
desenvolvimentista, modernizante e conservador, pós-golpe militar de 1964.

Se os DJ’s originais haviam surgido como narradores urbanos, sobretudo,


norte-americanos, desde o início da década de 1960, agora, Porto Alegre tinha
para ofertar as próprias versões locais, vozes gaúchas atualizadas, com mistura
narrada de sotaques, dialetos, ênfases culturais mistas, múltiplas, dotados de
conteúdos ideológicos heterodoxos. Até então, profissionais disc jockeys, com
aquela denominação e prática semelhante, já existiam, sobretudo, profissionais no
centro do Brasil. Mesmo em Porto Alegre, os DJ’s da Continental, praticamente,
se constituíam em disc jockeys de uma segunda geração, talvez, com o grupo
anterior já atuando, em outras emissoras, como a Guaíba, por exemplo, no
acionamento de músicas, enquanto nova e central praxe radialística, mas sem a
marca, sem a agressividade, sem o caráter de neocomunicador exclusivo de
público jovem, sem as artimanhas e sem o linguajar de misturas inglês-português
158

com sotaque e timbre porto-alegrense como aqueles narradores DJ’s da


Continental.

Com as novas narrativas dos DJ’s da Continental, Porto Alegre torna-se


city, atualizava-se, modernizava-se e estava ligada, via rádio, ao consumo da rede
pop-rock internacional, através das narrativas, das falas e das estratégias de
audição e audiência protagonizadas pela classe média internacional. Igualmente,
mesmo quando acionada por “Mr. Lee”, persona internacional, criada para venda
de jeans no Brasil, a cidade era a Portinho, das manifestações estudantis, do
posicionamento ideológico, da relação afetiva e simbólica entre os pares
estudantes, seus músicos, seus neocomunicadores e sua rádio, a Continental.

Com as narrativas orais-escritas-sonoras-musicais possibilitadas pelos


DJ’s, a comunidade Continental integrava-se, de modo próprio particular, àquilo
que Lull (2000, p. 11) denomina supercultura, isto é, matriz cultural que cria e
associa valores culturais distantes, mesmo longínquos e novidadeiros, com outra
gama de valores, estes próximos, nacionais, locais e/ou regionais, recentes ou
mesmo antigos, até arcaicos, mas em nova roupagem, nova forma e expressão.

As narrativas, igualmente, atualizariam a comunidade urbana de audiência


da Continental com novíssimo espaço, nova oportunidade para criação e eventual
resolução de conflitos culturais. Trata-se, como sublinha Rodrigues (1993, p. 27),
de novo espaço de problematizações, pois “quanto mais se universalizam os
fluxos informativos, mais os particularismos culturais se manifestam, com a
generalização do confronto e do conflito de interpretações”.

5.3.3 Narrativas Publicitárias

As linhas ordenadoras do texto publicitário da Continental nasciam da


conjunção de vários fatores, todos estes colocados a serviço da sedução pelas
palavras, através de recursos retóricos bem-delineados, articuladores de figuras de
linguagem, postadas para o acionamento do dispositivo psicossocial do ouvinte,
159

também sujeito interlocutor, no contexto, da história e da cultura comum àquela


comunidade de usuários.

A retórica publicitária e de propaganda da Continental incluiria, ainda,


outros recursos sonoros discursivos, de sonoplastia, utilizando recursos da arte
antiga do contra-regra de rádio, articulando-os com recursos de efeitos técnicos
recentes, incorporando sons gravados e produzindo em estúdio novas sonoridades.

A customização criativa ampliava-se na composição de jingles, de spots, e


de trilhas musicais adequadas para anunciantes específicos, sem custo adicional à
produção.

Pela pesquisa, podemos indicar algumas características principais deste


conjunto de narrativas publicitárias que configuram a criação discursiva da
Continental para venda, anúncio e sedução dos ouvintes consumidores.
Destacamos, entre as qualidades, o humor na redação, a busca pelo estilo jovem
das peças, a customização da produção (garantindo personalidade própria para as
peças e maior integração e identidade no broadcast), a criatividade e riqueza
melódica dos jingles.

Neste aspecto, tornaram-se particularmente famosos, lembradas, a inda


hoje, em recals, as composições de Hermes Aquino. Ela já é músico, quando, a
partir de 1974, passa a trabalhar como produtor da Continental, compondo jingles
de reconhecida qualidade, letra e música, como aquela, referida em várias
entrevistas, para a revenda de automóveis Volkswagen, a Gaúcha Car. As peças
sonoro-musicais também eram adaptadas, customizadas para a programação
Continental e, em alguns casos, solicitadas pelos ouvintes para rodar na
programação diária.

Como afirmamos, as narrativas publicitárias da Continental tinham por


característica principal a customização da produção, adequando formas e
conteúdos ao código padrão da programação da emissora, articulando oferta de
produtos com o público-alvo consumidor. Assim sendo, estas narrativas tiveram
como qualidades a procura pelo modo de narrar com criatividade, inovação de
160

linguagem e humor, enquanto estratégia de comunicação e sedução psicológica do


ouvinte.

Assim, para erguer aquela narrativa publicitária com humor, criatividade e


customização, a Continental contou com redatores, locutores, produtores de áudio
e estúdios próprios. Entre as vozes de locução, por exemplo, estão Marcus Aurélio
Wesendonk e Fernando Westphalen, entre outros, com enorme capacidade de
interpretação e qualidade de caricaturar, mimetizar, imitar e produzir personagens.
Entre os redatores, foram celebrados os trabalhos de Emílio Chagas, redator e
jornalista da própria emissora, e Luiz Coronel, redator publicitário. Entre os
técnicos, Francisco Anele e Manuel Almeida marcaram presença ao longo do
tempo. João Batista Schüller, pelo domínio técnico, aliado à capacidade criativa e
redacional assinou inúmeras peças. Já o aparato técnico, além dos estúdios da
própria Continental, foi utilizado o suporte oportunizado pela parceria com Pedro
Amaro, dono de estúdio, localizado no mesmo edifício da Continental, e
especializado em sonoplastia. O nome do maestro Garoto esteve sempre associado
ao grupo que teve sucesso profissional e comercial no espaço publicitário da
emissora.

Pela qualidade do humor, tornou-se célebre, à época, uma série de


anúncios para lojas de roupas jovens masculinas, Saco & Cuecão, que,
posteriormente, teve a rede ampliada, inclusive, para a moda feminina, com nova
série de peças publicitárias engraçadas.

A adequação das narrativas publicitárias para perfeito encaixe no chamado


broadcast da Continental, atingia os anunciantes de pequeno, médio e grande
porte. Assim, peças de grandes campanhas já prontas eram refeitas, seguindo o
estilo Continental. A eventual peça, por exemplo, chegada da grande MPM
Propaganda, para o cliente Ipiranga de Petróleo, modelo de grande anunciante,
logo, merecia readequação para a linguagem Continental, como a campanha para
Ipirela.

Igualmente, merecia ação própria a produção publicitária para o


restaurante Barril, por exemplo, anunciante com endereço localizado no complexo
161

do estádio Gigante da Beira Rio, do Internacional. A peça revelava para nossa


pesquisa que, mesmo tendo definido o público-alvo preferencial como o
representado pelo jovem estudante urbano, universitário, pré-vestibulando e
secundarista, a narrativa Continental, igualmente, fazia incursões em busca do
púbico mais universal, como o interessado no futebol e vinculado àquele universo
de paixões e interesses. Recuperamos e transcrevemos o texto base da narrativa:

Fala de personagem masculino, de voz gutural e anasalada, com


leve sotaque nordestino, que enunciava:
LOC 1– Aderbal. Aderbal seu preguiçoso. O time do Inter tá
brigando lá no Beira Rio e você fica aí na “séstia”?
Aderbal (com voz tímida e algo fanhosa) – Mas eu tomei um
vinhozinho...
LOC 1– Aderbal. Aderbal. E daí? O que que você vai dizê pro
teu filho quando ele lhe cobrar, hêin?
Filho (voz de menino) – Aonde você estava quando o Colorado
brigava pelo tetra?
Aderbal – Eu tava sestiando.
LOC 1- Não tem vergonha, Aderbal. Tamanho homem. Levanta
e vai pro Gigante. Leva a mulher e o filho. Vai torcer pelo
Colorado. E tomar um chopp no Barril.
(Técnica – Roda trilha musical, som de guitarra, ágil, leve,
alegre).
Outro locutor, este, agora, com voz potente, complementava:
LOC2 – Aderbal foi torcer pelo time e pelo tetra. E você?

O som da técnica complementava a peça, fazendo rodar, por segundos, o


som de uma orquestra, como em um grand finale.

Esta peça para o restaurante Barril e para o Inter, em 1973, servia para
marcar, ao mesmo tempo, a ênfase no fazer publicidade com humor e a busca pelo
público mais amplo, universal, como acontecia ser aquele do futebol e do
restaurante e casa de chope.

O locutor com sotaque nordestino revela gosto pelo fazer paródico da


emissora. Ainda, o sotaque e timbre lembram o Professor Raimundo, personagem
de Chico Anysio, humorista da TV Globo.

Naquela peça, novamente, a Continental reafirmava o intenso diálogo


discursivo travado pela emissora, ora com a televisão (sobretudo Rede Globo), ora
162

com jornais diários locais (Folha da Manhã e Zero Hora) e nacionais (como O
Pasquim, O Globo e O Estado de São Paulo, sobretudo).

Outras peças reforçaram aquela orientação por tentativa de a narrativa


publicitária alcançar outros públicos segmentados, como o adulto masculino,
através de peça para casa noturna, e, mesmo, o público infantil, através de anúncio
para a loja Saci, de roupas e calçados para crianças.

Vejamos a peça para a Boate Escalares, a seguir:

LOC 1 – Olha aqui o meu, se tais a fim de partir pra uma


escalada noturna, te manda pro Escalares. Um uisquinho, um
papo, uma voltinha, strogonoff, mais um papo, mais um
embalo.
TEC – Roda música e vai a BG.
LOC 2 – Escalares, agora em nova fase. A escalada
obrigatória pra zona sul. Onde não há galhos pra estacionar.
Na Getúlio 254, na boca da André Belo.
LOC 1 – O Escaleres é jóia, vai lá meu.

A Continental não desperdiçava desafios e, assim, lançou campanha


criando alternativas, como a loja feminina da Gang, originalmente somente
masculina e ousou fazer publicidade em rádio para grupos esquecidos, como, por
exemplo, o público infantil. Vejamos:

TEC – Toca efeito e música infantil e vai a BG.


LOC 1 – Alô amiguinhos, eu Saci pintando nos altos da Indepê,
bem no edifico das velhas reminiscências mineiras de Vila Rica.
Um Saci diferente, especializado em roupas e sapatos para o
time infantil. Saci Independência vai vestir e calçar os dentes-
de-leite como loja nenhuma ousou fazer. Leve as crianças ao
morro dos moinhos de vento e entregue-as ao Saci da
Independência. Eles vão mudar dos pés a cabeça.
TEC – Sobe BG e encerra.

O modelo de narrativa publicitária Continental, além do humor,


experimentou episódio que buscou tocar o território da linguagem com função
poética. Isto ocorreu em mais de uma oportunidade, inclusive, com peças voltadas
para a auto-institucionalização da emissora, como veremos, a seguir.
163

Mas, talvez, a narrativa mais bem-sucedida, neste diapasão de busca da


função poética a serviço da comunicação, esteve com a série de peças escritas
pelo Luiz Coronel, poeta e publicitário, para o cliente Joalheria Scarpini, que ficou
famosa (a sede da joalheria ficava localizada na avenida Borges de Medeiros,
próxima à esquina com Rua dos Andradas). Com a produção de uma série de
diferentes textos, a peça, invariavelmente, era utilizada para, além de vender o
produto do cliente-anunciante, informar a hora certa à população.

Cada peça tinha início com a fala de locução, a seco, com apresentação de
texto poético. Ouvia-se, por exemplo: “Subo o degrau das horas e mergulho na
piscina azul da tarde./ O teu sorriso é como o sol: ilumina porém arde./”

Ou, ainda, esta outra peça: “Nesta posição os ponteiros, não é por nada,
mas bem parecem um punhal, no coração da madrugada”.

Os textos, sempre curtos, compostos, no máximo, por duas linhas,


freqüentemente, faziam alusão ao tempo mutante: “Quando me olho no espelho,
para mim mesmo eu digo: quanto mais o tempo passa, fico mais parecido
comigo./”

A menção a relógios e ponteiros fazia parte da argumentação significante,


com bastante freqüência, como no texto em: “Silêncio, não faça alarde: os
ponteiros na vertical executam um mergulho na piscina azul desta tarde./”

Ou, ainda, como neste outro exemplo: “Dentro do tempo corro, vivo, amo,
morro. Toca o despertador: é a eternidade pedindo socorro./”

Após a leitura do texto poético, o locutor complementava, trazendo a


informação da hora, com a assinatura do patrocinador. Como, por exemplo:
“Scarpini previne, são 15 horas e 35 minutos”. Ou “Scarpini informa”, e, também,
“Scarpini avisa”. A narrativa sempre prestava o serviço da hora certa, logo, vendia
a boa imagem da joalheria. A série narrativa para a Scarpini era inserida em
horários indeterminados, ao longo de toda a programação e publicados, hoje, por
Coronel (1978).

Já as narrativas de discursos paródicos apareciam, preferencialmente, nas


datas fortes, comercialmente, e nas efemérides, como o Natal, o Sete de Setembro,
164

o Dia dos Namorados, quando, invariavelmente, a narrativa de humor paródico


recaía em criações de deslocamento ou subversões de velhos patterns, antigos
discursos sobre o tema alusivo em questão, fosse este a pátria, a mãe, ou a
namorada.

A publicidade realizada pela Continental e a fruição desta, sob certos


aspectos, dialogava, teoricamente com o conceito-chave de consumo, reformulado
na perspectiva de Néstor García Canclini. Para aquele Autor, “o consumo é o
conjunto de processos sócio-culturais em que se realizam a apropriação e os usos
dos produtos” (1995, p.53).

O consumo, assim, é algo mais que “simples exercícios de gostos, capricho


e compras irrefletidas, segundo os julgamentos moralistas, ou atitudes individuais,
tal como costumam ser explorados pelas pesquisas de mercado”, arremata
Caanclini (1995, p. 53)

Na sociedade atual, segundo Zygmunt Bauman (1999, p. 88), após a


“sociedade dos produtores” vive-se o momento em que o sujeito é levado a
“desempenhar o papel de consumidor”.

Este esforço para fazer engajar seus membros pela condição de


consumidor verificamos na programação da Continental. O apelo ao consumo
estava nas ofertas variadas e, inclusive, na promoção para o consumo da própria
Rádio.

Martín-Barbero redimensiona, noutro enfoque, ainda, o consumo e a


diferenciação identitária. Para ele, o consumo é instância diferencial do sujeito.
Para ele, o consumo “é o lugar da distinção simbólica, por meio não só do que
consumimos materialmente, mas, sobretudo, dos modos de consumir. O consumo
é um lugar de demarcação de diferenças, de distinções, de afirmação da distinção
simbólica”(1995, p. 61).

É neste direcionamento que entendemos a ação da publicidade e da


autopublicidade da Continental junto ao público. A publicidade também
possibilitadora da Paidéia radiofônica, enquanto cultura identitária.
165

Consumir, diz Barbero, “faz parte da relação desejante entre sujeitos na


interpelação que os constituí como sujeitos” (1995, p.62)

Consumir é ação válida e revalidante do sujeito, desde a compra de algo,


até a audiência por predileção e seleção da rádio que ouve.

5.3.4 Narrativas-slogans, Carimbos Sonoros

Denominamos narrativas-slogans aquelas construções discursivas auto-


institucionais criadas, segundo nosso entendimento, primeiramente, com a
exclusiva finalidade auto-referencial, funcionando como identificadores da
emissora, freqüentemente, aparecendo em contigüidade com o nome próprio ou
número de dial da Continental.

Entretanto, se, primeiramente, as narrativas-slogans estavam destinadas à


autopromoção da marca da emissora no dial, logo, passaram a exibir finalidades
múltiplas de expressão e comunicação. Ao mesmo tempo, estavam endereçadas ao
imaginário e à memória do ouvinte, buscando fixar e promover pretensas
qualidades da musicalidade, da programação em geral e da emissora-instituição,
em conjunto, como companhia urbana desejável para as audiências. Estes textos
da Continental, igualmente, se transformaram em slogans informativos e
opinativos.

Na pesquisa, decidimos pelo estabelecimento de uma tipologia para


melhor identificarmos, no conjunto, as diferentes formações enunciativas dos
slogans. Estabelecemos, na realidade, diferentes tipos de narrativas-slogans por
nós recortadas, conforme indicamos a seguir. (O presente estudo é
complementado no próximo subitem, sob a denominação de narrativa
metonímica).

Enquanto lógica geral, é característico do slogan fazer aderir, prender


atenção e resumir, conforme Reboul (1975, p. 74). Para nossa pesquisa, no caso
específico da Continental, o conjunto de narrativas articuladas sob a forma de
slogans garantiu, ainda, a reconstrução, pela ação da memória, daquilo que foi
166

parte importante do protagonismo da Rádio e certa reconstituição do contexto real


e imaginário, a partir do qual a Continental transformava-se em pólo de
enunciações variadas.

Especificamente quanto aos slogans da rádio, a primeira destas


construções discursivas refere-se a um modelo único, exclusivo e basilar, ou seja,
fazemos referência ao slogan principal da própria emissora, cujo texto redacional
afirmava: “Continental, o som nosso de cada dia”.

A produção discursiva trazia, na redação, a marca de descontração e bom-


humor do conjunto da programação, caracterizada, igualmente, por certa dose de
irreverência e iconoclastia. É evidente o aspecto paródico do slogan, que recria
sentença ensinada pela tradição da religião católica através da oração Pai nosso.

No slogan, semanticamente, em paráfrase, o enunciado buscava trabalhar


junto à recepção do ouvinte que a Continental produzia som tão necessário quanto
o próprio pão nosso de cada dia. Igualmente, buscava marcar que aquela
programação era digna de fidelidade de audiência na cotidianidade.
Subliminarmente, talvez, podemos dizer que o slogan intentava sugerir ao
imaginário algo como um pacto ritualístico, quando não de sacralidade, entre a
emissora e o ouvinte, que poderia ter fé e deveria freqüentar com religiosidade
aquele espaço sonoro.

O segundo grupo denominamos carimbos sonoros porque funcionavam


como verdadeiros marcadores pelo som na identificação da emissora quando da
apresentação de músicas.

A marcação ocorria dentro do específico espaço sonoro-musical de


apresentação e seguia, ao mesmo tempo, uma recente tradição implantada por
emissoras do centro do país e uma funcionalidade específica. A funcionalidade
prendia-se à necessidade de marcar com o nome Continental aquelas músicas
exclusivas ou raras dentro da programação geral da emissora.

Os carimbos sonoros buscavam garantir à Continental determinada aura


de espaço de ofertas musicais raras ou exclusivas, como também, inibir
impossibilitando, com o carimbo, a reutilização de músicas pela concorrência.
167

Ao longo do tempo, a programação ofereceu tipos diferentes de carimbos


sonoros, gravados por diferentes locutores, alternando vozes masculinas e
femininas, mas mantendo a lógica da concisão na produção textual. Isto é, o
carimbo sonoro, na maioria das vezes, era constituído por composição com, no
máximo, três palavras.

Assim, por exemplo, dentro da apresentação sonora de determinada


música, o locutor enunciava “Continental, sublime”, ou “Continental, a
exclusiva”. Nestes casos, invariavelmente, era enunciado o nome da emissora
seguido por adjetivação, algumas destas em língua inglesa, como, por exemplo,
the best, the first, super hot.

Por vezes, o carimbo sonoro era acionado trazendo, somente, o nome


próprio da emissora. As alternativas para variações nas ofertas deste tipo
específico de carimbo residiam, então, na alternância de tom e altura de voz do
locutor, no tipo de caricatura proposto pelo narrador, no gênero, podendo este ser
feminino ou masculino, no registro do falar, sério ou jocoso, e, ainda, o narrador
ser usuário da língua portuguesa ou inglesa.

Os carimbos sonoros, em qualquer dos tipos de composição, apareciam,


propositadamente, com variações quanto ao momento de gravação, ora sendo no
início, às vezes, em meio, ou no término da música carimbada. Novamente, a
estratégia era deliberada, buscando, ao mesmo tempo, marcar e surpreender à
audiência. Por um lado, anunciava, junto ao ouvinte, a referência de espaço
sonoro que ofertava músicas exclusivas. Por outro, a estratégia era de proteção,
com o propósito de inibir a concorrência para uso indevido de determinada música
exclusiva, ou rara, da programação da Continental.

O terceiro grupo de narrativas curtas de autopromoção e auto-


institucionalização acionadas pela Continental destacamos como espécie,
igualmente, de carimbo sonoro; entretanto, naqueles de terceiro grupo, as
narrativas estavam fazendo referência para dado conjunto de programação, em
bloco, e não para carimbar, apenas, unitariamente, determinadas músicas
168

exclusivas. Recortamos as narrativas daquele conjunto de textos designados, em


termos oficiais da Continental, por “dicas promocionais”.

Neste terceiro grupo, necessariamente, a enunciação acontecia ao vivo, ao


contrário dos carimbos sonoros, e ocorria, de fato, antecedendo ou logo após, a
apresentação, em conjunto, de determinado bloco de músicas e, não, por unidade.

A redação, semanticamente, buscava fazer elo entre o enunciado e o estilo


ou ritmo musical do bloco anterior ou subseqüente, como foi possível identificar
nas anotações da época, recuperadas pela ação da pesquisa, e caracterizava-se pela
apresentação de texto, via-de-regra, conciso, com uma ou duas palavras.

Assim, para o bloco na categoria “nacional”, apareciam os slogans: base


brasileira, produto nacional, top brasil, brasileiríssima, categoria no samba, nota
dez, talento nacional, verde amarela, tropical, do painel nacional, cem por cento
brasileira, placar Brasil, exportação, padrão Brasil e nova geração.

Para “lentas” apareciam: descontraída, 1120 fantástica, musicalíssima,


consagração, som perfeito, rodagem macia, fascinante, cristalina, faixa brilhante,
faixa leve, irresistível, relax, cintilante, ternura, delícia, disco de ouro, 1120 som
e amor, refresco Continental, jóia de 1120 quilates, preciosidade, faixa
romântica, tranqüilidade, alto astral. “Lentas”, segundo conceituação própria da
emissora, eram as músicas com melodia mais suave, em ritmo igualmente de
menor velocidade.

Para “batidas” apareciam as indicações: veneno, alta rotação, superquente,


radioativa, fantástica, som espacial, envolvente, contagiante, nível superior,
presença dinâmica, ultra-som, poder jovem, dinamismo 1120, alta rotação , nota
quente, máximas da faixa superquente, máximas da faixa nobre, Conti som,
petardo, batida , eletrizante, garra superquente, a marca do som, pris direta,
sonzão jovem, inox, geração depois, som planar, onda quente, música em sua
vida, unissônica, tinindo. As músicas “batidas” eram aquelas de forte marcação na
percussão, de ritmo mais forte e sincopado.

Havia a indicação para blocos em línguas estrangeiras como, por exemplo,


top italiano e, em francês com a expressão tres jolie.
169

Havia bloco denominado “outras” indicando, então: recado jovem, top


jovem, comunicação total, absoluta, som jovem, comunicação, som de sempre,
personalidade, som maior, vip 1120, reflexo 1120. Na categoria “outros”, estavam
incluídas músicas variadas, sem forte apelo rítmico, fora, portanto, do
enquadramento entre “batidas” ou “lenta”.

E, ainda, as indicações para identificar “lançamentos/parada” traziam: fita


azul, 1120 base de lançamentos, hit Continental, top Continental, sabor novo, o
som do sucesso, reflexo 1120, do painel 1120, consagração, explosão, hit parade,
som pro futuro, linha atual, som de ouro, disco de ouro, marca registrada, futuro
presente.

O quarto grupo de slogans foi, igualmente, recortado por nós do conjunto


geral e denominado, pela própria equipe da rádio, como dicas promocionais.
Apresentava-se, invariavelmente, como texto adjetivado e posposto ao termo
Continental ou à menção do “1120” característico da emissora no dial. Tratava-se,
na verdade, de um desdobramento, uma nova adequação das “dicas
promocionais”, indicadas, no grupo anterior, agora, não mais articuladas, em
específico, por blocos contendo determinado gênero de musicalidade. Listagem,
portanto, de uso mais amplo.

Os textos eram organizados em listagens simples, para uso nos diferentes


turnos da programação de determinado dia. No caso, aqui recolhido, apareciam
numerados, de um a sessenta e dois, apresentando, linha a linha, em duas colunas
na página, cada um dos slogans indicados para apresentação, a saber: 1) rádio
informal, 2) sintonia qualificada, 3) um gosto de sol, 4) domínio do som, 5) rádio
a cores, 6) companhia ideal, 7) o som do verão, 8) favorita, 9) união de talentos,
10) rádio moderno, 11) tom maior, 12) o som da nova era, 13) nível superior, 14)
poder jovem, 15) ultra-som, 16) presença dinâmica, 17) faixa superquente, 18)
nova geração, 19) rádio vivo, 20) som por testemunha, 21) o som nosso de cada
dia, 22) musicalíssima, 23) comunicação jovem, 24) arte final, 25) cintilante, 26)
nota quente, 27) garra jovem, 28) o repouso do guerreiro, 29) rádio ativa, 30)
juntinho de você, 31) um estilo de vida, 32) dinâmica, 33) o berço da música, 34)
base de lançamentos, 35) fita azul, 36) fascinante, 37) a favorita dos deuses, 38)
170

irresistível, 39) faixa brilhante, 40) som e amor, 41) fantástica, 42) futuro
presente, 43) envolvente, 44) som de sempre, 45) cristalina, 46) alta rotação , 47)
rádio à parte, 48) acima do estabelecido, 49) absoluta, 50) superquente, 51)
magic sound, 52) o som do amor, 53) som jovem, 54) o som do sucesso, 55)
comando jovem, 56) mensagem jovem, 57) a explosão do rádio, 58) rádio
original, 59) 24 horas no ar, 60) ligação permanente, 61) a força do rádio.

Três dos itens acima-citados aparecem, na folha original, riscados. Eram


os textos respectivos aos números 03, 07 e 21. Dois destes, como se pode ler
acima, referem sol e verão, portanto, podendo ter sido desativados, justamente,
quando da ausência de ambos os fenômenos sazonais referidos. O outro item é o
slogan principal da rádio, e excluído, da lista geral, provavelmente, por não ser o
espaço específico para acionamento do mesmo. Na observação direta do texto,
também, aparecem inúmeros itens sublinhados, com tinta de caneta, que marcava,
provavelmente, a cada traço aquele texto já lido pelo locutor-apresentador. Ainda,
percebe-se que a listagem geral abriga alguns dos termos já referidos e usados
para denominação de bloco específico por gênero definido de musicalidade, em
outro lugar da programação.

Em resumo, o conjunto de narrativas buscava, em nosso entendimento,


emprestar à Rádio dadas qualidades, determinados atributos de valor, como
jovialidade, brasilidade, atualidade, vanguardismo, potência sonora, exclusividade
e relevância. Sobretudo, as narrativas-slogans garantiam à Continental identidade
multifacetada, pois tinham, em comum, a auto-referencialidade sempre positiva,
em relação à emissora, e impositiva à audiência.

Foi possível localizarmos, ainda, entre as listagens confeccionadas por


programadores da Rádio, aquele modelo organizativo no qual estão lançados,
conjuntamente, todos os diferentes tipos de slogans para leitura em apresentação
radiofônica. Estas listas, na verdade, configuram-se naquelas em maior número
identificadas pela pesquisa e apareciam, no mesmo espaço para apresentação pelo
locutor, numa mesma folha, todos os modelos articulados de narrativas-slogans e
narrativas metonímicas.
171

Tanto quanto foi possível recuperarmos, tratava-se de uma articulação em


série para a leitura, cuja apresentação ficava, caso a caso, a cargo do locutor da
hora, que apresentava uma narrativa intercalada após a outra, em meio aos blocos
musicais e de propaganda publicitária, pela ordem estabelecida pela escrita.

Assim, por exemplo, na mesma folha, do dia 01 de março de 1972


apareciam, pela ordem, para a locução intercalada, os seguintes textos:

Continental - um rádio à parte


1120 – transcontinental
Continental – o som do verão
1120 – o rádio que ruge
Na Porto Alegre dos vendedores ambulantes...... Continental
Continental – definitivamente musical
1120 – o som nosso de cada dia
Continental – acima do normal
1120 – a pulga na camisola
Na Porto Alegre da Free-way........Continental
Continental – transcendental
1120 – a rádio cativa
Continental – fita azul
1120 – deixa cair
Na Porto Alegre das lojas do viaduto..... Continental
Continental – o “Waterloo” da cafonália
1120 – o caminho do som
Continental – gamada em hot pants
1120 – a onda quente
Na Porto Alegre do verão 1120........ Continental
Continental – o repouso do guerreiro
1120 – um estilo de vida
Continental - não tem retranca
1120 – o som nosso de cada dia
Na Porto Alegre do Planetarium ....... Continental
Continental – dos 8 aos 80
1120 – de carona no carango
Continental – vai muito bem, obrigado
1120 – toneladas de som
Na Porto Alegre da cortina da Mauá ........ Continental
Continental – base e lançamentos
1120 – graus à sombra
Continental – muitos discos à frente
1120 – não tem marca diabo
Na Porto Alegre do viaduto criolão.... Continental
Continental – antes, durante e depois
1120 – só pára às 3
Continental – surf musical
1120 – rotações por minuto
Na Porto Alegre do Gigante e do Olímpico..... Continental
172

Continental – veneno musical


1120 – nem Freud explica
Continental – 13 pontos musical (sic)
1120 – a discoteca de ouro
Na Porto Alegre do Oberti e do Mazinho..... Continental

Como foi possível reconstituir pela ação da pesquisa, este era o padrão
completo para apresentação, definitivo e consagrado pela praxe, utilizado como
solução funcional de comunicação e marca de identidade da Rádio Continental, ao
longo dos anos, costurando slogans.

Segundo nossa análise, as diferentes narrativas se garantiam, enquanto


produtoras de uma estratégia singular, e marcavam pela quantidade de registro de
vozes uma pluralidade de enunciadores e enunciados para a Continental. Aqueles
inúmeros aspectos identificadores eram, igualmente, identitários e cumpriam
funções comunicativas importantes diante das audiências, como verificamos.
Localizamos o referido padrão discursivo-comunicativo naquele conjunto de
expressões que a produção da Continental denominava por “dicas promocionais”.
E, a respeito destas, estruturamos eixos ordenadores e buscamos analisá-las.
Precisamos, ainda, separadamente, apresentarmos, em estudo, os modelos de
narrativas metonímicas, que trazemos a seguir.

5.3.5 Narrativas Metonímicas

O presente recorte que denominamos narrativas metonímicas, retiramos de


outro conjunto maior de textos da Continental. Lá, então, denominados por
“chamadas da hora certa” e, ainda, em espaços onde apareciam denominadas,
também, por “dicas promocionais” ou, simplesmente, “dicas”.

Em nossa análise, aparecem, em partes diferenciadas das narrativas-


slogans, embora daquelas estivessem muito aproximadas pela contigüidade
quando das apresentações, ao vivo, e, sobretudo, pela função comunicacional da
auto-referencialidade. São diferentes entre si, no entanto, pela extensão e
abrangência enquanto narrativas, e distintas e diferenciadas, igualmente, pelos
173

conteúdos e funções retóricas e discursivas, como constatamos. Enquanto as


narrativas-slogans (a exemplo dos carimbos sonoros), na maioria das vezes,
referiam-se à Continental, sobretudo, e, em alguns exemplos, mencionavam o
universo externo, as narrativas metonímicas associavam a emissora à cidade,
obrigatoriamente, e, ainda, ampliavam o espectro comunicacional, ora
informando, ora opinando, referindo seres, objetos e valores orbitais do mundo
exterior, mantendo sempre estreita a relação à própria Continental. O modelo
completo da construção narrativa da Continental, vale repetir, na verdade, lançava
mão de toda a tipologia de narrativas disponível, para maior eficácia da ação
radiofônica, comunicacional e cultural da emissora.

Entendemos, na análise, que as narrativas metonímicas estabeleciam uma


relação pela menção, obrigatória, à situacionalidade local. E assim, sempre
referindo Porto Alegre ou aspectos da cidade, sempre citados em cada texto,
constituindo, a partir desta citação/associação, a construção de diferentes ardis
retóricos, discursivos, comunicacionais, tudo a contar da utilização de metonímias
identificadas. A principal operação semiótica possibilitada pela metonímia aponta
para “a substituição de um signo por outro com fim de provocar transferências
associativas de uma realidade a outra”, conforme Victorino Zeccheto (apud
GOMES, 1995, p. 54).

No caso específico das narrativas metonímicas estudadas, a


substituição/associação operava transferências eficazes entre diversos signos
contíguos à Continental. Ora ocorriam com a designação da cidade, ora com
aspectos históricos ou culturais desta, de valores subjetivos por vezes com objetos
identitários de consumo, ora com personalidades locais, ou mesmo com questões
sociais próximas, todas intercambiáveis, por “transferências associativas” com a
própria Rádio Continental.

Outros recursos expressivos podemos identificar nas construções


narrativas da Continental, como, por exemplo, o acionamento de construções
como inclusões, quando o sujeito da narração coloca-se como parte do próprio
enunciado ou do campo do destinatário. Ou a estratégia argumentativa da
dedução-indução, através de seqüências cognitivas, efetuadas pela descrição com
174

a finalidade de uma proposição mais geral para outra particular e vice-versa,


conforme apontam Greimas e Courtes (1979, p. 101 e 234).

As estratégias narrativas da Continental, ainda, faziam uso freqüente da


redundância, cuja “função é potencializar a compreensão”, no dizer de Pedro
Gomes (1995, p. 52). Pois, a redundância “é a operação mediante a qual se
ampliam outros traços dos significantes para centrar a atenção nos pontos
específicos da mensagem, para significar e conotar alto de forma relevante” (p.
53).

Aquelas narrativas usadas pela Continental, conforme constatamos,


articularam figuras de linguagem, técnicas argumentativas e retóricas, linhas de
raciocínio e possuíam força persuasiva própria, potentes, de ímpar valor
expressivo e comunicativo.

As narrativas metonímicas são construções que ultrapassaram, conforme


nossa análise, o mero conjunto de funcionalidade restrita, inicialmente, projetada
para as mesmas dentro da programação. Estas funções, por si, não eram sem
importância, porque estabeleciam, concomitantemente, ou informação de hora
certa, ou prefixo da emissora, sempre com auto-referência da Continental à
audiência.

O conjunto de narrativas metonímicas, segundo optamos por denominar


estas parcialidades da produção discursiva da Continental, significou, em nosso
entendimento, sinônimo de criação nuclear, como produção distintiva e de intensa
identificação da emissora à época. Logo, a narrativa metonímica seria como
instância narrativa urbana de apreciável eficácia cotidiana para a rádio,
articulando o sentido identitário das audiências, algo para além do serviço de
utilidade pública, através da informação de hora certa.

Os dispositivos narrativos usados pela Continental permitem relacioná-los,


quando expressavam questões referentes à identidade e ao caráter local das
questões culturais, como construções discursivas que davam conta de delimitada
crise, ali incipientes, analisadas em profusão por Canclini (2000, p. 309-336), em
referência tanto à desterritorialização e quanto ao fenômeno do hibridismo, e às
175

expressões de conflito e de acomodação entre o autóctone e o internacional,


expressões de usos contraditórios.

Ainda em torno destas problemáticas, podemos identificar,


antropologicamente, na expressão da comunicação contraditória, a insistência de
permanência do regional, embora sempre em movimento pendular de
problematização desta própria instância regional local. Havia algo como a
expressão de determinado tipo de conformismo modernizante (demonstrando em
parcelas de euforia, de alegria, até, sobretudo em relação ao consumismo) em
contraposição à presença do discurso de oposição (resistência, no dizer de Chauí),
que estabelecia o contraditório na cultura radiofônica da Continental.
Conformismo e resistência, através de enunciados divulgados pelos microfones
ligados, enquanto dois pólos articulados, pela contradição de culturas, processo de
assimilação, aproximação e ressignificação da produção simbólica e ideológica da
rádio, na praxe. Conforme análise de Chauí (1989), pode-se referir à cultura como
construção humana dotada de ambigüidade, embora o termo, alerta a autora, não
goze de boa reputação (ainda que seja inspirado na qualidade intelectual de
Merleau-Ponty). Para a autora,

Ambigüidade não é falha, defeito, carência de um sentido que


seria rigoroso se fosse unívoco. Ambigüidade é a forma de
existência dos objetos da percepção e da cultura, percepção e
cultura sendo, elas também, ambíguas, constituídas não de
elementos ou de partes separáveis, mas de dimensões
simultâneas que, como dizia ainda Merleau-Ponty, somente
serão alcançadas por uma racionalidade alargada, para além do
intelectualismo e do empirismo (CHAUÍ, 1989, p. 123).

São as práticas sociais que, em última análise, determinam a especificidade


da interação comunicacional, no caso, contraditórias e ambíguas, como vimos.
Novamente, acompanhamos Chauí (1989, p.122), quando esta sublinha que

[...] seres e objetos culturais nunca são dados, são postos por
práticas sociais e históricas determinadas, por formas da
sociabilidade, da relação intersubjetiva, grupal, de classe, da
relação com o visível e o invisível, com o tempo e o espaço,
com o possível e o impossível, com o necessário e o
contingente.
176

A Continental enunciava, no mesmo espaço radiofônico, a voz seduzida e


a voz sedutora afinada ora com o estrangeiro, ora com o compromisso de fazer,
sonora e radiofonicamente, o estabelecimento de complexa marca de identidade
local e marcava, de modo próprio, uma resistência pelo enfoque local. Esta
resistência particular, em contraposição à invasão do exterior foi, igualmente,
identificada por nossa pesquisa junto à comunicação localizada da Continental.
Tratava-se de uma rádio de expressão fortemente porto-alegrense sem ser,
entretanto, gauchesca, nem nas falas, nem nos valores. No sentido regionalista,
havia, naquele espaço discursivo, uma região de fronteiras abertas. Por ali,
passavam, dialogavam, apresentavam-se expressões do discurso estrangeiro, do
nacional-democrático, do cultural-local, entre outros. A Continental fazia do
espaço para as diversas narrativas o umbral do contraditório entre o próximo e o
distante, entre o local e o internacional, a contar do acionamento de construções
metonímicas.

As construções metonímicas são figuras de linguagem, são modos de dizer


e de expressar, são os tropos acionados para a expressividade, para o estilo e a
comunicação, podemos dizer (ROCHA LIMA, 1987, p. 466-467). Catalogadas
pela estilística, são denominadas, atualmente, também, como figuras de palavras.
A articulação da metonímia está baseada numa relação de contigüidade onde, a
partir de idéias evocadas por um tropo, chega-se a outras, no processo, por
transferências e associação.

Uma variedade da metonímia é a antonomásia, isto é, a designação de uma


pessoa, lugar ou coisa por qualquer atributo notório. A Continental usou, com
freqüência, o artifício de radiofonizar metonímia com a variedade de tipo
antonomásia, sendo a lógica desta última figura de palavra muito próxima do uso
popular do artifício de apelido.

A anáfora é outra figura de construção, conforme denomina Rocha Lima


(1987, p. 473), também chamada figura de sintaxe, e estrutura-se pelo
acionamento pela repetição do mesmo termo, na frase ou período. A anáfora
consiste na repetição de uma palavra ou de um segmento do texto com o objetivo
de enfatizar uma idéia. É uma figura de construção muito utilizada, por exemplo,
177

em textos poéticos. A narrativa Continental, ao tornar freqüente a enunciação,


com a repetição associada de Na Porto Alegre... Continental, dentro de todo o
espaço da grade de programação, valia-se, eficazmente, em nossa opinião, de
determinado emprego do artifício anafórico para a comunicação.

Assim, em resumo, voltando-se para a metonímia, também, conforme


sugere Jakobson (1995, p. 55), esta nasce, no desenvolvimento de um discurso, de
uma relação semântica de contigüidade, onde um tema (topic) pode levar a outro.
Segundo o Autor, melhor é referirmos processo metonímico e relações de
contigüidade, no todo, no conjunto do discurso, metalingüisticamente operante.
Enquanto toda expressão metafórica se faz pela substituição de paradigmas, toda
expressão metonímica deriva da associação de paradigmas. Esta associação pode
ser construída através do acionamento do abstrato pelo concreto, do individual
pela classe, a parte pelo todo, o continente pelo conteúdo, o símbolo ou sinal pela
coisa significada.

O próprio Jakobson (1995, p. 123) refere, em ensaio famoso, seis fatores


constitutivos de todo processo lingüístico (a saber, remetente, contexto,
mensagem, contato, código e destinatário) e estabelece que cada um desses seis
fatores determina uma diferente função de linguagem. Contudo, alerta que,
dificilmente, encontraremos mensagem que preencha uma única exclusiva função.

No conjunto das seis funções, três são nucleares, a saber: função


referencial, cognitiva ou denotativa relacionada ao contexto; função expressiva ou
emotiva, relacionada ao remetente; função conativa relacionada ao destinatário.
Já para o canal está a função fática; para o código, surge a metalingüística.
Quando temos o enfoque na mensagem, Jakobson (1995, p. 123) fala em “pendor
para” a função poética. Na realidade, a linguagem foge ao purismo de articulação
de tão-somente uma função. Segundo o Autor, “A diversidade reside não no
monopólio de alguma dessas diversas funções, mas numa diferente ordem
hierárquica de funções. A estrutura verbal de uma mensagem depende,
basicamente, da função predominante”.
178

No caso da Continental, verificamos, na verdade, o deslocamento de uma


para outra função, onde a função referencial dialoga com a metalingüística e o
pendor, freqüentemente, está na função fática (com o chamamento à Continental,
a toda frase, praticamente) e, também, na poética.

O que imperou nas composições que examinamos refere aquilo que


Jakobson (1995, p. 130) indica como modos básicos de arranjos utilizados no
comportamento verbal, isto é, a “seleção e a combinação. A seleção é feita em
base e equivalência, semelhança e dessemelhança, sinonímia e antinonímia, ao
passo que a combinação, a construção da seqüência, baseia-se na contigüidade”.

O conjunto do dispositivo narrativo associa rádio e cidade, através da


articulação metonímica. Igualmente, discursivamente, provoca a aglutinação de
significados e a fixação de valores semânticos pela ação encadeada e concatenada
a partir da enunciação de slogans.

A narrativa metonímica, integralmente, e a narrativa-slogan (em menor


intensidade) proporcionaram à Continental oportunidade de produção de uma
certa narrativa territorial da cidade. Estas narrativas dotaram a emissora como
fonte de enunciação do estrangeiro e do distante outro, mas, sobretudo, inseriram,
pela voz (pela ação de enunciação) e pelo enunciado, a cidade de Porto Alegre e
seus cidadãos como personagens distinguidos para as audiências.

A narrativa territorializada de Porto Alegre, pela Continental, expande os


limites físicos da cidade, ao mesmo tempo em que a delimita culturalmente, agora,
tornada habitada pelo estrangeiro, pelo brasileiro, em resumo, pela gama de
discursos urbanos de atualidade construídos por aquela voz da rádio. Assim, o
territorial da Continental, erguido discursivamente, revelava-se como sintoma
cuja voz era arauto de espécie de mal-estar, diálogo crítico com a instância
emergente, de certa tendência ao “não lugar”, conforme Bauman, entre outros,
examina, no contexto da modernidade líquida. Também, tratava-se de uma
relativa pugna pela demarcação cultural, pelo mesmo espaço com indícios,
vestígios, signos do desterritorializado, conforme define Canclini e certos teóricos
do pós-moderno.
179

O conjunto de vozes da Continental (exemplificados pelas falas dos DJ’s,


pelas narrativas metonímicas e pelas narrativas-slogans) expressava, em discurso,
a crise de um enfrentamento, justamente, pela determinação da busca de um lugar
(para Porto Alegre e para a Rádio Continental, lugar material e simbólico, ao
mesmo tempo), fugindo às sobredeterminações da globalização, à época, então,
denominada por imperialismo.

Chamamos de narrativa metonímica da Continental o conjunto de textos


escritos e radiofonizados, inicialmente, com objetivo institucional de identificação
da própria emissora para seus ouvintes e da informação da hora certa. Mas, a
partir daqueles serviços de utilidade pública, verificamos, quando da análise da
presente pesquisa, que, a partir daquelas funções realizadas, foram depreendidos
novos sentidos, novos significados, igualmente, produzidos, possibilitados pela
semântica de ação e de expressão da comunicação da Continental. A fala da rádio,
assim, literalmente, a história. A Continental construiu, em nosso entendimento, a
particularidade de um som e a complexidade de conseqüentes sentidos, isto é, o
histórico e o comunicacional.

Assim, o que começou como sendo mera estratégia de auto-


institucionalização, como anúncio de prefixo para diferenciá-la de outras
emissoras e de informação de horário como serviço ao ouvinte, transforma-se,
conforme o nosso ponto de observação e análise, em aspecto diferenciado,
legitimador, também, de todo processo comunicativo da Continental.

Constatamos, ali, sobretudo, processo narrativo de elevado alcance


comunicacional, com elevada carga informativa, de entretenimento e de opinião,
sobretudo, a respeito da cidade circundante, com suas inúmeras mutações infra-
estruturais e grandes motivações culturais de capital em movimento.

Vislumbramos, naquele dispositivo, naquela estratégia discursiva, algo


importante, singular e inovador. Tratava-se de uso da linguagem que se voltava
sobre si mesma, em metalinguagem, e sobre a emissora-enunciadora, para mais
falar do universo em torno, e para melhor inserir a própria Continental naquele
universo narrado e no próprio universo da enunciação. No jogo narrativo, a
180

linguagem possibilita referir o universo sensível in absentia. O processo


metonímico empresta caráter realista aos termos. A associação rádio-cidade-
conjunto de valores materializa-se na narrativa radiofônica, onde os sujeitos da
comunicação habitam e têm voz.

O conjunto desta narrativa metonímica, tal qual observamos, recortamos e


interpretamos, configurou qualidade particular da Continental, modo próprio
narrativo radialístico, criativo e singular, modo de narrar e integralizar o mundo
para os ouvintes, radiofonizando, simbolicamente, uma certa cidade de Porto
Alegre, real e imaginária, concreta e abstrata, antiga e moderna, cultural, em
sentido amplo.

As narrativas, ao mesmo tempo, inseriam e fixavam a própria Continental,


tanto quanto sujeito da enunciação, como quanto personagem fundamental,
quando não principal, dentro do enredo do conjunto-dispositivo narrativo.

Aquilo que começou como sendo mera estratégia de auto-


institucionalização, como anúncio de prefixo para diferenciá-la de outras
emissoras e de informação de horário como serviço ao ouvinte, transforma-se,
conforme o nosso ponto de observação e análise, em aspecto diferenciado,
legitimador, também, quase um resumo, de todo processo comunicativo da
Continental. Constatamos, ali, sobretudo, processo narrativo de elevado alcance
comunicacional, com elevada carga informativa, de entretenimento e de opinião,
sobretudo, a respeito da cidade circundante, com suas inúmeras mutações infra-
estruturais e grandes motivações culturais de capital em movimento.

Se as frases arquitetadas possuíam o caráter sintético, de capacidade


aglutinadora, se servem para marcar e para reunir, com qualidade e espécie de
resumo, logo, a recepção social trataria de operar inéditos sentidos para a série,
propondo novo jogo discursivo e interpretativo na interação.

Naquela proposta de narrativa de comunicação dialógica, o enunciado


indicava certos dados, alguns fortemente referenciais, como verdadeiros índices
semióticos, outros mais fortemente simbólicos ou sígnicos. Em qualquer das
instâncias, no entanto, dotados de abertura pela palavra radiofonizada (escrita-
181

falada-retransmitida), onde o receptor completava, à moda, o sentido. Na narrativa


radiofônica, o sentido é construído pela ampliação ou fechamento do espectro
simbólico articulado pelo ouvinte, completando o jogo comunicacional que teve
início a partir da fonte.

Observemos, inicialmente, alguns dos exemplos criados desta narrativa


Continental, que eram estampados em listas, dia-a-dia, por turnos de horário, em
séries aleatórias, relacionando a rádio com fatos, com temas, com personagens,
com entes e com acontecimentos diversos.

Na Porto Alegre das áreas de concreto verde......................


CONTINENTAL! ZYH 223-1120 KHZ
Na Porto Alegre da super feira do livro ..............................
CONTINENTAL! 1120 KHZ-ZYH 223.
Na Porto Alegre do olfato ofendido ....................................
CONTINENTAL! ZYH 223-1120 KHZ
Na Porto Alegre das praias poluídas ...................................
CONTINENTAL! 1120 KHZ-ZYH 223.
Na Porto Alegre das refeições em pé ..................................
CONTINENTAL! ZYH 223-1120 KHZ
Na Porto Alegre do rio morto ......................................................
CONTINENTAL! 1120 KHZ-ZYH 223.
Na Porto Alegre do assalto nosso de cada dia .............................
CONTINENTAL! ZYH 223-1120 KHZ
Na Porto Alegre da Banca Vera Cruz ..........................................
CONTINENTAL! 1120 KHZ-ZYH 223.
Na Porto Alegre dos ônibus milenares.........................................
CONTINENTAL! ZYH 223-1120 KHZ
Na Porto Alegre dos ciclistas.......................................................
CONTINENTAL! 1120 KHZ-ZYH 223.
Na Porto Alegre da ex-Rua da Praia ............................................
CONTINENTAL! ZYH 223-1120 KHZ
Na Porto Alegre do Planetário .....................................................
CONTINENTAL! 1120 KHZ-ZYH 223.
Na Porto Alegre do feijão misterioso...........................................
CONTINENTAL! ZYH 223-1120 KHZ
Na Porto Alegre do largo dos artesãos.........................................
CONTINENTAL! 1120 KHZ-ZYH 223.
Na Porto Alegre da boa imprensa nanica.....................................
CONTINENTAL! ZYH 223-1120 KHZ
182

Na Porto Alegre do Chalé da Praça XV.......................................


CONTINENTAL! 1120 KHZ-ZYH 223.
Na Porto Alegre dos teatros à sua espera.....................................
CONTINENTAL! ZYH 223-1120 KHZ
Na Porto Alegre da Ladeira do Protesto ......................................
CONTINENTAL! 1120 KHZ-ZYH 223.
Na Porto Alegre dos empresários de bombachas.........................
CONTINENTAL! ZYH 223-1120 KHZ
Na Porto Alegre dos aterros.........................................................
CONTINENTAL! 1120 KHZ-ZYH 223.
Na Porto Alegre do museu do som ..............................................
CONTINENTAL! ZYH 223-1120 KHZ

5.3.6 Outras Narrativas Auto-institucionais (de Identificação)

Embora o conjunto de narrativas aparecesse articulado com o conjunto,


exibindo peças misturadas, contíguas, próximas, na programação, buscamos
distinguir, aqui, no presente subcapítulo, as narrativas auto-institucionais de
identificação das narrativas-slogans e das narrativas metonímicas. Também, para
constituição da análise, buscamos separar e apresentar as narrativas auto-
institucionais das narrativas musicais, tal qual veremos a seguir. Na realidade,
aqui, em que pese uma aproximação possível entre as diferentes narrativas,
buscamos ressaltar, justamente, onde existiria a possibilidade de identificação de
outras narrativas auto-institucionais, além daquelas apresentadas acima, uma vez
estudado e mostrado o caráter auto-institucional, também, nas narrativas-slogans
e metonímicas. Em resumo, quais outras narrativas podemos indicar como auto-
institucionais e de identificação que foram produzidas pela Continental?

Consideramos narrativas de auto-institucionalização e de identificação


aqueles dispositivos discursivos que associavam texto verbal, escrito, lido, aos
sons eletrônicos, musicais melódicos e outros, construindo as diferentes vinhetas,
jingles, spots para identificação da rádio, no dial, para seus ouvintes.

Selecionamos estas narrativas, sobretudo, nas chamadas características,


aberturas e vinhetas de diferentes programas da Continental.
183

Apesar da procura por uma estética, na linguagem, e por um padrão


jornalístico de oposição ao regime militar, a Continental, enquanto empresa,
pertence ao chamado Sistema Globo de Rádio, cujo proprietário é Roberto
Marinho. E, pela vinculação de origem, a Continental roda a mesma vinheta
universal de identificação de todo o Sistema Globo.

Já para a característica principal, exclusiva da Continental, foi escolhida a


música “Vento Bravo”, composição de Edu Lobo e Paulo César Pinheiro,
executada em arranjo instrumental. No ambiente cultural porto-alegrense,
fortemente marcado por características diversas e gerais da tradição gaúcha e
gauchesca, e tendo, estes aspectos, especial reflexo sobre o radialismo, como
verificamos aos estudar a história do rádio em Porto Alegre, vale destacar dois
detalhes, mas de importante indício simbólico. Demarcamos, na citação acima, a
escolha da música característica principal, composta por dois nomes
representantes, então, da nova música popular brasileira, como origem no centro
do país. Isto em comparação com as demais emissoras porto-alegrenses, todas
com temas regionais regionalistas como música característica. O segundo tópico
aponta para o próprio nome, com a designação Continental, fugindo da vertente
mais imperante para emissoras, marcadas pelo tom regional: sobretudo
Farroupilha, Gaúcha, Guaíba.

Pela ação da pesquisa, encontramos inúmeras aberturas auto-institucionais


e de identificação dos programas “Bier Show”, “Ritmo XX”, “Curtição Gipsy”,
“Fórmula 1120”, “Parada Continental”, “Transas 1120”, “Flash Back” (em duas
versões), “1120 é Notícia”, “Discos de Ouro”, “Loteria”, “Beatles Mania”,
“Beatles Mania IPV”, “Cascalho Time”, “Pediu Rodou Ganhou”, “Participarada”,
“Mr. Lee in Concert”, “Julius Brown”, “Opinião Jovem” (em fragmento).

É exemplar a abertura desenvolvida para “Mr. Lee”, fortemente marcada


por uma interpretação de banjo: tratava-se de música country norte-americana,
tornada padrão internacional pela empresa patrocinadora. Em meio às palavras da
música que enalteciam o estilo e a vida de Lee, Julius Furst autodenominava-se o
cowboy do rádio. Paradoxalmente, seria, naquele programa, fortemente
emoldurado por empresa e cultura norte-americana, que teria lugar a pequena
184

fresta por onde passaria e, logo, ganharia mais palco, a música popular urbana,
feita por e para universitários e estudantes vivendo em Porto Alegre e, claro, sob
certos aspectos, vivendo a vida de Lee.

Igualmente, localizamos as vinhetas de: Continental, Continental 1120,


Clash Box, Personalidade, Rádio Activy, Pesquisa Ibope, Sistema Globo,
Billboard via Telex, Triplex, Four Play I, Four Play II, Continental Dinamity, The
Fourts e, também, as características, cortinas: Beatles, cortina Danna Summer.

O conjunto de material, aqui disponibilizado pela pesquisa, foi obtido a


partir de entrevistas com Francisco Anele, o técnico de áudio guardião e
responsável pela gravação, arquivamento e recuperação da maior parte da
memória sonora da Continental. Igualmente, o recolhimento deste importante
acervo contou com a colaboração do técnico de som, Marcus Vinicius
Wesendonk, filho de um dos criadores da nova Continental, Marcus Aurélio.

5.3.7 Narrativas Musicais

Basicamente, eram três os gêneros ou tipos de músicas que distinguimos


no conjunto da programação: música popular brasileira, a MPB; música popular
gaúcha urbana, a MPG; e música internacional, basicamente, rock e pop.

As narrativas musicais da Continental constituíram fator decisivo para


caracterizá-la como emissora cultural, com destaque para a realização no setor de
entretenimento, configurando, na época, uma estratégia de ação comunicativa
singular, em Porto Alegre, a partir de 1971, para a juventude e para jovens adultos
locais. Assim, pode-se afirmar que a Continental foi a principal produtora da
trilha sonora urbana local, para aquela parcela constitutiva de público, divulgando
e criando produtos sonoros para consumo de massa, inicialmente, no âmbito
estrito de Porto Alegre e, posteriormente, atingindo outras cidades do Rio Grande
do Sul e do Brasil, como Curitiba.
185

Naquele tempo histórico, também caracterizado pela ampliação do


consumo para a massa humana integrada pela juventude, os jovens se constituíam
em público e audiência preferencial para as diferentes musicalidades da música
internacional, através da política de oferecimento e exibição das emissoras FM’s,
sobretudo nos Estados Unidos, e da produtividade crescente da indústria
discográfica e de componentes eletro-eletrônicos, disponibilizando à venda
massiva toca-discos, rádios, gravadores e toca-fitas, com qualidades de produtos
portáteis. A Continental, aqui, significou a oportunidade de informação e de
atualização, articulando parcelas da juventude de Porto Alegre com os pólos
culturais, políticos e ideológicos representados por cidades do centro do País, da
América do Norte e Europa. Na experiência da Continental, como em outros
lugares, a indústria cultural intervinha, igualmente, como indústria da consciência
através do estabelecimento de diferentes públicos dirigidos para determinados
produtos em oferta.

A diferença da Continental, mercadológica e culturalmente, no cenário do


rádio porto-alegrense e gaúcho, esteve no oferecimento de programação ímpar,
qualificada pela diversidade de musicalidades, pela oferta de produtos inéditos no
país e região, por apresentação de nova gama de melodias e autores e intérpretes
“alternativos”, pois, embora brasileiros, se constituíam, praticamente, em artistas
nacionais tão importantes quanto desconhecidos do grande público.

Mas, à qualidade já referida do som da Continental, como uma espécie de


vanguarda pré-FM, antes de oferta real deste tipo de emissora musical entre nós, a
diferença Continental nasceria de outra singularidade, ainda no setor musical. A
rádio singularizou, sobretudo, o oferecimento de espaço para a produção e criação
local, onde novíssima narrativa musical iria surgir e marcar época junto ao público
local.

Tratava-se de uma produção musical eclética, reunindo diferentes estilos e


gêneros musicais, desde o samba de Fernando Ribeiro até o rock gaudério trazido
pelos Almôndegas, desde a música pós-bossa nova de Gilberto Travi até a
adaptação do country nos acordes vocais do Inconsciente Coletivo. Este ecletismo
foi, também, marca registrada da emissora, reunindo, na mesma grade de
186

programação, todas as tendências musicais em voga. O ecletismo, entretanto,


primava pela diversidade, sem abrir mão do rigor quanto à qualidade, não
importando, fora este rigor, qual fosse a bagagem ou formação musical do cantor
ou grupo programado.

A Continental não poderia ser indicada como a primeira a ofertar e criar


narrativas musicais porto-alegrenses inéditas. Freqüentemente, o senso comum,
mesmo em espaço acadêmico, tem referido o caráter pioneiro do espaço
disponibilizado pela Continental para o músico e compositor local.

Entretanto, a singularidade da Continental não esteve no movimento de


abertura em si, logo, tampouco houve pioneirismo no espaço criado. O
pioneirismo esteve no tipo, na particularidade de espaço criado, no modo e na
alternativa estabelecida, naquele contexto histórico. Esteve, igualmente, na
criação e na articulação interativa desta narrativa Continental com seu público.
Esteve nos meios disponibilizados e nas formas das músicas enquanto narrativas
urbanas, daquela época, radiofonizadas, ao vivo ou gravadas.

A Continental, portanto, foi pioneira em ofertar e em produzir a música de


guitarras elétricas, com som e timbre gaúcho. Foi pólo e agenciadora de inéditas
articulações entre o novo samba e a chamada MPB, com produções originadas
entre universitários, com a livre aproximação ao rock, ao country e ao pop, num
contexto musical de abertura, igualmente, para sonoridades e gêneros de tradições
mais localizadas, regionalmente. Com estes conteúdos de programação, a
Continental foi pioneira, por antecipação, no estilo radiofônico-musical de FM,
em sendo, ainda, uma emissora de AM. Abriu novos espaços para artistas sem
gravadora, nem emissora, para que eles tocassem as novas músicas de protesto, ou
de atualização de estéticas, em diálogo com o Tropicalismo, com a Jovem Guarda,
com a música brasileira pós-bossa nova e com a vertente internacional, fortemente
marcada desde Elvis Presley até Bob Dylan, Beatles e Rolling Stones, entre
outros.

Em Porto Alegre, outras emissoras, em diferentes décadas, já haviam


possibilitado, como realizações no ar, novas músicas e outras sonoridades, com
187

novos intérpretes, novos compositores. Assim, a Continental, naquilo que logo


apresentaria como contribuição inédita, como criação própria, mostrar-se-ia como
novidade, sim, mas, ao mesmo tempo, a emissora porto-alegrense dava
prosseguimento a uma tradição gaúcha e porto-alegrense consagrada pela história
do rádio.

Por isso, vejamos. Já em 1935, quando nasce a Rádio Farroupilha,


transmitindo, ao vivo, diretamente do Parque da Redenção, onde ocorre festival
internacional do centenário da Revolução Farroupilha, artistas nacionais e
internacionais apresentam-se, lado a lado, com cantores e músicos locais. A
Farroupilha consagrar-se-ia pela contratação de orquestra própria, pela
apresentação de nomes artísticos com exclusividade, pela presença da jazz band e
pelos conjuntos musicais chamados regionais (ENDLER, 1997, p. 107-121).

A música continuaria fazendo sucesso em programas de auditório e


estúdios, consagrando nomes e estilos, nas principais emissoras do rádio porto-
alegrense, ao longo das décadas de 1940, 1950 chegando até o período já marcado
pela concorrência com a televisão. Quando a Rádio Continental é registrada, nos
primeiros anos da década iniciada em 1960, Farroupilha, Gaúcha, Difusora,
Princesa e Itaí resistem, mantendo programação musical ao vivo. O Clube do
Guri e Programa Maurício Sirotsky, o primeiro apresentado por Ari Rego e o
outro pelo próprio homem que seria um dos fundadores da RBS, são expressões
maduras desta realização cultural do rádio (SCHIRMER, 2002).

São estas emissoras que revelaram, primeiramente em nível local, e, após


para carreiras de maior ou menor expressão nacional, nomes como os de
Lupicínio Rodrigues, Elis Regina, Túlio Piva e Conjunto Farroupilha, entre
outros.

Assim, quando surgia a Continental, estava morto o espaço tradicional do


programa de rádio-auditório, mas existia a música ao vivo para jovens feita em
estúdio e em pequenas mostras universitárias. Vivia-se, no país, a passagem e o
diálogo musical de diferentes movimentos estético-musicais, como bossa nova,
jovem guarda e tropicalismo.
188

Em Porto Alegre, agora, mesmo que em outra moldagem, a música


voltaria a ocupar pequenos, médios e grandes auditórios para a realização,
sobretudo, de festivais e mostras coletivas de música urbana. A forte tradição, já
então, da música regionalista, e mesmo da região do rio da Prata, igualmente,
dialogavam com os sons de guitarras elétricas estrangeiras. As narrativas
musicais, a seguir, mostradas pela Continental, teriam como característica o
ecletismo de origens e influências sonoras. Mas esta narrativa Continental
necessitava de ingredientes para consumo e interação com diferentes públicos,
como ocorreria, a seguir.

O rádio receptor em automóvel, o rádio portátil e o gravador K-7 são três


elementos técnicos que garantiriam a expansão deste “auditório sem fio”, onde as
audiências da Continental passariam a consagrar nomes como, entre outros,
Hermes Aquino, Os Almôndegas e Fernando Ribeiro, que, tendo maior ou menor
sucesso, a partir de meados da década de 1970, gravariam discos de impacto local
logo, efetiva repercussão nacional.

Aqui, novamente, cabe uma ressalva. São, igualmente, narrativas musicais


algumas daquelas peças de publicidade, anteriormente já referidas e, igualmente,
algumas daquelas outras de auto-institucionalização e de identificação já
explicitadas acima. Aqui, pois, queremos indicar as narrativas musicais outras,
ainda não referidas. Estas, fundamentalmente, chegavam com os diferentes tipos
de musicalidades, de entretenimento e de informação cultural, oportunizadas pela
Continental.

São narrativas musicais as expressões do rock e do pop internacionais,


sobretudo, norte-americanos e ingleses. Ainda, na gama internacional, a emissora
apresentava peças do cancioneiro popular francês e italiano.

Mestre Antonio Cândido (1985, p. 130), na obra Literatura e Sociedade:


Estudos de Teoria e História Literária, sustenta que “as melhores expressões do
pensamento e da sensibilidade têm quase sempre assumido, no Brasil, forma
literária”.
189

Em nosso entendimento, é possível dialogar com a idéia expressa acima de


diferentes maneiras. Primeiramente, pode-se depreender que a grande voga da
narrativa Continental possui, como característica de conjunto, a qualidade herdada
desta pujante fonte literária, também poética, de expressão nacional na cultura,
numa expressão local da dialética entre a parte e o todo.

Poder-se-ia dizer, ainda, que a narrativa musical Continental acompanha o


todo, igualmente, naquilo em que o País se moderniza. E, assim, a narrativa
Continental assinala, em expressão regional, aquilo que o Brasil está processando,
no todo, como Estado-nação, em termos de produção e processualidade da cultura,
agora, em forte interação possibilitada pelo avanço das telecomunicações, do
desenvolvimento da indústria de produtos elétrico-eletrônicos, pelo
desenvolvimento de redes de comunicação em geral, de eletricidade e de telefonia.
Defendemos que a narrativa musical Continental se mostra como uma expressão
gaúcha desta processualidade, desta passagem do “país literário” para uma nação
onde a pujança será fixada, agora, pelos projetos de expressão musical midiático,
sob o domínio da produção audiovisual.

Carlos Guilherme Mota refere-se àquele período como época de revisões


radicais, sobre vanguarda e subdesenvolvimento (Ferreira Gullar), sobre
vanguarda e conformismo (Renato Schwartz). Revisões e aberturas teóricas que
desembocam em impasses da dependência cultural, em debacles irresolvidos, ao
longo da década iniciada em 1970. Segundo Mota, vivíamos o acirramento das
contradições geradas pela situação dependente e pelos processos de abafamento e
materialização camufladora da massificação cultural [...] (1980, p. 274).

Renato Ortiz localiza, naquele período, o questionamento quanto á


ultrapassagem ou ruptura possível do modelo popular-nacional de cultura para o
internacional-popular (1998, p. 182-206).

Assim, aquilo que Antonio Cândido assinalava, se podemos, aqui,


encampar, acompanhando a indicação do literário como a expressão brasileira de
excelência, até, digamos, o período da II Guerra Mundial, já a partir de 1960, em
nosso entendimento, “o melhor da inteligência e da sensibilidade” brasileira
190

passará, obrigatoriamente, pela música, como sabemos, fortemente midiatizada


em termos da dinâmica produção-recepção.

O Rio Grande do Sul, neste sentido, também está integrado às discussões


do projeto cultural nacional. Entendemos a narrativa musical Continental como,
ao mesmo tempo, expressão e diálogo desta condição em nível local. Território,
entretanto, já desperto e invadido, como todo o espaço brasileiro, então, para a
comunicação-mundo e para as formulações da cultura internacional do
capitalismo, configurando fenômenos como o hibridismo, a partir dos primórdios
da nova globalização.

5.3.8 Narrativas Paródicas e Humorísticas

A busca pelo humor como valor e deste como algo presente em toda a
programação diária da Continental podia ser aferida desde os slogans de
identificação da emissora, através das máximas de auto-institucionalização, ou
reverberando nas falas debochadas dos DJ’s, e, também, no enquadramento
transgressor da publicidade feita, até atingindo o espaço sisudo porque aquele
destinado para a produção de hard news, local em outras emissoras consagrado,
tão somente ou, sobretudo, para enunciação da miséria e da tragédia humana
cotidiana.

Mas o caráter paródico e de humor teve, na grade completa da


programação da Continental, espaço próprio e delimitado que, aqui, referimos.

As narrativas de construções do humor da Continental, enquanto


realizações à parte, com esta finalidade e sob este registro formulado,
aconteceram, sobretudo, através da realização de paródias, das quais destacamos
dois exemplos, em nossa opinião, contundentes, identificados pela ação da
pesquisa.

São exemplos da narrativa de humor paródico da Continental o chamado


“Horóscopo Gozado” e o espaço dos “Discocuecas”.
191

O “Horóscopo” era apresentado no horário do meio-dia, em programetes


com a duração de dez minutos, onde o apresentador Fernando Westphalen
incorporava diversos personagens para apresentação diária de presságios,
parodiando horóscopos consagrados no rádio brasileiro, e retransmitidos em Porto
Alegre, como os de Zora Yonara e Omar Cardoso.

O personagem central do “Horóscopo” chamava-se Ermano Cano e se


constituía em codinome paródico ao futurólogo Hermann Kann, nome bastante em
voga, durante a década de 1970, após projetar-se através da mídia nacional, por
sugerir projetos inusitados, como o aproveitamento total da Amazônia brasileira
para desenvolvimento intensivo de geração de energia, através de rede gigante de
hidrelétricas.

O “Horóscopo” contava com a redação de Eloy Terra, contratado pela


emissora para aquela tarefa exclusivamente. Diariamente, o redator exclusivo
tratava de explorar o noticiário local, nacional e internacional, de modo a dispor
do mesmo, em refunção, para uso paródico humorístico, ora contra certas medidas
econômicas do Banco Central, ora contra decisões políticas do governo militar,
ou, ainda, algo referente à medida de cunho autoritário, em nível municipal, como
o combate violento de PM’s contra estudantes em manifestação de rua.

Já o espaço destinado ao futuro grupo “Discocuecas” nasceu de uma


decisão intuitiva de Julio Furst de programar uma única apresentação dele próprio
com amigos, no espaço final do programa “Vivendo a vida de Lee”. A experiência
ocorreu numa incerta noite, em meados de 1976.

A enorme repercussão obtida, no entanto, levou o grupo à realização de


outros encontros em novos programas, até a fixação em definitivo do mesmo,
sempre funcionando como espécie de epílogo bem-humorado para o espaço de
uma hora ocupado, tradicionalmente, por “Mr. Lee”.

O grupo era constituído, além de Furst, por músicos que gravitavam em


torno da Continental, a partir de realizações como “Mr. Lee in concert”, e contava
com Gilberto Travi, João Antônio e Beto Roncaferro, este último já atuando como
radialista, apresentador de programa musical na própria rádio.
192

No ar, o grupo tratava de ironizar os principais grupos étnicos


colonizadores sul-rio-grandenses, fazia brincadeiras contra o machismo e sobre
aspectos do gauchismo e, também, subvertia o tom “açucarado” de determinadas
músicas românticas banais, atacava com humor a exploração excessiva de temas
ou situações relativas a sexo, ridicularizava o autoritarismo, criava paródias
musicais e, em especial, para o som das discotecas, em tal nível que traria para o
nome de batismo do próprio grupo algo neste direcionamento: “Discocuecas”.

Outra construção paródica humorística esteve nas chamadas “Dicas”,


escritas e produzidas por Luiz Eduardo Moreira onde provérbios eram subvertidos
por trocadilhos como, por exemplo, “Se Maomé não vai à montanha... Maomé
deixa de passar o final de semana na serra”.
CAPÍTULO 6: A INOVAÇÃO NA TRADIÇÃO E NA CONTRAPOSIÇÃO

6.1 O RÁDIO COMO PROBLEMA EMPÍRICO-TEÓRICO

As ciências sociais contemplam e oferecem diferentes alternativas


ordenadas para a superação da problematização dos fenômenos, não
especializando o foco a partir da mera e restrita abordagem centrada no empírico,
ou na parcialidade deste. Os estudos por nós empreendidos, na pesquisa, buscaram
esta orientação.

Estão incluídos, entre estas abordagens, por exemplo, os estudos sobre


estruturas, de Giddens (1998); o holismo cognitivo, de Morin (1999); o
enquadramento para superação de uma “crise de degenerescência”, em Santos
(1989), entre outros. Igualmente, possibilitam análises e interpretações
qualitativas os estudos fecundos possibilitados pela história oral e pelos
historiadores narrativistas, como Veyne e Le Goff, por nós adotados na pesquisa.

Entretanto, quanto aos estudos específicos sobre o rádio, parece ser


unânime, ao menos entre pesquisadores da área (MEDITSCH, 2001, p. 45), a
constatação de que são insuficientes, quando não dos pesquisadores, as ações e os
esforços dos gerentes de cultura, como editores, livreiros e bibliotecários, no
trabalho de divulgação científica voltada para o rádio, enquanto problema de
pesquisa.

Entre nós, também por ajudar a suplantar esta lacuna, destacam-se


esforços, como os de Grisa, através da inovadora abordagem da Rádio
194

Farroupilha, de Porto Alegre, dissertação de mestrado recuperada na obra


Histórias de Ouvintes. A audiência Popular no Rádio (2003).

Entretanto, apesar dos méritos relevantes do referido estudo, na elaboração


de abordagem e hipóteses dos sentidos de escuta do rádio, situado na conexão
com a cultura, não nos basta identificá-lo e dizermos sobre este meio “que é um
fenômeno popular por excelência” (GRISA, 2003, p. 25).

Na perspectiva que empreendemos, também perpassada por Grisa,


encontra-se a necessidade de historicização do fenômeno. E, através desta, a
construção de outro nível de compreensão e de conhecimento sobre o meio,
tomado como expressão de um “saber prático esclarecido” (SANTOS, 1989).

O rádio como “fenômeno popular por excelência”, de resto, já foi superado


pela sugestão da presença deste popular no massivo, conforme sugestão de
Martin-Barbero (1997, p. 308).

Tampouco, a categoria do popular é aplicável, preferencialmente, às


experiências radiofônicas históricas fundamentais, como aquela protagonizada
pela redação de cerca de oitenta peças radiofônicas, por Walter Benjamin, com a
apresentação de parte desta produção pela Rádio Berlin e Frankfurt (1999).
Tampouco, podemos indicar a experiência da Continental como de expressividade
popular, quer pelo segmento de classe ali contemplado pela existência da
emissora, quer pelo caráter da programação empreendida, ou, ainda, pela
quantidade de público ouvinte, historicamente constituído.

