Dissertacao Rubem Barros
Dissertacao Rubem Barros
Dissertacao Rubem Barros
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
A (RE)CONSTRUO DO PASSADO:
MSICA, CINEMA, HISTRIA
So Paulo
2011
ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
A (RE)CONSTRUO DO PASSADO:
MSICA, CINEMA, HISTRIA
Orientador:
Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin
So Paulo
2011
Barros, Rubem Rabello Maciel de. A (Re)Construo do Passado: Msica, Cinema,
Histria. Dissertao apresentada como requisito para obteno de ttulo de Mestre em
Meios e Processos Audiovisuais, linha de pesquisa Histria, Teoria e Crtica.
Banca Examinadora
_______________________________________________
_______________________________________________
_______________________________________________
FFLCH
iii
AGRADECIMENTOS
Nestes dois anos e meio de percurso de estudos que se concretizam nestas pginas, muitas
e variadas foram as interlocues e ajudas de que pude privar.
Meu muito obrigado tambm aos professores Paulo Menezes, Jos Geraldo Vinci de
Moraes, Henri Gervaiseau e Ismail Xavier, responsveis pelas disciplinas que ajudaram a
encorpar as reflexes aqui contidas; aos colegas que as cursaram comigo, compartilhando
ideias e angstias; ao grupo de orientandos do professor Morettin, em especial aos colegas
Tainah Negreiros e Reinaldo Cardenuto Filho, este ltimo autor de importante
interpretao incorporada dissertao.
Ao lingista, jornalista e agora doutor em filosofia da educao, Luiz Costa Pereira Jr.,
amigo cuja navegao pelo universo dos sambas de Paulinho da Viola, em sua tese de
doutorado, tantas vezes convergiu com este trabalho.
iv
RESUMO
Os dois filmes esto construdos a partir de uma perspectiva da esttica found footage, com
o material de arquivo operando como base indicial para novos arranjos de sentido na
interpretao da histria. A anlise busca identificar os nexos criados pelas duas obras e a
variada gama de dilogos culturais que podem ser inferidos de sua leitura. Em destaque, o
lugar que a msica popular ocupa na cultura urbana brasileira.
v
ABSTRACT
This dissertation analyses the use of archive material, the discursive constructions and the
resulting historiographic vision in two films dedicated to personalities from Brazilian
Popular Music, particularly from samba: the short film The voice and the void:
Vassourinhas turn (1998), by Carlos Adriano, and the feature film Cartola, music for the
eyes (2006), by Lrio Ferreira and Hilton Lacerda.
Both films were assembled from the perspective of found footage aesthetic, in which the
archive material indicates new arrangements of meaning for the interpretation of the
story.The analysis aims to identify the nexuses created by the two works and the varied
range of cultural dialogues that may be inferred from their interpretation. Special attention
is given to the place of popular music in Brazilian urban culture.
As a result, common aesthetic matrixes are identified, such as Julio Bressanes cinema of
invention, resulting, however, in different historiographic approaches: one, signatory of a
post-modern vision; the other, more similar to an update of historic chronicles.
Keywords: Cinema, History, Music, Found Footage, Documentary Film, Experimental Film
vi
SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................ 1
CAPTULO 1:
A voz e o vazio: a vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas.................. 25
PARTE 1
1.1. Contexto de produo e matriz esttica ...................................................................... 26
1.2. O que possvel ver em uma vida? ............................................................................ 30
1.3. A definio de um campo ........................................................................................... 32
1.4. Linguagem e histria .................................................................................................. 35
1.5. Indcios da existncia de Vassourinha, habitante das runas ...................................... 36
1.6. Pesquisa e concepo histrica ................................................................................... 39
1.7. A valorizao do percurso: uma trajetria ensastica ................................................. 41
PARTE 2 - ANLISE DE A VOZ E O VAZIO: A VEZ DE VASSOURINHA
2.1. Parmetros metodolgicos .......................................................................................... 45
2.2. Sries hipotticas ........................................................................................................ 48
2.2.1. Remanescncias (1997, 18 min., Carlos Adriano) .................................................. 51
2.2.2. So Paulo, sinfonia e cacofonia (1995, 40 min. de Jean-Claude Bernardet)............ 53
2.2.3. Tudo Brasil (1997, 82 min. de Rogrio Sganzerla) .............................................. 55
2.2.4. Pequena sntese acerca da srie .......................................................................... 57
2.3. Segmentos/Blocos de sentido ..................................................................................... 58
2.3.1. O lado A ............................................................................................................. 59
2.3.2. A virada do disco ............................................................................................... 68
2.3.3. O Lado B ............................................................................................................ 70
2.3.4. O monumento ..................................................................................................... 80
2.4. Signos e recorrncias .................................................................................................. 88
2.5. Concluso ................................................................................................................... 90
CAPTULO 2:
Cartola, msica para os olhos: a crnica sob as imagens e depoimentos ............................ 92
PARTE 1
1.1. Contexto de produo e matriz esttica ...................................................................... 93
1.2. Aproximao biogrfica ............................................................................................. 99
PARTE 2 - ANLISE DE CARTOLA, MSICA PARA OS OLHOS
2.1. Parmetros metodolgicos .......................................................................................... 103
vii
2.2. Sinopse e proposta de diviso em blocos de sentido .................................................. 103
2.3. Segmento 1: A juventude de Cartola e o nascimento do samba ................................. 108
2.3.1. Lugar de enunciao .......................................................................................... 108
2.3.2. A histria do samba - contexto histrico............................................................ 111
2.3.4. A orfandade de Cartola e o desvendar da cidade ............................................... 113
2.3.5. Nascimento das escolas de samba/A venda de sambas/O samba e o Rio de
Janeiro constituem o Brasil ................................................................................ 117
2.3.6. Tempo de derrocadas: Cartola, Brasil, 1950. ..................................................... 121
2.4. Segmento 2: Redeno, reconhecimento e morte ....................................................... 124
2.4.1. Zica, a famlia e o renascimento ........................................................................ 125
2.4.2. Retratos de sambistas e a composio; vida de ator........................................... 128
2.4.3. ZiCartola ............................................................................................................ 131
2.4.4. Volta Mangueira .............................................................................................. 134
2.4.5. A gravao do primeiro disco e a consagrao .................................................. 136
2.4.6. A ltima morada, o corpo que definha: a despedida. ......................................... 138
2.5. Signos e recorrncias .................................................................................................. 140
2.6. Concluso ................................................................................................................... 141
CAPTULO 3:
Ritmos da histria da msica no cinema ................................................................................ 143
1.1. Matriz convergente, dilogos variados ....................................................................... 144
1.2. As escolhas: o lugar dos personagens na histria da msica brasileira ...................... 146
1.3. Lugar de produo e enunciao inicial...................................................................... 148
1.4. O trato com o arquivo ................................................................................................. 149
1.5. Intertextualidade ou dialogismo.................................................................................. 150
1.6. Histria, novas pesquisas, percurso ............................................................................ 152
viii
Introduo
INTRODUO
Arlindo Machado1
Os oito anos que separam o lanamento dos dois filmes que constituem o
corpus desta dissertao A voz e o vazio: A vez de Vassourinha (1998, direo de Carlos
Adriano) e Cartola, msica para os olhos (2006, direo de Lrio Ferreira e Hilton
Lacerda) marcam um perodo de significativo aumento da presena da msica popular na
produo audiovisual brasileira destinada s salas de cinema. Este aumento est
materializado, sobretudo, pela produo de filmes documentais, a maioria deles biogrficos
ou variaes da abordagem biogrfica tradicional (perfis, shows etc.). Os filmes aqui
enfocados apresentam linhas de convergncia, ainda que destinados a espaos de recepo
diferentes. O curta-metragem A voz e o vazio foi realizado apenas com o aporte da verba
recebida de um concurso do Ministrio da Cultura, com exibio em salas e projetos
alternativos (ficou em cartaz, durante um ano, no programa Curta seis e meia, patrocinado
pela Petrobrs). Cartola teve maior aporte de recursos e foi exibido no circuito comercial,
com um pblico de menos de 100 mil espectadores.
1
MACHADO, Arlindo. Pr-cinemas e ps-cinemas. 5. edio, 2008
1
Introduo
temas que aparecem entrecruzados a essas questes: limites e questes que a escrita
biogrfica enseja histria; as novas questes que o found footage aporta ao campo
cinematogrfico enquanto objeto de reflexo histrica, o carter dialgico dos filmes e
canes em relao a outros objetos culturais.
A questo biogrfica
2
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: Usos e abusos da histria oral. (orgs) Marieta Ferreira e Janaina
Amado, 1998, pp. 167-182.
2
Introduo
cincias sociais, os problemas das escalas de anlise e das relaes entre regras e prticas,
bem como aqueles, mais complexos, referentes aos limites da liberdade e da racionalidade
humanas.3
Philippe Levillain4 atribui essa inflexo dos anos 80, que batiza de
revoluo na revoluo, a fatores mltiplos, entre os quais destaca a crise do marxismo,
em especial na Frana, e a retomada da histria factual em detrimento da quantitativa e
serial, estrutural, que havia prevalecido desde a entrada em cena do grupo da revista dos
Annales, j no final da dcada de 20.
3
Idem, ibidem, p. 168
4
LEVILLAIN, Phillipe, Os protagonistas: da biografia. In Por uma histria poltica, (org). Ren Rmond,
pp. 141-184.
3
Introduo
como aos usos que fez da biografia. Sintonizada com a questo da nao, a histria
positivista, como discorre Levillain, tem forte acento teleolgico, narrativas que
privilegiam a linha evolutiva e a noo de progresso. Nesse contexto, as biografias acabam
seguindo a linha de textos morais, ancorada na tradio de Plutarco, com forte associao
entre nao e ideologia e um tratamento laudatrio dos personagens que encarnam os
ideais de um e outro.
Esse vis viria a consagrar alguns cnones, listados por Andr Maurois em seu
livro sobre a biografia, mencionado por Franois Dosse. Maurois compara a biografia a uma
obra de arte (claramente assumindo sua poro ficcional, portanto), e o bigrafo a um pintor
que deve expor, no impor5. Para tanto, sua obra deve ser escrita em sequncia cronolgica
que faa o leitor esperar que o futuro seja desvelado; no deve se afastar em demasia do
protagonista da histria, de modo a deix-lo virar pano de fundo da narrativa; deve usar os
detalhes, as anedotas, como fatores de revelao da personalidade do biografado.
5
DOSSE, Franois. Apuesta biogrfica, La. 2007, p.56.
6
GADDIS, John Lewis. Paisagens da Histria Como os historiadores mapeiam o passado. Rio de
Janeiro: Campus, 2003. Ao fazer o paralelo, Gaddis diz: Sob certos aspectos, os bigrafos agem como os
paleontlogos: ns recuperamos o mximo possvel de fsseis. Mas as diferenas excedem as semelhanas.
(...) Os bigrafos no podem se contentar com isso, porque a biografia deve no somente recuperar fsseis,
mas tambm anim-los (p. 132).
4
Introduo
Essa tradio ser herdada pelas geraes subsequentes, das quais o tambm
jornalista Srgio Cabral um dos principais representantes. Autor de sete biografias num
arco de 32 anos (sobre Pixinguinha, Almirante, Ari Barroso, Elisete Cardoso, Nara Leo,
Antonio Carlos Jobim e Ataulfo Alves), Cabral fez sua primeira incurso no gnero em
1977, depois de vencer um concurso de monografias da Funarte8. Pixinguinha, vida e obra ,
a comear do ttulo, um espelho do modelo consagrado no sculo 19 e que seria seguido nos
campos da literatura e da msica, ou seja, o de explicar a vida pela obra e a obra pela vida.
7
MORAES, Jos G. Vinci de, Histria e historiadores da msica popular no Brasil. IN: Latin American
Music Review, vol. 28, No. 2, 2007, p. 274
8
Em ordem de lanamento, so estas as biografias lanadas pelo autor: Pixinguinha, vida e obra (1977),
Tom Jobim (1987), No tempo do Almirante (1991), No tempo de Ari Barroso (1993), Elisete Cardoso, vida
e obra (1994), Nara Leo, uma biografia (2001) Ataulfo Alves, vida e obra (2009). Fonte: Dicionrio
Cravo Albim da Msica Popular Brasileira (http://www.dicionariompb.com.br/sergio-cabral/biografia).
Acesso em 17/07/2010)
9
Relato feito em entrevista ao autor, concedida em 3/6/2009.
5
Introduo
o biografado, fazer o leitor sentir-se prximo dele. Seu trato narrativo costuma seguir a
mesma linha: uma abertura interessante normalmente uma anedota para atrair o leitor e
uma remisso cronologia na seqncia.
E que tipo de aporte a questo biogrfica pode trazer a esse olhar sobre a
msica popular, sua histria e a histria do Brasil? Quais os riscos que se corre ao estender
aquilo que (precariamente) constatado a partir de uma vida para um grupo social ou uma
sociedade? Que tipo de questo o cinema adiciona a essa discusso?
10
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O samba, a opinio e outras bossas... na construo republicana
do Brasil. In: Cavalcante, Berenice et alli (org.), Decantando a Repblica Inventrio Histrico e Poltico
da Cano Popular Moderna Brasileira, 2004, p. 37-68.
6
Introduo
11
LEVI, Giovanni, Op. cit., p. 179
12
CARRIRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema, 1995, p. 52
13
CERTEAU, Michel de. APUD DOSSE, Franois. Op. citada, p. 68.
14
BENVENISTE, mile. As relaes de tempo no verbo francs. In: Problemas de lingstica geral, 1976,
p. 260-276
7
Introduo
narrador. Para isso, utiliza sempre a terceira pessoa exclui a primeira e a segunda e o
tempo presente, que so marcas do discurso, que pressupe um lugar de enunciao e um
receptor. Para que haja essa explicitao do discurso, ou seja, a assuno de um lugar,
pressupe-se o uso do eu e do tu (inclusive conjugados com o ele) e uma utilizao mais
livre dos tempos verbais, como presente, futuro e perfeito, todos trs excludos da
narrativa histrica.15
15
Idem. Ibidem, p. 267-268
16
METZ, Christian. Histria/Discurso (nota sobre dois voyerismos). In: XAVIER, Ismail (org.) A
experincia do cinema, 1983, p. 403-410
17
XAVIER, Ismail. O discurso cinematogrfico. 2005, 3. edio, p. 30
18
WHITE, Hayde. Meta-histria A imaginao histrica do sculo 19, 2008.
8
Introduo
19
Idem. ibidem, p. 14
20
CERTEAU, Michel de. A operao historiogrfica. IN: A escrita da histria, 2008, p. 93
21
Idem, ibidem, p. 79
9
Introduo
22
GUNNING, Tom. The Cinema of Attraction: Early film, its spectator, and the avant-garde. In: Early film,
ed. Thomas Elsaesser and Adam Barker, 1989, p. 229-235
10
Introduo
acaso. Ao citar o entusiasmo do artista com o filme La Roue (1922), de Abel Gance,
Gunning aproxima os filmes realizados at 1906 com o cinema de vanguarda dos anos 20 e
30 do sculo passado. E so as vanguardas das dcadas finais do sculo 20 que iro se
deparar com o produto dessa nova historiografia, buscando reiluminar a questo do
primeiro cinema e da visibilidade, sendo o found footage uma de suas formas expressivas.
23
ADRIANO, Carlos. Eixo de mtodos (captulo 4). IN: O mutoscpio explica a inveno do pensamento de
Santos Dumont: cinema experimental de reapropriao de arquivo em forma digital. So Paulo:
Departamento de Cinema, Televiso e Rdio, da Escola de Comunicaes e Artes/USP, 2008.
24
Mquina inventada em 1894 pelo americano Herman Casler, ex-empregado de Thomas Edison. Movida
por uma manivela, fazia com uma luz fosse projetada sobre um fichrio de fotografias que, ao girar,
provocava a iluso de movimento.
25
LEYDA, Jay APUD ADRIANO, Carlos. Op. cit., p. 194
11
Introduo
americanas. A propsito dessas duas vertentes de uso do material de arquivo, Paul Arthur
as separa como duas ontologias, distinguindo os documentrios tradicionais dos filmes
experimentais26. A primeira, escreve, tende a ser ilustrativa e analgica, normalmente
com o fragmento de arquivo sendo tratado como uma evidncia que d suporte trilha
sonora, usualmente uma voz over que articula um argumento central, que captura a
imagem. No segundo caso, os usos so figurativos ou metafricos. Muitas, seno a
maioria, das instncias ilustrativas do documentrio de colagem so entendidas no como
literais, mas representaes figurativas de seus assuntos27.
Catherine Russell define o found footage como uma esttica das runas,
cuja intertextualidade sempre tambm uma alegoria da histria, uma montagem de traos
da memria, por meio da qual o cineasta se compromete com o passado recuperado e
reciclado29.
Russell avalia que a tipologia de Wees til para mapear diferentes papis
do gnero, mas, como em toda classificao, estes gneros no deixam de cruzar
frequentemente os limites que servem mais classificao do que s prticas dos
realizadores. Com olhar benjaminiano, a autora enfatiza que a ironia desse modo de
produo deriva da sobreposio e da coexistncia esttica de realismo, modernismo e da
simulao ps-modernista, uma combinao que poderia ser mais adequadamente
subsumida no interior da teoria da alegoria30.
26
ARTHUR, Paul APUD ZRYD, Michael. Found Footage Film as Discursive Metahistory: Craig Baldwin's
Tribulation 99. The Moving Image - Volume 3, Number 2, Fall 2003, pp. 40-61
27
ARTHUR, Paul APUD ZRYD, Michael. Op. cit., p. 48
28
WEES, William APUD ADRIANO, Carlos. Op. cit., p. 198
29
RUSSELL, Catherine. Experimental Ethnography The work of film in the age of vdeo, 1999, p. 238
30
Idem, ibidem, p. 240
12
Introduo
31
BENJAMIN, Walter. Passagens, 2009, p. 505
32
WEES, William APUD ADRIANO, Carlos. Op. citada, p. 196
33
RUSSELL, Catherine. Op. cit., p. 272
13
Introduo
Cabe aqui tentar esclarecer o que significa esse olhar alegrico assentado na
viso de histria de Walter Benjamin. Ao confrontar a viso historicista e o materialismo
histrico, Benjamin caracteriza a primeira como aquela que est ligada a uma perspectiva
de progresso e de uma histria cuja empatia recai sobre os dominadores. Uma histria que
eterniza o passado e vista como um continuum, numa progresso que leva a uma histria
universal, feita de procedimentos aditivos.