O rádio como uma expressão do saber prático esclarecido aparece-nos, na


pesquisa, como uma hipótese mais robusta de trabalho. Com esta, identificamos
tal hipótese como oportuna articulação do saber científico com expressões do
saber comum e com os demais saberes humanos. Ainda, relacionamos esta
expressão do saber prático esclarecido com outro ramo do conhecimento,
denominado, na história, como filosofia da práxis. Mas, para tal, identificamos
como necessária a superação do idealismo, erguido num pólo da questão, e do
pragmatismo vulgar, postado em outro extremo da problemática do conhecimento.
195

A chamada filosofia da práxis surge, justamente, como tentativa de


superação tanto das especificidades redutoras, quanto da mirada mecanicista,
ainda que dualista. Aquilo que Gramsci denomina “novo processo cultural” tem
início, na história, com a decomposição do hegelianismo, através de “um processo
em que se unificam o movimento prático e o pensamento teórico (ou tentam
unificar-se através de uma luta teórico-prática)” (GRAMSCI, 1978, p.153). Como
instância reformadora do hegelianismo, a filosofia da práxis articula-se e entende-
se como existente no território da necessidade, embora se arvore à utopia da
liberdade (por definição, inexistente). Entendida como expressão das contradições
históricas – “a expressão mais completa porque consciente”, no dizer de Gramsci.
E, justamente por isto, não apenas dotada de capacidade de compreensão das
contradições, mas que “se vê a si mesmo como elemento da contradição e ergue
este elemento como o princípio de conhecimento” (GRAMSCI, 1978, p. 136).

É sob este prisma que afastamos a possibilidade de entendimento da


Continental como fato ou noção puramente objetiva, quer enquanto rádio para
contar sua própria história, quer emissora enquanto pólo enunciador de cultura.
Entendemos, com Gramsci (1978, p. 99), que a ciência é a articulação, “a união do
facto objetivo com uma hipótese ou um sistema de hipóteses que superam o
simples fato objectivo”. É neste direcionamento que erguemos a história das
peripécias da Continental, apostando nas possibilidades interpretativas daquele
conjunto de ações, tais como apresentamos no capítulo final da presente tese. É,
ali, que a racionalidade da pesquisa se expressa em busca de construção de ato
como intento “criador”.

Na pesquisa, o “ato criador” surge em articulação com o estabelecimento


da história peripecial da Continental e, após esta, através da teorização das
peripécias históricas da emissora, quando chegamos a particularizações, como a
sugerida paidéia radiofônica, a relação rádio-identidade, no capítulo final.

Devemos entender, pois, o conceito de “criador”

no sentido “relativo”, como pensamento que modifica o modo


de sentir da maioria, e, por conseguinte, modifica a própria
realidade, que não pode pensar-se sem esta maioria. Criador
também no sentido de ensinar que não existe uma “realidade”
196

em si mesma, em si e por si, mas sempre em relação histórica


com os homens que a modificam, [...]. (GRAMSCI, 1978, p.
43).

Na pesquisa, pois, identificamos a produção radialística discursiva dentro


da história, na qual os sujeitos concretos buscam formas de interação social e
conhecimento público. Estes, como produtores culturais,

Detêm um poder específico, o poder propriamente simbólico de


fazer com que se veja e se acredite, de trazer à luz, ao estado
explícito, objetivado, experiências [...] do mundo natural e do
mundo social, e, por essa via, fazê-las existir (BORDIEU, 1990,
p. 176).

As peripécias da Continental, como problema concreto da pesquisa,


possibilitaram a visualização do espaço de tensões e de disputas, de encontros e de
malogros, em que os produtores culturais da enunciação puderam encontrar-se e
deparar-se com os produtores culturais da recepção radiofônica. Recuperação
histórica concreta de peripécias radiofônicas onde estão os sujeitos oradores, os
argumentos, o auditório sem fim e o contexto de recepção, conjunto de valores, de
juízos e de argumentos partilhados pelos oradores e pelo auditório, conforme
Breton (1999, p. 29). O peripecial como tecido histórico para análise da pesquisa,
no qual se identifica a fala viva dos sujeitos em operação na ação comunicacional,
no dizer de Bakthin (1992, p. 290):

A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo, é


sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa
(conquanto o grau desta atividade seja muito variável); toda
compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra,
forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor.

As peripécias da Continental, enquanto conjunto elenco de narrativas


históricas recuperadas pela pesquisa, pressupõe a constituição de uma comunidade
produtiva de enunciação-escuta, articulados pelas ações discursivas da emissora e
pela identidade construída pelos falantes e pelos ouvintes, em comunhão ou
disputas, mas em interação social via mídia rádio.
197

6.2 O RÁDIO COMO FATO EMPÍRICO: DOS PIONEIROS À


PROGRAMAÇÃO SEGMENTADA

O rádio, décadas antes de tornar-se meio de comunicação de massa, foi


objeto de pesquisas, disputas e realizações no campo da invenção científica. Antes
de meio de comunicação de massa, o rádio foi técnica de comunicação a distância.
A disputa por patentes nacionais e internacionais para diferentes inventos marcou
o caráter polêmico de diferentes paternidades de invenções indicadas pela história
oficial. Neste cenário, o Brasil, já inserido como país periférico no concerto
mundial das nações, e o Rio Grande do Sul, então, província distante da capital do
país e do círculo de poder da Corte, têm distintos protagonismos na história.

Segue esta lógica a invenção da comunicação por radiofreqüência, tanto do


telefone quanto do telégrafo sem fio, e, assim, chega-se à atribuição ao engenheiro
e empresário italiano, Guilhermo Marconi, em 1894, da utilização prática da
comunicação a distância, valendo-se de ondas eletromagnéticas. Dois anos depois,
Marconi decide patentear o invento na Inglaterra, país de sua esposa, após
desinteresse dos italianos pelo invento. Em 1901, realiza aquela que seria a
primeira transmissão de mensagem sem fio através do Atlântico. Já a primeira
transmissão de voz humana por ondas eletromagnéticas é atribuída pela história
oficial ao canadense Reggie Fasseden, na noite de Natal de 1906, quando
surpreende os operadores de telégrafo sem fio dos navios em operação na costa de
Massachussets. Fasseden adaptou um microfone, com o qual transmitiu a própria
voz e um solo de violino (MEDITSCH, 2001, p. 32).

O ano de 1893 marcaria a atuação de dois inventores que colocariam em


questionamento o pioneirismo de Marconi e Fasseden. Nos Estados Unidos, o
engenheiro croata Nikola Tesla realizou a transmissão sem fio de um sinal, em
experiência reconhecida, somente em 1943, pela Suprema Corte norte-americana,
seis meses após o falecimento de Tesla, morto praticamente na miséria. O outro
inventor é gaúcho.
198

Sem qualquer reconhecimento oficial, tampouco, o padre gaúcho Roberto


Landell de Moura, no mesmo ano de 1893, teria demonstrado, simultaneamente, o
uso de um telégrafo e de um telefone sem fios, com capacidade para transmitir
mensagens até oito quilômetros de distância, em linha reta, do alto da avenida
Paulista ao alto de Sant’Ana, em São Paulo. Sem merecer apoio do governo
brasileiro, nem tampouco atenção do cônsul inglês que assistira a demonstração,
Landell de Moura retorna para Porto Alegre, onde terá seus equipamentos
destruídos por fiéis de sua própria paróquia. O padre é atacado com virulência,
acusado como impostor, mentiroso, louco, bruxo e demoníaco (FORNARI, 1960,
p. 43-44). Landell de Moura, somente, conseguiria registrar sua primeira patente,
no Brasil, em 1900. Sobre isto, afirma seu principal biógrafo e afilhado,

[...] finalmente, sempre perseguido por toda sorte de vexames e


dificuldades financeiras, consegue obter uma Patente brasileira,
sob o número 3279, expressamente concedida “para um
aparelho apropriado à transmissão da palavra à distância, com
ou sem fios, através do espaço, da terra e da água” (FORNARI,
1960, p. 45).

Nos Estados Unidos, em 1904, sem jamais obter reconhecimento público


como inventor autêntico, Landell obteria três patentes, respectivas às invenções do
transmissor de ondas, do telefone sem fio e do telégrafo sem fio (CAUDURO,
1977).

A descoberta do rádio, enquanto técnica de comunicação a distância,


surge, em solo gaúcho, sob a forma de um trauma social, algo como um nó
histórico, esquecido na memória. E, dentro do contexto brasileiro, o invento
aparece sob a forma do supérfluo, do sem-sentido, como num malogro, onde a
ciência é negligenciada pela ignorância da elite dirigente.

Já as pioneiras transmissões pelo rádio marcam, socialmente, tanto a


cidade do Rio de Janeiro, em 1922, quanto Porto Alegre, em 1924, ambos
episódios ocorridos em data nacional, isto é, 7 de setembro. Mas os marcos
estabelecidos, em 1922 e 1924, não são unívocos em aceitação, como veremos.

O Rio de Janeiro é considerada a primeira cidade brasileira a instalar uma


emissora de rádio. Este pioneirismo, no entanto, é discutível. Há indícios e até
199

documentação dando conta de experiências pioneiras de amadores que apontam


para o Recife, dia 6 de abril de 1919, quando, usando um transmissor importado
da França, Oscar Moreira Pinto inaugura a Rádio Clube de Pernambuco, logo se
associando a Augusto Pereira e João Cardoso Ayres (SAMPAIO, 1971, p. 19).

Oficialmente, entretanto, o rádio é inaugurado em 7 de setembro de 1922,


durante as comemorações do centenário da Independência do Brasil, quando cerca
de oitenta receptores importados para a ocasião possibilitam ouvir, em casa, o
discurso inaugural do presidente Epitácio Pessoa. Para tanto, a Westinghouse
instalara um transmissor de 500 watts, no alto do morro Corcovado, que lá
permaneceu, durante dias, possibilitando a transmissão de óperas, diretamente do
Teatro Municipal. Apesar do impacto junto à parcela da população, o processo
não tem continuidade e, assim, podemos considerar 20 de abril de 1923 como a
data de instalação da radiodifusão, definitiva, no Brasil, quando Roquette Pinto e
Henry Morize inauguram a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro com caráter
nitidamente educativo (ORTRIWANO, 1985, p. 13).

No Rio Grande do Sul, coube a um poeta simbolista a primazia de usar o


microfone para falar para o rádio pela primeira vez. A efeméride, novamente, é
marco polêmico. Em 7 de setembro de 1924, num domingo à noite, o poeta
Eduardo Guimarães, então diretor da Biblioteca Pública do Estado e redator de A
Federação, inaugura a Rádio Sociedade Rio-Grandense, em Porto Alegre,
selando, na capital, o pioneirismo do rádio no Sul. Até 1979, quando o
pesquisador Octavio Augusto Vampré manifesta-se, em Raízes e Evolução do
Rádio e da Televisão, obra seminal para a história da radiodifusão no Rio Grande
do Sul, pela necessária “correção de um equívoco histórico” (1979, p. 34-36). O
marco de 1924 fora omitido até então e a tradição apontava, erroneamente, para
1925, localizando, na criação da Sociedade Rádio Pelotense, no município de
Pelotas, o marco pioneiro da radiodifusão sonora no Estado. Tratava-se de erro
crasso, ou a celeuma poderia, hoje, ser vista como sintoma ou resquício de
disputa, entre grupos da capital e da região Sul do Estado, em torno da hegemonia
cultural e do poder simbólico gaúcho.
200

A década de 20, do século XX é marcada pela proliferação de clubes e


sociedades que fomentam, em todo o País, a criação de inúmeras emissoras. Não
raro, estas ações pioneiras nascem associadas a grêmios literários, liceus e
conservatórios de música. Os esforços do rádio estão na disseminação da alta
cultura e educação para o povo, como bem demonstra a trajetória exemplar de
Edgard Roquette Pinto, pioneiro no rádio e no trabalho da mídia educativa, nas
décadas de 1920 e 1930 (MOREIRA, 2002, p. 9-18).

Sobre o período, o pesquisador André Casquel (apud ORTRIWANO,


1985, p.14) registra ser o rádio “veículo de formas de diversão individualista,
familiar ou particular, muito pouco extensivas (onde) a cultura popular não tinha
acesso (pois o rádio) não se caracterizava como entretenimento de massa” (idem,
p. 32-39). Como é sabido, somente após a Revolução de 1930, mediante
significativos surtos de desenvolvimento industrial e comercial, e, mais ainda após
a II Guerra, a massa populacional merecerá acesso definitivo aos bens de
consumo, tendo início o incremento da massificação de bens culturais e
simbólicos.

A pesquisadora Maria Elvira Bonavita Federico (1982, p. 33-35), em


consonância com outros pesquisadores, identifica o rádio na etapa das primeiras
décadas do século XX como uma fase de curiosidade. Segundo ela, o interesse
surge com os relatos sobre uso estratégico do meio na I Guerra Mundial, com as
notícias sobre salvamentos e peripécias de navegações em alto mar. O meio
desperta interesse e merece divulgação, ainda, por parte de radioamadores devido
à novidade técnica e tecnológica que agrega à vida das elites urbanas.

Ao pesquisar o rádio gaúcho, desde os pioneiros às emissoras comerciais,


Ferrarreto (2002, p. 17) acompanha Federico na periodização e aponta para uma
próxima etapa, posterior à fase de curiosidade, caracterizada pelo interesse
empresarial e comercial em torno do rádio. Nossa hipótese de trabalho não
discorda, integralmente, disto. Entretanto, preferimos apontar as etapas não como
sucessões cronológicas, mas, sobretudo, como fenômenos concomitantes,
instâncias articuladas de um mesmo movimento social. Parcelas das elites cariocas
e gaúchas articulam, organicamente, de modo interessado, pois, aspectos
201

estruturais e superestruturais da cultura, consolidando poder político, econômico e


simbólico. O rádio, neste sentido, é exemplar. O ato inaugural, em Porto Alegre,
radiofoniza sarau lítero-musical, mas ocorre na residência de coronel e
empresário, Juan Ganzo Fernandez, criador e presidente da Companhia Telefônica
Rio-Grandense (VAMPRÉ, 1979, p. 35). Em novembro de 1927, nasce a Rádio
Sociedade Gaúcha, com trezentos sócios contribuintes mensais; a empresa é
resultado da associação de Arthur Pizzoli e Francisco Garcia de Garcia, donos,
respectivamente, da Casa Coates e da Casa Victor, ambas dedicadas à venda de
fonógrafos e discos. Enquanto Garcia de Garcia associava-se a Breno Caldas no
comando da Rádio Sociedade Gaúcha, Pizzoli rompia a sociedade desta e
fundava, em 1934, a Rádio Difusora (ENDLER, 1997, p. 111).

No extremo sul do País, é importante destacar a diferenciada posição


geopolítica e cultural de cidades como Pelotas, Rio Grande e capital. Em Porto
Alegre, o rádio pioneiro pode programar a tradição da música erudita européia,
mesclada às influências advindas dos países do Rio da Prata, associando estas com
autores brasileiros, como faz com a obra do compositor carioca Luciano Gallet,
contando, ainda, com a produção local. O compositor Octavio Dutra, por
exemplo, já tem álbum publicado, com valsas, polcas e choros, gêneros populares
à época. Em 1923, surge a “Espia Só Jazz”, banda porto-alegrense, com atuação
até 1932. O músico Radamés Gnattali também marca atuação na cidade. Mas, é
particularmente importante o protagonismo da “Casa A Elétrica”, gravadora de
discos, a segunda criada na América Latina, já em 1913, pelo italiano Savério
Leonetti. Em Porto Alegre, no ano seguinte, Leonetti obtém prensadora própria de
discos e lança o selo “Gaúcho”, gravando as produções locais e nacionais. O
pesquisador e folclorista Paixão Côrtes chega a afirmar que o primeiro tango
argentino foi gravado/prensado em Porto Alegre (MANN, 2002, p. 5-8).

Fenômeno importante, em Porto Alegre, identificável já ao longo da


década iniciada em 1920, é a midiatização do rádio, através de conjunto da mídia
impressa, como jornais (Correio do Povo, A Federação, Diário de Notícias),
revistas (Almanaque do Globo, a série de Almanaques, de Alfredo Ferreira
Rodrigues, a efêmera Rádio para Todos) e periódicos (como panfletos e libretos
202

de empresas, como RCA e, posteriormente, Siemens), divulgando a produção


sonora e anunciando equipamentos técnicos, fonógrafos etc. Estas publicações
ganham em importância, na década iniciada em 1930, com a Revista do Globo e
Revista do Rádio. O marco trazido pela Revolução de 1930, movimento divisório
entre o estado brasileiro arcaico e o moderno, terá repercussão no rádio, como
aponta Rudiguer (1998, p. 78). A partir daquele momento, a midiatização do rádio
será crescente, chegando, igualmente ao cinema, com repercussão, por exemplo,
nos filmes-chanchadas da Atlântida que focalizam, em parte, aspectos relevantes
do rádio espetáculo e do rádio musical, das décadas de 1940 e 50.

À época da Continental, o rádio perdera lugar no efeito midiatização para


a televisão. Ainda assim, como constamos e demonstraremos, a Continental
merece lugar em espaços alternativos, bem como é alvo para críticas, embora em
colunas não especializadas, como é exemplar em Hilário Honório, influente e
conservador cronista diário do jornal Folha da Tarde.

Aquilo que estamos chamando de midiatização do rádio, em jornais,


revistas e periódicos é, particularmente importante, por possibilitar corpus para
pesquisas sobre o meio, não somente na presente pesquisa.

Em 1935, quando é inaugurada a Rádio Farroupilha, como já tivemos


oportunidade de afirmar anteriormente (ENDLER, 1998, p. 265), o rádio gaúcho
chega a patamar superior de organização, não apenas pela extraordinária potência
instalada para transmissão, em canal internacional exclusivo, mas, igualmente,
pelo estágio profissional de qualidade, ao articular a programação-produção com a
administração e a comercialização de espaço para propaganda. É a maturidade da
radiodifusão comercial em Porto Alegre. A rádio produz informação articulada,
além de estruturar o primeiro departamento comercial organizado em emissoras.
Segundo nossa interpretação, a Farroupilha integrará o “primeiro império” da
mídia gaúcha, com Flores da Cunha, antecipando-se a Getúlio Vargas no uso do
rádio como aparelho político (ENDLER, 1998, p. 259-270).

Talvez, possamos denominar aquele conglomerado gaúcho, controlado


pela família de Flores da Cunha, como “pequeno império”, sobretudo diante
203

daquele outro, também iniciado em 1935, por Assis Chateaubriand, criando a


Rádio Tupi carioca, emissora líder da rede Diários e Emissoras Associadas, que,
no apogeu, reuniria 34 jornais e 36 emissoras de rádio em todo o país (SAROLDI;
MOREIRA, 1988, p. 15).

De qualquer modo, a influência política e empresarial de Flores da Cunha,


à época governador eleito do Estado, carreia para ele inimizades e grandes
adversidades: no campo político, defrontar-se-á com Getúlio Vargas, a maior
liderança política nacional à época; em nível local, empresarial e também político,
o confronto será com Breno Caldas, proprietário do Correio do Povo, que, não
por mero acaso, erguerá o segundo império da mídia gaúcha. Para tanto, será
fundamental a criação da Rádio Guaíba, em 30 de abril de 1957.

O padrão de qualidade jornalístico empreendido pela Guaíba,


sedimentado, hegemonicamente, sobretudo a partir de 1960, bem como o padrão
musical e de produção artístico locais, desenvolvidos pela Farroupilha, desde
1935, serão dois grandes marcos referenciais e patrimônios radiofônicos gaúchos
articulados, praticamente, como expressão e conseqüência da mesma cultura
econômica e cultural-simbólica, inferimos com o escritor Carlos Reverbel
(ENDLER, 1997c). Cultura econômica e simbólica que tem, na base gerencial
social, o poderio agropastoril gaúcho que, desde o início do século XX, até o final
daquele, articula a exploração, sob o modo capitalista, da riqueza do campo, ainda
que acossado pelo setor industrial, desde sempre e, mais concretamente, no pós-
guerra (PESAVENTO, 1984).

A ênfase agropastoril da economia do Estado, ainda dominante, mas em


declínio, ganhará aporte da indústria, sobretudo, nas décadas de 1960 e 1970, a
partir da instalação do Pólo Petroquímico, em Triunfo, e do exponencial
desenvolvimento do pólo metal-mecânico na Serra Gaúcha.

Porto Alegre, também centro político-administrativo gaúcho, pólo


comercial e de serviços, viverá anos de francas modificações arquitetônicas e
viárias, com instalação de novos prédios de serviços. A Rádio Continental será, de
diferentes modos, sobretudo através das narrativas-slogans, como constatamos,
204

porta-voz privilegiada das alterações e mudanças. No contexto, a Continental


torna-se a voz do narrador contemporâneo, cumprindo as funções de cronista e
jornalista, tal qual propugnava Benjamin (1980), em ensaio onde ressalvava a
importância da memória e da narração, mesmo diante da experiência humana
decaída.

De resto, verifica-se, como uma ênfase da produção simbólica e midiática,


tanto as articulações que buscam ressalvar os aspectos regionalistas, mas,
igualmente, uma outra forte orientação exógena, com os movimentos freqüentes
em busca de atualização, ora com a tradição européia, ora com a
contemporaneidade norte-americana, sobretudo (PESAVENTO, 1980, p. 83-88).
Porto Alegre, capital político-administrativa e, ao mesmo tempo, comercial e de
serviços (públicos e privados) será campo fértil, logo, para o desenvolvimento da
comunicação de massa, em geral, e do radialismo, em particular. Naquele
momento, a RBS, a partir da sede porto-alegrense, reúne forças e parte para uma
jornada política, comercial, administrativa, gerencial e comunicacional que a
conduzirá à hegemonia regional no setor, consagrada, sobretudo, a partir de 1980.

No contexto, a Continental é voz narradora de culturas e produtos para a


juventude, radiofonizando aspectos da microistória da cidade e musicando com
sons novos, quando não inéditos, aqueles dias mutantes.

Neste panorama, destaca-se a trajetória ascendente da Rádio Gaúcha,


sobretudo, a partir das transmissões da Copa do Mundo de 1978, quando se
fortalece, não apenas como emissora líder do complexo de rádio da Rede Brasil
Sul de Comunicações − RBS, mas, principalmente, encaminha-se para a liderança
no setor. A liderança é concretizada, em termos de audiência e faturamento, a
contar da Copa do Mundo de 1982. Como grupo, atilado econômica, política e
culturalmente, vinculado ao capital urbano-industrial e financeiro, a RBS faz uso
da tecnociência e chega à composição da Rede Gaúcha Sat, integrada por uma
centena de emissoras, lideradas pela Rádio Gaúcha. Em 2001, a Rede Gaúcha Sat
comporá a maior rede de emissoras do país (In Mídia Dados 2001, p. 259).
205

Localizada neste macrocontexto regional, a pequena Rádio Continental


não manterá relação visceral com a tradição agropecuária sul-rio-grandense, nem
tampouco pode arvorar-se em parceira do capital, seja este industrial ou
financeiro, sequer pode-se falar em estreita relação da Continental com a cultura
gaúcha, como uma totalidade. A maior vinculação econômica e cultural da
Continental é com Porto Alegre, com o habitus e o comércio local, sobretudo. O
fato de possuir anunciantes advindos da indústria, como a Companhia Ipiranga de
Petróleo, por exemplo, não altera a tendência deste quadro, mesmo porque, neste
caso exemplar, o que a Continental vende, no ar, são serviços. Assim, a Rádio
Continental tem ligação direta com o universo urbano, com o compromisso de
venda no comércio e no conjunto de serviços da cidade. Quanto ao público
ouvinte, sobretudo, o pacto é com a juventude universitária e estudantil da capital.

Na verdade, o projeto radiofônico da Continental comporta, apesar das


limitações de porte e poderio da emissora, diferentes ênfases, que garantem à
emissora ser uma, coesa e, ao mesmo tempo, várias. A saber, a Continental da
música − e, aqui, com três ênfases diferenciadas: música internacional, música
popular brasileira safra universitária e pós-jovem guarda e pós-tropicalismo e, em
terceira ênfase, música popular gaúcha urbana, safra similar aos estilos da
nacional brasileira −, a Continental do radiojornalismo contextualizado e de
contestação, a Continental da produção própria de publicidade e propaganda
customizada, a Continental do humor, na publicidade e no trabalho dos
Discocuecas, a Continental das falas dos DJ’s, a Continental das narrativas-
slogans que narram, circunscrevem e mapeiam a cidade e seus habitantes, em
memória social e formação de identidade urbana importantes. Como, por
exemplo: “Na Porto Alegre do fedor da Borregaard, Continental”, no início dos
anos 1970, ou “Na Porto Alegre da volta do Briza, Continental”, ao final daquela
década É nesta relação com a audiência preferencial, segmentada, que a
Continental se ergue e se estabelece, fazendo história cotidiana, transformando-se
em emissora narradora daquela contemporaneidade histórica, ora de simples
vendagem do novidadeiro, mas, igualmente, de contestação, na cultura e na
política, postada no centro e a partir de Porto Alegre. Postada, inclusive,
206

fisicamente falando, em ponto eqüidistante, entre a praça da Prefeitura Municipal


e o Palácio Piratini. Ali, a Continental será, firmemente, a rádio da contestação
política, não-partidária, mas consciente, de resistência e luta contra o poder militar
pós-1964 e seus representantes civis. E, em parte por isto, sofrerá represálias e
limitações. A Continental, com este posicionamento, dava continuidade a uma
certa tradição de combatividade e enfrentamento do rádio brasileiro, em geral,
com o status quo não raro antidemocrático.

Como é sabido, não somente a censura pós-golpe militar de 1964


importuna a história do rádio nacional. Desde a década de 1930, chegando ao
Estado Novo, até as contingências do entreguerras, por exemplo, são momentos,
entre outros, em que o rádio retrata, repercute e defronta-se com diferentes modos
de autoritarismo, em diversos momentos da história brasileira.

A pesquisadora Doris Fagundes Haussen (1997) bem investiga, em


pormenores, certa corrente dominante do autoritarismo. Autoritarismo em especial
alternância com o populismo que, de resto, atua abrangendo não apenas o Brasil,
mas extensão geopolítica maior, no caso estudado, também, o território argentino.
Meticulosamente, Haussen (1997, p. 141) acompanha, em paralelo, as interações
de Getúlio Vargas com a Rádio Nacional e de Juan Perón com a Rádio Belgrano.
A análise pertinente busca fugir às simplificações e, sem diabolizar os diferentes
estágios de populismos nas duas pátrias, avança. Por fim, a pesquisa aponta o
papel homogeneizador do rádio, a serviço do nacionalismo, concluindo que as
emissoras souberam demonstrar protagonismo para além da instrumentalização
proposta pelos dois líderes políticos, “contribuindo de certa forma para o
desenvolvimento social”.

Aqui, estamos sob o escopo temporal aproximado daquela fronteira


projetada pela análise do radialista Cândido Norberto, ao manifestar-se,
sumariamente, sobre a história do rádio gaúcho. A análise demarca uma
periodização dual, mas convincente, ao apontar dois tipos básicos de
protagonismos históricos para o rádio. Para Cândido, basicamente, existiram dois
tipos vigentes: o rádio eclético e o rádio especializado. A primeira fase, localizada
entre 1945 e 1960, ele denomina fase do “rádio eclético”, porque as emissoras
207

“faziam de tudo, faziam jornalismo, faziam notícia, cobriam o setor esportivo,


faziam música ao vivo com orquestras e conjuntos regionais, faziam novelas”
(ROCKENBACH, apud DILLENBUG, 1990, p. 6). O rádio especializado
comportaria o período subseqüente, com as emissoras buscando programação
diferenciada para públicos dirigidos.

Na realidade, o movimento identificado pela perspicácia de Cândido


Norberto para o rádio gaúcho estava inserido em movimento global, sob comando,
sobretudo, das modificações provocadas pela urbanização e massificação mundial.
A partir de 1960, pois, podemos falar em especialização para o conjunto global
das emissoras AM, quando passam a ser incrementados diferentes modelos
especializados para a programação, tais como talk radio, news/talk, talk and
music, music and news e full-service (HUTCHBY, 1996). A década seguinte
provocará o amadurecimento destes modelos, com a implantação integral ou a
articulação híbrida dos mesmos. A entrada das emissoras FM nos mercados
determinará fragmentação e/ou especialização ainda maior, a partir de ofertas de
programação tais como all news, all sports e all music.

Quanto à implantação, o rádio FM chega ao Brasil a partir de 1970 e, em


Porto Alegre, surge, oficialmente, a partir de 1975, através da Itaí FM. A Rádio
Continental, sobretudo com o modelo mais vigoroso por nós estudado, antecipa-
se, nas falas dos DJ’s e na segmentação da programação, musical e etária, à época
de implantação das emissoras FMs no País.

A implantação do modelo all music de programação, em mercados


internacionais e no Brasil, logo, pela grande quantidade de oferta e devido à
fragmentação, merecerá subdivisões, sob orientações diversificadas, sempre em
busca de novos clientes (anunciantes e ouvintes). MacFarland (1997, p. 72-93),
analisando o mercado norte-americano, indica os principais formatos musicais que
determinam divisões e subdivisões para as programações: “Adult-Contemporary”
(AC), “Contemporary Hit Radio” (CHR), “Country”, “Alternative/Modern
Rock/New Rock”, “Golden Oldies”. A seguir, o Autor ressalta que estas escolhas
dependem e variam, em popularidade, de região para região, com alterações
devido a modismos e outros fatores. No caso norte-americano, por exemplo, a
208

música do Caribe é especial e tem espaço próprio, por exemplo, com a


comunidade de origem latino-hispânica da Flórida. Em termos de Porto Alegre,
destacamos o pioneirismo da Rádio Liberdade, integralmente voltada para música
gauchesca. A Rádio Continental FM, valendo-se do nome-fantasia, trata, na
programação diária, de recuperar o acervo musical anos-70, constituindo-se em
modelo de programação segmentada do tipo “Golden Oldies”, conforme
MacFarland.

É fundamental assinalar, quanto à segmentação, tratar-se tendência de


fenômeno, na prática, universal. Assim, também é a questão referente à ênfase
pela especialização, como no caso da Continental, na oferta musical de
programação, sobretudo para as camadas jovens dos centros urbanos.

O exercício analítico, aqui proposto, buscou estabelecer, ao mesmo tempo,


dados de contexto de realidade em que a Continental atuou e, igualmente, a
hipótese de que a criação e a inventividade, qualidades do protagonismo da
emissora em estudo, tratavam-se de conjunto, de criação a partir de uma tradição,
renovada, ultrapassada e até contraposta. Mas, inquestionavelmente, inovação na
cultura existente à disposição, para cooperação, para o conflito ou para o saque.

No entanto, já empreendida e realizada pela práxis gaúcha através do


tempo, a inovação a partir do nada, do vazio, só é concebível no território de
concepção mítica, o que não é nosso caso. Buscamos, nas peripécias enquanto
problema de tese, os documentos de criação da emissora protagonista dentro do
território do humano historicamente constituído.

Quanto à situacionalidade histórica que flagramos, a Continental localiza-


se no território da cultura e, neste campo, a criação é sempre relacional, em
trabalho sobre os patrimônios, que recupera, invade e manipula o passado, desde o
presente. Na definição do projeto radialístico radiofônico da Continental, é chave
a compreensão de sua natureza cultural.

No caso da Continental, o tempo histórico localizou a emissora dentro do


escopo da indústria cultural, conforme definição conceitual frankfurtiana clássica,
na qual a emissora movimentou-se, ora padronizando e banalizando produções,
209

ora descobrindo brechas para ação humana em comunicar novidades,


singularidades, não libertárias, mas democratizantes dentro do contexto nacional e
local de época. Analisada desde o ponto de vista apocalíptico, não restaria à
emissora muito além do mero sucesso comercial. Mas, do ponto de vista da teoria
da recepção, ou submetida à antropologia dos estudos culturais, a Continental
safa-se pelo protagonismo, seja como acontecimento e realização específica no
radialismo, seja pelas interações culturais propostas pelo pólo que a emissora pôde
erguer em torno de si durante sua existência. A produção cultural é sempre
relacional e, no território da mundialização dos capitais simbólicos, o espaço
ocupado pela Continental oferecia-se como cenário para tensões, disputas e
apropriações entre a cultura internacional, a contribuição contemporânea brasileira
e a tradição local. Neste sentido, a programação musical melhor expressou estas
disputas, com ênfases para o pop rock internacional, mas, igualmente, com
destaque para a música popular brasileira e a inédita abertura, naquele contexto e
tempo, para a música popular urbana gaúcha.

O modelo de programação da Continental, ao que tudo indica, sofrera


desgastes com a passagem do tempo. Afinal, tratava-se de uma década inteira no
ar, a partir de 1971, e estávamos vivendo período de marcantes e velozes
alterações nos hábitos de consumo. Aquilo que valera para a programação geral,
incluía, igualmente, o nível dos conteúdos. Entretanto, o mais importante, ao nível
de desgaste do modelo, correrá com a nova concorrência provocada pela chegada
da FM, a partir de 1975, e com a crise de continuidade provocada, nos anos
subseqüentes, pelas trocas no gerenciamento administrativo da emissora. O
afastamento, paulatino, dos principais gerentes, ocorrerá, notadamente, após estar
configurada a impossibilidade por uma nova opção técnica-tecnológica para a
emissora (conforme detalhamos no capítulo 7 da presente tese). Neste sentido, o
grupo diretivo da Continental, na prática, constatava a impossibilidade de maior
pujança e sucesso comercial futuro, ao não ter como contar com a singular
atualização rumo ao FM.

Ao que tudo indica, a mesma mundialização da cultura (ORTIZ, 1994, P.


26-27) que fornecera cenários, modos de fazer, gêneros, narrativas e temas para a
210

Continental, ao término da década iniciada em 1971, estava a ofertar novo enredo.


Os novos equipamentos de transmissão em FM, as novas e crescentes alternativas
em programações para jovens, sobretudo assentadas na melhor qualidade de som e
nas ofertas de musicalidades, retiravam, ao mesmo tempo, significativas parcelas
de público ouvinte e, também, arregimentava profissionais do quadro da
Continental. Aliados a estes fatores, estavam os mecanismos para formação e
gerenciamento de redes de emissoras que davam conta de nova estratégia da
ocupação do mercado. O mercado publicitário de rádio, rarefeito em verbas
disponíveis, por excelência, tornava mais crescente as disputas, inserindo
concorrência cada vez mais intensa, agora, sobretudo, no mercado segmentado
onde atuava a Continental. Diante destes fatores, definitivamente, a emissora do
“som nosso de cada dia”, passava a ser uma voz no passado, no início da década
de 1980.

6.3 A RÁDIO CONTINENTAL COMO FATO EMPÍRICO PARA A PESQUISA

Estamos no início do ano de 1959, quando, pela primeira vez e de modo


oficial, ouvimos falar em Rádio Continental de Porto Alegre. “Ouvimos falar” é
força de expressão porque, embora a referência aparecesse em documento
público, somente os sócios interessados, alguns parentes destes e as autoridades
responsáveis têm acesso àquela peça, onde se pode ler:

Por êste instrumento particular, Vistor Issler, brasileiro, casado,


industrial, residente e domiciliado na cidade de Pôrto Alegre,
Estado do Rio Grande do Sul, constitue a sociedade por cotas de
responsabilidade limitada, com a finalidade de explorar a
concessão ou permissão que lhe foi outorgada por ato dos
poderes públicos, através da instalação de estações
radiodifusoras nesta cidade de Pôrto Alegre, exploração essa
sempre sujeita e de acôrdo com a legislação específica, visando
sempre os fins educacionais, cívicos e patrióticos, tendo,
paralelamente, como objetivo que lhe proporcionará a
indispensável fonte de receita o comércio de propaganda e
atividades correlatas e o que mais convier. A sociedade terá o
seu fôro e séde na cidade de Pôrto Alegre, Estado do Rio
Grande do Sul, podendo abrir filiais, escritórios, sucursais e
211

agências em tôdo Território nacional, sempre que assim lhe


convier e terá a sua séde à Rua Siqueira Campos, n. 1170.
Tôdos os negócios serão regidos pelas condições, resumidas nas
seguintes cláusulas [...] (sic)

O texto acima localizamos pela ação da pesquisa junto aos arquivos da


Junta Comercial do Rio Grande do Sul.

Seguem-se as demais cláusulas daquele documento oficial, assinado em 11


de maio de 1959, na cidade do Rio de Janeiro.

Aquele “contrato para radiodifusão” estabelecia, ainda, como cláusula


primeira, que a sociedade, ali oficializada, existirá sob a denominação de
Sociedade Rádio Emissora Continental de Porto Alegre Ltda., e que terá como
principal objetivo a instalação de “estações radiodifusoras com finalidades
educacionais, cívicas e patrióticas, bem como a exploração comercial e atividades
correlatas, mediante a obtenção do Governo Federal de concessões ou permissões
[...]”.

O capital social será, inicialmente, de cinco milhões de cruzeiros,


representado por quinhentas cotas no valor de dez mil cruzeiros cada uma. Sete
sócios dividem as cotas, sendo que Ana Bezerra de Mello Berardo Carneiro da
Cunha, “de prendas domésticas (sic), residente à rua Cosme Velho, n. 315,
Distrito Federal”, detém o maior número destas, com duzentas e trinta cotas.
Rubens Berardo Carneiro da Cunha, Carlos Berardo Vieira da Cunha, Murilo
Berardo Vieira da Cunha , todos residentes no Distrito Federal, à época, no Rio de
Janeiro, detêm cinqüenta cotas, cada um. Guy Moraes Masset, também morador
da capital federal, completa o grupo “carioca”, com vinte cotas.

Na verdade, a Continental terá como único dono o empresário e político


gaúcho Victor Issler que aparece como sócio, com cinqüenta cotas, assim como o
filho, Leônidas Issler, advogado e industrial, com igual número de cotas,
designado, já naquele documento, com poderes de diretor-gerente, função que, de
fato, exercerá, a partir da inauguração da emissora.

Ex-integrante do PSD, Victor Issler, à época, já empresário bem-sucedido,


fora convidado por Getúlio Vargas para integrar o PTB, elegendo-se deputado
212

federal. Eleito, atua no Rio de Janeiro onde, por meio de um amigo e compadre,
obtém, através de auxílio do ex-governador Negrão de Lima, a oportunidade legal
para criar a Continental, em Porto Alegre.

À época, a cidade rememora, ainda, a conquista do futebol brasileiro,


campeão na Copa da Suécia. A Rádio Guaíba, em 1958, fizera as transmissões da
Copa do Mundo, com “qualidade de som local”, por méritos do engenheiro
Homero Simon, de Alcides Krebs e Helio Custódio. O narrador Mendes Ribeiro
fizera as narrações locais com suporte técnico da Post Telefonie et Telegrafie de
Suisse, PTT, com sede em Berna. A Rádio Gaúcha também esteve presente,
integrando a rede brasileira coordenada pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro,
com a presença do narrador Guilherme Sibemberg.

Em Porto Alegre, o sucesso das transmissões da Rádio Guaíba acarreta um


inusitado problema político e administrativo. A opinião pública interpela como era
possível, tecnicamente, a Guaíba transmitir futebol da Suécia, e o gaúcho ter
dificuldade para fazer uma ligação telefônica entre Porto Alegre e alguma cidade
vizinha. O impasse leva o governador Leonel Brizola a convocar o engenheiro
Homero Simon para atuar na Companhia Estadual Energia Elétrica, nos serviços
de telefonia estadual (VAMPRÉ, 1979, p. 128).

Naquele período, ocorre a inauguração daquela que nós entendemos como


sendo a primeira emissora gaúcha especializada para público segmentado. Em 18
de janeiro de 1958, com a presença do então presidente da República, é
inaugurada a Rádio da Universidade do Rio Grande do Sul, pioneira no gênero,
voltada para programação cultural, programando música clássica e erudita. A
inauguração ocorre após moroso processo administrativo e político e, devido às
pressões de empresários locais, termina demorando seis anos para ser inaugurada.
A própria definição da programação ocorre sob pressões, conforme Vampré
(1979, p. 129).

Inequivocamente, na nossa opinião, a Rádio da Universidade é a primeira


emissora local para o público segmentado. E este fazer primeiro da Rádio da
Universidade terá importância como modelo, ou contramodelo, paradigmático de
213

programação. Não tanto para a Continental da primeira década, a contar de 1962,


ano da inauguração oficial, no entanto, quando estamos em 1971, início da fase
“quente”, inovadora, da 1120, em Porto Alegre.

Muitas publicações de divulgação na imprensa e, mesmo, alguns trabalhos


acadêmicos, como veremos, apontam o pioneirismo para a Continental. Para a
nossa interpretação, a Continental será inovadora ou terá pioneirismo em algumas
peripécias. Para nossa avaliação, figura como a segunda emissora de Porto Alegre
a optar e fazer programação específica para público segmentado. Esta cronologia
que adotamos não se trata de um detalhe sem importância.

A questão, para nós, não é, tão somente, marcar, na presente tese, a ordem
cronológica do aparecimento das referidas emissoras, firmando, em primeiro
lugar, a Rádio da Universidade e, somente após, a Continental. No detalhe da
cronologia, reside uma ilação que julgamos necessária fazer, como contribuição
desta tese.

Ocorre, e com freqüência praticamente unânime, a referência à


Continental como a pioneira em programação segmentada, na cidade e na região.
Esta afirmação é encontrada na totalidade dos depoimentos do senso comum e,
também, na maior parte dos registros sobre a Continental na produção acadêmica,
como nas dissertações de conclusão de curso de graduação em comunicação social
que consultamos (HEINZELMANN; SCHIMTZ, 1986; PEREIRA, 1991;
ANELE, 1994; ZUKAUSKAS, 1998).

Outra análise transparece, ainda, no texto “Fatiando o público: o rádio na


vanguarda da segmentação da audiência”, de Meditisch (2002, p. 55-60), em que
o autor indica qualidade diferenciada da segmentação da Continental.

Já a indicação da Rádio da Universidade, ocupando o primeiro lugar na


cronologia, encontra respaldo na interpretação de Eloy Terra (THOMÉ, 2001, p.
15-16), quando o Autor constata que

Com a Rádio da Universidade do Rio Grande do Sul teve início


a era da segmentação. As elites culturais ganharam uma opção
de sintonia, reconquistando um espaço no dial. E o rádio
ampliou seu espectro de audiência, afirmando-se como o meio
214

mais democrático de comunicação, conciliando o progresso e a


cultura.

A nossa contribuição, entretanto, recai sobre uma ilação, advinda desta


cronologia. Ocorre que, ao constatarmos a Rádio da Universidade como pioneira,
na segmentação de audiência, podemos fazer trabalhar a nossa hipótese da
Continental como emissora de criação na tradição. Ou seja, a invenção, a
inovação, a criação da Continental ocorrem como produção e produto da cultura,
isto é, em processo relacional de contigüidade, comparação e ultrapassagem de
modelos vigentes. No caso específico da relação com a Rádio da Universidade,
trata-se de uma coexistência para ultrapassagem daquele modelo educativo e
musical da primeira emissora de segmentação de audiência para universitários e
jovens.

A Rádio da Universidade, vale lembrar, terá como público eleito a


comunidade universitária, alunos, professores e funcionários. Terá, ainda, forte
ênfase na programação musical, ainda que específica, e o compromisso com a
educação e a cultura. Será o conjunto cifrado desta programação segmentada,
articulada sobre locução sóbria e tradicional, musicalidade com apresentação
exclusiva dos clássicos eruditos, que a novíssima programação da Continental
buscará ultrapassar, ou, melhor dizendo, evitar, peremptoriamente.

Quando a Continental, após praticamente uma década de programação


própria anódina, busca a reformulação e novo posicionamento como emissora
para jovem, os idealizadores têm como referência uma certa tradição consolidada.
Dentro deste verdadeiro “continente radiofônico”, porto-alegrense e gaúcho,
localiza-se a Rádio da Universidade que será a antítese paradigmática de emissora
para jovens, para a Continental, conforme a nossa interpretação. Neste sentido, a
Rádio da Universidade fornece excelente indicativo para o segmento de público
ideal: jovens universitários. Entretanto, não dá a fórmula da programação, nem
gênero de programas, nem formatos. Pelo contrário, oferta claros indícios do
quanto é necessário, cabível e desejável outro novo modelo de emissora para
Porto Alegre.
215

A criação da Continental, afirmamos com ênfase, ocorre, então, por


oposição a este modelo histórico existente de programação segmentada para
público jovem em Porto Alegre. A criação por invenção da Continental ocorre,
igualmente, por oposição a outros modelos radiofônicos vigentes à época e
empreenderá, na programação diária, o modelo paradigmático de antítese à Rádio
Guaíba, por exemplo, na busca de programação sem a sobriedade absoluta da
outra emissora, tão mais potente quanto sisuda. Diferentemente da grande
emissora integrante da Companhia Jornalística Caldas Jr, a Continental não
buscará protagonismo jornalístico do tipo “espelho do mundo”, orientado para a
busca da imparcialidade como valor ideal e será, como vimos, emissora
posicionada na oposição política, tanto o quanto possível sob a vigência do AI-5.
A Continental será, ainda, a anti-Rádio Caiçara, “onde a música não pára”,
porque, ao contrário desta, na Continental, não roda música “marca diabo”, nem
“jovem guarda”, marcando posições no mercado publicitário e no imaginário do
público ouvinte.

Dizer isto é dizer mais do que afirmar, tão somente, que a Continental
inspirou-se, em alguns aspectos, como certa musicalidade internacional e uso de
vinhetas, conforme modelo original da Rádio Mundial, do Rio de Janeiro, de lá,
tão somente, retirando subsídios para elaborar a novíssima programação, como é
afirmado em alguns autores, que repetem, aliás, os depoimentos dos próprios
criadores do então novo modelo da Continental, a partir de 1971. O espelhamento
referido é, em parte, verdadeiro, mas não apenas este movimento pôde ser
observado, conforme a nossa sugestão.

Para nossa tese, o fenômeno de criação da programação da Continental e o


protagonismo da sua história, através, sobretudo, do inusitado e inovador aspecto
da produção de narrativas, através de diferentes registros discursivos, devem-se,
ao mesmo tempo, a uma criação concreta por contigüidade e espelhamento (no
caso, específico, da Rádio Mundial e, ainda, certos aspectos da Guaíba) e por
oposição e antagonismos (nos casos integrais da Rádio da Universidade e
Caiçara, bem como aspectos da Rádio Guaíba), como buscamos apontar.
216

A programação da Continental, portanto, é criação original e complexa de


uma nova modalidade que se articula ora pela retomada da mais bem realizada
tradição radiofônica, para alteração ou ultrapassagem, ora, fortemente, ordena-se
pelo estabelecimento de conflitos e confrontos, dali retirando a síntese alternativa
para aquele momento.

A Rádio Continental marca seu protagonismo pela inovação e pela


criatividade, dentro da tradição e da superação ou rejeição desta, seja de modelos
bem-construídos ou não, segundo critérios de seus mentores gestores. Estas
características, em tese, ocorrem dentro daquilo que denominamos “continente
radiofônico”, continente marcado pela abundância de ofertas, radiofônicas e
culturais. A complexidade e a diversidade deste “continente radiofônico”
acolhem, histórica e socialmente, a inovação e a tradição que atuam como par
dialético articulado na cultura, simbólica e concretamente realizada.

Continente, vale lembrar, é a antiga designação do território geográfico,


político e cultural ocupado, hoje, pelo Estado do Rio Grande do Sul. O
Continente, também, é a designação do primeiro volume, que integra a mais
importante obra escrita por Érico Veríssimo, dentro do painel épico-romanesco O
Tempo e o Vento (2002). É esta associação pela cultura que enseja nossa
denominação de “continente radiofônico” para o espaço social, histórico e
simbólico onde se ergue a radiodifusão gaúcha e, por extensão, o próprio nome
Continental.

É pelo viés de uma construção da cultura, historicamente, pela relação


visceral entre a parte e o todo, entre a ilha e o continente, que podemos, talvez,
melhor “escutar” e “ouvir” a experiência Continental. É isto, talvez, que fez da
Continental uma rádio, ao mesmo tempo, tão porto-alegrense, quanto
cosmopolita. Emissora que herda, recriando, a tradição cultural e simbólica de
convergências do regional para o mais local, mesclando-as com as influências
internacionais mais recentes, então, igualmente, mais midiáticas e midiatizadas. É
esta contingência histórica que fez a Continental ser, ao mesmo tempo, a voz “da
Porto Alegre de Mário Quintana”, ao mesmo tempo em que “de Marcuse”,
segundo referia em diferentes slogans dentro da própria programação.
217

A Continental, ainda, inscreve-se como uma emissora de rádio inserida no


bojo da indústria cultural, em meio ao processo de mundialização da cultura,
enunciadora de fenômenos como o hibridismo cultural. Entretanto, a Continental,
vivencia estes fenômenos de tal forma que, ousamos afirmar, somente, poderia
acontecer em Porto Alegre, dentro daquele “continente radiofônico” específico.
Estas especificidades, verificamos expressas nas narrativas da Continental.

6.4 ESTADO DA ARTE SOBRE O RÁDIO: UMA ANGULAÇÃO

Pensando em contribuir, ainda que parcialmente e de modo diferenciado


com o atual estágio dos estudos sobre o radialismo, optamos, aqui, por apresentar
uma abordagem do rádio, sobretudo, a partir de angulação atenta para a produção
regional.

Sem negligenciar os estudos teóricos e pesquisas realizadas em outros


lugares, com os quais, como demonstramos, estudamos e refletimos para a
realização da presente tese, aqui, julgamos ter validade a apresentação de ênfases
e tendências gerais da produção regional, sobretudo, aquelas elencadas em diálogo
para o empreendimento da presente pesquisa.

Essa estratégia de apresentação do estado da arte sobre o rádio tendo por


angulação a produção regional, ainda, busca dialogar com a hipótese de solidificar
a idéia de continente radiofônico cultural, dotado de condições particulares,
totalizadoras que respaldam o fenômeno Continental como produto e produção
relacional local, ainda que, como constatamos, matizado, invadido e
problematizado por aspectos da cultura nacional e mundial.

Vale dizer, embora o esforço do trabalho estivesse em buscar obras que


pontificaram na interlocução com a pesquisa, não houve a pretensão nem a
possibilidade de o trabalho exaurir o conjunto todo da produção editorial e
acadêmica destinada ao rádio, ainda que localizada regionalmente e, sobretudo, a
circunstância da angulação não excluiu outras, identificando pesquisas e
218

contribuições de áreas limítrofes, como as advindas da história da comunicação,


elencadas pelo viés da contribuição aos estudos sobre o radialismo.

Vejamos, a seguir, algumas ênfases e tendências gerais desta produção


sobre rádio e radiojornalismo, sobretudo, aquela que já encontrou publicação, ou,
no caso de alguns trabalhos acadêmicos, já mereceu publicização.

Antes disso, interagindo com a opinião ponderada expressa por uma das
mais sólidas pesquisas deste continente radiofônico, acompanhamos Meditsch
(2001, p. 45), quando o pesquisador gaúcho, com atuação junto à Universidade
Federal de Santa Catarina, afirma sobre o estado da arte.

A bibliografia existente sobre o rádio, além de reduzida em


relação à disponível sobre os outros meios de comunicação,
encontra-se dispersa e com acesso dificultado por uma série de
fatores. A posição subalterna a que o rádio foi relegado fez com
que o veículo fosse tratado, na maior parte das vezes, como
capítulo de obras de interesse mais geral, o que raramente é
citado na catalogação dos livros. Os livros específicos, por sua
vez, dificilmente ultrapassam a primeira edição [...]. E as
bibliotecas [...] costumam ter o rádio entre as suas últimas
prioridades em termos de aquisição, o que torna essas edições
sazonais irrecuperáveis. Desta forma, qualquer levantamento
sobre o que já se publicou sobre o rádio será forçosamente
incompleto.

Duas assertivas parecem verdadeiras e, aparentemente, contraditórias


quanto ao chamado estado das artes dos estudos sobre o rádio no Brasil. De um
lado, pode-se dizer que são, ainda, difusos, incongruentes, inconclusivos,
insuficientes na criticidade, não sistemáticos os estudos sobre o rádio, como bem-
diagnostica Meditsch. Por outro lado, tem sido relevante, crescente e significativo
os esforços, as contribuições, especialmente aquelas através de publicações
oportunizadas pela produção acadêmica brasileira recente, para o incremento da
produção da pesquisa sobre o radialismo.

Para nosso trabalho, foram importantes os estudos em pesquisas com


predominância de abordagem histórica, materializados nas contribuições de teses
de doutorado, como em Haussen (1997) e Klöckner (2003), e pelos estudos
teóricos constitutivos em Meditsch (2001). Ainda, referimos a pesquisa
219

empreendida por Cunha (2002), quando o rádio foi estudado com recursos
advindos da teoria da literatura e da recepção.

Para a realização da presente tese, foram importantes os estudos efetivados


sobre o método histórico-descritivo empreendido por Haussen (1997). Também,
estudamos sobre teoria do radiojornalismo e teoria da cognição e do rádio na
contemporaneidade na tese de doutorado de Meditsch (2001). Igualmente, foi
relevante o trabalho de Grisa (2003), em que o pesquisador apresenta, como
resultado de dissertação de mestrado, acurado estudo sobre a audiência popular
através de narrativas radiofônicas da Farroupilha AM, de Porto Alegre. A Rádio
Farroupilha é, novamente, objeto na dissertação de mestrado, em Boff (1998),
quando a pesquisadora realiza estudo etnográfico sobre os afetos em grupos
populares, através do programa “Adeus à solidão”. O rádio e suas inteirações com
as classes populares foram focalizados, ainda, por dissertação de mestrado em
Cogo (1998), quando a pesquisadora analisa as inter-relações entre o popular e o
massivo na comunicação brasileira, problematizando, em especial, as abordagens
e conceitos para a comunicação alternativa.

Advindas de outro patamar da produção acadêmica, com oferecimento de


informações, dados factuais e algum nível de reflexão sobre o objeto, localizamos
as monografias de conclusão de curso dedicadas à Continental. Pesquisamos, as
saber, Heinzelmenn e Schimtz (1986), Hemerilda Holmes Pereira (1991), Rejane
Anele (1994), Ivan Zukauskas (1998), Alexandre Schossler (2000) e Emanuel
Ferreira Neves (2001).

Constatamos, sobretudo a partir da década de 1990, que se tornam


crescentes as iniciativas para contribuições em pesquisas sobre o rádio
empreendidas pelos programas de graduação e, sobretudo, de pós-graduação em
Comunicação Social nas universidades brasileiras. Neste sentido, foi importante o
elo de amarração e a visibilidade possibilitada pelo GT Rádio da Intercom, criado
em 1991, e, posteriormente, redirecionado para Mídia Sonora, mais recentemente.
Ali, ainda que em fórum de especialistas, a produção e a reflexividade sobre o
rádio esteve possibilitada em mostragem com certa abrangência nacional.
220

Assim, reunindo grupo de autores de diferentes formações, entre os quais


está este Autor, surge, em 1998, o resultado publicado de uma investigação
coletiva, projetada pelo encontro da Intercom do ano anterior. Trata-se de Rádio e
Pânico, a Guerra dos Mundos, 60 Anos Depois, livro organizado por Meditsch,
obra que abrigou diferentes linhas de pesquisa e análise, sobretudo, na maioria,
direcionadas para uma abordagem histórica sobre o fenômeno radiofônico
protagonizado por Orson Welles e Mercury Theater, em 1938, através da
Columbia Broadcasting System.

O GT Rádio, novamente, voltaria a publicar, desta vez sob a organização


de Del Bianco e Moreira (1999), também elas coordenadoras de específico Grupo
de Trabalho da Intercom. Painéis de obras coletivas, aquelas produções são
mostragens de caráter plural de uma exibição nacional de diferentes pesquisas em
rádio.

Ao ter início o século XXI, então, o denominado grupo de Mídia Sonora


da Intercom, ao que tudo indica, parece comprovar: a) o crescimento significativo
do nível quantitativo da pesquisa sobre rádio no Brasil; b) a importância da
contribuição acadêmica, em geral, e do GT da Intercom, em particular, como
pólos indutores de excelência e de divulgação nacional das pesquisas regionais; c)
a possibilidade efetiva do GT desenhar o estímulo setorial e editorial para o
fomento da pesquisa em rádio; d) o aparecimento de elenco geracional de
pesquisadores sobre rádio, coesos pela oferta institucional circunstancial, apesar
das diferentes formações, aptidões, recursos, limitações, vínculos e origens.

Conforme a nossa hipótese de trabalho, localizamos, na constância, na


diversidade e na quantidade da representação porto-alegrense e gaúcha nas
reuniões e publicações da Intercom, aspecto relevante.

Talvez, não seja excesso atribuir, igualmente, qualidade a esta produção no


conjunto. Talvez, possamos avançar e referir, até com certa distinção, a existência,
pelo nexo geográfico apresentado, do aqui denominado “grupo gaúcho de
pesquisadores sobre o rádio”. A atuação desse grupo, mesmo diante de limitações
da prática da pesquisa, configura outra exemplaridade daquilo que denominamos
221

de continente sonoro e radiofônico, entre nós, enquanto dimensão e construção


histórica, social e cultural identitária.

Integram este grupo, a partir de 1997, os porto-alegrenses, ou gaúchos, ou


vinculados à pesquisa sobre o rádio gaúcho, com participação e publicação pelo
GT Rádio e, posteriormente, Mídia Sonora, os seguintes pesquisadores: Adriana
Ruschel Duval, César Augusto Azevedo dos Santos, Cida Golin, Deisi Josiane
Martins, Denise Maria Cogo, Dóris Fagundes Haussen, Eduardo Meditsch,
Luciano Klockner, Luiz Artur Ferraretto, Mágda Cunha, Maria Alice Bragança,
Maria da Graça Kreisner, Maria Luiza Cardinale Baptista, Sandra de Deus, Valci
Regina Zuculoto, Valério Brittos e Sergio Endler.

O período observado, pela presente pesquisa, indica o início do ciclo de


publicações sistemáticas com a obra organizada por Meditsch (1998) e concluída
por Cunha e Haussen (2003), ponto final demarcado. Podemos relacionar, ainda,
outra obra com resultado da produção coletiva, com a participação de alguns
destes integrantes do “grupo gaúcho”, junto com outros pesquisadores da área e da
Intercom, na publicação alusiva aos “80 anos do rádio no Brasil”, na Revista
Verso & Reverso, edição organizada por Brittos e Endler (2002).

As pesquisadoras Raquel Grabauska e Mirna Spritzer, esta última também


professora junto ao Departamento de Arte Dramática da UFRGS, embora sem
participação na Intercom, tem dedicado especial atenção ao radioteatro, em Porto
Alegre, com a criação de núcleo de produção e publicação, como em Bem
Lembrado: Histórias do Radioteatro em Porto Alegre (2002).

Uma das nossas hipóteses na pesquisa incide sobre a relação entre a cidade
enquanto macro habitat cultural e midiático e a qualidade da produção radialística
e radiofônica erguida naquele universo, onde figura, em destaque, a experiência
irrepetível da Continental. Entretanto, esta experiência, queremos ressaltar,
ladeada e enriquecida por outras, também relevantes e significativas, seja de
cunho literário, musical, teatral e técnico, de modo a oferecer lastro, insumo e
dados concretos e simbólicos, no contexto, para interação com a Continental,
222

dessa forma, visitada e reconhecida, sob esta escuta, como sujeito real e simbólico
dentro do continente, sonoro e radiofônico, da cultura porto-alegrense e gaúcha.

Igualmente, registramos, a experiência Continental lastreada pela


retaguarda histórica, através de conjunto de experiências culturais do passado, em
geral, e radiofônicas, em específico, de relevância identificável enquanto
construções herdadas, inclusive, como estrato para superação e crítica pela práxis
do fazer radiofônico à época.

Somente uma cidade de grande interação radiofônica, vale dizer,


historicamente construída, poderia possibilitar a vanguarda materializada na
experiência singular da Continental.

O fenômeno midiático Continental AM configura, assim, uma emissora em


meio ao continente sonoro e radiofônico, cuja produção de pesquisa e de interesse
científico buscam expressar e dar forma.

A Superquente, Continental 1120 não foi uma ilha isolada no mundo.


Diferentemente, a propalada qualidade da emissora, o vanguardismo na
linguagem, o arrojo na programação musical nasceram e estiveram inseridos numa
moderna tradição do continente radiofônico, histórico e de saber fazer radiofônico
localizável.

O continente radiofônico, ao mesmo tempo em que gera espaço e dados de


expressão para a Continental, abriga a visibilidade, igualmente, de outras
produções e configurações históricas midiáticas (acadêmicas e não-acadêmicas),
seja na retaguarda, seja no período pós-existência real da emissora em estudo.

Também, por isso, a nossa tomada de decisão, aqui, pelo presente


estabelecimento de “estado das artes”, fazendo-o recair circunscrito ao exame das
publicações gaúchas, em geral, e das porto-alegrenses, em particular.

Esta decisão, por certo, envolveu riscos e, certamente, circunscreveu o


processo de pesquisa. Se a circunscrição, por um lado, era mesmo necessária, já a
ameaça pela decisão, a mais severa, indicava o perigo de uma recaída num
provincianismo de campo, desde logo refutada e indesejável.
223

Em nosso trabalho, o fenômeno local é, desde sempre, permeado pelo


estrangeiro, em diálogo, ora numa espécie de devoração antropofágica, ora
inserido no jogo de adequação ou mesmo de mera assimilação ou submissão,
mas, sobretudo, espaço de embates, conflitos, confrontos e resoluções
interacionadas. Entre o conformismo e a resistência existentes, na prática, dois
pólos decorrentes da ciência social, buscamos fixar atenção no caráter híbrido,
porém situado, dos fenômenos midiáticos ali vigentes.

No texto “Um romancista apresenta sua terra”, o escritor Erico Veríssimo


(1964, p. 42) afirmava “somos uma fronteira”, referindo-se à realidade cultural e
geopolítica de Porto Alegre, nomeada, ainda, como “a capital mais classe média
do Brasil”, pelo Autor. As vozes da Continental fariam ressoar essa Porto Alegre,
ao mesmo tempo, configurada uma capital-fronteira e, também, cidade fortemente
marcada pela classe média.

Assim, percebem-se sinais deste efeito do local sendo visitado pelo


internacional, atuando dentro do espaço do continente sonoro porto-alegrense, já
em 1878. Naquela data, segundo escreve Damasceno (1956, p. 181), Porto Alegre
tem a primazia nacional de receber e ouvir o fonógrafo de Edson, em audiência
pública, no Hotel Lagacheum.

Outro aspecto do fenômeno local-global aparece exemplificado em


publicação comercializada, em 1948-1949, sob título No Mundo da Música, obra
destinada a ser “um guia através de toda a vida musical”, editado pela Companhia
Brasileira de Eletricidade, com uma assinatura, a seguir, de Siemens-Schuckert
S.A., Sessão Siemens Rádio, Porto Alegre. No miolo da publicação, aparece
estampada toda a linha de produtos Siemens, vendidos em loja de Porto Alegre.
Rádios, toca-discos, diferentes modelos de eletrolas estão em oferta na publicação
em meio a pequenas biografias de Antonio Carlos Gomes, Amadeus Mozart e
Georg Haendel, entre outros.

Num salto, a tensão entre o local e o estrangeiro reaparece, conforme nossa


pesquisa, de outra forma, por exemplo, em obra mais recente, destinada a causos e
atitudes do rock gaúcho, de Alisson Ávila, Cristiano Bastos e Eduardo Muller. O
224

livro, denominado, significativamente, Gauleses Irredutíveis (2001), realiza


escuta onde MPB, rock internacional, nacional e gaúcho rodam nos depoimentos,
microistórias e memórias sentimentais dos músicos e radialistas locais, obra que,
não sendo especializada, visita e dialoga, na tradição cultural da cidade, com a
experiência Continental.

Não somente os fenômenos sonoros e musicais locais são, desde tempos,


historicizados, narrados, documentados, apresentados – com especial predileção −
por autores gaúchos, em editoras e publicações porto-alegrenses, desde a Globo,
no passado, até a Sagra ou L&PM, hoje. Uma frondosa vertente de estudos
historiográficos encontra lugar na produção de inúmeros autores, historiadores
profissionais, como Décio Freitas, Luiz Roberto Lopez, Sandra Jatahy Pesavento,
entre outros, escrevendo sobre a história internacional, nacional, regional e porto-
alegrense, desde um ponto de vista local.

A ênfase historicista não é privilégio do historiador profissional, nem


tampouco do fenômeno histórico por excelência ou da história canonizada. Assim,
gaúchos, sobretudo jornalistas, pesquisam e escrevem sobre a história da
Califórnia da Canção Nativa, sobre a história do clássico Gre-Nal, sobre o Festival
de Cinema de Gramado, sobre a história das artes plásticas gaúchas, sobre a
Revolução Farroupilha, sobre as ruas da cidade, todos estes fenômenos tendo
mais, ou menos, ressonâncias midiáticas, radiofônicas e porto-alegrenses. É neste
contexto que vamos localizar os interesses específicos, também, pela história e
pela memória da mídia e do rádio. Os sucessos editoriais de Carlos Urbim e
Eduardo Bueno inscrevem, definitivamente, os jornalistas no território de autores
aceitos pelo púbico, na prática, como narradores da história.

A produção de Walter Galvani sobre a história dos jornais da Empresa


Jornalística Caldas Jr. (1994, 1996) entrega dois painéis importantes, em visão
própria do Autor, da hegemonia e a perda desta, por aquele que entendemos como
o “segundo império” da mídia gaúcha. Para nossa pesquisa, foram importantes,
em especial, as contribuições de Galvani para entendimento do protagonismo
histórico da Rádio Guaíba, emissora gaúcha hegemônica, nas décadas de 1960 e
70.
225

Já a obra de Jefferson Barros, sobre o jornal Última Hora (1999),


defendeu a idéia de que o desaparecimento precoce daquele diário se deveu,
sobretudo, ao fato de este estar à vanguarda da sociedade conservadora que, em
termos, o devorou. Barros estabelecia explicação para o ciclo de existência
daquele jornal, identificando descompasso radical entre a vanguarda da mídia
impressa, do Última Hora, popular e democrática, e a sociedade gaúcha,
retrógrada política socialmente, à época. Nossa análise sobre a Continental
acompanha, em termos, a constatação de Barros para o descompasso entre meio
de comunicação e status quo vigente. Mas a diferença constatada por nós, no caso
da Continental, reside no fato de aquela emissora ter-se distinguido, justamente,
pela relação com seu público, segmentado e fiel. A relação rádio-audiência
assegurou, conforme nossa interpretação, a relação de grande identidade e de
fidelização, possibilitando à emissora ciclo vital maior, em termos, daquele obtido
pelo jornal (15 de fevereiro de 1960 a 25 de abril de 1964), apesar de não contar
com apoio nem político, nem econômico, nem simbólico por parte da elite
dirigente gaúcha, então. Hohlfeldt e Buckup (2002), igualmente, realizam trabalho
importante sobre a Última Hora, no qual verificamos, ao mesmo tempo, a
vitalidade do jornal na vida da cidade, então, e as limitações de certa versão do
populismo nacionalismo nas páginas de jornal, como sublinham os autores.

Tuio Becker, apresentando uma breve história do cinema gaúcho, em


registro jornalístico e informativo (1986), ensejaria uma possível aproximação,
através do nosso trabalho de crítica relacional, posicionando o fenômeno
Continental com outros, de igual porte e importância cultural midiática, como o
surgimento do Festival de Cinema de Gramado, cuja primeira mostra ocorre um
ano após ter início a fase mais criativa da Continental.

Igualmente, na área de história da comunicação, estão as produções de


Daniel Herz e Francisco Rudiger. Este último Autor, além das pesquisas sobre
epistemologia e teoria da comunicação, aparece com obra específica denominada
Paradigmas do Estudo da História (1991). Igualmente, Rudiger produz outra
obra onde, resumidamente, apresenta uma história da imprensa gaúcha, do
nascimento à atualidade (1993). Já Herz, em 1987, apresenta A História Secreta
226

da Rede Globo, obra de combate. A leitura de Herz sublinhou nossa constatação


de ousadia e agressividade da Rede Globo, ao expandir-se como negócio de
expressão nacional, de interesses estratégicos e políticos amplos, expressos,
inclusive, na aquisição da pequena rádio criada por Victor Issler, em 1962, no
extremo sul do País.

Especificamente sobre o rádio, os estudos históricos, sob diferentes


orientações, métodos e formatos predominam no conjunto da produção, seja no
campo acadêmico, seja fora deste. Nesse sentido, de modo pioneiro, em pesquisa
sobre o rádio gaúcho, inscreve-se o livro de Vampré (1979), abordado em nosso
trabalho, apesar de fazer apenas registro da criação da Continental, mas
reconstituindo o contexto radiofônico com dados relevantes. No texto, em
anotações meticulosas, o Autor indica como o rádio transforma-se, de mídia
prioritária à sociedade, para meio de segunda ordem, em detrimento do
aparecimento da televisão. Igualmente, são reconstituições históricas as obras
coletivas organizadas por Neuberger (1997) e Thomé (2001), de onde destacamos
o texto de Terra (ano, p. 9-16), “O rádio como sociedade cultural”, importante por
fazer pensarmos a Continental, em confronto com programações de outras
emissoras, à época. Já, especificamente, com apontamentos sobre o rádio em
Porto Alegre, encontramos Copstein, em obra inteira sobre a capital gaúcha,
organizada por Bissón (1993). Copstein é importante por demonstrar-nos as
alterações de linguagem no rádio porto-alegrense e os impactos provocados por
empresas de cultura norte-americana na publicidade local.

Já em âmbito acadêmico, ainda centrado no rádio porto-alegrense, o


pioneirismo está no trabalho de Dillemburg (1990) que registrou, após pesquisa
bibliográfica e entrevistas, o ciclo denominado os anos dourados do rádio, em
trabalho que teve a participação das jornalistas Ediane Porto Moro e Nádia Bezzi,
à época, estudantes de jornalismo na Unisinos. Ferraretto (2002), em texto
resultante de dissertação de mestrado, dá continuidade ao ciclo sobre o rádio
gaúcho, aprofundando questões a partir de pressupostos teóricos amparados na
economia política da comunicação, em meticulosa pesquisa sobre as principais
emissoras nas décadas de 1920 a 1940, inclusive.
227

Núcleo de estudos, ainda de cunho histórico, mas de outra tipologia e


registro, aparece através de três gêneros aproximados, mas diferentes entre si, a
saber: a autobiografia, a obra de relatos ou depoimentos e a biografia, geralmente
de personagem Olimpiano. Pierre Bourdieu, entre outros, faz críticas severas a
este tipo de obra, por entendê-las demasiadamente artificiais, articuladas por mero
efeito da retórica, desconhecedoras da complexidade da história e do caráter
fragmentário do real. Entretanto, entre nós, onde a informação factual, a memória
social e o conhecimento sobre os meios de comunicação ainda se encontram em
nível de precariedade, mesmo a obra de menor sistematização ou de não-elevada
densidade crítica, necessita acolhimento para, então, ser submetida à massa crítica
especializada. E a academia já trata de dar requinte à biografia, como na pesquisa
para dissertação de mestrado, realizada por Santos (2000), sobre Landell de
Moura. O padre inventor gaúcho foi biografado, ainda, por Cauduro (1977) e
Fornari (1960).

No gênero biografia, O Fenômeno Sergio Zambiasi é obra de Mello


(1987), a partir de monografia de conclusão de curso de Jornalismo. Já a obra
Maurício apresenta a biografia do criador da RBS, em livro escrito por Scliar
(1991). Elenco de relatos sobre diversas personalidades do rádio gaúcho surge
com História & Estórias, obra em dois volumes, em 1992.

A produção de autobiografias e memórias surge com Wagner (1986) e


Porto (1995). Entretanto, em Gomes (1982), demarcamos início de ciclo com
depoimentos autobiográficos que dariam informes significativos, tanto para
história do rádio quanto para a nossa pesquisa, elencando fatos sobre Rádio
Guaíba, Farroupilha e Gaúcha, em período que comporta, a saber, a quase
falência da primeira emissora, a aquisição da segunda pela terceira, passando esta
a integrar o grupo RBS, em movimentação histórica onde, não somente o Autor
migra da Companhia Jornalística Caldas Jr. rumo à RBS, mas o próprio processo
de hegemonia da comunicação gaúcha assim o faz. Em sucessiva obra, Gomes
(1995) dará versão pessoal para fatos principais vividos e, inclusive, sobre
rumoroso processo por homicídio que leva o Autor a cumprir pena.
228

Memorialismo irreverente e de extensão de época abrangente realiza


Haveline (1999), ao narrar como criou o personagem Antenor Modula,
pseudônimo para comentários sobre o rádio, escritos para o jornal Última Hora,
durante a década de 1960, quando rivaliza com o colunista Flávio Alcaraz Gomes,
que interpreta “Um ouvinte desconhecido”, nas páginas da, então, poderosa Folha
da Tarde. Haveline já criara o colunista Zé Antena, para o Jornal do Dia, órgão
da imprensa católica.

Certo memorialismo contempla não apenas trajetórias de indivíduos. É o


caso, por exemplo, da obra que recupera, em depoimentos, a existência do
programa Sala de Redação, da Radio Gaúcha, ainda hoje no ar, e surgido no
mesmo ano de lançamento da programação inovadora da Continental, em 1971. O
texto foi coligido por Coiro e Grabauska (1998). O clima resgatado do programa
revela certo humor, despojamento e vivacidade que lembram, em parte, a
programação falada da Continental quando no ar.

Dentro do elenco de depoimentos, Mauro Borba, declarado ex-ouvinte


apaixonado da Continental e, posteriormente, radialista participante de emissoras
jovens “herdeiras” da Continental, entrega duas obras memorialísticas. Nos livros,
Borba (1996, 2001) narra peripécias e termina por oferecer subsídios para aquilo
que denominamos “linha sucessória pela verticalidade”, a partir das descrições do
Autor para criação e desenvolvimento de programações, em seqüência no tempo,
da Rádio Bandeirantes FM, Rádio Ipanema FM e Rádio Pop Rock FM (ex-
Felusp FM), todas estas no erguimento de rotas próprias, mas sempre em algum
nível de diálogo com a matriz Continental AM.

O gênero memorialístico, ainda, obteve especial ressonância através de


obra específica de entrevistas. O destaque ficou com o trabalho do jornalista José
Antônio Pinheiro Machado que entrevista Breno Caldas (1987). Na obra, o antigo
proprietário, do até então maior império jornalístico gaúcho, dá própria versão à
derrocada do grupo Caldas Jr., representante da burguesia agrária exportadora,
que era derrubada, ao término da década de 1970, pelo novo grupo hegemônico,
representado pelo capital urbano-industrial e financeiro, que entronava, a partir
229

dali, a RBS, nova voz vitoriosa, para aquele momento, como a representante e a
articuladora do novo grupo no poder dentro do espaço público e mídiático.

Para nosso trabalho, igualmente, atribuímos relevância ao conjunto de


entrevistas realizadas para o “Projeto Vox”. A prática assegurou o espaço para a
reflexividade sobre o entrevistar e o escutar, fossem os sujeitos isolados, fossem
os sujeitos inside mídia. Materialmente, restaram documentados os depoimentos
nas três edições consecutivas, Caderno Vox 1, 2 e 3, sob nossa organização. O
primeiro volume com entrevista de Sergio Jockyman por Maria Carolina
Fillmann; o segundo apresenta Mário Mazeron, entrevistado por Rosalete Raquel
Ferreira Guimarães; e o terceiro entrevista Ruy Carlos Ostermann, por Ângela
Marx (1999).

O continente radiofônico porto-alegrense soube comportar, igualmente, a


produção de manuais técnicos sobre rádio, como os escritos por Luciano Klockner
(1997), para a Rádio Gaúcha, e por Elisa Kopplin com Luiz Artur Ferraretto
(1992).

A Rádio Guaíba, igualmente, produziu, pioneiramente, o Manual de


Redação. Já a obra O Rádio em Ondas Curtas é raro manual introdutório sobre
o tema, escrito por Célio Romais (1994), originalmente, apresentado como
monografia de conclusão de curso em Jornalismo. A publicação dos trabalhos de
Mello (1987) e Romais (1994) revela interesse, ainda incipiente, de
aproveitamento por editoras de monografias de acadêmicos em jornalismo.

Particularmente importante é o aparecimento da Continental, com


destaque, tematizada na publicação especial do Sindicato dos Jornalistas, através
da primeira edição de Cadernos de Jornalismo 1, ao término da década de 1970.
No expediente, aparecem como colaboradores daquela edição histórica, entre
outros, Adroaldo Corrêa, Cíntia Nahra Leal, Eduardo Meditsch e Wladimyr
Ungaretti, todos jornalistas da própria Continental e, portanto, tendo acesso a
dados importantes sobre a emissora, podendo informar, na entrevista, desde a
constituição do quadro de funcionários colaboradores, até dificuldades das rotinas
produtivas e os duros embates com a censura política.
230

A publicação do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Porto Alegre é


importante, ainda, como painel histórico, a dar prova da qualidade, tanto dos
quadros técnicos do rádio gaúcho, à época, como dos quadros diretivos sindicais,
então. O editor da publicação é Antonio Britto Filho, futuro governador do estado
pelo PMDB. O planejamento da edição é assinado por Antonio Hohlfeldt, atual
vice-governador, escritor e professor-doutor junto à PUCRS. Respondia, então,
pela redação José Roberto Garcez, presidente da Fundação Rádio e Televisão
Educativa, no governo Olívio Dutra e, ainda, eram redatores Sergio Caparelli,
Carlos Urbim, Carlos Dorneles e Daniel Hertz.

A publicação marca, entre outros fenômenos, o exato momento em que a


contribuição da academia gaúcha passa a ser fator decisivo para ocupação de
cargos e postos, decisivo para o protagonismo de novas lideranças no rádio, em
particular, e no jornalismo gaúcho, em geral. A Continental, neste contexto, foi a
expressão feliz, na construção prática, da associação entre a experiência do
passado e a atualização ofertada pelo novo e presente, mistura cultural radiofônica
entre a tradição e o novidadeiro, entre o velho e o novo utópico. Isto tudo sendo
muito próximo daquela fórmula para a liderança, sugerida por Luiz Beltrão (2001,
p. 257-259), Autor de expressão à época do sucesso da Continental, ao dar forma
conceitual ao chamado folkcomunicação.

O “grupo universitário” respondia, então, pela qualidade de gestão e


publicação no Sindicato dos Jornalistas e agregava novo padrão técnico
jornalístico de qualidade, valor diferencial e estratégico para a realização da
novíssima programação da Continental. O “grupo universitário” da Continental
atuava, igualmente, no segmento publicitário e musical da emissora, introduzindo
novas linguagens.

É importante referir, sempre, que o público segmentado de fidelização da


emissora era constituído, igualmente, por contingente universitário e estudantil
(pré-vestibulandos e secundaristas), ligado como pólo ativo do elo, no segmento
de audiência e consumo da emissora eleita. A construção pela identidade
universitária e estudantil possibilitava, então, o ciclo de agendamentos entre a
instância da produção e a da recepção. O que denominamos continente
231

radiofônico possibilitava o espaço onde o público segmentado da Continental (e


junto, mesmo, os seus produtores) localizava e tornava protagonista o ser idêntico,
isto é, a massa universitária e estudantil intelectualizada e/ou oposicionista.

Para finalizar este estado da arte, com angulação focalizada na produção


regional, chegamos ao próprio Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação, que abriga a presente tese. No Programa, fomos localizar aquelas
pesquisas que tematizaram, de modo próprio, o rádio enquanto fenômeno do
processo social, midiático e comunicacional. Indicamos, a seguir, aquelas
dissertações de mestrado que, tendo conhecimento das mesmas, estudamos.

Torino, em 2001, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Fausto Neto,


apresenta Rádio Educativo: Relações entre Legislação e Programação, Estudo
das Emissoras Educativas da Região Metropolitana de Porto Alegre. A
dissertação de mestrado serviu-nos, sobretudo, para acompanhamento, em
paralelo, das emissoras FMs, no período pós-Continental, para que
constatássemos, de algum modo, a permanência de certa tradição possibilitada
pela emissora que pesquisamos.

No mesmo período, Weber, também sob orientação de Fausto Neto,


dedica-se à investigação empírica sobre rotinas produtivas, critérios de
noticiabilidade e estratégias discursivas, em contexto de impactos carreados pela
informatização das redações. O trabalho resulta na dissertação Estratégias de
Noticiabilidade na Edição Radiojornalística: Estudo de Casos nas Rádios
Gaúchas e Guaíba.

Em 2001, ainda, Mazzarino, sob a orientação do Prof. Dr. Alberto Efendy


Maldonado, defende a dissertação que tem por título: A Cidadania da Escuta: os
ouvintes como produtores de sentido, inseridos no processo comunicacional
mediado pelo rádio, um estudo de caso do programa Acorda Rio Grande, da
Rádio Independente, de Lajeado/RS.

Em 2002, Pavan, também sob a orientação de Efendy Maldonado,


apresenta dissertação de mestrado, inspirado por estudos teóricos em Jesús
Martín-Barbero, sob a denominação Música Sertaneja: mediações e
232

midiatizações na conexão popular/massivo. A dissertação nos deu oportunidade


de refletir sobre como a Continental possibilitava a midiatização de determinada
Porto Alegre, de seu universo e de seu próprio grupo de ouvintes e, também,
como a emissora, para os ouvintes, fazia parte de diferentes mediações em
diferentes estilos de vida.

Baseggio, em 2002, defende a dissertação Escuta do Comando Maior:


uma leitura do caso Sérgio Zambiasi, sob a orientação do Prof. Dr. Adayr
Mroginski Tesche. No trabalho, o Autor intenta uma leitura crítica do modo de
instrumentalização do rádio na interação política e social, em meio as lacunas
provocadas pela injustiça social, em que desponta a voz carismática e técnica do
apresentador e político em questão.

O radialismo, empreendido dentro de uma instituição universitária e, ao


mesmo tempo, premido pela necessidade técnica de informar através de
entrevistas, serve como pontos de partida sob observação no trabalho de Fortes,
em 2003, sob a orientação do Prof. Dr. Valério Cruz Brittos. A dissertação tem
por título: Entrevista Radiofônica: a Construção de Verdades através do
Processo Argumentativo, Um Estudo de Caso do Programa Plural, da Unijuí-
FM. O acompanhamento da defesa pública da dissertação remeteu-nos aos
problemas de retórica e de argumentação, embutidos na dissertação, quando
inferimos haver diferenças significativas entre critérios de verdade, estruturação
de argumentos e a situacionalidade destes fenômenos enquanto construções
enunciativas dentro de entrevistas radiofônicas. Dizendo de outro modo,
precisamos voltar a Aristóteles, pelas mãos de Arendt (1991, p. 45-49), para
constatar, também, a diferença entre o persuasivo e o verdadeiro, e de como estas
instâncias são confundíveis e confundidas, de modo especial, pela realização
midiática centrada na oralidade.

Ao término deste estado da arte julgamos ter comprovado a pertinência de


elegermos a angulação pela produção local. Com esta estratégia, acreditamos, foi
possível mostrar a existência de produção significativa acadêmica e não
acadêmica, empreendida por pesquisadores profissionais, mas não somente por
estes, como, também, por jornalistas, escritores, historiadores e não profissionais,
233

promovidos por instituições locais, publicados por editoras regionais e nacionais,


que respaldam a configuração daquilo que definimos como o continente
radiofônico criado a partir de Porto Alegre. Estado da arte relacionado ao
continente radiofônico, explicitado, ao mesmo tempo, como expressão deste
continente e constitutivo do mesmo. A Continental, já dissemos, está inserida,
pela raiz, dentro deste continente sonoro e radiofônico, em período primevo.

Em conjunto, a produção acadêmica sobre rádio é relevante, podendo


configurar-se, até mesmo, o que denominamos “grupo gaúcho de pesquisadores
em rádio”, distinguindo-se, ainda, das demais pela quantidade e qualidade. Como
tendência, este conjunto da produção acadêmica é, preponderantemente, histórica.
CAPÍTULO 7: AS PERIPÉCIAS E A INSTÂNCIA DA TEORIA

Apresentamos, aqui, o que denominamos por “história das peripécias da


Continental”. São estas, a um só tempo, as realizações empreendidas pela
Continental no tempo. Singularizam-se, inicialmente, em modos próprios, a saber,
musicais, jornalísticas, publicitárias etc, dentro da programação, sendo esta
última, também, uma especial peripécia, no sentido de acontecimento e realização
da Continental. Os fenômenos, também, espraiam-se para além do protagonismo
de gênero, configurando-se como políticas, ideológicas e históricas, justamente
naquelas oportunidades de atuação concreta dentro de uma série de
acontecimentos. Buscamos, neste espaço, identificar e relatar as midiatizações da
Continental que ganharam fórum amplo de expressão pública, fazendo da
experiência mediada espaço de interações maiores na sociedade à época.

Como verdadeiro fio condutor para interligar as peripécias, localizamos,


na pesquisa, as narrativas da Continental, produção maior da programação e da
história particular da emissora.

A escolha pela denominação de “história das peripécias” reside numa livre


utilização, empregada, originalmente, por Braga (1991), quando o pesquisador
escreve O Pasquim e os anos 70: mais pra epa que pra oba. Estruturalmente,
buscamos as realizações da Continental investigando texto e contexto, história
peripecial da rádio e suas articulações com o político, o social e o cultural
estruturante-estruturado à época.
235

A partir de escuta a Braga, igualmente, fixamos nosso interesse em


organizar o presente capítulo da tese como supergênero. Braga ensinava, quando
de nossos seminários de pesquisa, junto ao PPG de Ciências da Comunicação, na
Unisinos, ao longo de 2002, que a tese poderia abarcar diferentes gêneros, desde o
texto poético, o descritivo, até o ensaio ou a reportagem, espaço-textual onde
diferentes modos e tipos de registros discursivos podem ser ofertados para a
constituição final da tese. Para a história narrada da Continental, acionamos, sob
modo autoral, aspectos deste supergênero.

A presente história das peripécias, aqui articuladas para apresentação,


nasce de depoimentos orais inéditos com radialistas, jornalistas, músicos,
técnicos, enfim, das falas de homens e de mulheres que trabalharam e fizeram a
Continental, os escolhidos protagonistas ouvidos para a tarefa da pesquisa e
apresentados em trabalho de recriação escritural do pesquisador.

As peripécias, segundo nossa interpretação, nascem em configuração e


articulação com o conjunto particular de narrativas da emissora estudada. Na tese,
o conjunto particular de narrativas e peripécias foi entretecido com a utilização de
diferentes dados retirados sobretudo de fontes orais e, também, de fontes escritas e
documentais, quando meramente auxiliares, ou mesmo, fundamentais para o ato
de elucidar determinada ação ou acontecimento.

Contamos para o estabelecimento das mesmas, principalmente, com


pressupostos teóricos da história oral, mas, aqui, a lógica da peripécia resgatada
pela história oral convive com aquela outra de estruturação de supergênero, na
qual, em bricolagem, aparecem diferentes registros discursivos e narrativos. Na
tese, desenvolvemos os relatos orientados para o princípio de transcriação, termo
cunhado por Campos (1986), empregado, originalmente, para a definição de
trabalho de tradução poética, na qual o importante é garantir a recriação de
sentido, buscando maior potência do signo e maior transparência de linguagem.
Campos (1986, p. 118) refere, então, certo trabalho de “coreografia interna das
línguas” e o processo infindo de “diamantização” do idioma, em busca da precisão
de palavras e termos. Em nosso trabalho, a procura pela “diamantização” esteve,
236

antes, na busca pela precisão de nexos históricos das peripécias, bem mais do que
no eterno jogo de potencialização das palavras.

No presente trabalho, procuramos, desde as entrevistas, tomadas como


primeiro exercício do conjunto das ações, estabelecer a garantia à palavra do
outro, nos registros em gravações realizadas face a face. Após a realização das
entrevistas, no trabalho de recuperação dos depoimentos orais, buscamos as
transcriações daqueles depoimentos, procurando o máximo de sentido possível,
em lapidação, desde o registro falado até o texto escrito. Tratou-se de uma procura
pelo sentido discursivo, narrativo e histórico, pelo subjetivo enovelado com o
objetivo, pelo depoimento pessoal, tecendo em elo o acontecimento histórico, pelo
fato peripecial contido e expresso pelas falas. O presente trabalho de transcriação
não reproduziu, na íntegra, os conteúdos totais de todos os diálogos recuperados,
mas, foi centrado o trabalho na apresentação do sentido principal de cada
depoimento histórico, enquanto exposição, para a recuperação ou estabelecimento
de peripécias relevantes da Continental.

7.1 HISTÓRIA DAS PERIPÉCIAS DA CONTINENTAL

A história peripecial da Continental comporta, na realidade, etapas


distintas, embora interligadas. Além disto, a presente pesquisa terminou
encontrando “franjas” temporais significativas, ações outras, nas quais
verificamos a existência da Rádio sob diferentes mãos, sob diferentes gestões e
diferenciadas programações. Havendo uma Continental, constatamos, existiram
várias. Assim, tratamos desta constatação como uma realização da pesquisa.

Existiu a pioneira, embora efêmera, Continental criada por Victor Issler.


Existiu a Continental que interessou ao Sistema Globo de Radio, inicialmente,
pela hipótese de instância estratégica geopolítica e, significativamente, comercial,
como verificamos e, depois, dentro deste ciclo vital gerencial, sob a Globo, existiu
a Continental de maior relevância, enquanto modelo paradigmático na
237

radiodifusão porto-alegrense, quando nasce a Superquente 1120, a partir do verão


de 1971 até o ciclo de turbulências que envolve perda de nomes e, logo,
historicamente, perda de oportunidades futuras. Ainda, dentro daquela década de
modelo de maior criatividade, a partir da direção de Fernando Westphalen e
grupo, pôde-se verificar, circunscrita, certa periodização que buscamos relatar, a
seguir, e analisar, por tratar-se de verdadeiro núcleo principal, insuperável em
peripécias pelos demais estágios. Ao término da existência, ainda, a Continental
interessava à pesquisa, pois, no início da década de 1980, a Rádio está sendo
bipartida: parte daquele espólio mereceu interesse específico da Rede Brasil Sul, e
a outra parte interessou à Rede Sul-rio-grandense de Emissoras. As duas redes
regionais gaúchas tratam de apresentar suas diferentes propostas de negociações
para a Rede Globo. Posteriormente, já distanciada do espectro do AM, mas
operando sob o controle de interesses gerenciais da Rede Sul-rio-grandense de
Emissoras, surgia a Continental FM. A nova emissora guarda traços da
homônima, mas, fica muito longe de poder construir protagonismo semelhante à
anterior. Com estilo retronostálgica, centrada em certa musicalidade dos anos
1970, a Continental FM viabiliza-se economicamente, no entanto, em nada lembra
a pujança, a inovação e a ousadia da programação daquela Continental AM, do
“som nosso de cada dia”, verdadeiro protótipo, o primeiro paradigma para todas
as demais emissoras que buscaram fazer rádio jovem e programação musical em
Porto Alegre.

Por isto, buscamos focalizar, aqui, preferencialmente, as realizações da


Continental a partir da década de 1971 a 1981, como “núcleo principal possível”
da história da emissora, por entendermos ter encontrado, ali, certo conjunto
realizado do padrão radiofônico de excelência, abordado para a reflexão e para a
aprendizagem sobre este saber-fazer midiático entre nós e, sobretudo, dentro
daquela década, buscamos o bloco temporal que denominamos “período
dionisíaco”. Para a melhor focalização da Continental, no entanto, foi necessário
vê-la em aproximação possibilitada pelos cenários das entrevistas, face a face, dos
protagonistas contatados. Foi necessário, igualmente, vê-la surgir pela ponte
238

eletroeletrônica das entrevistas a distância. As peripécias, a seguir apresentadas,


recuperam os depoimentos, em parte, destes protagonistas ouvidos e nomeados.

A análise histórica e contextual, nem sempre em movimentos sincrônicos,


arrastou-nos para temporalidades adjacentes àquela do “núcleo principal” e,
assim, além daquele “período dionisíaco”, de maior criatividade da emissora,
tivemos os períodos contíguos, anteriores e posteriores àquela fase “dionisíaca”,
também, em outro nível, importante e relevante para a história. Estas “franjas”
terminaram, na pesquisa, por oportunizar, de modo particular, novas peripécias e
novas instâncias, igualmente importantes para narrar e interpretar a história da
Continental. Com isto, estamos convictos, ampliamos, pelo mesmo movimento, o
tempo histórico e o repertório peripecial, até então atribuídos à Rádio Continental
pelo senso comum e mesmo pelos trabalhos de interesse acadêmico científico.

Como resultado, o trabalho não propôs, nem pôde consumar, uma


narrativa contínua e em sincronia, no sentido de articulação com o tempo histórico
cronológico, tampouco se tratava de oferecimento de uma história construída sob
a concepção do tempo histórico como bloco monolítico. A história da
Continental, aqui, é sinônimo, muitas vezes, de uma história narrada a partir de
indícios, de rastros, de lacunas e de faltas, inúmeras destas sequer suplantadas
pelos esforços da pesquisa.

O que vamos narrar, aqui, entretanto, autoriza-nos a ousar e dizer, em


paráfrase: “Eis a história de uma rádio que jamais se deixou vencer”.

7.1.1 O Depoimento de Fernando Westphalen

Porto Alegre vive um daqueles dias de luminosidade exuberante, céu azul


de “brigadeiro”, temperatura agradável de outono nas ruas. É pleno abril de 2002,
quando entrevisto Fernando Westphalen pela primeira vez.

É necessário subir uma longa escada daquele sobrado de aspecto não


comercial, escondido numa transversal da avenida José de Alencar, no Bairro
239

Menino Deus. Não demora quase nada a espera na ante-sala da Visor Produções e
Propaganda.

Na semana que antecedera aquele encontro, após agendar dia e horário


com o próprio entrevistado, comprei não somente as baterias e as fitas magnéticas
novas, mas também um pequeno gravador portátil Panasonic RQ-L11, o mesmo
que, ainda agora, testara duas vezes, volume e força, para nada falhar, nem faltar,
na hora “h”.

Fernando Westphalen, de apelido “Judeu” desde a pré-adolescência, está


ali, diante de mim, 1m79cm de altura, talvez um pouco mais, está apertando a
minha mão e convidando para entrar até o escritório. Fernando não é magro. À
primeira vista, tampouco, parece ser alguém muito expansivo. Aparenta, no
entanto, ter bem menos idade do que seus 65 anos vividos (completados em 16 de
outubro de 2002).

O ambiente é despojado, simples, até. Os móveis antigos lembram mesmo


os anos 1970. Enquanto peço tempo para arrumar meu equipamento, ocorre-me
que estou diante do homem que declarara para jornalista Cíntia Nahra, certa vez,
que ele fizera a Continental para poder contar, depois, para seus filhos e netos,
onde ele estava e o que ele fazia após o golpe militar de 1964, ele e seus amigos
da Superquente.

Está tudo pronto e, inclusive, a entrevista já está começada, quando


constato que, de fato, estou conversando com alguém que é, para a minha geração
de jornalistas, uma lenda viva. Percebo, igualmente, que aquela lenda usa óculos,
e óculos de lentes grossas, fato que o torna mais humano, menos olímpico. A
aproximação e a empatia com o entrevistado, também, chegam com o modo
franco e nada afetado de ele falar. De resto, ali está um homem que gosta de
conversar. Ali está Westphalen, sem pressa, alguém que gosta de contar e que tem
o que contar sobre a Continental.

Anteriormente à grande aventura da 1120, Fernando foi publicitário e


trabalhou em rádio, com locução e narração. Aficcionado por cavalos desde
menino, logo se torna narrador de turfe, fazendo carreira profissional, inclusive,
240

na Rádio Guaíba. Muitos da Guaíba irão trabalhar na nova Continental. Daquela


emissora da Caldas Jr, aliás, Fernando e colegas levarão, até mesmo, o modelo,
ou, melhor dizendo, o contramodelo.

Na opinião de Westphalen, o rádio presta serviços e, ao longo do tempo,


precisou adequar-se. Isto ocorre, para ele, no momento em que o rádio deixou de
ocupar a sala de visita das casas e passou para os dormitórios, cedendo lugar para
a televisão. O rádio deixou de ser, então, o veículo familiar e passou a ser pessoal,
do sujeito. Passou a distrair a solidão da empregada doméstica, da dona de casa,
ou do estudante, basicamente, e do “chefe de família” no automóvel.

Para completar estas mudanças, o rádio precisou alcançar, igualmente,


uma linguagem mudada, renovada. Se o foco passava a ser o indivíduo, e não
mais a família, a linguagem deveria contemplar isto. Segundo Fernando, até hoje,
algumas emissoras utilizam uma linguagem literária, antiga em demasia. É o caso
da Guaíba, exemplifica. O noticiário da Guaíba, para Fernando, é feito por um
“autômato”, lendo telegramas, muito apegado ao modelo, ainda, de 1940, do
Repórter Esso, algo adequado para a época da II Guerra.

Já trabalhando no rádio e, sobretudo, após atuar no departamento de rádio


e televisão da MPM Propaganda, que era, de longe, a maior agência do Estado,
Westphalen pressentia, assim como seus colegas e amigos que não existia uma
emissora que falasse a língua, a linguagem dos jovens porto-alegrenses; não
existia, ainda, aquela rádio na cidade.

Naquele período, ao término de 1970, já é sabido, no mercado gaúcho


especializado, que a Rede Globo quer negociar a Continental de Porto Alegre. A
notícia sobe o Morro Santa Teresa e chega até os ouvidos de Antonio Mafuz, um
dos três sócios da MPM. De Mafuz, não sem antes alguma outra escala, a
possibilidade chega a Westphalen.

“Esta é uma história muito comprida, muito, mesmo”, enfatiza Fernando,


mas, no verão de 1971, após ele ter decidido abandonar o emprego na MPM,
entrava no ar aquela programação especial para jovens, na Continental, que
pretendia conversar com universitários e secundaristas, todos os dias, ao longo de
241

uma década marcada pela repressão às classes populares, à imprensa, à


universidade brasileira, aos professores e alunos.

A história é, mesmo, muito comprida e, agora, ainda, precisamos


retroceder.

7.1.2 Raízes

Octavio Augusto Vampré caminha, lentamente, pelos corredores


envidraçados, nos porões, quase labirínticos, do prédio do jornal Zero Hora, na
avenida Ipiranga. Estamos no final da tarde, horário que iniciava o “fechamento”
do jornal.

Pouco conheço, pessoalmente, daquele cidadão paulista, mais de vinte


anos radicado no Sul, ex-diretor na Rádio Farroupilha e Rádio Gaúcha. Homem
de televisão que dirigiu a TV Piratini e a TV Gaúcha. Sabemos que ele viveu a
“época de ouro” do rádio, como produtor e autor de radionovelas, nas lendárias
Rádio Nacional, do Rio de Janeiro, e Rádio Mayrink Veiga.

Eu trabalho como revisor, neste final de década de 70, na Zero Hora. E


mais não sei daquele homem, chamado Octavio, de estatura baixa, sério, que
caminha pelo corredor à minha frente, uma mão enterrada no bolso, a outra
levando um pacote.

Certamente, na lentidão do homem, naquele ambiente de jornal, ele


rememora, dialoga de algum modo, refere algum aspecto das quatro décadas de
trabalho intensos com a comunicação social. O barulho que vem dos
computadores, o burburinho das vozes das pessoas, o forte cheiro azedo da
fotocomposição, as luzes feéricas da sala da paginação, todo o ambiente é
propício. Todo o ambiente força um isolamento. E ele segue em silêncio.

A seriedade do rosto, concluo apressado, talvez, tenha bem mais a ver com
o pacote que ele carrega pelo longo corredor. O homem que se dirige para a sala
onde fica a Revisão do jornal parece, mesmo, remoer questões, coisas pendentes,
242

aflições, talvez. Mas Vampré, talvez, saiba que carrega algo relevante. Sob o
braço, porta o pacote com a revisão final. É o resultado de mais de dois anos de
leituras, de pesquisas extenuantes em arquivos, de buscas em coleções, de
entrevistas com amigos e colegas. Octavio Vampré carrega para entregar o texto
escrito que, de modo pioneiro, resume, sob ótica própria e aplicada, a história do
rádio e da televisão gaúcha.

O portador é nosso colega Lino, também revisor, e um dos poucos


jornalistas em formação que demonstra interesse pelos aspectos gráficos
estruturais do jornal diário. No futuro, esta abnegação o credenciará,
profissionalmente, para assinar, com elevada competência, os projetos gráficos do
Correio do Povo e da Zero Hora, entre outros. Luiz Adolfo Lino de Souza,
naquele fim de tarde, tomo conhecimento, será o editor gráfico escolhido do livro
de Vampré, Raízes e evolução do rádio e da televisão, publicado naquele ano de
1979.

Na obra, a Superquente 1120 é citada em título, centralizado, da página


142: “Uma Rádio Chamada Continental”:

A 15 de outubro, desde ano de 1962, Victor Issler, figura


proeminente na política do Rio Grande do Sul, deputado federal
e membro do diretório do Partido Trabalhista Brasileiro,
inaugurou, em Porto Alegre, a Rádio Continental. Mais tarde,
afastando-se inclusive da política, Victor Issler transferiu o
controle acionário para o Sistema Globo de Rádio. Na
atualidade, esta emissora – dirigida por Marcus Aurélio
Wesendonk – destaca programação inteiramente dedicada aos
jovens.

Editorialmente, a obra de Vampré estrutura-se de modo assemelhado a um


anuário. Na Parte I, exclusivamente dedicada à história do rádio, Vampré escreve
texto sobre protagonismo do rádio respectivo a cada ano do século XX até 1979.

É curioso que o historiador limitasse o aparecimento da Continental, no


livro, somente àquela nota acima transcrita. Do mesmo modo, praticamente,
resultou restrita àquela única nota de Vampré a indicação de Issler como pioneiro
criador da Continental.
243

Assim, seja pela ausência do trabalho profissional de historiadores e


pesquisadores, seja pela lacuna de trabalho investigativo da academia e, também,
pela desatenção de jornalistas em reportagens específicas, aqueles primeiros anos
de existência da Continental, desde 1962 até 1971, resultaram espaço temporal e
histórico, praticamente, oculto, por conseguinte, não contemplado pelas diferentes
narrativas, nem examinado por análises interpretativas.

O trabalho da presente pesquisa estava, a partir dali, também localizado na


investigação sobre aquele período histórico de existência da Continental e sobre a
figura política e empresarial de seu primeiro proprietário, Victor Issler.

7.1.3 “Guasca Simples, Bonachão, Guapo de Marca e Sinal”

Após consulta junto aos partidos políticos e órgãos púbicos, a procura por
indicação de dados sobre a figura pública e privada de Victor Issler resultara,
praticamente, nula. Decidimos, então, acionar uma solução prática, corriqueira,
empreendida em trabalhos de pesquisa jornalística, isto é, o acionamento do
serviço de auxílio à lista de atendimento aos assinantes de empresas telefônicas.
Através deste recurso, chegamos a aproximadamente vinte endereços telefônicos
de pessoas com sobrenome Issler, em todo o estado. Um destes, inclusive,
indicava: Victor Issler.

Na verdade, tratava-se de referência à escola, de igual nome, em


homenagem ao político gaúcho. Logo, buscamos fazer contato, em busca de, pelo
menos, informações preliminares. Cordialmente, a direção da Escola Municipal
Victor Issler informava que cerca de 1.500 alunos estavam matriculados, em
busca de ensino fundamental. A escola, localizada na Rua 19 de Fevereiro, no
Bairro Mario Quintana (antiga Chácara da Fumaça), foi inaugurada em novembro
de 1989, na condição de CIEM, pelo prefeito municipal, à época, Alceu Collares.

Entretanto, infelizmente, a direção afirmava que nada mais sabia informar


sobre a figura pública do cidadão que emprestava nome à escola. Inclusive, a
244

direção designara comissão para pesquisar dados históricos sobre Issler, com
objetivo de futura publicação, e nós voltávamos à lista telefônica.

Quatro nomes, em Passo Fundo, indicavam a presença da família Issler


naquela cidade. Lá, descobrimos a existência de loteamento homônimo,
homenagem passo-fundense a Victor Issler. No entanto, naqueles contatos,
sobretudo, obtivemos a referência feita através de um parente distante que
mencionava nome de filho do deputado, pela primeira vez na pesquisa.
Felizmente, na nossa listagem inicial, havia uma citação que coincidia com o
nome informado.

Naquela mesma noite, conseguimos agendar entrevista para o dia seguinte,


quando ouviríamos, ao vivo, o primeiro condottiere oficial, nomeado pelo próprio
pai, para dirigir a Rádio Continental, a partir da inauguração, no longínquo dia 15
de outubro de 1962.

Leônidas Issler jamais tivera contato com o meio rádio. Advogado e


industrial, como consta no contrato comercial de criação da Rádio Continental, ele
mais representará o pai Victor, deputado federal, cumprindo mandato no Rio de
Janeiro, à época capital federal. Mesmo as incumbências passadas pelo próprio
pai, mais diziam respeito aos negócios e às transações comerciais; e pouco quanto
à cultura e à produção radiofônica.

Na realidade, quando o passo-fundense Victor Loureiro Issler assume uma


cadeira na Câmara Federal, em 1951, no Rio de Janeiro, após ter sido eleito como
suplente pelo Partido Trabalhista Brasileiro, ele era, então, empresário maduro,
empreendedor e reconhecido pela fortuna construída. Já estivera, reza a lenda,
inclusive, envolvido em revolução.

Por isto, em 8 de janeiro de 1961, o Centro de Tradições Gaúchas “Rincão


da Lealdade”, em Caxias do Sul, homenageia o deputado Issler, com versos do
poeta regionalista Glaucus Saraiva que refere, na segunda estrofe:

Ainda meio potrilho/ Marca récem descascada,/ Já dava sua


pegada/ Nos entreveros do Pago./ Taura que faz muito estrago/
No fervo de “vinte e três”;/ Ajojou sua entrepidez/ Com a do
general Portinho/ E apesar de mui novinho/ Brilhou em vários
245

embates./ Deu rinha em muitos combates:/ “Rio das Contas-


Quatro Irmãos./ Flaminio – Capão do Leão”./ Onde foi por
valentia,/ Citado em ordem do dia/ Pelo velho General”.

Issler terminara a participação na Revolução Federalista de 1923 com


honras de capitão. E, por isto, é saudado por Glaucus Saraiva como “guapo de
marca e sinal/ nunca afloxando o garrão”.

Nascido em 12 de março de 1901, de descendência germânica, em família


de poucas posses, Issler, aos 22 anos, toma parte da Aliança Libertadora de 1923,
como maragato, sendo liderado por Assis Brasil (1857-1938), infenso ao então
presidente do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros (1863-1961).

Após a revolução, Issler dedica tempo e energia para a exploração da


madeira e da erva-mate. Cria, na continuidade, a Empresa Rio-grandense do Mate
e o Sindicato dos Produtores.

Aos 37 anos, sobe novo patamar como empresário, constituindo com


sócios a Siderúrgica Riograndense Limitada, destinada à laminação e fundição de
ferro e aço. Em 3 de fevereiro de 1938, assume a direção, ao lado de Herminio
Natali, daquela mesma siderúrgica que, dez anos depois, seria adquirida pela
família Gerdau.

Quando chega a campanha presidencialista de 1950, Issler integra os


quadros do Partido Social Democrático (PSD) gaúcho e, na condição de dirigente
partidário, ao lado de João Neves da Fontoura e de Ernesto Dornelles, decidem
pela criação da chamada “Ala Autonomista” do PSD. Na realidade, o PSD
Autonomista é a expressão da aliança regional de apoio, político e econômico, à
candidatura do gaúcho Getúlio Vargas à presidência da República, em detrimento
do candidato Cristiano Machado, do PSD mineiro.

Issler, nas eleições de 1961, é eleito como segundo suplente, abrigado sob
a legenda do PTB, e assume uma cadeira porque correligionários, entre estes João
Goulart, são chamados para composição do primeiro escalão do Governo Federal.

É neste espaço político de alianças políticas, partidárias mas, igualmente,


de fluxos de negócios e interesses privados que tem continuidade o projeto de
246

estruturação da Continental cuja inauguração ocorre em 15 de outubro de 1962. O


primeiro documento, dando origem à empresa Sociedade Rádio Emissora
Continental de Porto Alegre Limitada, é registrado em 1958.

Familiarmente, Issler estava casado com Maria Célia, criadora do Instituto


Educacional Frederico Ozanan, para educandos carentes. O casal tem quatro
descendentes, as filhas Dulce Terezinha e Eleonora, e os filhos Marco Aurélio e
Leônidas. Marco Aurélio, na condição de engenheiro, auxilia, no Rio de Janeiro,
na documentação e busca de equipamentos para implantação da Continental, e
Leônidas é designado pelo pai como primeiro diretor da emissora, em Porto
Alegre.

O documento que dá origem à Rádio Continental, registrado em cartório


no Rio de Janeiro, inscrito no Ministério da Fazenda, ainda no Distrito Federal e,
posteriormente, despachado pela Junta Comercial do Rio Grande do Sul, em 18 de
maio de 1959, listava sete nomes como sócios.

Além de Issler e seu filho Leônidas, os dois únicos com declarada


residência fixa em Porto Alegre, integram também a nominata Ana e Rubens
Berardo Carneiro da Cunha, e mais Rubens e Carlos, da mesma família, mais Guy
Moraes Masset, todos residentes no Rio de Janeiro. O capital social será
inicialmente de Cr$ 5.000.000,00 (cinco milhões de cruzeiros), representado por
quinhentas cotas de valor de Cr$ 10.000,00 (dez mil cruzeiros) cada uma.

Ana Berardo Carneiro da Cunha é sócia majoritária, com 230 (duzentas e


trinta cotas) e Guy Moraes Masset é o minoritário, com 20 (vinte), cabendo aos
demais cotas iguais de 50 (cinqüenta). Pela documentação inicial, a família
Berardo Carneiro da Cunha dispõe do controle da Continental. Esta situação não
impedirá, na prática, de Issler e filho decidirem pelos destinos da emissora em
Porto Alegre.

Segundo depoimento de Leônidas Issler, para o Autor, em 10 de dezembro


de 2002, Rubens Berardo Carneiro da Cunha teve protagonismo fundamental no
surgimento da Continental. Pernambucano, mas desde adulto residente no Rio de
Janeiro, Rubens Berardo foi deputado federal e vice-governador na gestão de
247

Negrão de Lima. Em 1958, Berardo está recebendo “a concessão de uma rádio de


50 quilowatts, diretamente do presidente Juscelino Kubitschek”, segundo
depoimento de Leônidas. A falta de recursos econômicos próprios, conjugado à
certa desorganização pessoal, levaram Berardo a procurar parceria com Issler,
segundo Leônidas. Para facilitar a sociedade, ainda, contava o fato de Issler ser
amigo e compadre de Berardo, por ter batizado a filha do parlamentar
pernambucano.

Era esta pequena emissora ao sul, localizada no 1120 do dial do rádio


porto-alegrense, criada pela oportunidade oferecida aos políticos influentes da
coligação PTB-PSD (expressão política cujo poderio, inclusive, elegera o próprio
presidente da República), emissora que, com apenas um ano de existência,
interessaria ao Sistema Globo de Rádio.

7.1.4 Sistema Globo Chega a Porto Alegre

A chegada estratégica, em Porto Alegre, da primeira empresa do sistema


Globo, liderado por Roberto Marinho, é antecedida pela compra de emissora de
rádio, justamente, a Continental. A Rede Globo de Televisão, somente a partir de
1971, passará a operar em rede através da afiliada local, TV Gaúcha. Assim,
naquele ano de 1963 e durante algum período, ainda o rádio continua sendo
negócio atraente para investidores e políticos, muitas vezes, através de
associações diretas. Enquanto isto, também a televisão busca expansão, no Sul e
em todo o país. No Brasil, organizam-se as empresas em redes, a partir de São
Paulo e Rio de Janeiro, como a Excelsior, Tupi, Rio, Record, Nacional-Paulista e
Tupi Difusora, como indica Vampré (1979, p. 233).

No Rio Grande do Sul, onde apenas operava a TV Piratini, canal 5,


empresários locais associados a grupo do centro do país preparam o lançamento
da TV Gaúcha, canal 12, cuja inauguração ocorre no mesmo ano do aparecimento
da Continental, no ar, em 1962. Para tanto, um ano antes disto, novamente,
248

transparece certa prodigalidade do presidente Juscelino Kubitschek em distribuir


outorga para concessões de emissoras de rádio e, agora, também de televisão.

A outorga do Canal 12, segundo aponta Octavio Augusto Vampré (1979,


p.228), ocorreu de forma a mais original:

Às 7 horas da manhã, no Palácio das Laranjeiras, no Rio de


Janeiro durante a última refeição matinal de Juscelino
Kubitschek que, nessa mesma data, iria transferir o governo e a
faixa presidencial a Jânio Quadros. Instado [...], Juscelino
despachou o prometido à futura TV Difusora. E, já a essa época,
o canal 2, de Porto Alegre, havia sido destinado à TV Guaíba,
da Companhia Jornalística Caldas Júnior.

O fato ocorrera na presença do empresário Frederico Arnaldo Balvê, sócio


de Maurício Sirotsky Sobrinho e Nestor Rizzo na implantação da TV Gaúcha que
tem, ainda, a participação da Rede Excelsior, do grupo de Mário Simonsen, como
acionista principal. Mais tarde, Maurício, associado ao irmão Jaime, garantirá para
a família Sirostky o controle da empresa, inaugurada dia 29 de dezembro, com a
presença do presidente João Goulart, em Porto Alegre.

À época, início da década a contar de 1960, portanto, antes de sequer


iniciar a configuração daquela que se tornaria a poderosa Rede Globo de televisão,
Roberto Marinho investe na hipótese de construir uma não menos importante rede
nacional de radiodifusão esta, no entanto, jamais concretizada. A aquisição da
Continental, entretanto, figurava como uma aposta, no rastro deste hipotético
desejo de Marinho que adquirira, recentemente, os direitos para transferência, para
a Rádio Globo, do famoso programa de notícias, o Repórter Esso.

Na verdade, fosse para marcar posição geográfica, no extremo sul do país


de dimensões continentais, fosse para, materialmente, garantir eventual expansão
de rede, as organizações Globo manteriam sede oficial em Porto Alegre, até 25 de
setembro de 1995, conforme apuramos pela ação de pesquisa. Naquela data, a
Rádio Globo de Porto Alegre Limitada deixa sua sede, localizada à Rua dos
Andradas, 1155, 5º andar, para transferir-se, definitivamente, para o Rio de
Janeiro. O documento, registrado na Junta Comercial do Rio Grande do Sul,
constituindo-se na décima-quinta e última alteração de contrato social da empresa,
249

estava assinado por José Roberto Marinho, Ricardo Marinho (pelo espólio) e
Victorio Alba Serra de Berredo, acionista cedente de direitos em favor dos dois
outros representados. O curioso, no contrato, é a coincidência entre os endereços
residenciais indicados por José Roberto Marinho, por Victorio Alba Serra de
Berredo, advogado profissional, e a nova sede da empresa, todos localizados na
Rua do Russel, 434, na cidade do Rio de Janeiro.

Nos primeiros anos de presença em Porto Alegre, ao que tudo indica, o


Sistema Globo de Rádio tentou impor padrão próprio administrativo, já a partir
dos primeiros meses de controle da Continental. No entanto, a distância da sede e
o tamanho do negócio, em Porto Alegre, são dois fatores restritivos para melhor
desempenho da emissora. De resto, em curto espaço de tempo, o grupo de
empresas de Roberto Marinho, definitivamente, terá a Rede Globo de Televisão
estruturada e atuante, para todo o Brasil, a partir de contestado e polêmico acordo
com o grupo estrangeiro Time-Life, conforme documenta Herz (1987, p.84):

Em 1961, surgiram os contratos elaborados


inconstitucionalmente entre as organizações Globo e o grupo
norte-americano Time-Life, que iriam transformar aquele grupo
empresarial brasileiro na maior potência econômica na área da
comunicação na América Latina. As dificuldades institucionais,
entretanto, só permitiram que os contratos fossem plenamente
executados após 1964. [...] Só após o golpe de março de 1964,
porém, é que foram criadas as condições econômicas e
institucionais para o desenvolvimento de um sistema de
telecomunicações e de radiodifusão compatível com as novas
exigências do capitalismo internacional.

Naquele contexto, a Rádio Continental, sem ser inteiramente abandonada


pela direção central da Globo, entretanto, jamais poderia ser priorizada, em
período tão fértil para meganegócios em outras direções. Por isto, de 1963 até
1971, faz chegar, em Porto Alegre, um elenco de diferentes gerentes regionais,
demonstrando desejo de crescimento para volume e qualidade dos negócios da
Rádio, mas sem maior sucesso comercial ou de programação.

Antes dos gerentes locais da Globo, naquele primeiro e único ano de


programação, sob a direção da família Issler, a Continental já se encontra
transmitindo direto do Edifício do Relógio, na Rua dos Andradas, 1155, 5º andar,
250

endereço definitivo, até final de existência da emissora. A antena de transmissões


está localizada em ilha, na cidade de Guaíba, em terreno cedido por empréstimo a
Issler pela empresa Ipiranga de Petróleo.

Na programação, a Continental, à época, tentará, inclusive, transmitir


futebol, buscando seguir a trilha de sucesso das grandes emissoras da capital e do
centro do país. Mas a experiência seria efêmera e sem repercussão na audiência ou
nos negócios, como assinalaria Leônidas, mesmo não sendo homem do ramo.

Empresário do setor, naquele mesmo ano de 1963, Maurício Sirostky


buscava qualificar a Rádio Gaúcha. No departamento de esportes, o diretor é Ari
dos Santos, e o grande nome, buscado “para destronar a grande audiência da
Rádio Guaíba, é Mendes Ribeiro”, como anota Vampré (1979, p.144). Na
emissora da Caldas Junior, pródiga em nomes na equipe jornalística e esportiva,
estava surgindo o jovem Pedro Carneiro Pereira que, nos anos seguintes, tornar-
se-ia o principal locutor esportivo da Guaíba. Na Gaúcha, Sirotsky aposta firme
no carisma de Dimas Costa, para revitalizar a linha de programas musicais
tradicionalistas, que retorna para apresentar, ao lado do folclorista Paixão Cortes,
o programa que marcará época, “Festança na Querência”. Sozinho, Dimas Costa
apresenta, ainda, o “No Galpão do Xiru”. Neste contexto, Victor Mateus Teixeira,
o Teixeirinha, e sua parceira inseparável, a acordeonista Mary Terezinha, ganham
programa próprio, na Rádio Gaúcha. Ao longo da década, a dupla fará enorme
sucesso nacional, apresentando-se, também, no exterior e dará início à produção
cinematográfica, sempre protagonizada pela dupla, a contar pelo filme homônimo
ao sucesso musical, “Coração de Luto”.

Logo, a Continental, igualmente, abre um pequeno auditório de rádio onde


apresentará, ao vivo, música regionalista gauchesca, conforme depoimento do
radialista Gilberto Pedroso, ao Autor. Então, a Globo já iniciara rodízio
involuntário de nomes para gerenciar a emissora gaúcha e com eles chegam idéias
de novos programas, novas tentativas.

Em 1963, a negociação de venda do controle acionário da Continental é


realizada, no Rio de Janeiro, por Victor Issler e Berardo. Segundo o filho,
251

Leônidas Issler, a venda ocorre em outubro de 1963, mas, conforme Leônidas, os


advogados de Roberto Marinho, na ocasião, “cometeram barriga”. Para ele, que
seria procurado nos anos seguintes para reparação daquele erro jurídico, os
advogados de Marinho não podiam ter realizado aquela transação para o nome de
somente uma pessoa física, no caso, Roberto Marinho, pois se tratava de
sociedade que pressupunha pessoas jurídicas como proprietários. Durante algum
tempo, o erro jurídico deixou a Continental a descoberto enquanto contrato de
propriedade juridicamente perfeita. No depoimento de Leônidas, as negociações
envolveram funcionário de nome Armando Queiroz, indicado pela Globo como
procurador. Este homem terá protagonismo como gerente local, até final da
década iniciada em 1960, quando, afirma Leônidas, Queiroz desaparece, por ter
sido demitido, por aposentadoria ou por falecimento.

A partir daquele episódio, em torno de 1968, advogados de Roberto


Marinho passam a procurar Leônidas, com enorme insistência, em São Paulo,
onde então ele residia. O motivo era a necessidade de novas assinaturas para a
regularização de posse da Continental, através de novo contrato de venda.
Segundo Leônidas, ele aceita todos os pedidos, após garantir com Roberto
Marinho, através de documentos escritos, que nenhum débito nem ônus recairiam
sobre os interesses da família Issler.

Em 1977, o Ministério das Comunicações, através da portaria número 913,


determinou o enquadramento de todas as empresas de radiodifusão, até 13 de
dezembro daquele ano, na nova Lei das Sociedades Anônimas, transformando,
para tanto, as antigas Sociedades Limitadas.

7.1.5 Entre Monumentalidades Históricas

A história da Continental, expandida no tempo, tal como estipulamos em


primazia na presente pesquisa, possibilitou vislumbrarmos a emissora entre duas
monumentalidades históricas relacionadas com o radialismo e, para nosso
entendimento, relevantes. Datas, marcos, períodos históricos não sustentam, em
252

si, explicações históricas suficientes. Mas, como interpreta Waldir Freitas


Oliveira, não podemos desprezá-los, pois estes não existem somente como
caprichos da imaginação. Oliveira cita Le Goff, em passagem retirada do verbete
“História”, da Enciclopédia Einaudi (vol 1, p. 178), quando o Autor afirma que
não há história imóvel, nem é a história uma mera mudança. A história se
constitui, pois, como o “estudo das mudanças realmente significativas” (apud
OLIVEIRA, 1987, p. 7).

Assim, ao constatarmos como expandida no tempo a história da


Continental, identificamos, na estruturação da emissora, a presença localizada de
uma representação política que, igual e coincidentemente, era hegemônica no país.
Já os próximos proprietários, também seguindo tendência nacional, eram
representantes de rede nacional de comunicação em formação, fenômeno típico
daquela década, expressão da tecnocracia associada à burguesia nacional vigente.
Ainda, no caso específico da Continental, a emissora era adquirida por aquela que
seria a maior rede de comunicação da América do Sul, em expansão, após o golpe
militar de 1964.

Já as monumentalidades históricas que destacamos como balizas para o


ciclo da existência da Continental apontam para dois episódios políticos que
tiveram o rádio como mídias fundamentais, como sustentação e realização.

Na retaguarda do tempo, em 1961, indicamos a chamada Campanha da


Legalidade, liderada pelo governador gaúcho Leonel Brizola, erguida em defesa
do direito constitucional do vice-presidente João Goulart assumir o governo, em
substituição, ao demissionário Jânio Quadros. Por decisão política de Brizola,
transmitindo diretamente dos porões do Palácio Piratini, é formada a chamada
Rede da Legalidade, utilizando-se a Rádio Guaíba como emissora cabeça de rede.
A Rede da Legalidade será reforçada, ainda, pela Rádio Farroupilha e, logo, terá
repetidoras em todo o Estado e mesmo no País, em defesa da legalidade
constitucional, que termina garantindo o retorno de Goulart, pacificamente, de
viagem à China, para assumir posto na recondução do processo político nacional.
253

Setorialmente, a Rede da Legalidade, que teve o jornalista Hamilton


Chaves na coordenação e o radialista Naldo Charon como a primeira voz, a
garantir em maratona as primeiras horas das transmissões, ao vivo, significaria,
também, a oportunidade de união dos trabalhadores. A Legalidade marca o
processo de criação do Sindicato dos Radialistas, segundo Lauro Hageman
(GUIMARÃES, 1986, p. 107).

No outro pólo temporal, aproximando-se, na data, com aquela do


fechamento da Continental, identificamos o marco histórico no chamado
“Movimento Diretas-Já”, articulado pela sociedade civil mobilizada, desde o
início da década de 1980, culminando com os grandes shows, comícios e
manifestações políticas, a partir de 1982 até 1984. Em questão, figurava o desejo
de o povo brasileiro eleger, pelo voto direto, vice e presidente da República. No
Brasil, embora a Rede Globo se negasse a noticiar aquelas manifestações de
massa realizadas nas principais capitais brasileiras, o mestre de cerimônias em
comícios políticos será o radialista Osmar Santos, da Rádio Globo. No Rio
Grande do Sul, é o radialista Darci Filho, à época repórter esportivo da Rádio
Gaúcha, o mestre de cerimônias que chama para os palanques as lideranças
políticas locais, como Pedro Simon, Alceu Collares, Olívio Dutra, José Paulo
Bisol, José Fogaça, Sinval Guazzeli, entre outros, ao lado de nomes nacionais,
como Ulisses Guimarães, Lula e Fernando Henrique Cardoso. Apesar de toda a
mobilização, em 25 de abril de 1984, a emenda constitucional das “Diretas-Já” é
rejeitada pela Câmara dos Deputados, em Brasília, com isto, transferindo para o
chamado “Colégio Eleitoral” a escolha do próximo presidente da República, que
elegeria Tancredo Neves, presidente e José Sarney, vice (VIEIRA, 1985, p. 65-
70).

Em resumo, o tempo histórico da Continental coincide, no surgimento,


com os últimos anos do governo nacional-populista da era Jango. Depois,
imediatamente, estrutura-se e se mantém, ao longo do período de instauração e
vigência da tecnocracia militar, a contar de 1964, e, por fim, desaparece do
cenário radiofônico gaúcho quando, igualmente, o sistema ditatorial militar
encerrara longo ciclo, dando início ao governo da chamada Nova República, com
254

eleições diretas, mas sem concretizar a justiça social e o desenvolvimento auto-


sustentado reivindicado pela sociedade civil brasileira, ao longo de todo aquele
período histórico e ainda hoje.

Pela proposta da pesquisa, identificamos incidindo sobre a micro-história


da Continental a expressão de forças políticas e sociais hegemônicas na sociedade
brasileira, à época. Assim, são políticos da coligação PSD-PTB, que dominava o
estado brasileiro, desde a eleição de Getúlio Vargas até o golpe militar de 1964,
que também seriam os primeiros proprietários da Continental. Na continuidade
histórica da Continental, aquele grupo político é substituído, justamente, por
representantes da Rede Globo, que significou, além de ser o grupo hegemônico no
setor após o golpe de 1964, a chegada de grupo técnico e de especialistas no
controle de negócios, tendência, igualmente verificável no controle do estado
brasileiro, que passava a ser controlado por quadros da tecnoburocracia
especializada, em que antes estavam somente representantes políticos ou mesmo
lideranças regionais, do tipo familiar ou de capacitação gerencial-administrativa
inespecífica.

As peripécias empreendidas pela Continental, a partir de 1971, quando tem


início fase mais criativa da programação, ganha em atratividade e complexidade,
ao percebermos a emissora, desde sempre, como emissora integrante da Rede
Globo, embora tendo gestão autônoma e distante, física e gerencialmente da sede
dirigida, pessoalmente, por Roberto Marinho.

“As negociações por mim empreendidas, no Rio de Janeiro, garantiam


liberdade de ações. Em princípio, nós tínhamos ‘carta branca’ da direção”. Em
depoimento para o Autor, o diretor Fernando Westphalen afirmava que a direção
da Globo, nos primeiros anos da gestão, exigia, tão somente, garantia de sucesso
comercial operacional, oferecendo liberdade de ações para estabelecimento dos
conteúdos da programação.

O nível de conflituosidade para as peripécias da Continental aumenta se a


visualizamos diante do contexto político nacional e local. Grudado a este processo
255

e já parte constitutiva das próprias ações peripeciais estão as demandas por manter
a programação prometida e a necessidade de faturamento da Rádio.

Segundo nossa interpretação, cabia ao alto nível técnico que garantia, ao


mesmo tempo, qualidade de programação, elevado índice de audiência e excelente
desempenho comercial, a sustentação do modelo Continental, a partir de 1971, em
que pese o fato deste em nada seguir o modelo original da matriz Globo.

O grupo profissional que garante este novo e excelente padrão radiofônico


específico para a Continental, igualmente, é novidade no cenário gaúcho,
enquanto formação e origem de recursos. Até então, as emissoras buscavam
quadros formados na prática das próprias programações cotidianas, muitas destas
localizadas em centros radiofônicos importantes, no interior do estado, como em
Passo Fundo, Pelotas e Santa Maria, entre outros, além de talentos nascidos na
capital, mas sempre a partir de experiências práticas menores.

A diferença profissional tem início com o grupo diretivo, saído de


experiências maiores e bem-sucedidas, protagonizadas na Rádio Guaíba (técnicos
e radialistas) e MPM Propaganda (especificamente, o diretor), empresas líderes
em seus nichos à época. Associado ao grupo mais maduro, e, igualmente, com
vital importância para a experiência Continental, chega à Rádio o grupo de
universitários jornalistas, publicitários e músicos. Talvez, não seja exagero
dizermos que ali estava um grupo de “intelectuais orgânicos”, conforme a
tipologia famosa de Gramsci, a serviço de uma nova formação cultural e
radiofônica.

7.1.6 A Continental entre Redes

Não constitui nenhuma excentricidade nem exotismo, como podemos


analisar, a chegada de Roberto Marinho ao Sul. A década iniciada em 1960 é,
ainda, espaço empresarial e territorial para ganhos significativos no segmento
rádio, em que pese o surgimento da televisão e, sobretudo, tempo histórico de
redefinições de grupos empresariais, rumo à formação de redes, indistintamente e
256

por vezes associados, tanto de rádio quanto de televisão. No ano de aquisição da


Continental por Roberto Marinho, por exemplo, segundo dados coligidos pelo
Grupo de Mídia, em São Paulo, junto às agências de propaganda, o rádio aparece
em segundo lugar no ranking, com investimentos de 23%, perdendo apenas para a
televisão que lidera com 32,9%.

No ano anterior, segundo dados do mesmo Grupo de Mídia, o rádio


disputa o segundo lugar, com o segmento revistas, no recebimento de
investimentos publicitários. No ano de 1962, especificamente, a televisão lidera,
com 24,7%. O segmento “revistas” aparece em segundo lugar, com 27,1, e o rádio
fica em terceiro, com 23,6.

Nos anos seguintes, com a autorização e incentivo federal para a formação


oficial de redes, a partir de 1969, a televisão dispara em arrecadação. Em 1972,
por exemplo, ocupa o primeiro lugar com 46,1%; o segmento jornal pula para
segundo lugar, com 21,8%, e o rádio cai para quarto lugar, com apenas 9,4 contra
os 16,3% para revistas, em terceiro lugar no ranking, sempre sobre dados
referentes a 1972. Uma década após, a televisão acresceria ainda mais 20 pontos
percentuais, e o rádio cairia para 8,0%, dados estes referentes ao ano 1982.

Ortiz (1988) cita Herbert Schiller que, em um de seus artigos, observa que
a comunicação segue o capital, e este se relaciona, intrinsecamente, com a
publicidade. Ortiz vê, na publicidade, o agente financiador da “era de ouro” do
rádio. A chegada da televisão como novo competidor, dentro do recente patamar
da indústria cultural brasileira, expressava novo padrão de comportamento
industrial e econômico, levando, também, o rádio a adotar alguma especialização
no mercado,

[...] caminhando para a especialização de emissoras e a


formação de redes. Este processo não é exclusivo do rádio, ele
atende uma imposição mais geral da indústria cultural que tem
necessidade de responder à demanda de um mercado onde
existem faixas econômicas diferenciadas a serem exploradas
(ORTIZ, 1988, p. 130-133).
257

Sobre o fenômeno da formação de redes interligando emissoras regionais,


Gisela Ortriwano (1985, p. 31) observava a forte motivação pelos lucros que fazia
uma rede transmitir a mesma programação unificada, com custos únicos de
produção, para os pontos mais distantes do país, onde poderia multiplicar
faturamento com diferentes patrocinadores. Para a autora, na estratégia, “o
objetivo principal dessa nova tendência está ligado unicamente a fatores
econômicos: fortalecer o rádio como alternativa publicitária, procurando obter
maior lucratividade com menor investimento”.

Em território gaúcho, mesmo sem contar com crescimento econômico


global, a década compreendida, praticamente, dentro do mesmo período de maior
pujança da Continental, é sinônimo de arranjos significativos do setor rádio dentro
da indústria cultural no Rio Grande do Sul, quando grupos tradicionais em
atividade, bem como alguns novos concorrentes obtêm crescimento e organizam-
se em redes locais e regionais. Em meio a estes movimentos, a Continental
construía singularidade e protagonismo peripecial radiofônico.

Assim, naquela década iniciada em 1971, o mesmo grupo que controla a


Rádio Itaí AM inaugura, em 8 de maio de 1975, a Itaí FM, primeira emissora no
gênero no Estado. Já o Grupo RBS consolida-se como o maior grupo de
comunicação social gaúcho. Liderado pela Rádio Gaúcha, no segmento, terá,
também, a Rádio Metrópole (1977) e, sobretudo, no mesmo ano, inaugura a Rádio
Gaúcha – Zero Hora FM Estéreo que, logo, terá estações nas principais cidades
do Estado, como Pelotas, Caxias do Sul e Santa Maria. A Rede Riograndense de
Emissoras, a contar da Rádio Caiçara (1970), adquire, também, a Pampa (1972) e
a Rádio Eldorado (1975), colocando no ar a Rádio Universal FM Estéreo (1977).
O grupo Jornal do Comércio, igualmente, registra a Rede Princesa do Jacuí, com
emissora capitânea em Porto Alegre e filiadas em Cachoeira do Sul e Candelária.
Também o grupo detentor da Rede Capital de Comunicações, com emissoras em
São Paulo, Brasília e Curitiba se instalava na Grande Porto Alegre, a partir da
Rádio Cultura de Gravataí, em 1978, gerenciada por Rubens Wagner (apud
VAMPRÈ, 1985, p. 179). No Rio de Janeiro, a antiga Rádio Continental local
passara a integrar, igualmente, a Rede Capital.
258

No período, ainda, é redimensionada a rede estatal de serviços


radiofônicos. Além do prosseguimento de oferta do programa A voz do Brasil,
apresentado em rede nacional de emissoras, os sucessivos governos militares
introduziriam inovações importantes, mesmo que marcadas pelo autoritarismo.

Em 29 de julho de 1970, por portaria ministerial, é determinada a


apresentação de programas educacionais, de cinco horas semanais, para todas as
emissoras do país. Tais programas estariam destinados à complementação de
sistemas educacionais regulares, à educação supletiva de adolescentes e adultos e,
ainda, à educação continuada. Para atender à obrigatoriedade determinada em lei,
foi criado, pelo Ministério da Educação, o Projeto Minerva, produzido pelo
Serviço de Radiodifusão Educativa do MEC. Os programas do Projeto Minerva,
então, passaram a ser apresentados, diariamente, das 20h às 20h30min, e, aos
sábados, das l3h30min às 14h15min, com a revisão semanal. Aos domingos,
ainda, programa cultural especial, das 10h às 11h15min. Os programas eram
retransmitidos em rede nacional, a partir do Rio de Janeiro, pela Rádio MEC e
Cultura, via Embratel (Empresa Brasileira de Telecomunicações) (apud
VAMPRÈ, 1979, p. 160-161).

7.1.7 O Depoimento de Dona Marina

A secretária da Rádio Sucesso demonstra firmeza e familiaridade com


aquele pequeno escritório. Prestativa como toda secretária qualificada, Marina
logo conquista o respeito da jovem equipe que, em 1984, busca criar novo modelo
de programação em Porto Alegre. Marina Lima, na realidade, já vivenciou algo
semelhante. Agora, trabalha como funcionária de outra rádio controlada por dois
ex-colegas da Continental, Bertoldo Lauer Filho e Carlos Contursi, o “Cascalho”.

É a mesma Dona Marina, solícita e cordial, que reencontro, agora, num


fim de tarde de muito calor, no pequeno apartamento localizado na Avenida
Protásio Alves, em Alto Petrópolis. Ela é meticulosa e vai mostrando documentos.
Primeiro são algumas fotos que, inclusive, emprestara para o jornalista Lucio
259

Haeser que também faz pesquisa sobre a Continental. Depois, solicito que ela
mostre a carteira do trabalho, documento oficial e, na presente pesquisa, peça
fundamental para recuperação de algumas datas e nomes.

Através do depoimento de Dona Marina, inicialmente procurada por mim


para dar informe sobre a fase mais criativa da Rádio, outra Continental pôde ser
esboçada e, a partir dali, tivemos a certeza de que a história daquela Rádio
comportava, na verdade, o relato sobre mais de uma emissora, mesmo a
Continental sendo única. Ocorreu-nos, então, a figura de uma caixa mágica, de
dentro da qual era possível retirar-se outra menor e, depois, outra e, assim,
sucessivamente. Ocorreu-nos o mito de uma história sem fim e, por fim, a
constatação que muitos eram os nomes e feitos, em praticamente 20 anos de
história, e não somente aquela “curta década” iniciada em 1971, embora a pujança
peripecial da programação ali empreendida.

E com Dona Marina surge o nome de Jair Silva que, muito jovem, chega
ao Edifício do Relógio, levado pela própria Marina, pois se trata de um cunhado,
casado com a irmã dela. De encarregado dos serviços gerais, Jair passa a cuidar da
discoteca da Rádio que conta com cerca de mil discos, com o pessoal de
microfone pedindo, sempre, novos LPs, e o gerente lembrando que “a verba
andava curta”. Marina Lima lembra, certa vez, uma das visitas de Cauby Peixoto,
que ocorreu antes de seu LP em lançamento estar disponível na discoteca. O
cantor desceu à Rua dos Andradas, indo até a loja de discos mais próxima,
adquirindo seu próprio LP e retornando para falar e ouvir o próprio trabalho no ar.

Em 1966, assina os documentos como gerente da Continental Alan Kardec


Queiroz e Souza. Em 1970, o gerente é Tabajara Tajes. Durante todo o tempo, o
homem que representa o Sistema Globo de Rádios e faz interligação Porto Alegre-
Rio de Janeiro é Armando Queiroz, provavelmente, o mesmo negociador que
procurou Leônidas Issler, quando do problema de legalização da documentação de
posse da Continental.

Dona Marina lembra o pequeno auditório, cerca de quarenta lugares, com


programas gauchescos. A dupla Xará e Timbaúva era uma das atrações. À época,
260

Ivã Trilha, mais tarde sócio de Teixeirinha, atua na emissora; Amélia Vagner é a
responsável pelo Departamento Pessoal; Roberto Pedroso (já falecido) e o
inseparável Gilberto são os “irmãos metralhas” que trabalham na mesa de áudio.
O grupo todo ficará alarmado ao saber, no final da década iniciada em 1960, que a
planta dos transmissores, ainda movidos a óleo diesel, pegou fogo, durante um
final de semana. Na recolocação do equipamento, a Rede Globo está garantindo a
substituição por transmissores Gates, totalmente transistorizados. A Continental,
com aquela medida, estava preparada para iniciar a próxima década com melhor
som.

No ar, Gilberto Pedroso gosta quando roda a música característica de “O


Globo no Ar”, síntese noticiosa, com cerca de cinco minutos de duração,
apresentado nas horas cheias da programação. Até hoje, Pedroso, com 60 anos,
refere a qualidade técnica do então locutor-apresentador Estevão Rigel,
atualmente, juiz de direito.

De modo geral, a programação da Continental prossegue sem


inventividade, sem sucesso comercial, sem audiência. O amazonense Francisco
Mourão é mais um nome enviado pela Globo a Porto Alegre para tentar salvar a
audiência. Mourão intensifica a música na programação, tenta ampliar os serviços,
ainda muito restritos aos pequenos recados, avisos e anúncios e chega a criar um
programa infantil matinal, denominado “Meu filho é uma Graça”, onde cada
mamãe local apresentava à comunidade sua criança. A direção da Globo, no
entanto, ainda tenta localizar um melhor projeto.

Curiosamente, Fernando Westphalen chegou a atuar como locutor na


antiga programação da Continental. Segundo ele próprio, o emprego foi
abandonado porque a emissora não pagava salários.

O locutor-noticiarista Airton Duarte Kneipp, reconhecido pela qualidade


de voz e pelo domínio da língua inglesa, e o apresentador de programa de música
jovem, Clóvis Dias Costa, são dois entre os radialistas que garantem, à época,
qualidade no ar. Também por isto, são nomes que atravessarão aquele longo
261

interregno da programação da Continental, até que esta se transforme na


Superquente, a contar do verão de 1971.

Airton Duarte Kneipp, nascido em 16 de dezembro de 1939, trabalha na


nova programação da Continental, de 1971 até 1973. Professor particular de
Inglês, Airton fora rádio-ator. No futuro, torna-se policial, chegando, por
concurso, ao posto de delegado de Polícia Civil, aposentando-se em 1993, quando
trabalhava em cargo burocrático na Secretaria da Justiça.

Clóvis Dias Costa, natural de Porto Alegre, trabalha em emissoras de rádio


desde seus 14 anos. Na Rádio Continental, ingressa em 1969. Desde então, cria e
comanda programa o “Ritmo 20”, onde pesquisa e antecipa tendências em que
programa o “melhor da música jovem” internacional e brasileira. Sem
preconceitos, também, roda a chamada música de “jovem guarda” e ele será o
único com a prerrogativa de poder programar este tipo de música, a partir de
1971, quando a nova Continental terá por pressuposto não tocar sequer Roberto
Carlos. No “Ritmo 20”, o cantor é chamado de “Rei” e tem até vinheta, onde
saúda o apresentador e convida ouvinte para permanecer ligado na Continental.
Clóvis Dias Costa usava a mesma estratégia de chamamento com outros artistas e
personalidades no ar.

7.1.8 O Golpe 1964, o Adeus a Jango e Roberto Carlos

O fenômeno Roberto Carlos tem início em 1962, quando faz seu primeiro
sucesso comercial, em disco e nas rádios, com “Splish, splesh”. Aquele ano, Porto
Alegre conhece, igualmente, seu “primeiro conjunto”, modo como eram
denominadas as bandas com guitarras elétricas, geralmente integradas em
composições de três músicos de cordas, mais o baterista. Trata-se do grupo
“Apache”, considerado como a primeira banda de rock de Porto Alegre. As
primeiras bandas têm, no programa do apresentador Antonio Gabriel, na TV
Piratini, o espaço dominical para exibições. Logo, Ivan Castro, na TV Gaúcha,
também programará música jovem. Este tipo de experiência, no rádio, ao vivo, os
músicos e a população local precisarão esperar pela Continental, em 1971.
262

Nos primeiros anos daquela década, Roberto Carlos ajuda a alavancar a


indústria discográfica nacional e, também por isto, recebe o Troféu Roquete Pinto,
atribuído pela Rádio Record, de São Paulo, pela interpretação em
“Calhambeque”. No ano seguinte, Roberto repete a dose na premiação. E dá início
a programa de televisão, lançando novos produtos sob a marca “Jovem Guarda”.
Surge, na televisão, ladeado pela cantora Wanderléia e pelo cantor Erasmo Carlos,
a quem já acompanhara no conjunto “Snakes” (DOLABELA, 1987, p. 52).

O ano de 1965 é considerado, também, ano de retomada do rádio, pelos


sucessos da música jovem. Logo, a indústria cultural terá considerável aumento
dos negócios do mercado de rádio, do disco e da televisão, isto, igualmente, pela
chegada ao mercado dos artistas da música popular brasileira urbana, que
consideramos como “geração universitária”, alguns saídos de recente sucesso em
festivais de música pela televisão (SANTANA, 1986, p. 99-104). Existe uma
versão que relaciona o marco inicial do programa da “Jovem Guarda” com certa
proibição do governo militar pós-1964. Segundo esta versão, os militares não
queriam nenhuma programação de televisão, ao vivo, por medida de segurança.
Ao vivo, tudo é proibido, até mesmo transmissão de partida de futebol. Com isto,
são rompidos os contratos, a televisão fica sem atração alguma para as tardes de
domingo. Desesperados, todos passam a procurar alternativas. À época, Roberto
Carlos já fazia muito sucesso em discos e shows, sendo anunciado pelo produtor
Carlos Imperial como o “Elvis Brasileiro”. Roberto faz testes com agência de
publicidade e ganha vaga para candidatar-se ao posto de “rei do iê-iê-iê” no
programa de televisão. Essa tendência pela segmentação de audiências busca
ofertar ao jovem novos produtos e padrões de consumo.

A trágica realidade econômica do país, indiscutivelmente, havia


colaborado, intensamente, para o sepultamento da gestão nacionalista-populista
comandada por João Goulart. Bradava o presidente, pela Voz do Brasil, ainda em
1961:

[...] Vamos mobilizar o povo para o desenvolvimento, de modo


que ele tenha plena consciência de que os frutos do progresso
lhe pertencem. Vamos construir um Brasil que, mantendo as
263

características de sua personalidade como cultura, seja novo,


justo e próspero (apud IANNI, 1988, p. 104).

Entretanto, a realidade desmentia as belas palavras, pelo fracasso do


chamado Plano Trienal. Em 1963, a Voz do Brasil revelava o PIB mais baixo dos
últimos anos, cerca de 1,5%; déficit de caixa do Tesouro orçado em 500 bilhões
de cruzeiros; e inflação elevando para 78% índice geral de preços, quando prevista
ficava em 25% (TOLEDO, 1987, p. 67).

As indecisões, diante da implantação das chamadas Reformas de Base, e,


sobretudo, o acirramento de divergências políticas com setores ultraconservadores
nacionais e estrangeiros, culminaram com o fortalecimento de setores golpistas
que construíram a queda de Jango.

Quando a Continental entrar no ar com a nova programação, irá deparar-se


com uma realidade política nacional na qual está em vigor o governo militar, o
Ato Institucional nº 5, também conhecido como o “golpe dentro do golpe”,
tamanha era a truculência política. A Continental precisaria conviver, ainda, com
a Lei de Segurança Nacional, com a Lei Falcão, a partir de 1975, e com o Decreto
477, destinado a punir os estudantes e a comunidade acadêmica em geral.

Sobre o período, Gaspari registra:

Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi o seu


instrumento extremo de coerção e o extermínio, o último
recurso de repressão política que o Ato Institucional nº 5
libertou das amarras da legalidade. A ditadura envergonhada foi
substituída por um regime a um só tempo anárquico nos
quartéis e violento nas prisões. Foram os Anos de Chumbo
(2002, p. 12).