A essa viso ope outra, que sugere que o passado seja revisitado pelas
foras presentes, e que desse processo resulte um movimento de libertao das vozes dos
dominados que acabaram ocultadas pela histria consagrada pelos dominadores. Benjamin
recorre ao Angelus Novus de Paul Klee, pintura em que uma tempestade impele o anjo para
o futuro, ao qual ele vira as costas para deter-se sobre o passado e enxergar alm da cadeia
de acontecimentos. Ele v uma catstrofe nica, que acumula incansavelmente runa
sobre runa e as dispersa a nossos ps. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e
juntar os fragmentos34, escreve Benjamin, alegoricamente.
34
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de histria. In: Obras escolhidas Magia e tcnica, arte e poltica,
1996, p. 226
35
Idem, ibidem, p. 224
36
Idem, ibidem. p. 231
14
Introduo
37
XAVIER, Ismail. Alegoria, Modernidade, Nacionalismo. IN; Revista Novos Rumos, 1990, p. 60.
38
Vale aqui reiterar o alerta feito por Xavier no texto mencionado: o de que a radicalizao interpretativa da
questo da alegoria, ocorrida nas ltimas dcadas do sculo XX a partir de uma perspectiva ps-moderna,
apontando para a suspenso dos sentidos, no corresponde ao que elabora Benjamin, para quem h lugar
para verdade e redeno, para a metafsica (Xavier, Op. citada, p. 61)
39
WEES APUD ADRIANO, Carlos. Op. cit. p. 198
15
Introduo
40
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. IN: ROMANO, Ruggiero (org.) Enciclopdia Einaudi,
Memria Histria. S.1p., Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984, p. 95 -106, vol. 1.
41
Idem, ibidem, p.103-104
42
ZRYD, Michael. Found Footage Film as Discursive Metahistory: Craig Baldwin's Tribulation 99. The
Moving Image - Volume 3, Number 2, Fall 2003, pp. 40-61
16
Introduo
Mais simblico ainda o fato de o rdio ser inaugurado com duas peas
eruditas a outra foi O Guarany, de Carlos Gomes atendendo ao projeto que se tentaria
introduzir nos dez anos seguintes, que era o de utilizar os novos meios de comunicao de
massa com fins educativos. O que significava dizer veicular programas sobre temas
cientficos, cvicos e culturais45. A msica deveria ser de extrato erudito.
43
Idem, ibidem, p. 45-46
44
SAROLDI, Luiz Carlos. O rdio e a msica. IN: Revista USP, n. 56, p. 48-61, dezembro/fevereiro,
2002/2003
45
Idem, idem, p. 51
17
Introduo
46
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexes sobre a origem e a expanso do
nacionalismo, 2005
47
Idem, ibidem, p. 25
48
WISNIK, Jos Miguel. O minuto e o milnio. Ou, por favor, professor, uma dcada de cada vez. In: Anos
70. Msica Popular, RJ, Ed. Europa, 1979, p. 177
18
Introduo
49
NAPOLITANO, Marcos. A sncope das ideias A questo da tradio na msica popular brasileira. So
Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 2007.
50
Idem, ibidem, p. 6
51
Idem, ibidem, p. 22
52
AGGIO, Alberto; Barbosa, Agnaldo; LAMBERT, Hercdia. Poltica e Sociedade no Brasil, 1930-1964.
SP: Annablume, 2002, p. 89.
19
Introduo
Esse momento marca a entrada da cano popular naquilo que Juan Pablo
Gonzlez define como uma msica mediatizada, massiva e moderna, ancorada nas
relaes msica/pblico, msica/msico, na circulao simultnea em um universo de
milhes de pessoas e sua relao simbitica com a indstria cultural, a tecnologia e as
comunicaes53. Como ressalta Vinci de Moraes ao analisar a presena do rdio na So
Paulo dos anos 30, a partir desse momento que a produo musical orientou-se e
adaptou-se cada vez mais aos meios de comunicao e ao gosto mdio do ouvinte 54. O
rdio modifica e reinventa o conceito de popular, agora mais ligado ao mercado e a obras
de grande circulao.
53
GONZLEZ, Juan Pablo. Musicologia popular em Amrica Latina. Sntesis de sus logros, problemas y
desafios. In: Revista Musical Chilena, 195, 2001, p.38.
54
MORAES, Jos Geraldo Vinci de. Metrpole em sinfonia. Histria, cultura e msica popular na So
Paulo dos anos 30. 2000, p. 23.
55
DIAS, Ricardo. Um Homem de Moral. SP: Superfilmes, 2009.
20
Introduo
nmero de marchinhas (1225), que, somado aos sambas, atinge o total de 3401
fonogramas, ou seja, 50,71% do repertrio gravado.56
56
SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A Cano do Tempo. 85 anos de msicas brasileiras.
Vol 1, 1901-1957, 1998 p.86.
57
MCCANN APUD NAPOLITANO, Marcos. Op. cit., p. 23
21
Introduo
que transitam em diferentes espaos sociais, Cartola destacou-se desde os anos 30, ao lado
de Ismael Silva e Paulo da Portela, outros pioneiros, como mediador entre o mundo
letrado e o mundo do samba, em particular, e da cultura popular oral, como um todo58.
58
NAPOLITANO, Marcos. Op. citada, p. 27
59
RAMOS, Nuno. Rugas, sobre Nelson Cavaquinho. In: Serrote, So Paulo: No. 1, maro, 2009, pp. 8-21
60
Idem, idem, p. 18
61
Idem, idem, p. 18
22
Introduo
ocorreu, pois essa msica regional urbana carioca tornou-se, j na dcada de 1940, um dos
smbolos da identidade nacional62.
62
MORAES, Jos Geraldo Vinci de, Op. citada, p. 288-289
63
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. A inocncia perdida: cinema, televiso, fico, documentrio. 2008
64
Idem, ibidem, p. 92
65
Idem, ibidem, p. 99
23
Introduo
24
CAPTULO 1
66
ADRIANO, Carlos. Julio Bressane ou pontos luminosos no cu do cinema. In: VOROBOW, Bernardo,
ADRIANO, Carlos (org.). Julio Bressane: cinepotica. 1995
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
PARTE 1
Inicialmente, vamos situar o filme de Carlos Adriano em relao aos
seguintes aspectos: contexto de produo e matrizes estticas com as quais dialoga, em
especial no campo do cinema experimental (seu lugar de escrita); sua viso acerca da
questo biogrfica; o lugar que o personagem Vassourinha (no) ocupa na msica
brasileira; a principal concepo de histria com que a obra dialoga; a importncia do
processo de pesquisa na definio da forma flmica; as marcas ensasticas presentes.
67
Ficha tcnica: http://www.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/#. Acesso em 17/07/2010. Dados
complementares obtidos em entrevista com o autor.
68
Sobre a questo da descoberta dos fotogramas que seriam os primeiros do cinema brasileiro ver SOUZA,
Jos Incio de Melo. Descoberto o primeiro filme brasileiro. Revista USP, n. 19, p. 171-3, jul.1993-
jan.1994. Acesso em 17/07/2010
26
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
com fatores distintivos entre elas: ambas tm componentes de cinema estrutural, mas em A
voz e o vazio eles fazem apenas uma amarrao mais geral do filme, enquanto
Remanescncias todo articulado por esse vis formal; ambas so construdas a partir de
artefatos, de materiais de arquivo, mas o filme sobre Vassourinha , como ressalta o editor
de som Eduardo Santos Mendes69, um found footage sonoro, pois a reapropriao inerente
ao gnero se d tanto na banda sonora quanto na imagem, ao passo que no filme anterior a
articulao sobretudo rtmica, e o jogo est mais marcado pela composio de sries com
tratamento especfico sobre os fotogramas. De todo jeito, so os dois filmes que marcam a
adeso de Carlos Adriano s prticas de found footage.
69
Em depoimento concedido ao autor
70
CAIXETA, Ruben; GUIMARES, Csar. Pela distino entre fico e documentrio, provisoriamente. p.
39. Texto de introduo ao livro de Jean-Louis: COMOLLI, Ver e poder A inocncia perdida: cinema,
televiso, fico e documentrio, 2008.
71
Op. cit. p. 39
72
RAMOS, Maria Guiomar Pessoa de Almeida. O espao flmico sonoro em Arthur Omar. Dissertao de
mestrado, ECA/USP, 1995, p. 55.
27
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
73
OMAR APUD RAMOS, Guiomar. Op. cit., p. 20
74
RAMOS, Guiomar Op. cit., p. 23-24
75
Alternncia de fotogramas monocromticos com a matria do filme, de modo a produzir sensao similar
de uma luz estroboscpica
76
BURCH, Noel. Prxis do cinema, 2006, p. 149-163
28
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
msica da luz77. Direo que ganha corpo no filme anterior de Carlos Adriano,
Remanescncias (1997), sobre o qual falaremos adiante.
A meno a Abel Gance obriga a lembrar que dois dos trs autores cujas
obras constituram as principais referncias tericas utilizadas por Carlos Adriano em sua
dissertao de mestrado78, defendida em 2000, Noel Burch e David Bordwell (o terceiro
Adams Sitney), utilizam de forma recorrente a associao do cinema msica, pela via das
estruturas de composio, para estabelecer uma base analtica. Se, como diz o prprio
Adriano em depoimento para esta dissertao, no usou essas referncias de forma
consciente em A voz e o vazio, certo que, como ele tambm admite, eles estiveram
presentes, ao menos de forma inconsciente na construo do filme.
Burch, ainda nos anos 60, foi o primeiro a sistematizar a anlise de filmes
que fogem s regras clssicas da representao. Ao fazer um paralelo com os parmetros
musicais, (como durao, altura, ritmo, intensidade, timbre, silncio), identificou
parmetros cinematogrficos equivalentes que constituram a especificidade flmica
(raccords de espao e tempo, relaes entre espaos e planos, durao das imagens, ngulo
e altura da cmera, direo e velocidade do movimento, definio de foco, profundidade de
campo, contraste, tonalidade etc.).
77
RAMOS, Guiomar. Op. cit., p. 13
78
ADRIANO, Carlos. Um cinema paramtrico-estrutural Existncia e incidncia no cinema brasileiro.
Dissertao de mestrado, ECA/USP, 2000
79
Idem. ibidem, p. 13
29
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
80
Idem, ibidem, p. 14
81
BOURDIEU, Pierre. A iluso biogrfica. In: Amado, Janana; Ferreira, Marieta de Moraes. Usos e abusos
da histria oral, 2006.
82
VOROBOW, Bernardo; ADRIANO, Carlos (Org.). Julio Bressane: cinepotica, 1995.
30
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
83
FLETCHER APUD XAVIER, Ismail. Alegoria, Modernidade, Nacionalismo. Revista Novos Rumos,
1990, p52-53
84
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Histria e narrao em Walter Benjamin. 2009, p. 25. Sobre esse conceito,
Gagnebin cita textualmente o ensaio de Benjamin sobre a tarefa do tradutor: Pois, assim como os cacos
de um vaso, para poder se deixar juntar, precisam seguir-se nos mnimos detalhes, no entanto no igualar-
se, assim tambm deve a traduo, em vez de se tornar semelhante ao sentido do original, de maneira
amorosa e at no menor detalhe deve ela se conformar, na sua prpria lngua, maneira de querer dizer do
original, a fim de que ambas lnguas como caco se tornem reconhecveis enquanto frgamento de uma
lngua maior. BENJAMIN APUD GAGNEBIN. Op. citada, p. 25-26.
31
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
Sua formulao encontra eco na leitura que Hollis Frampton faz acerca da
histria do cinema. Em meios s tenses estticas dos anos 60 e 70, quando os cineastas do
campo experimental tentavam digerir as oposies entre a busca de uma essncia temporal
do filme e sua insero dentro de um processo histrico, como relata Nol Carroll87,
Frampton aponta sua prtica para o dilogo com o passado, abrindo uma porta para o
futuro, por meio da figura do meta-historiador flmico. Assim, diz Carroll: O cineasta
85
CESARINO Costa, Flvia. O primeiro cinema. 1995, p. 8
86
BORGES, Jorge Luis. Kafka e seus precursores. In: Outras inquisies. 2007, p. 130
87
CARROLL, Nol. A brief comment of Framptons notion of metahistory. Millennium Film Journal, Nova
York, n. 16/17/18, p. 200-205, fall-winter 1986-1987.
32
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
meta-histrico imagina como a histria do cinema deveria ter sido (de acordo com seus
critrios) e ento continua a faz-la. A conseqncia crucial desta manobra que ela situa
nossa tradio flmica, por estranho que parea, no futuro. Nossa tradio, numa forma de
dizer admitida e assumidamente desorientada, espera a inveno. O compromisso com a
descoberta da essncia ou dos axiomas do cinema no acarreta o encerramento do desfecho
do cinema, mas abre para futuros desenvolvimentos.
88
CESARINO COSTA, Flvia. Op. citada, p. 17
89
O historiador Tom Gunning aponta esse elo entre primeiro cinema e vanguarda em texto mencionado na
introduo deste trabalho (The cinema of attractions: Early film, its spectator and the avant-gard. In: Early
Film, ed. Thomas Elsaesser and Adam Barker, 1989)
90
GERVAISEAU, Henri. A identificao do lugar. In: O abrigo do tempo. Abordagens cinematogrficas da
passagem do tempo e do movimento na vida dos homens. Tese de doutorado, ECO/UFRJ, 2000, p. 81.
33
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
91
DELEUZE, Gilles. Cinema A imagem-movimento, 1985, p. 110
92
Idem, ibidem, p. 109-111
34
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
Esse arranjo complexo investe, nas suas ocorrncias formais mais radicais,
no exame de processos de percepo que se do em elaborados ensaios conceituais e
sensoriais. Ou, como caracteriza Bill Simon, citado no texto, na viso de que o filme
tanto uma obra de arte como um puzzle perceptivo, envolvendo o espectador na
experincia sensual de movimento, forma e cor, no desempenho de uma tarefa (solucionar
o quebra-cabea, resolver o enigma) e no ato da anlise (especulaes sobre como o filme
foi feito, compreenses referentes s qualidades ilusrias envolvidas)94.
35
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
linguagem. Linguagem enfatizada pela alegoria que, como lembra Xavier97, para Benjamin
corresponde, no reino do pensamento, ao lugar das runas no reino das coisas. Runas que
contm um depsito da temporalidade numa imagem (simultnea), apontando para um
processo de decomposio j realizado, de um lado, e para outros que esto por se
consumar, de outro.
97
XAVIER, Ismail. Alegoria, modernidade, Nacionalismo. Novos Rumos, 1990, p. 62
98
Em MARTINEZ, Toms Eloy. O Cantor de Tango. SP: Companhia das Letras, 2004.
99
FERRETE, JL. Sem ttulo. In: Vassourinha. SP: Continental, 1976, LP.
36
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
filme; que foi adepto do que se convencionou chamar de samba de breque, gnero marcado
por volteios rtmicos e entonao de canto falado100, tendo como dolos Luiz Barbosa e
Wilson Batista; que j em 1935, aos 12 anos, foi capa da revista A Carioca, como atesta
tambm a imagem de um exemplar presente no filme; que gravou seu primeiro 78 rpm em
1941 e o sexto e ltimo em 1942 (registros tambm presentes na imagem de A voz e o vazio),
deixando registradas as 12 canes que mais tarde integrariam o LP de 1976 (transformado
em CD em 2002); que suas gravaes de Seu Librio (1941) e Emlia (1942) estiveram entre
as gravaes mais representativas daqueles anos, segundo concluem de Zuza Homem de
Mello e Jairo Severiano101; e, finalmente, que morreu doente aos 19 anos em 1942.
100
O samba de breque tambm comumente chamado de sincopado e associado figura de Moreira da
Silva, que, digamos, ajudou a acentuar suas caractersticas, com paradas mais pronunciadas e um cantar
mais prximo das formas coloquiais. Mas o pesquisador Carlos Sandroni, em seu livro Feitio Decente
Transformaes do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), mostra que a ideia associada desde Mario de
Andrade sncope ou sncopa (padro rtmico em que um som articulado na parte fraca do tempo ou
compasso, alongando-se na parte forte seguinte, segundo o Houaiss) fruto, na verdade, de uma leitura
arrevesada desse fenmeno musical. Isso porque essa leitura seria influenciada pelo padro musical
europeu, comtrico, e no com sua fonte originria, os ritmos africanos, contramtricos. Esses ritmos
contramtricos teriam se materializado nas Amricas pelo paradigma do tresillo, fundado menos na
regularidade mtrica que pauta a msica europia do que na pulsao rtmica.
101
SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A Cano no Tempo. 85 anos de msicas brasileiras, vol
1., 1901-1957. SP: Editora 34, 1998, pp. 202 e 214.
102
HELENA JR.., Alberto. Curta revive Vassourinha. Folha de S. Paulo, So Paulo, 21 ago. 1998. Caderno
Ilustrada, p. 13
37
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
legais por se tratar de um menor de idade que teria de trabalhar (como lembra Ferrete),
aps as 20h, horrio em que entravam os programas ao vivo na rdio paulista (at esse
horrio, discos gravados compunham a programao, ao contrrio do Rio de Janeiro, onde
os programas ao vivo ocupavam parte maior na grade).
103
EFEG, Jota. Figuras e Coisas da msica popular brasileira. RJ: Funarte, 2. edio, 2007, pp 147-148
104
Concedido ao autor em 9/5/2009
38
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
39
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
personagem era lacunar e, ao mesmo tempo, do expressivo rol de informao que havia
sobre ele em indcios materiais veio aps o processo de pesquisa. Mas a escolha de algum
que havia ficado margem da histria, que era um sambista paulista, preto e criana,
acrescida escolha de trabalhar com os artefatos remanescentes de sua trajetria, indicam
um sentido contrrio ao do historicismo que culmina na histria universal, que utiliza a
massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogneo e vazio107. Aderindo ao
sentido benjaminiano da histria (no totalmente, depois veremos por que), reconhece que
existem na histria ecos de vozes que emudeceram108, sados das vozes que escutamos,
que chegaram at ns.
40
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
sobre o tempo adensado entre eles e seus significados. Como escreve Deleuze, (...) para
Vertov, o fotograma no uma simples volta fotografia: se ele pertence ao cinema, por
ser o elemento gentico da imagem, ou o elemento diferencial do movimento 110. Vertov
que, como vimos, est nas origens do cinema de experimentao autoconsciente.
110
DELEUZE, Gilles. Op. cit., p. 109.
111
WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel, 2000.
112
Idem, ibidem, p. 35
41
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
um pensamento/ que forma/ uma forma/ que pensa, segundo a formulao de Godard113.