7.1.9 Essa Gente e a Mania, o Disco

A tardinha de todos os dias existe um grupo da população


metropolitana que freqüenta as lojas de discos. São os
discomaníacos, sem sexo e idade determinada.[...]
Na cabine de uma loja três jovens escutam o último long-
play dos “Mutantes”. Ao lado um senhor idoso escolhe o
clássico de sua preferência. Não discutindo os gostos, as
264

balconistas esperam efetuar suas vendas. Às vezes, entram em


frias, são os chamados “balõezinhos” ou “fregueses frios” que
apenas querem escutar os seus ídolos preferidos. [...]
A novela “Antônio Maria” faz com que muitas senhoras
adquiram gravações dos fados de Portugal. A música clássica
tem um grupo de compradores certo: [...]
Êste grupo é composto de pessoas de certa idade e
intelectuais. [...] Teixerinha (sic) também tem comprador certo.
[...] Além do Teixerinha (sic) outros componentes do grupo
regionalista não ficam muito atrás nas vendas. [...]
A preferência do público jovem continua sendo o ié-ié-ié.
“Beatles”, cantores do sul dos Estados Unidos são a grande
pedida do momento. Neste grupo salientam-se os negros: Dione
Warwick, Aretha Franklin, Jonnhy Mathis e Wilson Pickett que
está aparecendo com uma gravação de “Hey Jude”.
“F... Comme Femme” é um dos sucessos do momento. Êste
veio da França, através de Adamo, e divulgado pela novela
“Beto Rockfeller”. A Itália ainda está vendendo bem, com base
no Festival de San Remo e sua premiada “Zingara”, gravada por
Bobby Solo.
Os brasileiros passaram a vender muito com a chegada dos
“Mutantes”. Êles (sic) são sucesso em qualquer ponto da
cidade. Também Sérgio Mendes, radicado nos Estados Unidos,
é um dos mais vendidos. Além estes os que mais vendem são a
“divina” Elizete; o pilantra Simonal; o rei Roberto Carlos; a
tropical Gal Costa e Betânia, irmã de Caetano.
A música popular brasileira tem como maiores compradores
os universitários. Um outro grupo jovem prefere Altemar Dutra,
Agnaldo Timóteo e Vanderlei Cardoso. O long-play está
custando NCr$ 14,00; o compacto duplo − NCr$ 6,00 e o
simples NCr$ 4,00.
Aos poucos as gravações em fitas magnéticas estão entrando
no mercado. Existem dois tipos: cassete e cartuchos. Os preços
variam entre NCr$ 30,00 e NCr$ 35,00. A aquisição destas em
sua maioria é feita por adultos.

O texto acima editado é do jornalista Décio Presser, publicado no caderno


especial “Fim-de-semana”, da Folha da Tarde, dia 3 de maio de 1969, página 10.
Como documento de época, revela o intenso agendamento entre os diferentes
produtos e mídias. A presença do jovem, tanto na produção musical como no
consumo. A presença do estrangeiro “naturalizado” no espaço ambiente daqui
pela ação das mídias. E, quanto ao âmbito local, neste já se fazia o registro de
preferências pela música regionalista múltipla, mas a grande ausência, ainda,
estava com a falta da produção da música popular urbana gaúcha. Para a época,
1969, esta produção já aparecia, mas somente em shows modestos e palcos
265

universitários para públicos diminutos. Entretanto, logo, a Continental entraria no


ar com a nova programação, ampliando esta produção musical para massa e, na
continuidade, as lojas de discos da cidade já estariam oferecendo Hermes Aquino,
Inconsciente Coletivo, Almôndegas, Gilberto Travi, Fernando Ribeiro, entre
outros, gravados pelos selos como Odeon, Continental, Tapecar, EMI e,
futuramente, também, pela gravadora gaúcha ISAEC. Antes disto, quando a nova
Continental já está no ar, o país abandonou a moeda denominada cruzeiro novo,
passando a ser, apenas, cruzeiro.

7.1.10 “Na Caiçara, a música não pára”

Analisados a distância, os dados do IBGE, referentes à radiodifusão,


parecem estimulantes para oportunidades de empreendimentos no setor, naquele
início de década, a partir de 1960. Porto Alegre tem cerca de 140 mil domicílios
com aparelhos de rádio receptor, que totalizam cerca de 116 mil unidades, isto é,
mais de 30% dos rádios em todo o Estado. Mais de 83% dos lares porto-
alegrenses têm rádio. Esses dados batem a média gaúcha que é de cerca de 52%, e
a brasileira, de somente 35,4%. Não se sabe se Victor Issler, ou mesmo Roberto
Marinho, ou alguém da Rede Globo, tenha tido acesso aos dados. Provavelmente,
tanto a inauguração, em 1962, por Issler, quanto a aquisição, em outubro de 1963,
por Marinho, tenha sido, cada um a modo próprio, empreendimento de
oportunidade.

De qualquer modo, Porto Alegre chega, na abertura da próxima década,


praticamente, com cobertura universal de aparelhos de rádio por domicílios. E a
população, em 1970, soma 885.545 habitantes, segundo dados de pesquisadoras
da UFRGS (SOUZA; MULLER, 1997, p. 545). Segundo o Anuário Estatístico
do Rio Grande do Sul de 1970, publicado pelo Departamento de Estatística da
Secretaria de Coordenação e Planejamento, Porto Alegre, tinha 640 mil
habitantes, em 1960, e 903 mil habitantes, em 1970).
266

Enquanto a Continental chega àquela data sem ter melhor definido o


projeto radiofônico próprio, o crescimento urbano e populacional porto-alegrense
enseja nova proposta de programação segmentada, desta vez, resultado do
empreendimento de uma emissora comercial.

A programação segmentada, na radiofonia gaúcha, já havia sido produzida,


pela primeira vez, por uma emissora pública estatal. A Rádio da Universidade da
UFRGS tornara-se a pioneira gaúcha com programação para público segmentado,
no ar desde 18 de novembro de 1957, quando passa a transmitir, com regularidade
e exclusivamente, programas educativos, culturais e musicais eruditos. Aquela
segmentação específica não é adotada de modo pacífico pela instituição e ocorre
por determinação superior hierárquica, após pugna política. A Rádio, de qualquer
modo, nascera pelo idealismo e vontade de alunos e professores junto à Escola de
Engenharia, em 1952, tendo o funcionamento oficial retardado por questões
burocráticas e políticas, conforme declarações do radialista Vergara Marques, ex-
locutor e diretor da instituição (RADIODIFUSÃO no Rio Grande do Sul, 1992, p.
111).

Este pioneirismo da Rádio da Universidade, igualmente, amplia-se, sendo


esta a primeira emissora universitária de todo o Brasil. Este fato é importante para
o projeto da Continental, em especial, por apontar duas motivações, ambas como
sinalizadores importantes: o primeiro sinalizador diz respeito à própria
segmentação, centrado na oferta majoritária de música, isto é, indica que Porto
Alegre, já faz algum tempo, pode sediar uma emissora exclusivamente musical; o
segundo, importante, aponta para o público, isto é, a Rádio da Universidade,
mesmo sem ter grandes índices de audiência, atua a serviço do público
universitário porto-alegrense que deseja e necessita ouvir rádio.

Por fim e fundamentalmente, conforme nossa avaliação, a Rádio da


Universidade opera, no contexto, como espécie de “interpelante externo”, ao
apontar para a Continental a necessidade ou oportunidade de um contramodelo, na
oferta cultural e de mercado do rádio. Isto é, o projeto da Continental será de
segmentação musical, terá o universitário como público importante, assim como
267

musicalidade e voz para falar com o jovem, em linguagens totalmente


diferenciadas do modelo da Rádio da Universidade.

No início de 1970, outro modelo de programação segmentada se esboça e


começa a surgir com aquele outro tipo de sinalizador importante, outra emissora-
limite, outro tipo de “interpelante externo” para o projeto Continental. Trata-se da
Rádio Caiçara, cujo projeto não tem como público a elite universitária porto-
alegrense. Pelo contrário, a programação destina-se ao chamado público C-D,
conforme denominação de uso corrente, em agências de publicidade e
propaganda, quando querem referir público de baixa renda e poder aquisitivo.

Igualmente, centrando a programação na oferta musical, a Caiçara, logo,


alcança enorme popularidade, num ambiente de raras ofertas de música da
atualidade e para aquele público específico.

Sob o slogan “Na Caiçara, a música não pára”, aquela programação


podia ser compreendida como de tipo popular-popularesca, por rodar, sobretudo, a
chamada, então, “música marca diabo”, denominada, também, como “música
brega”, destinada às donas-de-casa e às empregadas domésticas. Na realidade, o
público da Caiçara era amplo, massivo, e a programação incorporava artistas
populares, indistintamente. Havia, contra a emissora, sua programação e ouvintes,
certo elevado preconceito de classe na configuração interpretativa daqueles atores.
A Continental, inclusive, a contar da existência da Caiçara, nasceria com o
propósito explícito de ser uma emissora que não tocava “música marca diabo”.

De qualquer modo, a aquisição da Rádio Caiçara significava a


implantação de projeto inovador de rádio comercial de programação segmentada,
antecipando-se, no tempo, a percepção de demandas específicas quanto às
carências e necessidades das audiências de rádio popular em Porto Alegre. E, na
proposta de programação, articulada ao público ouvinte selecionado, aquele
projeto da Caiçara será outro pólo cultural, em contraposição à Rádio da
Universidade e, logo a seguir, de referência para a diferenciação quanto à Rádio
Continental.
268

Bacharel em Direito pela UFRGS, Otávio Dumit Gadret assume o controle


acionário da endividada Rádio Caiçara, no dia 6 de agosto de 1970, pagando pelo
negócio a quantia de 350 mil cruzeiros, a prazo. A Caiçara, inicialmente, tem
apenas 250 watts de potência e sofrível qualidade de som. A partir do sucesso
comercial da Caiçara, no entanto, Gadret dará início à Rede Riograndense de
Emissoras, ao adquirir a Rádio Pampa. A partir de 1972, a Continental ganha a
companhia daquela que seria a maior concorrente direta, ao longo de toda a
década. Trata-se da disputa do 1120 contra o 1200 no dial. Continental e Pampa
são vizinhas físicas, também, no Edifício do Relógio, na Andradas, 1155.

Gadret não será apenas duro concorrente da Continental. Em nossa


opinião, ele unirá um excepcional senso de oportunidade como empresário a uma
diferenciada paixão pessoal pela experiência da Continental, uma paixão atuante.
Em 10 de novembro de 1992, nasce a Rádio Continental FM, nome fantasia
registrado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial, com a razão social de
Pampa Rádio Difusão Limitada. Em entrevista para o Autor, Gadret deixa claro
não entender que haja relação entre o projeto da Continental original e a atual FM.
A opção pelo nome, revela, deveu-se a acionamento de “marca forte que caiu em
desuso” e concorda, quando opinamos que a utilização do nome fantasia
Continental, em FM, hoje, busca resgatar ou conquistar o público da antiga
emissora.

Gadret terá protagonismo importante, ainda, no epílogo derradeiro da


Continental AM, participando de eventos que provocam um verdadeiro
palimpsesto eletrônico, a partir das negociações e trocas, envolvendo o Sistema
Globo de Rádio, a RBS e a Rede Riograndense de Emissoras.

7.1.11 No Ar, o “Som Nosso de Cada Dia”

Quando menino, Judeu era levado pelo velho pai para assistir os jogos do
Grêmio, no glorioso Estádio da Baixada, onde, hoje, está o Parcão do bairro
Moinhos de Vento. Fernando acompanhava o pai de bom grado, feliz, mesmo.
269

mas as atenções do garoto estavam fixas fora das quatro linhas do gramado verde
e do jogo de futebol. Acontece que, das arquibancadas da antiga Baixada, era
possível avistar os cavalinhos correndo no Prado antigo.

Aquelas cenas surgem em flashback. Agora, estamos em dezembro de


1970. Faz muito calor em Porto Alegre. E, adulto, Judeu arruma suas malas.

É com alegria de menino que Fernando Westphalen está viajando para o


Rio de Janeiro, de onde pode regressar até de mãos vazias. Ele está nervoso, e o
motivo está no importante negócio que irá tratar. Ele leva somente uma certeza no
bolso do casaco: além da negociação agendada com importantes gerentes do
Sistema Globo de Rádio, onde tratará do futuro da Continental, Judeu vai assistir,
com certeza, ao Grande Prêmio Brasil, no Hipódromo da Gávea. Sob hipótese
alguma, aquela será uma viagem qualquer, sem deixar marcas, para Fernando
Westphalen.

Quando Judeu volta a Porto Alegre, está começando a se alterar a história


do rádio no dial da cidade.

No Rio de Janeiro, ele fez a explanação do projeto da Rádio que


imaginara, ainda como homem do Departamento de Rádio e Televisão da MPM
Propaganda, de longe, como gostava de informar, a maior agência gaúcha à época.
A idéia era aproveitar o fato de o rádio, naquele momento, já estar segmentado
por audiências específicas, como a dona-de-casa, a empregada, o pai-de-família,
cada um destes sujeitos sociais com emissoras e programações correspondentes.
Mas quem atendia o jovem estudante? E quem fazia rodar toda a musicalidade
brasileira e internacional disponibilizadas pela indústria discográfica, mas sem
exposição de oferta nas emissoras de rádio locais? Judeu tinha certeza que havia
espaço para “uma rádio que conversasse com o jovem”, que desse a ele os novos
conteúdos em novas formas atualizadas.

Judeu não sabia de tudo aquilo que a Globo iria aceitar e temia, sobretudo,
naquilo que proporia, isto é, as excelentes condições de contrato para o futuro
diretor e para o vice da nova programação da Continental. Na conversação, a
Globo foi aceitando, uma a uma, as solicitações levadas por Judeu.
270

Até chegar à Globo, muito antes disso, Judeu fora procurado por
representantes de Roberto Marinho, em Porto Alegre. A Globo queria vender a
Continental. Porém Judeu não tinha capital e, entre seus amigos, ninguém topou
fazer negócio. O projeto, que indicava uma programação segmentada para o
jovem que pensa, Westphalen já desenvolvera, em parte. A nova rádio seria “para
o jovem que pensa” e seria “uma rádio que faria o jovem pensar”, isto é, ele
queria uma “rádio inteligente”.

A primeira e grande alternativa para parceria, Judeu visualiza em Antônio


Mafuz, diretor-presidente da poderosa MPM, amigo e chefe, que, todavia, refuga
a possibilidade de proposta. “Quem é agência, não pode ser veículo. Não podemos
misturar as coisas”, ensina Mafuz. Fernando, ainda, busca amigos na praça, mas
ninguém tem dinheiro disponível. Volta ao interlocutor da Globo, em Porto
Alegre, e lhe propõe arrendar a Continental. A Globo nega: ou vendem ou não
vendem a Rádio; o negócio por arrendamento não interessa.

Meses depois, reaparece representante da Globo na MPM, e o homem,


com ênfase e pressa, faz o convite para uma viagem ao Rio de Janeiro..

Lá, Westphalen está partindo de uma pedida salarial básica, idêntica


àquela que recebe da MPM. A Globo concorda. No entanto, ele quer, também,
receber algo em comissão. Judeu solicita receber comissão de 10% sobre o
faturamento total recebido, e a Globo concorda. Então, diz Fernando, ele chega a
perturbar-se, pois estavam aceitando todas as condições encaminhadas. E estas
eram ótimas. “Aí, eu falei. Ah, mas eu preciso de um cara para trabalhar comigo.
E ele está muito bem lá na Rádio Guaíba e tal. E eu preciso dele. E teria que dar
5% de comissão pra ele. Tudo bem?” “Não, tudo bem”, dizem eles. “Aí eu digo:
Olha, preciso um cara para o comercial, para vender a rádio, com 5%, idem”. E
eles topam. O cara da Guaíba era o Marcus Aurélio Wesendonk. Mas o comercial
eu nem sabia quem seria. Viria a ser o Luiz Eduardo Moreira. Mas, ali, eu estava
tentando garantir para aquele cargo mais 5%, que a Globo aceitou. Foi bom
demais”, refere contente, até hoje, Westphalen.
271

O retorno para Porto Alegre é sem contrato, ainda, mas fica tudo acertado,
apalavreado. Fernando está em Porto Alegre à procura de um advogado para
ajudá-lo. Está feliz, com pressa e “louco de medo” com tudo aquilo. O advogado
escolhido é Ronaldo Glaciester, primo de Fernando.

Estamos em dezembro de 1970. Está tudo certo. Fernando entra em férias


na MPM e começa a trabalhar na Continental.

“Lá, comecei a tomar conhecimento de uma situação horrível, que eu nem


imaginava... Então, a partir de março nós começamos já com algo novo, mudando
a programação. Mas um negócio meio... de passagem. A Rádio não tinha nada,
nada, nada. E o pior. Não tinha nem crédito”, confessa Fernando.

O estúdio principal estava, literalmente, quebrado. “À época, havia o


sorteio do Bolão do Grêmio, uma promoção de carnês. Negócio do David Berlin.
Toda a sexta-feira, final de tarde, os caras faziam o sorteio direto do Largo dos
Medeiros, na esquina da Andradas, com bandinha a mil. O som da bandinha saía
no ar. E a Rádio estava no quinto andar...”. Mas, os problemas não eram somente
de ordem física. Dizia respeito à programação em conjunto. Faltavam nomes e
atrações em programas. E havia a falta total de recursos para contratação, ou,
pior, antes disso, havia falta de dinheiro para fazer a exoneração dos que
necessitariam sair.

Mantivemos poucos, e destes, um ou dois, coisa triste, descobri


depois que um locutor era agente do DOPS. Mas mantive ele
porque era um sujeito letrado, sabia inglês, era professor de um
cursinho, e tinha boa voz, com razoável naturalidade que, para a
Continental, era importante. Também ficou o Tupinambá, que
era bom repórter, uma figura o Tupinambá Azevedo, que depois
virou juiz.
A antiga programação da Rádio era aquela coisa... Tinha às 10
horas da manhã programa de rezador desses que o cardíaco
colocava a mão em cima do rádio para curar... Tinha um
programa de música caipira-gauchesca, um troço maluco. Tinha
patrocínio de uma cachaça. Enfim, era um horror.

Mas Westphalen afirma que a Rádio, à época, já tinha uma grande virtude:

Graças a um incêndio que ocorrera nos transmissores, a Globo


precisou comprar um transmissor novo. Então, a Continental era
a única emissora gaúcha que tinha um equipamento
272

transistorizado de última geração, um transmissor Gates, que,


na época, era o top de linha.

A partir de um acidente, no caso, o incêndio, e contando com o poder


aquisitivo de grande porte sustentado pela Globo, a Continental se equipava para
vir a fazer o “som nosso de cada dia”.

Declara Westphalen, com convicção:

O nosso objetivo era fazer a Rádio para o jovem, o jovem


letrado. Não havia nada parecido com isto na cidade. Eu não
queria o jovem fã da Jovem Guarda, os que apreciavam o
Wanderlei Cardoso, o Jerri Adriani, aquela turma que me
parecia de menor nível cultural, estes não interessava. Tanto
assim que a Rádio anunciava isto, para marcar posição. Eu
queria o público universitário. Eu, inclusive, brincava com o
pessoal: ‘Quando a minha sogra passar a ouvir a Rádio, eu teria
que mudar a programação’.

A ambição estava em conversar com o jovem, mas era, sobretudo, criar no


rádio esta linguagem do jovem. Quando isto é parcialmente atingido, em meados
de 1971, começa a surgir, em nosso entendimento, a paidéia Continental.

As soluções começam a ser esboçadas. Amigos profissionais são


acionados: são os casos relevantes de Aldo Caye, o Agente 1120 e Luiz Fernando
Veríssimo, entre outros, sobretudo, jovens publicitários. As vinhetas, as
narrativas-slogans, inicialmente, são para prestar serviço e fazer alguma graça.
Logo, porém, tornam-se enorme sucesso e muito auxiliam na fixação inicial da
Continental no imaginário da cidade. Mesmo as categorias de não-ouvintes, por
conservadorismo, por falta de hábito, etc, costumam referir aquela estratégia
enunciativa inaugural, depois preservada e aprimorada, da Continental.

Para Westphalen, como já dito, a questão permanente da Continental está


não apenas em estabelecer conversação com o jovem, mas criar a linguagem para
o jovem, também. A essa questão se somam os problemas técnicos, específicos.

Westphalen rememorando estratégias, diz:

Tivemos de fazer a Continental numa posição horrível do dial.


O rádio, em Porto Alegre, terminava, depois de passar os 900, e
ali já era a Itaí. O dial terminava ali e não terminava com o
273

público que nós queríamos. Por isso, fizemos coisas que eram
para marcar, mesmo que não fossem para durar.
Então, era necessário fazer a turma chegar até nós. Aí, usamos
nossa inventiva. Ousamos. Precisamos ousar e criar tudo ao
nosso alcance e, aí, foi uma grata surpresa, pois o pessoal de
criação, o pessoal das agências começou a colaborar e enviar
coisas novas, pegar junto.

Assim, desde o início da nova Continental, as peças publicitárias começam


a aparecer integradas ao global da programação. Este diferencial criava, também,
a nova categoria de jovem ouvinte de publicidade. Além de dar início a uma
identidade de voz autoral para a produção, a publicidade da Rádio dava condição
de projeção identitária para os novos e jovens ouvintes.

Na medida em que o sucesso comercial ocorre, pela proposta de certa


iconoclastia e irreverência, torna-se a Continental alvo preferencial do
pensamento conservador. No radiojornalismo, como na programação musical,
trata de driblar proibições. Assim, quando a Censura Federal proíbe,
explicitamente, todas as emissoras de rodar a música “Apesar de você”, gravada
pelo Autor, Chico Buarque, a Continental inventa solução e programa,
fortemente, a apresentação da mesma música, apenas gravada por Beth Carvalho,
que não estava proibida... Em 1973, noticia com primazia o golpe contra Salvador
Allende, por interessar-se pela questão contra Pinochet, enquanto as demais
emissoras, inicialmente, ficam impassíveis diante do ocorrido. Novamente,
quando da morte de Jango, em 6 de dezembro de 1976, silencia, porque havia
proibição para não comentar o fato, mas, a seguir, percebendo uma brecha, pois
não havendo proibição alguma, noticia, praticamente, durante todo período, o
convite para missa de sétimo dia de falecimento do presidente, fazendo daquilo
acontecimento político na cidade que lota a Catedral Metropolitana.

Para o Sistema Globo, do ponto de vista gerencial, administrativo e


financeiro, também, iniciava novo período, sem a obrigatoriedade de injetar,
regularmente, recursos, no final do mês. Logo, a nova Continental torna-se
superavitária, como jamais estivera.
274

Estava terminado, embora não para sempre, o fluxo inicial de idas e vindas
de gerentes temporários, chegados do Rio de Janeiro, como Alan Kardec Queiroz
e Souza, em 1965, Gilvã Portela, entre outros, finalizando com a gestão de
Tabajara Tajes, em 1970. Armando Queiroz, o homem de ligação entre a Globo,
no Rio e Porto Alegre, igualmente, passava a ser menos exigido. Antes do novo
projeto, a Continental chegou a ter cerca de 50 funcionários. Agora, sob a nova
direção de Westphalen, chegará a contar com grupo de cerca de 30 colaboradores,
bem remunerados e com pagamentos em dia.

Armando Queiroz é figura ímpar em toda a história da Globo. Ele é citado


desde os depoimentos de Leônidas Issler, como o representante de Roberto
Marinho, para desembaraçamento de documentos legais de aquisição e registro da
Rádio. Será, depois, um suporte carioca para ação da Rádio durante longa fase de
gerentes temporários, no período que a Continental não tem projeto nem sucesso.
Queiroz, igualmente, é o homem da Globo que, tendo conhecimento do interesse
primeiro de Fernando Westhphalen, vê, na figura do radialista-publicitário,
capacitação para liderar processos na nova programação. Chega a oferecer
emprego na Globo, que Westphalen recusa, antes do acerto para ser diretor
comissionado na nova Continental. Ainda, Queiroz, hoje já falecido, será referido
por Westphalen como homem que sempre respaldou o projeto da Continental, sob
sua direção, fazendo valer, primeiro, o acordo de cavalheiros e, depois, o contrato,
cumprido na íntegra por ambas as partes. Armando Queiroz é um importante
nome como gestor da Globo, recuperado, na ação da pesquisa, pelos depoimentos
de Leônidas Issler, Marina Lima e Fernando Westphalen.

7.1.12 Horóscopo da Pesada

Entre as peripécias da Continental estava criar estratégias de visibilidade e


de acontecimento. O problema não estava na potência, sempre constante, em 10
quilowatts. Não havia problema, tampouco, com a qualidade do som, melhorada
desde a instalação de transmissores Gates e, igualmente, bem-formatado pela
transmissão em FM, através de link entre os estúdios e a torre de transmissões.
275

Este ganho pelo uso da FM seria, posteriormente, proibido pelo governo, a partir
de 1974, quando surgem as primeiras emissoras totalmente operadas em
freqüência modulada.

A nova programação não contava, porém, com verba publicitária para


campanha de lançamento e sustentação. A Rádio, embora afiliada da Rede Globo,
não dispunha de rede de mídia integrada, com reforço em outros suportes, como
jornal impresso ou televisão.

Mal-localizada no dial e, praticamente, desconhecida do público, buscava


marcar, na própria programação, a solidificação de alternativas inéditas para
sensibilizar e tornar massiva a audiência desejada. É na busca destes novos
formatos, novas linguagens e, a partir destas, novos ouvintes, que nasce o
chamado “Horóscopo da Pesada”.

O rádio gaúcho, não era a primeira vez, consagraria uma dupla de


realizadores fazendo humor. Ainda recentemente, ouvíamos Pinguinho e Walter
Broda, ambos notáveis humoristas de microfone e auditório. Agora, tratava-se de
uma dupla formada por um experiente e competente redator e por outro colega,
igualmente qualificado, como apresentador do programa. Eloy Terra e Ferrnando
Westphalen traziam, como diferencial deste “Horóscopo”, novos achados da
linguagem paródica e forte crítica política embutida nas mensagens. O programa
era uma criação deliberada para marcar a personalidade da Continental, junto ao
público, para marcar, pelo humor e pela contestação, mesmo que esta fosse
efêmera. Vivíamos tempos de governo Médici.

Logo, o programa obteve sucesso, embora viesse a ter curta temporada de


existência no ar e, conforme a previsão, ganharia notabilidade, com espaço nas
falas livres pelo centro da cidade, candidatando-se à transformação em lenda
urbana. A Censura Federal, de certo modo, contribuiu com isto, no entanto, da
mesma forma, pela truculência do regime censor, terminaria inviabilizando a
continuação do programa, segundo opinião de Fernando Westphalen.

Eloy Terra foi contratado, exclusivamente, para redigir o “Horóscopo” na


Continental, lá estando entre agosto de 1971 e janeiro do ano seguinte, período
276

efêmero, também, da duração do programa no ar. Eloy avalia, hoje, que a


Continental não apenas inovou na linguagem. Ela retirou do ar o “Boa Noite,
Senhores ouvintes” e colocou o “Ouve esta, ô cara”, entre outras expressões de
informalidade, possibilitando verdadeira revolução no rádio gaúcho, no
entendimento de Eloy.

Afirma Eloy em depoimento para o Autor:

A Continental buscava um escape, uma porta de saída, para


poder falar de política junto ao seu público. Nada melhor do que
o horóscopo, espaço para a linguagem simbólica, onde
podíamos falar do governo Médici. Nascia, assim, o Horóscopo
da Pesada.

Segundo ele,

através de pseudopresságios, fazíamos críticas contundentes aos


fatos daquele momento. Havia o pseudo-autor que era o
maléfico Dr. Silvana, como é sabido, aquele eterno inimigo e
malfeitor do Capitão Marvel. Já o pseudo-apresentador era o
Professor Hermano Cano, guru interpretado por Fernando
Westphalen.

No “Horóscopo”, Judeu vivia, ainda, doze outros pequenos personagens


típicos, como o Português, o Nordestino, o Homossexual, o Batuqueiro, o
Castelhano, entre outros.

Afirma Judeu que

Hermano Cano surgiu como nosso deboche ao presidente do


Hudson Institute, Herman Kann, guru para forças conservadoras
brasileiras da época. Fizemos o programa sabendo que não iria
durar. E não durou porque a Censura Federal passou a pedir os
textos previamente, vetava tudo e, então, devolvia em cima da
hora, deixando a gente no pincel.

“Herman Kann, entre outras preciosidades, afirmava que o Brasil não tinha
petróleo. E que o petróleo existente era de baixa qualidade, isto já existindo a
Petrobrás desde Getúlio Vargas...”, complementa Eloy.

A dupla, intimada para prestar depoimentos na Polícia Federal, ainda pôde


criar o décimo terceiro signo, relativo aos “maus presságios”, à opressão, e aos
dias cinzentos. Era denominado o “Signo de Arruda”, coincidentemente, o
277

sobrenome do agente da Polícia Federal encarregado de gravar, diariamente, a


edição do “Horóscopo da Pesada”. O programa fez paródias, fez humor e crítica
política durante cinco meses.

7.1.13 O Agente 1120

Descendente de espanhóis, filho de pai músico, órfão aos 10 anos, Aldo


Caye voa, freqüentemente, para a já familiar Madri, numa invejável rota
profissional, que inclui Paris, Lisboa e Roma. Não podendo tornar-se músico, o
jovem nascido no bairro Caminho do Meio, porto-alegrense, em 9 de junho de
1932, será comissário de bordo da Varig e, sobretudo, amará a música por toda a
vida. Por cultivar muito bem essa relação, tornar-se-á o famoso Agente 1120, de
relevantes serviços prestados para a Continental e seus ouvintes.

Cedo, Caye tornara-se “guaibeiro”, termo designativo dos aficcionados


radioamantes da Rádio Guaíba de Porto Alegre. Chega, inclusive, a presentear o
apresentador Osmar Meletti com o primeiro disco “compacto” gravado pelos
Beatles e apresentado por Meletti, em primeira mão, no programa “Discorama”.

No entanto, quando Fernando Westphalen, amigo de juventude, muda de


endereço profissional, Caye muda a posição do ponteiro no dial e reserva novo
espaço para outro amor no coração de ouvinte. Mesmo aposentado, a partir de
1977, residindo na praia do Imbé, Caye ouvirá, com muito gosto, diariamente, a
Continental do também compadre Judeu. Caye e a esposa, Susana, batizaram o
filho de Westphalen.

É recatado em questões políticas, primeiro pela condição profissional de


aeronauta, depois, devido à dureza dos anos de chumbo da ditadura, mas sente
uma alegria incontrolável, aproxima-se para fotografia histórica, quando, certo
dia, ocorre de transportar Leonel Brizola, ainda no exílio. O Agente 1120 era
brizolista convicto.

Quando a Continental inicia a nova programação, Caye passa a trazer a


cada viagem, movido pela amizade e gosto pela música, sempre os mais recentes
278

sucessos internacionais. Aquela atividade tem continuidade, quando o comissário


passa a voar, também, para Los Angeles e Nova Iorque. No exterior, procura pelos
músicos brasileiros lá residentes, como Sergio Mendes e Luiz Bonfá e, de volta a
Porto Alegre, a cada semana, brinda ouvintes com sons raros e novíssimos,
rodados sobretudo dentro dos programas “Disco de Ouro” e “Cascalho Time”.

É graças ao Agente 1120, por exemplo, que os ouvintes de Porto Alegre


ouviriam, antes mesmo de milhões de norte-americanos e europeus, sucessos de
John Lennon, como “Imagine” e “Happy Xmas” (War is Over), rodados pela
Continental, na mesma semana de lançamento nos Estados Unidos. Igualmente,
com absoluta primazia, trouxera “Power to the People” que, durante anos, se
transforma na música característica do programa “Ritmo 20”, de Clóvis Dias
Costa.

O esquema era extremamente simples. O Agente 1120 trazia as recentes


edições das revistas Cash Box e Billboard, Judeu selecionava o que podia
interessar dos lançamentos e Caye, já na próxima viagem, adquiria os discos e
trazia direto para a Continental.

Assim, Aldo Caye foi fundamental para a consolidação da Continental


como emissora pioneira em ofertar lançamentos musicais internacionais em Porto
Alegre. A partir de uma simples articulação, num período quando as novidades
musicais da indústria do disco demoravam meses para chegar, o Agente 1120
furava o bloqueio pela sua condição de aeronauta, e, sobretudo, pelo gosto
musical apurado e pelo desejo de fazer tocar boa música na aldeia de nascimento.

Aldo faleceu em 1995, conforme revela na entrevista para o Autor a


esposa, Suzana Ilse Sperb Caye. Já o Agente 1120, viveria para sempre na
memória dos ouvintes da Continental.

7.1.14 Luís Fernando Veríssimo

O renomado cronista é, certamente, outra personalidade importante a dar


forma ao que intuímos como paidéia radiofônica da Continental, tanto para o
279

grupo da produção, como para a instância da recepção. Ele se junta a outros, como
o Agente 1120 e o crítico de cinema Hiron Goidanich, que passam a encorpar a
Continental, dividindo as aprendizagens e convivências cotidianas. Ao construir-
se como rádio de expressão para a juventude, a Continental torna-se pólo para
formação destes ouvintes, e, igualmente, referência para o grupo profissional que,
mais do que em torno dela gravitam, verdadeiramente, comungam estilo de vida,
proximidades existenciais e, claro, compartilham o saber técnico necessário para
qualificar a programação da Rádio. Em 1972, Milton Nascimento estava lançando
o álbum “Clube de Esquina”, paradigmático para a emissora, como constatamos.
Idéia semelhante à propagada pela obra de Milton, de resto, produto de uma ação
coletiva de amigos situados no fazer musical, torna-se parâmetro para existência
real da Continental.

Veríssimo era colega do Judeu, na MPM Propaganda, onde trabalhava


como redator. As crônicas, no ar, eram lidas no horário do meio-dia pelo próprio
Judeu.

Trazidas por um boy, ou pela esposa Lúcia, ou, raramente, pelo próprio
Luís Fernando, as crônicas, inicialmente, eram gastronômicas, mas, logo, pela arte
de Verissimo, tornaram-se de assuntos diversos. No período mais censurado da
Rádio, as crônicas passam a ser enviadas, previamente, para análise na Polícia
Federal, tornando o processo de produção mais moroso.

Em entrevista para o Autor, Verissimo, assim se reporta às crônicas para a


Rádio: “Eram textos de cinco minutos sobre qualquer assunto. A diferença para os
textos impressos era, obviamente, a ausência de diálogos”. Sobre a memória
daqueles textos, revela que a esposa, Lúcia, durante algum tempo, ainda guardou
alguns, mas precisaria uma averiguação atual, para reencontrar algum texto. Com
certeza, não lembra de nenhum exemplar gravado. Sobre a censura, indica uma
passagem: “Lembro de um texto censurado, porque falava na teoria da evolução,
do Darwin. Talvez tenham pensado que eu falava, disfarçadamente, dos militares,
quando citava nossos ancestrais, os orangotangos”. Verissimo não lembra de
muitos textos sendo censurados, mas aponta outro, feito sobre o Chico Buarque:
“O programa tinha trilha de abertura com interpretação solo de Paul Desmond no
280

sax-alto. A música era rodada em todo o espaço quando, eventualmente, nenhum


texto podia ser apresentado”.

Veríssimo, ao contrário do pai, o escritor Erico Verissimo, que gostava de


escrever ouvindo a Rádio da Universidade da UFRGS, nunca conseguiu trabalhar
ouvindo som. “Para mim, ouvir algo significa ligar o som e parar para ouvir”. Na
pressa cotidiana, ele ouvia a Continental, à época, sobretudo, quando se deslocava
no carro, num processo brando e fluido de escuta, e julga que o sucesso da
emissora esteve na “linguagem descontraída, como se dizia na época, na
irreverência e no bom humor em geral”, avalia.

7.1.15 “Cascalho”

Antônio Carlos Contursi marcou nome no radialismo gaúcho como DJ da


Continental. Primeiro, ele foi “Bier Boy”, mesclando o nome do patrocinador
(lojas Bier, de vestuário masculino) à inspiração no mais famoso DJ do rádio
brasileiro, então, “Big Boy”. Mas “Cascalho” refere Glênio Reis, precursor da
Jovem Guarda na cidade, com seu programa GR Show e DJ Paulo Diniz, através
do programa diário na Rádio Cultura, como influências locais para a moldagem
de estilo próprio.

“Cascalho” inicia, na Continental, em maio 1970, antes da nova


programação trazida por Westphalen. Clóvis Dias Costa e ele inovam, no dial,
que, logo, será todo uma oferta única de rádio para jovens. Em 1971, “Cascalho”
parte em busca de patrocinador mais adequado ao público jovem, e a oportunidade
chega pela parceria com a marca “cola” mais popular entre os gaúchos, então, a
Pepsi.

“Cascalho” conhecera Victor Issler, fundador da Continental,


correligionário político de seu pai. “A família morava num palacete no Morro
Ricaldone”. De memória, “Cascalho” refere 1967 como o ano de venda da
Continental para a Globo. Na realidade, a data de negócio diverge daquela dada
pelo filho de Issler, Leônidas. Dona Marina Lima, por sua vez, refere 1965.
281

Provavelmente, as datas aludidas em desencontro referem àquilo que Leônidas


indicara como a necessidade de reformulação de contratos entre Issler e a Globo.

De qualquer modo, com a participação do homem de marketing da Pepsi,


em Porto Alegre, Sergio Schüller, “Cascalho” assina contrato de publicidade com
a Pepsi, sendo represente dos norte-americanos, ali, Lauro Frederich. Assinado o
novo contrato de patrocínio, faltava trabalhar a marca do novo DJ no ar:
“Cascalho”.

A marca de irreverência do nome vinha de outra situação familiar do


passado. O apelido de casa era Tonico, igual para amigos do Bairro Cidade.
Contursi seria chamado de “Cascalho”, pela primeira vez, e ficaria muito brabo
por isto, num verão em Capão da Canoa. Cabeça raspada, vermelho pelo sol,
Contursi logo é referido pela turma como “Alemão Cascalho”. Por irritar-se com
aquela designação, o apelido fica. A ironia do apelido estava, também, no fato de
Contursi ter ascendência italiana.

“Cascalho”, no ar, logo surpreende, não apenas pela ironia e pelo inusitado
do nome, como também, pelo uso da voz estridente, pela velocidade e por utilizar
muita gíria local associada à língua inglesa: “Mostrei que tinha uma personalidade
própria e que unia emoção, humor, loucuras para cativar o ouvinte. Consegui”.
“Cascalho” surpreende os ouvintes trazendo muita música inédita, programando,
na Rádio, os sons internacionais das boates, os sons exclusivos trazidos pelo
Agente 1120, com a colaboração de programadores competentes e de rara
criatividade, como João Batista Schüller. Francisco Anele é o homem da mesa de
áudio, incansável e magistral na criação de vinhetas. Ao longo dos anos,
“Cascalho” contará com a colaboração atenta de amigos e colegas. O músico
Hermes Aquino, durante temporada, trabalha como produtor de “Cascalho”. Igual
experiência terá o programador musical Ricardo Barão e Coconut. DJ’s de casas
noturnas porto-alegrenses tornam-se parceiros, como é o caso de Claudinho
Pereira.
282

Todos as novidades sonoras são apresentadas dentro do programa


“Cascalho Time”, na Continental, mas o processo inovador havia começado pelo
“Bier Show”, que anunciava, na abertura:

Invadindo o éter de Porto Alegre/ A hora da grilação/ Bier


Show/ Com ANTÔNIO CARLOS CONTURSI, o
CASCALHO./ Mil transas/ Mil coisas/ Mil melodias./
ANTÔNIO CARLOS.

Francisco Anele e João Batista Schüller assinavam as criações sonoras.


Quando “Cascalho Time” entra no ar, são articulados novos efeitos sonoros,
através de vinhetas eletrônicas, jingles e músicas especialmente editadas para uso
na abertura, passagens e encerramento, identificando o programa para o ouvinte.

As falas, ora de um locutor em off variavam, como se intercalavam com


aberturas diretas, do próprio “Cascalho”, como, por exemplo, em

O som das galáxias./ O som grilado./ O som incremantado./ A


partir de agora, você viverá os melhores momentos com.../
CASCALHO Time./ No ar, num patrocínio Pepsi, CASCALHO
Time./ A vibração./ A liderança./ E o papo legal/ É do
comunicador TONY CHARLES, o CASCALHO./
CASCALHO Time and the Pepsi.///

“Cascalho Time” fica no ar de 1971 até 1976, quando Contursi está


deixando a emissora para inaugurar a Rádio Cultura Pop FM. A experiência dura
nove meses, e “Cascalho” retorna para a Continental, não mais no horário
original, onde está Julio Fürst, pois apresenta a série de programetes “Jet Music”
com diversas inserções de lançamentos musicais, ao longo de toda a programação
diária.

Ao longo de toda existência do “Cascalho Time”, Cotursi criou ou ampliou


inúmeras gírias e falas da cidade. No ar, repetia as falas das ruas, criava outras
tantas, tornando atrativa para o ouvinte toda aquela circularidade de palavras,
gírias e informações com sabor local.

Enquanto marcava suas performances pela irreverência, pela alegria e certa


dose de non-sense, diariamente, fazia paródias e debochava de algumas
personalidades locais e, sobretudo, da chamada música “marca diabo” (termo
283

cunhado por ele para “música brega”). Entre as figuras alvo estava o famoso
radialista da Rádio Guaíba e publicitário, Flávio Alcaraz Gomes, espécie de
inimigo público da Continental. “Cascalho” fazia ironia e humor, sobretudo,
quanto às reportagens internacionais de Alcaraz, sempre cercadas de aparato
mercadológico e comercial e realizada em estilo pragmático grandiloqüente.

A comunicação empreendida por “Cascalho”, por vezes em ritmo


alucinante, cunhou expressões que se tornaram célebres, como magrinhagem,
magrinho, cocota, triqui-triqui-rolimã, isto apresentado numa dicção e tonalidade
de voz absolutamente dissonante do padrão radiofônico até ali desenvolvido.

Sobre voz e estilo, “Cascalho” afirmava, em entrevista para nossa


pesquisa: “Eu chutei o pau da barraca. Aquela voz de taquara rachada. Gritava no
ar. Opinava. Era diferente. O pessoal se perguntava: Quem é este cara? Ele é
louco? Está muito louco? E olha que eu nunca tomei droga nada”. “Cascalho”
referia, entretanto, fazia alusões, ao consumo, à realidade do uso. Tric-tric,
meleca, mucho loco, paranga, fininho, fuminho, entre outras, eram expressões
designativas de determinado uso, usuário ou tipo de droga à época.

Contursi, manifestando-se com orgulho, nega que fizesse rádio “para uma
elite somente”:

No ar, eu falava muito para o Moinhos de Vento, para a


Independência. Estes lugares eram pólos, onde estavam os mais
ricos. Mas a periferia também comprou o Cascalho. E quando
eles abraçam tua idéia, então, ficam contigo. Eu era muito
ouvido no Partenon, na Glória, nos bairros e subúrbios. E, nesse
sentido, eu era socialista. Com o tempo, chegava legal em
Cachoeirinha, em Gravataí. A periferia me abraçou.
[...]
O Big Boy era um sujeito pacato, praticamente, só chamava as
músicas. Eu moldei o tipo showman, com personalidade. Eu era
um showman.

Entre 1973 e 1983, “Cascalho” empreendeu uma maratona bem-sucedida


de festas e bailes, nos clubes de Porto Alegre (Sava, Gondoleiros, Petrópole) e,
depois, em ginásios pelo interior do Estado. Os chamados “Bailes dos Magrinhos”
aconteciam animados por quatro a seis caixas de som marca Cotempo, “as
melhores da época”, com anunciados “1.600 watts de som na potência”, dois
284

pratos (pick-ups), inéditos e dançantes “bolachões” da época levavam milhares de


jovens a bailar com o som “incrementado” por “Cascalho”. “Cheguei a fazer
bailes para duas mil pessoas”, afirma Contursi. Os bailes constituíam, mesmo que
não dirigida, uma estratégia de visibilidade para a Continental. Eram, sobretudo,
modo de ganho maior com a arrecadação das bilheterias para “Cascalho”. As
festas, também, tinham patrocínio comercial, sendo o maior deles com a Pepsi.

Na pesquisa, “Cascalho” foi o único a referir não politização explícita do


próprio discurso no ar. “Ali era tudo, menos política. Eu já tinha em casa trauma
pessoal de sobra, com a questão do meu pai”.

Com honestidade, também, revelou que começara a atuar como DJ porque


pretendia ganhar muito dinheiro. “E ganhei dinheiro. Não como apresentador de
programa, com salário. Ganhei como agente comercial de venda de publicidade
para a Rádio e, com os “Bailes dos Magrinhos”, ganhei dinheiro”, reitera
Contursi.

No futuro, “Cascalho”, associado ao colega de Continental, Bertoldo


Lauer Filho, mais o jornalista Noé Cardoso, compraram de Marne Barcelos a
Rádio Porto Alegre, em 1981, logo transformando o nome fantasia da emissora
para Rádio Sucesso. Daqueles dias, “Cascalho” refere outro nome da Globo no
sul. ”À época de implantação da Sucesso, o Sistema Globo mandava gerentes para
cá. E lembro do Marcos Salivers que foi um cara que, inclusive, me ajudou com a
Sucesso”, relembra “Cascalho”. Mas a Rádio Sucesso não prosperou, não como
“Cascalho” sonhara, embora tenha desenvolvido interessante projeto radialístico e
esportivo, associado a grupo de jornalistas arrendatários da emissora, em junho de
1984. “Cascalho”, ainda, foi proprietário de um canal de rádio FM, em
Tramandaí, negociado, posteriormente, com a RBS.

Enquanto prosperava o projeto da Continental, a concorrência pela


audiência de “Cascalho” era, sobretudo, endógena, com os programas “Ritmo 20”,
de Clóvis Dias Costa e com os programas de Julio Fürst. Os ouvintes
acompanhavam o revezamento que os três comunicadores realizavam no
lançamento de músicas inéditas recém-chegadas à cidade.
285

Sobre a orientação política da Continental e a práxis do grupo de


trabalhadores da emissora, “Cascalho” afirma que todos, ali,

guardadas as diferenças, estavam todos, todo mundo, na


contestação ao regime. Eu era suspeito, porque sofria na carne.
Meu pai perseguido. O Fernando Westphalen era amigo do
Carlos Araújo e da Dilma, então mulher dele, cassados, presos.
Os demais contestavam porque eram jovens.

“Cascalho” refere o fato de o pai, Carlos Contursi, fotógrafo profissional,


ser amigo e correligionário de Leonel Brizola. Já Carlos Araújo, igualmente,
militante e, depois, parlamentar vinculado ao trabalhismo, será preso após o golpe
militar de 1964, o mesmo ocorrendo com a então esposa, Dilma Russef,
atualmente, titular do Ministério de Minas e Energia do governo de Luís Inácio
Lula da Silva.

“Cascalho” concorda com a opinião de muitos quanto à antecipação da


linguagem e musicalidade FM protagonizada pela Continental em registro AM e
entende, igualmente, que a sobrevivência da Rádio estava em obter canal FM e
fazer migrar a programação inteira para novo espaço, deixando o 1120 para
radiojornalismo jovem. “O modelo da Continental teria, tranqüilamente, uma
sobrevida de mais dez anos”, aposta. Como permaneceu, a Continental, no
prolongamento daquela década, após superar cada uma das concorrentes em
espaço AM, seria atacada, na audiência e patrocínios, pela concorrência das
inúmeras FMs (Itaí, Cidade, Universal, entre outras).

“Cascalho” mostra comedimento ao analisar razões que decretaram o


término do projeto Continental, mas aponta para fato de a emissora ter matriz e
comando no Rio de Janeiro: “Os donos não eram daqui, não sabiam o que era a
Continental. E aquilo, para eles, era troco”, afirma “Cascalho”. Ele não acusa,
mas cogita, sobre “o quanto o Fernando Westphalen batalhou para obter aquele
canal de FM”. A chegada da concorrência pelo som da FM com novas emissoras
jovens e a não existência da Continental naquela freqüência, para acompanhar
aquela geração de ouvintes, foram fatores decisivos para o final da experiência
Continental, avalia “Cascalho”.
286

No balanço final, “Cascalho” coloca, ainda, a experiência da Continental


como revolucionária, no porte da protagonizada pela Guaíba:

Revolucionária pela linguagem, pela tecnologia a serviço do


som, por lançar moda. Era uma rádio musical, mas com
conteúdos, com requinte na programação musical e na
informação. Rodávamos dois comerciais, duas músicas. Hoje, é
um exagero. Chega a ter breaks (intervalos) comerciais de três,
cinco minutos.

7.1.16 Surge “Johnny Megaton”

João Batista Schüller foi programador musical da primeira hora, na nova


Continental e ainda completava formação universitária em Jornalismo, quando foi
convidado para trabalhar com destaque na nova programação musical da
emissora. Ele esteve lá, desde o primeiro momento, conforme depoimento para o
Autor. Estava nascendo o personagem Johnny Megaton, também conhecido como
J.B.:

Na largada, na tomada de poder pelo "Judeu" Fernando


Westphalen e pelo Marcus Aurélio, o ambiente, naquele 5º
andar, era de salas-escritórios, adaptadas como estúdios-de-
rádio, de frente para Praça da Alfandêga e Rio Guaíba. E, as
demais salas, com janelas para a Rua da Ladeira, ao estilo do
Edifício do Relógio, no Largo dos Medeiros, tudo adaptado, e
muito mal-cuidado. Afinal, ninguém mais queria “tocar” a
Rádio. Chegamos lá, no meio daquela poeirada e decadência.

Megaton fala da especificidade do seu dia-a-dia, à época, e do espírito da


equipe Continental, ressaltando:

No meu caso, organizando e filtrando o melhor da discoteca, e


livrando fora as tralhas e lixos musicais. Cada um, em cada
setor foi fazendo a mesma "limpeza". Nesse primeiro momento,
o Alemão Bertholdo Lauer Filho, o Responsável Técnico da
rádio, atravessava noites e noites ajeitando e melhorando as
condições do estúdio do ar, e depois o de gravações, links, no
transmissor - marca Gates - que garantiu a qualidade do som da
1120.
287

Para João Batista, como a Continental pertencia ao Sistema Globo de


Rádio, havia bom apoio

nas solicitações que fazíamos nessa parte técnica. Podia


demorar um pouco, mas vinha o pedido. Quando tempos depois
a “Superquente Continental” decolou em imagem, participação
no mercado, faturamento e o conseqüente retorno financeiro ao
Sistema Globo, novos investimentos foram feitos

Ele lembra da fase nova nas condições do local de trabalho:

Foi o momento da reforma dos estúdios, salas, novo conjunto.


“O 'Judeu'contratou um arquiteto, que mudou todo o ambiental
dos estúdios e área da rádio. Em cores, setores e integração.
Tinha até uma cozinha fantástica. Modernos equipamentos
foram instalados, que ajudaram, definitivamente, a manter o
diferencial de qualidade. O som era tudo que se queria ouvir. E,
em espaço AM!!!.

João Batista Schüller foi contratado para trabalhar como Programador


musical da emissora e relata, na entrevista para o Autor, como eram as rotinas
produtivas na Continental:

Chegava lá pelas 9, 10 da manhã, e ia ficando até o limite, que


era o fim do programa “Cascalho Time”, lá por 18h55min. Saia
no pique prá PUC, onde tentava chegar às 19h30min (... Sabe
quando? nunca!). E consegui me formar na Famecos em 1974.
Pesquisava e ouvia as músicas daquela empoeirada discoteca,
descobrindo tesouros, hits, desentocando grandes temas.
Recebia as gravadoras, seus lançamentos musicais, explicava o
esquema da programação 1120. Separava músicas para serem
usadas de Fundo/BG para os comerciais que começavam a ser
gravados no estúdio da rádio.

Aqueles dias eram marcados por intensos debates, trocas, escolhas em


busca de exclusividades, de novidades. Conforme relata J. B:

Conversava e mostrava ao Judeu e ao Marcus as músicas que


tinham chegado. Líamos a Revista Bill Board, e marcávamos
as músicas a serem importadas. Assim, íamos traçando a
personalidade musical da rádio. Tinhamos um imaginável
"PlayList" de músicas. Marca-diabo, não! Eram músicas
selecionadas nacionais, internacionais, e as sensacionais
IMPORTADAS, EXCLUSIVAS 1120, e as PROIBIDAS...(Por
exempo: se “Apesar de Você” estava proibida com Chico
Buarque, tocávamos com Beth Carvalho. Até a “tesoura” se dar
conta, foi...). Eu fazia a mistura disso tudo entre ritmos,
288

idiomas, balanços, seqüências, criando e colocando as


Chamadas das Músicas. Criávamos, por exemplo: “Astro da
Melhor Brilhando Muito Além”, para “chamar” Jimmy
Hendrix. “Saudade Não Tem Idade”, para espaço do “Flash
Back”. Criamos o “Continental, Tela de Sucessos”, para os
temas de filmes. E o “Estrelíssima 1120”, vinheta antes de rodar
musas como Dionne Warwick, Barbra Streisand, e até Sophia
Loren... Claro, criamos “Máximas de Johnny Megaton” (esse,
era eu)... E, insertando no final dos blocos musicais, os
Famosos Slogans da Continental, que chamávamos Legendas.
Estes slogans acabaram sendo um marco na Superquente. Esses
slogans surgiram numa adaptação ao modelo que usava a Rádio
Mundial, de grande sucesso na época, também da Globo, no
Rio de Janeiro. Enquanto no Rio, a Mundial saudava os
“Jovens Bronzeados”, o “Corcovado”, etc., e como a época era
da "Fechadura", o Judeu soube adaptar bem esse esquema. Em
Porto Alegre, a Continental lembrava os "engajados" ...mais à
esquerda. Assim surgiu o "na Porto Alegre do Vasco Prado”...,
do “Xico Stockinger”, ...da “Zoravia Bertiol”...E por aí fomos.
E também divulgando pontos da cidade que eram tabu na época,
como "os motéis da Cavalhada"... Cada vez vinham mais idéias
e sugestões, e a coisa pegou. Até que o máximo, em recado nas
entrelinhas, veio no período de inauguração pelo prefeito-
indicado, do Viaduto Tiradentes, ali no final da José de Alencar.
Para a equipe 1120 a referência tinha que ser outra. Tinha um
ponto mais conhecido ao redor. E assim foi, e ficou. Até hoje
está lá: "na Porto Alegre do Viaduto da Marli...". Clara
referência à famosa “casa de encontros” da época.... Depois
disso, não parou mais...”.

Sobre o modo como todo o material era organizado, Megaton afirma:

Tudo era escrito num roteiro, com cópias para locutor e


operador. No princípio com papel-carbono, mesmo. Depois, no
mimeógrafo e, mais diante, na cópia xerox... No início, a turma
era pequena, a vontade era grande, e a época boa para criar. As
agências e anunciantes mais ligados, começaram a se dar conta
que aquela "loucura” funcionava, se adaptaram e
acompanharam a gente. A grande sacada foi dada pela Agencia
Exitus. Luiz Coronel decidiu fazer poesia para anunciar a
Joalheria Scarpini. Era incrível.

O estilo Continental, a revolução coletiva produzida repercute, ainda na


atualidade, na memória de Megaton:

A gente ia fazendo aquilo dia-a-dia. Era uma revolução por dia.


Parecia que nada estava feito. Tascamos até um slogan:
“Continental, além do estabelecido”. Foram tempos de criação,
livre-e-solta. Descobertas, proibições, saídas, lições”, relembra
Megaton, sobre os dias da Continental, que finalizaram, na
289

opinião dele, a partir de 1976, “quando as FMs deslancharam e


começou a faltar mercado para o projeto da Continental.

7.1.17 Clube da Esquina

A Rádio Continental, na busca por músicas inéditas, na verdade,


encontrava peças disponíveis no mercado, mas desprezadas por outras emissoras.
A mesma lógica de localizar novidades onde outras emissoras não atuavam, vale,
igualmente, para novos artistas. Assim, Milton Nascimento, Luiz Melodia,
Gonzaga Jr., entre outros, passam a merecer espaço destacado na Continental. A
história de “Clube da Esquina” é exemplar. A Rádio chega a furar, literalmente,
após tanto rodar, dois LPs do álbum “Clube da Esquina”, lançado por Milton
Nascimento, em 1972.

À época, nenhuma emissora, em Porto Alegre, está atenta para programar


aquele tipo de música, isto é, nenhuma outra costuma programar para seus
ouvintes toda a nova geração MPB pós Bossa Nova, pós-festivais da televisão,
pós Tropicalismo (iniciado em 1968) e pós-Jovem Guarda (iniciada em 1965).

Somente com a programação da Continental, nomes como Milton,


Caetano, Gonzaguinha, Gil, entre outros, passam a ter discos tocados no cotidiano
da programação.

Era expressão de desejo consciente da Continental, então, programar o


melhor daquela nova MPB para ouvintes, muitas vezes, desatentos, desinformados
ou desinteressados naquele tipo de repertório. O diretor Wesphalen referira que a
MPB programada era “espécie de pedágio pago pelo jovem alienado que queria
apenas música estrangeira na Continental”. Até hoje, Fernando Westphalen
orgulha-se daquela programação que entremeava “músicas de sucesso nas boates
com o melhor da música brasileira naquele momento. Cumprimos com nossa
parte”.

Milton Nascimento, praticamente desconhecido no rádio da cidade, ficaria


amigo da Continental, visitando a emissora a cada viagem a Porto Alegre, sempre
expressando gratidão pela ação de divulgação de sua obra pela Continental, aqui.
290

Tânia Alves, Dick Farney, novos e maduros valores da MPB, igualmente,


revezavam-se em visita à Continental.

O álbum “Clube da Esquina”, em Porto Alegre, dialogava com ideário


expresso por um dos integrantes do grupo original, quando este afirmava: “Não
era na verdade um clube. O Clube da Esquina era apenas uma questão de virtude.
Era uma agremiação a favor das liberdades democráticas”, afirmava Fernando
Brandt, letrista e parceiro de Milton (em “Travessia”, “San Vicente” e
“Conversando no Bar”, entre outras), para revista Veja (1/11/1978). E arrematava:
“é uma agremiação que está do lado das pessoas que ficam sentadas nas
esquinas”. Daquele modo, Brandt indicava o modo, praticamente, à margem, onde
a juventude, em movimentos gregários, organizava-se para tocar e ouvir música.
Assim, estava ocorrendo, em muitas outras esquinas, em grandes centros urbanos
do Brasil, movimentos, mais ou menos importantes, de jovens compondo diversos
“clubes da esquina”.

Em Porto Alegre, por exemplo, nasce um grupo no Bairro IAPI,


originalmente local de operários e famílias pobres, que acaba revelando a banda
Liverpool que, já em 1969, gravara, com êxito, o LP “Por favor, sucesso”, tocado
na Continental. Na Cidade Baixa, outro grupo, em torno dos músicos e
compositores Carlinhos Hartlieb, Hermes Aquino, sua prima Laís, há outro “clube
da esquina” porto-alegrense, com músicas classificadas até a final do Festival
Internacional da Canção, em 1969, concorrendo com “Os Mutantes” e Jorge Ben.
Hermes será importante, para a nova programação da Continental por diversas
razões. Como músico, tem seus sucessos ali projetados. Como produtor, auxiliará
na consagração do programa “Cascalho Time” e, como compositor de jingle, fará,
em 1974, uma gravação, em apenas dois canais, com play-back, que revoluciona
publicidade, com peça para a revenda de automóveis Gaúcha-Car. Conforme
depoimento de colegas, ouvintes ligavam para a Continental pedindo para ouvir
tocar o jingle.

No Colégio Bom Conselho e na Faculdade de Arquitetura da UFRGS já


ocorreram significativas mostras de músicas, quando, em 1972, acontece o
primeiro festival de rock da cidade, no ginásio do Colégio Júlio de Castilhos.
291

Estivemos lá, quando se apresentam “Liverpool”, “Mordida na Flor” (grupo


tropicalista, liderado por Di Santana), “Mao Mao”, entre outras bandas.

O conjunto de edições do Musipuc, promovido pelo centro acadêmico do


Instituto de Filosofia da PUCRS, demonstra maturidade, quando, em 1975, na
quarta edição, revelaria nova geração de músicos e compositores, “artistas que
transitavam na fusão da MPB, do regionalismo, com o pop, identificados com o
rock” (ZUKAUSKAS, 1998, p. 59). Ali, confirmam qualidade e aceitação
pública, logo obtendo contratos com gravadoras, os “Almôndegas”, o
“Inconsciente Coletivo”, Gilberto Travi e “Cálculo Quatro”, Joe Athamásio e Léo
Ferlauto, entre outros. Estes integrantes de diferentes e originais “clubes da
esquina”, em Porto Alegre, tocariam e emocionariam ouvintes da Continental.

Para alguns desses artistas, a Rádio funcionaria como verdadeira “base de


lançamentos” para novos públicos e gravações. Era uma associação semelhante
àquela que ocorrera entre Lupicínio Rodrigues e Rádio Farroupilha, a partir da
década de 1950, e entre Elis Regina e o programa “Clube do Guri”, na mesma
emissora, na década seguinte. Na Continental, o som nosso de cada dia, ouvia-se
os novos artistas, vindos de diferentes tendências musicais, unindo o local e o
internacional numa paidéia radiofônica que alcançava os ouvintes.

7.1.18 Rádio da Luta Ecológica e Política

Designamos as frases de anúncio da hora certa da Continental como


narrativas-slogans, notável modo de comunicação estruturada pela Rádio, em
ampliação do espaço enunciativo de serviços, onde ofertava nova significação
para os fenômenos urbanos radiofonizados.

Ao recuperar as narrativas-slogans da Continental, inicialmente colocadas


no ar como vinhetas de serviço, constatamos, logo, que aquelas assumiam outra
função de tiser na programação. Na ação da pesquisa, percebemos, também, a
Rádio mapeando o universo de interações culturais, espaciais e temporais com seu
público. Estas interações terminavam por transformar o patamar pragmático
292

daquelas narrativas que passam a funcionar como microcrônicas, slogans de


manifesto político não partidário, discursos polivalentes na enunciação, ora de
registro irônico, ora crítico, ora sóbrio. Recuperar as narrativas-slogans, na ação
da pesquisa, significou flagrar a Continental enquanto sujeito narrativo e, com
isto, protagonista da história, sobretudo, da comunidade e cidade de Porto Alegre.

Tivemos acesso a, aproximadamente, 500 frases, recuperadas no trabalho


da pesquisada, a maioria, a partir do arquivo pessoal de Marcus Vinícius
Wesendonk. Geneticamente, foi possível distinguir estas frases disponíveis em
três momentos distintos. No primeiro destes, as frases aparecem folha de ofício
simples, com as listas das frases escritas, ao que indica, em máquina de escrever
manual. No segundo momento, já aparecem em folha timbrada. No topo, lê-se
“Rádio Continental de Porto Alegre” e, dentro do erre maiúsculo da palavra
“rádio”, localiza-se o desenho de um microfone. Na segunda linha, logo abaixo,
lê-se “ZYH-223 – Ondas Médias 1.120 KHZ – 10 KW.” E, abaixo, ainda, “Rua
dos Andradas, 1.155 – 5º andar – fone: 24-66-99”. Os textos, aparentemente,
ainda são escritos em máquina de escrever manual. O terceiro e último momento
exibe nova e definitiva logomarca da emissora, onde se vê o desenho simulado de
um dial de rádio, do número 550 até 1700 (grafados em corpo 18), mas com o
“ponteiro” parado no 1120 (que aparece grafado em corpo 72). Logo abaixo,
aparecem dados como prefixo, endereço e mesmo número telefônico da Rádio. A
novidade fica pela citação das expressões textuais: “Porto Alegre” e, a seguir,
“Rede Globo de Radiodifusão”. Na terceira e última linha, aparece: “Rádio
Continental o som nosso de cada dia”.

Especialmente, o texto radiofônico da Continental, através das narrativas-


slogans que recuperamos, revelava a voz política e ecológica da emissora de um
modo inédito, no contexto histórico do rádio porto-alegrense. Segundo a nossa
interpretação, a Continental não foi a primeira emissora a ter protagonismo
político de fala e voz. Foi, na realidade histórica, a primeira rádio a expressar voz
política de esquerda disseminada ao longo da programação “falada” e musical,
como um todo. (Não podemos esquecer a experiência irrepetível, porém parcial,
da chamada “Rede da Legalidade”). Ao mesmo tempo, a Continental é pioneira,
293

no rádio gaúcho, ao estabelecer discurso radiofônico de defesa do meio ambiente


e da qualidade de vida ecologicamente constituída.

Há uma construção na linha do tempo, há uma história construída e


manifesta no trabalho que recuperamos das “falas” oportunizadas pelas
narrativas-slogans da Continental. Os textos acompanham em narrativas próprias
os principais acontecimentos transcorridos ao longo do tempo de vida da emissora
e da comunidade e, sobretudo, são contemplados os fenômenos sociais, históricos
e arquitetônicos da cidade de Porto Alegre em movimento.

Foi possível resgatar, assim, um episódio localizado nos primeiros


momentos da nova programação da Rádio, expresso pela defesa da qualidade
ambiental e da qualidade de vida ecologicamente constituída, na luta da
comunidade expressa pela Rádio contra a fábrica de celulose erguida em Guaíba,
instalação que comprometia a qualidade do ar de grande parte da capital gaúcha.

As narrativas, estruturalmente, iniciavam sempre pela localização de “Na


Porto Alegre”, logo após designavam o que, especificamente, ocorria/transcorria,
informava a hora certa e, por fim, assinava: “Continental”.

Tivemos, então, sistematizado e inserido na programação, narrativas-


slogans como “Na Porto Alegre do “perfume” da Borregaard”/ (hora certa)/
...Continental”. Outros exemplos referiam ”do fedor psicológico”, “do fedor da
Borregaard”, “das chaminés da Borregaard”. Aquela verdadeira campanha da
Continental data dos primeiros meses da programação, em 1972., e teve
relevância social, atuando até o fechamento da fábrica poluente, no final do ano de
1973, e tendo continuidade, até 12 de setembro de 1974, quando o poder público
suspende, definitivamente, a empresa.

No outro pólo da linha do tempo, por exemplo, percebemos o texto da


Continental, em registro histórico, noticiando o retorno de político cassado pelo
regime militar, quando referia: “Na Porto Alegre, do retorno do Briza”. A volta de
Leonel Brizola ocorreu em 7 de setembro de 1979, via São Borja.

Não estando instrumentalizada a serviço de algum partido político, mas


atuando com porta-voz de oposição ao regime militar, a Continental apontará,
294

ainda, “Na Porto Alegre da campanha três por quatro.../(hora certa)/...


Continental”. No caso, tratava-se de referência à chamada Lei Falcão, impetrada
pelo ministro da Justiça, Armando Ribeiro Falcão, em 1976, segundo a qual a
propaganda política somente poderia exibir foto tipo 3x4 de cada candidato.

Localizamos discurso político nas narrativas-slogans, também, “Na Porto


Alegre do Marcão Vereador”, “do Bagé vereador”, “da Bernardete Vereadora”.
As narrativas aludem, respectivamente, ao vereador Marcos Klassmann, ao
primeiro engraxate eleito vereador pela oposição, e a uma vereadora situacionista
cega. Localizamos chamadas, ainda, para “Na Porto Alegre dos piratináveis...”,
numa referência aos nomes indicados para nomeação como governador do Estado,
ainda, “Na Porto Alegre dos candidatos a governador”, “dos candidatos a
vereador”, e, por fim, localizamos, “Na Porto Alegre do Socias Vilella” e “Na
Porto Alegre do T. T. Flores”, em alusão, sempre irônica e bem-humorada de
interpretação, aos prefeitos, então nomeados, de Porto Alegre, Telmo Thompson
Flores (1969-1975) e Guilherme Socias Vilella (1975-1983). O registro, em tom
irônico e bem-humorado, ocorreria em diversas circunstâncias. As narrativas não
esqueciam o púbico preferencial em mensagens que ora pareciam uma saudação,
ora tinham cunho de serviço prestado, de informação, como em “Na Porto Alegre
da manifestação estudantil” e “da manifestação das cinco na Ladeira”.

Já no discurso inovador em defesa da ecologia e da qualidade de vida, o


registro aparecia em tom de denúncia, quando localizamos, por exemplo:”Na
Porto Alegre do poluído Guaíba....(hora)....Continental”. E, ainda, “Na Porto
Alegre do arroio podre...”, “...do rio morto...”, “...do olfato ofendido...”, “...das
inundações...”, “...da onda vermelha...”...das poluições...”, ...da “poluição
sonora..”, “...das praias sujas...”, “...das praias poluídas...”, “...do fedor da
Avipal...”, “...da liga antiborregaard”. E arremata, em síntese, “Na Porto Alegre da
guerra ecológica... (hora) ...Continental”.

A Rádio investia, também, em espécie de agenda positiva de defesa


ecológica e do meio ambiente, igualmente, com registros a certo bucolismo ou
beleza natural em plena cidade. Ouvíamos, então, por exemplo, “Na Porto Alegre
dos jacarandás floridos...(hora)... Continental”. E, ainda, “... do Delta do Jacuí...”
295

(espaço transformado em parque de preservação, em janeiro de 1976), “...do pôr-


do-sol colorido”, do “...pôr do sol do Guaíba...”, ...da “reciclagem”, ...do “verde
da Redenção...”, ...das “flores da primavera” e, ainda, “Na Porto Alegre da
preservação do meio ambiente...(hora)...Continental”. E, ainda, com referência a
melhorias futuras, como em “Na Porto Alegre do futuro Parque da
Marinha...(hora)...Continental”.

7.1.19 Rádio, Cidade: outras Narrativas

A peripécia das narrativas da Continental ampliava-se em outras direções,


além do foco, explicitamente, político e ecológico.

A tensão no discurso da Continental, definitivamente, desdobrava-se


refletindo outras fronteiras onde se deparavam cultura e natureza, homem e
“natureza criada”. O crescimento populacional, o incremento do trânsito
automotivo, o novo mapa viário da cidade são aspectos referidos, em abundância,
pelas narrativas-slogans da Continental, em registro, ora de humor e irônico, ora
irado ou mesmo severo ou sóbrio, na constatação dos fenômenos.

Em qualquer das circunstâncias, fossem as narrativas sobre política e


políticos, fosse a ecológica ou referente ao meio ambiente, fosse a referente ao
trânsito ou ao transporte, o conjunto das narrativas da Continental tinha, como
ponto de partida, a comunicação de elevada interatividade com seu público
segmentado, fosse pela seleção de temas radiofonizados, fosse pelo tom da
narrativa construída.

As referências ao trânsito e aos transportes aparecem, por exemplo, como


em “Na Porto Alegre” do “trânsito irracional”, do “trânsito em transe”, das
“sinaleiras sem sincronia”, dos “seletivos”, do “táxi-lotação”, dos “ônibus em
fila”, dos “pipis dos guardas”, do “autódromo da Perimetral”, da “free-way da
Beira-rio”, das “crateras”, dos “congestionamentos”, do “péssimo transporte
coletivo”, dos “ônibus milenares”, do “minhocão intermináááááável”. Havia,
296

igualmente, referência aos usuários de outros meios e, daí, viver-se “Na Porto
Alegre dos motoqueiros”, dos “ciclistas” e dos “taxistas”.

Os textos sobre a cidade em constantes mudanças viárias e arquitetônicas


eram referidas como em “Na Porto Alegre da Free-way”, do “meio viaduto”
(quando da liberação de meia pista do viaduto Imperatriz Leopoldina, na avenida
João Pessoa, em dezembro de 1974), do “queijão do Centro Administrativo” (na
verdade, alusão ao prédio vizinho ao novo Centro Administrativo do Estado), do
“fechamento da Borges” (referindo o fechamento para trânsito de veículos na
avenida Borges de Medeiros), da “Perimetral inacabada”, dos “centros
comerciais”, do “viaduto interditado”, dos “aterros”, do “viaduto do mártir”
(referente ao Viaduto Tiradentes), da “iluminada Ipiranga”, da “rótula do
Laçador” (quando da recém-inaugurada rótula em torno da estátua do Laçador na
saída da cidade), das “passarelas” (para pedestres), dos “hipermercados”, da
“iluminação do calçadão” (quando da inauguração de iluminação feérica do
calçadão da Andradas), do “muro da Mauá”, da “torre da Embratel”, da “Elevada
da Silva Só”. As narrativas incluíam obras e eventos importantes, mesmo que não
erguidas, exatamente, na cidade, como em “Na Porto Alegre do Pólo
Petroquímico” e da “Expointer”.

A Continental “conversava” com diversos grupos humanos e, dentre estes,


em especial, com o grupo distinguido como público preferencial. E, assim, “Na
Porto Alegre dos universitários...”, da “UFRGS, PUC e Católica”, dos colégios e
estudantes”, do “Anchieta e do Rosário”, do “Julinho”, dos “vestibulandos”, dos
“diretórios acadêmicos”, dos “cursinhos”, dos “novos acadêmicos”, dos
“estudantes e namorados”.

O grupo preferencial, também, merecia discursos sendo os problemas


apontados: “Na Porto Alegre dos colégios caros”, da “falta de vagas no segundo
grau”, do “estacionamento pago da PUC”.

Os grupos e subgrupos também eram etários e profissionais como em “Na


Porto Alegre dos ‘boleiros’ universitários” (numa alusão aos jogadores de futebol
que ingressavam na Universidade). E, ainda, dos “velhinhos da Praça da
297

Alfândega”, das “menininhas de Ipanema”. E, também, dos “camelôs de crachá”,


dos “ambulantes fixos”, dos “hippies ambulantes”, dos “empresários de
bombachas” em falas que faziam informar, mas que buscavam, também, entreter e
surpreender pelo humor.

As referências a grupos ou subgrupos apareciam, ainda, na forma de


citações indiretas como, por exemplo, em “Na Porto Alegre dos Bambas e da
Imperadores” e da “Praiana”, referindo-se às Escolas de samba da cidade. E,
ainda, da “New Flower’s”, referindo-se à boate gay. Igualmente, fazia referência
para grupos de comportamentos, como em “Na Porto Alegre da ‘paquera’ do
calçadão”, ou da “fauna da Praça da Alfândega”, ou, ainda, dos “vagaus da
Malcon”, referência para vagabundos, ociosos, que se postavam na Galeria
Malcon e arrematava, em tom universalista, com “Na Porto Alegre de todas as
raças...”.

Se, por hipótese, a programação da Continental fosse interpretada como


uma saga completa, certamente, poderíamos, então, identificar, na narrativa, a
figura não de apenas um, mas vários, heróis. Egoicamente, uma figura heróica, de
imediato, estaria na autoconstrução midiática da própria emissora e, colada a esta,
apareceria, em destaque, como vimos, a cidade de Porto Alegre e seus
personagens, em desdobramentos de seu cotidiano urbano, histórico,
arquitetônico, esportivo, isto é, em diferentes dimensões.