Um cinema no-identificado com a linearidade ou com uma histria teleolgica.
Nesse sentido, curioso notar que, medida que o autor foi perquirindo
mais intensamente a vida de seu personagem, principalmente depois que passou a ter em
mos o material resultante da pesquisa, a proposta do filme deixou de contemplar um
carter mais didtico para investir num cinema mais paramtrico e com componentes
estruturais, ainda que no de forte rigor formal.
113
Em Histoire(s) du Cinma (1988-1998, seo La Monnaie de LAbsolu)
114
BERGALA, Alaina Apud WIRNRICHTER, Antonio. Hacia um cine de ensayo. In: Desvia de lo real. El
cine de devoficcion, 2005, p. 89
115
ADRIANO, Carlos. Um cinema paramtrico-estrutural Existncia e incidncia no cinema brasileiro.
Dissertao de mestrado, ECA/USP, 2000
42
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
imagens que aparecem na tela ao mesmo tempo de sua emisso a completem ou faam
referncia a seu contedo. Com voz over ou depoimentos, o mais provvel que Carlos
Adriano fizesse uso em sentido equivalente, pelo que relata nos depoimentos prestados
para esta dissertao.
116
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I, 2003, p. 27
43
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
asa do jarro e Ponte e porta. Mas, diz Waizbort, se os conceitos matam as coisas,
poder-se-ia dizer que o ensaio simmeliano faz as coisas viverem (a moldura, a esttua etc.):
pois ele as v em movimento117.
Ao escrever sobre Ulysse, obra que tem como ponto de partida uma foto
feita nos anos 50 e os significados daquela imagem para as pessoas envolvidas no registro
(retratadas ou no), Consuelo Lins sublinha o modo como Varda extrai cinema de
imagens paradas atravs de uma montagem que nos faz ver o movimento, mostrando j
no incio dos anos 60 o quanto o cinema tem a ganhar associando-se a outros
procedimentos tcnicos119.
Lins recorre a Deleuze e sua anlise sobre a obra de Marcel Proust para
mostrar que o que essencial no cotejo com a obra tanto a de Varda como no Em busca
do tempo perdido o aprendizado, no a lembrana. Aprender nos diz Deleuze
considerar uma matria, um objeto, um ser como se emitissem signos a serem decifrados...
No existe aprendiz que no seja egiptlogo de alguma coisa121.
para esse universo que A voz e o vazio: a vez de Vassourinha acena. Tal
qual Bruno Cadogan, o narrador de O cantor de tango que vagueia pelas ruas de Buenos
Aires procurando as chaves para decifrar um labirinto, tentando colher indcios materiais
117
WAIZBORT, Leopodo. Op. cit., p. 51
118
LINS, Consuelo. A voz, o ensaio, o outro. Catlogo da Retrospectiva de Agns Varda. RJ, SP, Braslia:
CCBB, set. 2006
119
Idem, ibidem
120
Idem, ibidem
121
Idem, ibidem
44
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
de uma existncia, aqui o espectador que embarca num jogo de decifrao em que talvez
no consiga achar todas as peas que fechariam o quebra-cabea.
PARTE 2
ANLISE DE A VOZ E O VAZIO: A VEZ DE VASSOURINHA
Como diz Pierre Sorlin122 ao erigir um paradigma de anlise flmica para que
o cinema possa tornar-se fonte de olhar sobre a histria, preciso ter em conta que um filme
no nem uma histria nem uma duplicao da realidade fixada em celulose: uma mise en
scne social. H duas razes para isso: o carter de seleo implicado na tomada da imagem
e a posterior reorganizao dos elementos, que se materializar em uma retraduo
imaginria do objeto de origem. Esse processo de construo discursiva erigida pela
linguagem do cinema o que cabe deslindar. Como diz o autor, a tarefa do historiador
122
SORLIN, Pierre. Filme e ideologia. In: Sociologia del cine, 1985, pp. 169-206.
45
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
consiste em iluminar algumas das leis que regulam essa projeo. Isso porque o filme busca
estabelecer uma relao com o espectador, a quem procura seduzir, tornar cmplice. Para
isso, se vale de procedimentos inerentes ao campo, constituindo com o pblico e com a
sociedade um rol de prticas sociais. Estudar a mise en scne, ou o que mais comumente
chamamos de a construo, equivale a tratar de discernir qual estratgia social, que modelos
de classificao e de reclassificao atuam nos filmes123, conclui o autor.
123
Idem, ibidem p. 169-170
124
Idem, ibidem, p. 170. Para Sorlin, o termo tem sentido diverso daquele trabalhado por Marx, para quem a
ideologia est ligada ocultao de processos sociais que resultam em dominao. Sorlin escreve que a
ideologia no uma unidade coerente, e sim um conjunto de possibilidades de simbolizao concebveis
num dado momento em que toda a expresso ideolgica particular uma modalidade.
125
NICHOLS, Bill. Introduo ao documentrio, 2005.
126
Diversos autores, como Nicole Brenez, Pip Chodorov, Catherine Russell e William Wees, entre outros,
fazem exerccios de delimitao do found footage, ou criando sub-gneros ou distinguindo-o do filme de
arquivo, conforme o que foi relato na introduo deste trabalho. Como essa discusso no objeto central
desta dissertao, adotaremos aqui a perspectiva de tomar o found footage como o filme em que h a
manipulao deliberada do material utilizado, enquanto o filme de arquivo apenas o insere, como prova,
em meio narrativa.
46
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
127
VEYNE, Paul. Como se escreve a histria e Foucault revoluciona a histria, 2008, p. 18
47
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
Assim, raciocinar sobre o filme exige pens-lo, sob alguns aspectos, como
um contra-exemplo das prticas de arquivo e memria. Ao contrrio da imensa maioria dos
muitos filmes que tm sido feitos no Brasil com foco na histria da msica popular, A
voz e o vazio no recorre ao testemunho daqueles que viveram no tempo de seu
personagem ou que dele ouviram relatos feitos por quem o viveu. Essa possibilidade
chegou a ser cogitada, mas foi descartada aps a descoberta do conjunto de documentos
encontrados no processo de pesquisa.
Se, por um lado, Adriano foi ao encontro dos novos rumos da histria
contempornea ao escolher um personagem do campo popular e que, mesmo nesse campo,
estava relegado ao esquecimento, por outro, furtou-se ao uso comum de entremear
depoimentos e os documentos de arquivo, um como prova do outro.
128
SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memria e guinada subjetiva, 2007, p. 19
48
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
129
Idem, Ibidem, p. 44
130
BERNARDET, Jean-Claude. Os anos JK: como fala a histria?. In: Cineastas e imagens do povo, 2003,
p. 243-251.
49
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
tem como funo dirigir a imagem para a significao pretendida, limp-la de outras
possveis, tir-la de sua ambigidade131. Em adio a essas questes, h o problema das
origens dessas imagens: os cinejornais da poca. Prximos ao poder, traziam j
implicaes ideolgicas (como a nfase na presena de autoridades) difceis de apagar nos
usos posteriores.
131
Idem, ibidem, 247-248
132
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento: IN: Romano, Ruggiero (org.), Enciclopdia Einaudi,
Memria Histria, vol.1, 1984, p. 102
133
SARLO, Beatriz. Op. cit., p. 22
50
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
51
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
Este incio apenas prenuncia as diversas variaes que ainda sero utilizadas
no campo da imagem: as flicagens sero feitas contrastando os fotogramas com imagens
monocromticas de toda a paleta utilizada no filme; os fotogramas sero usados com
variadas molduras; sero espalhados pela tela (4 ou 9 numa mesma tela, intercalados em
funo do trabalho com a cor); a imagem aparecer como se estivesse sob o efeito de um
rudo ou interferncia, normalmente associada ao ritmo da msica; com riscas verticais,
lembrando uma persiana; uso de elementos anamorfticos diversos; com o fotograma
aproximado, a imagem ser trabalhada de forma a mostrar o entrelaamento de informao
52
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
53
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
Todo feito com imagens de arquivo, com dilogos ocasionais das cenas
registradas e uma trilha musical que d ambincia montagem (normalmente sugerindo
tenso), So Paulo, sinfonia e cacofonia cria pequenas histrias, sempre inconclusas, com
a juno de fragmentos de origens diversas. Gente andando pela cidade, movimentos de
ps, rostos em close, gente que procura um lugar, gente que observa a rua do alto de
prdios. O encadeamento de imagens pautado pelo ritmo por vezes parece contar uma
histria como se fossem vrias e, ao mesmo tempo, vrias como se fossem uma. Mas essas
histrias nunca se completam. So emendadas em outras e outras, numa sucesso de temas
os mais variados.
Num dado momento, a montagem encadeia uma cena de uma mulher que
dana com uma echarpe numa cobertura de prdio com a de um homem com uma espada
e, logo a seguir, passa a uma mulher que fecha o cap de um carro. o melhor exemplo de
estudo do movimento que o filme proporciona, articulando o que ocorre no interior do
plano com a imagem que o sucede.
54
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
ensastico. Como frisa Arlindo Machado em texto no qual cita o filme de Bernardet, trata-
se de um ensaio sobre o cinema, construdo em forma de cinema, um ensaio
verdadeiramente audiovisual, sem recurso a nenhum comentrio verbal.136
136
MACHADO, Arlindo. O filme-ensaio. In: Revista Intermdias.com. 2002. Disponvel em
http://www.intermidias.com/txt/ed56/Cinema_O%20filme-ensaio_Arlindo%20Machado2.pdf. Acesso em
31.08.2009, p. 22
55
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
56
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
57
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
138
SORLIN, Pierre. Los cuadros del anlisis. In: Sociologia del Cine. Mxico, Fondo de Cultura Econmica,
1985, pp. 129-168
58
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
2.3.1. O lado A
59
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
139
BENJAMIN, Walter. Op. Cit., p. 232
140
Montagem em que o mesmo trecho copiado e repetido em sequncia
60
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
repetida por algumas vezes durante cerca de 8 segundos: Ningum sabe (cuja continuao
na msica de origem seria: Ningum sabe igual a ela preparar o meu caf/No desfazendo
das outras, Emlia mulher/Papai do cu quem sabe, a falta que ela me faz).
61
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
142
BURCH, Noel. Prxis do cinema, 2006, p. 149
143
Idem, ibidem. p. 150
62
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
Quando o uso da flicagem reala a piscada que est na foto original, acentua
tambm um elemento caracterstico do primeiro cinema. Isso porque, nos filmes anteriores
constituio daquilo que depois viria a se caracterizar como o modelo narrativo clssico,
um ato recorrente era o que o historiador Tom Gunning chama de exibicionismo,
materializado nas freqentes olhadas que os atores do em direo cmera. Esta ao,
que mais tarde considerada um entrave iluso realista do cinema, aqui executada
enfaticamente, estabelecendo contato com a audincia. Dos comediantes que interpelam a
cmera gestualidade afetada e reverente dos prestidigitadores dos filmes de mgica, este
um cinema que mostra sua prpria visibilidade, disposto a romper o mundo ficcional
auto-suficiente e tentar chamar a ateno do espectador.145
Marcado pelo tipo de experincia visual que se tinha nas festas populares e
nas grandes feiras universais da passagem entre os sculos 19 e 20, esse cinema de atraes
dividia as atenes com vrios acontecimentos que ocorriam no mesmo espao. As formas
de exibio eram bem variadas, o que se estendia ordem dos rolos (quando havia mais de
um plano). No que diz respeito narrativa, trabalhava-se via de regra com enquadramentos
abertos, com ocorrncia de vrios focos de ateno. Como descreve Machado ao situar
esses ambientes e a reao posterior que sofreriam de outras camadas da populao, a
cultura oficial, sempre associada aos interditos, s restries e violncia sanadora, no
podia ver qualquer progresso nessas caretas e macaquices que remetiam sempre ao motivo
144
SITNEY, P. Adams. Structural film. IN: Visionary Film The american avant-garde, 1943-2000,p. 348
145
GUNNING APUD CESARINO Costa, Flvia. O primeiro cinema, 1995, p. 22
63
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
146
MACHADO, Arlindo. Pr-cinemas e ps-cinemas, 2008, p. 77.
64
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
at chegar numa charge do cantor. Outra panormica far o sentido inverso, de cima para
baixo, sobre outra notcia de jornal.
65
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
exclusivo da Record; de uma carta para a me; partituras; capas de disco; programas de
recitais e shows; as bolachas 78 rpm com algumas de suas gravaes. Alm disso,
aparecem os seguintes eptetos com que Vassourinha foi brindado pelos jornais da poca:
o chapu de palha paulista, o ban-ban-ban do chapu de palha, o fenmeno, o
cantor romntico, o pequeno do abafa.
Adriano trabalha esse parmetro de modo a sinalizar que o tempo dos meios
de comunicao assim como a matria por eles veiculada evanescente. o excesso
produzido pela imprensa e pelo prprio cinema que parece esvair-se na imagem. Temos
muita coisa disponvel ao mesmo tempo, lemos fragmentariamente, retemos pouco. E, se
assim, mais vale a construo de um jogo que priorize a experincia sensorial, o contato
com os parmetros propriamente cinematogrficos. Ou, como explicita o cineasta na
introduo de sua dissertao de mestrado: durao da imagem, ngulo e altura da
cmera, direo e velocidade do movimento, sentido dos raccords, composio, ponto de
corte, enunciao sonora etc.148. Em resumo, o trabalho com a especificidade flmica.
147
BURCH, Noel. Op. cit. p. 74-75
148
ADRIANO, Carlos. Op. citada, p. 7
66
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
Para finalizar a anlise deste segmento, preciso que se faam mais alguns
registros. O primeiro deles que a montagem dialoga com o ritmo do samba de breque em
pelo menos trs blocos. A partir de 17, entra uma imagem em que est escrito
Syntonize, que se desfoca e comea a ir e vir com o movimento do zoom, ritmado,
imagem esta logo sucedida por outra manchete de jornal da PR Bandeirante, que entra
flicando, assim como a foto inicial de Vassourinha, que vem logo depois. Aqui, as piscadas
e os movimentos so bem ritmados, no tempo da msica. Alm do que o Syntonize
combinado com o desfoque reala o veio irnico da narrativa. Logo frente, em 118,
uma das seqncias rtmicas mais bonitas do filme: enquanto correm os versos de Emlia
(Ningum sabe igual a ela preparar o meu caf), sucedem-se na tela nove planos
sucessivos, com apenas 4 imagens, em que Vassourinha aparece a cada momento em um
canto da tela, incluindo um rodopio em que d uma volta de 360 graus no quadro, aluso
ao movimento de um disco girando. No final do bloco, a associao feita por meio de um
efeito de distanciamento da cmera em relao ao objeto, parecendo um zoom out,
primeiro em uma foto de Vassourinha e um grupo de profissionais do rdio sentado na
lataria de um carro, depois com imagens dos discos contendo as msicas Seu Librio e
Juracy, num movimento que se articula com o looping sonoro do Sou eu, trecho de Seu
Librio. Nesse movimento, a imagem termina fechada na foto de Vassourinha, como que a
mostrar que o Seu Librio de que fala a msica, cuja letra tocada integralmente, o
prprio Vassourinha. Diz a letra:
67
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
Feito o registro, vale ressaltar mais uma vez o uso da ironia, nem sempre com
o sentido tradicional de dizer uma coisa significando outra, mas s vezes pela afirmao do
bvio. o que acontece quando a cmera fixa um pedao de notcia de jornal, rasgado, mas
em que se l claramente: Voc, Vassourinha, chegou aqui para cantar. E cantou. A frase,
categrica, soa como um resumo da pera de Vassourinha, a voz.
149
Seu Librio, composio de Alberto Ribeiro e Joo de Barro (Braguinha)
68
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
Logo aps essa ltima foto, o efeito de suspenso, at ento amenizado pelo
chiado que garantia uma continuidade sonora, exacerbado: o silncio passa a ser total,
com a imagem mostrando uma notcia de jornal, contra um fundo preto, com os dizeres:
Esto batendo. Si for commigo, diga que no estou. Foi o primeiro samba que eu cantei
150
Em depoimento concedido ao autor
151
Segundo o Dicionrio Houaiss
69
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
na Record. Aqui, em especial com a articulao do silncio, o ttulo da msica entra muito
mais com um sentido de ambigidade narrativa do que como informao da carreira.
Parece ser um ndice de fragmentao maior do discurso, que ser mais permeado pelas
rupturas e vazios, abrindo-se mais a interpretao do espectador.
2.3.3. O Lado B
Uma srie de rupturas acontecer ao longo do segmento, que tem por volta de
6 minutos e 37 segundos. Destacam-se dois signos, o da histria como uma trama, da qual
quanto mais nos aproximamos e mais vemos seus pontos de definio e suas lacunas; e o da
morte e do desconhecido, percebidos por meio da desmaterializao do som e da imagem.
Ambos esto patentes no trabalho com as texturas sonoras e da imagem. Se veem os pontos
reticulados da imagem, que a definem, e os jornais se rasgam, ao passo que sons sofrem ecos
e inverses, ficam entrecortados. Atravs desses recursos, fica claro o deslocamento dos
significantes para novos significados, com o valor de ndice do material histrico sendo
deslocado para novos sentidos, dados pela reapropriao esttica do material.
70
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
universo do filme, agora em sintonia com a coleo das imagens, em sua maior parte
enfocando a palavra escrita, por meio de notcias de jornal.
A essa seqncia se segue uma flicagem mais leve que a do incio do filme,
parecendo uma luz de baile, gostoso como o qu, como a msica evoca.
71
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
introduzir pela primeira vez os versos Foram 90 minutos que eu torci como um louco/At
ficar rouco, cujo final ser bastante usado depois, entra uma repetio de Me sinto bem,
Me sinto bem. Aqui, a afirmao pode ser lida em sentido inverso, irnico,
especialmente porque sucedida por um trecho em que a msica engasga (E n, E n),
com a frase no se completando. Casado com esse som que no decola, um letreiro avisa:
Ateno. A imagem sucedida por uma flicagem de Vassourinha garoto. O conjunto
prenuncia algo estranho, desconhecido, que est por vir.
72
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
momento, vemos a imagem bem prxima de um ouvido, com os pontos da retcula bem
visveis, e som reverberado da palavra lembrar, numa associao que evoca o passado
olvidado, esquecido, por meio de uma construo (ouvido, olvido) que remete poesia
concreta, influncia inicial do cineasta.
153
VEYNE, Paul. Op. cit., p. 18-19
154
VEYNE, Paul. Op. cit., p. 22
155
BENJAMIN, Walter. Passagens, 2009, p. 503
156
BARTHES, Roland. O discurso da histria. IN: O rumor da lngua, 2004, p. 172-173
73
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
O vazio da voz
74
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
parte baixa do quadro, no canto esquerdo, como se ele estivesse escutando algo (chega a
dar a sensao de que uma barriga de grvida).