As narrativas de auto-referência apareciam como em “Na Porto Alegre da


linguagem 1120....(hora)... Continental”, e dos “comerciais 1120”, da “discoteca
superquente”, dos “saques da superquente”, da “superquente”, das “notícias
1120”, do “ibope contestado” (numa alusão ao fato de a Rádio ter sucesso e não
assinar o Ibope), do “verão 1120” (como em outras estações onde referia a Rádio
e os ciclos naturais) e, quase em exagero, referia, “Na Porto Alegre da Rádio
Continental... (hora)... Continental”. A auto-referência ocorria, igualmente,
citando nome de funcionários e colaboradores, como em “Na Porto Alegre do
Hermes Aquino”, do “Agente 1120”, ou do “Gilberto “ ‘agual’ Travi”.
298

A mídia, em especial a chamada “alternativa” ou “nanica”, aparecia em


destaque, como a do “Coojornal” (Jornal da Cooperativa de Jornalistas), do “Pato
Macho” (semanário porto-alegrense de humor), da “revista Paralelo”, e
generalizando, “da boa imprensa nanica”, ou ironizando, da “imprensa sadia”.
Mas, também, referia nomes da grande mídia, como em “Na Porto Alegre da casa
de Caldas...” (em referência à Companhia Jornalística Caldas Júnior), das
“charges do Marco Aurélio e do Sampaulo (referindo chargistas, respectivamente,
do jornal Zero Hora e Folha da Tarde). As narrativas destacavam, como
“olimpianos”, os cronistas da mídia diária, como Tatata Pimentel e Gasparotto
(cronistas sociais), do Ruy Carlos Ostermann e do Lauro Quadros (cronistas
esportivos), do José Antônio Dautd e Tânia Carvalho (apresentadores da
televisão). As narrativas marcavam as preferências dos “olimpianos”, como em
“Pedro ‘Fitipaldi’ Pereira” (numa alusão ao narrador de futebol da Guaíba, que
também era piloto) e “Paulo Grêmio Santana”, aludindo à paixão clubística do
cronista de Zero Hora.

Como “olimpianos”, igualmente, eram referidas personalidades típicas da


cidade, como o corredor de rua, Bataclã, e Dona Palmira Gobi (presidente da
Associação Protetora dos Animais) e “Rubis Hoffmeister”, na verdade Rubens,
polêmico presidente da Federação Gaúcha de Futebol. Diversos jogadores da
dupla Gre-Nal, igualmente, ampliaram notoriedade nas narrativas, como Falcão e
Caçapava , do Inter, e Oberdã e Tarciso, do Grêmio.

Entre as narrativas sobre “olimpianos”, localizamos, inclusive, uma que


referia “na Porto Alegre de Santino”, na verdade, o “bom seqüestrador”, o
primeiro a cometer este tipo de crime na cidade, durante o segundo semestre de
1974, ganhando manchetes, igualmente, por ter “devolvido” garotos seqüestrados,
sem cometer mal maior.

As narrativas, igualmente, referiam os escritores e artistas da cidade, como


em “Na Porto Alegre de Mario Quintana”, também de “Plauto Cruz, de Moacir
Scliar, de Teixeirinha”.
299

Já outra tentativa de impacto sobre a audiência surgia com o discurso sobre


a cidade antiga, discurso de atualização da memória, que rememorava o ouvinte
com “Na Porto Alegre da Ponte de Pedra” (referência àquela que seria a primeira
ponte usada pelos fundadores açorianos chegados à cidade), da “Rua do
Arvoredo” (antigo nome da rua Fernando Machado), da “Rua da Margem” (alusão
nome antigo rua João Alfredo), da “Pantaleão” (antiga “zona de meretrício” na
cidade), do “Chalé da Praça XV”, do “antigo Mercado”.

Identificamos como peripécia narrativa da Continental presentificar,


nomear, criticar, fazer viver, em resumo, criar mundos a partir da história
cotidiana no real-concreto de Porto Alegre. As narrativas-slogans, assim, eram
criações, “bolações”, textos erguidos como equacionamento de comunicação,
como construção radiofônica própria, voz autoral interativa da Continental.

As narrativas referiam, intensamente, a Porto Alegre dos lugares de


entretenimento (boates, casas de samba) e lazer (parque Saint-Hilaire, Redenção,
Marinha), cidade dos aparelhos de cultura, púbicos e privados (Planetário, Museu
Hipólito da Costa, Biblioteca Pública e os Teatros Leopoldina, São Pedro, de
Câmara, de Arena), cinemas (Imperial, Vogue), bares (do João, do IAB, da
Esquina Maldita), cidade de praças públicas e de esportes, com referência aos
estádios Gigante da Beira-Rio e Olímpico, ginásios Gigantinho e David Gusmão,
do Grêmio.

As narrativas indicavam, também, a cidade dos eventos culturais e


midiáticos, como “Na Porto Alegre da Feira do Livro”, “do Campeonato
Nacional” de futebol, “do Festival de Coros”, “da Expointer”.

A Rádio apresentava narrativas da cidade topográfica, física, geográfica


quando anunciava, circunscrevendo a região, estar o ouvinte, por exemplo, ligado
“Na Porto Alegre do estuário do Guaíba... (hora)... Continental”. E, também, “Na
Porto Alegre do Morro da Embratel”, “do Saco da Alemoa”, “da Ilha do Pavão”,
“do Morro da Televisão”, “da praia de Ipanema” etc.

Cidade, igualmente, de prédios e monumentos, como “da estátua do Bento


Gonçalves”, “do edifício do Relógio”, “da carta-testamento” (alusão à carta de
300

Getúlio Vargas, em bronze, afixada na Praça da Alfândega). Registros sobre


monumentos oficiais, mas em linguagem Continental, e, assim, colocados “Na
Porto Alegre do Laçador Machão” e “da Catedral interminááááável”.

As narrativas projetavam, ainda, uma cidade de ritos simbólicos,


religiosos, cívicos como “Na Porto Alegre da Festa dos Navegantes”, “do carnaval
na Perimetral”, “da Pira do Fogo simbólico”, “da Semana Farroupilha”.

Cidade de narrativas demarcando, formalmente, os ciclos temporais e


naturais, com atenção constante e especial para aqueles episódios que envolviam
público jovem, como “Na Porto Alegre da espera do fim de semana”, “das férias
de julho”, “da reabertura das piscinas“, “do verão Continental”, “da volta às
aulas”. Narrativas em observação enunciando acontecimentos trazidos pelos ciclos
naturais, como “Na Porto Alegre da primavera em flor”, “das enchentes do
verão”, “do vento minuano”. Ainda, com criatividade para relacionar ciclos com
comportamento, como “Na Porto Alegre dos maridos em férias” ou, na
contraposição, “das mulheres na praia”, além de referências freqüentes aos
grandes eventos fixos nos calendários, anualmente, como vestibular, Natal,
Carnaval.

Uma das características das narrativas-slogans estava na atenção constante


para os fatos cotidianos: engarrafamentos do trânsito, falta de vagas ou produtos,
em suma, acontecimentos. Assim, aparecia, uma cidade “do feijão mexicano”, “do
assalto nosso de cada dia”, “do ginásio sem teto” (quando vendaval destrói
cobertura do ginásio David Gusmão, em 1973) e, severa e secamente, “do
seqüestro dos uruguaios (em referência ao seqüestro dos uruguaios Lílian
Celiberti e Universindo Dias, por agentes da polícia gaúcha).

As narrativas referiam, igualmente, as questões sociais mais próximas e


agudas, como “Na Porto Alegre da mendicância... (hora)... Continental”, cidade,
ainda, “do presídio”, “da falta de leitos”, “do caos organizado”, “dos assaltos e
roubos”, “das C.P.Is.”

Cidade que comportava narrativas polêmicas, como “Na Porto Alegre das
meninas da Indepê” (numa referência às jovens prostitutas localizadas numa
301

importante avenida da cidade), “das bonecas da hidráulica” (em alusão aos


travestis que se posicionavam na Hidráulica do Moinhos de Vento). Nenhuma
narrativa, entretanto, rivalizou com “Na Porto Alegre do Viaduto da Marli...”. A
expressão referia o Viaduto Tiradentes, recém construído, na avenida Beira-Rio
esquina com José de Alencar, onde se localizava, também, o famoso Motel da
Marli, ex-bordel.

A narrativa da Continental terminou rebatizando o nome oficial daquele


novo Viaduto Tiradentes, que passou a ser referido, somente, como o “Viaduto da
Marli”. Este fato levaria a Censura Federal, incrivelmente, a proibir qualquer
referência explícita, na mídia, a motéis e casas afins. Na continuação, a
Continental registrou “Na Porto Alegre dos motéis proibidos...”. A Rádio,
entretanto, direcionava, ainda mais pontualmente, ironias e provocações, quando
referia “Continental, a preferida no QG” e “audiência cativa”, numa alusão direta
ao fato de estar sendo monitorada por escuta vigiada no comando do III Exército,
conforme entrevista de Fernando Westphalen ao Autor.

As narrativas, igualmente, possibilitavam a projeção de uma Porto Alegre


expandida pelo imaginário e, assim, figurava “Na Porto Alegre de Marcuse...”,
onde a “Continental, nem Freud explica”.

Cidade que possibilitava narrativas enigmáticas, cifradas pela redação da


Rádio, para decifração especial, quase que exclusiva, do ouvinte Continental,
numa interação diferenciada. “Na Porto Alegre do orelhão internacional...
(hora)...Continental”, por exemplo, referia uma pane especial de determinado
telefone público no centro da cidade, que realizava ligações internacionais sem
necessidade de pagamento especial. A narrativa soava como cumplicidade entre o
pessoal da Rádio e público, usuários comuns daquele “serviço especial”. Já “Na
Porto Alegre da usina intocável...”, inicialmente, pareceria um enigma até para
certos ouvintes Continental. Tratava-se, na verdade, de campanha pública exitosa,
em 1974, pela não destruição da Usina do Gasômetro e transformação do espaço
em centro cultural, fato que ocorreu.
302

Em 1976, por exemplo, aparecia “Na Porto Alegre do projeto Cultur...”,


referência a um encontro nacional sobre literatura e livro, durante a realização da
Feira do Livro, quando estiveram, em Porto Alegre, os escritores Rubem Fonseca,
Clarice Lispector, Fernando Moraes, José Louzeiro, Carlos Eduardo Novaes, João
Antônio, Léo Gibson Ribeiro, Bruna Lombardi, entre outros, reunidos com
colegas gaúchos, Mario Quintana, Scliar, Caio Abreu, Sergio Caparelli e Janer
Cristaldo, entre outros. Escritores subscreveram manifesto que solicitava, entre
outras coisas, a criação do sindicato dos escritores profissionais e a
institucionalização, pelo governo do estado gaúcho, daquele Projeto Cultur –
Literatura, fato que não aconteceu.

Enigmáticos, para iniciados, ao menos, com alguns conhecimentos sobre a


cidade, apareciam “Na Porto Alegre do papo gordo do Daltro” e “da guerra aos
mochileiros” referiam, respectivamente, a conversa inteligente, esperta, do
treinador do Inter, então, Daltro Menezes, e a momentânea rejeição, por parte de
alguns automobilistas, contra os jovens mochileiros e caroneiros postados na saída
da cidade.

As narrativas da Continental revelavam, também, as trivialidades, os fatos


menores, os dados episódicos ou fúteis, quase desapercebidos ou colocados à
margem, mesmo no contingente das desimportâncias urbanas, mas destacados
pela ação narrativa da Rádio. E, assim, tínhamos, “Na Porto Alegre das refeições
em pé” (referente à mania recente de lanches rápidos nas lanchonetes da Galeria
do Rosário), “dos guardas das Americanas (referente aos guardas truculentos
recém-instalados nas Lojas Americanas), das “lojinhas do viaduto” (sobre o
pequeno comércio no viaduto da Borges) , do “ posto da João Pessoa” (referente
ao flamante posto de gasolina), do “amendoim do Imperial” (referência ao
amendoim com chocolate vendido à porta daquele cinema da Rua dos Andradas),
da “nova banca Vera Cruz” (banca de revistas no centro de Porto Alegre). Locais,
aparentemente, “naturalizados” no caos urbano, mas redimensionados pela
narrativa da Rádio, como “Na Porto Alegre da Coletânea...”, que referia uma
pequena livraria, vizinha da Continental, que ousava vender livros raros, jornais e
303

revistas alternativos, obras importadas, logo transformada em local de referência


para a intelectualidade da cidade.

Na verdade, a Continental, com suas narrativas, radiofonizou um


verdadeiro “corredor cultural”, com seus personagens e elementos, que, grosso
modo, podemos traçar desde a Usina do Gasômetro (tombada após campanha
pública da época), em linha reta, seguindo ao longo de toda a Rua dos Andradas,
chegando até a Avenida Independência. A partir do Gasômetro, chegávamos aos
cinemas Cacique, Scala e, logo, à esquina onde está a Caldas Júnior e Rádio
Guaíba. Depois, até a Praça da Alfândega, lugar de muitas lendas e charlas,
habitat preferencial do poeta Mário Quintana. Em frente, mais dois cinemas:
Imperial e Guarani. Na mesma calçada da rua, a pequena Livraria Coletânea e o
próprio Edifício do Relógio, onde estavam a Continental, a Rádio Pampa e a
sucursal de “O Globo”. Depois, seguindo pela Andradas, chegava-se ao Café Rian
e, logo, à novíssima lancheria “A Bruxa”, a nova Lojas Americanas de estupendas
e atrativas escadas rolantes. Depois, era cruzar a Borges (a denominação Esquina
Democrática seria invento batizado a partir do Movimento Diretas-Já, em 1984),
em seguida, passar pela Livraria do Globo e pela Galeria Chaves, das lojas de
discos, depois, a novíssima Malcon, ponto da “paquera”. Rumo à avenida
Independência, onde está o cinema de arte, Vogue, pode-se parar na Praça Dom
Feliciano, onde estava a “Feira Hippie”. Na “Indepê”, localizava-se a Boate
Encouraçado Butikin (que tocava músicas que só rodavam na Continental) e,
quase em frente, o Teatro Leopoldina, de shows imperdíveis com artistas locais e
de fora, inclusive, com o “Vivendo a vida de Lee”. Avenida Independência das
butiques, como a inacreditável “Lixo”, que expunha à venda roupas usadas por
soldados norte-americanos na Guerra do Vietnã... Mas, antes de seguir rumo à
Hidráulica, ao Parcão e Moinhos de Vento, podia-se fazer uma descida até a
Oswaldo Aranha. Ali, entre os números 200 e 232, estávamos na Esquina Maldita,
com locais para beber, onde fulgurava o Bar Alaska, do lendário garçom Isaac,
servindo “coquinho” e pratos rápidos, como o “Burguês” e o “Oito e meio”. Do
outro lado da avenida, temos o Teatro da Reitoria, local onde aconteceu o “Projeto
Pixinguinha” que trouxe à cidade artistas inesquecíveis, como Clementina de
304

Jesus e Jackson do Pandeiro. Neste longo “corredor cultural” acima projetado, e


existente, grosso modo, numa linha imaginária entre a Usina do Gasômetro e o
Parcão, todos os integrantes/personagens foram enunciados, direta ou
indiretamente, pelas narrativas radiofônicas da Continental.

Seguindo essa lógica, as peripécias das narrativas da Rádio encontravam-


se, davam forma e radiofonizavam os périplos de produtores e ouvintes da
Continental.

Em “O Narrador” (1980, p. 63), Walter Benjamin dialoga com Paul


Valery, referindo-se à afirmativa daquele escritor que constatava que, na
modernidade, “O homem de hoje não trabalha mais naquilo que não pode ser
abreviado”. Na verdade, concluía Benjamin, “ele (o homem) conseguiu abreviar
até a narrativa”. É nesta direção que identificamos as narrativas da Continental.
As narrativas-slogans são também algo como citações do narrador radiofônico da
Continental, no corpo da programação. Em outra passagem, Benjamin (1985, p.
61) afirmava que, para ele, “as citações são [...] como salteadores no caminho, que
irrompem armados e roubam ao passante sua convicção”. As narrativas da
Continental funcionavam como salteadores no processo de significação da escuta,
onde a intenção de roubo estava a serviço da maior atenção possível do ouvido.

7.1.20 A Bomba

O imponente prédio do Edifício do Relógio, erguido na Rua dos Andradas,


1155, faz esquina com a General Câmara, no chamado Largo dos Medeiros.
Aquele edifício, inaugurado em 1957, abriga, no quinto andar, desde 1962, a
Rádio Continental, inicialmente, em dois conjuntos. Agora, que a nova
programação da Rádio já faz sucesso, que os negócios, numa estimativa
imprecisa, cresceram algo acima de quinhentos por cento, já é possível aumentar,
também, o espaço ocupado por dois estúdios, discoteca e escritórios. O diretor
Fernando Westphalen celebra não necessitar receber mais injeção de dinheiro,
vindo da Globo, no Rio de Janeiro, para fechar o mês. Agora, já é possível alugar,
305

também, o conjunto 503 e, com a nova disposição, as áreas de operações e de


direção, desde então, ficaram, definitivamente, espraiadas por todo o andar.

O visitante que chegava ao quinto andar, no saguão, deparava-se com


imenso logotipo da Rádio “1120”. À direita do elevador, encontrava, no conjunto
501, o estúdio principal da Rádio, o estúdio de gravações, a incomparável
discoteca e a sala dos operadores. Ao lado, no conjunto 502, em espaço contíguo,
estava o pessoal do radiojornalismo e da programação musical. No conjunto 503,
agora, ficava a direção, com as salas de Westphalen e Wesendonk, mais a
secretaria e o departamento pessoal.

É neste espaço que Dona Marina Lima, certa manhã, quando chegava para
trabalhar, deparava-se com cena insólita, ao ser abordada pela secretária, que
apontava para um embrulho embaixo de um banco, próximo à sala da direção.

Marina Lima afirma:

Lembro daquela história trágica. Foi um horror. Entrei na sala


501, para cumprimentar as pessoas. E a secretária foi dizendo,
não entra lá, dona Marina, não entra lá. Tem uma bomba. E
apontava para a sala do doutor Fernando.

Dona Marina não acreditou na hipótese e seguiu caminho em direção ao


embrulho. Era um pacote feito de jornais velhos, em parte rasgados, que deixavam
ver uma caixa. Ela se aproxima da caixa quando, então, vê alguns fiozinhos em
cores diferentes, fios verdes, vermelhos, pretos, interligados, fazendo ponte entre
uma lata de cerveja e outro objeto não identificado. Então, ela teme e pára. Teme
que aquele artefato seja, de verdade, uma bomba, ali colocada, para fazer explodir
o andar da Continental.

Antes de qualquer coisa, Marina decide telefonar para Fernando


Westphalen, que, imediatamente, chama a Polícia e os bombeiros. A orientação
para o pessoal da Rádio era prosseguir, de modo tão normal quanto possível, com
toda a linha de programação no ar.

Aquele período, em todo o Brasil, fora particularmente tumultuado,


ocorrendo verdadeira onda de atentados a bombas, colocadas e, na maioria,
acionadas, em diferentes lugares do país. Posteriormente àquele episódio daquela
306

tensa manhã na Continental, o pessoal do radiojornalismo buscou fazer


levantamento, mapeando as diferentes ocorrências recentes com bombas no
Brasil. O levantamento, mantendo a grafia do documento a que tivemos acesso,
indicava a ocorrência dos seguintes atentados:

1) EXPLODE BOMBA NA ABI, RIO, 19/8, DANOS


MATERIAIS
2) DESCOBERTA BOMBA NA OAB, RIO, 19/8
3) EXPLODE BOMBA NA JUSTIÇA MILITAR, POA,
20/8, SEM DANOS
4) EXPLODE BOMBA NA FAC. DE DIRETO, SANTOS,
28/8, DANOS MAT.
5) EXPLODE BOMBA NO CEBRAP, SP, 05/9, DANOS
MATERIAIS
6) EXPLODE BOMBA (DUAS) NO SHOPPING CENTER
IGUATEMI, SP, 6/9, DANOS MATERIAIS
7) EXPLODE BOMBA NA CASA DO ROBERTO
MARINHO, RIO, 23/9, DOIS FERIDOS, DANOS
MATERIAIS, CENSURA PROÍBE DIVULGAÇÃO
8) SEQÜESTRO DE DON ADRIANO HIPÓLITO, BISPO
DE NOVA IGUAÇU, RIO, 23/9, ENCONTRADO NU E
PINTADO, CENSURA PROÍBE DIVULGAÇÃO
9) CARRO DO BISPO EXPLODE NA FRENTE DA SEDE
DA CNBB, RIO, 23/9, DANOS MATERIAS, CENSURA
PROÍBE DIVULGAÇÃO
10) BOMBA CONTRA ESTACIONAMENTO FUNDAÇÃO
GETÚLIO VARGAS, RIO, 04/10, DOIS CARROS
DESTRUÍDOS
11) BOMBA CONTRA AUTOMÓVEIS ESTACIONADOS
NA AVENIDA ATLÂNTICA, RIO, 04/10, TRÊS
CARROS DESTRUÍDOS
12) EXPLODE BOMBA NA XISTAL S.A., FIRMA DE
MILICOS, RIO, 22/10, DANOS MATERIAIS, POLÍCIA
DIZ QUE PANFLETOS SÃO DA V.P.R.
13) DESCOBERTO “ARTEFATO” AQUI NA RÁDIO,
POLÍCIA LEVA EMBORA E NÃO DIZ SE É BOMBA
OU NÃO, POA, 29/10, CENSURA PROÍBE
DIVULGAÇÃO.
14) BOMBA EXPLODE NA SEDE DO OPINIÃO, RIO,
15/11, DANOS MATERIAIS.
15) EXPLODE BOMBA NA SEDE DA CIVILIZAÇÃO
BRASILEIRA, RIO, 06/12, DANOS MATERIAIS
307

No caso da Rádio Continental, a truculência iniciara meses antes, através


do envio de cartas assinadas pelo MAC (Movimento Anticomunista), mal-
escritas, com erros ortográficos, intimidatórias. A primeira delas, assim,
ameaçava:

(MAC)
BICHOS DA RADIO CONTINENTAL
ATENÇAO:
QUANDO a criança queima a mão ao tocar no fogo, aprende
uma lição;
QUANDO ao atravessarmos uma rua e somos atropelados...
podemos aprender uma lição ou perder a chance;
QUANDO uma bomba explode no estúdio, aprendemos uma
lição ou nunca mais...
QUANDO ao banharmos na praia e mãos de ferro nos manter
submersos, perdemos a oportunidade de aprender uma lição;
QUANDO o nosso carro pega fogo, o prejuízo causado é uma
lição;
QUANDO a nossa esposa recebe fotografias junto com as
amantes, arranjamos serias complicações;
QUANDO ao chegarmos tarde em casa e alguém nos quebrar os
ossos, aprendemos uma lição;
QUANDO levamos uma surra por falarmos de mais,
aprendemos uma lição; e
QUANDO alguém de nossa família é seqüestrado, também
aprendemos a mais dura lição.
FINALMENTE, somos bastantes (sic) inteligentes para, não
mechermos (sic) em abelheiras, principalmente porque somos
conhecidos, também, como velhos integrantes do MC-74/75.
Um aviso do
M A C
(Movimento Anti-Comunista)

Uma outra carta, trazendo outras especificidades, voltava ao ataque com


novas ameaças, onde se lia:

VOCÊS DA RÁDIO CONTINENTAL

Todos nascem, crescem e falam, mas... por muito falarem


podem ficar:
Roucos
Fanhosos ou
Mudos.
Vocês estão muito preocupados com o “MAC” – Movimento
Anti-Comunista, inclusive taxando-o de racista. Porém nunca
falaram no MC-74/75 – Movimento Comunista 74/75, que
estragou placas de sinaleiras, orelhões, etc., em Porto Alegre.
Nós sabemos porque o MC-74/75 é do agrado de vocês...
308

Bichos, dizem os antigos que em boca fechada não entra mosca,


aproveitem a lição. Pois também é útil não esquecerem que o
jacaré não entrou no Céu por ter a boca grande.Também não
esqueçam que uma ação gera uma reação em sentido contrário
de igual ou maior intensidade.
Estejam preparados que ela vem aí, vocês não perdem por
esperar.
MAC

O caso das cartas anônimas somar-se-ia ao problema do artefato ou bomba


e todos juntos ganhariam a lata de lixo da história, sem maiores ressonâncias, nem
esclarecimentos. No caso do artefato, polícia e bombeiros interditaram o andar
pela manhã, recolheram o material e, na continuação, teriam explodido o artefato
longe dali, sem que, comprovadamente, houvesse laudo oficial indicando do que
se tratava, de fato, aquele pacote, quem o colocara na Continental, qual a
motivação para o atentado ou para a admoestação. A Censura Federal proibira,
inclusive, a divulgação do episódio pela própria Rádio.

O caso da bomba, de qualquer modo, constatamos, ficou marcado na


memória de vários entrevistados, mas, infelizmente, ninguém da Rádio conseguia
precisar mais detalhes. Ninguém, inclusive, podia indicar em que ano, exatamente,
aquilo ocorrera. Foi, então, que encontramos, entre as folhas da produção da
Rádio, uma folha de textos avulsos, não datado, sem indicação de autoria pessoal.
O texto reproduzido trazia uma lista de atentados a bomba ocorridos no país
(Posteriormente, encontramos alusão à parte significativa daquele texto em
material de campanha institucional-promocional da emissora. Ali estava uma
provável destinação original para aquela listagem escrita do documento).

Na listagem geral do texto, felizmente, havia uma referência à bomba na


própria Continental. Então, foi fácil relacionar os episódios e determinar o ano de
ocorrência, 1976, por estarem indicados, ali, outros atentados rumorosos, como
aquele contra o bispo de Nova Iguaçu e outro atentado contra a Editora
Civilização Brasileira, através dos quais chegamos à data, afinal, com ajuda de
bibliografia (SILVA; CARNEIRO, 1998, p. 7-8).
309

7.1.21 Vozes na Equipe

A equipe da Continental, além de integrada por alguns profissionais de alta


competência técnica, tinha em conjunto qualidades como o compartilhamento, de
fato, na prática, de inúmeras responsabilidades diretivas e de trabalho, com
repercussão positiva sobre o resultado da programação. Os depoimentos de Julio
Fürst, Beto Roncaferro, Megaton, Prates, sobretudo, reforçaram esta idéia de
gestão compartilhada, embora hierarquizada, proposta pelo Fernando Westphalen,
“O homem que segurava todas”, como referiram vários colegas, aludindo aos
problemas com a Censura Federal, à gestão com a Globo e às questões com
patrocinadores. Mas Fernando, enquanto gestor, apostava em cada colaborador,
deixando-o produzir e decidir com independência. A partir da atividade própria
de cada colaborador, o chamado espírito de grupo auxiliava, ainda, para o
ambiente de intensa criatividade, necessário à sobrevivência do modelo da
Continental. A redação coletiva das narrativas-slogans, carreando contribuições
constantes de inúmeros autores, foi um exemplo concreto das ações coletivas da
equipe da Rádio. Os depoimentos sobre a produção publicitária, adequando
conteúdo à linguagem Continental, a cada peça recém-chegada, constituiu outro.

A estrutura daquela equipe, ao mesmo tempo, solidária, criativa,


competente e competitiva apontava para uma formação onde apareciam,
idealmente, oito departamentos, para um total inicial de 25 funcionários que,
eventualmente, chegou ao número de 30 colaboradores. O quadro funcional
apontava para: 1) direção geral, 2) departamento administrativo, 3) departamento
comercial, 4) departamento de jornalismo, 5) quadro de apresentadores, 6) quadro
de programadores musicais, 7) quadro de locutores, 8) quadro de operadores.

O departamento de jornalismo, isoladamente, possuía dois repórteres, sete


redatores, um chefe de departamento. O grupo trabalhava associado aos oito
locutores-noticiaristas.

No radiojornalismo, as dificuldades iniciavam pela falta de infra-estrutura


e pela impossibilidade original de mudar o modelo e o porte do negócio. O
310

jornalismo, com aquela estrutura, não podia concorrer nem se estabelecer com
médotos idênticos das grandes emissoras, como Guaíba e Gaúcha. A alternativa
estava, novamente, em inventar sistemática e produto diferenciado. E foi assim
que a Continental chegou às 17 edições diárias do “1120 é Notícia”, com texto
mais ágil e de jornalismo interpretativo, sempre ao final de cada hora cheia da
programação. Para tanto, a Continental possuía somente uma agência de notícias
contratada, a France Press, e fazia muito rádio-escuta e leitura esmiuçada de
jornais do centro do país e alternativos e, também, revistas, além de contar com
informantes e colaboradores em alguns pontos estratégicos, como a Assembléia
Legislativa e Câmara de Vereadores, segundo depoimento de Westphalen.

Havia dificuldade para compor e para manter o grupo, principalmente, de


redatores, segundo Fernando Westphalen. A dificuldade estava no fato de o rádio,
em geral, pagar baixos salários. Então, mesmo que a Continental pagasse salários
razoáveis, era freqüente o convite para os melhores redatores mudarem de casa, o
que acontecia com freqüência indesejada, em turn over. Outro problema, segundo
Fernando, estava no afã juvenil de alguns, com a inexperiência associada a certa
arrogância, que prejudicava. “Alguém não podia chegar na Rádio, todo faceiro, já
querendo falar do preço dos automóveis, quando nosso patrocinador estava ali
vendendo automóveis”, afirma Fernando.

Os locutores-noticiaristas, igualmente, necessitavam “falar”, “conversar”


com os ouvintes e não lerem notícias, friamente, como robôs, define o diretor da
Rádio.

Este elenco de vozes, ao lado dos comunicadores estrelas (“Cascalho”,


“Mr. Lee” e Clóvis Dias Costa), era fundamental na formatação de toda a gestalt
da programação. Embora a formação tenha sofrido alterações de nomes, o padrão
Continental, nos aspectos formais fundamentais, pôde ser mantido. Em entrevista
para o Autor, Marcus Aurélio Wesendonk referia-se como o quarto integrante dos
chamados comunicadores da Rádio, na apresentação do programa “Discos de
Ouro”. Já o grupo de locutores noticiaristas era constituído por Vladimir Oliveira,
Antonio Carlos Niderauer, Rui Carvalho, Domingos Martins e Bira Brasil. O
elenco de programadores musicais tinha Rubens Prates, Heitor Morais, Beto
311

Roncaferro e Mestre Megaton. Esta, segundo Wesendonk, foi uma das


composições, provavelmente a mais duradora, da equipe de vozes e som da
Continental. Este grupo esteve formado a partir de 1973.

7.1.22 Ananda Apple

Ananda Apple é um exemplo vivo daquilo que denominamos por uma


certa paidéia formativa, fluida, oportunizada pela Continental, através de
experiência de vida e, posteriormente, profissional. Inicialmente ouvinte especial,
Ananda, logo, faria programa jovem inovador, a partir de 1979, dando início ao
curso de Jornalismo e à carreira profissional na Superquente. Ainda muito jovem,
Ananda apaixonara-se pelos Beatles e pela programação da Continental. Hoje, ela
é repórter da TV Globo, em São Paulo, tendo incorporado, no nome profissional,
a paixão pelo grupo de Liverpool e, como deixa transparecer no seu depoimento
ao Autor, guarda como patrimônio pessoal, existencial e profissional a experiência
vivida, naquela Porto Alegre do final dos anos 1970, mantendo laços de
admiração com a Rádio Continental. Vejamos, em próprias palavras, o
depoimento de Ananda, feito a distância, a partir de nossas interpelações:

Dear Sérgio,
[...] vamos às tuas perguntas específicas...
Sobre Início profissional:
Eu tinha uns 13 anos e era ouvinte fiel da 1120. Gostava do
Clóvis Dias Costa, eventualmente do Cascalho ("Se liga porque
a nave já vai zarpar.../Cascalho Times está no ar!/ Você vai
sorrir...vai ficar legal / Das 18 às 19h...na Continental! (E
Pepsi!!!!)") Re re re...memories...
Logo depois, descobri o programa do Júlio Fürst, o Cowboy do
Rádio, depois o Vivendo a Vida de Lee. Adorava gravar com
microfoninho por fora do radinho (não tinha plugs diretos) e
ouvia o dia inteiro (“Espantalho”, “Poluição”,
“Ultimamente”...) Sabia as letras de cor. E os caras novos
viraram meus ídolos (“Inconsciente Coletivo”, Fernando
Ribeiro, Gilberto Travi). Eu ia nos concertos e anotava tudo o
que acontecia. Depois, chegava em casa e desenhava os
músicos. Ou seja, fazia uma reportagem artesanal... Nos
concertos seguintes eu fui lá na frente conversar com um
técnico e mostrar meus albunzinhos... Era o Francisco Anele
Filho, o maior arquivo vivo de toda a história musical
contemporânea do RS... Ele, muito gentil, se empolgou e disse
312

pra eu procurar o Júlio. Fui. E o Júlio pediu pra eu organizar os


álbuns do Movimento. Eu não ganhava nada em grana, só pra
comprar pasta, cola, saquinhos e papel. Ele dava os jornais e eu
arrumava tudo, sempre fui muito metódica. Me sentia muito
bem trabalhando para o cara que eu admirava...
Com o tempo souberam que eu tinha muitos álbuns sobre os
Beatles, tudo arrumadinho, tinha escrito até uma biografia
ilustrada em 3 volumes aos 14 anos! Que metida! E quando eu
tinha uns 17 anos o Marcus Aurélio Wesendonck (que era a voz
da 1120 e diretor) me convidou pra fazer um programa sobre os
Fab. Era sábado às 19h, ao vivo. Se chamava “Liverpool”.
Tinha os Beatles e tudo o que se relacionasse com eles...Eu
também não recebia nada, mas adorava fazer aquilo. Ia de bus
com meus LPs embaixo do braço, descia na praça da Alfândega
e fazia meu programinha. Depois, minha mãe me buscava de
fuquinha...
Como eu não era funcionária, volta e meia respondia também às
perguntas de ouvintes na Cultura FM, onde trabalhava o Anele.
O Pedro Sirotsky era ouvinte (e diretor da Gaúcha FM) e
acabou me chamando... aí me tornei dona de meu próprio
programa, o Tempo Beatle, com carteira assinada, tudo profi...
Deixei a Conti com o coração na mão, mas sabia que estava
fazendo o certo, afinal, não havia possibilidade deles me
pagarem já que a rádio tava caindo nas mãos de outros donos e,
em breve, se transformaria numa bregolina Rádio Globo, que
nada tinha a ver com o padrão da Superquente... Foi
melancólico o seu final... Quase todos os bons comunicadores
de lá se foram também pra Gaúcha FM. E eu acabei virando
colega dos meus ídolos.

Sobre, especificamente, seu próprio protagonismo, Ananda afirma:

Não creio que eu tivesse protagonizado nada na Conti, a não ser


ter conseguido uma audiência cativa e diferenciada com um
programa que chamava muito a atenção. Na época, era o único
sobre os Beatles (naquele momento – 1979), e era apresentado
por uma mulher, num universo só de homens. Eu sabia muita
coisa sobre o assunto e tinha algumas gravações piratas num
mundo onde ainda não tinha internet e onde era bem difícil
conseguir material... A gente dependia de alguém que viajasse
pro exterior e trouxesse algo de novo... Era tudo muito
devagar... E foi um feito ter aquele programa que acabava
resgatando a vocação jovem e de qualidade da rádio num tempo
em que se prenunciava seu naufrágio... Ninguém dizia
claramente que a rádio tava acabando, que ia ser vendida, que
os bons começariam a debandar ... foi um estertor...

Pedimos para Ananda o relato de uma “bela história”:


313

Um episódio que sempre me chamou a atenção e que quem


trabalhou lá considera histórico, tem a ver com o espírito
inovador da rádio. A Conti criou modismos, gírias, atitudes. Ela
tinha uma linguagem própria, jovem e nem por isso relaxada.
Era moderna, pioneira, amiga, próxima. A "magrinhagem" se
sentia muito bem acolhida, era seu canal de comunicação e sua
janela pro mundo. A linguagem era super bem cuidada, os
programas bem acabados, a gente sentia que era feita por quem
gostava muito de estar lá.
Por isso virou um acontecimento quando a rádio anunciou "a
morte do Jorge Mautner, um raro ídolo transgressor e brasileiro
da época. Foi escrito e lido (provavelmente pelo Marcus
Aurélio, aquela voz maravilhosa que era como o editorial da
rádio) um texto que era uma obra prima. Falaram da morte dele
misturada à letra do “Maracatu Atômico”. Ficou show. Porto
Alegre parou pra ouvir. As pessoas choravam, ligavam pra
rádio pra lamentar, pra elogiar... até que se descobriu que o cara
não tinha morrido, que era uma baita barriga! Não sei o que
aconteceu nas internas, se alguém foi demitido (provavelmente
não, a rádio era musical e não tinha grandes compromissos com
jornalismo, era tipo gilete-press, mas os redatores tinham
estilo...), se houve um desmentido e de que tipo. Mas sei que foi
uma comoção na morte e no ressuscitamento do cara...

Perguntamos se, passados tantos anos, hoje, Ananda identificaria certa


ação pedagógica na ação da Continental. Ela responde:

Não sei se entendi muito bem a pergunta. Mas vou tentar falar
alguma coisa. Como disse antes, a rádio tinha estilo e
modernidade, e isso polia muito a linguagem e o acabamento
dos programas. Levei de lá a leveza, o imediatismo, o calor da
rádio ao vivo, com a marca de que dá pra ser jovem sem ser
burro e pobre. Isso não é tão comum hoje em dia. Acho pobre,
limitado e de mau gosto muito do que ouço hoje em dia como
rádio "jovem, da galera, da moçada" ou whatever... Quem tem
hoje 30 e tantos, 40 e tantos anos, certamente embalou sua
juventude ao som da Superquente e tem muito carinho pelos
então comunicadores e seus programas. Até os jingles eu me
lembro... Ela fez história, foi o apogeu e o soçobro da
comunicação jovem em AM em Porto Alegre. Quando ela foi
enterrada, surgiram como rolo compressor as FMs ao vivo que
também enterraram as FMs de elevador e consultório. Chegou a
Cidade FM, criou-se a Gaúcha FM, Ipanema, Atlântida, etc.
Veio a era dos Comunicadores (alguns “gritões” demais) e a
AM voltou a ser rádio brega de classes mais baixas, sem
ambições culturais, de notícias para aposentados e motoristas,
ou de gaúcho grosso para tradicionalistas. Aquele era o cenário
da época, não tinha como hoje, radiojornalismo bem feito pra
todas as classes... Na AM o jovem não tinha mais nada pra
ouvir. E começou o reinado das FMs... Não é à toa que os
314

melhores comunicadores da Conti, estão, hoje, trabalhando nas


FMs. E o número 1 continua sendo o Júlio Fürst.O cara é que
nem vinho.

7.1.23 FMs no Dial

Quando a nova programação da Continental entra no ar, a contar do verão


de 1971, o quadro com emissoras AM, em Porto Alegre, exibia, em resumo, a
seguinte oferta:
1) Rádio Farroupilha – 600 no dial
2) Rádio Difusora – 640 no dial
3) Rádio Gaúcha – 680 no dial
4) Rádio Guaíba – 720 no dial
5) Rádio Princesa – 780 no dial
6) Rádio Cultura – 840 no dial
7) Rádio Itaí – 880 no dial
8) Rádio Caiçara – 970 no dial
9) Rádio União – 1010
10) Rádio da Universidade – UFRGS – 1080
11) Rádio Continental – 1120 no dial
12) Rádio Pampa – 1210 no dial
13) Rádio Porto Alegre – 1390 no dial

Destas, a Rádio Guaíba destacava-se na oferta de jornalismo e esporte,


sendo hegemônica e acompanhada, a distância, por Farroupilha, Difusora e
Gaúcha. Todas investiam, também, em programas de variedades, ficando a
programação dita popular, especialmente, com Caiçara, Itaí e, parcialmente,
Farroupilha e Rádio Porto Alegre, durante algum período.

Naquele verão de 1971, a freqüência modulada (FM) era utilizada somente


como recurso técnico operacional para melhora da qualidade do som, servindo
como link entre o estúdio e o transmissor. Este recurso para obter qualidade do
som era utilizado pela Continental e seria proibido pelo governo federal nos anos
315

seguintes, tão logo iniciasse o período de concessões para instalação de rádio


emissoras em FM, especificamente. A partir de então, a Continental passou a
operar através de microondas, em canal UHF.

Segundo a nossa interpretação das ofertas de programação de rádio,


anteriormente à opção da Continental pela segmentação, já trabalhavam com este
tipo de programação dirigida e específica para determinado público, as Rádios
Caiçara e Itaí, bem como a Rádio da Universidade da UFRGS, com oferta de
música “clássica” erudita. Esta última, inclusive, antecipava-se à Continental,
especificamente, na conversação com o público universitário, muito embora sem
encontrar idêntica ressonância na audiência e na cultura radiofônica local.
Entretanto, caberá à Continental erguer a nova proposta singular de conversação,
buscando, justamente, outro modo de fazer agendamentos, mediações, em suma,
trazendo outro padrão de interação comunicacional com aquele público, também
diferenciada pela tentativa de ampliação de público pela inclusão do jovem
secundarista e pré-vestibulando, especificamente. Vários depoimentos, na
pesquisa, fizeram esclarecimentos indicando que o “público jovem” da
Continental não era constituído por aquela camada que, hoje, agências de
publicidade e institutos de pesquisa designam por público teen ou adolescente.
Estes constituíam, apenas, parcelas eventuais do grande público, pois o chamado
“público jovem da Continental” tinha idade localizada, grosso modo, entre 17 e 25
anos, sobretudo.

A Continental surgira com programação segmentada para público


estudantil e universitário, em contraposição, como indicamos, à programação
popular-popularesca (“Na Continental não tem marca-diabo”), em contraposição à
segmentação da Rádio da Universidade (“Continental, remédio contra o tédio”) e
em diálogo e contraposição ao padrão Guaíba (“Continental, aqui não tem
cupim”), buscando excelência em padrão de voz e som, a exemplo da emissora da
Caldas Júnior, mas renovando a linguagem e fugindo do “padrão autômato”,
excessivamente sóbrio de apresentação e programação em geral, segundo
avaliação de Fernando Westphalen e Marcus Wesendonk.
316

Para realizar esta outra conversação no rádio, a Continental optou pela


informalidade, estruturada como linguagem radiofônica, com o público jovem.

Em meados da década iniciada em 1970, a Continental já terá enfrentado


concorrência em AM e, logo, igualmente, em FM, a partir de 1975. No espaço
AM, as concorrências não são sistemáticas, nem continuadas, encontrando,
principalmente através da Rádio Pampa, uma disputa mais acirrada e duradoura.
As demais emissoras, Rádio Porto Alegre e Rádio Cultura, erguem programações
interessadas no público jovem, porém sem obter o sucesso desejado nem a
continuação da mesma proposta de programação no ar. A Rádio Cultura chega a
valer-se da estratégia do slogan para se fazer anunciar, através do “aqui, nem
gritos, nem sussuros”, ao mesmo tempo, parodiando famoso filme, então, de
Ingmar Bergmann e fazendo alusão à Continental (“gritos”) e à Guaíba
(“sussuros”). Já a Rádio Porto Alegre, iniciando-se na programação jovem, terá
irmãos Sirotsky, Pedro e Nélson, coordenando processo, contratando, inclusive,
nomes da Continental, como João Batista Schüller. O projeto é abandonado, no
entanto, em detrimento do desenvolvimento e interesse da RBS com a televisão,
sobretudo.

Quando chegamos em 1976, segundo dados da AGERT, três emissoras


FMs já estavam no ar. A pioneira, inaugurada em 1975, foi a Itaí FM, com música
instrumental. Logo, instalaram-se a Rádio Difusora FM, com música popular, e a
Gaúcha - Zero Hora FM, com música jovem. A concorrência, a seguir,
aumentaria cada vez mais, com o aparecimento de outras ofertas no rádio jovem,
como o surgimento da Rádio Cultura Pop (posteriormente, Rádio Cidade FM),
que contrataria o DJ “Cascalho”, entre outros, para garantir a transferência da
audiência segmentada, antes, ocupada somente pela Continental.

Conforme a edição do Jornal do Rádio, de julho de 1983, quando a


Continental já não mais existe, oito ofertas estão no ar, com diferentes
programações no FM porto-alegrense. São estas:
1) Rádio Cidade FM – 92.5 no dial;
2) Rádio Atlântida FM – 94.1 no dial;
3) Rádio Difusora FM – 94.9 no dial;
317

4) Rádio Capital FM – 95.7 no dial;


5) Rádio Metrópole FM – 96.5 no dial;
6) Rádio Universal FM – 97.5 no dial;
7) Rádio Bandeirantes FM – 99.3 no dial;
8) Rádio Guaíba FM – 101.3 no dial.

Destas emissoras, especialmente, Rádio Cidade, Rádio Universal, Rádio


Atlântida e Rádio Bandeirantes representavam, cada qual de modo próprio, a
continuidade da disputa em busca do segmento jovem. A Bandeirantes FM,
sobretudo, reproduzirá estratégias e buscará posicionamentos semelhantes aos
trilhados pela Continental. Assim, aquela emissora rodaria músicas em blocos e
buscaria exibir acervo diferenciado da oferta corrente no dial, então. Surgida em
1981, inicialmente, a Bandeirantes FM aposta, fortemente, na MPB e, logo, no
rock. A Bandeirantes, fazendo jus ao próprio slogan, buscava ser “o ponto
alternativo do seu rádio”. Mauro Borba (2001, p. 16), à época programador
musical da emissora, refere o contexto e o foco da Band FM, então, tecendo
soluções e opções semelhantes à antiga Continental. O cenário, porém, era outro,
no quadro de FMs:

Na época existiam umas seis ou sete emissoras de FM em Porto


Alegre e as rádios que não eram do tipo “parada de sucessos”,
eram do tipo “consultório de dentista”. Assim, entramos no ar
com nossa programação alternativa. Beto Guedes, Hermeto
Paschoal e Milton Nascimento misturados com Bob Dylan,
Pink Floyd e Beatles e outros nomes que, na época, dificilmente
se ouvia no rádio.

Conforme nossa análise, existiu certa linha de continuidade do estilo,


embora fosse outro o protagonismo, em direção à Continental, através da
programação configurada na Band FM e, posteriormente, ainda mais, na sucessora
desta, a Itapema FM, a partir de outubro de 1983, sobretudo, com a política de
lançamento, através de fitas “demo”, de músicos e bandas locais.
318

7.1.24 Música Daqui

Os anos que antecedem à entrada da primeira emissora em FM, em Porto


Alegre, resultarão como particularmente importantes para a consolidação do
modelo de programação da Continental, ainda livre deste tipo específico de
concorrência. Já em 1975, ano marco para a estréia da Itaí FM, também é a data
chave para início da avalanche Continental, que se desenvolve programando a
música local, com sucesso.

Naquele ano, surge, como expressão de acordo comercial operacional com


a Lee, o personagem protagonizado por Julio Fürst, na condição de “Mr. Lee”
que, em breve tempo, reunirá músicos locais de diferentes tendências, que passam
a aparecer na programação cotidiana da Rádio com freqüência. Antes disto, numa
articulação coletiva, que envolve Francisco Anele, Hermes Aquino, grupo
“Almôndegas”, entre outros, algumas músicas serão gravadas, como em
experimentação ou teste, utilizando-se gravadora de rolos, nos estúdios da própria
Continental, em condições técnicas “heróicas”, dando início ao ciclo de músicas
aqui produzidas, gravadas e lançadas pela emissora. O mestre artífice destas
gravações é Francisco Anele, com supervisão técnica de Bertoldo Lauer Filho.

Naquele ano de 1974, segundo entrevista de Anele para o Autor, ele


precisará dispor os instrumentos em diferentes distâncias dos microfones, para
poder garantir efeitos de sonoridades desejadas para efetiva equalização dos
instrumentos nos arranjos musicais. O arranjo dos instrumentos musicais, assim,
nasce pela disposição física dos mesmos em estúdio. O trabalho é particularmente
difícil para gravar o grupo Almôndegas. O resultado, entretanto, junto ao público,
recompensa músicos e técnico. O mesmo ocorre com Hermes Aquino, à época,
músico e compositor trabalhando como produtor de “Cascalho Time”. “Machu
Pichu”, de Aquino, em que o músico consegue simular o som de um charango,
utilizando uma viola de doze cordas, Vento Negro e Até não mais, com os
Almôndegas, inscrevem-se, então, entre as mais solicitadas músicas da
Continental.
319

Na cidade de Porto Alegre, a juventude local contava, a partir daquele ano


de 1974, com uma articulação, com uma experiência de construção de identidade,
que ofertava música, rádio e, logo, shows, num espaço compartilhado, onde as
significações de ser urbano, porto-alegrense, gaúcho, universitário e cosmopolita
ganhavam corpo para milhares de jovens participantes, a partir da articulação
empreendida pela Rádio Continental.

Na Rádio, aquele trabalho das gravações, segundo relatos do produtor


musical Beto Roncaferro, era feito após o horário normal de trabalho, altas horas
da noite, em ritmo de mutirão. As produções ocorriam utilizando-se mesa de dois
canais, gravadas em fitas rolos, no espírito de “vamos gravar para ouvir como é
que fica”. E foi um sucesso inesperado.

Inicialmente, as gravações rodam apenas no programa de Julio Fürst.


Daquelas exposições em parcos minutos, nos próximos meses, Julio aumentará o
espaço para trinta minutos de apresentação e, logo, precisará de uma hora
exclusiva para a música local. O sucesso alcançado garantiria, depois, espaço para
as mesmas músicas dentro da programação normal de toda a emissora.

Depois deste sucesso local e regional, o próximo passo significou a


assinatura de contratos com gravadoras do centro do país. No mesmo ano de 1974,
as citadas “Machu Pichu”, de Hermes Aquino, e Vento Negro e Até não mais, com
os Almôndegas, garantem contratos para gravações, respectivamente, pela
Tapecar e pela Continental Esta última gravadora contava com a coincidência de
ser homônima à Rádio como fator de atratividade, embora fossem empresas
diferentes, sem vínculos formais. Os artistas lançados pela Rádio Continental, a
partir de 1975, ganham exposição nacional, através de programas massivos de
televisão, como o “Fantástico”, na Globo, e igualmente, se transformam em
sucesso nacional de vendas de discos.

O ex-diretor Fernando Westphalen, até hoje, orgulha-se pelo fato de ter a


Continental “apresentado os músicos gaúchos para o seu público”. Logo,
entretanto, aqueles artistas serão cooptados pela rede maior da indústria cultural
nacional e, assim, no ano de 1976, tanto “Almôndegas” quanto Hermes Aquino
320

conseguem furar o bloqueio centro-sul, colocando diferentes músicas em discos


de telenovelas produzidas pela Rede Globo.

Hermes Aquino conta com o sucesso do disco compacto simples, que


reúne Nuvem Passageira e Machu Pichu, pela Tapecar. Em 1976, a Som Livre
inclui a primeira música no LP da trilha sonora da novela “Casarão”, de Lauro
César Muniz.

Naquele mesmo ano, os Almôndegas têm a gravação da música Canção da


Meia-Noite, composição de Zé Flávio de Oliveira, instrumentista integrante do
grupo, incluída no LP da trilha musical da telenovela “Saramandaia”, de Dias
Gomes, na TV Globo. O grupo, a contar pela própria designação, que indica uma
espécie de alimento compacto e reprocessado, na prática, mescla a riqueza de sons
regionais gaúchos com a influência pop e rock, sem abrir mão do diálogo com a
MPB da atualidade, desenvolvendo acurada sonoridade musical.

A Continental já dispõe de inúmeras fontes musicais que alimentariam, de


modo distinguido, sua programação ao longo dos anos. O manancial está por toda
a Porto Alegre que, além do Musipuc, conta, desde o início de 1975, com as
chamadas “Rodas de Som”, organizadas pelo músico e compositor Carlinhos
Hartlieb. Naquele espaço do Teatro de Arena, Carlinhos convidaria, a cada sexta-
feira, a partir da meia-noite, nomes como Nelson Coelho de Castro, Bebeto Alves,
Mauro Kwitko, Mutuca, a banda Bixo da Seda (com alguns integrantes do antigo
Liverpool), entre outros. Para todos os movimentos, para todas as tendências
musicais, para todos os apreciadores de música, entretanto, ainda faltava mestre
Julio Fürst lançar, ironicamente, dia 1º de abril, o aparecimento de “Mr. Lee in
Concert”.

7.1.25 “Vivendo a Vida de Lee”

Julio César Fürst sempre apreciou muito a música e, por isso, desde
menino, esteve com ela, primeiro, por prazer e, logo, para trabalho. Fará breve
carreira como músico, chegando a atuar, profissionalmente, antes do rádio, e,
321

mesmo já profissional, como comunicador e DJ, terá carreira eclética, passando


pela música jovem internacional, fará incursões pela black music and soul,
investido no personagem “Julius Brown”. No ano de 1973, sempre a partir das 22
horas, na voz de Beto Roncaferro, a vinheta anunciava Mr. Julius com “O som é
uma viagem pra toda magrinhagem”. Depois, na cronologia, seria a vez de “Mr.
Lee” e, em seguida, Mestre Júlio.

Em 1972, Júlio iniciou carreira radialística, estreando na Rádio Pampa, no


mesmo período em que dirigia a loja Mozart Discos, na rua 24 de Outubro, que
iniciava descentralização da oferta de vendas de disco na cidade, até ali restrita ao
centro de Porto Alegre, através da King’s.

Julio Fürst, na época, gerenciava a loja e gravava fitas cassetes especiais


para amigos. Indicado por amigo comum, será contratado por Otávio Dumit
Gadret que, após enorme sucesso da programação segmentada na popularesca
Rádio Caiçara, pretendia investir, também, no segmento jovem, através da recém
adquirida Rádio Pampa. Em 1972, Julio Fürst era contratado para ser o
programador da primeira concorrente no mercado da Continental. Fürst,
apaixonado por rádio, desde os tempos em que tocava bateria no conjunto “The
Rockets”, iniciava, ali, carreira como radialista. Com ele, estava o parceiro dos
tempos de escola e da loja de discos, George Gilberto Dorsch, o Beto Roncaferro.

Em 1973, Fürst é contratado pela Continental, junto com Roncaferro, e


leva consigo o personagem Julius Brown, com o qual apresentava, na Pampa,
programa de black music e soul. A experiência dura até 1975, quando Brown será
“exportado para o Nepal”, dando lugar ao novo personagem “Mr. Lee”, a partir do
momento em que aquela marca de jeans recém-chegava ao Brasil, oficialmente.

Como profissional do rádio, Fürst, sobretudo, atuará movido pelo enorme


talento pessoal, associado à curiosidade musical e pelo senso de oportunidade.
Estas qualidades ensejam a oportunidade de ser contratado como DJ patrocinado
por marca de jeans internacional. Inicialmente, embalado pela country music,
Furst será a nova voz radiofônica que, definitivamente, reunirá, no mesmo espaço
322

radiofônico, a maior amostragem da música jovem urbana gaúcha, a partir de


1975.

Aquele movimento de aproximação e consagração entre o artista local e o


público representava uma imensa novidade para o rádio porto-alegrense. Até ali, o
dial do rádio mostrara-se descuidado com o público jovem universitário, embora
existissem opções mais popularescas.

Através da Continental, esta primeira parte daquele feito, responsável pela


música local em microfone de emissora de Porto Alegre, devia-se às ações de
Julio Fürst. A outra parte, mais ampla e, igualmente, significativa, ficou com o
público e suas construções simbólicas e identitárias de audiência, no acolhimento
da programação diária e, depois, na aceitação das exibições em concertos
públicos, reunindo milhares de ouvintes.

Entretanto, na origem do surgimento de “Mr. Lee”, existe uma campanha


publicitária bem articulada e um contrato comercial, selando uma associação entre
os fabricantes de jeans Lee e o grupo Renner, de indústria e comércio de
confecções. A agência de publicidade contratada é a MPM, a mídia escolhida é a
Rádio Continental e o DJ selecionado para viver o personagem “Mr. Lee” é Julio
Fürst. No dia 1º de abril de 1975, o primeiro programa entra no ar pela
Continental, revelando o “cowboy do rádio”, o “mocinho da Porto City”.

Os fabricantes da calça Lee, segundo entrevista para o Autor de Julio


Fürst, escolheram iniciar campanha nacional, a partir de Porto Alegre.
Certamente, contavam, nesta escolha, com a presença, aqui, do grupo Renner,
tradicional no ramo do vestuário, atuando desde a fábrica até a oferta no balcão de
lojas próprias, e, também, com a presença da MPM Propaganda, a maior do
Estado e entre as detentoras de maiores contas no País. A Continental e Julio
Fürst pegavam carona neste pool.

O projeto tivera protagonismo direto de Américo Bender, que percebera


oportunidade de realização de negócio de representação da Lee, diante da
demanda pelo vestuário jeans e pelo fato de não existir, a não ser através de
contrabando, possibilidade de oferta daquele tipo de roupa para jovens.
323

Interpretamos que o fator regional possa ter auxiliado bastante para aquela
aposta da Lee no solo gaúcho como porta de entrada no País. A tradição
agropastorial do Estado e o mito do gaúcho foram, talvez, dados considerados
relevantes pelos investidores, estrangeiros e locais, quando da opção. Nos Estados
Unidos, a Lee estava associada à figura do cowboy e, aqui no Brasil, trabalharia a
mesma idéia, a partir de um Estado que construíra a figura do gaúcho. De resto,
conforme localizamos na pesquisa, em passado recente, outra iniciativa
semelhante havia sido realizada com boa eficácia empresarial, associando rádio,
programa musical e roupa de brim.

Referimos, no caso, a associação entre programa de música e cultura


regionalista da Rádio Farroupilha AM, de Porto Alegre, criado em 1955 e outro
patrocinador fabricante de jeans. O programa “Grande Rodeio”, espaço para
música, poesia e trova gauchesca, tornaria conhecida a linha de produtos
denominada de “Brim Coringa”, sobretudo calças, produzidas, no Brasil, pela São
Paulo Alpargatas. Ao longo da década iniciada em 1960, os apresentadores Darci
Fagundes e Luiz Meneses consagrarão aquele espaço radiofônico, que passa a ser
denominado “Grande Rodeio Coringa”, levado ao ar todos os domingos à noite.

No projeto da Continental, o “Vivendo a vida de Lee” será programa


diário, sempre a partir das 22 horas. A emissora, antes, chega a divulgar teaser,
onde anunciava: ”Não banque o bobo, não perca o 1º de abril”. Na data indicada,
em 1º de abril de 1975, o programa entrava no ar, pela primeira vez, conforme
vinheta histórica, recuperada pelo acervo de Francisco Anele, tal como
transcrevemos a seguir1:

TEC – RODA TRILHA INSTRUMENTAL EM B.G. E FICA.


LOC 1 – Primeiro de abril de mil 975./ Um primeiro de abril
diferente./ Sem dúvida, uma data histórica para a descontraída
moda da Brazuca./ A M.P.M. Propaganda e a Rádio Continental
anunciam o início de uma nova vida para você./ A partir de
hoje, você estará realmente vivendo com total autenticidade e
liberdade, a Vida de LEE./

1
No roteiro de rádio, Loc é abreviação para locutor, assim como Tec indica acionamento da
técnica de áudio. No roteiro a seguir, procuramos manter grafia e modo para apresentação
original:
324

TEC – RODA MÚSICA “Living the Life of LEE”. (TEMPO:


20 segundos ). DESCE PARA BG e FICA.
LOC 1 – Com vocês, o enviado especial da H. D. LEE
Company./ MISTER LEE./
TEC – SOBE TRILHA SONORA em CHICOTE. (ouvem-se
efeitos de sons de tropel de cavalos, de tiros de revólver, de
relinchos)
LOC 2 – YAHOOO./ YAHOOO./ IORULEÍÍÍÍ./ IORULEÍÍÍÍ./
Respire fundo, Chará./ O Cowboy da LEE chegou./ Cheio de
som e comunicação nos cartuchos./
LEE, a marca registrada na totalmente transistorizada./
MISTER LEE, o Disk Jóquei batizado pela H. D. LEE
Company./ Trazendo um mundo novo todo azul pra você./
Equipe técnica com MISTER LEE, o Cowboy do Rádio, o
Mocinho da Porto City./ MISSIÊ ANELE, AUGUSTO
ALMEIDA, e BERTOLDO LAUER FILHO./ É a estréia
nacional de MISTER LEE in Concert./////

A voz do Locutor 1 é de Marcus Aurélio Wesendonk, e a do Locutor 2 de


Julio Fürst, que imitava, caricatamente, um falar de cowboy. Os efeitos de
sonoplastia estão embutidos na trilha musical original, produzida sob encomenda
para a Lee, na campanha original nos Estados Unidos. A melodia é fortemente
marcada pelo som de banjos, em estilo country music, e a letra da música, em
inglês, sugere, em resumo, que viver a vida de Lee significa fazer tudo aquilo que
se quer. A gravação, no conjunto, é uma amostra do estilo Continental de fazer
chamadas, aberturas, peças institucionais e publicitárias, articulando gíria, língua
estrangeira, certo humor e informalidade no trabalho de linguagem, em discurso
marcado, também, pela auto-referência elogiosa (A peça tem cerca de 2 minutos e
20 segundos de tempo total).

Nos Estados Unidos, a estratégia da Lee estava organizada de modo a


oferecer, uma vez por mês, shows ao vivo, com duas ou três bandas famosas,
através de cadeia de rádio, coast to coast.

No Brasil, a idéia de formar rede nacional com “Mr. Lee” sempre existiu e,
dessa forma, o programa “Vivendo a vida de Lee”, apresentado por Fürst, será
também transmitido pela Rádio Iguaçu, de Curitiba. Naquele tempo, sem poder
contar com serviços de satélites para transmissão, Fürst gravava todos os
programas para Curitiba, que eram apresentados no mesmo horário da edição
325

porto-alegrense. Tratativas com emissoras de São Paulo e Rio de Janeiro chegam


a ser firmadas.

O acordo entre Renner e Lee baseava-se, do ponto de vista industrial, na


fabricação de vestuário, utilizando a infra-estrutura da sócia gaúcha, instalada em
Porto Alegre. O marketing da Lee, inicialmente, conforme sugestão do
responsável brasileiro, Américo Bender, apoiava-se na figura do personagem que
subiria o Brasil, através de rede de rádio, conforme os produtos Lee fossem
ganhando mercado, rumo ao centro e norte do Brasil.

No mesmo ano de 1975, Julio Furst está sendo convidado para ser jurado
do Musipuc, tradicional competição que reúne músicos e universitários gaúchos,
já em terceira edição. Igualmente, são jurados João Batista Schuler, então, pela
Rádio Porto Alegre; Alice De Lorenzi, do Jornal Hoje; e Fernando Vieira, da TV
Difusora, entre outros. Das 52 composições escritas, foram selecionadas 24,
divididas entre duas noites classificatórias, dias 5 e 6 de junho. A cada noite, seis
músicas foram selecionadas para a finalíssima, dia 7. Segundo cronista do Jornal
Minuano, na edição daquele mês, o público “soube aceitar e aplaudir o resultado
final”, embora tenha chegado a vaiar o show de abertura do grupo “Em Palpos de
Aranha”.

O grande vencedor foi o conjunto “Status 4”, grupo vocal misto, que
apresentou a composição “Violeiro cantador”, com música de Edson Santos e
letra de Roberto Gonçalves da Silva. O segundo lugar ficou para “Em mar
aberto”, de Arnaldo Sisson e Fernando Ribeiro (ganhadores do II Musipuc). A
terceira colocada foi “Quem sabe?”, de Mauro Rotemberg e Irineu Goldspan e,
em quarto lugar, “Lar doce lar”, de Alexandre Vieira e José Antonio Araújo (que
defenderam a canção acompanhados de Ângela Langaro, formando o
“Inconsciente Coletivo”).

Julio Fürst relata que, em meio a todo o processo do Musipuc, ocorreu


com ele uma conscientização de como articular toda aquela riqueza musical ali
mostrada, com o poderio da Rádio Continental e o interesse do público
universitário. A partir desta conscientização, primeiro transmite pelo programa a
326

participação dos finalistas. O sucesso é imediato. Então, convida os participantes


para realizarem gravações na Continental.

Segundo o técnico responsável pelas gravações, Francisco Anele, a


Continental ganha uma identificação imediata ao valorizar os músicos daqui.
“Havia naquilo uma coisa de porta a porta, porque, agora, era o vizinho, o amigo,
o colega da universidade, o conhecido de alguém tocando sua música no rádio”,
relata Anele.

Fürst recorda que o horário do programa, a partir das 22 horas, coincidia


com o horário de saída dos estudantes, na Grande Porto Alegre, das universidades.
“Era uma ligação direta, entre a Rádio, os músicos daqui e os universitários nos
rádios dos carros e radinhos individuais”, conclui. O operador Anele refere que a
Continental “cedia o estúdio para os grupos sem cobrar nada, à noite, quando o
estúdio não estava sendo usado. A gravação era feita em dois canais para
reproduzir somente em mono”.

Mesmo assim, o interesse crescente do público pelas gravações na


programação da Continental levaria Júlio Fürst para novas iniciativas: a realização
dos “concertos”, shows em teatros e, depois, a utilização de uma hora inteira de
programa tocando, então, somente músicas e músicos locais. Para colocar esta
idéia em prática, Julio Fürst reporta-se ao responsável pelo marketing do
programa “Vivendo a vida de Lee” e grande idealizador do próprio personagem
“Mr. Lee”, Américo Bender. “Fui falar com meu patrão imediato sobre as minhas
idéias. Era muita novidade para fazer sozinho. A Lee com a idéia de cowboy e eu
levando sugestão para fazer programa com música de Porto Alegre”. Após
argumentar, Fürst recebe sinal verde de Bender, incluindo-se, a idéia de logo fazer
os chamados concertos, shows ao vivo com as bandas e músicos locais. Bender
concorda até onde houver sucesso da empreitada. Se falhasse, ele retiraria o
patrocínio. Os contratos para patrocínio exclusivo de “Mr. Lee” eram iguais aos
regularmente celebrados em campanhas de rádio, isto é, com três meses de
vigência, renováveis ou não.
327

Aquela ponte iniciada entre Rádio Continental, música de Porto Alegre e


público, sob patrocínio da Lee, entretanto, duraria três anos intensos e marcantes.
O rádio, a música e a cultura porto-alegrense, entre 1975 e 1978, ficaram
marcados pelas estratégias e ações do “Mocinho da Porto City” e seus parceiros,
nos palcos e microfones.

7.1.26 Os Concertos e os “Discocuecas”

A estratégia de visibilidade pelo oferecimento de shows de bandas e


artistas locais, na verdade, completava o conjunto de ações iniciadas com as
aparições de Hermes Aquino, Fenando Ribeiro, Almôndegas, dentro da
programação da Continental, anterior à organização do “Vivendo a vida de Lee”.

Pela ordem, primeiro fora necessário gravar as músicas, em mutirão.


Depois, obter espaço mínimo e ir ampliando-o para apresentações aos ouvintes na
programação da Continental. A aceitação dos ouvintes garantia mais espaço na
programação. Nenhuma outra rádio realizava aquilo na cidade. Agora, tudo em
rápido espaço de tempo, chegava a vez de aparições em shows ao vivo nos teatros
da cidade. Julio Fürst, sempre acompanhado pelo parceiro Beto Roncaferro e
equipe, estava erguendo o “Vivendo a vida de Lee”, nas versões in concert.

Dia 13 de agosto de 1975, “Mr. Lee” leva ao palco do Teatro Presidente,


que estava inteiramente lotado, treze bandas. O segundo in concert ocorre dia 9 de
novembro do mesmo ano, quando dezoito bandas se apresentam no Auditório
Araújo Viana lotado, numa mostra de som que iniciou às 17 horas daquele
domingo e terminou, aproximadamente, às 2h30min da segunda-feira.

As edições do “Vivendo a vida de Lee in concert”, sempre transmitidas ao


vivo pela Continental, logo, ganhavam platéias em Caxias do Sul, Pelotas, Santa
Maria e Passo Fundo, no interior gaúcho, e chegavam até Curitiba, onde a
produção mesclou bandas gaúchas e paranaenses no show para cerca de seis mil
pessoas.
328

Os esforços para movimentar a parafernália inteira levaram Julio Fürst a


constituir uma produtora, associando-se a Bayard Steigger. “A empresa de
sonorização contratada era a Cotempo, e os iluminadores eram o Oscar, da equipe
do Teatro Leopoldina e o Jerry”, relembra Fürst. Segundo Júlio, a “Lee dava
apoio de mídia não somente ao programa, mas dentro da Rádio e na mídia
impressa e, ainda, alcançava algum recurso para custeio básico inicial. Depois,
tínhamos o rateio das bilheterias para divisão entre todos os músicos, artistas e
técnicos participantes”, segundo “Mr. Lee”.

O imenso prazer de reunir, no palco, artistas, bandas e grupos como


“Mantra”, “Bobo da Corte”, “Byzzarro”, “Palpos de Aranha”, Fernando Ribeiro,
“Utopia”, Gilberto Travi e “Cálculo 4”, “Almôndegas”, Hermes Aquino, “Status
4”, “Mercado Livre”, Nelson Coelho de Castro, “Inconsciente Coletivo”, “Halai
Halai” não excluía tarefas tão enfadonhas quanto delicadas como submeter todo
roteiro de cada show à Censura Federal: “Submetíamos cada tomada de som, cada
fala de artista ou minha no palco, cada letra de música. Tudo parava na Censura e
ganhava carimbo de autorização, folha por folha”. Segundo Fürst, ele foi
chamado, mais de uma vez, à sede da Polícia Federal, porque “o pessoal se
entusiasmava no palco, ou para extravasar, ou por vontade de se manifestar
mesmo, e terminava falando coisas que não estavam no roteiro”, lembra “Mr.
Lee”. Segundo ele, músicos como Fernando Ribeiro e Gilerto Travi, este último
pelas músicas de humor e ironia, estiveram, também, explicando eventuais
manifestações junto aos censores.

Quando chega o verão de 1978, os shows já não mais acontecem e o


programa, na Continental, igualmente, teria carreira encerrada. Por questões
comerciais e mercadológicas, segundo depoimento de Julio Fürst, a Lee decide
retirar o patrocínio exclusivo e encerrar aquela campanha. No ar, morria “Mr.
Lee” e nascia Mestre Júlio, que levaria para novo horário, a partir das 18 até 19
horas, onde antes estivera “Cascalho Time”, novo programa somente de música
popular brasileira, que continuaria a programar, também, músicos de Porto
Alegre.
329

Segundo depoimento de Beto Roncaferro, a maioria dos artistas que


participava do “Vivendo a vida de Lee” estava satisfeita. Havia boa exposição na
mídia, alguns já estavam com discos gravados, mas havia muito trabalho, muita
produção e esforços para deslocamentos e ensaios e o rateio de bilheteria não era
milionário. No contexto, dois ou três grupos passaram a reclamar, pedindo melhor
remuneração e, com o descontentamento de alguns chegando a aparecer em
jornais da época, teria desgostado gestores da Lee que decidiram encerrar com o
patrocínio e, em conseqüência, com os shows.

Enquanto durou o patrocínio exclusivo, entretanto, “Mr. Lee”, com ajuda


na produção de Beto Roncaferro, e nas gravações com Francisco Anele e nas
transmissões, com auxílio fundamental de Bertoldo Lauer Filho, todos eles
associados a grande elenco de artistas locais, haviam construído uma ponte
musical, até então, absurda de realizar, antes de existir a ação radiofônica da
Continental, como afirmava o músico e compositor Kledir Ramil, em depoimento
para o Autor. “A música de Porto Alegre até existiria sem a Continental, mas não
seria aquilo que foi, nem seria aquilo que veio a ser, se não houvesse aquele
espaço da Rádio”, disse Kledir.

No mesmo ano de 1978, Beto e Julio serão escolhidos, respectivamente,


melhor discotecário programador e melhor apresentador de programas musicais,
ambos recebendo troféu Negrinho do Pastoreio, na promoção Melhores do Rádio,
da Secretaria de Turismo do Estado. Os dois amigos, em parceria com Gilberto
Travi e João Antônio, davam início, ainda, à carreira do grupo musical e
humorístico “Discocuecas”. O grupo ocupava os quinze minutos finais,
diariamente, do novo programa de Mestre Júlio e, em 1978, ainda, lançava o
primeiro LP pela gravadora gaúcha ISAEC.

A experiência do grupo “Discocuecas” possibilitou, no mesmo


movimento, organizar, na Continental, espécie de grupo espontâneo de
radiocomédia, já utilizado para gravação de peças publicitárias, e, posteriormente,
com ação na linha de programa de entretenimento. Assim, o grupo fazia humor
paródico, a começar pelo nome, alusão à onda de música disco e a continuar com
a criação de personagens que ganharam memória, como Anacleto Batata, o
330

repórter da colônia, em que Gilberto Travi vivia uma recriação do típico “colono”
alemão, e, ainda, a dupla Rancheirinho e Mári Farmacinha que ironizava à famosa
dupla Teixeirinha e Meiry Terezinha, músicos regionalistas com programas de
rádio sempre patrocinados por diferentes marcas de remédios.

7.1.27 “Inconsciente Coletivo”

Ângela Lângaro, Alexandre Vieira e José Antônio Araújo são acadêmicos


de Psicologia da UFRGS que decidem formar o grupo “Inconsciente Coletivo”,
que ergue, na cidade, a trilha musical do grupo “Halai Halai”, investindo na
criação local da música country e de protesto. Logo, Anginha, Xandi e Tonho
conquistam o público pelos belos arranjos melódicos e pelas letras de inspiração
sessentista, de linha aproximada, espelhada no proposto poético de Bob Dylan.

Naqueles dias, a pequena e brava sede do Diretório Acadêmico dos


Institutos Unificados – DAIU, antigo Instituto de Filosofia, Ciências Sociais e
Letras, fica ao lado do famoso Bar do Antônio e serve como local para os
primeiros encontros musicais, além de espaço para os debates políticos,
discussões de conjunturas e realização de peças escritas, à base do velho
mimeógrafo.

Logo, a participação na mostra do III Musipuc levaria o “Inconsciente”


para palcos e públicos maiores, até a gravação de disco, pela Tapecar, e novas
excursões. Atualmente, Xandi continua a carreira como músico profissional,
sendo também um dos sócios-proprietários do pub Sergeant. Pepper’s. Tonho
tornou-se profissional liberal, e Anginha é psicóloga clínica, tendo acrescido
sobrenome Becker do marido.

Com o depoimento de Ângela, buscamos recuperar, através da memória


pessoal, aspectos de trajetória, individual e do grupo, daquele mundo vivido por
grupo de músicos e artistas junto à Rádio Continental. Tal qual articulamos em
outros depoimentos, registramos, aqui, somente as respostas da entrevistada,
obtidas em dois momentos diferentes, objetivando dar maior espaço para a
331

expressão personificada daquele depoimento pessoal e deixando transparecer as


marcas do discurso de Ângela.

Como especialista no assunto, Lângaro inicia demarcando o próprio


depoimento, alertando para a possibilidade de falha nas lembranças dos tempos
idos. E, então,

Minhas lembranças são mais "encobridoras" do que reais,


mesmo assim, aqui vai o que consegui espremer do meu
cérebro:
O Tonho era nosso "relações públicas", e o Xandy era nosso
poeta. A rádio teve contato com eles para divulgar os
vencedores do Musipuc. Foi assim que conheci o estúdio da
Rádio Continental: para gravarmos "Lar Doce Lar", que ganhou
segundo lugar (sic) no Musipuc. E tinha sido inspirado por uma
plaquinha na porta da casa de um amigo nosso "Home Sweet
Home", amigo que atualmente é meu marido.
As coisas que mais marcaram foram as viagens para o interior
para fazer o show “Vivendo a vida de Lee”. Era um ou dois
ônibus cheios de bandas e a festa na viagem era total. Fazer o
show de entrada do Bill Halley foi também muito marcante,
assim como a apresentação junto com outras bandas no teatro
de Curitiba (aquele famoso que tu sabes o nome e não me vem
agora na cabeça).

O evento referido ocorrera no Teatro Guairá, logo, Ângela lembra do


grupo de trabalho da Continental.

O pessoal era jovem, bem-humorado e sério no seu trabalho.


Queriam a coisa perfeita, qualquer detalhe que não estava bem,
fazia com que repetíssemos a gravação a noite toda. De modo
geral, eles eram nossos fãs, gostavam muito dos vocais e
ficavam entusiasmados com a gravação. Eram estimuladores.
As nossas gravações, na Continental, que chegaram a discos
foram "Voando Alto" e "Fadas Douradas", mas o compacto
simples gravado pelo Tapecar, em São Paulo, tem qualidade
inferior às gravações da Continental. Nosso baixista não foi
aceito, colocaram outro que tomou conta do volume; além
disso, o ritmo das músicas ficou arrastado.

Ângela refere a época, a Rádio e o movimento musical.

Naquela ocasião, não era possível saber da importância daquele


momento. Eram muitas bandas novas, parecia até que aquela
criatividade era geral e não apenas daquele período. Era uma
época de muitos protestos e uma das maneiras criativas e
332

pacíficas de protestar era fazendo música. A Rádio Continental


foi fundamental na divulgação destes conjuntos. Se não fosse o
interesse e a liderança que Júlio Fürst exerceu, na época,
ficaríamos todos tocando na garagem das nossas casas até hoje.
O movimento foi realmente de aposta, não só tocando as
músicas na rádio, mas proporcionando shows e viagens para
muitas bandas, com diferentes estilos.
Eles avaliavam a qualidade e a seriedade da banda, não tinham
preconceitos com os estilos.
Eu sei que o Júlio Fürst seguiu conosco apesar dos
desentendimentos com a rádio e, neste período, eu já estava sem
condições de bancar a banda e a faculdade, com estágios e tudo,
já pensava em me afastar, até porque meu romance com o
Xandy estava terminando, certamente, sem ter idéia do que
aquele movimento significaria na história musical de Porto
Alegre e da Rádio Continental .
Do que me recordo é que houve muito poucos momentos em
que isso foi tema de discussão entre nós. Não nos sentíamos
estrelas que precisavam preservar um determinado nível de
cachê. Ao contrário, ficávamos satisfeitos e orgulhosos quando
sabíamos que éramos escolhidos dentre muitos conjuntos para
estar neste ou naquele show. Nossa idéia era de que não éramos
profissionais. Estávamos ganhando oportunidades e
reconhecimento.
O Xandy e eu éramos os que mais protestavam contra o
"sistema". Talvez se não tivéssemos o Tonho, não tínhamos
aceito a metade dos convites que nos fizeram. O Tonho era um
cara entusiasmado com muitas coisas que o sistema
proporcionava, além disso, era o mais ambicioso de nós três. O
Xandy era o poeta do protesto, e eu era a voz feminina que
casava com o vocal; além disso, era raro uma mulher cantando
naquele movimento.
Isso era bastante valorizado por todos.

No segundo contato, buscamos depoimento sobre o show de músicos


porto-alegrenses levado até Curitiba, por “Mr. Lee in concert”:

Quanto a Curitiba, o que mais nos impressionou foi a


imponência do teatro e o tamanho do público. Talvez o maior
público que tínhamos experimentado até aquele momento.
Certamente, eram várias bandas e cada qual tinha seu pedaço
daquele público, mas, no momento da apresentação, parecia que
todos estavam ali só pra “te assistir”.
Lembro que uma das preocupações nossas, em cada
apresentação, era com o tal de "retorno" que, naquela época, os
recursos de palco não eram tão desenvolvidos. Era muito
importante para nós ouvir cada nota tocada ou cantada, pois a
harmonia era a nossa marca. Algumas vezes tivemos problemas
333

com isso. Mas em Curitiba o som era fantástico e, de repente,


bateu um clima no grupo de que éramos profissionais.
Nessa época, já explorávamos a roupa country, o Xandy estava
completamente identificado com Bob Dylan, e eu já tinha
aprendido a me movimentar no palco, enquanto descolava
alguns efeitos de percussão, com o pandeiro e o agogô.
Nos camarins, quanto maior o espetáculo, maior era o risco da
detonação com álcool, maconha e alguns comprimidos. Se
rolava droga mais pesada, eu não sei, ao menos não era tão
evidente. A gente bebia, mas tinha que cuidar o ponto, pra não
se perder, só baixar o nervosismo e deixar rolar a comunicação
entre nós. Esta sensação "do conjunto" era mágica, algo rolava
fácil em sintonia entre nós, mesmos. Quando tínhamos que
improvisar algum acorde, era bárbaro! Enfim, me fizeste
divagar pelas sensações daquela época. [...]

7.1.28 Outra Nova Programação

A programação da Continental, na fase mais inovadora, a partir do verão


de 1971, sofre inúmeras alterações ao longo do tempo. Referentemente à jornada
diária da programação, por exemplo, a Continental iniciou operando das 6 até as
24 horas, depois, expandiu até as 2 horas e, por fim, chegando até as 24 horas no
ar. A maioria dos programas principais, entretanto, mantém-se no ar,
praticamente, até o final da década, quando ocorre declínio do projeto da
emissora.

Em 1975, no entanto, “Julius Brown” está sendo enviado para “exílio no


Nepal” e, em seu lugar, no mesmo horário das 22 horas, entra “Mr. Lee”, com o
mesmo Julius Fürst. A outra substituição importante está ocorrendo com a saída
do consagrado “Discos de Ouro”, que iniciou na Rádio Guaíba e migrou, entrando
no ar o “Pediu, Rodou, Ganhou”, com o mesmo Marcus Aurélio Wesendonk.

De resto, como conjunto articulado, mostrando nomes e atrações


principais, flagramos, naquele ano de 1975, uma oferta de programação
encorpada, sedimentada da Continental. Seguindo necessidade comercial e
mercadológica, naquele mesmo ano, a emissora tratava de anunciar as novidades,
pontuais e não estruturais, dentro do conjunto da programação já conhecida. Para
tanto, a Rádio produziu uma peça especial, “exclusiva”, distribuída através de
334

gravações em fitas cassetes para agências, anunciantes diretos e clientes


potenciais.

A peça sonora marca, em linguagem própria, o estilo de publicização e


venda da Continental, explicitando as principais características dos programas,
com dados específicos para anunciantes.

No trabalho da pesquisa, recuperamos a gravação original e transcrevemos


o texto abaixo. O locutor oficial da Continental é Marcus Aurélio Wesendonk e,
na técnica de áudio, estão Manoel Almeida e Francisco Anele, cujo acervo pessoal
resgata a memória sonora da emissora. Inclusive, a peça a seguir:

LOC 1 – Amigo, aqui estamos para um rápido papo sobre as


novidades introduzidas na programação Alto e Bom Som da
Continental./
TEC – RODA TRILHA, DESCE PARA BG E CORTA.
LOC 1 – Pra começar o dia, anunciamos, das sete as sete e
cinqüenta e sete.../
TEC – RODA CARACTERÍSTICA PROGRAMA “OPINIÃO
JOVEM” E DESCE PARA BG.
LOC 1 – “Opinião Jovem”./ Patrocínio americano do IPV. Um
programa ágil, inteligente, bem informado, com produção e
apresentação do FOGAÇA e do CLÓVIS DUARTE/.
TEC – RODA ÁUDIO FOGAÇA. DEIXA INICIAL: “Eu li
alguns dias atrás, no jornal o Estado de São Paulo...”. E DESCE
PARA BG.
LOC 1 – “Opinião Jovem” propõe-se a uma hora de informação
variada, música da boa, reportagem e crítica sobre o mundão em
geral e o Portinho em particular./ Vale a pena escutar./
Comercial participação no “Opinião Jovem” custa cem
cruzeiros e cobre seguramente a faixa nobre da classe A, B,
masculina./ Ou seja, o público até trinta e cinco anos de idade/.
TEC – RODA ABERTURA “1120 É NOTíCIA” E DESCE
PARA BG.
LOC 1 – Depois do “1120 é Notícia” das sete e cinqüenta e
sete, começa.../
TEC – RODA TRILHA E DESCE PARA B.G.
LOC 2 – “O Show da Grande Porto Alegre”, a dica musical da
Continental para o seu bairro. Música para Petrópolis./
TEC – CORTA TRILHA, RODA MÚSICA E VAI PARA B.G.
LOC 1 – Que vai até as nove e cinqüenta e sete. Quem
apresenta é DOMINGOS MARTINS. Já aí estamos em linha
direta com os estudantes e a jovem dona-de-casa. Às dez, o
papo é comigo.../
335

TEC – CORTA MÚSICA E RODA TRILHA “PEDIU,


RODOU, GANHOU” E DESCE PARA B.G.
LOC 3 – Começa aí o .../
LOC 3 – “Pediu, Rodou, Ganhou”. Transas super quente dos
supermercados Real. Com MARCUS AURÉLIO.../
LOC 1 – Aqui o ouvinte ganha um cassete personalizado como
esse que você está ouvindo, com a música que ele pediu por
carta. É claro que se ele pedir JERRY ADRIANI, não vai levar
nunca. Você sabe, na Continental, marca diabo não tem vez. É
um dos nossos maiores sucessos e recebe uma média diária de
cem cartas dos ouvintes. Até as onze e cinqüenta e sete vamos
levando esse super programa. Depois segue o Som Continental
até as três da tarde, quando o microfone passa para o RUI
CARVALHO./
TEC – RODA TRILHA “Participação... Parada”.
LOC 4 – Outra curtição da superquente. Você e a Continental
numa viagem musical./
TEC – RODA CORTINA CARACTERÍSTICA PROGRAMA
“PARTICIPARADA...”.
LOC 4 – Música número um, sugestão da universitária da PUC,
JUSSARA STAROSTA./
TEC – RODA SONORA DE JUSSARA STAROSTA:
“COULD IT BE MAGIC”, COM A DONNA SUMMER”./
LOC 1 – É um novo lance da Continental, cheio de vinhetas e
bossas que ganharam o público da tarde. Depois, às seis em
ponto, na hora do Ângelus, vem...
TEC – RODA VINHETA PROGRAMA “CASCALHO TIME”
E DESCE PARA B.G.
LOC 1 – Infelizmente aqui não dá para colocar comerciais, pois
o “Cascalho Time” tem patrocínio exclusivo de Saco &
Cuecão./
TEC – RODA TRILHA E DESCE PARA B.G.
LOC 1 – Depois do CASCALHO, tem o “1120 é Notícia”, das
dezoito e cinqüenta e sete. E depois/
TEC – RODA ABERTURA “VOZ DO BRASIL”, DESCE
PARA B.G. E CORTA.
LOC 1 – Assim que passado o Projeto “mienerva” (sic), já são
oito e meia da noite. E depois de meia hora de embalo jovem
para recuperar a audiência, chegamos a hora e a vez de.../
TEC – RODA SONORA: “A partir desse momento na
superquente Continental, o Ritmo Vinte”.
LOC 1 – Este é outro programa de patrocínio exclusivo./ Aqui
comerciais só os que cercam o programa./
TEC – RODA TRILHA E DESCE PARA B. G.
LOC 1 – O mesmo vai acontecer às dez da noite, quando chega
o descobridor de talentos, o homem do movimento musical do
Rio Grande/
336

TEC – RODA VINHETA DO PROGRAMA “VIVENDO


VIDA DE LEE” E CORTA./
LOC 1 – Mas a partir das onze, tudo é livre, pois o Som Mil
Cento e Vinte segue a pleno em sua programação, que vai
baixar de tom depois das duas, indo até as seis da matina numa
atuada meia boca. Músicas mais românticas para embalar a
meninada que deita tarde.
TEC – SOBE A TRILHA E DESCE PARA B.G.
LOC1 – É assim a madrugada Continental. Essa é a nossa
programação de segunda a sexta, recheada ainda de macetes
como.../
TEC- RODA TRILHA BILLBOARD E DESCE PARA B. G.
LOC 1 - “Billbord”, “Biplex”, “Flash Back”.../ Na parte de
notícia, além do “1120 é Notícia”, de hora em hora, tem ainda
“Mala Direta” e “Telex Ipiranga”, com uma notícia quente./ E
para o fim de semana, nada? Não, caro./ Pro fim de semana
também temos novidades./ Aos sábado, às três da tarde,
UBIRAJARA BRASIL apresenta/
LOC 5 – “Sábado in Concert”./
LOC 1 – E aos domingos, também às três da tarde./
TEC – RODA TRILHA E DESCE PARA B.G.
LOC 5 – “Domingo in Concert”/.
LOC 1 – BIRA comanda a música superquente e dá as dicas./
São três horas bem movimentadas, no fim das quais, quem for
tomar café em Morro Reutter, com este programa de fim de
semana, é porque se trata sem dúvida de um irrecuperável./////

Um grande diferencial, na oferta da Continental quanto à programação,


além do fato já referido da segmentação musical para público jovem universitário,
esteve na transmissão de esta oferta ser realizada, na maior parte, ao vivo. Este
rádio feito ao vivo acrescia valor positivo para a programação básica transmitida,
conforme inúmeros depoimentos colhidos de “ouvintes ideais” e de integrantes da
equipe. No conjunto, os depoimentos referem “mais pulsação”, “energia”,
“comunicação” e “força viva” como qualidades percebidas a partir daquela
interação, ao vivo, possibilitada pela Rádio.

Este “fazer ao vivo” será, particularmente, relevante no confronto da


Continental com as concorrentes emergentes, em especial, rádios Pampa e Porto
Alegre, que transmitiam, na maior parte, programações gravadas.

Como a programação Continental estava fortemente centrada na oferta


musical conjunta, este cuidado expandia-se a toda a programação e, não somente,
337

aos programas especiais ilhados, isolados na programação. Assim, é


particularmente importante a oferta dos chamados “blocos musicais”
diferenciados. A idéia original foi da Rádio Mundial carioca, que, aqui, recebeu
mais do que adequação, sendo remodelada, sobretudo, pela inserção das notícias
em linguagem própria, pela costura possibilitada pelos slogans e vinhetas
especiais da Continental, junto ao serviço de informação da hora e temperatura. A
linguagem publicitária, como já dissemos, igualmente, adequava-se à forma e ao
conteúdo de toda a programação. Para cada bloco musical, portanto, havia
intercalado uma inserção de fala de serviço, institucional e publicitária, ou uma
síntese noticiosa, de um modo integrado pela linguagem e estilo Continental.

Cada bloco musical possuía trilha musical característica, fosse “Cashbox”


ou “Billboard via telex”, em serialidades musicais articuladas com as listas dos
sucessos trazidos por Cashbox e Billboard, as principais publicações
especializadas em música internacional à época. O mesmo ocorria caso fossem
“Duplex”, “Triplex”, “Four Play” ou “Flash Back – Jovem também tem
saudade”, este último segmento sendo cópia da Rádio Mundial. A Rádio oferecia
esquema de apresentação de duas músicas na continuação, quando o padrão da
época oferecia somente uma e intercalava, entre as duas, uma música nacional
para cada música internacional. A dificuldade de proporcionalidade acontecia nos
espaços “Triplex” e “Four Play, conforme assinala o programador Beto
Roncaferro, pois, “na época, não havia tanta música brasileira jovem de qualidade
gravada e à disposição como verificamos hoje”. De qualquer modo, os blocos,
sempre entremeados por um comercial e vinheta institucional, tinham monotonia
quebrada, justamente, pelo tamanho e conteúdos dos blocos.

Cada bloco de “Duplex”, por exemplo, apresentava a seguinte ordem: uma


música internacional, uma música nacional, dois comerciais seguidos, uma
vinheta da Rádio com hora certa, início de novo ciclo com mais duas músicas e,
assim, sucessivamente. A monotonia do bloco simples era quebrada pela inclusão
do “Triplex” ou “Four Play”.

No segmento do radiojornalismo, a Continental oferecia, desde cedo, pela


manhã, dezessete edições diárias do “1120 é Notícia”, principal atração como
338

síntese noticiosa, mais uma resenha noturna longa, já que os programetes


regulares tinham 5 minutos totais, sendo apenas três efetivos de notícias, sempre
ao término da hora cheia.

Além da programação básica diária da Continental, já referida, a emissora


ofertou, ainda, outros programas, mesmo relevantes, mas apresentados apenas
uma vez na semana. Como exemplo disto, podemos referir o “Transas 1120”,
produzido e apresentado por Berenice Otero, com o patrocínio da caderneta
Apesul, “o símbolo da melhor poupança”, às 23 horas de cada sexta-feira.

Com idêntica periodicidade, podemos referir, ainda, “Beatlemania”, com


patrocínio exclusivo IPV, apresentado por Clóvis Dias Costa. Posteriormente, o
programa seria produzido pela equipe de jornalismo e apresentado pelo locutor da
hora. Por fim, teria produção e apresentação exclusiva de Ananda Apple.

Das 23 às 2 horas, acontecia o “Som Continental”. Quando contratado,


Beto Roncaferro começa a produzir e apresentar, diariamente, “A hora do lobo”,
das 24 à 1 hora, programa que solidificou a marca “roqueira” da Continental, no
horário noturno. Naquele espaço, Beto contava com grande liberdade,
programando “Yes”, “Genesis”, Pinck Floyd, Frank Zappa, com “músicas para
viajar, com duração eventual de até cinco minutos”. Beto, ainda, produzia e
apresentava, somente aos domingos, “Hoje é dia de rock”, que fazia revival dos
anos 50-60, na trilha do sucesso, em 1974, do filme “American Graffiti”.

Aos sábados, às 19 horas, era apresentada a “Parada Continental”,


trazendo “uma seleção do hit parede mundial, produzido pela equipe 1120”.
Antes, rolava o “Sábado in Concert” que tinha apresentação similar, no domingo,
sempre das 15 às 18 horas, na voz de Bira Brasil.

No segmento de programas especializados, Luiz Eduardo Moreira criou o


“Fórmula 1120”, sobre automobilismo, após experiência com “Bandeira xadrez”.
Embora não investisse no segmento de esportes, havia o programa “Loteria”, de
serviços, com patrocínio exclusivo da agência lotérica Periquito da Sorte. “No
Periquito da Sorte, você está sempre na coluna certa./ Voluntários, 191”,
anunciava o slogan. Na linguagem, o programa marcava, novamente, pela
339

informalidade da locução, como: “Fala o Periquito da Sorte,/ no jogo 7, Grêmio 5,


Esportivo, zero./ Tá dando coluna do meio/”.

Fernando Westphalen refere que a programação não era formatada


rigidamente, estando aberta para novidades e oportunidades. Estas experiências e
inserções tinham diferentes motivações. Assim, “Horóscopo da Pesada”, com
apresentação do próprio Judeu, serviu para marcar espaço e estilo da Continental;
já o “Verão Superquente” era típico programa sazonal. Outros programas de
oportunidade foram, por exemplo, “Curtição Musical Gipsys”, com patrocínio de
boate homônima, apresentando músicas de sucesso daquela e de outras casas
noturnas de Porto Alegre, ou, ainda, o “Supermercado da cultura” que
apresentava, em cinco edições diárias, síntese noticiosa de serviços e agenda
cultural da cidade, a partir das 14 horas. Na linha informativa, a Rádio ofertava,
ainda, o “Mala direta” e o Telex Ipiranga”, este patrocinado por empresa de
petróleo e postos de serviços automotores. Os programas de radiojornalismo eram
produzidos a partir de intensa atividade de radioescuta (rádios Joven Pan, Globo,
Bandeirantes-SP e Guaíba) e, com recliclagem, a partir do gilette press,
utilizando-se de recortes dos principais jornais de Porto Alegre e do Rio de
Janeiro e São Paulo.

No fim de noite, a partir das 2 horas, os notívagos acompanhavam a


“Madrugada Continental”, “numa toada meia boca”, conforme anunciava peça
promocional, e, no encerramento do ciclo, das 3 às 6 horas, rodava uma
programação gravada, sob os cuidados do operador de áudio da emissora.

A publicidade, na Continental, estava, visceralmente, integrada à


programação geral da emissora e foi erguida, peça a peça, de modo a se tornar
conjunto especial na atratividade para o ouvinte. Sendo diferenciada, na produção
e na expressão da linguagem, buscava garantir mais e melhores anunciantes.
Nesse sentido, a publicidade Continental buscou e conseguiu constituir-se em
peripécia de sucesso, quer diante dos anunciantes, quer para a audiência do
público.
340

O discurso “guerreiro” da Continental, erguendo modelo de contraposição


a diferentes emissoras, não era uma mera questão de estilo, portanto, estética ou
expressiva. Estava centrada, diretamente, na questão da sustentabilidade, de
disputa comercial e publicitária.

Nesta direção, publicamente, a Continental disparava slogans contra a


Rádio Caiçara (“Continental, não tem marca-diabo”), Rádio Pampa
(“Continental, parecido não é igual” ou “Continental, the first”) e contra a Rádio
Guaíba (“Continental, não tem cupim” ou “Continental, não usa válvulas”).

Em relação à Rádio Guaíba, a confrontação estava dirigida para o modelo


de austeridade, seriedade, sobriedade da emissora da Caldas Júnior e, sobretudo,
pelo fato de aquela emissora deter a hegemonia, tanto radiojornalística, quanto
comercial na região. “Eles eram muito poderosos, mas, na hora da divisão do
bolo, a coisa era disputada. A coisa era séria. E tínhamos a tabela mais elevada e
com muitos horários sem espaço à venda”, revela Marcus Aurélio Wesendonk,
referindo, ao mesmo tempo, o poderio da Guaíba, os elevados preços de tabela
praticados pela Continental e o sucesso do “som nosso de cada dia” junto às
agências de publicidade e anunciantes.

Entre os anunciantes da Continental, estavam produtos e vestuário para


jovens, como as já referidas Lojas Renner e Lee; igualmente, as lojas Saco &
Cuecão, Butikão, Londres, Gaston; ainda, Lojas Bier e os jeans Ellus; e, também,
as butiques Lixo e W. C.

Voltados para público estudantil, apareciam como anunciantes os pré-


vestibulares IPV, Mauá e Intensivo, ladeados por outros patrocinadores de porte,
como Ipiranga de Petróleo, Imcosul, Caixa Econômica Federal, Banrisul, J.H.
Santos, Gaúcha Car, Panambra, Masson, Scarpini, Mesbla e Pepsi. O Grupo
Iochpe, a exemplo do IPV, aparecia em mais de um espaço, como o musical e o
jornalístico, através da Mercator Corretora de Valores, no patrocínio do “1120 é
Notícias”.

As casas noturnas e boates compunham grupo, aparecendo, em especial,


Gipsys, Scalaris, Encouraçado Butikin, Looking Glass e Chopão.
341

7.1.29 “Opinião Jovem”, com o Professor Fogaça

Quando Fernando Westphalen convida os, então, professores Clóvis


Duarte e José Fogaça para integrarem a equipe 1120, ambos já tinham larga
experiência como profissionais da educação e, mesmo, da comunicação.

Clóvis e Fogaça, além de professores e sócios do Instituto Pré-Vestibular


(IPV), atuavam como comentaristas no telejornal “Porto Visão”, da então recém-
inaugurada TV Difusora, hoje, Bandeirantes. Porto-alegrense nascido em 13 de
janeiro de 1947, Fogaça, então, leciona Língua Portuguesa e Literatura, já tendo
atuado em diversas escolas, como Colégio Israelita, Rui Barbosa, IPA e Bom
Conselho, onde, inclusive, organiza, pioneiramente, mostra de música jovem
urbana. O IPV é um dos cursos pioneiros, na cidade, na preparação para o
chamado “vestibular unificado”, único modo de ingresso na universidade
brasileira, à época.

Fogaça analisa a própria chegada na Continental como uma “espécie de


continuidade”, de prolongamento de carreira profissional de comunicação até ali
empreendida. Portanto, não há dificuldade para a dupla ancorar o programa
“Opinião Jovem”, a cada manhã na Continental. Clóvis cuida das pautas nacionais
e gerais, e Fogaça pauta as notícias de política e cultura, principalmente.

Se, à noite, a Continental encerrava o turno, após o horário das aulas, nas
universidades, com “Mr. Lee” conversando com o público, pela manhã, no
caminho para as aulas, o universitário, ou pré-vestibulando, ou secundarista podia
manter conversação, ao vivo e em linguagem atualizada, com os professores
Fogaça e Clóvis, que traziam temas relevantes, em abordagem local e
pessoalizadas.

Ao convocar Fogaça para a Continental, na realidade, Westphalen e


Wesendonk contratavam um jovem intelectual com capacidade para aglutinar
tendências e grupos musicais e artísticos que passam a freqüentar, no cotidiano, a
Rádio. O caso exemplar estava na amizade musical com o grupo numeroso e, à
época, ainda amador, “Almôndegas” que, primeiramente, grava e roda, na
342

Continental, os sucessos Vento Negro (de autoria do próprio Fogaça), Até não
mais e Quadro Negro (ambas do Kledir Ramil). As duas primeiras composições
rodam sem parar, com exclusividade, na Continental.

A partir de 1970 e, principalmente, no ano seguinte, no Musipuc, Fogaça


passa a interagir com demais músicos locais. Em 1972, Fogaça organiza uma
mostra musical. A partir dali, Fogaça atuaria como promotor cultural de mostras
musicais na cidade, reunindo jovens músicos gaúchos de diferentes tendências,
orientações e estilos. Em 1972, a primeira mostra aconteceu no palco, em ruínas,
do Teatro São Pedro, antes da grande reforma. Fogaça concebe, produz, formata e
apresenta, no palco, a mostra que tem patrocínio do IPV e, mesmo sem atuar,
ainda, na Continental, merece grande apoio de divulgação no som da 1120. Ali
estavam surgindo Kleiton e Kledir, Pedrinho Figueredo, Zé Flávio, Pery Souza,
entre outros.

Segundo Fogaça, foi importante para o movimento local a realização dos


festivais realizados pelas tevês Record e Excelsior, como fonte de referência,
inspiração e diálogo. A partir disso, “as mostras porto-alegrenses significavam
nossa tentativa de aproximar o nacional e o regional-urbano, não através daquele
regionalismo conservador”.

O objetivo, segundo Fogaça, estava na busca pela renovação da linguagem


musical gaúcha e aponta, como concretização desta luta, a vitória obtida na
Califórnia da Canção, em 1975, com a inovadora Piquete do Cavera, composição
de sua autoria, interpretada por Kleiton e Kledir, que determina, inclusive,
alteração na própria competição, que mudaria o regulamento, criando a nova linha
para “música de projeção folclórica”.

Havia forte convergência de interesses entre aquele grupo de artistas,


músicos e compositores urbanos, à época, com a prática já empreendida pela
própria Continental, inovadora da linguagem radiofônica, então.

O suporte técnico e midiático da Continental foi fundamental para este


ciclo e movimento musical urbano. O depoimento de Fogaça aponta-nos, como já
ocorrera em outros, para as colaborações individuais de Bertoldo Lauer Filho e
343

Francisco Anele para realização das peripécias da Continental com a música


urbana, que teve garantidas as condições técnicas de som para gravação através do
trabalho dos dois profissionais.

“O trabalho deles possibilita à Continental realizar um trabalho inovador,


inédito, desusado de prestigiar o músico, o cantor, a cantora local”, refere Fogaça.
Para ele, outras emissoras tiveram experiências semelhantes, mas nenhuma com
tamanha ênfase para o artista local, sobretudo, para os compositores urbanos
locais. “Os antigos programas de auditório tinham artistas locais, é verdade. Mas
cantores e cantoras locais interpretando grandes sucessos internacionais ou
composições chegadas de autores de São Paulo ou do Rio de Janeiro”, afirma.
“Mesmo Elis Regina, inicialmente, não canta, não interpreta os compositores
gaúchos, enquanto cantora local, enquanto cantora gaúcha, em Porto Alegre, no
início de carreira”, constata Fogaça. Ele ressalta que isso não tirava méritos dela e
nem dos demais excelentes artistas locais. Arremata Fogaça:

Tratava-se de uma tendência cultural. Não havia nisto culpa de


ninguém. Apenas, é fundamental constarmos, hoje, a
Continental vem quebrar com esta prática. A Continental realiza
a primeira ruptura com a tradição de uma cultura musical
radiofônica, até ali, voltada exclusivamente para o centro do
país, sobretudo, o Rio de Janeiro.

Sobre o programa “Opinião Jovem”, concebido pelos próprios professores


apresentadores, Fogaça afirma que o grande diferencial buscado estava,
justamente, nos comentários, fazendo jornalismo interpretativo. Fazendo jus ao
nome do próprio programa, o grande atrativo estava no conjunto de opiniões de
Clóvis e Fogaça sobre os assuntos principais de cada manhã, fossem estas pautas
internacionais, nacionais ou locais, das 7 às 8 horas.

“Testamento“ é a música característica do programa, autoria de Fogaça,


interpretada por Kleiton, Kledir, Zé Flávio e Pery Souza, e dizia: “nas asas do
pensamento/ no clarão deste luar,/ vem da noite o meu grito.../ de manhã te
despertar”. “Testamento”, gravada por Anele, era acionada através do disparo da
cartucheira spot master, grande inovação facilitadora para trabalho na mesa de
áudio e programação em geral, que fascinava Fogaça, pela facilidade de
344

acionamento da gravação, “com um simples toque”. Anele gravou e armazenou,


na cartucheira, ainda, outras trilhas especiais de passagem, sempre interpretadas
com a musicalidade dos Almôndegas, para o programa.

Naquele tempo, “era perfeitamente possível ir para a praia de Ipanema


namorar no carro e ouvir a Continental. Ir para o Morro Santa Teresa, ficar
olhando a cidade, namorar e ouvir a Continental”, recorda Fogaça. Naqueles anos,
o carro era uma espécie de sala de visita móvel, um lugar também para ficar,
conviver e, portanto, para o jovem ouvir rádio e, sobretudo, a Continental.

Na Rádio, Fogaça identificava e aponta, ainda hoje, como importantes a


mescla de diferentes grupos, algo como núcleos de produção e afinidades de
jovens. O primeiro destes grupos ou núcleos estava naquele próprio integrado por
Fogaça e formado por jovens músicos, artistas e compositores locais. Outro, ele
identificava nos redatores do radiojornalismo, “grupo responsável pela qualidade
de linguagem, sempre com uma pimenta, provocativo, irreverente diante da
opressão política”, afirma. Outro nucleamento, sem dúvida, “estava nos
programadores musicais que traziam o melhor da MPB, mas, igualmente,
programavam excelente música popular internacional, desde The Who até The
Tentations”. Por fim, Fogaça refere o grupo de pessoas em torno de “Cascalho”,
ele próprio figurando como uma espécie de “ave rara” diante do contexto mais
politizado da Continental. “O Cascalho era muito diferente de nós. Mas eu o
respeitava. E éramos amigos, somos ainda. Eu gostava disso na Rádio. As
diferenças fazendo música na programação”, conclui Fogaça.

Nós identificamos nas articulações destes diferentes grupos e no conjunto


destas experiências, justamente, o habitat cultural, o lócus onde se articula certa
auto-educação possível, a paidéia radiofônica por nós referida, aqui, para os
produtores, mas também possibilitada para os ouvintes da Rádio.

Pessoalmente, Fogaça, desde a criação de “Vento Negro”, composição


onde ele manifestava certo descontentamento não explicitado contra o regime
político brasileiro, onde propunha o vento como metáfora da mudança, não
violenta, da necessária transformação, iniciava trajetória, ele próprio, de
345

transformação de consciência política. Após votar em branco na primeira eleição


da qual participa, Fogaça, já na eleição de 1974, está votando em Paulo Brossard,
do MDB, na histórica eleição para o Senado, contra Nestor Jost, pela Arena. Dois
anos depois, Fogaça filiava-se ao MDB e, em 1978, era candidato pelo mesmo
partido pela primeira vez, e eleger-se-ia deputado estadual, federal e,
posteriormente, senador. Em outubro de 2004, já integrante do PPS, Fogaça lidera
frente eleitoral com doze partidos e derrota, no segundo turno, a Raul Pont,
candidato da Frente Popular que, durante 16 anos consecutivos, estivera no
governo da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

7.1.30 Dedé, a Produtora

Denise Ribeiro, a Dedé, trabalha com Fogaça, na Difusora, quando é


convidada para trabalhar com o professor, na Continental, a partir de junho de
1976. Será, sobretudo, produtora e repórter do programa “Opinião Jovem”, com
direito a sugerir pautas. Logo, terá auxílio do Marcos Oliveira e, no futuro, virá a
Nôia, Eleonora Rizzo, passando Dedé a atuar na redação.

O programa, raramente, fazia entrevista em estúdio, quase nunca por


telefone, mas colocava, no ar, pautas da cidade e de cultura gravadas na tarde do
dia anterior, com o uso da pesada e eficiente gravadora Uher, “com som de
estúdio”, lembra Dedé. Com freqüência, as perguntas de Dedé eram “dubladas”
no ar pelas vozes de Clóvis e Fogaça e, por vezes, permanecendo a voz da própria
repórter.

A experiência, a partir das produções de “Mr. Lee” com a música urbana


local, foi marcante para a jovem jornalista. Dedé identifica, naquele movimento,
ao mesmo tempo, a ponte principal para todo o conjunto de artistas, com algo
novo a dizer na música porto-alegrense e, também, a partir do relacionamento
humano e profissional com integrantes do grupo, a própria definição profissional
para ela.
346

Novamente, visualizamos, ali, o aspecto empírico e formativo da paidéia


radiofônica operante, tanto para Dedé, quanto para os artistas, vivenciando o
cotidiano da Continental.

Afirma Dedé:

na verdade, foi aquilo que definiu a profissão que tenho até


hoje. Afinal, não eram só os shows do Júlio. Era toda a
programação da rádio que tocava os gaúchos todo o tempo. Daí
eles ficavam sempre lá, no programa do Clóvis, do Cascalho...
Eles gravavam as músicas nos estúdios da Rádio. Daí queriam
fazer show e não sabiam como. Eu comecei a ajudar... Tinha um
barzinho, em frente aos estúdios, e eles ficavam lá sempre, os
músicos.

Confidencia Dedé:

Conheci ali o meu primeiro marido (Fernando Ribeiro, pai do


meu filho Lucas). Foi na Continental que conheci também meu
segundo marido, Renato Mendonça, pois ele era guitarrista da
banda Semente. Meu namorado atual, incrivelmente, também. É
o Arnaldo Sisson, ex-parceiro do Fernando, que eu fiquei 20
anos sem ver...

Segundo a produtora,

era tudo uma grande turma que ficava por lá, em torno da
Rádio. E muitos deles mantêm um convívio legal até hoje:
Bebeto Alves, Fernando Pezão, Zé Flavio, os Ramil. O Nelson
Coelho de Castro chegando depois.

De certo modo, esta aproximação dos sujeitos e a própria qualidade do


grupo garantiria, na interpretação de Dedé, a continuidade do trabalho profissional
musical na cidade. Nesse sentido, o término do contrato com a Lee, o fim da série
de shows com “Mr. Lee” e, mesmo, mais adiante, o fim do ciclo da própria Rádio
Continental, não representará o fim daquele movimento musical, que migra para
as FMs, para as gravações em discos, para a realização de shows individuais ou
coletivos, enfim, dá continuidade às carreiras profissionais em diferentes
dimensões e intensidades.

Segundo Dedé,

Não acho que o movimento tenha terminado. Terminou só o


patrocínio da Lee, mas daí todos os artistas já estavam andando
347

sozinhos. A Continental foi engolida pelo sistema FM, e os


artistas migraram inteiramente para a Bandeirantes FM (hoje,
Ipanema). Tudo continuou. O Fernando Ribeiro lançou seus
dois álbuns com teatros lotados (na OSPA e na Reitoria), isso
depois de terminar a coisa da Lee. Acho que foi um movimento
de ocupação de espaço na vida cultural da cidade e do Estado e
que funcionou bem, cumpriu sua função. E esse espaço nunca
mais se fechou.

A partir daquela ação comunicacional da Continental, o movimento


musical de Porto Alegre passava a projetar nomes e tendências. A banda Bixo da
Seda grava LP e projeta-se nacionalmente. Hermes Aquino dá continuidade à
carreira solo, através de diversas gravações, incluindo o LP “Desencontro de
primavera”, recordista em vendas, em 1977, música título incluída na trilha de
telenovela da Globo, a exemplo de Nuvem Passageira, incluída, no ano anterior,
no LP de “Casarão”. Fernando Ribeiro tem contrato firmado com a Oden.
Gilberto Travi e Cálculo 4 foram contratados pela Warner Music, enquanto
“Inconsciente Coletivo” e “Halai Halai” gravam pela Tapecar.

Além desses nomes mais bem-sucedidos, o movimento musical pela


Continental oportunizou, ainda, o aparecimento, no palco e no dial de nomes,
posteriormente esquecidos, mas projetados pela ação da Rádio: “Flor de Cactus”,
“A Barra do Porto”, “Laranja Mecânica”, “Metamorfose”, “Alma de Borracha” e
“Demian”.

7.1.31 Pery Souza

Músico, compositor, intérprete, Pery Souza integra o grupo Almôndegas,


desde a primeira formação, e, nessa condição, ainda como músico amador,
aproxima-se da Rádio. Hoje, analisa o trabalho da Continental como a realização
fundamental para a música gaúcha, num ciclo que teve começo e fim datados,
mutante.

Segundo Pery, a

relação com a Rádio Continental começa [...] sobretudo, como


um ouvinte satisfeito com toda aquela movimentação
348

radiofônica onde tanto a comunidade de Porto Alegre e


arredores, de uma forma geral, e a comunidade cultural, em
particular, se sentiam representadas. No meio de tudo isto, veio
a gravação feita pelo grupo, já “Almôndegas”, mas ainda
amador, que resultou na execução de algumas dessas canções,
principalmente “Até Não Mais” (do Kledir), “Vento Negro” (do
Fogaça), entre outras. Fita que foi gravada pelo Anele (técnico e
produtor de estúdio que, posteriormente, passou a gravar a
maioria dos discos produzidos pela gravadora gaúcha Isaec).

Pery identifica, no trabalho de “Mr. Lee”, uma articulação com o conjunto


da programação da Continental, “que já vinha projetando a música local nos
diferentes espaços diariamente”. Pery não elege uma razão precisa para o final das
realizações, tanto do “Vivendo a vida de Lee”, como da própria Continental.

Reflete o músico e compositor:

Eu não saberia precisar a razão, mas acredito que isto se deve


ao fato de que as coisas, de uma forma geral, cumprem um ciclo
de existência. Às vezes tornam-se desgastadas por falta de
renovação, em outros casos, também, ocorre que a concorrência
acorda e passa a propor novidades que são bem aceitas, não
necessariamente pela qualidade, mas por algo que acaba
atraindo mais.

Pery entende que a contribuição da Continental foi

muito importante para aquele momento histórico da nossa


cultura musical local, pois, a partir do espaço radiofônico, foi
criada, também, pelos produtores da rádio, com a captação de
patrocínios importantes, uma estrutura que possibilitou a
aproximação, tanto da música como, por parte dos agentes
culturais musicais, de um grande público. Dificilmente, aquele
momento teria a abertura de espaços e a repercussão que
alcançou sem toda a estrutura que foi montada a partir do apoio
da Rádio Continental.

7.1.32 Eleonora Rizzo

Eleonora Rizzo é, na atualidade, uma importante e elegante empresária, no


ramo de restaurantes e cafés, em Porto Alegre. É num destes espaços
administrados por ela que acontece nossa entrevista. Trata-se do Café do Cofre,
349

localizado na imponente sede do Banco Santander, no centro histórico de Porto


Alegre, distante cerca de uma quadra da antiga sede da Rádio Continental.

O início de Eleonora, na Continental, resulta de algo típico das relações


humanas e profissionais à época. Acadêmica no curso de Jornalismo da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Eleonora é convidada
pelo amigo e colega Paulo Verri, à época, trabalhando como jornalista na
Continental. A ela caberá substituir Dedé Ribeiro, durante as férias regulares desta
repórter e produtora. Dedé acompanha Eleonora durante a primeira semana de
desafios e adaptações. O programa é o “Opinião Jovem”, já referido na tese (p.
341)

Estamos em 1977: Guilherme Socias Villela, apesar de autoridade


nomeada pela ditadura, cumpre excelente mandato como prefeito de Porto Alegre.
Toda terça-feira, havia uma entrevista coletiva. É a primeira matéria
radiojornalística da “foca”.

Os grandes ban-ban-bans da época, todos de rádio, cobriam


prefeitura e câmara de vereadores e ficaram todos me olhando,
cavalheirescamente, me deixando fazer a primeira pergunta, e
eu fiquei apavorada. Minha pauta era sobre os “corredores de
ônibus”. Era a discussão do projeto para implantar os
“corredores”, pista exclusiva para descongestionar fluxos
grandes avenidas.

Eleonora gagueja, tem sudorese, fica muito nervosa, mas termina


realizando a pergunta. Depois de todo o sofrimento, tendo feito sua estréia com o
próprio prefeito, a repórter senta-se sozinha, nas escadarias em frente à Prefeitura
Velha, e chora. Chora muito. Ela acredita, então, que jamais conseguirá ser
jornalista.

Naquele tempo, a Continental utilizava uma excelente “gravadora de


rolo”, alemã, marca Hurrer, portátil, mas que pesava seis quilos. Como a emissora
não possuía unidade móvel, mesmo tendo a maioria das pautas desenvolvidas no
centro da cidade, ao final do dia, Eleonora sofria com dores nas costas e pescoço.
350

Segundo Eleonora, a época, contudo, ficou marcada pelo intenso


idealismo. “Não conheço nenhum jornalista que trabalhasse na Continental só
para ganhar dinheiro. No mínimo, a gente queria mudar o mundo”, constata.

Ao término da curta experiência, Dedé retorna das férias, e Eleonora entra


na sala do diretor, Fernando Westphalen, para a despedida e agradecimentos:

Eu entro na sala e lá está aquele homem, pés sobre a mesa,


lendo o Jornal do Brasil. Sento, e começo a falar que tinha
gostado muito da Rádio, que a experiência de trabalho tinha
sido fantástica e tal. Que eu tinha aprendido bastante. E o
homem nem me olhava. Aí, eu fiquei branca. Digo, deixe eu
calar a minha boca e sair daqui. Me levantei e fui sair. Aí, ele,
rápido, fechou o JB, se levantou e veio na minha direção. Parou
e perguntou: Tu quer ficar? Aí foi a glória. Era tudo o que eu
queria. O Judeu (apelido de Fernando) é uma pessoa
maravilhosa.

A equipe do “Opinião Jovem”, que entrava no ar das 7 às 8 horas, de


segunda a sexta-feira, tinha Carlos Couto como responsável pelas edições, sendo o
programa inteiramente pré-produzido com as entrevistas, para apresentação no dia
seguinte por Clóvis e Fogaça, que entravam ao vivo.

Em 1978, a fase mais importante da Continental, de acordo com Eleonora,


está chegando ao fim. Ao longo do ano, saem Clóvis e Fogaça, que ficam fazendo
televisão. O programa, então, passa a ser apresentado por diversos nomes, sem
personalizar o espaço. Cíntia Nahra e Adroaldo Correa são dois jornalistas que se
revezam na coordenação do programa. Seis meses após a saída do Clóvis e do
Fogaça, o “Opinião Jovem” sai do ar, definitivamente. Aliás, o projeto todo está
sendo desativado, com a saída, inclusive, do Judeu.

Para Eleonora, a Continental foi a rádio de maior personalidade à época,


rivalizando, mas ultrapassando a Mundial, porque a emissora daqui possuía,
ainda, o discurso político, a notícia bem-redigida, o humor. “As vinhetas da
Continental eram fantásticas”, refere ela, reportando-se àquelas que identificavam
a cidade. “Locutores excelentes, como o Bira Brasil, os Fontellas. Tinha uma
discoteca fantástica, sempre com Domingos Martins e Beto Roncaferro de fiéis
guardiães de tudo aquilo. A Continental era esse conjunto”, diz ela.
351

“Por isso, quando chegava o verão, o pessoal ficava catando a Continental,


ou a Mundial, no dial”. Eleonora refere-se ao hábito porto-alegrense dos ouvintes
fiéis da Continental, quando da saída para o litoral, onde a Continental
necessitava ser procurada no dial, para melhor recepção, pelo fato de contar,
ainda, com antena unidirecional, apesar dos esforços de Bertoldo Lauer Filho,
sempre na labuta por um melhor som.

Eleonora entende que a experiência Continental foi datada e irrepetível,


quer pela qualidade dos textos e da música oferecida, quer pelo engajamento e
garra do grupo de jornalistas.

O ambiente na Rádio era muito legal. Claro, havia muito


“patrulhamento ideológico”. A época era essa. A mim, que
sempre gostei de vestir bem, alguns demoraram um pouco a
aceitar. Mas sempre agi com muita paciência e fiz ver que a
roupa diferente não era o que mais importava.

Na Continental, sobretudo, Eleonora destaca a liberdade interna existente,


apesar da censura externa.

O jornalismo nem ligava, nem sabia que o comercial existia.


Não havia essa de fazer ou não fazer tal notícia por causa do
patrocinador. Ainda, a Continental era mesmo chata, exigente,
com seus anunciantes. Não entrava anúncio sem que o Judeu ou
alguém examinasse, se era produto oportuno, se o anúncio
estava legal. Era assim.

Para ela, o fator distintivo no grupo estava no fato de que “o jornalista


queria participar da vida política do país. A gente queria mudar o mundo.
Discutíamos tudo. E os debates, as discussões duravam cinco horas, era bárbaro”,
conclui Eleonora, comparando aquela experiência rica com o que constata, hoje,
como certa apatia da juventude.

A Continental, na opinião de Eleonora Rizzo foi a rádio de uma geração,


justamente, aquela que viveu, dos 15 aos 25 anos, durante a chamada década de
70. Conclui Eleonora:

Até ali, a comunicação era feita por adultos para adultos. Agora,
a Rádio falava com o jovem, masculino e feminino, com
linguagem própria, falando de sua realidade, seus desejos e
sonhos. Esta foi, na minha opinião, a diferença, o valor da
352

Continental. Pela primeira vez, o jovem era o ator principal


naquela cena fotografada de Porto Alegre.

7.1.33 O Radiojornalismo, segundo Adroaldo Corrêa

Na parede da redação, estava afixada uma lista de termos e expressões


proibidas para uso na Continental, por soarem ultrapassadas, obtusas ou
inadequadas, na língua portuguesa. O objetivo está em alcançar melhor nível de
interação com o público. Fernando Westphalen trabalha com o grupo jovem de
radialistas uma ênfase: “vamos usar gíria até o limite”. Westphalen, Adroaldo
Correa, todos procuravam a construção do texto radiofônico encadeado e contínuo
que garantisse o fluxo ágil da programação. Refere Westphalen:

Até ali, os locutores ainda estavam lendo notícias como quem


lia telegramas. Aquilo, nós banimos da Continental. O nosso
formato de notícia era descontraído e “lincando” uma
informação na outra. Era um “papo” com o ouvinte.

Para erguer o modelo 1120 de notícia, era preciso muito trabalho, relembra
Adroaldo Correa, inicialmente, redator na equipe, que tinha Wladymir Ungaretti
como chefe de redação. Para Adroaldo, então cursando o segundo ano de
Jornalismo na Fabico-UFRGS, tudo teve início com convite de integrante da
equipe, André Jockymann (filho do escritor e jornalista Sérgio), em 1975. Dois
anos depois, formado, Adroaldo será designado chefe do departamento Jornais
Falados, como era caracterizada, em lei, a chefia do radiojornalismo em
emissoras.

Naquele 1977, Emilio Chagas está deixando de redigir o “Supermercado


da Cultura”, mas segue como redator. São redatores, também, Sergio Moita e
Rejane Lempeck (a Polaca). A Continental não possui reportagem para síntese
noticiosa. Utiliza-se da radioescuta, basicamente rádios Guaíba, Gaúcha e
Farroupilha, retira informações de jornais e revistas e usa como recurso
diferenciado a soma reflexiva das fontes, modo de oportunizar diferencial
editorializado para as notícias. A Continental não pode concorrer em dar notícias
353

com primazia e concorre ofertando notícia com mais interpretação e sabor na


linguagem.

Na adversidade, é preciso redobrada atenção e criatividade. Assim, a partir


de notificações de proibição, fato que freqüentemente ocorria, os redatores-
repórteres da Continental podiam sair em pesquisa pela notícia em primeira mão.
Exemplo: a queda de regime político no Burundi: a notícia é anunciada como
proibida para divulgação, via telefone, por José Bispo da Hora, titular da Censura
Federal.

Este agente fornecerá não apenas aquele, mas inúmeros “furos de


reportagem” para a Continental, sempre através de telefonemas de proibição de
notícias. Naquele episódio, a equipe Continental decidiu verificar, no Almanaque
Abril, exatamente, onde fica e que estado é o Burundi, e, logo, estão aptos para
informar e “suitar” informações sobre o pequeno país, que era controlado,
politicamente, pelo, então, governo racista da África do Sul.

“Nós éramos informados o tempo todo por alguém que detinha mais
informações do que nós, ou seja, o próprio serviço de censura da Polícia Federal”,
afirma Adroaldo. Mas, o problema era a censura terrível, 24 horas no dia. Naquele
período, a Continental assinava os serviços de apenas uma agência de notícias, a
France Press.

Os recados telefônicos de Bispo da Hora, ou de outro funcionário,


emitidos desde a sede federal na avenida Paraná, eram recebidos, e,
imediatamente, comunicados para todo o grupo. Quando possível, o teor daquelas
proibições entrava no processo de rotina produtiva e, mais adiante, eram
transformados em notícia no ar, direta ou indiretamente. Adroaldo Correa lembra,
por exemplo, situações históricas, como a notificação de “Fica proibido dar
qualquer notícia, informação ou comentário sobre a greve dos metalúrgicos de
São Bernardo do Campo, decretada em assembléia geral, a partir de ontem à
noite”. Diante de tal episódio, alguém da Continental ligou perguntando se
haveria possibilidade de informar sobre a proibição da notícia. Bispo da Hora
responderia:
354

Não brinquem. Somente pode falar o Ministério da Justiça, que


dará nota oficial, ou o Ministério do Trabalho.
Para nós, aquilo já era suficiente. Ficávamos sabendo que, logo,
haveria uma nota oficial, de um ministério ou de outro. Então,
ficávamos atentos. A proibição, quando não era informação
direta, nos situava diante do ocorrido, dando a dimensão
nacional do fato ocorrido.

Muitas vezes, a necessidade levava ao exercício redacional de


ocultamento, que chegava às raias de noticiar um texto cifrado, compreendido por
iniciados, na verdade, por parte do público universitário e familiarizado com a
Continental. O objetivo, nestes casos, estava em informar ao público e, ao mesmo
tempo, driblar a censura na escuta permanente.

Ter informações “privilegiadas”, a contar das proibições, estava associado


ao mapear e sondar, principalmente, pela varredura em radioescuta e leituras
transversais em jornais do centro de País, onde e quando aquelas publicações
haviam conseguido furar o bloqueio da censura. O objetivo destas pesquisas era
obter mais informações, mais detalhes e, também, fonte suporte para, então,
abordar e noticiar assunto em questão. Adroaldo refere a ação que denomina a
soma das fontes: a leitura atenta e relacional dos demais profissionais jornalistas.

O procedimento investigativo e a decisão de informar ao público


universitário e estudantil, no limite, toda a realidade social e política, sobretudo,
nacional, eram atitudes jornalísticas raras de independência e integridade
comunicacional por parte da Continental. E este posicionamento provocou cerco
autoritário cada vez maior sobre a Rádio.

Em 1976, o Dentel está requisitando três meses de toda a programação da


Continental, segundo informa, oficialmente, para análise. Além de vivermos,
então, sob regime militar, havia recrudescimento da censura, desde a morte do
jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, dentro da prisão do Doi-
Code, em São Paulo, fato repercutido, aqui, pela Continental.

Enquanto o general Ernesto Geisel anunciava abertura política “lenta,


gradual e segura”, o diretor da Continental estava sendo chamado, mais uma vez,
para dar explicações às autoridades federais quanto ao teor da programação. Lá,
355

Westphalen recebe análise da emissora, que é conceituada, pelas autoridades,


como “rádio de oposição”. Westphalen concorda com aquela interpretação. Logo,
é advertido: “mas fazer oposição é contra o regime”. “Não”, teria respondido o
Judeu, “isto é a favor da concorrência, segue a lógica capitalista”. Westphalen
teria acrescido que a Continental falava para cerca de dois terços do público
porto-alegrense, enquanto as demais emissoras concorrentes, em conjunto,
ficavam com um terço local. O diretor da Continental valia-se de argumento
centrado numa aritmética mercadológica e no coeficiente eleitoral obtido pela
oposição, em Porto Alegre, no último pleito, realizado, em 1974, para justificar o
posicionamento oposicionista da Continental. Isto, inclusive, argumentou
Westphalen, garantia à Continental o melhor índice de audiência possível, uma
vez que a Rádio, pelo argumento exposto, falava, de fato, para a maioria, no caso,
oposicionista. A sessão terminava ali, mas a Continental voltaria a ter outros
duros confrontos, ora localizados com a censura e a Polícia Federal, ora com o
Ministério das Comunicações.

O desfecho de análise de textos noticiosos da Continental resulta num dos


poucos documentos oficializados pelo Serviço Público Federal endereçado para a
Continental, em 23 de novembro de 1976, assinado pela diretoria do
Departamento Nacional de Telecomunicações do Ministério de Comunicações, na
pessoa de Milton Pedro Weiss. O documento, também, encerra um ciclo, mas
adverte, fustiga e importuna sobre diferentes temas.

O documento, em três folhas, adverte e ameaça a Rádio por apresentar


“vários textos não rubricados pelo titular do departamento de notícias, arquivados
pelo prazo de 60 dias, como determina a lei”. Alerta contra “veiculação de notícia
truncada e sem qualquer esclarecimento quanto às circunstâncias de sua
ocorrência”. Segundo o documento, havia, ainda, a “veiculação de notícia que,
poderia ter causado, se não alarme, ao menos apreensão desnecessária entre
ouvintes dessa Emissora”. O item alude para eventual punição através da lei 5.250
de 9 de fevereiro de 1967 (Lei de Imprensa). Por fim, o documento adverte a
Rádio pelo “emprego freqüente de expressões de gíria, destoante do vernáculo e
da linguagem correta”, algo, novamente, passível de punição, conforme
356

determinam diferentes portarias governamentais. O documento, ao concluir,


exortava o “exato cumprimento das obrigações legais” e ameaçava: “limitamo-
nos, nesta oportunidade, a alertá-lo para a necessidade de evitar a repetição de
semelhantes ocorrências”.

O ano de 1977 será, particularmente, intenso e problemático para a


Continental. O confronto instala-se, por exemplo, pelo tratamento jornalístico
dado pela Continental, em texto de análise nacional, antecipando, na projeção, o
fechamento do Congresso Nacional, decretado por Geisel, sob alegação de que os
parlamentares procrastinavam decisão sobre a reforma do Poder Judiciário. Em 1º
de abril, Geisel baixa o Ato Complementar nº 102, decretando o recesso do
Congresso Nacional. O tratamento desta notícia motivou uma multa em dinheiro
contra a Rádio.

Outro conflito foi acionado pela divulgação de notícia da Rádio


relacionando uma campanha, a partir de ordem presidencial, para poupar
combustível, com a campanha da CNBB sob slogan: “o exemplo começa em
casa”, e uma viagem isolada da filha de Geisel, Amália Luci, em avião oficial,
para fim de semana no litoral. A Rádio, como ocorreria outras vezes, é multada
por “provocar a desobediência coletiva das leis”.

O ano de 1977, igualmente, será de cassações políticas, no Rio Grande do


Sul, e de suspensões, advertências e multas pesadas contra a Continental, além de
novas “visitas” forçadas à sede da Polícia Federal.

7.1.34 De Ordem.... Fica Proibido...

O ano de 1977 será, particularmente, conturbado para a vida política


nacional e local. A gravidade dos episódios não abranda a ação da censura oficial.
Pelo contrário, a voragem desta se torna mais freqüente e abrangente. Na redação
da Continental, recados com proibições da Censura Federal são registrados com
freqüência. José Bispo da Hora, forçadamente, torna-se, na prática, “interlocutor”
quase diário da emissora.
357

No biênio 1977-78, a Continental cuidaria de anotar cada recado, assim


como as proibições e encaminhamentos diferentes. Abaixo, apresentamos, na
ordem cronológica, o registro de alguns destes textos, mantidos em caixa alta, tal
qual a prática de escrita, na Continental.

O primeiro deles, datado de 1º de fevereiro de 1977, à mão, utilizando


barras para pontuar, como é prática na linguagem de rádio, recebido e assinado
por Adroaldo (Corrêa), avisava:

TÁ PROIBIDA QUALQUER REFERÊNCIA À


ENTREVISTA DO FÍSICO JOSÉ GOLDENBERG SOBRE O
ACORDO NUCLEAR/ BRASIL/ ALEMANHA.////
RADIOGRAMA LIDO PELO MAGGIONI, DA CENSURA
FEDERAL, POR TELEFONE, PARA O DEPARTAMENTO
DE NOTÍCIAS DA CONTINENTAL.

No dia seguinte, surpreendentemente, ocorreria a cassação do vereador


Glênio Perez, do MDB, um dos mais votados na recente eleição, em 1976, quando
ele critica, no discurso de posse, a violação dos direitos humanos e a ausência de
liberdade no país. A ordem da Censura Federal é silenciar, inclusive, proibindo,
até mesmo, nota oficial emitida pelo partido de Glênio. Adroaldo, novamente,
registra e assina bilhete, dia 3 de fevereiro:

O SENHOR JOÃO BISPO DA HORA, DA CENSURA


FEDERAL, TELEFONOU PARA A CONTINENTAL.
FALOU (ÀS 17.30) – QUE TAVA PROIBIDA A
DIVULGAÇÃO DA NOTA OFICIAL DO MDB DO RIO
GRANDE DO SUL. TEJEM AVISADOS, POIS.

Na realidade, a Continental teria outro protagonismo diante dos fatos, não


cumprindo as determinações oficiais, e pagando caro por isto, como veremos.

Já em 5 de maio, a proibição cerceava notas sobre o movimento estudantil:

PARA A ATENÇÃO DE QUEM FAZ A NOTÍCIA NA


RÁDIO CONTINENTAL TÁ PROIBIDA, PELA CENSURA
FEDERAL (BISPO DA HORA) A DIVULGAÇÃO DE
QUALQUER INFORMAÇÃO SOBRE MOVIMENTO E
PROTESTO ESTUDANTIL, TANTO EM SÃO PAULO,
COMO EM OUTRO LOCAL DO BRASIL.// (sic)
358

Abaixo, no mesmo documento, lê-se: “REITERADA EM TODAS AS


OPORTUNIDADES EM QUE OCORRERAM MANIFESTAÇÕES NO PAÍS”

A seguir, em 27 de maio, proibia-se noticiar a explosão de uma bomba, no


Rio de Janeiro. O funcionário Luiz anota:

ATRAVÉS DE TELEFONEMA ÀS 21 HORAS A CENSURA


FEDERAL ANUNCIOU QUE ESTÃO PROIBIDAS ATÉ
SEGUNDA ORDEM, A DIVULGAÇÃO DE NOTÍCIAS OU
COMENTÁRIOS SOBRE A EXPLOSÃO DE UMA BOMBA
DE FABRICAÇÃO CASEIRA, NUM SUPERMERCADO DA
COOBAL, EM TEODORO, NO RIO, HOJE À TARDE. SÓ
PODE DIVULGAR AS NOTAS OFICIAIS SOBRE O
ASSUNTO. QUEM TELEFONOU FOI O JOÃO BISPO, DA
CENSURA.

Em 7 de junho, Adroaldo anota nova proibição, desta vez, sobre


jornalistas:

TÁ PROIBIDO DIVULGAR, NOTICIAR, COMENTAR...


QUALQUER COISA SOBRE MANIFESTO DE
JORNALISTAS (NÃO FOI ESPECIFICADO DE QUE
ESTADO) SOBRE O “MOMENTO POLÍTICO” (BISPO DA
HORA) (CENSURA FEDERAL) (7.6.77)

Em 14 de junho, o presidente Ernesto Geisel cassa o mandato político, por


dez anos, de deputado federal do MDB mineiro. Há nova proibição. Adroaldo
registra:

TÁ PROIBIDO DIVULGAR OU NOTICIAR QUALQUER


COISA SOBRE A CASSAÇÃO DO DEPUTADO FEDERAL
MARCOS TITO QUE NÃO SEJA A NOTA OFICIAL DA
ASSESSORIA DE IMPRENSA DA PRESIDÊNCIA DA
REPÚBLICA.
EM 14.6.77
(JOÃO BISPO DA HORA)

Em 25 de julho, João Bispo telefona para proibir notícias sobre


manifestações de estudantes em Brasília. “Só pode a nota oficial do governo (se
sair)”, informa Adroaldo aos colegas. Antes disto, a proibição envolvia o acordo
nuclear, em 16 de junho:

TÁ PROIBIDO DIVULGAR O MANIFESTO DOS FÍSICOS


E PROFESSORES DE SÃO PAULO, LIGANDO O
359

PROBLEMA NUCLEAR BRASILEIRO COM A QUESTÃO


DOS DIREITOS HUMANOS.
(JOÃO BISPO DA HORA) (EM 16.6.77)

Em meio à crise militar, em 12 de outubro, a proibição recai sobre


demissão de general de discurso de saída. Adroaldo, passo a passo, informa as
proibições:

JOÃO BISPO DA HORA TELEFONOU ÀS 15.15 DE


12.10.77 PRA DIZER QUE “DE ORDEM SUPERIOR TAVA
PROIBIDO DIVULGAR QUALQUER COMENTÁRIO (OU
QUE SEJA) SOBRE A DEMISSÃO DO MINISTRO DO
EXÉRCITO GENERAL SILVIO FROTA”.
ESTÁ LIBERADO APENAS O NOTICIÁRIO DE NOTAS
OFICIAIS.
ÀS 17 E 15, BISPO DA HORA VOLTOU A TELEFONAR
PROIBINDO A DIVULGAÇÃO DA NOTA OFICIAL DO
SYLVIO FROTA AO ABANDONAR O MINISTÉRIO.
(TAVA PESADA MESMO).
A POSSE DO BELFORT BETHLEM NO MINISTÉRIO DO
EXÉRCITO FOI LIBERADA (HEM!)

Por fim, naquele ano atribulado, a última proibição recaía sobre notícia
dada, na semana anterior, pela revista Isto é, na página 8. O bilhete é escrito com
redobradas marcas, numa lauda pequena de edição do programa 1120 é Notícia:

CENSURACENSURACENSURACENSURACENSURACEN
SURACENSURACEN
ATENÇÃO. . . . ATENÇÃO. . . ATENÇÃO. . .. . ATENÇÃO. .
DE ORDEM SUPERIOR, TÁ PROIBIDA A DIVULGAÇÃO
DE NOTÍCIAS OU COMENTÁRIOS SOBRE A VISITA DE
DIRETORES OU MEMBROS DA “AMNESTY
INTERNATIONAL” AO BRASIL. (QUANDO NÃO FOI
EXPLICITADO) (alguém, posteriormente, escreve a caneta a
fonte e data)
TRANSMITIU A DETERMINAÇÃO O MAGGIONI, DO
DEPARTAMENTO DE CENSURA DA POLÍCIA FEDERAL
DE PORTO ALEGRE.
DISSE QUE RECEBEU RÁDIO DE BRASÍLIA.
DEIXE ESTE BILHETE NA MÁQUINA AO SAIR. NO
PRIMEIRO DIA AVISE DE “VIVAVOZ”. E AVISE AO
COLEGA NO HORÁRIO EM SEGUIDA AO SEU.

No ano de 1978, continuam as proibições, como esta anunciada aos


colegas por Marcus (Wesendonk), em 16 de maio:
360

AO CHEFE DO DEPARTAMENTO DE NOTÍCIAS


O DEPARTAMENTO DE CENSURA FEDERAL
INFORMOU QUE NOTÍCIAS REFERENTES A
“MOVIMENTOS GREVISTAS” NÃO DEVEM SER
VEICULADAS.

O próximo telefonema vindo da censura refere, novamente, a possibilidade


de noticiar somente as notas oficiais sobre greve. A funcionária Denise anota:

MAGIONI (ou nome semelhante) DA CENSURA FEDERAL


TELEFONOU: DISSE QUE É PERMITIDO FALAR DE
NOTAS OFICIAIS E DECISÕES DA JUSTIÇA FEDERAL
EM RELAÇÃO À GREVE DOS METALÚRGICOS;

No dia 24 de maio de 1978, ocorre, como em outras oportunidades, uma


série de mandos e desmandos recebidos ora pela secretária, ora pela redação:

PROIBIDO DIVULGAR OU COMENTAR QUALQUER


NOTÍCIA REFERENTE A SEQÜESTRO DE PESSOAS E/OU
AVIÕES NEM SE FOR NO EXTERIOR.
Sr. MAGIANE da CENSURA FEDERAL
24/05/78 - 18,30 horas
RECEBIDO POR MARINA, QUE REDIGIU A NOTA
PROCURANDO LEMBRAR TODOS OS DETALHES DA
“NOTIFICAÇÃO”.
Magioni telefonou liberando às 19.45.

Esta última frase aparecia assinada por Adroaldo Corrêa.

A próxima nota refere, outra vez, a proibição referente às greves no país:

CENSURA – CENSURA – CENSURA – CENSURA –


CENSURA – CENSURA – CENSURA
GREVE
“DE ORDEM DO MINISTRO DA JUSTIÇA, FICA
PROIBIDA A DIVULGAÇÃO, POR RÁDIO E TELEVISÃO,
DE NOTÍCIAS OU COMENTÁRIOS REFERENTES A
GREVES, EM QUALQUER PONTO DO PAÍS”.
RECADO DE RENATO, DA CENSURA DA POLÍCIA
FEDERAL, ÀS 12H20MIN, DE 22.8.78

A mensagem seguinte, emitida pelo coronel Euclides de Oliveira, trazia


uma contradição em termos, diante da prática até ali imposta pela censura em
relação à Continental, e informava:
361

POR GARANTIA DO EXCELENTÍSSIMO SENHOR


MINISTRO DA PASTA DAS COMUNICAÇÕES,
INFORMAMOS QUE AS EMISSORAS DE RÁDIO E
TELEVISÃO NÃO SÃO OBRIGADAS A ACATAR
COMUNICAÇÕES OFICIOSAS DE CENSURA.
LEMBRAMOS AINDA QUE A APLICAÇÃO DE CENSURA
PRÉVIA RESTRINGE-SE SOMENTE ÀS DIVERSÕES
PÚBLICAS.

Escrito a mão, no mesmo documento, lia-se: “CONFIRMADO! O


MINISTRO FALOU, TÁ FALADO. (Ver resenha dia 16.9.78)”. Estava assinado
por Adroaldo Corrêa

Por ironia, ou observância à ordem ministerial, a próxima censura daquele


período, em 1978, era efetivada por escrito, trazia assinatura e brasão da república
e proibia:

SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL


PD nº 264/78 – GAB/DG, de 09.11.78
DE ORDEM DO SENHOR MINISTRO DA JUSTIÇA,
FICAM EMISSORAS DE RÁDIO E TELEVISÃO
PROIBIDAS DIVULGAREM NOTÍCIAS, ENTREVISTAS E
COMENTÁRIOS DE MILITARES OU CIVIS
RELACIONADOS SITUAÇÃO GENERAL HUGO ABREU.
Ass.: Moacyr Coelho
Diretor-Geral DPF

Foi este jogo político pesado do regime, que incluía coquetel de fatos e
temas censurados, com aplicação de multas em diferentes situações e por diversos
motivos, que forçava o modelo Continental a soçobrar. Também, o ataque mais
intenso da concorrência na esfera comercial, representado pelas ofertas crescentes
de rádios FMs, a partir de 1975, tornara a continuação da programação e do
sucesso desta tarefas cada vez mais inatingíveis. O respaldo, até então integral,
sobretudo por parte da gerência carioca do Sistema Globo de Rádio, igualmente,
tinha começado a dar sinais de esgotamento. O conjunto de dados da realidade, na
interpretação de Fernando Westphalen, indicava que ele deveria sair da
Continental, até, inclusive, para garantir alguma sobrevida ao projeto. Assim, ele
voltava para o mercado publicitário, naquele final de 1977, atuando na RS Escala,
e Marcus Vinícius, fiel escudeiro, assumiria como diretor da 1120, na última bem-
sucedida etapa de sucesso das peripécias da Rádio.
362

O período áureo da Rádio, para Westphalen e Wesendonk, ficara


demarcado entre 1971 e 1976. “Mesmo sob a censura mais terrível, mesmo nos
anos de chumbo do presidente Médici, em plena ditadura, não ficamos calados”,
afirma Westphalen. “Era proibido falar em ditadura. E todo dia a Continental
tinha uma notícia sobre ditadura, falávamos da ditadura do Chile, na Etiópia, onde
fosse. Não podíamos falar daqui”, lembra Fernando.

A censura contra a Continental atuou, além do peso contra o


radiojornalismo, também nos espaços de humor, picotando o “Horóscopo da
Pesada”, cortando dia-a-dia as “Dicas”, crônicas de Luís Fernando Veríssimo e,
até mesmo, fazendo pressão sobre as peças publicitárias que sofriam censura
prévia antes de serem programadas. “O José Bispo da Hora, inclusive, censurou
uma publicidade que fizemos falando no Menino Jesus dos Pobres”, lembra o
Autor Luiz Coronel. Havia pressão, inclusive, sobre os anunciantes.

Nada disto, entretanto, conseguia descaracterizar o espírito de irreverência,


a ousadia da linguagem, o uso do humor, das frases de duplo sentido para atacar o
regime autoritário e militar. Os slogans debochavam até mesmo da própria
vigilância da censura sobre a 1120. E, assim, “Continental, a mais ouvida na
Andradas”, fazia referência à radioescuta permanente empreendida no Q.G. do III
Exército, localizado na Rua dos Andradas, aliás, onde estava a Rádio, também.
Ou, ainda, “Continental, a mais ouvida na Duque”, desafiando os censores
localizados no Dentel e o eventual serviço de escuta do Palácio Piratini, sede do
governo estadual, ambos localizados na rua Duque de Caxias.

7.1.35 Jornalista: Missão Cumprida, Emprego Perdido

A reflexão sobre os conflitos sociais e sobre o próprio fazer jornalístico,


pode-se dizer, sempre estiveram presentes no trabalho de Eduardo Meditsch,
mesmo antes de ele tornar-se professor e pesquisador junto ao Curso de
Jornalismo, na Universidade Federal de Santa Catarina. As experiências com
outros jornalistas e os conflitos cotidianos vivenciados por Meditsch, na
363

Continental, certamente, contribuíram, significativamente, para a autoformação do


professor, pesquisador e, atualmente, doutor em rádio, Eduardo.

No depoimento para nossa pesquisa, Meditsch, inicialmente, refere a


qualificada programação segmentada da Continental como o diferencial da ação
interativa e histórica da emissora. Inclusive, refere outro texto dele, na revista
Verso & Reverso (2002, p. 55-60), onde aprofunda questões, reiterando a
importância do rádio local, a segmentação de “alta estimulação” até chegar ao
“rádio de formato” destinada ao público jovem. No depoimento, Eduardo afirma
que:

Acho que o essencial da Continental, [...] no meu ponto de


vista, é o fato de ser uma experiência de segmentação
extremamente bem-sucedida. Inicialmente a segmentação foi
pensada como uma forma de levar mensagens a diferentes
públicos de maneira mais eficiente, como, no caso, levar
notícias a quem, em princípio, não se interessaria por elas. Mais
tarde, a idéia de segmentação foi corrompida pela lógica
mercantil de tirar o máximo proveito econômico com o mínimo
custo, sem se preocupar com a qualidade das mensagens, e aí
experiências como aquela da Continental nunca mais se
repetiram, especialmente no caso do público jovem.