Depois disso, passamos ao ltimo trecho em que o filme lida com materiais
de arquivo. Rompendo com o silncio da articulao anterior, h o uso de uma ironia que
gera dubiedade: uma foto j bastante vista de Vassourinha, sentado, sorrindo e com o dedo
indicador para cima, como se fizesse o nmero um, aparece entremeada com imagens
monocromticas pretas, em efeito de flicagem. Ao mesmo tempo, os versos cantados
geram a incerteza sobre seu destino: Amanh eu volto/porque hoje j lhe aturei demais.
O uso menos agressivo do efeito (mais lento e feito com os fotogramas em preto, como se
a imagem fosse se apagando), no entanto, sugere que esse amanh um futuro incerto. A
imagem de Vassourinha, com ar zombeteiro, reitera o esprito de um jogo em que
continuamos a no saber ao certo se ele morreu mesmo ou no.
Logo depois dos versos iniciais, sob um leve rudo, h uma notcia que fala
sobre boatos da morte de Vassourinha, que circulara um ms antes. Pouco depois, entra o
udio de msica gravada em sentido invertido, que se transforma numa espcie de rumor
sonoro. A notcia na tela d conta de que agora, um ms depois, a morte de Vassourinha foi
confirmada, mas, como o trecho est sem destaque, o tempo talvez no seja suficiente para
o espectador fazer a leitura completa.
Dessa notcia em diante, teremos cerca de dois minutos em que o som ser
composto por trechos de msica invertida entremeados com fragmentos legveis, porm
75
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
com uso diacrtico, dado pelo deslocamento de seu contexto original e pelo recorte
fragmentrio. Assim, o Gritei com um louco/At ficar rouco da msica ...E o juiz
apitou, de Antnio Almeida e J. Batista, que narra a experincia em uma partida de
futebol, transforma-se no desgaste at a perda definitiva da voz, voz que no caso de
Vassourinha significava a vida.
76
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
piscando (agora como capa da revista Carioca de 1935, casada com o fragmento Foi o que
o destino lhe deu), at chegarmos a consumao definitiva: Morreu o Vassourinha, diz
uma notcia de jornal, antecedida pelo fragmento Se no eu morro de dor.
158
PIGNATARI, Decio. Introduo teoria da informao. In: Informao, linguagem, comunicao. So
Paulo, Editora Cultrix, 1980, p. 17-18.
77
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
Cabe frisar que Machado cita como exemplo mximo de utilizao da voz
como elemento estrutural articulado imagem para realar essa dimenso onrica (ou no
realista), uma das obras presentes na anlise de Noel Burch sobre a relao de durao e
legibilidade: O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais. Em A voz e o vazio,
o rudo entra como uma estrutura de agresso, seja pela sua relao de durao e
(i)legibilidade, seja pela sua articulao com a flicagem, pulso escpica presente em mais
de um momento deste segmento.
159
MACHADO, Arlindo. Pr-cinemas & ps-cinemas, 1997. p. 49
160
MACHADO, Arlindo. Op. cit., p. 194
78
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
esttico mais natural, pois esta no faz seno dar consequncia a um conjunto de atitudes
conceituais, tcnicas e estticas que remonta s experincias no-narrativas ou no-ficcionais
do cinema de Ren Clair e Dziga Vertov no comeo do sculo e s invenes do
underground americano (Deren, Brakhage, Jacobs etc.) posteriormente161. Ou seja, aqueles
com quem a obra do prprio Adriano dialoga, como j vimos.
79
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
2.3.4. O monumento
164
Feito na moviola, mesa de montagem cinematogrfica, em que o processo se realiza de forma mecnica.
Hoje substituda pelas ilhas de edio digital, computadorizadas
165
RUSSELL, Catherine. Op. cit., 271-272
80
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
81
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
166
XAVIER, Ismail. Barravento: alienao versus identidade. In: Serto mar, 2007, p. 23-51
167
Idem, ibidem., p. 40
168
Convergncia maior pelo fato de o trecho utilizado em Cartola ser retirado do Brs Cubas (1985), de Julio
Bressane, cuja obra dialoga muito com a de Carlos Adriano.
82
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
Depois dessa tomada, uma outra faz uma panormica de baixo para cima,
terminando em uma esttua de um anjo que est de costas para a cmera. Suas asas, tal
qual s do Angelus Novus, de Paul Klee, esto abertas. Seu olhar, no entanto, est
direcionado para o outro lado. No se sabe se houve inteno do autor de fazer a
associao com o anjo da histria de Benjamin, mas no deixa de ser intrigante o fato de a
cmera deter-se na figura. No mnimo, uma associao bem-humorada.
O plano que se segue a este o final antes dos crditos. A cmera, fixa,
mostra o tmulo de Vassourinha, agora um pouco mais afastada. A distncia parece cessar
o movimento de perquirio ao objeto.
A ironia que perpassa todo o bloco, com destaque para a msica carnavalesca
e o ritmo da cmera em meio ao cemitrio, tem funo de acentuar a perspectiva em que
feita a construo discursiva do filme. Vale lembrar o que diz White sobre o tema
arquetpico da stira (o modo ficcional da ironia), oposto ao drama romanesco da redeno.
de fato um drama da disjuno, drama dominado pelo temor de que o homem
essencialmente cativo do mundo, e no seu senhor, e pelo reconhecimento de que, em ltima
anlise, a conscincia e a vontade humanas so sempre inadequadas para a tarefa de
sobrepujar em definitivo a fora obscura da morte, que o inimigo infatigvel do homem.
169
LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: ROMANO, Ruggiero (org.), Enciclopdia Einaudi,
Memria Histria. S.l.p., 1984, pp. 95-106. vol. 1.
83
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
170
Idem. Ibidem, p. 95
171
WAIZBORT, Leopoldo. Op. cit, p. 36.
172
GADDIS, John Lewis. Paisagens da Hitria. Como os historiadores mapeiam o passado, 2003, p. 95
84
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
173
MACHADO, Arlindo. Op. cit., p. 238
174
VEYNE, Paul. Op. cit., p. 42
175
BERGALA APUD WEIRNRICHTER, Antonio. Op. cit., p. 89
176
CARROLL, Noel. Op. cit., p. 204
85
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
177
Waizbort enfatiza a tendncia do ensaio a um movimento circular do pensamento, tendendo, inclusive,
auto-repetio (Op. cit., p. 66)
86
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
H um todo l, e ele , como diz Aristteles, anterior s partes 178. Ao que o prprio
Waizbort acrescenta: O tecido do ensaio entrelaa seus elementos com uma lgica que
no certa, mas sim hesitante e inesperada, aproximando e tomando distncia, mais
coordenando do que subordinando.
Vale ainda notar que o filme de Carlos Adriano trabalha com um conceito
caro aos poetas concretistas brasileiros, que esto na base de suas influncias estticas: a
contraposio entre redundncia e informao180. Ou seja, para haver comunicao,
preciso que haja uma dose de elementos reconhecveis para o receptor, de modo que ele
possa absorver as novidades propostas pela criao artstica. Assim, se foge narrativa
tradicional, permitindo leituras mltiplas da obra, ao mesmo tempo o filme trabalha com
elementos fartamente presentes no imaginrio, como o prprio samba, alm de alguns
cones, como veremos no tpico a seguir, que reforam o tipo de trabalho com as imagens
proposto pelo cinema found footage.
178
WAIZBORT, Op. cit., p. 67
179
ADRIANO, Carlos. Op. cit., p. 45
180
CAMPOS, Augusto. Informao e redundncia na msica popular. In: Balano da bossa e outras bossas,
1978, p. 179-188
87
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
181
Entende-se aqui essa funo como um dos trs nveis em que o processo sgnico poder ser estudado, ao
lado do sinttico e semntico, segundo Pignatari (Op. cit., p. 26). O nvel pragmtico aquele que
implica as relaes significantes com o intrprete, ou seja, com aquele que utiliza os signos.
182
GONZLEZ, Juan Pablo. Musicologia popular en Amrica Latina. Sntesis de sus logros, problemas y
desafios. In: Revista Musical Chilena, 195, pp. 38-64, 2001.
88
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
183
SORLIN, Pierre. Op. cit., p. 182
184
ZYRD, Michael. Op. cit., p. 49
89
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
2.5. Concluso
185
Idem, ibidem, p. 50
90
Captulo 1 A voz e o vazio: A vez de vassourinha, potica da ruptura, histria das runas
91
CAPTULO 2
186
RAMOS, Nuno. Rugas, sobre Nelson Cavaquinho. In: Serrote, No. 1, maro, 2009, p. 13
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
PARTE 1
Se A voz e o vazio, a vez de Vassourinha, de Carlos Adriano, analisado no
captulo anterior, circunscreve o ponto de partida do olhar sobre seu personagem quilo
que restou como indcio direto de sua existncia, Cartola, msica para os olhos (1998), de
Lrio Ferreira e Hilton Lacerda, buscar ancorar-se em um corpo de referncias bem mais
ampliado na construo da sua narrativa.
93
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
compra de direitos autorais das imagens utilizadas na obra. Segundo a Ancine, o filme foi
orado em R$ 1,65 milho, tendo captado, por meio das leis Roaunet (8313/91) e do
Audiovisual (8.695/93), R$ 1,33 milho, valor final da produo. A produtora carioca
Raccord Produes Artsticas e Cinematogrficas Ltda. foi a responsvel pela inscrio do
projeto na Ancine, com a Globo Filmes vindo posteriormente a tornar-se coprodutora.
187
Informaes dos produtores
188
Depoimento concedido ao autor em 14.10.2010, anexo nesta dissertao. Lrio Ferreira, tambm
contatado para um depoimento, precisou desmarc-lo em funo de gravaes para seu telefilme na srie
Somos1S, da TV Cultura. Posteriormente, no foi possvel agendar um novo encontro.
94
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
189
Idem
95
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
190
BIAGGIO, Jaime. Mestre Cartola vira documentrio nem to louco. O Globo, disponvel em acesso
em 17. dez. 2007 (http://oglobo.globo.com/jornal/suplementos/segundocaderno/141835425.asp)
191
BOWSER APUD CESARINO COSTA, Flvia, O primeiro cinema, 1995, p. 17
192
A esse respeito ver CHILVERS, Ian. Dicionrio Oxford de Arte, 2007, pg. 119 e Enciclopdia Ita
Cultural Artes Visuais, verbete Colagem.
193
RUSSELL, Catherine. Experimental Ethnography. The work of film in the age of video, 1999, p. 238-240.
A esse respeito, introduo desta dissertao
96
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
apenas retenhamos essa questo, qual voltaremos mais frente, na anlise do primeiro
segmento do filme.
Uma referncia citada por Lacerda e que aparece de forma bem clara no
filme o livro Mate-me, por favor (Please kill me, 1996), histria do movimento punk
contada pelos jornalistas Gillian McCain e Legs McNeil194. Lanado no Brasil em 1997, o
livro uma costura narrativa com textos diversos: entrevistas realizadas pelos autores,
entrevistas de outras fontes e pocas, retiradas de jornais, revistas, dirios, antologias,
livros e algumas ento inditas. O fator que marca a narrativa e que foi apropriado em
Cartola a invisibilidade do narrador: os depoimentos so colados um aps o outro, sem
que haja qualquer movimento de enunciao dos jornalistas, responsveis pela seleo e
encadeamento dos fragmentos. O leitor l apenas os nomes das personagens cujos
depoimentos vo sucedendo uns aos outros.
No que diz respeito a outras referncias, que aparecem de forma mais fluda
no filme, podemos citar o dilogo com o cinema experimental ou de inveno, que se
traduz na presena do chamado cinema marginal brasileiro, representado por Julio
Bressane. E no s pelo fato de a obra de Bressane estar presente no filme, como pela
articulao inicial que, como dissemos, liga Cartola a Brs Cubas (Machado de Assis) e
sinaliza um lugar de enunciao.
194
MCNEIL, Legs; MCCAIN, Gillian. Mate-me por favor. Uma histria sem censura do Punk, 2010
195
NICHOLS, Bill. Introduo ao documentrio, 2005, p. 143
97
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
98
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
a ele pudesse agregar aqueles que, antes do cinema, so amantes da msica, em especial a
msica popular brasileira. Dessa forma, na busca pelo modo de narrar, os autores no se
fixaram nas interdies estticas que eram discutidas no mbito da produo documental
durante o perodo de sua realizao. Assim, no viram motivo para no apoiar-se no uso de
testemunhos daqueles que conviveram com o compositor ou que estudaram e analisaram
sua obra e o samba de maneira geral, casos do jornalista Srgio Cabral e do antroplogo
Hermano Vianna (o primeiro tambm conviva de Cartola). E em constituir uma linha
cronolgica, que num primeiro momento pode ser pouco visvel pelo fato de as datas no
serem mencionadas, mas que, uma vez analisada a narrativa, expe claramente seu carter
linear. E essa amarrao no tempo, essa organizao da cronologia de uma vida, inspira-se
em grande parte em uma biografia198 do compositor, escrita em tom afetivo pelo jornalista
Arley Pereira e publicada pela primeira vez em 1998, na linha do panegrico. No por
acaso, Pereira um dos depoentes do filme, para o qual tambm cede imagens de seu
arquivo pessoal.
Desse ponto de vista, mesmo que sempre tenhamos em mente que o filme
no uma obra de historiador e sim de artista, possvel aproxim-lo noo de biografia
de contexto, um dos quatro tipos da classificao empreendida por Giovanni Levi na busca
de entendimento sobre as abordagens narrativas relativas a uma vida. Segundo o autor,
esse tipo de biografia busca um equilbrio entre aquilo que especfico do indivduo e as
foras que concorreram em sua poca e ambiente para conformar sua trajetria.
198
PEREIRA, Arley. Cartola Semente de amor sei que sou, desde nascena, 2008, 2. edio. A respeito
da questo biogrfica, ver discusso na introduo desta dissertao
99
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
199
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: Usos e abusos da histria oral, 2006, p. 176
200
SORLIN, Pierre. Televiso: outra inteligncia do passado. IN: Nvoa, Jorge (et. Al). Cinematgrafo um
olhar sobre a histria, 2009. p. 41-59
100
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Essa crnica ininterrupta, chancelada pelas diversas vozes que compe sua
narrativa, est muito presente em Cartola, msica para os olhos. A linha cronolgica da
trajetria do compositor est bem definida, apesar de s vezes esconder-se pelo fato de
haver poucas menes a datas e pelas imagens de representao muitas vezes no
corresponderem poca do fato representado no filme203. Exceo feita ao seu incio, com
a inverso narrativa inspirada em Machado de Assis, a linearidade da trajetria fica bem
clara na obra.
201
SORLIN, Pierre. Op. citada, p.43
202
CERTEAU, Michel de. A operao historiogrfica. IN: A escrita da histria, 2008, p. 101.
203
Exemplo disso a utilizao de cena de Aviso aos Navegantes (1950), de Watson Macedo, em que o
personagem de Oscarito, que viaja clandestinamente em um navio, se esconde na cama do homem
suspeito de ser um procurado espio. O dilogo usado como um texto de duplo sentido para ilustrar a
passagem que descreve a descoberta, pelo marido trado, do caso de Cartola com sua mulher, ocorrido por
volta de 1925.
101
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Rosenstone204, Cartola responde positivamente a vrias dessas marcas textuais, tais como a
mescla de elementos contraditrios, como fico e documentrio; a explicitao de um
ponto de vista, o uso de humor, pardia, absurdo; a utilizao de um conhecimento
fragmentrio ou potico, entre outros. Mas h questes, como a da multiplicidade de
pontos de vista, que se apresentam de forma dbia, ou outras, como a do desenvolvimento
cronolgico da histria, que esto inequivocamente do outro lado do muro.
De toda maneira, mesmo com essas tenses visveis entre formas mais
consagradas, acessveis a um pblico mais ampliado, e a busca de aproximar-se a um
cinema de inveno, o filme de Lrio Ferreira e Hilton Lacerda, traz, inegavelmente, uma
questo mais do que contempornea smula de debates sobre o discurso audiovisual. Ao
recorrer a uma srie de imagens que se foram deixando esconder nas margens dos sistemas
de representao, muitas delas restauradas pela produo do filme, os autores fizeram um
movimento de escavao sob as runas, de iluminao de um passado que ficou deriva
mesmo nos arquivos da maior emissora do pas. Se a abordagem diversa daquela
empreendida por Carlos Adriano e comentada no captulo anterior, no deixa de remeter
mesma questo.
Se, como diz Norbert Elias em sua biografia analtica acerca da obra e da
vida de Mozart206, uma das perguntas mais interessantes que resta sem resposta diz respeito
a conhecer quais caractersticas estruturais so responsveis por essa permanncia dos
objetos de arte no imaginrio coletivo ao longo tempo, seguramente a garantia de sua
204
ROSENSTONE Apud NOVA, Cristiane. Narrativas histricas e cinematogrficas. IN: Nvoa, Jorge (et.
Al). Cinematgrafo um olhar sobre a histria, 2009. p. 133-145
205
BERNARDET, Jean-Claude. Os anos JK: como fala a histria. IN: Cineastas e Imagens do Povo, 2003,
p. 243-258. Curiosamente, Cartola, msica para os olhos utiliza muitas das imagens da ditadura militar
que aparecem nos filmes de Tendler. Mas tenta trabalhar com seu sentido ao manipul-las, usando-as de
trs para frente ou em slow motion.
206
ELIAS, Nobert. Mozart, sociologia de um gnio, 1995, p. 52
102
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
materialidade, do acesso a ela, constitui-se em uma das premissas para que essa descoberta
possa acontecer.
PARTE 2
ANLISE DE CARTOLA, MSICA PARA OS OLHOS
Em linhas gerais, pode-se dizer que Cartola, msica para os olhos narra a
vida do compositor Angenor de Oliveira, nascido no Rio de Janeiro em 10 de novembro de
1908, partindo de seu velrio, em 1980, e deste diretamente para a infncia, seguindo
progressivamente at chegar novamente ao dia do enterro. Nesse percurso, utiliza-se de
103
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
udios de entrevistas;
udios de msicas;
Esse tipo de arranjo acaba por unir dois tipos de diviso estrutural que se
encontram na biografia desde o Renascimento, como indica Peter Burke no texto em que
207
TODOROV, Tzvetan. As categorias da narrativa literria. In: Anlise estrutural da narrativa, 2008, p. 223
104
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
analisa a ascenso do gnero nesse perodo 208. Essa diviso costumava se dar por temas
ou tpicos a maioria -, acolhendo algumas excees que privilegiavam a cronologia.