O conflito e a reflexão estão juntas e adensam, à medida que Meditsch


relata sobre a própria experiência, na ação da Continental. Rememorando, ele
refere, primeiramente, as rotinas de produção da Rádio:

Éramos cinco redatores, trabalhando em rodízio, e um chefe,


Wladymir Ungaretti, depois Adroaldo Corrêa. Wladymir era da
geração dos ex-presos políticos que o Judeu, diretor da rádio,
abrigava ao saírem da cadeia. Quando eu entrei, ele já era o
último deles, os outros colegas eram todos, como eu, alunos da
Fabico (UFRGS). Chegávamos lá, líamos os noticiários feitos
nos horários anteriores. Era um por hora, de três minutos, das
sete da manhã à meia-noite. À meia-noite, entrava o "resumão"
com seis minutos de duração. Líamos os jornais (à tarde, na
época, chegavam os do centro do país), líamos, sobretudo, os
canetaços que o Vladimir deixara nos nossos textos do dia
anterior (e que ensinaram muita gente a escrever bem) e,
quando o colega que estava em serviço terminava o seu,
assumíamos a escrivaninha, onde havia uma máquina de
escrever, dois possantes receptores para a rádio-escuta e dois
gravadores de rolo para capturarmos os noticiários de Porto
Alegre (Gaúcha e Guaíba), do Rio (Globo), eventualmente, de
São Paulo e de outros países. Em 1976, demos um furo nacional
364

sobre o golpe na Argentina, num plantão noturno em que


monitoramos todas as rádios do Mercosul à espera de um
desfecho para Isabelita. Ouvimos, numa rádio do Chile.
Também ouvíamos os serviços brasileiros das rádios européias,
como a BBC, Moscou, etc, que traziam notícias censuradas pelo
governo militar brasileiro. Ouvidas as notícias, enfiávamos uma
lauda (de 30 linhas) na máquina, escolhíamos as quatro ou
cinco que comporiam a edição, e transformávamos, totalmente,
a linguagem e quase sempre o enfoque original.

O encadeamento de uma notícia relacionada com a lógica de uma outra,


sistemicamente, ofertando uma idéia de conversação com o ouvinte, sobre fatos e
coisas, ali, originalmente, aproximados pela interpretação e expressão discursiva,
trazia o fator diferencial da narrativa radiojornalística da Continental. Eduardo
relata como esta prática se erguia:

A regra é que uma notícia fosse ligada na outra (tipo um assunto


puxa outro, numa conversa natural), que falasse a linguagem
dos jovens e o ponto de vista deles (o que incluía crítica ao
regime militar). A base teórica, que descobri mais tarde, era um
texto chamado "Radiojornalismo e linguagem coloquial" que o
Rosenthal Calmon Alves, então redator da JB, publicou nos
Cadernos de Jornalismo e Editoração do JB. Creio que o
Wladymir leu e aplicou na íntegra. Mais tarde, acabei
trabalhando na Rádio JB, e descobri que a Continental aplicou a
fórmula muito mais seriamente. Raramente, fazíamos uma
reportagem ou cobertura externa (lembro da eleição municipal
de 1976, uma exceção), pois não tínhamos equipe para isso.
Alguns eventos que presenciei, entre 1975 e 1977, quando
estive lá: em uma oportunidade, o Jorge Freitas anunciou uma
passeata estudantil que aconteceria no dia seguinte. A Polícia
Federal, que nos monitorava 24 horas por dia (e nos visitava
pelo menos a cada dois dias para recolher as laudas dos
noticiários, que éramos obrigados a arquivar por lei), foi lá e
prendeu todo mundo, do locutor ao diretor. Quanto cheguei para
trabalhar, no turno da noite, só tinha o operador mantendo a
rádio no ar, e tive que sair atrás de políticos, advogados,
sindicatos para soltar o pessoal. Em outra oportunidade,
deixaram uma bomba embaixo da mesa da recepção. Alguém de
nós encontrou aquele pacote com dois fiozinhos e ficamos
brincando de atirar um para o outro. Até que chegou o
plantonista da noite e ficou branco porque tinha recebido vários
telefonemas de ameaça. Então, chamaram a polícia, que
evacuou o prédio inteiro ali na Rua da Praia, em frente à praça
da Alfândega.
365

Meditsch, a seguir, refere certo paradoxo Continental, isto é, pertencer ao


Sistema Globo de Rádio, fazer sucesso, comercialmente, e junto ao público
universitário, empreender programação de vanguarda e de oposição ao sistema, e
precisar, ainda, justificar-se, perante os dirigentes do Rio de Janeiro e, sobretudo,
driblar a censura e os censores. Relata Eduardo Meditsch, chamado Magrinho
pelos amigos e colegas:

A Rádio era do Sistema Globo, que engolia nossa irreverência e


subversão dentro de certos limites, porque a fórmula criada pelo
Judeu dava lucro (nessa ocasião em que foi para a PF, ele
argumentou para a polícia que a rádio era de oposição por uma
questão de marketing, já que era segmentada e todas as demais
eram de situação). Mas, quando algum rolo estourava lá [...], o
Rio pedia alguma cabeça. Foi assim que perdi meu emprego, no
dia do meu aniversário de 21 anos, em 1977. Fiz um noticiário
ligando, como mandava o estilo da casa, três notícias que colhi
na escuta: O Geisel anunciou restrições ao consumo de
combustível, devido à crise do petróleo; a campanha da
fraternidade da CNBB teria como lema “o exemplo começa em
casa”; a filha do ditador foi passar férias em Guarujá, usando o
Boeing presidencial. O locutor leu com extrema ironia, a Polícia
Federal não demorou a bater, dizem que a minha laudinha
chegou à mesa do Ministro da Justiça, que ligou ao Roberto
Marinho, pedindo providências. Provavelmente, não foi para
tanto, mas era um consolo para quem perdeu um emprego que
gostava tanto.

Eduardo cumprira com o dever de ofício, naquela edição do dia 29 de


março de 1977. Mais do que isso, acionara o esquema Continental de relacionar e
interpretar fatos, aparentemente, isolados, estanques ou desimportantes. Realizara
aquilo que Adroaldo Corrêa define como “a soma das fontes”, isto é, a informação
refletida e inédita, a partir dos dados da realidade já comunicados por outros
colegas. Eduardo, como já ocorrera com outros, por ter exercido a profissão de
informar a sociedade, sofria punição, de todo, descabida ou exagerada. Adroaldo
Corrêa, no entanto, tece uma hipótese para toda aquela intensa reação do regime,
tão somente por estar diante de uma notícia, mesmo que ácida, criticando o poder
do Governo Federal e a filha do presidente da República, com ironia.

Segundo Adroaldo, naquele mesmo mês de março de 1977, nos mesmos


porões do Doi-Codi paulista, sob a jurisdição do II Exército, comandado pelo
general Ednardo D’Ávila Mello, morria o operário Daniel Fiel Filho, em
366

condições idênticas às ocorridas com o jornalista Wladimir Herzog, isto é,


enforcado, de joelhos. Ou seja, o contrapoder ao Governo Federal continuava
atuando, arbitrária e criminosamente, fugindo ao controle de Brasília. O II
Exército continuava atuando com práticas de tortura e morte, porque avaliavam
que “tinham mais canhões que o Papa”, fazendo contraponto ao poder oficial,
avalia Adroaldo. A viagem de Amália Luci, longe de ser uma despretenciosa
viagem perdulária ao litoral santista, tratava-se, na realidade, de uma missão. A
filha do Presidente levava uma carta, de próprio punho, do presidente Geisel em
que era solicitada ao general Dilermando Gomes Monteiro, comandante da Quarta
Região, com jurisdição sobre São Paulo, Mato Grosso e Goiás, a prisão do general
Ednardo D’Ávila Mello.

Na opinião de Adroaldo Correa, a Continental “oferecera a cereja do bolo,


mas o recheio só o governo dispunha, só eles sabiam porque a filha do Presidente,
de fato, tinha viajado”. Segundo ele, por isto, toda a ira e reação contra a Rádio,
com a Polícia Federal passando a interpelar, duramente, para saber como os
jornalistas “descobriram tudo aquilo”. Na realidade, a Continental, a partir da nota
relacional redigida por Eduardo Meditsch, apenas acertara no absurdo daquela
viagem, caso a mesma fosse, somente, livre passeio a Santos.

7.1.36 Continental: “Barriga” Nacional

No auge da Continental, entre os pontos de encontros de jornalistas, para


bate-papo sério ou descontraído, incluíam-se os bares da “Esquina Maldita”,
sobretudo o Alaska, na avenida Osvaldo Aranha, entre os números 220 até o 232,
onde terminava o território para beber e fumar, no prédio do cartório... Referência
para o pessoal da Continental, igualmente, era o velho prédio da Empresa
Jornalística Caldas Júnior, sobretudo na redação da inovadora Folha da Manhã e
Rádio Guaíba, onde, dizem, era possível não somente filar um exemplar grátis de
jornal, como, eventualmente, pescar ou contrabandear algumas notícias dos
poderosos aparelhos de telex da Caldas. Com a “Folhinha”, sobretudo, havia
muita identificação, amizade e competição. A história, a seguir, transcorre no auge
367

da 1120, e dá conta do clima, do astral desta relação e do ambiente jornalístico e


da vida jovem porto-alegrense, então. O Autor do relato é Paulo Acosta:

Era o ano de 1974, segundo semestre. A noite mal tinha caído


quando Jorge Mautner foi “assassinado” no centro de Porto
Alegre. Mautner estava no auge. Era o ídolo da magrinhagem,
termo que se referia a magrinho, como eram chamados os
jovens da época, independente do peso. Magrinho era comum
de dois, unisex (sic), embora, se usasse também magrinho e
magrinha. Um dos comerciais institucionais da Continental
dizia “Dê carona aos magrinhos”. Eram tempos hippies, de izi-
raiders, jovens que queriam ir pra praia, mas a bija era curta, e
se gastasse no bâs faltava pro fundamental. Então, os magros,
os magrinhos, ficavam ali na saída da rodo, dedo polegar
indicando o “Sem-destino”, à espera de alguém que não fosse
magro e levasse o cara pra praia, na boa. Ainda não tinha
completado o segundo semestre da faculdade, mas já tava no
terceiro emprego jornalístico: ZH, Farroupilha... e Continental.
Era AM, mas a FM de hoje, sem tirar nem pôr. [...] A redação
era formada por um chefe, Wladymir Ungaretti, e quatro
redatores rotativos. Das 8 às 12, das 12 às 16, das 16 às 20, das
20 às 24. Ouvia-se a Guaíba e a Gaúcha, para se ter os “fatos” e
se escrevia uma lauda em cima das melhores notícias, com um
texto solto, bem-humorado. Por várias vezes, o governo militar
não gostou do humor dos redatores (Zé Onofre, José Antônio,
entre os que me lembro) e tirou a rádio do ar. Principalmente
quando se transformou uma entrega de medalhas em “farta
distribuição de latinhas”. Nesse contexto, estava eu, à hora do
crime, 20 horas, fazendo a minha escuta dos noticiários das
18h45min. e 18h50min para pôr, no ar, o próximo “1120 é
Notícia”, quando irrompe bufante o nosso chefe, Wladymir
Ungaretti, com a inexpugnável bolsa tiracolo hippie decorada
com fitinha grega, quase parte do uniforme de jornalista jovem
na época:
- Morreu o Jorge Mautner. Acidente na Via Dutra. Bateu a 120
por hora.
“O relógio quebrou. E o ponteiro parou...”. Assim começava o
sucesso mais recente de Mautner, e assim comecei o noticiário
da próxima hora cheia, um épico choramingoso de vinte linhas
dedicado a Jorge Mautner. A notícia se espalhou rapidamente.
Chegou ao Alaska, barzinho que os magros freqüentavam na
época, no meio da miniquadra em frente às faculdades, à
esquerda de quem dobra, vindo do Túnel em direção à Reitoria
da Universidade do Rio Grande do Sul. Magrinhos choravam
abraçados, e o “Vietname”, prato característico do Alaska (uma
salsicha Bock estirada sobre uma selva verde de alface) ficava
temporariamente de lado. (Só no dia seguinte descobri que o
Wladymir havia embarcado em mais um trote da turma de
gozadores da Folha da Manhã – até telex eles mostraram pro
Wladymir – e que eu havia dado a primeira barriga da minha
368

carreira). Pouco tempo depois, eu chegava à Rádio Guaíba com


um “assassinato” na minha ficha. Para meu consolo, na parede,
um quadro com uma gravura mostrava um monte focas
“batizadas” a caneta com o nome do pessoal da redação “alguns
deles meus ícones”, de nome feito na praça. Era para lembrar,
permanentemente, o trauma do dia em que eles mataram Dom
Vicente Scherer. O pior foi ter que botar o arcebispo no ar para
ele mesmo desmentir, de viva voz...

7.1.37 Notícia sobre manifestação estudantil leva à prisão três Radialistas

Judeu acha a manifestação, em si, “uma bobagem”. Na opinião do diretor


da Rádio, não há motivo para manifestação daquele tipo. Por que não ir para o
novo campus? Ainda assim, ele aceita os argumentos de colegas que querem
noticiar a manifestação. Há motivos para tanto, pois o fato diz respeito ao público
preferencial da Continental e, certamente, nenhuma outra rádio noticiará aquilo.

Assim, Adroaldo Corrêa precisa designar o redator que fará a notícia. O


escolhido é Jorge Freitas que, ainda, aumenta renda mensal, naqueles dias,
fazendo artesanato. O mesmo ocorria com o próprio Adroaldo, que pagava as
prestações de uma motocicleta com aquele tipo de trabalho. A questão, agora, no
entanto, estava em driblar a autocensura, dar “molho” ao texto e colocar a notícia
no ar.

Na hora cheia das 15, ia ao ar a inacreditavelmente histórica edição do


“1120 é Notícia”, com o público da Continental tomando conhecimento do fato,
isto é, ouvindo sobre a agenda dos manifestantes contra a ida para o novo campus
da UFRGS. Quarenta e cinco minutos depois, doze homens da Polícia Federal,
armados com metralhadoras, invadiam a Continental para prender Fernando
Westphalen, Adroaldo Corrêa e Jorge Freitas.

O Judeu foi logo falando: “Eu tenho carro, eu tenho carteira de habilitação
e sei o caminho. Eu vou por conta própria”, o que os federais aceitaram, narra
Adroaldo. Já “as minhas condições e as do Jorge não eram estas e fomos os dois
de carona numa Veraneio azul”, narra Adroaldo, referindo que encontraria,
369

curiosamente, um daqueles agentes, na campanha eleitoral de 2000, quando fazia


campanha para Prefeitura de Porto Alegre, e Lula viria para comício.

Fernando Westphalen, igualmente, narra cena cinematográfica, ao deparar-


se, já no prédio da Polícia Federal, com um grande amigo de infância que se
confessa envergonhado, por estar designado para o interrogatório inócuo. “Fiquei
até à noite, quando fui liberado. Acredito que ficaria lá mais um ou dois dias, sob
os bons cuidados do Estado, não fosse eu contemplado por um determinismo
biológico. Acontece que eu era, sou primo do Amaral de Souza”, conta
Westphalen. O governador do Estado fez pressão, assim como colegas da
Continental movimentaram-se, sendo os três liberados no mesmo dia, com
diferença de horas na liberação.

O último a ser solto foi Jorge. Tarde da noite, todo mundo procurando por
Jorge, e ele já em casa. Depois de muita procura, conta Adroaldo, alguém
conseguiu falar com uma vizinha do mesmo andar. “O Jorge? Ele já chegou, sim.
Inclusive, ele está ouvindo som com o toca-disco um pouco alto na sala”.

No dia seguinte, 16 de março de 1977, o jornal O Globo noticiava o


ocorrido, na página 9, sob o título: “Prisão de radialista causa protesto”.

PORTO Alegre (O GLOBO) – O Deputado Rospide Neto


(MDB) protestou ontem, da tribuna da Assembléia Legislativa,
contra a prisão do diretor da Rádio Continental, Fernando
Westphalen, do diretor do Departamento de Jornalismo,
Adroaldo Correia e do redator Jorge de Freitas. Eles foram
detidos pela Polícia Federal, na última segunda-feira, logo após
a divulgação de uma notícia informando que 60 alunos do
Instituto de Letras estavam descontentes com a transferência
para o novo campus da UFRGS, a 16 quilômetros do centro da
cidade.
A notícia que motivou a prisão do diretor e dos dois
funcionários da emissora continha, no último parágrafo, a
seguinte frase:
“Amanhã, quem não quiser ir ao campus, vai a reitoria e se
encontra com os estudantes que não concordam com a
mudança”.
O diretor Fernando Westphalen ficou detido na Polícia Federal
das 15h45min até às 20h30min, sendo liberado após prestar
depoimento. Adroaldo Correia e Jorge de Freitas foram
libertados quase à meia-noite, tiveram suas carteiras funcionais
apreendidas e foram identificados.
370

No mesmo dia, o Estado de São Paulo, então, com sucursal em Porto


Alegre, informava: “Notícia de protesto provoca 3 prisões”:

A concentração que os estudantes do Instituto de Letras da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul marcaram para a
manhã de hoje, em Porto Alegre, com o objetivo de protestar
contra a mudança do curso para o novo campus da instituição,
antes mesmo de ser realizada já provocou ontem a prisão de três
radialistas da Rádio Continental, da capital gaúcha e enérgicos
protestos do deputado Rospide Neto (MDB), na Assembléia.
O movimento dos estudantes foi divulgado segunda-feira à
tarde pela Rádio Continental e, logo depois, foi invadida por
dez agentes da Polícia Federal que prenderam o diretor da rádio
Fernando Westphalen, o chefe de reportagem e o redator da
notícia, os quais tiveram que prestar depoimentos sob a
acusação de “incitar os estudantes à anarquia”. Após serem
liberados, o diretor da emissora comentou que a notícia não
tinha qualquer cunho político.
A concentração dos estudantes está sendo anunciada desde que
a Reitoria da UFRGS confirmou a transferência do Instituto de
Letras, que tem 600 alunos, para o novo campus, distante 16
quilômetros do centro de Porto Alegre. Os alunos alegam que
preferem continuar no prédio atual, no centro da cidade, porque
estudam perto de seus locais de trabalho e, com a mudança,
precisarão pagar Cr$ 4,00 de passagens de ônibus, além de
perderem duas horas para se locomover até o novo local.

7.1.38 “Haverá farta distribuição de latinhas”

O Brasil vive o último semestre do governo de Emílio Garrastazu Médici.


O próximo general presidente já está escolhido. Em setembro, já aclamado pela
Arena, Ernesto Geisel leu a plataforma de governo para cadeia de rádio e
televisão. A oposição lançara Ulisses Guimarães como anticandidato à presidência
da República.

Na comunicação, a censura continua, e a Rádio Continental ousa mais um


slogan de provocação. Sabendo-se vigiada pela escuta policial, a redação 1120
dispara: “Continental, audiência cativa”.

Poderia ser um sábado comum de vida na redação da Rádio Continental,


não fosse aquele o fim de semana de abertura da Expointer, a principal feira de
371

agronegócios gaúcha e, inclusive, está no pago o conterrâneo Ministro da


Agricultura, Cirne Lima. Nos jornais porto-alegrenses, a Expointer é sinônimo de
muito suor e trabalho duro, a começar pela extensão territorial da feira a ser
percorrida e a continuar pelo volume de pautas por cumprir. Mas a Continental,
sem ter equipe de reportagem, não cobria, no local, a Expointer, de resto, por ser
aquele assunto fora do foco especial de interesse do público universitário.

Aquela poderia ser uma calma manhã de trabalho para o locutor do turno,
Vladimir Oliveira, atualmente, na Rádio Guaíba. O parceiro é o redator Oscar dos
Santos Flores da Silva Júnior, 23 anos, então, formando em Jornalismo pela
Fabico-UFRGS. É ele que está entrando no estúdio, trazendo, em mãos, as laudas
da última edição do turno, para ir ao ar às 13 horas. Aquele poderia ser um sábado
tranqüilo para Oscar e Vladimir, não fosse aquele dia 25 de agosto de 1973.

“Tu vais botar isso mesmo no ar?”, interpela, de modo preocupado,


Vladimir. “Sim”, restringe-se Oscar em resposta.

Diz a lenda que, enquanto Oscar preparava-se para tomar o elevador e ir


para casa, tão logo Vladimir terminara de ler aquela edição de “1120 é Notícia”, a
filha de um general do III Exército estava avisando o pai, ainda envolvido na
efeméride do dia. Aquele poderia ter sido um simples sábado, 25 de agosto, Dia
do Soldado.

O texto redigido por Oscar e lido por Vladimir estava dentro do estilo
irreverente da Rádio e, como mandava a prática usual, trazia um fato encadeado a
outro, articulados de modo opinativo. O texto iniciava, segundo rememora Oscar,
exatamente dizendo o seguinte:

“Enquanto os proletras (sic) passam fome, eles julgam bois de


latifundiários”. E seguia o texto fazendo alusão à presença do governador
Euclides Triches e do ministro Cirne Lima, na inauguração. No mesmo dia, junto
ao Monumento do Expedicionário, o exército fazia entrega solene aos
homenageados da “Medalha do Pacificador”. Aquela efeméride fechava o texto,
que referia: “E, enquanto isso, no Parque da Redenção, haverá farta distribuição
de latinhas”.
372

A Rádio Continental foi suspensa com dois dias fora do ar como punição e
foi obrigada a pagar multa, em dinheiro, além de responder a inquérito. Oscar
Flores perdeu seu emprego e, também, respondeu a inquérito. Em 1973, Oscar não
esquece, aconteceu sua formatura em jornalismo. E ele já estava “batizado”.

7.1.39 Melhor Música, Melhor Som da Cidade

Grande parte das peripécias da Continental está assentada na tripla


qualidade musical programada. Desde os primeiros programadores, Marcus
Vinícius Wesendonk, Johnny Megaton, Rubinho Prates, passando pelas
contribuições dos DJ’s, com o melhor da MPB, rara no rádio àquela época,
chegando à música popular urbana gaúcha, o conjunto da programação é
diferenciado.

As músicas internacionais exclusivas, trazidas pelo Agente 1120, recebem


o “carimbo” sonoro da exclusividade Continental, na voz de Ângela Ribeiro.
Francisco Anele é garantia profissional na técnica de gravação. Bertoldo Lauer
Filho, direcionando o som da Continental para o litoral (“Eu quero o público de
Capão e Atlântida, não quero falar para Tapes”, repetia sempre), fazia aumentar a
audiência jovem. Nesse sentido, Holmes Aquino, hoje, responsável técnico da
Rádio Gaúcha, é enfático ao referir que “a Continental era o melhor som da
cidade”. Enquanto as rádios Gaúcha, Farroupilha e Guaíba eram as emissoras
mais potentes, detinha a Continental a melhor qualidade de som. Isto graças,
também, aos investimentos em equipamentos realizados pelo Sistema Globo de
Rádio para a 1120.

A Continental pregava, em solo fértil, num mercado onde não havia


abundância de ofertas qualificadas. Ofertava tripé de qualidade na música
(internacional, nacional e local), numa época em que adquirir um LP significava
investimento, mesmo para o público de classe média. Aos poucos, a cidade
desenvolvia o hábito de gravar em fitas cassetes a programação da Continental,
que circula na forma de empréstimos e presentes pessoais entre amigos.
373

A mesma raridade musical que o conjunto da programação Continental


apresentava no mercado de rádio porto-alegrense, entre 1971 e 1977, sobretudo,
ocorria no campo da informação, via radiojornalismo. O direcionamento para o
público universitário e o posicionamento oposicionista da programação
informativa garantiam para a Continental outro tipo de fidelidade de audiência,
mais restrita do que aquela musical, é verdade, mas igualmente importante.

Na publicidade, a Continental fala para a juventude de classe média. Para


aquele grupo que compra roupa na loja Kanto Kente, do grupo Renner, ou adquire
calças no Saco & Cuecão (“que não aperta os seus documentos”), abastece o carro
com gasolina Ipiranga, faz revisão na Gaúcha Car, adquire relógio ou jóia na Casa
Masson e sorve, peça a peça, a publicidade Continental.

Fernando Westphalen refere o radialista Flávio Alcaraz Gomes, da Rádio


Guaíba, como o grande nome responsável para a atenção da censura repressiva
sobre a publicidade da Continental, inclusive. “Alcaraz fazia o possível e o
impossível para prejudicar a Continental, fazendo intrigas junto aos militares, com
quem sempre privou e conviveu durante a ditadura”, afirma Westphalen. “Ele e o
Hilário Honório, nome do cronista Adil Borges Fortes, da Folha da Tarde, eram
inimigos e prejudicaram a Continental, na maior parte das vezes, com
inverdades”, afirma o diretor da Continental.

Naquele final de 1976, a Continental, publicamente, está posicionando-se


politicamente. Naquela oportunidade, de modo surpreendente, através de anúncio
fúnebre. A iniciativa não vem do departamento de jornalismo, vem da direção. A
série de anúncios não é paga. E, surpreendentemente, é veiculada de 30 em 30
minutos o que, imediatamente, provoca interpelação da Censura Federal. O
motivo da interpelação reside, também, no teor do anúncio fúnebre. A Continental
sustentava com insistência acintosa algo que não podia ser proibido. A resposta da
Continental sustenta-se em estudo técnico, segundo o qual o ouvinte de rádio não
presta atenção ao conteúdo veiculado por mais de 15 minutos de duração. De
resto, lembra Adroaldo Corrêa ao referir a sustentação, foi aludido o fato de o
público, numa grande metrópole, migrar na preferência da emissora no dial.
374

O anúncio em questão convidava, com ênfase, para a missa de sétimo dia


de falecimento do ex-presidente João Goulart, na Catedral Metropolitana de Porto
Alegre. Deposto e exilado na província argentina de Corrientes, Jango falecera dia
6 de dezembro de 1976, vítima de colapso cardíaco. Aquela “manifestação de
solidariedade a um ente querido” da Continental, no dizer de Adroaldo Corrêa,
ajudara a lotar a Catedral, na última manifestação pública de homenagem ao ex-
presidente.

Aquele ano, pela primeira e única vez, a Rádio fizera a cobertura especial
das eleições municipais e estava desejando feliz ano novo com uma mensagem
institucional gravada por Fernando Westphalen.

No estilo Continental, eram referidos os dados históricos de 1976: “Dívida


externa brasileira bate recorde: 28 bilhões de dólares./ Bombas, A.B.I., Jornal
Opinião, Editora Civilização Brasileira e outros 15 atentados [...]”. E prosseguia,
trazendo também fatos mundiais. A peça fechava com música, trazendo uma
balada de protesto, ao estilo dos anos 60-70, composta por Vanderlei
Falkenberguer, que dizia:

Os tempos andam meio tristes.


E a incerteza vai continuar
Você que é jovem se console.
Pois tem tempo pra esperar
Talvez dê em nada
Talvez seja igual.
Mas é ano novo.
Creia.
É tempo bastante.
Pro mundo mudar.

O mundo, de fato, mudaria. Não, certamente, como almejava a


interpretação mais otimista daquela mensagem da Continental naquele fim de ano.
E a Rádio, inexoravelmente, preparava-se para viver o ano limite da sua própria
experiência histórica.
375

7.1.40 A Maior Multa da História do Rádio

O ano de 1977 inicia, na Continental, com programa especial onde era


apresentado prognóstico da correlação de forças políticas e, naquele programa, o
redator Eduardo Meditsch, tendo em vista a recente vitória eleitoral da oposição, a
reação da direita e as dificuldades conjunturais para o executivo governar, cogita a
possibilidade de o presidente Ernesto Geisel decretar o fechamento do Congresso
e concluía o irônico texto daquele programa que, para que tanto acontecesse,
faltavam 29, 28, 27... dias. De nada valeria, no futuro imediato, a história
confirmar o acerto da análise política. A ousadia daquela avaliação do quadro
político-institucional da Continental foi multada, embora estivesse correta na
projeção que fizera, sobretudo quanto à decisão pelo fechamento do Congresso
por Geisel.

A redatora Bete Portugal, naquele tempo, desenvolvera maestria em


redigir prognósticos para o tempo. Nas redações de Bete, bastava haver, em algum
jornal diário, algum indício de possível tortura política para, então, ela contra-
atacar. E lá apareciam, nas diferentes edições de boletins meteorológicos, a
projeção de aparecimento de “nuvens roxas, com clima sujeito a pancadas e
trovoadas”, ou “céu cinza chumbo, com aparecimento de descargas elétricas no
final do período”. Infelizmente, os tempos ainda eram de vigência do AI-5, de
torturas e mortes, como a do operário Daniel Fiel Filho, e do assassinado do padre
jesuíta João Bosco Penido Burnier, em 1976.

No ano seguinte, dia após dia, a Continental enfrentava uma pressão


crescente e insuportável da Censura Federal, conforme o depoimento de Fernando
Westphalen. Prova disto, quando chega 7 de setembro, mais uma vez naquele ano,
a Rádio está recebendo outra pesada multa em dinheiro. O editor da tarde, Luiz
Carlos Merten, redigira notícia onde relatava versão para a origem do fogo
simbólico. Segundo Merten, os militares brasileiros haviam “retirado o fogo
daquela noite escura da Alemanha, sob o espírito de Wagner, sob o domínio da
força”. Aquela associação, relacionando o fogo simbólico ao nazismo, foi
duramente punida com multa.
376

As multas se sucedem e a Continental não está mais recebendo multa


somente pela irreverência. A inteligência, a irreverência e a oposição no ar tinham
atingido altíssimo custo. A cada multa, uma cabeça rolava. E agora, chegava a vez
do experiente e qualificado Merten. A direção da Continental e do
radiojornalismo, o grupo dirigente entendia que não era possível abrir mão das
denúncias, nem das notícias interpretativas de oposição, a partir do somatório das
fontes lidas e ouvidas, a contar das análises próprias, mas as multas contra a
Continental, então, pesavam muito e causavam grandes desgastes, de diferentes
modos, penalizando tanto a Rádio, quanto a direção perante a Globo, no Rio de
Janeiro, e os jornalistas, individualmente, responsabilizados.

Naquele ano, o grupo ainda teve fôlego para, em outubro, cometer a


proeza de noticiar, antecipando-se às grandes Guaíba e Gaúcha, aliás, em “furo”
com primazia nacional, anunciar a decisão presidencial de exoneração de, nada
menos, o Ministro do Exército.

O departamento de radiojornalismo da Continental, ao ler, nos jornais


diários, as opiniões convergentes de Villas-Boas Correa, Jânio de Freitas e Castelo
Branco, interpreta, junto com aqueles renomados analistas políticos, que o general
Sylvio Frota, titular da pasta do Exército e postulante exacerbado à presidência da
República, já estava demitido. Naquele momento, é tido como certa a derrubada
do ministro, devido às recentes declarações dele “avançando o sinal da disputa
presidencial”, em desagrado frontal à vontade de Geisel.

Às 10 horas, autorizados pela direção da Continental, os rapazes do


radiojornalismo estão colocando no ar a notícia: “Geisel exonera general Frota
etc”. Às 11 horas, repetem a informação e, depois, param de noticiar.

O silêncio nacional, em torno da questão, faz a redação suar frio. As


emissoras nacionais, em ondas curtas, são sintonizadas, mas ninguém fala. Nada.

Por outro lado, o fato de a Censura Federal, igualmente, permanecer em


silêncio, sem admoestar a Continental, até ali, era um indício de que a notícia
estava, mesmo, correta. De qualquer modo, das 10 horas, daquele dia 12 de
377

outubro de 1977, até cerca de 14 horas, houve grande sofrimento na redação e na


direção.

Poucos minutos depois das 14 horas, demonstrando certo “sorriso na fala”,


segundo interpretaria Adroaldo Corrêa, rádio colado ao ouvido na redação, o
radialista Cândido Norberto, na Rádio Gaúcha, entrevistava uma fonte, direto de
Brasília, confirmando a notícia da exoneração do general Frota, substituído por
Fernando Belfort Bethlem.

Naquele ano, o ponto culminante, a experiência limite, para Fernando


Westphalen, esteve no que sucedeu à cassação política de vereador eleito pelo
MDB, Glênio Peres. Marcos Klassmann, eleito, inclusive, com a assessoria de
Eduardo Meditsch e Adroaldo Corrêa, seria, igualmente, cassado em seguida.

No discurso de posse, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, o


vereador Glênio Peres criticou a violação dos direitos humanos e a ausência de
liberdades no país. No dia 2 de fevereiro, o presidente Ernesto Geisel assina a
cassação e a suspensão por dez anos dos direitos políticos do vereador medebista
devido ao discurso de posse.

Em 15 do mesmo mês, era a vez do vereador Marcos Klassmann, por


repetir o mesmo discurso de Glênio. Para surpresa até mesmo de seus apoiadores
políticos, para surpresa de todos os ouvintes que sintonizavam a Continental, que
transmitiu a solenidade, direto da Câmara de Vereadores, Marcão, como era mais
conhecido Klassmann, repete o discurso de Glênio e, igualmente, é punido.

A punição para a Rádio Continental, entretanto, veio através de outra


escaramuça, embora ainda relacionada com as cassações. Ocorre que a executiva
estadual do MDB gaúcho, logo, prometeu divulgar nota oficial, manifestando-se
contra as cassações. Fernando Westphalen, ao saber do anúncio, decide consultar
a Censura Federal sobre alguma proibição. Conforme informava Bispo da Hora,
via telefone, nada constava. “E ele comprometia-se em avisar, caso algo
mudasse”, relata Judeu.
378

Quando a nota do MDB é anunciada, imediatamente, as rádios Guaíba,


Gaúcha e Farroupilha transmitem o teor. A mesma atitude tomaria a Rádio
Continental.

No dia seguinte, todas as emissoras foram interpeladas e intimadas pelo


Dentel, que solicitava as fitas contendo as gravações com a nota do MDB em
questão. Todas as emissoras cumprem com o determinado. Todas foram julgadas
em Brasília. Segundo Westphalen, “ali estava um fato novo. Havia mais outro
censor no processo, o Dentel, além da Censura”.

Todas as emissoras julgadas foram absolvidas. Somente a Continental foi


condenada e deveria pagar a maior multa jamais aplicada na história do rádio.
“Aquilo era absurdo, brutal, descabido”, rebela-se Westphalen, ainda hoje, ao
referir-se à decisão e à multa. “Até mesmo autoridade dentro do Dentel, o Dr.
Teófilo, advogado, dizia que aquilo era injusto. Era uma barbaridade.
Recomendava ele que recorrêssemos contra aquela decisão, que ganharíamos”,
conta Westphalen.

Conforme ele, “fiz contato, no Rio de Janeiro, com Raul Brunini, o


interlocutor para assuntos da Continental, então, dentro do Sistema Globo de
Rádio, desde a aposentadoria do Queiroz (Armando). Relatei tudo a ele, inclusive
o que disse o advogado do próprio Dentel”. A resposta de Brunini às
possibilidades de recorrer foi surpreendente: “Não, paga. Não vamos recorrer”.
Brunini recomenda e, assim, a Globo cobria a maior multa da Continental e, de
todos os tempos, jamais aplicada.

Brunini conta, então, a Westphalen que a pressão sobre a própria Globo


estava forte. À época, ocorrera, também, a proibição da telenovela “Roque
Santeiro”, após ter havido uma liberação inicial pela censura.

No caso da Continental, há fatos diversos sendo referidos. Existe, por


exemplo, a versão de que a multa foi devido ao modo como a Continental
noticiou e cobriu a cassação de Glênio Peres, referindo o fato inúmeras vezes
dentro da programação, sempre repetindo, em fragmentos resumidos, o próprio
teor do discurso do vereador cassado.
379

Também quanto à liberação ou não da nota oficial do MDB, há outro dado,


além do depoimento de Fernando Westphalen referindo a não-proibição de Bispo
da Hora, da Censura Federal. No dia 3 de fevereiro, existe um recado, anotado por
Adroaldo Corrêa, cujo conteúdo refere, explicitamente, proibição anunciada para
nota do MDB, por parte do mesmo Bispo da Hora.

Seja por noticiar a cassação do vereador Glênio Peres, repetindo várias


vezes, ao longo da programação, trechos do discurso que motivaram a punição do
político, seja por divulgar a nota oficial do MDB, proibida ou não pela Censura. O
fato inequívoco foi que a Continental, arbitrariamente, foi punida com a maior
multa prevista no regulamento da radiodifusão, por divulgar informações que
poderiam “perturbar a ordem e predispor a população contra o governo”, segundo
o Ministério das Comunicações. O valor da multa foi de Cr $ 43.758,38.

Naquele final de 1977, o ano limite para as multas e pressões contra a


Continental, Fernando Westphalen estava deixando a direção da Rádio. “Eu
percebia que, a qualquer momento, a coisa chegaria até o Roberto Marinho. Aí,
minha cabeça seria pedida. E seria servida numa bandeja. O problema não era
comigo. O problema era as pessoas que estavam comigo naquele projeto”, avalia,
hoje, Westphalen.

Na verdade, o diretor da Continental procurava alguma forma de dar


continuidade ao processo desenvolvido pela Rádio. Westphalen, pessoalmente, se
mostrava cansado, inclusive, por não ter “não a palavra de apoio, dos Sindicatos
ou da AGERT, mas sequer a solidariedade, diante de toda a barbaridade conosco”.

O projeto da Continental, ainda, demonstraria sobrevida, sob a direção de


Wesendonk, a partir de 1978. A equação Continental, aliando liberdade editorial
com sucesso comercial, entretanto, estava, definitivamente, abalada.

O projeto da Continental, implantado e bem-sucedido, a partir de 1971, já


não encontrava, na virada para 1978, o mesmo respaldo de anunciantes. Judeu, ao
sair, poupava, igualmente, mais alguma receita ainda, retirando do bolo de
arrecadação a maior composição salarial da folha da Continental, tão onerada pela
380

freqüência reincidente de multas em dinheiro. Haveria explicações outras para o


insucesso e desmantelamento de projeto, até ali, tão brilhante?

7.1.41 Por que a Continental não migrou para FM?

O modelo de programação da Continental apoiava-se sobre elenco de


qualidades múltiplas (humanas, produtivas, organizacionais, técnicas) que
garantiam a eficácia comercial e radiofônica do projeto.

O transcorrer do tempo histórico, trazendo inéditas situações e


adversidades ao projeto, bem como novos ingredientes de antagonismos, alguns
pontuais, determinaram o final prematuro daquela experiência fundamental à
história do rádio gaúcho moderno.

Se o modelo inovador da Continental surge como numa tacada ou lance


único, a partir do verão de 1971, com programação formatada e, imediatamente,
criando espaço no gosto do ouvinte, já a queda do sucesso comercial radiofônico
foi plurideterminada e paulatina. Resumidamente, parece-nos, a Continental
criativa e inovadora nasceu pronta e de imediato. Já a morte do projeto ocorreu
aos poucos, devido à pluralidade de determinações.

O acúmulo de multas em dinheiro, a pressão constante e ainda crescente da


censura, o surgimento de concorrência diferenciada, o amadurecimento de uma
geração de ouvintes após dez anos de programação, a própria dinamicidade do
mercado do sonoro e jornalístico, oferecendo outras oportunidades para os
profissionais da Rádio foram alguns dos determinantes para a derrocada do
modelo pioneiro da Continental.

Os anunciantes, parceiros em adesão da primeira hora da nova


programação, no distante verão de 1971, posteriormente, sinalizavam com outro
padrão de comportamento, já em 1976. Foi naquele ano a “morte” de “Mr. Lee”,
por abandono unilateral do grande patrocinador fabricante da marca de jeans
homônima. Por desentendimento com o radiojornalismo, em dura questão
envolvendo metodologia e procedimentos de citação de fontes, outro patrocinador
381

importante e diário estava deixando a Rádio, na mesma época. Tratava-se do IPV,


que saía do programa “Opinião Jovem”, permanecendo Fogaça, após demissão do
apresentador e patrocinador Clóvis Duarte, sócio proprietário do IPV.

Se a saída de patrocinadores enfraquecia o projeto na base comercial, a


saída de importantes integrantes da equipe atingia a qualidade da programação
enquanto produto final. O bom desempenho profissional do grupo continuava,
mas havia perdas nos aspectos diferenciais. Exemplo disto foi a saída definitiva de
Francisco Anele, em 1977, para a gravadora ACIT, interrompendo o valioso
trabalho daquele técnico de som nas gravações de músicos locais na Continental
e, igualmente, na produção qualificada e inovadora na publicidade. A Continental
perdia nomes de referência e isto incluiria, também, a saída de Westphalen.

Inequivocamente, no entanto, entre todos os fatores apontados para a


morte prematura do modelo Continental, o mais constante encontramos no fato de
a Rádio não ter migrado para a operação própria em FM. Em nossa pesquisa,
existiu quase unanimidade na afirmação, quase crença que a Continental teria vida
mais vigorosa e longa, caso tivesse criado emissora idêntica em oferta pela FM.

A cada entrevista realizada, interpelávamos o porquê da falência do


modelo Continental. E a cada resposta dada, lá aparecia a defecção da FM, a
inexistência de emissora da Continental em FM, como motivos para o
desaparecimento da Continental original, mesmo com a qualidade de
determinação primeira.

Sem alimentarmos a mesma convicção, então, disparávamos a próxima


questão: por que, diante desta constatação, não buscou a direção da Rádio, ou a
Rede Globo, erguer, então, naquele momento exato, a nova Continental FM?

Antonio Carlos Contursi, o “Cascalho”, foi além nas respostas, defendendo


uma linha de programação fortemente jornalística para permanecer no 1120 do
dial AM, e a transposição integral da “antiga” Continental musical para a nova
emissora em FM “para acompanhar com qualidade de som e repertório a sua
geração de ouvintes”.
382

Outros referiram articulações concretas da Continental em busca de


obtenção de concessão em FM. Para obter o canal em FM, inclusive, teria havido
o pagamento de taxa especial, em dinheiro, ao Ministério das Comunicações,
durante algum tempo, depósitos depois suspensos, sem que o bem tivesse sido
obtido. Fernando Westphalen, inclusive, referiu-nos que a Rede Globo pediu e
não ganhou o canal desejado, em FM, para a Continental em Porto Alegre, devido
ao fechamento de espaços políticos protagonizado pelos militares no governo..

Alguns colaboradores, entretanto, referiram outro cenário referente à rádio


em FM e apontavam para o clima de descrença geral que trazia programação
recentemente em FM que não parecia algo próprio para radiodifusão comercial.
Para estes, não havia, pelo menos no início, convicção firmada, na Continental,
quanto ao sucesso futuro da programação em FM.

A partir de 1975, quando surgem as primeiras emissoras FM na cidade,


pelo contrário, as indicações apontam para sérias limitações: a programação era
estática, não era versátil, não empolgava de imediato aos anunciantes e, sobretudo,
existiam poucos aparelhos receptores. Esta última adversidade tópica,
rapidamente, seria suprida pela indústria brasileira. No caso específico da
Continental, a ausência de convicção firmada sobre a importância da FM,
retardou, no mínimo, o interesse e a ação conseqüente para instalação de nova
emissora própria em FM.

Mas, Fernando Westphalen refere, em depoimento, outro conflito, outra


conjuntura, inclusive política, para ele, mais determinante de impasses para a
Continental, em particular, e para a Rede Globo, também, naquele momento
histórico. Segundo ele, não havia bloco monolítico no exercício do poder e, nesse
sentido, o próprio exército brasileiro digladiava-se em posicionamentos políticos
divergentes e conflitantes no campo do poder. A convicção de Westphalen ficou
firmada após conversações com o Rio de Janeiro, sobretudo, com Raul Brunini.

Na interpretação de Westphalen, naquele momento, dentro do exército


nacional e do governo existia, entre outras tendências, um grupo forte cuja
expressão poder-se-ia denominar “nasserista”, inspirada na linha nacionalista do
383

líder Gamal Abdel Nasser (1918-1970). Para aquele grupo político-militar, era
fundamental deter o poderio da Rede Globo, impedir a expansão da mesma no
país, delimitar a importância e o domínio da empresa de Roberto Marinho na
comunicação e no cenário político nacional.

De outro lado, perfilava-se a própria Rede Globo, demonstrando “sempre


apetite voraz nos negócios e em busca de maior expansão”, no dizer de
Westphalen. Para ele, a Rede Globo havia se utilizado bastante das influências
possíveis dentro do governo federal, “sobretudo durante o período com Costa e
Silva e, depois, dentro do governo Médici”. Segundo Westphalen, porém, durante
o governo Geisel, aquele predomínio de influências da Globo não era mais ponto
pacífico, sobretudo pelo combate duro empreendido por aquela corrente militar
“nasserista” referida. Foram os “nasseristas”, por exemplo, que impediram,
“naquele momento histórico, a Rede Globo de receber, sequer, uma concessão de
rádio FM no país”. A negativa incluía, pois, a emissora pretendida em Porto
Alegre, mas não somente aquela, conforme Westphalen. “Foi a época em que
começaram as concorrências para concessões de canal em rádio FM. A Globo não
ganhou nenhum”, enfatiza Westphalen.

À saída da Continental, no final de 1977, o diretor Westphalen se


declarava cansado da luta desigual contra a pressão da ditadura, se mostrava
desolado pelo isolamento da Continental. Ele avaliava que aquela situação de
embate, de resto, ainda continuaria por muito tempo. A partir de 1980, entretanto,
a censura abrandaria, pelo menos aquela censura de chumbo, a exercida,
arbitrariamente, pelo poder de polícia.

A Continental encerrava um ciclo inigualável, histórico e datado. O


contexto social, histórico e político, igualmente, mudava qualitativamente.
Enquanto o início da redemocratização esvaziava o projeto político de contestação
da Continental, a chegada das FMs, a maior oferta de reprodutibilidade e
gravações sonoras de qualidade, retiravam da 1120 a primazia e o pioneirismo
naquele campo de consumo, entretenimento e informação. Destituída destes
espaços vitais para interação social enquanto Rádio de certa juventude porto-
alegrense, a continental despedia-se de importantes capitais simbólicos. Junto
384

destes, declinava o esquema comercial bem-sucedido da Continental. Aquele


“som nosso de cada dia”, definitivamente, deixava o cotidiano e ingressava na
sintonia da história contemporânea.

O projeto de programação da Continental permanecera inatacável e imune,


apesar dos ataques de diferentes tipos de forças externas, durante a temporada em
que dera lucro. A linha editorial integrada, englobando musicalidade, informação
jornalística, trato com publicidade, estivera voltada para o público segmentado
que escolhera, que definira, previamente.

Aquele direcionamento da programação estava mantido, como pacto para


um desenvolvimento de comunicação voltada para a oposição, “embora
soubéssemos que muita gente apoiava a Redentora, e não gostava de nós, por
atacarmos a ditadura e a repressão”, no dizer de Westphalen. Entretanto, aquela
visão editorial de autonomia e independência estava articulada com o
posicionamento no mercado. Politizada, a Rádio não abrira mão da viabilidade de
lucro comercial.

Entretanto, estava quebrada a equação que associava liberdade editorial,


qualidade na programação, raridade na oferta da musicalidade e sucesso
comercial. A primeira morte do projeto inovador da Continental ocorria no final
de 1977. As demais, até o desaparecimento oficial, quando a marca Continental é
negociada, seriam, na prática, decorrências daquela primeira fragmentação.

O legado possível da Continental, a memória expandida da experiência da


Rádio, identificamos na paidéia radiofônica empreendida pela audiência. O
legado se ergue e se manifesta nas experiências de memória possível da audiência.
É expressão desta experiência, deste aprendizado radiofônico, a transmissão do
legado da Rádio Continental desenvolvido pelos trabalhos de jornalistas,
radialistas, professores e mesmo ouvintes anônimos. Incluímos no elenco da
audiência, inclusive, os próprios produtores, organizadores primeiros da paidéia
radiofônica.

Exemplarmente, mencionamos trabalhos como o de Emílio Pacheco,


funcionário da Caixa Federal, especialista “amador” em Continental. Destacamos,
385

igualmente, o trabalho contido na estruturação e manutenção do maior acervo


sonoro da Rádio, graças a Francisco Anele. Está no trabalho jornalístico de Lucio
Haeser, desde adolescente, ouvindo a Rádio, em Santa Cruz do Sul e, hoje,
escrevendo, apaixonadamente, livro sobre a Continental. Está, também, o trabalho
de Luiz Juarez Pacheco, gaúcho-paranaense que, desde Curitiba, durante 1975 e
1976, grava, em condições precárias, acervo importante contendo inúmeras
edições do “Vivendo a vida de Lee”. Por fim, incluímos, também, o trabalho da
presente tese.

A paidéia radiofônica da Continental ergueu-se pela ação comunicativa da


emissora e ampliou-se pela ação da cultura midiática ali oportunizada.

7.1.42 O Mapa

A Continental estava localizada no centro financeiro, cultural, comercial e


político da cidade, numa década em que Porto Alegre, mais do que atualmente,
não descentralizara fluxos, rotinas, existências e ações cotidianas. A localização
era importante, principalmente, na valorização e narração da cidade protagonizada
pela Rádio. Na Continental, a cidade tornara-se personagem central, fosse através
da menção aos feitos da história, fosse pela enunciação cotidiana de seus hábitos,
geografias ou habitantes ilustres, e esta notoriedade efêmera poderia recair sobre o
atleta vegetariano Bataclã ou o prefeito da cidade.

Sobretudo, a cidade tornara-se personagem de uma linguagem radiofônica


inovadora, fosse pelo registro de humor ou ironia, pela nova musicalidade, ou,
ainda, pelo ímpeto e coragem de dizer a realidade pelo jornalismo 1120.

A própria centralidade da Rádio favorecia uma acentuada experiência de


autocentramento. Era como se a Continental, postada no centro de Porto Alegre,
necessitasse daquele exercício egóico de sonorização cotidiana para poder falar
com a cidade e, dali, fortalecida, poder falar da cidade, desfazendo ilhamentos.

A centralização, de algum modo, alimentava a tradição cultural porto-


alegrense de ser, ao mesmo tempo, uma capital em busca do cosmopolitismo e
386

uma cidade autocentrada, zelosa de realizações históricas próprias, feitos


culturais, marcos políticos ou comerciais, façanhas, construções materiais e
simbólicas. A Continental, radiofonicamente, captava aspectos deste espírito
porto-alegrense (uma cidade metrópole e, ainda, aldeia) e tratava de devolvê-lo,
bem-formatado, para a audiência, ao mesmo tempo, ávida pela novidade e
sequiosa por ver enunciada a recente tradição da cidade. A Continental,
seguramente, era o vento que trazia o novo e a Rádio que movia com o antigo
carcomido através de ondas de vanguarda.

Vizinho e amigo da Rádio, o poeta Mário Quintana, à época, fazia da


Praça da Alfândega, em frente ao prédio da Continental, uma espécie de sala de
visitas a céu aberto. Igualmente, Mário circulava pela Rua da Praia, a mesma da
Rádio, exibindo curiosidade de menino e tranqüilidade de homem do interior no
passo público, estivesse rumo ao prédio da Caldas Júnior onde trabalhava, ou
caminhasse em direção ao rio, em busca de descanso no Hotel Majestic onde
residia. A poesia de Quintana, de algum modo, trazia o mesmo apego por Porto
Alegre, o mesmo desejo de experimentá-la e conhecê-la, em diferentes dimensões,
a mesma valoração ao dizê-la, fosse pelo efêmero do próprio cotidiano,
qualidades, também, da Continental. Apenas, não tinha o mesmo reboliço, não era
nada feérico, como a Rádio, mas dividia com esta o acurado humor e a mais fina
ironia.

Naquele tempo, no auge da Continental, Mário Quintana escreveria um


poema à cidade, um poema sobre o querer e o querer conhecer a cidade, que a
tornava mais célebre, mais terna, a partir da experiência de autoconhecimento
instigada, em 1976, com “O Mapa”:

Olho o mapa da cidade


como quem examinasse
a anatomia de um corpo...
(É nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
387

E há uma rua encantada,


que nem em sonho sonhei.
Quando eu for um dia desses
poeira ou folha levada no vento da madrugada
serei um pouco do nada
invisível, delicioso,
que faz com que teu ar pareça mais um olhar
suave mistério amoroso
Cidade de meu andar
deste já tão longo andar
e, talvez, de meu repouso (QUINTANA, 1976, p. 143).

A Continental, a exemplo de Mário Quintana, com voz autoral própria,


também poetizou Porto Alegre, literal e metaforicamente. Ambos ocuparam e
deram contornos próprios, com suas vozes, ao mapa humanizado da cidade.

7.1.43 Palimpsesto 1120

Se aplicarmos espécie de técnica do palimpsesto sobre o dial 1120, vamos


descobri-lo sendo ocupado, em ordem cronológica, desde a inauguração até hoje,
primeiramente, pela Rádio Continental, logo pela Rádio Globo e, a seguir, por
uma série de nomes-fantasia, quando se torna emissora, tendo como
permissionária a RBS, incluindo a Rádio Rural, hoje.

Na verdade, a Rádio Continenal AM 1120, de Porto Alegre, tornou-se caso


raro da radiodifusão gaúcha ao ter valorizado como negócio, ao mesmo tempo, o
canal de transmissão com o respectivo prefixo 1120 e o nome-fantasia Continental
que se construiu como espécie de grife regional, daí, tornando-se necessária a
investigação para apontar nomes e permissionários das diferentes “propriedades”,
bem como a lista de nomes-fantasia que ocupam o dial 1120.

Foram permissionários, denominados donos da emissora e dial,


cronologicamente: Victor Issler (de 1962 a 1963) Rede Globo (de 1963 a 1982) e
RBS (a partir de cerca de 1982 até hoje). Quando se torna permissionária do 1120
no dial, após troca efetivada com a Rede Globo, a RBS passa a erguer naquele
canal, diferentes projetos de emissoras, com diferentes designações. Para liberar a
emissora localizado no 1120, de Porto Alegre, a Globo recebe da RBS a Rádio
388

Eldorado, emissora de 5KW, localizada em Brasília. Aqui, a RBS projeta no


1120, respectivamente, em ordem cronológica, a Rádio Porto Belo AM Estéreo,
Rádio Pioneira, Rádio Educadora, Rádio 1120, Rádio CBN (Porto Alegre, em
acordo operacional com o Sistema Globo de Rádio) e, finalmente, Rádio Rural –
“a rádio que toca o Rio Grande”, desde dezembro de 1999, até hoje. Pela
variedade de designações, verifica-se que, até a inauguração desta última, a RBS
vinha encontrando dificuldade para fixar projeto de programação para o dial 1120.

Já a propriedade do nome-fantasia “Continental” esteve sob a posse,


correspondentemente, aos dois primeiros permissionários da emissora e, a partir
de negociação direta com a Rede Globo, terminou como posse da Rede Rio-
grandense de Emissoras, em 1981, mesmo grupo que controlava Rádio Pampa,
concorrente direta da Continental, no segmento jovem.

Na maior parte do tempo, o nome-fantasia Continental preponderou como


ocupante do 1120 do dial, assim designado e, sendo de propriedade, basicamente,
das famílias Victor Issler e Roberto Marinho, cronologicamente. Na prática,
durante as duas primeiras décadas de existência da Rádio, como é sabido, aquela
emissora no dial e a mesma denominação estiveram cerca de 19 anos sob posse da
família Marinho. Em 1º de agosto de 1981, a Globo estava negociando o nome-
fantasia Continental com a Rede Rio-grandense de Emissoras, de Otávio Gadret.

Naquele momento, a até então denominada Rádio Pampa, 1200 no dial,


passa a se denominar Rádio Continental, concretizando antigo sonho do
proprietário da Rede Rio-grandense, fazendo migrar o nome-fantasia da antiga
concorrente, que fica sob seus domínios, até 3 de dezembro de 1973. No primeiro
momento em que Gadret faz migrar o nome Continental para o 1200 no dial,
encontramos o 1120 denominado como Rádio Globo, de Porto Alegre.

A espécie de fixação de Otávio Gadret, na “grife” Continental, faz com


que aquele empresário retome, desta vez sem necessitar comprar e tão somente
reativando marca recente de sucesso no rádio de Porto Alegre, o mesmo nome
fantasia, então, no espectro da FM. Em novembro de 1992, é inaugurada a
Continental FM, 98.3 no dial, cuja razão social é Pampa Rádio Difusão Ltda.
389

Interpretamos o especial interesse do empresário Otavio Gadret em relação


à Rádio Continental como expressão da paidéia possibilitada pela experiência
ampliada da 1120 original, criada e desenvolvida entre 1971 e 1977, sobretudo.
Em mais de um depoimento, encontramos a referência para o “sonho de Gadret”
em relação à Continental, por fim, concretizado, em parte, pelo empresário. Este
desejo atuado constatamos em nossas entrevistas com o empresário. Sobretudo,
destaca-se o fato de haver grande valorização do próprio nome-fantasia e o
interesse comercial da concorrência em apropriar-se, utilizar-se e, por fim, tornar
a lançar emissora homônima, em FM, tudo ocorrendo em curto espaço de tempo,
na mesma cidade, embora sem ser possível repetir-se a experiência original do
“som nosso de cada dia” da pioneira Continental. Gadret, ao mesmo tempo, é
concorrente da Continental com a Pampa. É o comprador do nome fantasia
“Continental”. E, hoje, mantém no ar a Continental FM.

Acompanhamos Fernando Westphalen quando ele avalia que o auge da


experiência Continental ocorre entre 1971 e 1977. Segundo nossa avaliação, 1977
é o ano limite, divisor de águas para o acúmulo de pressão da censura, marco do
declínio de arrecadação comercial da Continental. O declínio ocorre por vários
fatores, existindo desde o desgaste natural do ciclo da programação, passando pela
própria pressão da censura e pela concorrência emergente das emissoras FMs no
mercado restrito. A queda da arrecadação, necessariamente, colocava em risco a
autonomia editorial da gestão de Fernando Westphalen.

Em 1978, Marcus Aurélio Wesendonk e equipe tratam, ainda, de garantir


qualidade à programação, o que é conseguido, relativamente, até o final do ano de
1979, quando Wesendonk, igualmente, sai de cena.

No verão de 1980, a Continental está acéfala, em Porto Alegre. Raul


Brunini, sempre grande parceiro dos gaúchos na manutenção do projeto
Continental, responde pela Rádio, direto do Rio de Janeiro. Ainda em 1980, Luiz
Eduardo Moreira, que já fora o terceiro nome na hierarquia Continental, nos
tempos áureos da experiência, passa a diretor, mas por curta temporada.
390

No final de 1980, o Sistema Globo de Rádio nomeia para gerente da


Continental 1120 Antônio Requião, já em epílogo descaracterizado do modelo
original. Descaracterizada a programação, a Rede Globo comercializa o nome-
fantasia Continental, em agosto de 1981, como afirmamos. No dial 1120, surge,
então, a efêmera experiência da Rádio Globo, em Porto Alegre.

7.1.44 A Continental no Dial do Futuro

Mesmo o ouvinte comum, ao ligar o rádio, hoje, sintonizando o dial de


FMs de Porto Alegre, com facilidade, identificará o mais evidente caso de herança
relativa possibilitada pela Continental. Isto é, poderá sintonizar a homônima
Continental FM.

Entretanto, o protagonismo da Continental AM possibilitaria, a partir da


consagração da oferta de programação complexa, desde a influência direta até a
relativa, variando de caso para caso de emissora, sobre as experiências práticas e
sobre os projetos de rádios contemporâneas e futuras, de modo relevante.

Conforme podemos inferir pelo trabalho da pesquisa, são verificáveis


focos de influências da experiência Continental, dando forma ao que
denominamos, também aqui, de especial tipo de paidéia radiofônica. Isto é, a
nossa hipótese de interpretação aponta para a transmissão viva da experiência, de
vivências e aprendizados oportunizados pelo conjunto de escutas e práticas em
torno da programação da Continental. Este conjunto é elaborado, transformado
em legado ampliado, no futuro imediato, tanto por profissionais da própria
emissora, quanto por radialistas de rádios concorrentes e por ouvintes
“aprendizes”. Alguns destes, posteriormente, vocacionados e influentes junto às
futuras ofertas de programação no dial porto-alegrense.

O pressuposto, pois, é que a Continental possibilitou este legado, como


uma espécie de herança cultural, provocando, ainda que de modo parcial, uma
linha de hereditariedade relativa, diluída, mas concreta, através das ondas do rádio
das diversas emissoras. Herança legada, presentificável e recuperada pelo trabalho
391

da memória social dos sujeitos, atores e agentes, em diferentes emissoras e,


posteriormente, na recuperação documental da presente pesquisa.

Em primeiro lugar, a Rádio Pampa AM. Emissora que, inclusive, criada


para concorrer, diretamente, pela audiência segmentada do público jovem, valia-
se de paródias dos slogans da Continental para autopromoção. Por exemplo,
referindo: “Pampa, muitos degraus acima”, brincando com o fato de, estando no
mesmo edifício da Continental, estar cinco andares acima.

A Pampa fazia uso, buscando igualar-se à Continental, dos registros de


falas bem-humoradas dos DJ’s, pela busca de musicalidade semelhante à da
Continental. A Continental, como referência, levaria o próprio empresário
permissionário da Pampa, inclusive, a adquirir, no futuro, como veremos, a
própria marca Continental.

Depois, ainda em AM, surgiria a Rádio Porto Alegre, vinculada ao Grupo


RBS, dirigida pelos irmãos Pedro e Nelson Sirotsky, arregimentando para o
quadro funcional colaboradores importantes da Continental, como João Batista
Schüller, Fernando Ferrão, entre outros.

Com a implantação do Rádio em FM, surgiriam, pela ordem cronológica,


Bandeirantes, Ipanema, Itapema (no primeiro modelo de programação, quando
sob slogan “som Brasil” não programava música estrangeira). Nestes exemplos,
vigora a tentativa de posicionar-se como “emissoras da aldeia” ou de “tribos”, isto
é, através de programação segmentada, ofertavam música e programas falados
para parcelas de públicos semelhantes aos da Continental. Comum a todas
emissoras uma orientação para busca do vínculo de audiência pelo registro
informal-conversacional pelo protagonismo dos comunicadores, a oferta de
atualização da estética musical e o acionamento constante do legado da MPB. Nos
casos da Bandeirantes FM e, depois, da sucedânea Ipanema, havia, também, uma
forte orientação de escuta, como na Continental, para as ofertas da música local, a
chamada MPG.

A linhagem de influências tem prolongamentos através da FM Cultura, da


Gaúcha FM, da Felusp FM, da Unisinos FM, da Pop Rock e da Itapema
392

(programação atual). A influência localiza-se ora na utilização de músicas em


blocos ou nexos temáticos, ora na pesquisa sofisticada de sons musicais
alternativos para público jovem segmentado. Já nos casos da FM Cultura e da
Unisinos FM, ocorrerão, também, investimentos significativos no
radiojornalismo, mesmo sendo rádios musicais, a exemplo do que realizara a
Continental. Os modelos indicados, em nenhum caso, nem mesmo da Continental
FM, indicam cópia fiel do modelo original. São modelos independentes que, de
modo parcial, mas significativo, partiram de soluções práticas da programação
Continental, transformando-o no tempo e na adequação à nova programação da
emissora autônoma em questão.

7.2 ASPECTOS TEÓRICOS DA PRODUÇÃO ESCUTA

A escuta tem sido considerada, quando não esquecida, em algumas


abordagens, como ato complementar à fala. Aqui, não se trata de fazer qualquer
inversão, nem de desconsiderar o caráter dinâmico e interligado que envolve
ambos os aspectos no processo comunicacional e midiático. Aqui, tão somente,
buscamos garantir à escuta protagonismo idêntico reservado à fala. O sujeito
somente é agente da fala se instituído está o sujeito da escuta. Assim, sem
querermos seccionar o processo, buscamos, antes, equalizar os dois pólos
interligados, mas garantindo à escuta valor consagrado à fala. Especificamente, na
tese, importa dizer que a produção da programação segmentada da Continental
inclui, como pressuposto a priori, a existência da figura do “ouvinte implícito” (a
exemplo daquilo já estabelecido por certa teoria da literatura quanto à figura do
leitor no texto). Igualmente, à programação segmentada, espécie de escolha
deliberada por parte de quem idealizou entre inúmeras possibilidades a produção
segmentada específica para público jovem, esclarecido e inteligente, conforme
depoimento de Fernando Westphalen para o Autor, correspondeu uma
fundamental fidelidade de audiência e inteligência de escuta.
393

Estudos recentes sobre recepção do rádio têm reexaminado os aspectos


cognitivos, perceptivos e de inteligência protagonizados pela escuta a meios
sonoros massivos, em especial, como em Meditsch (2001, p.254):

O pressuposto que embasa os estudos de recepção é de que a


audiência tem um papel ativo na produção do sentido da
mensagem que recebe do emissor, através de um processo de
recognição. A atividade cognitiva do ouvinte de rádio
representaria, assim, um novo processo de construção, onde
poderiam ser observadas mediações análogas às constatadas na
produção da notícia: a experiência e o interesse pessoal, um
eventual ponto de vista profissional, um lugar social, um
horizonte cultural e um condicionamento histórico.

Seguindo esta linha de raciocínio, podemos verificar que são complexas as


razões, entre as quais não está excluída a opção ou escolha da programação como
produto de consumo diferencial, que caracteriza o ato da escuta como exercício
particularmente importante para a experiência Continental. Uma vez ofertada a
programação segmentada e dirigida da emissora, a escuta em fidelização foi a
contrapartida fundamental dada pelo público em atenção, ora fluida, ora intensa,
mas constante e crescente, a partir daquele verão de 1971.

A experiência da escuta à Continental estava localizada em território


demarcado, datado e histórico, no qual constatamos carências de produtos
culturais e forte censura política, mesmo já se convivendo em ambiência com
ofertas massificadas da indústria cultural. Foi inserida dentro daquele recorte, em
Porto Alegre, onde a produção midiática da Continental soube encontrar
ressonância, relevância, vale dizer, existência real, simbólica e concreta própria,
específica.

Aquela escuta da audiência segmentada da Continental, atribuímos, foi,


uma escuta, igualmente, diferenciada, erguendo-se a mesma como uma
construção, em semiose, de fazer-refazer sentidos, atribuídos ora à cidade, ora à
própria Rádio e, sobretudo, autoconstruindo os vínculos de pertencimento e de
identidade social do próprio grupo de produção e de recepção. A idéia conceito
que queremos construir de paidéia radiofônica, necessariamente, sustenta-se na
hipótese desta escuta-ação, onde o sujeito ouvinte não apenas estava exposto às
394

sonoridades, mas trabalhava, vivenciava, escolhia e animava os signos sonoros


para usos e entendimentos próprios.

A paidéia, assim, é a estruturação possibilitada pela especificidade do


encontro de uma programação diferenciada com uma escuta qualificada das ações.
A paidéia é a expressão particular da interação radiofônica entre produção e
audiência, animadas e interligadas, com a finalidade de construção de sentidos, na
experiência radiofônica da Continental.

À escuta, pois, devemos atribuir uma estruturação fundamental ao


processo de comunicação, sobretudo em rádio, deslocando-se esta ação do
posicionamento de fenômeno complementar ou suplementar. Barthes (1982, p.
217) afirma que “não se deve censurar a escuta, em nome da fala. Escutar pode ser
um gozo ativo”. O Autor remete não somente ao gozo da escuta, mas à
possibilidade de maior amplitude para esta ação humana singular. “Ouvir é um ato
fisiológico; escutar é um ato psicológico”. O ouvinte torna-se sujeito da ação
comunicativa, seja pela falta (conjunto lacunar de múltiplas origens: psicológica,
social, etc.), seja pelo desejo (inicialmente, pulsão intrapsíquica, mas igualmente
de forte configuração social e massiva).

No caso específico da escuta da Continental, esta ação relaciona-se,


diretamente, com a idéia conceito de paidéia radiofônica ao repotencializar as
funções sociais básicas atribuídas ao rádio, isto é, informar, entreter, formar
opinião, educar.

O antropólogo Oliven (1993, p. 62), de modo próprio, amplia a questão da


escuta e a circunscreve dentro de embate maior que envolve a oralidade e a
escrita. Para o Autor, talvez seja devido à proximidade da oralidade com a
primeira fase de nosso desenvolvimento psíquico o fato de aquela ser, até certo
modo, considerada inferior ou menos articulada, resultando a oralidade como
diminuída, em comparação com outras formas de comunicação.

O oral seria quase que uma fase infantil, metaforizada no fiel


cachorro da RCA Victor que ouve atento a his master’s voice
saindo de um enorme alto-falante dos antigos. O dono fala
através do misterioso aparelho; já o cão escuta numa atitude de
obediente e fiel auditividade.
395

Da mesma metáfora, ressalvada a eventual condição decaída de


aproximação entre a figura do ouvinte com a de um animal, interessa-nos reter o
aspecto fiel da auditividade assinalada. Uma vez aceita aquela estratégia
discursiva da personificação, na mensagem, pode-se ressaltar, ainda, o aspecto
inteligente daquele “ouvinte especial”, de resto, de aspecto familiar, doméstico,
amigável e, sobretudo, vivo e ligado. Oliven, embora em sua interpretação do cão
da RCA Victor tenha ressaltado a “voz do dono”, termina por situar a oralidade
moderna como fenômeno fundamental, “numa época pós-escritural e que é
dominada [...] por diferentes tipos de imagens. (Sendo que) Estas são quase
sempre também sonoras” (p. 64).

A contemporaneidade, pois, adensa as questões envolvendo som e escuta,


acrescidas, agora, pela incorporação, no cenário produzido pela tecnociência, de
mecanismos fortemente marcados pela produção e reprodutibilidade da imagem
pictórica. Esta nova cultura reconfigura e oportuniza novo tipo de escuta para o
rádio jovem.

A associação rádio-música-juventude, porém, não tem sido somente


elevada à condição de construção cultural positiva. Adorno (1983, p. 165-191),
em texto famoso a respeito, demonstrava preocupações com o “fetichismo na
música” e com o que ele denominava a “regressão da audição”. A devassa de
Adorno iniciava por acusar o caráter que nomeava a “geração jovem”, pois, para o
Autor, nesta expressão, “o próprio conceito constitui uma simples capa ideológica
– parece precisamente, em razão da nova maneira de ouvir, estar em contradição
com os seus pais e sua cultura pequeno-burguesa e destituída de gosto” (p. 166).
No ensaio, Adorno sentencia o que denomina música ligeira e a música popular,
retirando desta o que outros atribuem como dotada de caráter democrático,
ficando o próprio juízo valorativo suspenso: “O comportamento valorativo
tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais
padronizadas” (p. 165).

Adorno, diretor do “Princeton Radio Research Project”, em 1938, neste


ensaio, ainda, coloca em suspenso a possibilidade de escuta, sob a
mercantilização, pois:
396

A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que


se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo
cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências. [...] A
música de entretenimento serve ainda – e apenas – como fundo.
Se ninguém mais é capaz de falar realmente, é óbvio também
que já ninguém é capaz de ouvir (ADORNO, 1983, p. 166).

Adorno ressalva, apenas, a música séria, e isto significa, basicamente,


Schönberg e sua escola, segundo Kothe (1978, p. 47) e abre uma porta, em outra
denominação, para a “música artística”, antagônica da música popular (p. 191).

Adorno tem sido atacado ora pelo caráter dogmático-apocalíptico de seus


ensaios, ora pelo refúgio em formas eruditas, angariando críticas severas, como a
assertiva de Mayer, para quem Adorno (apud KOTHE, 1978, p. 48). seria “um
burguês com saudade do feudalismo”.

Mais importante, talvez, seja verificar, racionalmente, onde Adorno


possibilita abertura para superação de sua própria lógica. Assim, ao flagrar o
sujeito sob o jugo da opinião pública, sem liberdade de escolha, porque as ofertas
musicais são todas iguais, afirma: “[...] tudo o que se lhe oferece é tão semelhante
ou idêntico que a predileção, na realidade, se prende apenas ao detalhe
biográfico, ou mesmo à situação concreta em que a música é ouvida (o grifo é
nosso) (p. 166).

Ora, nossa interpretação aponta, justamente, para a possibilidade de


autoconstrução do sujeito diante da mídia e da massificação a partir da própria
biografia, isto é, da memória individual e coletiva ali constituída, a partir do fruir
e da alteração de patamar de informação obtida. Se o biográfico referido, por
outro lado, prende-se à eventual projeção do ouvinte em relação ao astro ou
estrela da mídia, ainda assim, pode-se verificar, ali, a identificação como meio de
autoconstituição, ainda que projetiva do sujeito, e não sinônimo de alienação, em
si. Nesta direção, também, é importante a situação concreta da escuta. É nesta
situacionalidade, concreta e histórica, que a escuta, por si só, não realiza a
autonomia do sujeito pela exposição à mídia e à programação, mas o sujeito pode
construir, na situação concreta de escuta, descolar e construir, em recortes ou na
totalidade, o esclarecimento e a liberdade.
397

Carroll (1993, p. 173) enfatiza que os jovens ouvintes são membros de


uma evolving audience, na era da programação radiofônica em nicho,
caracterizada pela filiação cultural, pela necessidade de proteção e
desenvolvimento psicossocial e formadora do caráter distintivo do sujeito diante
das diferentes chances e oportunidades de consumo da mídia. No caso da
Continental, especificamente, a alienação estaria em não ouvir a emissora,
considerado o ponto de vista de seus agentes da produção e do senso comum
emanado da própria audiência. A oferta e o direcionamento específico da
qualidade técnica da Continental, além do caráter ideológico da programação,
fomentaram a criação de um específico “clube dos ouvintes”, em semelhança ao
que Carroll e seus colaboradores constataram em outro lugar.

Se a questão da qualidade técnica em transmitir e reproduzir som foi vital


para a produção e sucesso de audiência da Continental, aquilo que, na
contemporaneidade, erguia-se como solução fora tema recente de controvérsia.
Neste sentido, o grande debate de Adorno é travado com Benjamin, quando este
aponta dada abertura oportunizada pela reprodutibilidade técnica, fator não
inibidor da democracia nem da qualidade da arte (KOTHE, 1978, p. 49).