Pois bem: o filme avana por meio de temas e tpicos que se sucedem em uma linha
temporal. E muitos deles, como tambm se registra nas convenes tanto nas
renascentistas como no modelo cannico descrito por Andr Maurois j no sculo XX
com farto uso de anedotas 209.
208
BURKE, Peter. A inveno da biografia e o individualismo Renascentista. In: Revista Estudos Histricos,
vol. 10, n. 19, 1997, p. 83-98.
209
A respeito ver DOSSE, Franois. La apuesta biogrfica, p. 56. No modelo cannico que Maurois acredita
se impor aos bigrafos, h trs grandes regras gerais: a escrita em seqncia cronolgica, de forma a fazer
com que o leitor espere pelo desfecho da histria; a manuteno de certa proximidade de segurana em
relao personagem central, para que esta no vire pano de fundo da narrativa; o uso das anedotas, dos
detalhes, como meio de revelao da personalidade do biografado. Modelo de resto usado fartamente at
os dias correntes, em especial nas biografias escritas por jornalistas.
210
O incio das cenas do enterro de Cartola, primeiras imagens do filme aps os crditos iniciais (produtores,
apoiadores, patrocinadores) ocorre em 129; o fade in que marca o comeo do segundo segmento entra
aos 33.
105
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
apenas aquelas que mostram o Carnaval211 no comeo do sculo so anteriores aos anos
40. Todas as outras, exceo feita quelas de Carmen Miranda e Groucho Marx em
Copacabana (1947), so de 1950 em diante. Esse fato levou os autores a um uso mais
criativo do arquivo no segmento, com um tratamento mais alegrico dos significantes
utilizados para ilustrar as situaes propostas pela voz narrativa.
O segundo segmento do filme tem incio aps a passagem temporal dada pelo
fade out/fade in, simbolizando o sumio de Cartola e a tragdia do Maracan em 1950, seu
posterior reaparecimento e o otimismo da era Kubitschek. Comea com imagens de
Copacabana, retiradas de Cidade do Rio de Janeiro (1948), de Humberto Mauro, de onde
tambm saram as ltimas imagens do segmento anterior, antes do fade out. Essa passagem
marca tambm um deslocamento geogrfico, com o centro das atenes do Rio de Janeiro,
ainda capital da Repblica, migrando para a zona sul. Deslocamento este que iria marcar
tambm a msica, com o surgimento da bossa nova, tema contemplado pelo filme. Mas aqui,
o que comea a dar o tom a existncia de imagens de arquivo em movimento com a
presena do prprio Cartola. Logo no incio, o primeiro registro de que se tem notcia: Zica,
a mulher que foi busc-lo em seu retiro no bairro do Caju, trazendo-o de volta Mangueira,
ajeita sua gravata em uma ponta que o casal fez no filme Orfeu do Carnaval (ou Orfeu
Negro, 1959). Daqui por diante, a imagem de Cartola estar presente em filmes do Cinema
Novo e, cada vez mais, em diversos programas de televiso, muitos deles exclusivamente
dedicados ao compositor. Ou seja, este segundo segmento retrata tanto a redeno de Cartola
como a consagrao definitiva do compositor em seus ltimos anos de vida, principalmente
depois de gravar os primeiros discos com msicas de sua autoria e interpretao dele prprio,
211
As imagens so provenientes de O que foi o Carnaval de 1920 (1920), de Alberto Botelho, e de Memria
do Carnaval (1975), de Adhemar Gonzaga, filme este que j trabalha com imagens de arquivo.
106
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
j na dcada de 1970. Redeno esta que de certa forma explica a permanncia, ampliao e
conservao do acervo imagtico relativo ao compositor.
Antes de passar anlise dos segmentos do filme, vale registrar que a obra
como um todo est assentada em alguns elementos cuja identificao ajudar a entender o
seu carter geral. So eles: a cronologia; a sucesso de temas, passando do geral ao
particular e vice-versa; a perspectiva de obra da memria, em sintonia com grande parte da
produo escrita e cinematogrfica sobre o samba212; o uso de diversas vozes na
composio de um fio narrativo; a parada desta narrao, ou sua articulao, para que se
possam mostrar as msicas do compositor, numa perspectiva prxima s biografias de vida
212
Acerca da importncia da memria produzida pelos fs e partcipes da histria do samba, ver MORAES,
Jos Geraldo Vinci de. Entre a memria e a histria da msica popular. In: Histria e msica no Brasil,
2010.
107
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
e obra, consagradas no sculo XIX213 (ou numa verso contempornea destas); o uso de
variadas fontes visuais com carter ilustrativo.
213
DOSSE, Franois. La apuesta biogrfica, 2007, p. 79 em diante, em especial o conflito entre as vises de
Saint-Beuve e Proust.
214
CERTEAU, Michel de. Op. citada, p. 100.
108
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
off de uma voz conhecida no universo popular, mas no facilmente identificvel. o cantor
e compositor Jards Macal que recita o trecho inicial de Memrias Pstumas de Brs
Cubas, de Machado de Assis. Em meio a suas palavras, entra o ttulo, Cartola, sem o
subttulo. Logo a seguir, a prpria voz de Cartola que se ouve: Eu nasci.... a senha de
que est narrando a prpria vida, tal qual o personagem machadiano, senha acentuada
pela imagem de um homem com um microfone emitindo grande rudo. O homem logo sai
do quadro, permanecendo o microfone que percorre um esqueleto humano. Trata-se de
fragmento de Brs Cubas, de Jlio Bressane (1985), trecho final da cena inicial da
adaptao da obra de Machado. No original, a tomada colorida (p&b em Cartola) e o
microfone identificado como necrofone. O trecho utilizado aquele em que a imagem
causa mais estranhamento ao espectador, pelo fato de o registro da imagem estar sendo
feito de baixo para cima.
Toda esta articulao tem significado de suma importncia para o filme. Ela
busca situar qual o lugar de enunciao do discurso flmico. Um lugar, obviamente,
situado na esfera artstica, e no no discurso histrico, o que nos leva a uma maior abertura
para o dilogo com o prprio campo, diferente das regras mais rgidas institudas no
mbito da produo cientfica215. Esse tempo da enunciao ou da escritura realado em
especial pela articulao necrofone/trecho de Memrias Pstumas, em que um narrador
nos fala da prpria narrativa, salientando sua organizao.
215
Referimo-nos aqui ao lugar social da operao historiogrfica, e as interdies e assentimentos dele
derivados, conforme texto de CERTEAU, Michel, Op. citada, p. 77.
109
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Por fim, com relao a esse trecho inicial, vale destacar que j aqui, com a
mescla no identificada de vrias fontes audiovisuais, o filme faz uma opo clara por um
caminho de valorizao de seu prprio discurso. Isso porque, em vez de localizar o
espectador com a origem de cada um dos materiais com os quais vai erigindo esse mesmo
discurso (o que desviaria o olhar do todo flmico em direo leitura do nome de cada
obra mencionada), prefere ocult-la, proporcionando uma maior fluidez para a recepo.
Com isso, faz tambm com que cada um dos trechos mantenha-se como significante, mas
ganhe novo significado. bem verdade que muitas vezes os fragmentos serviro apenas
como ilustrao para a narrao que ouvimos, como o caso dos trechos de Memria do
Carnaval e O que foi o Carnaval de 1920. Ou seja, h uma meno da voz narrativa ao
carnaval antigo, e logo aparecem imagens que remetem poca. Mas ainda nestes casos as
imagens proporcionam ao espectador uma dimenso ldica prpria aos filmes do campo
110
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
111
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
216
SARLO, Beatriz. Tempo passado Cultura da memria e guinada subjetiva, 2007, p.24-25, ao comentar
a questo da narrao da experincia e o imbricamento de sentidos na juno de corpo e voz desse tipo de
narrao. No por acaso, os testemunhos de cunho analtico so aqueles que promovem a separao entre
corpo e voz nesse bloco.
112
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Mas aqui o jogo nos parece duplo: se busca essa credibilidade, a narrativa
textual, ao mesmo tempo, mostra que ela prpria constitui um texto novo, que organiza e
explica a cronologia e as relaes causais. Esse movimento de autonomizao do texto do
filme se acentuar no segundo segmento, quando ficar mais clara a organizao de um
novo todo, maior que a simples juno das partes.
O filme trabalha aqui pela primeira vez com dois smbolos visuais que
voltaro mais tarde tela: os emaranhados de fios eltricos, aqui a expressar os caminhos e
descaminhos da vida, suas complicaes; as bandeirinhas verde e rosa caractersticas da
Mangueira e do mundo do samba, aqui vinculadas ao sentido de festa, de compartilhamento,
ligado ao acolhimento dado ao compositor pela gente do lugar, sentido este reforado pela
msica Sala de Recepo (que aparece com imagens atuais, feitas para o filme), uma ode
217
SORLIN, Pierre. Op. citada, p. 51.
218
CERTEAU, Michel de. Op. citada, p. 101-102, acerca da crnica e do papel da citao no discurso
historiogrfico.
113
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
simplicidade e ao esprito despojado da gente do lugar (Pois ento saiba aqui no desejamos
mais nada/A noite, a lua prateada/Silenciosa, ouve nossas canes).
No caso de Cartola, ainda que o olhar final sobre a obra no nos permita v-
la como um texto alegrico em seu todo, ou como texto que encoraje uma leitura alegrica,
219
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Alegoria, morte, modernidade. In : Histria e narrao em Walter Benjamin,
So Paulo, Perspectiva, 2009, p. 31
220
XAVIER, Ismail. Alegoria, modernidade, nacionalismo. Revista Novos Rumos/IAP, ano 5, n. 16, 1990,
p. 16
114
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
115
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
elevador que sobe esto com a ateno fixada nas mulheres que passam na rua, como relata
o compositor. Ou seja, a tenso original desviada e esvaziada.
Como ltimo exemplo mais significativo desse tipo de uso, o filme recorre a
uma cena de Aviso dos Navegantes (1950), de Watson Macedo, para enfatizar um aspecto
trazido pela narrao. O marujo clandestino da chanchada da Atlntida, escondido sob os
lenis do espio estrangeiro que julga conversar com a mulher, faz caras e bocas ao ver
um revlver na mesa de cabeceira, como se representasse o prprio Cartola no filme de
agora, ameaado de ser descoberto pelo marido de sua amante e futura mulher. Aqui, o
221
Diretor de fotografia e cineasta nascido no Rio Grande do Norte que viveu muito tempo no Rio de
Janeiro, onde trabalhou nas TVs Tupi e Globo. Dirigiu mais de 10 filmes (documentrios de longa e curta
metragem), que retratam aspectos da cultura brasileira (ttulo de um de seus filmes, de 1977).
116
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
A narrativa recorre mais uma vez, ento, a Rio 40 Graus, de Nelson Pereira
dos Santos. Agora para uma representao mais direta: o trecho do filme em que, durante
um ensaio da escola Unidos do Cabuu, da qual fazem parte os protagonistas da histria,
um homem anuncia a chegada de visitantes ilustres: Ateno, acabam de chegar os
nossos amigos da gloriosa escola de samba Portela. A imagem se desloca direto para o
casal porta-bandeiras/mestre salas, com a cmera fazendo uma lenta grua que, em metade
do movimento, mostra as bandeirolas que enfeitam as ruas, marcando uma rima visual com
aquelas mostradas por ocasio do trecho em que a narrativa fala do abandono de Cartola na
117
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Essa fala pode ser considerada como uma chave para a viso que o filme
traz sobre o lugar do samba e sobre o marco fundador de sua tradio. Estamos diante do
eterno, que confronta o evanescente (o samba daquele determinado momento histrico, em
cotejo com o samba e as outras msicas de hoje). Alia-se, pela narrativa, uma noo de
samba e cultura genunos, nascidos no morro, reforados pela imagem das comunidades
(sob as bandeirolas) e da arte primitiva de Heitor dos Prazeres.
222
Sem dvida, a msica um elemento fundador, na sociedade urbana contempornea, das comunidades
imaginadas, tal qual descritas em ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas, 2005
118
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
roubou meu samba (1959, de Jos Carlos Burle). Outros compradores cumprem menos a
funo de antagonistas que a de mediadores, como o Mario Reis, de Mandarim (1995,
Jlio Bressane), que sobe o morro para prospectar as canes que lanar no rdio. Cartola
parte ativa nesse perodo da histria, pois foi um dos primeiros compositores a vender
sambas. Intercalada a cenas do filme, sua histria ganha a ilustrao mais direta do
primeiro segmento: os trs filmes conseguem oferecer uma boa ilustrao ao relato feito
por Cartola a um programa de TV.
Aps esse contraponto da venda dos sambas, um novo bloco vem fechar a
questo do discurso da nao e novamente retomar o contexto de poca. o trecho que
comea com imagens areas do arquivo de Pedro Lima e a msica Infeliz Sorte, de Francisco
Alves e Cartola, na voz do primeiro. A msica introduz o tema das derrocadas de Cartola e
do Brasil que ser abordada no bloco seguinte. Logo aps esse incio, as imagens de
Memria do Carnaval (1975), de Adhemar Gonzaga, so acompanhadas da voz over de
Hermano Vianna (e depois on) e de Nelson Nbrega, que faro o discurso sobre o
119
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Entre as imagens dos dois filmes, mais uma vez h espao para exibir a obra
de Cartola: aps ele falar que mandou seu recado na gravao com o maestro, entra
223
Material com perda de informaes visuais ou sonoras, em razo de a fita magntica estar amassada.
Segundo Hilton Lacerda, no depoimento j mencionado, as imagens copiadas para o filme eram
provenientes de uma cpia em U-Matic, armazenada pela TV Cultura. O original teria sido rodado em
16mm ou em 1 polegada, com direo de Fernando Faro, mesmo diretor de Ensaio e MPB Especial.
120
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Esse pndulo a que se refere Wisnik estaria marcado pela polaridade entre a
euforia atingida em 1950 com a campanha brasileira, em especial na vitria por 6 a 1
contra a Espanha, quando um coro de 150 mil vozes promoveu um dueto entre msica e
futebol ao cantar a marchinha carnavalesca Touradas em Madri (Alberto Ribeiro e Joo de
224
WISNIK. Jos Miguel. Veneno remdio O futebol e o Brasil. 2008, p. 249.
121
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Barro) e a profunda tristeza aps a derrota por 2 a 1 no jogo final contra o Uruguai, quando
o pas dava a vitria como certa e viu o sonho naufragar.
Pois bem, o filme utiliza essa memria coletiva que habita o imaginrio da
nao por meio de um material radiofnico de arquivo, para fazer um paralelo com a
trajetria de Cartola. Afinal, o compositor, depois de ajudar a criar a Mangueira, ser um
dos fundadores da tradio do samba carioca (e, por extenso, brasileiro), parecia agora
superado (musicalmente) pelo tempo e abandonado por sua gente. o declnio que, como
veremos, aguarda por uma ressurreio. E que permitir depois que Cartola ocupe um
lugar de referncia, o ponto de vista de quem j viveu, segundo a expresso de Nuno
Ramos acerca do lugar que o compositor e Nelson Cavaquinho ocupam no cenrio da
msica e da cultura popular brasileiras225.
Sim,
Deve haver o perdo
Para mim
Seno nem sei qual ser
O meu fim
Para ter uma companheira
At promessas fiz
Consegui um grande amor
Mas eu no fui feliz
E com raiva para os cus
225
RAMOS, Nuno. Rugas Sobre Nelson Cavaquinho. IN: Revista Serrote. So Paulo: n.1, p. 14, mar.
2009. Ramos lista trs marcas definidoras da obra e do lugar ocupados por Cartola e Nelson Cavaquinho
na msica brasileira: a abstrao, a sobriedade e a experincia (ou velhice).
122
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Os braos levantei
Blasfemei
Hoje todos so contra mim
Todos erram neste mundo
No h exceo
Quando voltam a realidade
Conseguem perdo
Porque que eu Senhor
Que errei pela vez primeira
Passo tantos dissabores
E luto contra a humanidade inteira
Sob esta msica comea uma longa transio espao-temporal que levar ao
segundo segmento do filme. As imagens de Cidade do Rio de Janeiro (1948),
documentrio de mdia-metragem de Humberto Mauro, com a cmera em um travelling
feito de dentro de um carro que deixa uma paisagem para trs, nos levar depois de um
longo trecho com tela escura, representando um perodo de trevas, ao outro lado do tnel.
O tnel da vida de Cartola, do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro, que viveria um
deslocamento em termos de espaos de representao da cultura musical da cidade (e do
pas), com o advento da bossa nova, a partir do final da dcada de 1950.
226
A esse respeito, ver HAOULI, Janete El. Mordendo a Prpria Cauda: Pea Radiofnica Alem e
Experimentao de Vanguarda in Mdia, Cultura, Comunicao. Org.: Anna Maria Balogh e outros,
2002.
123
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
124
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Educativa e Cultura, assim como alguns arquivos pessoais (Silvio Da-Rin e Nelson Motta)
e pblicos (Arquivo Nacional).
228
Aqui, vale registrar que as imagens televisivas dos anos 60 e mesmo 70 tm uma textura bem diferente
das registradas a partir do final dos anos 70 em diante. Isso porque muitas delas ainda eram captadas em
16mm, em pelcula cinematogrfica.
125
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
229
Segundo relato do compositor a CABRAL, Srgio. As escolas de samba. O qu, quem, como, quando e
por qu. 1974, p. 52
126
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
letra fala em regresso e na esperana de que a vida/amor termine bem (Apesar de todo
erro/Espero ainda/Que a festa do adeus/Seja a festa da vinda).
Como essa enunciao se estabelece para alm das vozes, estas acabam por
compor, quando casadas ou no com as imagens de quem fala, um todo maior, em que
aquilo que parece ser o uso de uma voz do depoente, ora acompanhado da imagem, ora
no, , na realidade, uma voz over articuladora do discurso, expositiva. Constri-se como
um ponto de vista do narrador, no ancorado em nenhuma das personagens mostradas.
Mesmo que essa voz over se constitua de forma bastante diferente do convencional o
narrador que se apresenta claramente acima do todo narrado ela d sinais de sua
existncia por meio da construo de uma linha cronolgica coerente, sustentada pelo texto
falado. Ou seja, a voz over se faz por meio das vozes variadas, se dissimula por meio
destas, ainda que por vezes elas tragam alguns choques de verses para os fatos explicados
(como no caso do primeiro samba ou maxixe? narrado no primeiro segmento).
230
Como diz Sorlin no artigo citado em que faz um paralelo entre televiso e cinema: Na telinha sempre
difcil saber exatamente no quem fala, mas quem o enunciador, qual a inteno que se dissimula atrs
das palavras pronunciadas se que h alguma. E, entretanto, as palavras so bem essenciais, a matria
fundamental da transmisso televisa. SORLIN, op. citada, p. 49.
127
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128
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129
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
231
A meno foi feita pelo prprio diretor ao autor desta dissertao, em material indito gravado no ano de
2004.
232
DELEUZE, Gilles. Cinema A imagem-movimento, 1983, p. 125
233
Idem, ibidem, p. 115
130
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
A seguir, sob a mesma msica, agora cantada por Nara Leo, voltamos ao
contexto histrico: imagens de arquivo de Braslia, utilizadas em Jango (1984, de Slvio
Tendler) mostram a nova capital (o Sol que nasce). Segue-se uma coleo de imagens de
gente na rua (de Heitor dos Prazeres), do presidente Jnio Quadros, do universo do samba,
evocando o bom momento de Cartola e do Brasil, at chegar a Nara Leo. Dela, a Cac
Diegues (seu marido nos anos 60) e experincia de Cartola como ator. Passando de uma
referncia a outra, o filme no se aprofunda no momento histrico. Restitui ao espectador,
pela abundncia e variedade de referncias imagticas, um clima de poca.
2.4.3. ZiCartola
131
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Mesmo oferecendo pouca instrumentao analtica para saber o quanto a estrutura social
definidora do indivduo ou o quanto este influencia modificaes nos modos de
organizao desta235, como no alerta que Norbert Elias faz sobre o papel de Mozart nas
relaes entre artistas e a corte no sculo XVIII236, possvel fazer algumas inferncias
acerca da posio de Cartola quela altura.
Esta ponte entre diferentes universos feita, por meio das imagens de Tom
Jobim cantando Chega de Saudade em O Tempo e o Som (1970, Bruno Barreto e Walter
Lima Jr.), e outras de Z Keti, Nelson Motta e Nara Leo, simbolizando os mundos da
235
Carncia esta plenamente justificada, dado que no se trata de objetivo enunciado pelo filme
236
ELIAS, Norbert. Op. citada, p.18-19
237
VIANNA, Hermano. O Mistrio do Samba. 1995, p. 41-42
238
A esse respeito, ver NAPOLITANO, Marcos. A sncope da ideias. A questo da tradio na msica
popular brasileira, 2007, p.24, 27, 33, 34, 62, 63, 74, 75, 77, 85, 103.
132
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Logo aps as primeiras imagens do ZiCartola (vemos o lugar onde foi o bar,
filmado no tempo da enunciao, porm em p&b, o que d uma sensao de registro
antigo, com sobreposio de ilustraes do cardpio), vm depoimentos de Zica e Cartola e
uma montagem de fotos de poca. Nas fotos, registradas com movimentos incertos e
variados (aproximaes, deslocamentos laterais, ora abertos, ora fechados), enfatizam-se as
pessoas que fizeram a histria do lugar. Muitos sambistas como Clementina de Jesus,
Nelson Cavaquinho, lton Medeiros, Hermnio Bello de Carvalho, Aracy de Almeida entre
tantos outros e jornalistas como Srgio Cabral. Na banda sonora, Cartola canta Peito
Vazio, evocando a saudade afogada no lcool.
133
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
invertido, de trs para frente, como o plano do disco de Mandarim, um claro signo de
retrocesso da tomada de poder pelos grupos que levaram a cabo o golpe de 1964.
134
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Darcy Ribeiro. O Porfrio Diaz (Paulo Autran) de Terra em Transe (1967, Glauber Rocha),
aparece carregando uma cruz em um carro, simbolizando no s a tomada do poder pelo
conservadorismo, como tambm a importncia do cinema novo, ratificada no take
seguinte, do prprio Glauber recebendo uma homenagem. Em meio a isso, aparecem
imagens carnavalescas que permeiam o filme todo -, como se mostrassem que acontea o
acontecer, h uma constante na vida nacional.
239
O smbolo , a alegoria significa; o primeiro faz fundir-se significante e significado, a segunda os
separa, diz TODOROV APUD GAGNEBIN, op. citada, p. 34
135
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
No caso de Pelo, que relembra desde o dia em que, bbado, falou com o
dono de gravadora sobre a premncia de gravar Cartola at o detalhe da cuca confundida
com um miado de gato por Marcus Pereira (tambm scio da gravadora), estamos diante
do excesso de informaes da histria biogrfica e anedtica. So as ncoras de uma
histria fraca, que necessitaria ser transportada para uma histria forte para ganhar
inteligibilidade, como diz Levi Strauss240. a crena na iluso biogrfica, no simbolismo
do detalhe como elemento definidor da histria241, no seu poder de restituir o real, em
especial se rememorados pelo testemunho de quem esteve diante dos fatos242.
240
STRAUSS APUD VEYNE, Paul. Como se escreve a histria, 2008, p. 26
241
LEVILLAIN, Phillipe. Os protagonistas: da biografia. IN: Por uma histria poltica, p. 153-154
242
Diz SARLO, Beatriz em obra j citada, p. 51: Num testemunho, jamais os detalhes devem parecer falsos,
porque o efeito de verdade depende deles, inclusive de sua acumulao e repetio.
136
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
romntico produzido pelo testemunho, nenhuma soma de detalhes consegue evitar que
uma histria fique restrita s interrogaes que lhe deram origem 243. Do ponto de vista do
conhecimento histrico que, reconhea-se, no o objetivo primeiro do filme situar a
gravao do disco dentro de uma possvel busca maior de registros, feitos naquele
momento, dos mais variados compositores que fizeram as origens do samba permitiria
saber at onde se situava a singularidade de Cartola. O filme no nos diz se esse era um
movimento desencadeado apenas por Pelo, ou se era uma tnica entre as produtoras
voltadas para a msica popular urbana naquela poca.
243
Idem, ibidem, p. 53
137
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
troca do veio trgico do teatro grego para o final feliz hollywoodiano, da Harmatia, a
falha trgica. No Sistema trgico e coercitivo de Aristteles 244, como Augusto Boal
batiza a potica aristotlica, a Harmatia a impureza desviante do comportamento do
heri, algo a ser purificado. No caso da tragdia, isso ocorre com a morte ou a desgraa
da personagem. O sistema seria coercitivo por gerar, de incio, uma empatia entre
personagem e espectador e, ao selar um destino ruim ao primeiro, funcionaria como
alerta preventivo para que o segundo no adotasse o comportamento moral e socialmente
desviante que levou o heri ao fracasso.
O bloco final se inicia com uma sucesso de falas e imagens que remetem
ao corpo de Cartola, o corpo que definha. Discorre-se sobre o nariz, as mos, mostra-se o
244
BOAL, Augusto. O Sistema Trgico e Coercitivo de Aristteles. IN: Teatro do Oprimido, 1980, p. 5-55
138
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
245
ZRYD, Michael, Found Footage Film as Discursive Metahistory: Craig Baldwin's Tribulation 99. The
Moving Image - Volume 3, Number 2, Fall 2003, p. 46-47
139
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
Assim, Cartola homenageia a Mangueira cantando Fiz por Voc o que pude, enquanto seus
amigos sambistas bebem seu cadver. Para relativizar o quociente de real contido na
narrativa, ainda a voz do compositor quem agradece e alerta: Quero deixar o meu abrao a
vocs todos, agradecer a lembrana do meu nome para bater um papo com vocs, para contar
algumas mentiras e algumas verdades. Dubiedade acentuada com a imagem dos diversos
culos de camel muitas possveis vises para a mesma histria - que fecham o filme.
140
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
2.6. Concluso
141
Captulo 2 Cartola, msica para os olhos: A crnica sob as imagens e depoimentos
142
CAPTULO 3
247
AUGUSTO, Srgio. Bressane e Brs Cubas. In: Julio Bressane, Cinepotica, p. 52
Captulo 3 - Ritmos da histria da msica no cinema
Seu par dialgico em Cartola poderia ser a cena em que a pardia de Aviso
aos Navegantes ao tpico caso do amante escondido no quarto do marido trado serve como
ilustrao do relacionamento do compositor com a amante/futura mulher. A ironia se
acentua aqui pelo fato de o personagem escondido, vivido por Oscarito no filme de Watson
Macedo, ser um mero gaiato, sem ligao nenhuma com a mulher do homem da cabine
onde est escondido, acentuando o deslocamento de sentido da cena utilizada.
144
Captulo 3 - Ritmos da histria da msica no cinema
J no caso de Cartola, msica para os olhos, o veio central est naquilo que
Ismail Xavier chama de incessante produo de interferncias entre mundos da cultura
(passado e presente, popular e erudito, cinema e literatura)249. Se em Brs Cubas Bressane
registra o dilogo do modernismo com a obra de Machado de Assis, com o personagem
248
ADRIANO, Carlos. Julio Bressane: trajetria ou pontos luminosos no cu do cinema. IN: VOROBOW,
Bernardo. ADRIANO, Carlos (org.). Julio Bressane. Cinepotica, 1995, p. 138, tambm para os trechos
entre aspas logo a seguir.
249
XAVIER APUD ADRIANO. Op. citada, p. 141
145
Captulo 3 - Ritmos da histria da msica no cinema
Lobo Neves, marido de Virglia, apresentando Tarsila Amaral, Patrcia Galvo, Anita
Malfati e Ceclia Meireles ao escritor, se em Mandarim convivem Villa-Lobos, Raphael
Rabello, Gal Costa/Carmen Miranda, Gil/Sinh, Chico/Noel, o filme de Lrio Ferreira e
Hilton Lacerda sagra laos entre Machado e Cartola, entre este e Paulinho da Viola,
cinema novo e bossa nova, compondo uma grande gama de aproximaes e cruzamentos,
estabelecendo afinidades. Bressane, no entanto, apresenta um todo bem mais disjuntivo e
faz uma leitura mais aberta da obra de Machado, na comparao com a organizao do
material de Ferreira e Lacerda em relao vida e trajetria de Cartola.
146
Captulo 3 - Ritmos da histria da msica no cinema
trajetria, mas para reler, de uma perspectiva contempornea, numa outra linguagem, esses
elementos remanescentes. Um personagem que sugere uma leitura mais fragmentria, mais
afastada da possibilidade de snteses maiores em relao ao universo do samba ou da nao.
250
Ver Coleo Revista da Msica Popular. Rio de Janeiro, 2006
251
Temos a um exemplo da cozinha jornalstica, ou o reaproveitamento de material j editado. As notas
sobre Seu Librio aparecem sob o mesmo ttulo (Estes so Raros), a primeira vez na edio 2, de nov. de
1954, e na segunda vez na edio 11, de nov/dez de 1955.
252
NAPOLITANO, Marcos. A sncope das ideias. A questo da tradio na msica popular brasileira,
2007, citada, p. 63
253
RAMOS, Nuno. Rugas, sobre Nelson Cavaquinho. In: Serrote, No. 1, maro, 2009, p. 13-18
147
Captulo 3 - Ritmos da histria da msica no cinema
148
Captulo 3 - Ritmos da histria da msica no cinema
254
Acerca da classificao dos filmes found footage, citada na introduo desta dissertao
149
Captulo 3 - Ritmos da histria da msica no cinema
150
Captulo 3 - Ritmos da histria da msica no cinema
255
A referncia analtica que pauta essa ideia a anlise de Jos Luiz Fiorin sobre o conceito de dialogismo
em Bakhtin. Ao comentar o primeiro conceito de dialogismo do autor russo, ele escreve: (...) um
discurso pode ser tanto o lugar de encontro de pontos de vista de locutores imediatos (por exemplo, num
bate-papo, numa admoestao a um filho), como de vises de mundo, de orientaes tericas, de
tendncias filosficas, etc. (por exemplo, na literatura, no editoriais, nos programas partidrios).
FIORIN, Jos Luiz. Introduo ao pensamento de Bakhtin, 2008, p. 27.
256
Idem, ibidem, p. 39.
151
Captulo 3 - Ritmos da histria da msica no cinema
152
Captulo 3 - Ritmos da histria da msica no cinema
Cartola, por sua vez, mesmo sinalizando desde o incio ter sido pensado
como discurso e, como tal, um texto consumado entre muitos outros possveis assenta-
se sobre o curso de uma narrativa biogrfica mais tradicional, com cronologia e um jogo de
vai e vem que ora explica o personagem por meio do contexto, ora o contexto por meio do
personagem. Como diz Franois Dosse257 na concluso de seu extenso trabalho sobre a
biografia, esta j no tem a iluso de enunciar a realidade e de, com isso, prover-lhe todo
o sentido adjacente existncia do biografado.
Mas, se por um lado o filme sobre Cartola, ao fazer e mostrar suas escolhas
ante as possibilidades figurativas para representar cenas e momentos da vida brasileira,
deixa aberta a porta para outras leituras, por outro tambm acaba aderindo tradio do
discurso de resgate da memria. Ao valorizar depoimentos e documentos audiovisuais que
retomam a leitura do samba como o signo autntico da nacionalidade e ao dizer, ao
mesmo tempo, que esse mesmo samba tornou-se um produto altamente perecvel, quando
antes era perene o filme parece colocar no passado o eixo comum de representao da
cultura do pas. Comea aberto, termina nostlgico.
Os olhares dos dois filmes, no entanto, apontam para algo que se vem
consolidando mais e mais nas ltimas duas ou trs dcadas: uma pulso de buscar na
histria da msica popular brasileira as chaves para refletir sobre o imaginrio do pas. O
fato de ambos recorrerem ao material de arquivo para diversificar as possibilidades de
representao dialoga fortemente com uma necessidade de romper com uma viso
hegemnica da cultura nacional. Afinal, cambiar os eixos do que se lembra pode ser
importante por, ao mesmo tempo, alterar a lgica do que se deixa enterrado nas
convenincias do esquecimento.
257
DOSSE, Franois. La apuesta biogrfica, 2007, p. 412
153
Captulo 3 - Ritmos da histria da msica no cinema
Sob esta tica, restam, entre muitas outras, questes que mereceriam maior
ateno e reflexo mais aprofundada em novas pesquisas. Entre elas, seleciono trs que me
parecem mais instigantes em termos de possibilidades futuras. A primeira diz respeito aos
arquivos e aos artefatos de memria em geral. Se h uma questo que Cartola, msica para
os olhos traz tona de forma mais evidente a de que, se vemos muito ali disposto, muitas
coisas mais poderiam integrar seu arranjo discursivo. Para ficarmos em duas hipteses,
mencionadas pelos autores: o curta metragem Chega de Demanda, realizado por Roberto
Moura em 1975, tendo o prprio Cartola como personagem central (com muitas cenas do
perodo em que foi contnuo do Ministrio da Indstria e Comrcio); e um filme do antigo
DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) rodado com o sambistas da Mangueira, do
final dos anos 30, sob encomenda do governo de Getlio Vargas, no localizado. Acerca
deste segundo, seria relevante identificar que tipo de construo o governo da poca fez
sobre os sambistas e o samba, que tentava incorporar como smbolo nacional. Mas alm
destas interdies quantas outras no se materializam cotidianamente em funo ou do
abandono de muitos arquivos, com sua conseqente deteriorao, ou pelo fato de instituies
privadas passarem a deter seus direitos e restringir, s vezes pela via econmica, usos e
conhecimento de sua existncia? O acesso pleno a esses arquivos e sua conservao a
garantia de que possam prestar escrita de histrias com ngulos e vises variadas.
258
CERTEAU, Michel de. A operao historiografia. IN: A escrita da histria, 2008, p. 108
259
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Histria e narrao em Walter Benjamin, 2009, p. 38-39.
154
Captulo 3 - Ritmos da histria da msica no cinema
Por fim, uma ltima dimenso intuda a partir de uma primeira observao
bastante genrica e talvez arbitrria, fruto talvez daquilo que Ismail Xavier aponta como o
pendor racionalizante que faz do crtico o maior alegorista260 , passando a enxergar
sentidos em demasia onde eles no existem. Esta aflio na busca de significao, no
entanto, parte de um comentrio do prprio autor: o de que, nos filmes narrativos, a questo
alegrica no se restringe ao plano dos agentes e aes da narrao, mas tambm resulta de
composies visuais que, em muitos casos, estabelecem um dilogo claro com certas
tradies iconogrficas, antigas e modernas261. A partir desse prisma, seria instigante tentar
traar um paralelo entre a forma como aparecem as bandeirinhas carnavalescas em suas
diversas aparies em Cartola e se, de alguma forma, elas poderiam dialogar com a obra
pictrica de Alfredo Volpi, instaurador de uma tradio que, talvez, esteja presente ainda que
de forma inconsciente na forma de enquadrar, ou de relacionar o ritmo da forma. Afinal,
como lembra Paulo Srgio Duarte, as assimetrias do pintor fazem com que a analogia com a
msica seja inevitvel, pois a obra de Volpi seria uma partitura de marcaes rtmicas262.
Um bom ponto de partida para tentar estabelecer relaes entre o vasto leque de referncias
visuais deste e de outros filmes e as tradies das quais elas decorrem.
Para finalizar, diria que este trabalho, aqui e ali, talvez tenha sido vtima da
construo de pontes demasiadas entre as obras analisadas e as diversas reas do
pensamento. Ou talvez em outras partes as tenha deixado de construir onde elas poderiam
estar presentes. Mas foi justamente esse processo de identificar amlgamas significativos o
mais rico deste percurso, pois algumas questes e campos com os quais aqui se dialoga,
como o cinema found footage e a historiografia da msica popular, pedem, neste momento, o
aprofundamento de pesquisas e reflexes para que sejam mais bem entendidos e conhecidos.
260
XAVIER, Ismail. Alegoria, Modernidade, Nacionalismo. 1990, p. 71.
261
XAVIER, Ismail. A alegoria histrica, 2005, p. 345.
262
KLABIN, Vanda (org.). 6 perguntas sobre Volpi um debate sobre arte brasileira, 2009, p. 77.