Tomando como oportuna a interpretação benjaminiana que aponta para


eventual ganho oportunizado pela técnica para o desenvolvimento humano na
modernidade, em posicionamento mais democrático e menos dogmático que
Adorno, identificamos, no trabalho da pesquisa, o excesso de interpretações, sobre
Benjamin, voltados, quase, numa única e dogmática direção.

A maioria das interpretações de Benjamin (1983, p. 3-28) sublinha,


sobretudo, os indicativos de avanços oportunizados pela arte e pela técnica visual.
Nossa perspectiva de trabalho para este ensaio original é sublinhar que a análise
de Benjamin recai, também, sobre a reprodutibilidade sonora, ou, pelo menos, são
da ordem do audiovisual, em articulação.

De Benjamin, ainda, reinterpretamos “O Narrador”, igualmente,


recortando, naquele ensaio, uma utilização para uma banda sonora de análise.
Partimos de onde o ensaísta, após constatar a impossibilidade de instituição da
398

narrativa original tradicional, após a decaída do romance, indica como


substitutivos modernos, garantidos pela ação de forças sociais, dois novos
sujeitos. A narrativa contemporânea, em suma, não sendo mais a expressão da arte
do artesão, nem tampouco o relato do sábio marinheiro, dirá Benjamin (1983, p.
60), será deslocada. “E esta nova comunicação é a informação”. A narrativa
moderna é trabalho do jornalista e a outra narrativa possível virá pela ação do
cronista, incumbido não de dar a “explicação demonstrável”, mas destinado à
interpretação. Segundo o Autor (1983, p. 65), “O cronista é o narrador da
História”. E a interpretação que empreenderá nada tem a ver com o encadeamento
preciso dos acontecimentos, “mas com a maneira de enquadrá-los”, residindo
nisto a interpretação. Nas edições de “1120 é Notícia”, a informação surgia
sempre editada com texto interpretativo, opinativo.

Em nossa perspectiva, destacamos nas narrativas da Continental,


justamente, a presença ativa destas duas figuras do narrador benjaminiano: o
jornalista e o cronista. “O cronista conservou-se no narrador numa forma
metamorfoseada”, dizia Benjamin. Ambas as instâncias oportunizaram, na
experiência da Continental, modos diversos de escuta ativa.

A função primordial do cronista, além de atuação nos espaços consagrados


de gênero, identificamos, também, nas narrativas-slogans. Estas são,
verdadeiramente, expressões sínteses como microcrônicas, a narrar interpretando
o universo em torno da Continental. Como, por exemplo, em “Na Porto Alegre da
fauna da Praça da Alfândega”, e “das menininhas de Ipanema”, “dos ambulantes
fixos”, “da free-way Beira Rio”, “das refeições em pé”, “da ladeira do protesto”,
“do rio morto”, “do seqüestro dos uruguaios”, e tantas outras. Em textos em que
não somente os fatos, sinteticamente, eram relatados, mas eram oferecidos relatos
interpretados aos ouvintes, a escuta ordenava-se, também, pela possibilidade de
interpretação do cronos.

Já a produção do narrador-jornalista da Continental singularizava-se, em


princípio, pelos esforços de uma produção radiofônica onde o falado-escrito
cedeu seu posto a uma versão mais decisivamente informal, o falado-falado.
(apud MEDITISCH, 2001, p. 189). Esta operação foi fundamental na experiência
399

Continental ao tornar-se um estilo de produção integrada. Pela produção,


apareciam interligados pelo mesmo padrão conversacional, capaz de produzir o
efeito ilusório para a escuta de aproximação à fala natural, tanto os programas nos
espaços musicais, como também naqueles consagrados para a informação em
sínteses noticiosas. Eduardo Meditsch, em depoimento para o Autor, aludia a
texto que sumariava, em teoria, o esquema da produção radialística da
Continental. O Autor deste ensaio, “Radiojornalismo e a linguagem coloquial”, é
Calmon Alves (1974, p. 27), à época, redator da Rádio Jornal do Brasil.

No ensaio, depois de ressaltar que o rádio precisou buscar espaço próprio


diante da televisão, tornando-se íntimo das pessoas na luta contra o isolamento,
sublinha que “a regionalização e a individualização passaram a influir
decisivamente na programação, sobretudo na própria linguagem do rádio”. Estas
características foram apropriadas pela Continental, com melhor denominação de
foco, deslocando-se de regionalização para o fator local.

Para Calmon Alves, a linguagem articulada pelo coloquialismo e pela


interligação das diferentes notícias, que não são consideradas “unidades isoladas,
mas subunidades interdependentes que formam uma unidade maior: o programa
informativo, como um todo, constituído “através de um encadeamento entre os
assuntos” (p. 30). Terminando por provocar especial sensação na audiência: “[...]
o rádio cria a sensação nas pessoas de que os programas são só para elas,
individualmente. Cada uma pensa que o locutor está falando com ela [...]”.

Na argumentação de “O Narrador”, Benjamin também alude a especial


trabalho na recepção, desta vez, empreendido pelo leitor de romance. Benjamin
cita Lukács, quando o ensaísta húngaro aponta que “só no romance ocorre uma
recordação criadora que acerta e metamorfoseia o objeto [...]”. E, por isso, diz
Benjamin, “o leitor de romance procura realmente homens em que se possa ler o
sentido da vida” (o grifo é nosso) (BENJAMIN, 1983, p. 67-68). Na
contemporaneidade, dentro do tempo histórico sob a égide da reprodutibilidade
técnica, advogamos para determinadas construções radiofônicas a possibilidade de
estruturação de uma “recordação criadora”, como na experiência da Continental,
para a qual, igualmente, com Benjamin, queremos ver “a memória como a musa
400

das narrativas”, aqui, daquelas cotidianas da emissora. A mesma operação de


transposição indicamos, do leitor para o ouvinte que, segundo nossa aposta, busca
emissoras onde, também, se possa ler/ouvir o “sentido da vida”, que não é
abstrato, mas histórico.

Obliquamente, “O Narrador” nos proporciona, ainda, outras aproximações


fragmentadas sobre a escuta e a ação de narrar, que temos o ensejo de trazê-las
para o âmbito da Continental.

Assim, lemos a passagem onde Benjamin (1983, p. 60) estabelece que: “O


narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada e transforma isso
outra vez em experiência dos que ouvem sua história” (o grifo é nosso). Este
processo apontado por Benjamin antecipa o fluxo atual de captação, estruturação e
transmissão da informação radiofônica. Na análise, o Autor destaca o caráter de
centralidade para a experiência do sujeito. Do mesmo modo, atribuímos à
experiência Continental dada especificidade, tanto para a construção da voz
autoral da emissora, quanto para o estabelecimento da identidade da escuta nas
audiências.

Benjamin (1983, p. 74) refere, literalmente, “a rede em que se assenta o


dom de narrar” e confirma o ciclo de circularidade e retroalimentação entre
narrador, experiência vivida, experiência narrada e ouvinte. “Àquilo que é mais
próprio do narrador acrescenta-se também o que ele aprendeu ouvindo”. Em
Benjamin, a escuta assume importância central para o narrador e para o receptor.
Entre ambos, vínculos humanos, frágeis e vitais, brotam com a comunicação,
agora, beneficiada pela reprodutibilidade a serviço da recordação e da memória:
“Raras vezes dá-se conta de que a relação ingênua entre ouvinte e narrador é
dominada pelo interesse em reter a coisa narrada. O ponto chave para o ouvinte
desarmado é garantir a possibilidade de reprodução” (p. 66).

Este Benjamin, assim, religado como oblíquo teórico do radialismo, em


nossa proposta, aparece sublinhando a importância singular da ação de escuta e da
experiência, sendo esta, também, oportunidade vital para a própria circularidade
narrador-ouvinte, narrativa-escuta, fatores caros para a existência da Continental.
401

Com Benjamin, enquanto pensador também da escuta, buscamos, em nossa


interpretação da pesquisa, ressaltar a experiência e a construção da memória como
construções de expressões particulares, no caso, da Rádio Continental. Entretanto,
as questões sobre a escuta ainda ali não se esgotam.

O canadense McLuhan, de modo mais enfático do que sistemático,


indicava certa hipertrofia da visão nas sociedades modernas e qualificava o rádio
na categoria de “meio quente”, com atribuídas funções de “tambor tribal” em
meio à “aldeia global”. Na verdade, McLuhan, ao estabelecer os meios como
extensões do homem, estabelece o que denomina a galáxia de Gutenberg, quando
privilegia, no processo histórico, as mudanças sociais e culturais oportunizadas
pela tecnologia (1977).

Para McLuhan, a modernidade será o tempo da passagem da linguagem


oral e manuscrita para “a idade do motor”. Sob o novo modo de produção, a
oralidade e a escrita sofrerão reprocessos inéditos na história.

Da configuração da chamada galáxia Gutenberg (idade da tecnologia


mecânica) que do invento do alfabeto chega à prensa móvel e, logo, à máquina
motriz, chega-se ao último estágio, neste da modernidade mais recente,
denominada a nova idade da eletricidade ou nova galáxia elétrica.

Na análise do canadense, a oralidade tem centralidade desde a pré-história


até a contemporaneidade. Em McLuhan, o som tem sempre positividade, embora
esteja problematizado dentro da cultura mosaico visual. O rádio é “quente”, dirá
ele. Ao estudar o espaço acústico afirma que o pensamento realiza-se de acordo
com modelos visuais, “mesmo quando se demonstra que um modelo auditivo
poderia ser mais eficiente” (1974, p. 88). Na seqüência, não fica explicitada a
demonstração, mas volta-se para um modelo de sociedade primitiva ideal onde o
modelo de homem santo estaria no ouvinte e não no vidente.

O rádio, igualmente, é positivo porque restaura a mágica da acústica. Para


ele, “o universo é o mapa potencial do espaço auditivo, pois, não temos a visão de
Argos, mas temos ouvidos de Argos” (McLUHAN, 1974, p. 90).
402

O rádio, para McLuhan, supre o homem moderno com a emoção perdida,


porque no espaço acústico não é necessário objeto (sic). Para ele, o som,
sobretudo da música, não é necessariamente representacional, pois “a imagem
visual que o som evoca provém da imaginação” (1974, p. 92).

Se o surgimento da imprensa e do livro coincidem com o aparecimento de


um modelo de consumo em série, logo o desenvolvimento da técnica produzirá
uma cultura centrada e difundida, segundo as leis do grande número. E, ali,
segundo McLuhan, terá início um deslocamento da centralidade do processo
comunicativo, até ali localizado no circuito boca-ouvidos e, a partir de então, para
a esfera silenciosa dos olhos.

Em McLuhan, há uma crítica sobre a racionalidade instrumental porque


causadora da dissociação moderna entre o pensar e o sentir, entre o espírito e o
corpo. A caixa tipográfica é lógica e racional, mas faz desaparecer os aspectos
fônicos, sensoriais e sensuais da oralidade. McLuhan chega a afirmar que esta
específica fratura terminou por criar o inconsciente, porque “sancionou o
recalcamento de toda uma zona instintiva, opondo-a aos espaços geométricos e
racionais que podem ser expressos por via gutenberguiana” (BARILLI, 1979, p.
160).

Assim, aproximando-se de Freud, para quem a cultura moderna, entre


outros fatores, nasce de um recalcamento e castração da libido, McLuhan
aproxima-se igualmente de Marcuse. Para ambos, o homem moderno “paga” a
alta tecnologia com o capital pulsional da libido. McLuhan, no entanto,
vislumbrará, nas primeiras mídias eletrônicas (sobretudo rádio, televisão, telefone,
gravador), a potencialidade de conservar, transmitir a longa distância e reformatar,
de modo criativo, a linguagem oral e visual. É neste sentido que a mídia é,
também, mensagem, ao tornar-se ela própria significado e significante. É
portadora do bios, unificadora do docere (do dizer, transmitir) e do movere (tocar,
sensibilizar), propostos desde a Antigüidade, transmitidos do cânone grego e
representificados pela técnica na atualidade. É na compreensão destes
movimentos que buscamos, no presente trabalho, posicionar a produção-audição
403

da Continental, onde a experiência radiofônica permitia, embora não assegurasse,


simbolizar.

Barilli chega a interpretar, neste regresso ao universo acústico, tal qual


propõe McLuhan, uma propositiva para certo autotratamento psicanalítico da
cultura contemporânea. O processo tem início com a retomada da retórica, a qual
volta a propor-se como actio, como modalidade de apresentar as palavras. O
ouvinte também garante o que Barilli refere como o regresso ao universo acústico
(1979, p. 161). Segundo ele,

Um regresso que constitui também uma tentativa, por parte da


nossa cultura contemporânea, de se submeter a uma espécie de
autotratamento psicanalítico e de recuperar as componentes
sensuais, libidinais, eróticas, o prazer da palavra, a sua
“presença”, para usar o termo de um estudioso próximo de
McLuhan, Walter Ong (p. 162).

Esta singularidade da “presença”, no caso específico de análise de


protagonismo de uma rádio, fica aumentada pela característica do discurso
radiofônico ser travado ao vivo, só se efetivando em tempo real, como no caso da
Continental. A experiência Continental, de resto, tal qual queremos vê-la, esteve
fortemente marcada pelo discurso retórico voltado para a localidade, com a
nomeação cotidiana da cidade, seus personagens e peripécias coletivas.

A escuta psicanalítica, antes restrita ao confinamento do gabinete do


especialista, situamos, agora, disseminada para uso e autoconstrução do
consumidor, sobretudo, pelo sujeito da recepção radiofônica, hipótese que
passamos a cogitar, igualmente, com Barthes. Segundo o semiólogo francês,
existem três tipos especiais de escuta, não hierarquizadas, mas instituídas na
cultura. A primeira escuta é a do índice, igual no ser humano como no animal; a
segunda é a escuta dos signos, e, aqui, diz Barthes, “é a vez do homem”; a terceira
escuta (abordagem moderna, segundo Barthes, mas não superior às duas outras),
não visa nem espera signos determinados, classificados, “deve ser desenvolvida
em um espaço intersubjetivo, em que “escuto”, na verdade, quer dizer “escuta-
me” (BARTHES, 1990, p. 217-218). Ali, o trabalho da escuta dá-se a partir de
recorte de uma “significância” geral, mas de produção individual e que já não é
404

concebível sem a intervenção do inconsciente como operador do simbólico e do


imaginário envolvido em toda comunicação radiofônica. Nossa hipótese não
aponta para o peremptório ou obrigatório uso desta escuta na experiência
Continental. Mas, aponta, com certeza, para as possibilidades desta ter sido
acionada, quando do empreendimento, mesmo que parcial, da relativa paidéia
radiofônica, operante sobre o real-concreto à época. Heidegger, ao abordar a
questão identidade-alteridade da linguagem, afirmava que a fala, fala
(FIGUEIREDO, 1994, p.128).

Esta fala utilizada no discurso do rádio exige a presença do trabalho do


ouvinte que, mesmo quando desatento, ainda assim, trata-se de um sujeito com
atuação de especialista. O ouvinte é especializado em atribuir sentidos à escuta,
sob a forma de trabalho concentrado, ou displicente, mas sempre como realização
da inteligência e da memória, que inclui o aspecto não mensurável, não
dimensionado desta, isto é, o continente do esquecimento. Arendt (1992, p.45-46)
constata que, desde Aristóteles, todo logus (proposição, no contexto) é um “som
significativo”, originalmente phone semantike”. Ele dá um sinal, aponta para
alguma coisa. O maestro Julio Medaglia apontava para o caráter semântico do
som, como elemento ativo em toda narrativa e adendava, referindo a capacidade
sonora de erguer cenários2. O ouvinte é sujeito nestes cenários sonoros.

Já o trabalho de escuta diante de produto cultural como, especificamente


em referência à música, produto majoritário da Continental, Lévy (1994) sintetiza
indicando que a música talvez seja a mais apurada expressão da “tecnologia oral
da inteligência humana”, possuindo espécie de força de coesão social valorizada
por ser uma expressão grupal de crenças comuns.

O sentido do som que já foi construção mítica em fórum tribal pré-


histórico, na idade moderna, torna-se industrial, seriado, rentável e assume um
efeito midiático e estético ora de banalidade, ora de complexidade, mas sempre
oportunizado pela mercadoria e socializado pelo consumo. O rádio, enquanto
instância da produção de comunicação humana, em grande parte, insere-se nesta
mesma lógica.
2
Entrevista para TVE, dia 7 de abril de 2003.
405

No trabalho da tese, identificamos deslocamento histórico da oralidade


comunicacional e do rádio em migração desde os suportes elétricos da primeira
fase da industrialização para os suportes eletroeletrônicos ofertados pela
informática e telemática, sobretudo. É neste ambiente informático e informacional
que vivenciamos as novas virtualidades comunicacionais, assim como as novas
limitações. Nestas circunstâncias, dizendo com Barthes, a palavra é tática e a
escuta é crucial para o cotidiano e para a história das interações humanas através
do rádio.

A estrutura do som radiofônico, ao longo do tempo, continua a ser


presentificada a partir de suas características básicas (freqüência, amplitude,
timbre, dinâmica) e apresentadas à audiência de modo interligado, indistingüíveis,
por inteiro, ao ouvido humano, estando este mais ocupado com o trabalho de
significação e com a sensibilidade parcial de algum aspecto da produção.

A radiofonização, legitimada pela construção de um mundo sonoro-


acústico da realidade, nunca pôde fugir da oferta de atualização que, no caso da
Continental, significou, no mesmo esquema, falar para a juventude secundarista e
universitária de Porto Alegre, sobretudo, na década iniciada em 1971, em
múltiplos agendamentos que incluíam desde proposta de nova estética musical
atualizada, nova forma retórica para oferta publicitária e discurso jornalístico
“falado” e editorializado em defesa das liberdades civis e em registro
antiditatorial.

Com a Continental, para parcela específica daquela audiência, ouvir podia


ser sinônimo de modo próprio de agir, consumir, pensar e sentir. A ação de ouvir
a Continental, especificamente, estava voltada para o ouvir a cidade, a nova
musicalidade e a oportunidade de protestar, tanto nas franjas da enunciação
radiojornalística antiditatorial quanto nas falas de humor e de sedução retórica dos
DJ’s. No cotidiano da escuta, aquele “som nosso de cada dia” da Continental
tornava-se necessário para o corpo e para o espírito: som e sentido constituídos
pela voz histórica mediatizada; som e sentido articulados pelo trabalho de escuta
como modo de construir identidades e autonomias, mesmo que provisórias e
cambiantes.
406

Buscamos, aqui, estabelecer uma proposição de relevância para a


simbolização e significação da escuta Continental através de exposição e análise.
Nosso objetivo foi destacar como esta escuta, no conjunto protagonizado pela
emissora, oportunizou relevância de identificação, identidade e estruturação da
paidéia radiofônica, fenômeno singular que, igualmente, analisamos a seguir.

7.3 PAIDÉIA RADIOFÔNICA E A TEORIA DA ESCUTA

A paidéia radiofônica da Continental tem início na construção


empreendida pela programação complexa, através das narrativas próprias,
sobretudo, encontrando ressonância e produzindo valor cultural junto aos
ouvintes, junto aos sujeitos da produção da própria Rádio e junto à comunidade
porto-alegrense em geral, em diferentes modos e intensidades de importância.

Trata-se de construção interativa ofertada de modo a contribuir com as


instâncias do real, do simbólico e do imaginário dos sujeitos históricos, à época, a
contar das transmissões da Continental e suas respectivas audiências. É a
construção singular resultante da experiência de produção-escuta da Continental.

Partimos da idéia de que a vida societária está organizada em torno da


comunicação e que, dentro da especialização desta em comunicação de massa, a
linguagem específica assume aspecto central do problema, quer pelos aspectos
técnicos específicos da mídia, quer pela complexidade de modos de
compartilhamento nas interações, em busca da construção/desconstrução de
identidades. Especificamente, vislumbramos a articulação societária da
Continental, enquanto voz da enunciação e, vale dizer, da articulação identitária
da certa juventude universitária porto-alegrense, entre 1971 e 1981,
aproximadamente. A interação pelo rádio, em nossa proposta, oportuniza uma
autoconstrução do sujeito, inicialmente postado na condição de escuta, mas em
audição tornada ação, tanto quanto o dizer é fazer, como em Austin. A esta
situacionalidade construída, a esta oportunidade de ouvir ali e ouvir além, a partir
do cotidiano, denominamos experiência Continental ou paidéia.
407

O termo paidéia, deslocamos, originalmente, a partir do estabelecido por


Werner Jaeger, em obra homônima (1989), e inserimos como eventual resultante,
como denominação, ao mesmo tempo, de espaço social possível e da práxis de
experiência, a partir das ações complexas e interligadas de produção-recepção da
Continental.

A paidéia radiofônica é o modo particular de a Continental intervir, falar


e, sobretudo, fazer cultura dentro do real e datado continente da cultura porto-
alegrense, contando com a ação de fidelização do sujeito ouvinte. É o modo
próprio de inscrição na cultura pelas sonoridades midiatizadas. Ali, a Rádio se
notabiliza por ser sujeito do entretenimento, da informação e da formação de
opinião junto ao público. Entretanto, distingue-se, ainda, por alcançar, pelo
antagonismo aos modelos de emissoras educativas até ali existentes, uma
programação que terá função pedagógica, quando não didática e educativa, em
sentido amplo. A ação comunicacional da Continental está, igualmente, inserida
em certo nível de oferta pedagógica na opção deliberada de falar com o jovem,
construindo linguagem radiofônica do jovem, centrando nesta especial
conversação oportunidades de experiências e aprendizados.

A paidéia radiofônica oportunizada, portanto, é expressa por uma Rádio


Continental pedagógica, autoral, atualizada e adequada, não somente à
acomodação e ao gosto do público estudantil e universitário à época, mas dialogal
e interpelante e com protagonismo de exercício continuado em busca de
apropriada linguagem de expressão comunicacional, fazendo com que a própria
equipe da emissora aprendesse, no espaço público onde, igualmente, comunicava
e, em termos relativos, ensinava e politizava a audiência.

Trata-se de programação não somente produzida para universitários e


secundaristas, mas, igualmente, por frações do grupo universitário maior, mesmo
que dividindo com outros segmentos, no dia-a-dia, as rotinas produtivas da
emissora. Entretanto, os universitários, dentro da Continental, na produção,
constituíam grupo de sujeitos em número suficiente para garantir certa
circularidade das informações, de agendamentos dos gostos, desde a fonte até a
recepção, desde a recepção à fonte transmissora, em retroalimentação.
408

O capital simbólico para construção desta oferta para a experiência


Continental nascia da associação entre a alta qualificação técnica de radialistas do
mercado associados por vínculos profissionais e desejo vital de fazer com aquele
grupo de jovens universitários do jornalismo, da publicidade e da música recém-
chegados das universidades porto-alegrenses.

O caráter pedagógico deste ciclo produção-recepção, além de mover-se


segundo o processo de semiose cultural presente em qualquer modelo
comunicacional, terá características próprias dado o caráter iconoclasta, criativo e
contestatório antiautoritarismo daqueles grupos envolvidos com a produção e a
audiência da Continental.

Dentro dessa perspectiva, a Continental não seria somente a porta-voz,


pela linguagem autoral, daquela fração da juventude. Ao enunciar, pelo modo e
pelo registro dos conteúdos, a Continental ficaria melhor configurada como a
contravoz e, em assim sendo, oportunizando novo espaço de diálogos para a
audiência de oposição, do contra, em relação ao estabelecido e também formação,
até mesmo, para quem em outra posição e vivência política, estética e existencial
estivesse.

Igualmente, a paidéia radiofônica exerce função pedagógica, ainda, ao


nível individual, ao situar e possibilitar dados e modos de compreensão de mundo
aos sujeitos particularizados. Igualmente, a paidéia é pedagógica, na história e na
cultura, ao ser co-formadora não apenas de sujeitos isolados, mas de grupos e
coletivos segmentados em diferentes lugares sociais na cidade. Assim, a paidéia
poderia estar ocorrendo, ao mesmo tempo, no bairro Bom Fim e no Partenon, no
Menino Deus e na Azenha , para alunos da PUC e da UFRGS, jovens, em tudo,
muito semelhantes e, ao mesmo tempo, dotados de particularidades distintivas
existenciais existentes.

Comum a todos, entretanto, a idéia que captamos como a educação


sentimental pela mídia sonora radiofônica da Continental: uma experiência de
vida relacionada com aquela experiência de audiência; uma escuta à Rádio
Continental mesclada ao desenvolvimento de um estilo de vida atual, difuso, ao
409

mesmo tempo individualista e compartilhável com o outro, o próximo; uma


paidéia que aproximava o sujeito ouvinte, ao mesmo tempo, da situação inusitada,
nova, de consumo e, pela informação jornalística posicionada e oposicionista,
lançava ponte para articulações de cidadania, igualmente, marcada pelo que
denominamos “ética de negação”, frente ao status quo, pelo posicionamento
político democratizante, antimilitar e antitotalitária.

Queremos, aqui, ensaiar uma hipótese de aproximação. A paidéia


radiofônica da Continental queremos aproximar à experiência de formação pela
escuta, como podemos falar em formação pela leitura. Para tanto, estamos
considerando a escuta à Continental como um processo de formação pela
informação, pela opinião, pela música, pelo consumo e pelo humor, a partir das
propostas do discurso radiofônico específico da Rádio eleita, a escuta à Rádio
sendo uma forma para a autoformação do sujeito, como ação de diferentes
aprendizagens. Tratar-se-ia, então, esta paidéia radiofônica como algo semelhante
a uma espécie de Bildungsrroman (romance de formação), espaço discursivo
oportunizado pelo fluxo produção-escuta radiofônico para a formação do sujeito,
espaço de interação eu-mundo, numa aprendizagem e socialização a distância.

À expressão de paidéia, neste sentido, aproximamos a possibilidade de


instauração, ali, de uma Rádio pedagógica, não no sentido formal do termo, mas
no sentido comunicacional, se possível. Prosseguindo, delimitamos a Continental
e a aproximamos da concepção de emissora de referência e de Rádio formadora,
em aspectos mais específicos, isto é, radiofônicos. Podemos relacionar, neste caso,
como um exemplo, o fato de a emissora, formada por comunidade diversa de
colaboradores, ter fornecido elenco saído de seus quadros, em número expressivo,
de professores de comunicação social, em nível universitário. A saber Cíntia
Nahra, Eduardo Meditsch, Luiz Milman, Dedé Ribeiro, Heloísa Herscovitz e
Wladimyr Ungaretti. A maioria destes voltada para o ensino de Jornalismo. Já
tinham carreira como professores e atuaram na Continental, igualmente, José
Fogaça, Clóvis Duarte, Airton Knaipp e Luiz Coronel (todos professores em
cursos pré-vestibulares).
410

Emissora formadora, também, no sentido de ter sido ouvida e considerada


como relevante para a formação profissional de grupo expressivo de professores
de comunicação social, mesmo sem que estes tenham atuado profissionalmente na
emissora, em especial, o grupo de professores que atuam com ensino de
radialismo.

Igualmente, a paidéia, como instância formadora, pode ser relacionada


com ouvintes que, formados radialistas e, no ciclo de desenvolvimento
profissional, terão diferentes intervenções e assumirão diferenciados
protagonismos no radialismo local. A saber, Flávio Dutra, que será diretor de
programação da FM Cultura, após ter coordenado equipes nas Rádios Guaíba e
Gaúcha; também, Mauro Borba, DJ da Band e Ipanema FM, atual diretor da Pop
Rock FM; o mesmo caso pode-se dizer ocorre com Paulo Torino, ex-diretor da
Unisinos FM; e, ainda, com o jornalista Lucio Flávio Haeser, atualmente,
escrevendo livro-reportagem sobre a Continental. O mesmo pode-se dizer do
próprio Autor da presente tese. Em comum a todos, além da experiência singular
de ouvintes da Continental, o indicativo em reconhecimento público da
Continental como emissora de referência e formação para cada uma das
específicas experiências e trajetórias profissionais.

É neste sentido que a paidéia radiofônica projeta e produz certa


oportunidade de tradição na inovação e, igualmente, induz muita inovação sobre a
tradição dali em diante, fazendo da Continental, a partir de 1971, ao mesmo
tempo, a principal liderança inovadora no dial e o elo atualizador do radialismo
porto-alegrense para experiências futuras.

A recorrência ao termo “experiência”, em Ciências Sociais, é,


notadamente, de uso amplo e tem crescido em referências, sobretudo, em relação
às interações complexas da modernidade e pós-modernidade. A nossa perspectiva
de trabalho entende a experiência, conceitualmente, sobretudo, a partir dos
ensinamentos de Walter Benjamin, por sua vez, apreendidos sob inspiração em
Kant, conforme anota Subirats (1993, p. 65). Entendemos por experiência, com
Benjamin, àquilo que ele destaca como epistemologicamente fundamental, onde
existe uma integração do conceito crítico da experiência do conhecimento ao
411

sujeito empírico, ou melhor, à pluralidade social e histórica de sujeitos empíricos.


Na busca pela singularidade histórica da experiência Continental, entendemos, ao
contrário da interpretação de Subarits, que Benjamin sugere, não a experiência
metafísica, mas a construção/reconstrução das figuras históricas da experiência
para a transformação da cognição em processo, mesmo a partir de fragmentos
(apud MATTOS, 1993, p. 12), o narrador moderno, em contraposição ao narrador
tradicional, neste universo onde mesmo a narrativa encurtou, conforme anota
Benjamin, em “O Narrador” (1983, p. 63), pode ser o sujeito da narrativa do rádio
que, ao mesmo tempo, informa e forma opinião, possibilitando espaço para a
reflexividade.

O narrador tradicional, ensina Benjamin, tem expressividade na narrativa


oral, que se funda na experiência; o narrador moderno, no rádio, inverte a
equação. Funda a experiência a partir e dentro da expressividade oral, sonora,
radiofônica, sempre descolada, retirada da realidade vivida pelos sujeitos, mas
concretizada, realizada no espaço singular do ao vivo radiofônico. O viajante e o
artesão, outrora, eram os sujeitos do conhecimento e da experiência. Naquela
oportunidade, a experiência possibilitadora da narrativa, se não de conhecimento,
também, encontra-se no território, na zona de domínio do enunciador radialista, na
nossa hipótese. E, mesmo que a narrativa esteja mais para a “doxa” do que para a
“episteme”, ainda assim, a experiência moderna pressupõe a interação social
como possibilidade para o conhecimento, neste caso, recaindo sobre a instância da
audiência, por hipótese.

Em suma, não existe peripécia humana sem algum nível possível de


aprendizagem, de experiência, seja para si ou para outrem. E é neste
direcionamento que as peripécias comunicacionais-midiáticas apresentam-se com
enorme potencial seja de aprisionamento, seja de alienação, seja de liberdade, seja
de autonomia do sujeito. Isto dado, sempre e continuamente, através dos suportes
midiáticos, em sistemas, com fluxos vertiginosos de ofertas e demandas
cotidianas.

Nossa proposta de trabalho, em específico, entende que a Continental não


aprisionou, nem alienou, tampouco libertou, a priori, mas, certamente, na
412

interação com o sujeito coletivo da produção-audiência da Continental,


possibilitou espaço acústico comunicacional, inicialmente, físico. Criando espaço
público para socialização, histórico e concreto, a distância, pela ação dos sujeitos.
Através da Rádio, ocorreram, então, as diferentes aprendizagens potenciais do
sujeito, de ordem estética, política, musical etc.

Neste contexto, a informação assume espaço distinto e eficiente, mesmo


inserida em processo midiático difuso e diferido, tornando-se mais do que útil
verdadeiramente necessária, ainda mais no caso da Continental, dadas as
circunstâncias, marcadas por carências e censuras, no cotidiano politicamente
autoritário.

Associado ao processo de produção-recepção de radiojornalismo


informativo, ocorre, concomitante, a oportunização de ofertas discursivas de
opinião, fundamentais em todo processo jornalístico e singularizadas pelo
protagonismo da voz autoral da Continental. Localizava-se no recorte, captação,
seleção, formatação e apresentação editada, editorializada dos fatos a vox
pluridiscursiva da Continental como atuação interativa na polis. A edição de
opinião, tanto quanto a apresentação da informação ocorriam desde um ponto de
vista da cidadania. Cidadania ampla, na defesa dos direitos humanos, na busca
pela relevância nos produtos de cultura, na identificação de nicho de consumo
para público jovem e universitário e – sobretudo – no direito à informação e ao
entretenimento, ofertados, na prática, pela própria Continental. Era em meio a
estes diferentes fluxos comunicacionais que certa paidéia podia ser construída
pelo trabalho de audiência, erguida pela ação singular do sujeito da escuta.

Todo o manejo com a informação e com a opinião, necessariamente, ergue


pistas, delimita rastros, constrói caminhos de cunho ético, desde a instância da
produção, chegando, pelo efeito do “ao vivo” do rádio, praticamente,
instantaneamente, ao pólo da recepção. Construir mundos, discursivamente, em
ação interativa pelo rádio, significa erguer, através da realidade das falas, valores
éticos. Estes valores são cravados, simbolicamente, no campo espacial interativo
protagonizado pela produção-escuta, mesmo quando a ação venha a transcorrer
em situação de dispersão ou eventual desatenção. A ética da Continental, desde
413

sempre, é uma ética da negação, diante da instância da informação cotidiana e da


política e é uma ética de busca de distinção intergrupo e de diferenciação frente
aos diferentes grupos de atores sociais no campo do consumo, seja de bens
materiais ou simbólicos. O acionamento ético, originado de diferentes escopos e
instâncias, também constitui e delineia a paidéia Continental. A técnica e a ética
jornalística precisaram deparar-se com obstáculos como o AI-5, a Lei de
Segurança Nacional e o decreto 477, criado especialmente para punir estudantes
universitários e, também, professores, gestores e funcionários.

Ainda no aspecto propositivo, ordenador e possibilitador de uma paidéia, a


partir do registro de radiojornalismo informativo, foi importante a técnica
deliberada de entretecer a microistória. A narrativa Continental, neste sentido,
aproxima-se daquilo que Gaye Tuchman (1977, p. 134) identifica na notícia,
enquanto “uma janela para o mundo”:

Através de seu marco as pessoas aprendem sobre si mesma e os


outros, sobre as instituições, líderes e estilos de vida, e sobre
outras nações e suas gentes [...] A notícia tende a dizer o que
queremos saber, que necessitamos saber, e o que deveríamos
saber.

Em trabalho de tese de doutoramento, Eduardo Meditsch (2001) investigou


as técnicas e teorias da comunicação e do jornalismo para dar conta do novo
radiojornalismo. Anteriormente, em 1992, o Autor já se preocupara com a questão
do conhecimento do jornalismo. No trabalho de tese, mais recentemente
averiguou, exaustiva e sistematizadamente, questões específicas referentes ao
rádio, a partir de articulações de pesquisa empreendida com auxílio advindos da
Teoria da Notícia e do Jornalismo, bem como da Teoria do Discurso e da
Argumentação. Para Meditsch interessa estudar as articulações entre teoria e
técnica do rádio, contemporaneamente, e, nesta direção o pesquisador investiga
questões referentes à percepção, ao sentido, à significação e à cognição do sujeito
em interação, especificamente, com o fenômeno rádio-informativo, na atualidade.
O trabalho empreende importante atualização e análise teórica das funções e
protagonismos sociais do rádio, hoje, trazendo-o para embates e tensões no campo
414

da comunicação, em contraposição à idéia defasada de uma “idade do ouro” do


rádio ideal e pretérita.

Para nossa pesquisa, além de usufruir o acompanhamento do texto do


Autor no esforço argumentativo de valoração do rádio, interessa-nos o arremate
da pesquisa. Ali, Meditisch (2001, p. 276) considera o rádio informativo como
“ator social que intervém na construção da realidade”. A partir disso, a influência
do rádio é mediada “não apenas pelo filtro de cada receptor, mas também pela
segmentação da audiência”. Consideramos estas condições básicas, no exemplo da
Continental, para estabelecimento da comunidade de escuta que determinaria a
amplitude sociocultural e midiática da experiência da Rádio. Segundo Meditsch,

O grupo social que a utiliza é também o que dispõe das


melhores e mais diversificadas fontes de informação. Sua
credibilidade, em conseqüência, não depende apenas de seus
artifícios, mas também da consonância com a visão de mundo
de um auditório específico, do qual eventualmente participa
também o emissor.

Essas observações dialogam com a nossa pretensão em fazer ver para a


Continental uma realidade comunicativa construída que interliga produção e
audiência, sendo esta ação uma práxis distintiva, ao mesmo tempo, da emissora,
do grupo da produção e do grupo de audiência, organicamente articulados, numa
comunidade.

A audiência da Continental distinguia-se, enquanto sujeito coletivo, pelo


consumo e pelo contato com a informação posicionada da emissora e, ainda, pelo
consentimento e fidelização, tornando-se co-autora daquela voz radiofônica
Continental. A instância da produção, por seu turno, necessariamente, nutria-se,
em retroalimentação, através de conteúdos, de carências e de desejos advindos da
comunidade de escuta. A este ciclo realizado, a partir do protagonismo da Rádio,
atribuímos caráter pedagógico não formal daquela geração. Diante do
radiojornalismo posicionado, do humor, da crítica e de uma nova estética musical,
igualmente, podia se erguer o sujeito ouvinte, protagonista da cognição
radiofônica e do prazer pela escuta da Continental.
415

Pesquisas recentes procuram abordar as complexas relações existentes


entre a comunicação, os meios de comunicação e as possibilidades de
aprendizagem do sujeito, também colocado no campo da educação. Entre estes
estudos, acompanhamos José Luiz Braga e Regina Calazans (2001), em aspectos
que destacamos. Os autores partem de uma afirmação kantiana educadora que
sublinha a condição de aprendizagem como algo inerente ao ser humano e, a
seguir, naquilo que mais interessa à nossa tese, investigam e sustentam a
possibilidade de qualidade educativa, formadora do sujeito, pela comunicação
midiática.

Os autores asseguram existir espaços sociais, em torno e diferente do


sistema escolar, onde circulam conhecimentos, saberes, processos de elaboração e
transmissão de informações, isto é, aprendizagens. Estas aprendizagens sociais
têm lugar na família, na vida prática, na cultura, e é, justamente neste entrelugares
que visualizamos a paidéia radiofônica erguendo-se como possibilidade de
experiência de aprendizagem. No dizer da Continental, pode-se falar em “lugar
para curtição”, sendo esta expressão designativa de experimentação humana
ampla e, assim sendo, desdobrada em possibilidade estética, existencial, estética,
sensual. Braga e Calazans (2001, p. 91) apontam a sociedade como fonte dos
saberes e das instâncias de aprendizagens, sendo que o “sistema de circulação é o
mediático”.

A proliferação midiática, o aumento da acessibilidade geral das


tecnologias de registro de som e imagem, o aumento desmesurado de informações
midiatizadas oferecidas, criam contexto, conforme Braga e Calazans (2001, p. 91),
em que “a quantidade se evidencia como qualidade, e nos vemos envolvidos em
um outro processo geral de circulação de saberes”.

Para os autores (2001, p. 91), as aprendizagens midiáticas ocorrem diante


de uma grande diversidade de ofertas, já organizadas, de intencionalidades
reveladas e interpelativas do sujeito da audiência. Os usuários selecionam,
articulam critérios, são e estão ativos no processo, “movidos por critérios
pessoais, mas sobretudo culturais-sociais”. Para nosso trabalho, é na direção desta
416

possibilidade de interação social que localizamos a paidéia radiofônica como


possibilidade e, no caso da Continental, como realização da audiência.

Calazans e Bragas (2001, p. 92) são enfáticos na afirmação de


possibilidades de aprendizagem na interação com produtos midiáticos, desde a
tomada de decisão na escolha e seletividade para resolução de problemas, pois,
“selecionados seus produtos mediáticos, os usuários não simplesmente os
‘absorvem’, mas interagem com estes, sofrem suas interpelações, reagem,
interpretam. E aí já temos aprendizagem”.

A perspectiva dos autores, que é também a nossa, aponta e caracteriza a


existência de “receptor ativo” justamente “por esta capacidade de, na interação
com os produtos mediáticos, aprender”. Nesta concepção, os receptores não se
tornam ativos pelo acionar de acerco extramidiático, pelo fato de usar a cultura
como resistência na interação, naquilo que ensejaria uma abordagem em redução
de Jesús Martin-Barbero, com a proposta de passagem dos “meios às mediações”.

Calazans e Braga (2001, p. 93) reafirmam a condição de aprendizagem do


usuário que aceita e participa do processo de experiência, diríamos, contido na
esquematização das ofertas dos produtos e sistemas midiáticos, configurados
como interpelantes externos, no processo. Diante disto, resistir, tão somente, seria
uma forma muito elementar de atividade, por “recusar as interpelações feitas pelos
produtos mediáticos e preferencia totalmente o já conhecido”. O que ocorre é da
ordem de uma interpretação. “E interpretar é usar o seu acervo cultural para
processar as interpelações recebidas. Há boas e más interpretações – mas o saldo,
positivo ou negativo – é uma aprendizagem”.

Nossa pesquisa propõe uma possibilidade de paidéia nesta direção, onde o


saldo, no caso, é interpretado como positivo. Curiosamente, a positividade desta
paidéia está centrada, justamente, numa ação coletiva estruturada na negação.
Dizendo com Calazans e Braga, o “receptor ativo” da Continental é “ativo porque
interativo”, e porque esta interação ocorre numa convergência, onde Rádio e
audiência se posicionam contra o autoritarismo, a falta de liberdades civis, a
censura à informação e a massificação, inclusive.
417

Relevância do sistema midiático para construção desta estimulação da


aprendizagem de competências autoformadoras. Na imensa conversação social
através das mídias, os usuários e os produtores e receptores pensam, revêem
articulam esquemas de reflexividade sobre a própria mídia. A isto, Braga
denomina, em outro lugar, “subsistema crítico-interpretativo mediático
(ENDLER, 2001, p. 9-30).

Esta ação crítica dos usuários, referida pelos autores, recaindo sobre
diferentes escopos de produção midiática, sobre linguagens, gêneros socialmente
compartilhados, sobre a cultura de geração/interpretação de sentidos, nós
localizamos, exemplarmente, na Continental. Os autores indicam como exemplo,
pela capacidade interpretativa e processo de aprendizagem crítica, a experiência
com cine-clubes, na década iniciada em 1970 (CALAZANS; BRAGA, 2001,
p.132).

A experiência Continental, como uma aprendizagem, visualizamos


oportunizada, igualmente, pela tentativa de certa ordenação orgânica de oferta de
programação. Mesmo que ordenada em forma mosaica, a programação da
Continental, deliberadamente estruturada, como vimos, buscou construir nexos,
por exemplo, entre a linguagem musical e a linguagem publicitária e, também,
com aquela outra do radiojornalismo informativo (conforme sugestões de
articulações discursivas propostas por Rosental Calmon Alves).

Esta articulação discursiva e midiática possibilitava, em nosso


entendimento, relevante oportunidade de interpretação crítica da audiência sobre
os materiais jornalísticos de atualidade e sobre os temas musicais e publicitários,
igualmente. A atualidade da programação, assim, articulava um antes e um depois
histórico, contextualizado. Desta perspectiva, a microistória pode ser articulada
pelo trabalho do sujeito da escuta, retirando da interação com o fato ou evento
midiático algo a mais do que a fruição imediata e fugaz.

Assim, a peripécia radiofônica da Continental enseja níveis de


aprendizagem pela experiência da escuta cotidiana. É pela mesma via que
vislumbramos, também, a instauração de uma ética da negatividade, uma ética-do-
418

não, expressão de uma cultura de época, encontrável em diversos movimentos


juvenis de contestação em diferentes lugares do mundo, à época. Esta ética da
Continental residia em fazer comunicação onde o eu reconhecia e estabelecia, na
práxis, o diálogo possível, em tentativa de construções de igualdades, de justiça.
Mas esta ética, para se estabelecer, precisou agir contra a lógica instrumental,
burocrática, dentro de ambiente fortemente censurado, pelo trabalho autoritário de
órgãos como a Polícia Federal. A voz autoral da Continental, nesta direção, é
contra-voz. E, assim, se candidatou a ser a Rádio da geração, da juventude, a
partir de 1971, sob o AI-5 e sob o decreto 477.

Postada sob efeito de fenômenos como os fluxos vertiginosos da indústria


cultural, à época, e em sintonia, mesmo quando discreta, com valores do chamado
movimento de contracultura internacional, os usuários da Continental (produtores
e audiências) vivenciavam experiências de subjugação sob o AI-5, com desejos e
práticas liberalizantes, ou mesmo libertárias, através da oferta e consumo de bens
simbólicos, culturais e, sobretudo, pela tentativa de articulação de novos feixes de
sentidos e significação.

Dissemos que o rádio é som e sentido. A partir de uma apropriação


ampliada de definições de Paul Ricouer, aqui, queremos dizer que a paidéia
Continental produziu som, sentidos e significação próprios e determinados.

Os sons produziam oportunidades de escuta em processos diferentes e


articulados. A exemplo do que Gilles Thérien (apud JOUVE, 2002, p. 17-22)
estabelece para a leitura, em comparação, adaptamos para a escuta. A saber,
verificamos o processo neurofisiológico (como ato concreto, uma operação de
percepção, de identificação e de memorização de signos), um processo cognitivo
(ora de “progressão” da escuta, ora de “compreensão”), um processo afetivo (onde
a emoção é motriz para a identificação), um processo argumentativo (onde o
ouvinte é interpelado pela intenção ilocutória da voz autoral).

É sob essa processualidade que o sentido instaura-se, remete para o


deciframento operado durante a escuta, enquanto a significação é o resultado do
trabalho do sujeito sobre esta escuta. É a significação que faz da escuta uma
419

experiência concreta, realizando o processo de significação na passagem de


absorção do texto para a realidade, a exemplo do que referia Jouve (2002, p. 129)
sob a leitura. É neste processo que a Rádio consegue realizar “uma outra escrita (a
escrita do Outro), consegue escrever fragmentos de nossa própria cotidianidade,
enfim, quando se produz uma co-existência”, dizia Roland Barthes (1971, p. 13).

A paidéia, pela nossa concepção, trata de erguer uma co-autoria, um


macrotexto compartilhado, com projeção sobre a realidade. Identificamos esta
experiência da paidéia Continental aplicada como vivência exemplar aproximada
do que Howard Becker e Henry Giroux indicaram por fugitive cultures, isto é,
estruturas juvenis que permitem construir, diariamente, a identidade própria,
concretizada em projetos de criação de sentidos para e dentro da experiência
vivida cotidiana de grupo ou subgrupo. Esta certa “cultura de evasão” da
Continental ocorria de modo dinâmico, dotada de zonas de tensão e conflito, de
negociações e acomodações, de autoconstruções e invasões, ou seja, de processos
específicos da cultura urbana ali constituída naquela paidéia, também,
oportunizadora de uma comunidade de vida midiática.

Desde Oliver Sacks, e antes deste, com Sigmund Freud, sabemos que é
possível, através da escuta, construir nexos, desvendar proposições, investigar
enigmas, construir sentidos e significações. O rádio possibilita ao ouvinte uma
experiência particular. Socialmente, ergue-se como “cortina sonora” e “capa
protetora” para sujeitos da identidade de escuta, seja na fruição do consumo, seja
na estesia da música. Individualmente, oportuniza desde o zapping despretencioso
até o mergulho em rios profundos intrapsíquicos, “fontes de espaço auditivo”,
diria Mcluhan (1967, p. 335). A presente pesquisa advoga para a Continental a
realização de partes destes trabalhos, mesmo que em processo de descontinuidade,
configurando uma paidéia radiofônica situada na cidade de Porto Alegre, na
década iniciada em 1971, para jovens universitários e estudantes da classe média.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos últimos oitenta e dois anos, o rádio surgiu para a civilização brasileira,
primeiramente, como experiência cultural de gente chic e letrada, cresceu em
importância até tornar-se coqueluche popular, sobretudo, a partir da
industrialização iniciada a contar da Revolução de 1930, e seguiu em frente, em
interações sociais e interlocuções crescentes e massivas, dentro de um país semi-
alfabetizado e de dimensões continentais.

Posteriormente, o rádio reinou absoluto nas salas dos lares brasileiros, em


contexto social de franca urbanização, até ser objeto dali desancado pelo
novíssimo aparelho de televisão. Desde a década iniciada em 1950, prenunciava-
se, não somente uma derrocada do rádio, mas o fim daquela caixa sonora, ligada e
iluminada, tão familiar quanto, já então, “anacrônica”. A história da comunicação
demonstrou o contrário e, camaleonicamente, o rádio manteve-se múltiplo e
especializado, ao mesmo tempo, vivenciando diferentes ambiências e
protagonismos no universo sociocultural em mutação.

A descoberta e utilização massiva do transistor, a miniaturização dos


objetos pela tecnociência, os avanços possibilitados pela telemática dentro da
nova realidade urbana garantiram ao rádio novo protagonismo, dentro de
metrópoles mundiais e nacionais, a partir de necessidades criadas pelos novos
papéis sociais, principalmente, nas funções de entretenimento e informação sob a
indústria cultural.
421

No Brasil, sobretudo após a conquista da Copa do Mundo de 1958, e dali


em diante até os dias atuais, o rádio ganhou importância especial ao transmitir
futebol, fosse para os milhares de torcedores nos estádios, fosse para milhões de
ouvintes e torcedores no país inteiro. Estava ali plantada espécie particular de
segmentação que aumentaria, dentro do escopo das programações de rádio,
ampliando-se em ofertas à sociedade via consumo, nas décadas seguintes.

A história que decidimos contar, igualmente, de outro modo e em outro


lugar, localizou o rádio em protagonismo relevante no circuito da cultura,
interagindo com público mais localizado, reduzido, porque segmentado, mas não
menos instigante, enquanto objeto midiático de estudo, a contar da própria
instância da produção da Rádio. De resto, aquela programação para público
segmentado da Continental instigava-nos, entre outros motivos, justamente, pelo
caráter ordenado, “orgânico”, sistematizado ao articular as partes no todo.

Afinal, dentro daquele universo de metrópole regional, tratava-se de


reencontrar, através daquela especial linha de programação, o rádio
profundamente envolvido com duas antigas parcerias frondosas, isto é, a música e
a política, ambas atualizadas dentro do campo da comunicação, historicamente
radiofonizadas pela Continental, sob a ditadura imposta pelo golpe militar de
1964.

Identificamos, na possibilidade de contar a história da Rádio Continental


AM, modo particular de abordar as teorias sociais, colocando-as no emprego da
reconstituição de uma memória da Continental e da vida social de parcela da
juventude porto-alegrense à época. Mesmo com aplicado auxílio de
conhecimentos acadêmicos plausíveis, as dificuldades mapeadas e, logo,
enfrentadas, na prática da pesquisa, mostraram-se sempre mutáveis e abundantes,
a começar pelo próprio meio rádio, não material, mas culturalmente avesso à
documentação, mesmo já erguido dentro de território sob a égide da
reprodutibilidade técnica. Igualmente, mostrava-se como dificuldade o
distanciamento daquela programação radiofônica da Continental, levada ao ar e
mantida, ao vivo, no mínimo, havia mais de duas décadas, chegando a três
422

decênios, considerando-se os primeiros meses da programação inovadora da


Continental, a partir de 1971.

No desenvolvimento específico da presente pesquisa, ainda, aquele núcleo


histórico-temporal inicial, isto é, o período demarcado pelo surgimento da
programação mais inovadora, em 1971, até o declínio, em 1981, verificamos
como foco confirmado do protagonismo primordial da Continental. Entretanto, a
temporalidade, em busca de explicações outras e melhores ao conjunto dos
fenômenos verificados, decretou a ampliação do tempo histórico, na prática,
abordado no desenvolvimento da tese. Dentro de cenário de temporalidade,
praticamente, ampliada em dobro, também, testemunhamos acréscimo de
peripécias, do número de sujeitos sociais e, sobretudo, da própria história da
comunicação protagonizada pela Continental.

Neste contexto, a história oral surgiu como fonte teórica e ponte técnica
para o contato possível com a memória social dos protagonistas, com aqueles que
fizeram a Rádio, ouvidos em entrevistas em que o conjunto de vozes era sinônimo
de oportunidade única para, até certo ponto, voltarmos a ouvir a Continental, sob
novo prisma, já dentro do projeto acadêmico da pesquisa.

Nosso desejo estava centrado no estudo da programação da Continental,


problematizando o ciclo vital da emissora. Para tal abordagem à década de 1970,
inicialmente, precisávamos tangenciar as mais recentes e grandes questões
teóricas contemporâneas pontificadas, no caso do rádio, em interesses crescentes
sobre os processos de rádio digital e radioweb, entre outros fenômenos. Mas,
particularmente, o fenômeno da configuração de redes, recente e datado, serviu
como filtro e degrau para nova abordagem da Rádio estudada. Em suma, os
recentes estudos sobre rede possibilitaram, de algum modo, a problematização e
enquadramento inédito, para nós, da antes isolada, em solo, Rádio Continental de
Porto Alegre.

Ainda assim, o objeto histórico escolhido pela pesquisa, no conjunto e nas


individualidades, mostrava-se, sobretudo, problemático, a começar pela própria
dificuldade em estabelecer o fato comunicacional relevante configurado como fato
423

histórico cabal. O fato histórico, percebíamos, surgia erguido a partir de uma


angulação de determinado depoimento individual, mas não somente a partir
daquela versão individual o processo poderia desenvolver-se.

À medida que avançávamos, os depoimentos e angulações multiplicavam-


se, ora em confirmação de uma versão primeira, ora em acréscimo para a soma
resultante de interpretações, inúmeras vezes em contradição de versões. Em todas
as circunstâncias, o processo vivo e rico das entrevistas, aquela instância-processo
comunicacional, mediante o trabalho de escuta e de reflexão, garantia algumas
confirmações e inúmeras indeterminações.

O processo da pesquisa indicava a possibilidade de existir algo semelhante


a uma história sem fim, ainda que determinássemos, delimitássemos
temporalidade, objeto e método, mesmo e, principalmente, sob a pretendida
heterodoxia da tese. O acionamento teórico-metodológico da história oral e o
trabalho com narrativas, sob a perspectiva heterodoxa das contribuições de Walter
Benjamin, Paul Veyne, associado ao enfoque sobre memória advindo de Jacques
Le Goff, terminaram por oportunizar à tese o trabalho com a concepção de
inconclusão. Tratava-se, pois, de perseguir, com honestidade intelectual, pistas e
rastros plausíveis, nexos racionais possíveis, erguidos pelas narrativas dos
entrevistados e, posteriormente, pela própria narrativa final da tese. Entendemos
como trabalho realizado pela tese a recuperação das narrativas-slogans da
Continental, bem como a análise das interações destas com a cultura e, sobretudo,
com os ouvintes e a cidade.

Se na origem do projeto de tese estava o desejo de estabelecimento de uma


teoria do rádio, a decisão de migrar para uma história do protagonismo do modelo
e das peripécias da Continental esteve articulada à necessidade de buscar uma
problematização específica, local, vale dizer, particularizada. O foco para obter
uma reflexividade sobre o rádio perdurava. Apenas, na história da Continental,
esta reflexão antevia-se mais próxima de um encaixe, de um enquadramento e,
sobretudo, de oportunidade de contribuição ao conhecimento acadêmico sobre
radialismo e, em especial, sobre as específicas peripécias da Continental.
424

Enquanto a história oral surgia como método heterodoxo para estruturação


metodológica do fenômeno, o chão empírico da pesquisa iniciada moldava uma
hipótese, para nós importante, qual seja que aquele modelo inovador da
Continental erguera-se, sobretudo, em contraposição aos outros modelos de
programação e de radiodifusão reais existentes. A tese procurou mostrar como se
ergueu este modelo em contraposição.

Observar a Rádio Continental, como modelo de programação e


radiodifusão em contraposição aos demais existentes, reais e observados,
entendemos como nossa ambição e como uma contribuição que ensejava um
modelo de análise. A nossa análise estratégica das ofertas e disputas de
programações radiofônicas visualizou a Continental como proposta de voz contra
o modelo de sobriedade da Guaíba (embora “importasse” daquela a busca pelo
padrão de qualidade), contra o estilo “marca diabo” (rádios segmentadas,
concorrentes, com musicalidade “brega”) e contra a rádio-educativa tradicional
(Rádio da UFRGS, segmentada e voltada aos universitários). Ao mesmo tempo, a
Continental foi flagrada como modelo paradigmático para a concorrência
comercial, em disputas de mercado, ainda no espectro de AM, como flagramos, a
saber, através da Rádio Pampa, Cultura e Porto Alegre.

Na tese, igualmente, aos investirmos nas fronteiras temporais, deslocamos


o período histórico inicial para uma temporalidade maior e, então, vislumbramos a
hipótese de surgimento de rede nacional de rádio, pretendida pelo Sistema Globo,
antes mesmo da rede de televisão definitiva. Aquilo, para nós, era algo
desconhecido até aquele momento de descoberta.

Ao estudar a especificidade da programação da Continental, identificamos,


também, algo como uma macroconfiguração, na realidade, o todo sistematizado
da referida programação em subdivisões articuladas. Assim, na medida em que
reconstituíamos o modelo radiofônico da 1120, identificávamos não apenas uma
única matriz, mas diferentes ramificações virtualmente potentes e independentes.
Muito embora fosse uma emissora essencialmente musical, a Rádio ofertava uma
solução para o enfoque e o tratamento da notícia, posteriormente, rentável,
também, em outros desdobramentos de projetos radiofônicos, inclusive, em
425

emissoras de grande porte, na atualidade. Musicalmente, como tivemos


possibilidade de indicar, a Continental se especializou em ofertar três diferentes
blocos, cada um destes com potencialidade para erguer programação segmentada
individualizada, a saber, música popular internacional, música popular brasileira e
música popular urbana gaúcha. Logo, visualizamos a Continental como base de
lançamentos musicais de sucesso nacional, a partir da projeção local, como
aconteceu com Hermes Aquino, “Os Almôndegas” e, até certo ponto, Fernando
Ribeiro. Este destaque para a articulação universitária, entre rádio, compositores e
público, entendemos, igualmente, como trabalho da tese.

Assim, ficou claro que a Continental não nascia como expressão de uma
única voz. E esta estruturação polivox da Continental verificamos não somente a
partir da articulação múltipla de gêneros musicais. Estava, igualmente, pela
polifonia provocada pelos diferentes discursos dispostos e em disputa, inclusive,
na oferta múltipla dos falares. Diante do sistema, como voz política, diante do
autoritarismo e diante da cultura estabelecida, a Continental erguia-se,
cotidianamente, como contravoz de juventude oposicionista em Porto Alegre. O
feixe de vozes da Continental, assim, articulava, ao mesmo tempo, diferentes
gêneros musicais e diferentes discursos em polifonia unificada pela contraposição
marcada na programação, ao vivo, da Rádio.

Vislumbramos, assim, na prática da radiodifusão, um posicionar-se à


esquerda, mesmo que, na lógica de organização e produção, ali se sintonizasse
uma emissora forte e competentemente comercial. Sob o capitalismo, sim, a
Continental, oferecia-se, com arquitetura própria ao mercado, como única
emissora gauche exibindo dada ética da negação.

A Continental, portanto, não foi a primeira emissora de rádio a fazer-se


ativa como sujeito político. Foi pioneira na expressão desta politização e,
sobretudo, inovou ao posicionar-se na oposição ao regime militar, à Censura
Federal, como nenhuma outra ousou, e contra o regime militar, como poucas
empresas de comunicação conseguiram ou pretenderam protagonizar, naquele
longo período pós-1964 até a fase da democratização brasileira, ainda, hoje,
inconclusa.
426

A programação 1120 pesquisada, assim, apresentava temáticas, processos


de rotinas produtivas, linguagens expressivas, em suma, as instâncias sonoras
radiofonizadas fortemente marcadas pela busca de inovação, pela contestação,
pela irreverência. No cotidiano, a Continental exibia certa gana, certa ousadia e
alegria ao poder contestar, ao vivo, desde o seu próprio lugar.

Pelo sistema de comercialização dos espaços, devido, igualmente, à direta


vinculação à Rede Globo, não se poderia incluir a Continental dentro do espectro
de uma emissora da contracultura, sequer como emissora “nanica”, tampouco.
Todavia, inequivocamente, a Rádio flertava, dialogava com certos valores, com
construções e soluções advindas daquelas culturas de época e de juventude. O
contraditório estava localizado na instância de produção onde nascia o teor dos
textos da Rádio (oposicionistas, contraculturais) e a infra-estrutura da empresa.

A Continental resultou ser não a primeira emissora a politizar o próprio


discurso, entretanto, foi a primeira, possivelmente a única, a organizar texto e
discurso de esquerda. O esquerdismo da Continental era não-partidário, situado no
campo amplo do oposicionismo da época. Identificamos, neste sentido, a
Continental como pioneira, e rara emissora, em defesa da consciência ecológica.

Através do resgate das narrativas-slogans da Rádio, realizado pela


pesquisa, identificamos o discurso oposicionista, ao lado de textos jornalísticos de
igual teor.

Na segunda metade da década iniciada em 1970, enquanto o governo


Geisel acenava com o início de processo de democratização, a Continental,
localmente, enfrentava a pressão crescente do cerco da Censura Federal gaúcha.
Travava-se particular embate entre o avanço da voz de oposição da Rádio e a
resistência autoritária localizada, através da Censura, de costas para a distensão e
para a abertura política apregoada como proposta nacional pelo governo federal.

Enquanto a musicalidade brasileira, portadora de nova estética, cresceria,


vertiginosamente, a partir daquele momento histórico, verificava-se, também,
aumento de oportunidades, sobretudo, para os compositores urbanos gaúchos.
427

Este espaço, podemos constatar, foi uma das contribuições da Continental,


projetando não somente nomes de intérpretes, mas também de autores locais.

O modelo de programação da Continental, também, centrado no trabalho


da informação, na perspectiva de uma audiência de oposição, valeu-se, para
sucesso comercial e interação cultural de todo o patrimônio musical. A ação de
gravar e transmitir as novidades da chamada MPG (Música popular gaúcha)
garantiu audiências e sucesso para os artistas que necessitavam de arena, e para a
Rádio que garantia mais fatias de exclusividades para os ouvintes.

Nesta esteira do núcleo de gravações nos estúdios da Continental,


constatamos, a publicidade local via-se revigorada, pela inovação nos jingles e
peças, pelo aparecimento de novo tipo de anunciante e, igualmente, porque a
Continental incrementava o consumo e, particularmente, ensejava o surgimento de
categoria especial de ouvinte: isto é, o jovem interessado em ouvir publicidade.

Entretanto, aquele modelo criativo 1120, baseado na equação de


independência editorial oposicionista, associada ao sucesso publicitário e
comercial, respaldado, política e tecnologicamente, pelo Sistema Globo de Rádio,
sofreria diferentes ataques e traumas, na medida em que a virada rumo à década
iniciada em 1980 aproximava-se, como verificamos. A concorrência representada
pelas emissoras em FM foi apenas um destes fatores de desgaste e, logo,
desaparecimento do modelo Continental de programação. Os outros traumas
chegavam pelo combate da repressão, pela diminuição dos anunciantes, pela
oferta do mercado de trabalho, cooptando nomes da Continental, pelo cansaço
vital dos sujeitos responsáveis mais diretos pelo modelo criativo da Rádio.

Na tese, visualizamos a Continental personificando uma intersecção entre


o campo do jornalismo e o campo da cultura. Ao mesmo tempo, a Rádio exibiu,
interligou, vivenciou, por vezes sob conflito, diferentes capitais simbólicos −
como em Bordieau −, onde a oferta de consumo cultural de fruição e a produção
de informação jornalística constituíram-se em valores de legitimação da própria
Continental que trabalhou como pólo agenciador dinâmico da identidade do
público de audiência e da própria polis.
428

Esta voz autoral da Continental flagrada na tese como, ao mesmo tempo,


contravoz da juventude universitária – sujeito participante da produção e da
recepção da emissora –especializou-se na enunciação da polis e, ao fazê-lo,
empreendeu discurso problematizador tanto da cidade, quanto do mundo. Neste
sentido, destacamos a particularização dos impactos culturais entre o local-
regional, o nacional e o global, que denominamos superpresença.

A década iniciada em 1970 assinalava uma nova etapa desta


superpresença materializada pela inserção diferenciada de valores e produtos da
cultura norte-americana entre nós. Percebemos esta superpresença estudada,
analisada, em diferentes autores e pesquisas. Para nós, porém, tratava-se de
verificá-la, pelo menos em parte, no embate cultural dentro da programação da
Continental. Terminamos por identificar este encontro-embate como uma
formulação histórica, como uma reelaboração heterodoxa, em parte, como uma
“cultura de mescla”, no dizer de Canclini, no caso, “mescla sonora” com
fenômenos construídos pela radiofonia da cultura local, algo como expressão de
uma mescla cultural radiofônica, mas de sotaque e timbre porto-alegrense.

Na prática, ali estava a Continental a realizar, de modo próprio,


articulações entre o local e o estrangeiro, entre o passado e o futuro, entre a
música e a política, entre o tempo presente e a história.

Podemos verificar aquela expressão da Rádio local marcada por lógicas


que ecoavam, igualmente, racionalidades e valores da política nacional e do
consumismo e da estética internacionais, sem pretender superestimar a construção
particular local da Continental e sem ter, sobretudo, caráter sumário conclusivo,
com Thierry Jerh Elst (1987), primeiramente, as construções simbólicas concretas
de inculturação e aculturação, para chegarmos, de modo dali decorrente, ao que
interpretamos como modo de afirmação simbólica e articulação. Se a
inculturação é sinônimo de adaptação do estrangeiro ao local e a aculturação trata
de definir a subjugação do local pelo internacional, visualizamos a Continental
coexistindo com estes fenômenos, porém direcionando-se para uma situação de
afirmação simbólica, na qual se presencia uma construção de forte teor local,
voltada para a autonomia. Presenciamos, igualmente, uma formação expressa pelo
429

termo articulação, em que ocorre uma espécie de ruptura do isomorfismo entre


espaço, lugar e cultura, para o estabelecimento de uma ênfase na articulação de
diferentes culturas.

Flagramos a Continental como estação radiofônica de articulação de


diferentes culturas, mas flagramos a Rádio como expressão cultural e
comunicacional de uma localidade, também. Ainda, como Rádio dentro de uma
comunidade que, no caso específico, detinha, em comum, produtores,
consumidores e, também, a idade, segmento de classe e escolaridade. Rádio
dentro de uma historicidade que associava a própria voz autoral da emissora à
cidade, não imune nem isolada dos discursos e falas do estrangeiro. Assim,
erguia-se aquela espécie de continente sonoro radiofônico da Rádio, regional,
particular, convivendo com um “processo descomunal de importação de bens, de
discursos e de práticas simbólicas” (CANCLINI, 2000, p. 327).

Descomunal parece-nos, mesmo, termo precioso e, talvez, exato para,


igualmente, designar o conjunto de falares radiofônicos, de sons técnicos e
musicais produzidos, enfim, de articulações de linguagens produzidas, no tempo e
na cidade, pela Rádio Continental 1120 AM.

Ao longo da tese, para qual não advogamos caráter conclusivo,


imaginamos ter contribuído com aspectos quantitativos e qualitativos de alguma
relevância para o estabelecimento de uma história da Rádio Continental.

Desde um ponto de vista estrito, a proposta axial do presente trabalho de


tese, encaminha contribuições, poderíamos dizer. Aqui, acreditamos entregar
escrita, de modo coeso e coerente, a história das peripécias da Continental. E, quer
sob a angulação de aspectos quantitativos, quer sob o prisma qualitativo,
entendemos que, hoje, sabemos mais, conhecemos melhor sobre o protagonismo
histórico e comunicacional da Continental. Entretanto, como referia Fernando
Westphalen, comentando sobre a Rádio dileta, “esta é mesmo uma longa história”.
Aqui, entregamos a nossa contribuição acadêmica para a história expandida sobre
a Continental.
430

Trata-se de encerramento de um ciclo. Escrevemos a tese porque sabemos


que “tudo que é sonoro também se desmancha no ar”.

A presente tese instala-se como texto à espera de outros enfoques


analíticos, em diálogos, em outros contextos, para interpretação. Posta-se à espera
de outro sujeito analista e narrador. Sempre, o Próximo. Desde que, na história,
saiba e possa ouvir o Anterior.
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2 ENTREVISTAS

Adroaldo Corrêa, redator e coordenador jornalismo. Entrevista pessoal para


Autor, concedida em 26 de novembro de 2003.

Ananda Apple, redatora e apresentadora. Entrevista para Autor, por correio


eletrônico, em 27 de janeiro de 2004.

Ângela Lângaro Becker, vocalista grupo “Inconsciente Coletivo”. Entrevista por


correiro eletrônico, em 28 de novembro de 2003 e em 5 de janeiro de 2004.

Antonio Carlos Contursi “Cascalho”, DJ. Entrevista pessoal para Autor,


concedida em 3 de dezembro de 2003.

Antonio Carlos Niederaeur, locutor-noticiarista e comercial. Entrevista pessoal


para Autor, concedida em 24 de novembro de 2002.

Antonio Edsson “Caveira”, técnico de gravações e mesa de áudio. Entrevista


pessoal para Autor, concedida em 19 de dezembro de 2003.

Bertoldo Lauer Filho, responsável técnico pelo som. Entrevista pessoal para
Autor, concedida em 18 de dezembro de 2003.

Cíntia Nahra, redatora. Entrevista pessoal para Autor, concedida em 25 de Junho


de 2001.

Cláudia Hazelman, jornalista, autora de monografia de conclusão de curso sobre


Rádio Continental. Entrevista pessoal para Autor, concedida em 10 de julho de
2001.

Clóvis Dias Costa, apresentador. Entrevista para Autor, concedida por telefone,
20 de maio de 2002.

Dedé Ribeiro. Entrevistas concedidas para Autor, por correio eletrônico, em 13 e


15 de dezembro de 2002 e 9 de janeiro de 2003.

Eduardo Meditsch, redator. Entrevista concedida para Autor, por correio


eletrônico, em 23 de janeiro de 2004.

Eleonora Rizzo, repórter. Entrevista pessoal para Autor, concedida em 25 de


novembro de 2003.

Eloy Terra, redator. Entrevista pessoal para Autor, concedida em 28 de novembro


de 2002.

Emílio Pacheco, jornalista. Entrevista pessoal para Autor, concedida em 27 de


novembro de 2002.
455

Fernando Westphalen (Judeu), diretor. Entrevistas para Autor, concedidas em 11


de abril de 2002 e em 21 de novembro de 2003.

Francisco Anele Filho, técnico em gravações e operador mesa de áudio.


Entrevistas para Autor, concedidas em 20 e em 28 de dezembro de 2003.

George Gilberto Dorsch, “Beto Ronca Ferro”, programador musical, produtor e


DJ. Entrevista pessoal para Autor, concedida em 28 de novembro de 2003.

Gilberto Pedroso, operador de áudio. Entrevista para Autor, por telefone, em 31


de janeiro de 2003.

Holmes Aquino. Entrevista concedida para Autor, por telefone, em 16 de


dezembro de 2002.

Ivan Zukauskas, Autor de monografia de conclusão de curso, em Publicidade e


Propaganda, sobre a Rádio Continental.

João Batista Schuller. Entrevistas concedidas para Autor, por correio eletrônico,
entre 15 de outubro e 19 de dezembro de 2003.

José Fogaça, apresentador. Entrevista pessoal para Autor, concedida em 8 de


dezembro de 2003.

Júlio Fürst, “Mr. Lee”, DJ. Entrevista concedida por telefone, em 12 de julho de
2002 e pessoal para Autor, em 3 de dezembro de 2003.

Kledir Ramil, músico e compositor. Entrevista pessoal para Autor, em 29 de


outubro de 2003.

Leônidas Issler, sócio-proprietário e gerente. Entrevista pessoal para Autor,


concedida em 10 de dezembro de 2003.

Lúcio Haeser, jornalista. Entrevista pessoal para o Autor, em 28 de novembro de


2003.

Luís Fernando Veríssimo, redator. Entrevistas para Autor, por correio eletrônico,
concedida em 7 de novembro de 2003.

Luiz Coronel, publicitário. Entrevista pessoal para Autor, concedida em 8 de


março de 2002.

Marcus Aurélio Wesendonk, diretor de programação e apresentador. Entrevistas


para Autor, concedidas em 15 de novembro de 2002 e 3 de dezembro de 2003.

Marina Lima, secretária. Entrevista pessoal para Autor, concedida em 5 de


dezembro de 2003.

Marlene de Lima Praz, funcionária do departamento de pessoal. Entrevista para o


Autor, concedida em 22 de dezembro de 2003.
456

Nelson Coelho de Castro. Entrevistas concedidas para Autor, por correio


eletrônico, em 21 e 22 de novembro de 2003 e 29 de junho de 2004.

Otávio Gadret, empresário. Entrevistas concedidas para Autor, por correio


eletrônico, em 30 e 31 de outubro de 2003 e 16 de dezembro de 2003.

Paulo Acosta, redator. Entrevista concedida para Autor, por telefone e por correio
eletrônico, respectivamente, em 28 de novembro e em 3 de dezembro de 2003.

Pery Souza, músico e compositor, do grupo “Almondegas”. Entrevista concedida


para o Autor, por correio eletrônico, em 4 de novembro de 2002.

Plínio Omar Pereira Nunes, redator. Entrevista pessoal para Autor, concedida em
1° de novembro de 2002.

Rubens Prates, programador musical. Entrevista concedida por telefone, em 20 de


julho de 2002 e entrevista pessoal para o Autor, em 25 de novembro de 2003.

Rui Carvalho, apresentador e locutor. Entrevista para Autor, concedida por


telefone, em 21 de junho de 2002.

Suzana Sperb Caye, viúva do “Agente 1120”. Entrevista pessoal para Autor,
concedida em 6 de dezembro de 2003.

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