155
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162
Bibliografia
FILMES
STIOS DE INTERNET
163
Anexos
ANEXO 1
Sinopse: "A arte sincopada do original e obscuro sambista paulistano Vassourinha (1923-
1942), que gravou apenas seis discos 78 rpm". (FICMSP/9) "... Rara doena cessou seu
batuque, aos 19 anos, truncando breve e luminosa traetria. Ensaio sobre a percepo
audiovisual da msica e o sentido de documentao histrica, o filme articula na estrutura
potica de ritmos, sensaes e materiais, o processo do samba sincopado do cantor e uma
reflexo conceitual sobre o fenmeno imagem-som." ( TUDO VERDADE/9)
Termos geogrficos: SP
Produo:
Companhia(s) produtora(s): Tatu Filmes
Produo: Kahns, Cludio; Lins, Mika; Adriano, Carlos; Vorobow, Bernardo
Produo executiva: Vorobow, Bernardo; Kahns, Cludio; Adriano, Carlos
Argumento/roteiro:
Roteiro: Adriano, Carlos
Pesquisa: Adriano, Carlos; Vorobow, Bernardo
Fotografia:
Direo de fotografia: Reichenbach, Carlos
Cmera: Reichenbach, Carlos
Assistncia de cmera: Toledo, Rodrigo; Concilio, Sergio
Animao: Tassara, Marcello G.
164
Anexos
Som
Mixagem: Sasso, Jos Luiz
Montagem
Montagem: Amaral, Cristina
Montagem de som: Mendes, Eduardo Santos
Contedo examinado: S
Fontes utilizadas:
CB/Transcrio de letreiros
FICMSP/9
MinC/CMB
MSP/22
TUDO VERDADE/4
MinC/PDB
TUDO VERDADE/9
Observaes:
Contato: [email protected].
Os letreiros do filme especificam: "1 assistente de cmera": Rodrigo Toledo; "2
assistente de cmera": Sergio Concilio.
Outras fontes apontam: a produo da Carlos Adriano Produes Cinematogrficas.
165
Anexos
166
Anexos
ANEXO 2
FICHA TCNICA
Durao: 88 minutos
Ano de produo: 2006
Produo: Raccord Produes / Globo Filmes
Distribuidora: Riofilmes
Direo: Lrio Ferreira, Hilton Lacerda
Roteiro: Lrio Ferreira e Hilton Lacerda
Produo executiva: Cllia Bessa
Produo: Cllia Bessa e Hilton Kauffmann
Fotografia adicional: Aloysio Raolino
Direo de arte: Cludio do Amaral Peixoto
Figurino: R Nascimento
Edio: Mair Tavares, Rodrigo Lima e Lessandro Scrates
Pesquisa: Beth Formagini, Roberto Azoubel e Wanda Ribeiro
Figurino: R Nascimento
Som direto: Valria Ferro
Edio de som: Aurlio Dias
Mixagem: Roberto Leite e Aurlio Dias
Consultoria: Elton Medeiros
Direo de produo: Marcelo Ferrarini
Produo de finalizao: Bruno Vianna
Assistncia de Produo Executiva: Liliane Dias
167
Anexos
12) Quem roubou meu samba Antonio Carlos Burle, longa-metragem (fic), comdia musical,
1959 (ilustra venda de sambas)
13) O Mandarim Julio Bressane (fic), 1995
14) Rio Zona Norte Nelson Pereira dos Santos (fic), 1957
15) Nelson Cavaquinho Leon Hirszman (doc), curta-metragem, 1969
16) Escola de Samba Alegria de Viver Cac Diegues, Produo CPC da UNE (fic), episdio de
Cinco Vezes Favela, 1962
17) Retrato de Villa-Lobos Miguel Schneider (doc), curta-metragem, 1964
18) Folia Rodolfo Neder (doc), Cindia, curta-metragem, 1974
19) Copacabana Alfred Green (fic), 1947
20) O Brasil na Guerra: a FEB contra o Nazifascismo Jorge Ileli, INC (doc), curta-metragem,
1970
21) Cidade do Rio de Janeiro Humberto Mauro, INC, (doc), mdia-metragem, 1948
22) Orfeu Negro Marcel Camus (fic), 1959
23) Jango Silvio Tendler (doc), 1984
24) Os Anos JK Silvio Tendler (doc), 1980
25) O Tempo e o Som Bruno Barreto e Walter Lima Jr., INC, (doc), curta-metragem, 1970
26) Ganga Zumba Cac Diegues (fic), 1964
27) O Desafio Paulo Csar Sarraceni (fic), 1965
28) Os Marginais, episdio Papo Amarelo, de Moiss Kendler (fic), 1968
29) lbum de Msica Srgio Sanz (doc), curta-metragem DAC/MEC, 1974
30) Garota de Ipanema Leon Hirszman, Saga Filmes, (fic), 1967
31) Terra em Transe Glauber Rocha, (fic), 1967
32) Partideiros Carlos Tourinho, TVC Produes (doc)
33) Noitada de samba Carlos Tourinho, TVC Produes (doc)
34) Rio, Carnaval da Vida, Leon Hirszman, RF Farias/INC (doc), 1978
168
Anexos
Tempo Glauber
TV Cultura
Acervos de fotos:
Arley Pereira
Carlos Cachaa
Beth Carvalho
Joo Carlos Betezelli (Pelo)
MIS/RJ
Lcio Rangel Maria Lcia Rangel
Lcio Rangel MIS
Biblioteca Nacional
Srgio Cabral
Jornal do Brasil
O Globo
Arquivo Geral da Cidade
Arquivo Nacional Editora Abril
Funarte
Walter Firmo
169
Anexos
170
Anexos
ANEXO 3
171
Anexos
artistas brasileiros eleitos por ela para representar esse eixo curatorial. Ento o filme ficou sendo
exibido em looping ali. Tambm teve o festival do Rio, num programa-retrospectiva de meus
filmes.
Como foi o processo de pesquisa? O que te fez escolher esse tema, buscar especificamente o
Vassourinha? Era um ponto de partida teu a escolha de um personagem com o qual voc
fosse dialogar, em termos de imagem, s com imagens de arquivo, diferentes daquelas com
que voc vinha trabalhando? Como o filme se insere na tua obra?
o meu terceiro filme, logo depois do Remanescncias. Ele ganhou esse concurso do
Ministrio em 1997, mesmo ano em que o Remanescncias foi finalizado. Comeando pelo
final [da pergunta], e vendo retrospectivamente, acho que o filme se insere num projeto que eu
tenho, embora seja consciente, mas no deliberado, que seria trabalhar aspectos ou elementos ou
materiais desconhecidos ou ignorados da cultura brasileira. Digo consciente porque isso
reconhecido. Quem pegar minha filmografia a partir do terceiro filme assim: ou so os
primeiros fotogramas filmados no Brasil; ou um sambista paulista que gravou seis discos; ou
uma srie de lanterna mgica que o fotgrafo Augusto Milito de Azevedo fez; ou o suposto
nico filme rodado pelo Monteiro Lobato; ou so os filmes inacabados rodados pelo Dcio
Pignatari. Ento, vendo no conjunto existe uma coerncia e um trajeto que eu poderia dizer
assim: aspectos materiais ignorados ou esquecidos da cultura brasileira enquanto artefatos
mesmo, essa pesquisa de descoberta. Quando digo que no deliberado e no caso do
Vassourinha, que meu quarto filme e o segundo nesse vis no era uma coisa que falei
assim: vou agora procurar um tema que se encaixe nesse projeto. Obviamente que existia uma
questo de coerncia, mas no falei vou agora ficar procurando temas que se encaixem nisso.
J conhecia o Vassourinha por ser um admirador de sua obra, gostava de msica popular dos
anos 40 para trs, ento j o conhecia, e quando surgiu a oportunidade do edital, pensei em
escrever esse roteiro inclusive porque tinha aquela coisa aspectos da cultura brasileira
ento o tema se encaixava. E o tema em si me atraiu. Achava muito interessante pela mera
enunciao: um sambista que virou rodap de pgina ele era paulista, era preto, era criana,
era bem marginal tanto que alguns consultores como, por exemplo, o Raul Duarte, que o
contratou na Rdio Record (pelo menos quando eu falei com ele, ele j idoso) no tinha muito...
no respeito, mas no tinha muito interesse, pois era s um menino, havia gravado s seis
discos. Ento nessa coisa de artefatos ou temas esquecidos, ignorados ou desconhecidos o filme
se encaixava, e eu tinha essa atrao porque era uma coisa que sem querer avanar em coisas
estticas, mas o filme comea dizendo ningum sabe, com um looping do trecho do Emlia
ningum sabia nada mesmo. Tinham poucos, como por exemplo o Alberto Helena Jnior, que
foi uma grande fonte, um grande consultor, mas ningum sabia nada. Vassourinha eram trs,
quatro linhas, quando aparecia nas enciclopdias de msica popular. Ele era um assunto fora da
histria. Ento eu j com essa vontade de pesquisa, tinha essa coisa de ter estudado na USP, ter
desenvolvido o mestrado, fazia pesquisa na Cinemateca Brasileira, sempre tive esse lado de
172
Anexos
pesquisa muito forte, ento essa atrao pelo objeto no identificado ou pelo objeto difcil se fez
como um impulso mais ou menos natural, em funo de que eu tambm j conhecia o tema.
O filme tem a uma viso de histria, de historiografia, de buscar nas fendas aquilo que est
escondido, que permeia a obra, de ter explicaes e olhares diferentes daqueles consagrados.
Pode-se dizer isso?
Sim. E, no caso do Vassourinha, acho que o prprio ttulo resume isso: A voz e o vazio: a vez de
Vassourinha. Porque realmente era voz dele, que o que restou, alm de fiapos de informao,
e coisas que eu Bernardo acabamos achando recortes de jornal, era tudo muito pouco. O que
existia eram as doze gravaes. O resto era vazio, lacuna, lapso, ouvido no sentido de ouvir,
porque era msica, mas tambm olvido, porque era esquecimento. Ento uma ideia um
pouco a histria do Benjamin de histria como runa, como fragmento, como artefato. E uma
ideia que o Dcio Pignatari naquele ensaio sobre a minha obra geral, mas a partir do
Vassourinha, desenvolveu: a ideia da mmia, da imagem. Na verdade tem essa coisa de uma
outra histria, ou uma histria margem, ou uma histria esquecida, ou uma histria
incompleta, ou lacunar. O Vassourinha era um signo que reunia essa questo da msica
brasileira, anos 30, mas tambm tinha esses compostos meio marginais, de uma histria meio
esquecida, deliberadamente ou no, a questo do samba paulista. Que h um preconceito
[quanto ao samba paulista], mas se pode ver no filme que no s o Vassourinha cantou com as
irms Miranda, Aurora e Carmen, naqueles shows muito tpicos poca de fazer um show com
vrios artistas, cantou com Francisco Alves, com Orlando Silva. O Vassourinha tem um tipo de
canto falado que faz parte de uma constelao o primeiro foi Orlando Silva (no o dos anos 40
com a grande voz, mas com a voz pequena), Mario Reis, Joo Gilberto, h uma tradio. o
chamado samba-de-breque, com a entonao do canto falado. Ele era uma figura que, como
signo, no sentido semitico, no sentido de um ndice, de um rastro de histria, concentrava uma
srie de questes muito interessantes. E essa questo de histria como lacuna, como coisa no
completada, a voz e o vazio. E eu esperava que houvesse a vez dele, que o filme colocasse, e
acho que colocou um pouco, pois depois disso o disco foi relanado. Teve um projeto que no
aconteceu, por uma questo de produo, mas o Caetano Veloso, que j conhecia meu trabalho,
me procurou, pois ele e o Chico Buarque tinham um projeto de fazer um disco, no s de
relanar as msicas originais, como tambm de fazer um segundo disco como duplo com outras
interpretaes e a ideia era lanar o filme junto num DVD, seria uma caixa. Ou, ento quando
houvesse show do Caetano e do Chico, projetar o filme, mas a outras pessoas acabaram s
relanando em CD e a coisa acabou no acontecendo..... Quando o Caetano me perguntou, eu
disse: Claro, p, uma honra, no s por vocs resgatarem, o que vai ao encontro da ideia
inicial, e colocar o Vassourinha numa leitura contempornea de dois dos nossos maiores
compositores e cantores. Mas a acho que aquele coisa do [Charles] Gavin j devia estar
engatilhada com uma outra gravadora, sei que acabou no acontecendo.
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Anexos
pesquisador que tambm foi uma fonte grande para mim. Mas eu queria usar os discos 78
rotaes, que era como eles foram conhecidos. E a nica matriz a que eu pude ter acesso foi da
coleo do Caff. Peguei as seis bolachas e transcrevi digitalmente para uma fita DAT e todo
o material sonoro do filme. Todo o som do filme s tirado desses discos: chiado de disco,
agulha emperrando, no tem nenhum som alm.
Quando voc decidiu fazer o filme, o que voc sabia que existia de material, e o que voc foi
buscar a mais na pesquisa?
Eu s sabia que tinha as gravaes e, obviamente, que os discos 78 rpm eu poderia encontrar
com o Micio, porque ele tem a maior coleo de discos 78. Mas naquela altura foi uma
pesquisa de pr-produo de descobrir onde estavam os discos. E no encarte desse LP 33, que
so as 12 faixas, tinha um encarte com umas fotos e eu tinha tambm uma capa da revista
Carioca. S.
Foi ento na hora que voc viu o material que tinha em mos que definiu a linha do filme?
Cada filme um filme, cada filme um processo, cada filme um projeto, mas em geral eu
deixo que o material me diga o que eu devo fazer. Obviamente, quando voc faz um roteiro, tem
uma pesquisa, porque seno nem poderia apresentar no concurso, e muito menos ganhar. E,
segundo eu soube, foi um projeto vencedor por unanimidade, as pessoas gostaram muito no
Ministrio. Quem me falou isso foi a Beth Carmona, da TV Cultura, que uma fascinada por
samba, e conhece tudo. Eu nem conhecia ela, e ela me disse que achou o projeto brilhante.
Ento, obviamente que havia uma pesquisa antes, baseada na coisa dos discos e das canes que
eu conhecia, do encarte que eu conhecia, e de um texto ou outro que eu tinha guardado, lido. E
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Anexos
muito completando as lacunas da pequena biografia que aparecia nas notas de rodap da histria
da MPB. Mas depois que eu ganhei o projeto, a pude fazer o filme e comecei a pesquisa, a
coleta do material tambm permitiu estruturar o filme de um outro modo.
E no que ele diferente entre o que estava estruturado no projeto inicial e na realizao
final?
Ele menos didtico. No projeto original tinha at voz over, tinha algum contando a histria.
Mas no assim: nasceu Vassourinha e a aparece a casa, eu nunca faria isso. Mas tinha uma
ideia de como realmente no tinha nada, ningum sabia nada a ideia era um pouco assim
fazer um documentrio que explicasse. Mas depois com o que eu coletei e com o processo de
pesquisa, que foi muito rico por exemplo, a generosidade do Alberto Helena Jr., o conhecer
mitos como o Raul Duarte, o prprio Alberto Helena como um mito, no sentido de um
especialista de msica brasileira... Com a coleta do material eu me beneficiei no s do material
concreto a evidncia do artefato, a evidncia das lacunas sugere muita coisa, mas a ideia
muito clara de trabalhar a questo do vazio, apesar de que o filme e isso muito complexo
superabundante de informao. Quer dizer, posso dizer que, pelo menos naquela altura, tudo
que existia de Vassourinha est no filme, pois no s tem os lbuns do Helena, os lbuns do
irmo de criao, eu fiz pesquisa no arquivo da Folha. Vassourinha comeou a cantar em 1935 e
morreu em 1942. Eu peguei todos os jornais originais e vi um por um todos os dias. Fiz isso
com a coleo da Folha, com a coleo do Estado, da Revista Carioca e com outras revistas da
poca no me lembro o nome. Chegava em arquivos como a Biblioteca do Museu Segall e
pedia as revistas que abarcavam o perodo de 35 a 42. Pegava e olhava tudo, edio a edio.
Tenho em casa vrias coisas que xeroquei. Isso durou quase um ano. Porque para eu escrever o
projeto, o roteiro, tive de fazer uma pesquisa. O que era no muito complicado para preparar.
Para ter o acesso na Folha, no Estado eram jornais originais, pgina por pgina isso foi feito
depois que eu ganhei o concurso, para poder abordar os jornais, e falar olha eu tenho um
projeto que vai resultar num filme, ento tenho uma parceria que eu poderia propor, mas essa
parte da pesquisa mais assim era coisa de livro. Era assim pegar todas as histrias da msica
brasileira, ia a qualquer biblioteca e lia. E a via o verbete, que no era quase nada. Mas a
pesquisa reveladora que gerou a constelao da construo do filme foi depois do projeto
aprovado, que permitiu me dedicar full time a isso. E descobri coisas inesperadas, como, por
exemplo, chegar ao irmo de criao, que foi inacreditvel.
Voc faz uma opo deliberada pelo documento (jornal, certides etc.). Voc no busca
imagens de locais hoje, depoimentos ou jornais de poca que no tivessem que ver com o
Vassourinha. Voc fechou o foco no que havia de material em relao a ele. O que voc tinha
em mente ao fazer essa opo?
Isso foi depois do material coletado. Acho que no projeto original tinha uma contextualizao
do Vassourinha no panorama da msica brasileira. Embora quando eu apresento um programa,
um recorte em que o Vassourinha est do lado do Chico Alves, das irms Miranda, mostra
existe um contexto em que ele no era um sambista paulista solto no espao. Ele circulava, fazia
shows com o Slvio Caldas. De todo modo, o contexto est ali dado. Isso foi depois de todo o
material reunido. Na verdade, a reunio do material e o processo de coleta me ensinou muito e
me direcionou. Primeiro, a questo do suporte: artefatos, a runa, jornal rasgado, pginas do
175
Anexos
Qual?
Foi graas ao Carlos Reichenbach. Que inclusive eu no s descobri onde estava o tmulo,
como por meio disso, cheguei ao irmo de criao. Porque eu falei para o Bernardo Vorobow, o
produtor, que gostaria que o Carlo filmasse as cenas de locao, porque eu admiro o trabalho
dele como autor e como fotgrafo. E o Bernardo um amigo do Carlo desde o comeo de
carreira, inclusive no Lilian M, Relatrio Confidencial (1975), o Bernardo aparece numa cena
na SAC, que a Sala da Sociedade Amigos da Cinemateca, como espectador. O Bernardo fez
mostras do Carlo, eles tinham um grande contato, eram amigos. Quando o Bernardo falou para
o Carlo que a gente convidaria ele para fotografar, a descoberta: ele conta que, com a me,
numa data especfica, eles iam ao cemitrio dos protestantes visitar o tmulo da famlia e
sempre a me passava pelo tmulo do Vassourinha e deixava um ramalhete de flores ou uma
176
Anexos
vela. Ento, o Carlo nos disse onde o Vassourinha estava enterrado. A, pedimos o registro na
secretaria do cemitrio para chegar famlia ou em quem pagasse o tmulo. O que no era
muito fcil, porque como o tmulo foi doado pelo Moraes Sarmento, tinha uma coisa de
manuteno. De todo modo, isso s foi descoberto por uma coisa totalmente enviesada: por
acaso, quando o Carlo era criana acompanhava a me para visitar a famlia, e ela toda vez
fazia questo de passar pelo tmulo do Vassourinha. Por isso aquele final todo enviesado, os
corredores do cemitrio, vai na placa e volta. No s tem a ver com uma ressurreio do
Vassourinha , mas tem um pouco de espelhar esse processo muito rico, dinmico e inesperado.
Vassourinha foi feito logo aps Remanescncias, filme experimental realizado a partir dos
fotogramas primeiros do cinema brasileiro. O que o instigou a fazer um filme como
Vassourinha na seqncia deste, trabalhando sobre matriz diferente (jornais, registros
documentais em papel)? Quais eram suas preocupaes estticas de momento? Ou, de certa
forma, havia uma linha de continuidade j que se tratam, em um caso e outro, de documentos
histricos (os fotogramas e esses outros documentos)?
No vejo muita mudana. Cada tema pede um tratamento. Toda a ideia do filme como textura,
mas tem uma seqncia l pro meio antes da questo da morte em que a cmera vai entrando no
gro da fotografia, a pega o ouvido... tem toda uma questo de textura do jornal, da fotografia,
do gro, do p. Obviamente eu no poderia, em um filme sobre samba, ter um tratamento como
no Remanescncias. Mas existe um trabalho com a materialidade do suporte ou do artefato.
Tanto a questo do registro do som. A gente separou no s as msicas, mas a gente gravava
agulha caindo. A gente ia gravar, transcrever o disco 78, mas eu j comeava a gravar antes de a
agulha cair no disco, porque eu queria o toque da agulha no disco, no ligava o gravador DAT
s quando comeava a faixa. No! A agulha estava de p, j ligava, porque eu queria cair, tinha
o arranho e no final, quando circulava, tambm gravava. Ento, existia uma preocupao com o
artefato, com a materialidade da memria enquanto registro, o que sobrou. Tem movimentos de
cmera muito importantes, no s que fazem alegoria ou rima com a ideia de varre, vassoura,
vassourinha ou com relao ao que fala a cano, ou principalmente com ritmo. Porque a minha
ideia, mudando o diapaso do Remanescncias para esse, era a questo de fazer tambm um
filme sincopado enquanto montagem, enquanto ritmo. Ento, todas as quebras, todos os cortes,
panormicas que vai para a direita, sobe para a esquerda, zooms, tinha a ideia toda de explorar o
material. Existia uma ideia bem genrica que seria o seguinte: a primeira parte imagem fixa,
no sentido que, obviamente, tem movimento de cmera, tem a zoom, tem panormicas, por
letreiros que falavam coisas especficas, mas toda essa primeira parte so imagens fixas, no
sentido que so fotografias, imagens de jornal, documentos atestado de bito, recibo. E uma
outra parte que a coisa do cemitrio, em cores. Embora a primeira parte predominantemente
preto e branco existe, por exemplo, o logo do alfaiate colorido, o logo da Rede Record era
vermelho, mas majoritariamente era preto e branco, com imagem fixa. Quando vai para o
cemitrio, cor e movimento, no sentido de cmera filmada em locao. Ento estruturalmente
um filme superarticulado e construdo. Isso uma razo para embora eu no goste que meus
filmes sejam vistos em vdeo, eu passei uma cpia para voc no s porque uma pesquisa de
mestrado exige a seriedade da anlise de filmes, de assistir, rever mas esse tipo de filme... se
voc assistir uma vez, voc at consegue escrever uma resenha de jornal. O Jos Geraldo Couto
escreveu uma resenha vendo o filme em projeo, o Pignatari escreveu aquele ensaio tambm.
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Anexos
Ele muito bem construdo. Eu posso justificar cada corte. Tem toda uma construo no s de
blocos temticos, tipo aqui com a Aurora Miranda, aqui a morte, aqui ele est comeando,
mas tambm relaes internas, e de movimentos de cmera, e com diferentes direes, quando
tem o batuque no chapu e na calota do txi. E buscando sempre a materialidade. Embora seja
muito diferente do Remanescncias, existe um projeto materialista, estrutural, porque a
estrutura e a materialidade do registro histrico. O que me interessa a lacuna que existe, mas
tambm aquele registro que est ali. A coisa de aproximar no gro da fotografia ou no gro do
jornal, na seqncia da morte e da ressurreio do Vassourinha, vai um close ali num rasgo de
jornal, que faz uma aurola, ou por exemplo, tem logo depois do atestado de bito, tem um
plano muito rpido que um vu vu, como linguagem tcnica de cinema a ponta velada.
Era a filmagem de uma fotografia dele, mas como a gente estava filmando estava chegando
prximo do fim do chassis, ento o plano em si no ficou filmado corretamente, ficou s um
vu. E quando a gente estava na montagem, aquele vu era plasticamente muito bonito, porque
tem uma mancha azulada, uma fulgurao da imagem que seria a fotografia que a gente queria
filmar, mas aquilo tinha tudo a ver colocar do lado do atestado de bito, e numa seqncia da
morte. Ento, uma imagem que seria descartada, num processo de edio os vus, no cinema,
voc corta o plano depois que a cmera ligada e depois que a cmera para sempre tem um
rabicho, enquanto a cmera desliga, a grifa, sobra um vu, uma coisa assim. A gente teve, na
montagem a ideia do achado, que aquilo fosse significante.
178
Anexos
cara, com essas duas articulaes e esse t na hora do filme comear, sendo uma sobra, uma
gravao no-oficial, eu j coloco quase toda a questo que o filme vai trabalhar, que a
questo da lacuna, do resto. Voc pode ler esse incio como comeo de filme, um meta-filme,
que se apresenta como tal, (ta na hora do filme comear, vai comear o filme), mas depois que
voc v todo o filme, v o trabalho de estrutura, de histria, e tem esse dado, que essa gravao
de incio e de fim uma sobra de estdio, com toda a ideia que o filme trabalha lacuna e restos
de registro, voc cria uma coerncia de construo. Porque eu j estou logo no comeo dizendo
olha, estou operando com restos da histria, comea no com uma gravao do Vassourinha
como essas poucas que chegaram at ns, mas com uma gravao que se perdeu, que era um
colecionador que tinha. E era s aquilo que aparece no comeo e no fim, no tem mais nada.
Qual foi o teu mtodo de trabalho? Como voc concebeu som e imagem? Paralelamente?
Em termos de concepo paralelo. Em termos de execuo, primeiro foi montada a imagem com
as msicas. Porque tudo muito sincronizado, mesmo a questo do cemitrio, por exemplo, com
movimentos de cmera, com movimentos de compasso, cadncia, de ritmo, quebra, breque. Ento
foi montado imagem casada com msica. Depois, a parte de som, no sentido de rudos, como
chiado de disco, ou agulha arrastando no sulco, isso foi colocado depois. A menos que, em alguns
casos, rudo de agulha vira msica, o que tambm acontece. Chiado, ou estrutural. Tem uma hora,
que quando aparece um programa, a gente colocou uma mistura de rudo branco, que uma ideia
do chiado, mas tambm de rudo de esttica, que seria um equivalente no disco de um rudo
imemorial, porque s a esttica do disco trincando ali na agulha. Ento assim, a ideia de um
programa... muito importante pensar que toda a articulao conceitual. Tem uma ideia de
ritmo, que as coisas fluem e tem um dinamismo, uma graa de samba de breque, mas as questes
do rudo, por exemplo, so todas trabalhadas numa chave conceitual. Ento, por exemplo, num
programa aberto, a gente coloca um rudo de esttica e chiado de disco, que a ideia do
documento, um programa de um show, no existe registro disso. Como traduzir sonoramente?
Talvez um filme tradicional pegasse uma msica que estava no programa e pusesse de fundo a
msica tocando. Mas eu no iria fazer isso, pois na minha viso seria uma traio histrica. Por
uma coisa de fora, seria desvirtuar essa ideia de trabalhar lacuna e registro histrico. Ento era
mais interessante criar um dilogo. O que seria? Rudo de esttica e uma agulha engripando, d a
ideia do programa que existiu, mas ns no ouvimos mais.
Na leitura dos recortes de jornal, o olhar do espectador parece ser chamado a ler alguns
trechos, ser fisgado. Voc estudou uma forma de como dispor os recortes em relao ao todo
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Anexos
da imagem, pois parece que o olhar recai em uma parte especfica do recorte de jornal. Como
foi a construo disso?
Depois que coletamos e selecionamos todo o material, a ideia de trabalhar com aquela tenso entre
o vazio de informao e a saturao de informao. Porque o que a gente acabou encontrando era
muita coisa e o filme de certa forma reconstitui o perodo do Vassourinha sem explicar ou narrar.
Voc sabe que ele cantou com o Chico, que fazia shows com as irms Miranda, tem o repertrio
de msicas. Ento, a questo das notcias, a gente escolhia um trecho, s vezes com poucas frases,
a tela toda ocupada por palavras, mas a ideia era justamente trabalhar essa tenso, essa dialtica
entre o que se d para ler e o que no se d para ler. H uma expectativa de que, como um bom
poema, o filme sempre pedir uma reviso e nunca se esgotar. Acredito que cada vez que voc
voltar a ver o filme, voc vai ler outras coisas. Ento nesse caso em que h uma tela cheia de
palavras, numa primeira leitura, que tem o fluxo do filme e a durao, voc l aquilo.
Eventualmente numa outra leitura, voc vai explorar aquilo de uma outra forma. Por isso a recusa
da legenda. A ideia era trabalhar a questo de que no d para ler, mas que a informao est l.
Como essa dialtica de informao ofertada e informao recusada. Ela ofertada porque est
ali. Se voc assistir ao filme uma vez ou vrias, vai ler. Por outro lado, tem o tempo de leitura que
no permite ler tudo. Ento voc pega l: rfos de outubro, porque ele fez um show
beneficente, mas na verdade eu recortei de tal modo que era rfos de outubro, e virou uma
brincadeira com a revoluo de outubro. Ou uma outra coisa no final, que fala que uma das
ltimas coisas que ele teve prazer foi conhecer o Heitor dos Prazeres e queria mais vezes subir o
morro do Rio. Ento justamente operar nesse limite do que legvel, portanto a histria um
documento legvel, porque voc no tem tempo de ler. E a tem a ideia do tempo, da durao
plana, como algo no recupervel. Por mais que os documentos e a histria estejam l, no tem
muito como. runa, p, olvido. justamente trabalhar essa tenso de uma informao que
voc pode conhecer e outra que voc no consegue conhecer. Pelo menos no caso do cinema,
desde o Cidado Kane a questo bsica: a vida de um ser humano complexa demais para caber
em um filme, ento voc nunca vai conseguir apreender tudo. Por isso tambm eu recusei a coisa
de narrao, porque voc no consegue explicar, tem um dado do mistrio, que importante
preservar. Acho mais importante os documentos falarem, ou se recusarem a falar, do que uma voz,
uma voz divina direcionar o olhar.
Voc falou da grande linha divisria do filme, que a entrada da cor e do movimento. Como
voc estruturou a subdiviso da primeira parte?
Estruturei essas duas grandes divises macro por conta dessa questo: imagem imvel, preto e
branca, vida, e imagem colorida em movimento, morte. Que exatamente o contrrio, voc
associar morte ao que tem cor e movimento. Mas dentro do que seria essa parte pr-cemitrio,
tem toda uma articulao sobre no s apresentar o personagem, mas como ele se movia no
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Anexos
panorama. Mostra a carteira da previdncia, mostra o contrato, isso at bem linear nesse
sentido. Eu no disperso muito a informao. Eu mostro a carteira da previdncia, a voc abre,
v l o salrio dele. Em seguida, v quanto ele ganhou com cada disco, a tem um bloco com os
shows que ele fazia com as grandes personalidades. Mas na verdade eu no vejo muito assim
fechado como bloco, mais uma constelao de signos, e sempre essa ideia de incompletude, de
lacuna, de lapso. Embora seja possvel ler e aprender, mas ao mesmo tempo no d para
apreender. Existe essa dialtica que a todo momento eu estava querendo sabotar qualquer
possibilidade de um conhecimento pleno.
O fato de tentar chegar numa diviso uma busca de aproximar o olhar, depur-lo...
Esses sintagmas so importantes, ou como se diz na anlise de filme, voc cria as divises. Mas
como o filme no narrativo, dramtico, e como no tem comeo, meio e fim, no
necessariamente nessa ordem, a segmentao que voc vai fazer, para usar o jargo da anlise
de filme, importante voc criar, mas voc vai ver que se embaralha, tem uma questo de
permutao, de rima visual, que as vezes acho mais importante sublinhar do que uma coisa
linear. Embora haja essa coisa de que o filme termina com essa coisa de morte e ressurreio,
mas no no sentido teleolgico, de cronologia, e sim porque eu queria uma vingana sobre a
morte. Tanto que no comea mostrando quando ele nasceu, tanto que os documentos de escola
e foto dele na escola entram l no meio do filme, porque tinha uma cano que falava coisas
infantis que eu botei. Mas o fato de terminar com morte e ressurreio no como teleologia
que aponta para um final, mas era para subverter essa ideia como um museu morto. para falar
olha, possvel fazer uma histria viva, desde que os documentos sejam rearticulados, olhados
de uma outra forma. O filme tem uma ideia de pedagogia do olhar, essa coisa de voc ler e no
ler, o que possvel ler ou no ler, como ler uma imagem. A ideia de a msica falar uma msica
e a a imagem tem uma relao que s vezes segue e s vezes vai numa direo totalmente
oposta... um filme sonoro. bacana voc ouvir como trilha, porque um filme sonoramente
muito elaborado, enquanto construo sonora conceitual. Mas imagem e som esto
absolutamente articulados, ou por contradio ou por rima. No fundo, voltando quela coisa de
Remanescncias ou de outros filmes: acho que sempre tem essa ideia de como ver um filme, ou
no caso como ler a histria, ou no caso da msica brasileira, essas coisas ignoradas... O filme
tem essa ideia no de demonstrar que um artefato vivo, embora tenha sido esquecido,
olvidado, mas tambm tem uma ideia de na sua construo no que ele ensine mas apresenta
uma ideia da pedagogia da percepo, por exemplo, de escutar. A letra fala uma coisa, mas na
imagem voc v outra; ou tem um ritmo de uma cadncia, de um compasso, e de repente a
cmera faz outra coisa; ou por exemplo, tem um trabalho de textura, isso tem muito numa
seqncia que vai afunilando, aproximando cada vez mais e a textura da foto explode, e ela
explode num ouvido, e a no ouvido fala l uma coisa muito significativa (no me lembro se
no posso me lembrar, ou para me lembrar). Eu ponho o ouvido/olvido, a imagem que a da
audio de msica, com a ideia da palavra lembrar. Tem toda uma construo muito sofisticada.
um filme que, como um bom poema (tendo o poema como modelo de arte), que ele no se
esgota. Se eu tivesse feito um documentrio linear contando a histria do Vassourinha,
possivelmente a pessoa assistiria uma vez, saberia que ele comeou em 1935, morreu em 1942,
gravou seis discos... Agora como o filme, da forma que foi construdo, montado e articulado,
cria uma experincia sensorial. E sobre a questo de histria, que acho que o que justifica ele
181
Anexos
poder ser estudado e pensado, porque ele no se limitou a contar s a biografia do artista. Ele
uma reflexo sobre um fenmeno musical, esttico, histrico.
Samba sempre um evocador da representao da nao. At que ponto voc pensou nisso,
ainda que a contrapelo?
Acho que cria uma constelao na medida em que o Vassourinha est presente num cenrio numa
poca de ouro da MPB, estava fazendo programas com Aurora e Carmen, Orlando, Slvio Caldas,
gravando os grandes compositores da poca, mas ele era uma voz avanada. E a a pergunta :
ser que se ele no tivesse tido a trajetria truncada aos 19 anos porque ele tinha um sucesso
popular muito grande, tanto que antes de ser contratado pela rdio, ele j tinha sido capa da
Carioca. E pelos recortes sempre l o banbanban, o pequeno do abafa, ele era um sucesso. Tem
uma ideia sim de Brasil, mas o filme acaba colocando uma ideia de um Brasil que no muito
registrado, por um sentido de ausncia. Porque foi um cara superfamoso na poca dele, e
brutalmente esquecido. Morreu em 1942 e s nos anos 60 foi feito o primeiro disco de 33 rpm
com todas as 12 msicas. Ento, ao mesmo tempo que teve um sucesso enorme, fulminante, caiu
brutalmente no esquecimento. E ele no participa... no lembro quem me falou, talvez o Helena,
do Roberto Silva, que um cara que vem direto do Vassourinha. Algumas pessoas tipo Chico,
Caetano, o prprio Helena citam, mas quando se constri uma histria, tipo a linhagem evolutiva
da msica, o Vassourinha no est, ele ficou como um negrinho l, uma criana, esquecido. Mas
se de repente for colocado nessa linhagem, como canto falado ou samba de breque, samba
paulista, e essa passagem que ele fazia, Seu Librio, Joo de Barro, que um compositor do Rio,
ele era um sambista paulista, mas ele no gravava s coisas de So Paulo, mas tambm do Rio.
Essa coisa de Brasil algo que, na figura do Vassourinha, no se completa de algum modo, seja
pela morte trgica e abrupta de uma vida curta, ou porque ningum se preocupou em procurar uma
genealogia do samba de breque, ou samba falado. Pelo que a gente leu livros, enciclopdias
ningum coloca o Vassourinha numa linhagem muito clara.
Na Revista da Msica Popular, do Lcio Rangel, publicado nos anos 50, ele citado seis vezes
em 14 nmeros, sempre muito rapidamente, de passagem.
Isso tambm eu achei curioso, foi um mote para o filme, a questo do fragmento, histria como
fragmento, como runa. Essa ideia que a gente ficou superdesconfortvel de que todas
referncias oficiais na histria da msica eram ou nota de rodap ou histrias da msica em que
ele nem existia. A gente pesquisou em grandes pesquisadores, historiadores, e Vassourinha no
existia. Caras que tinham a grande fama de historiadores da msica, e para eles o Vassourinha
no era nem nota de rodap, nem como verbete, mesmo para os paulistas. Quando havia era
citao pontual, coisa curta. Ento essa tambm foi uma ideia propulsora, como uma vingana.
Voc pode comentar a seqncia final, o aspecto de ser uma perseguio, uma trajetria de
cognio...
Enquanto montvamos ficou muito claro que aquilo era uma alegoria de um percurso de
pesquisa, porque todo o processo de pesquisa foi muito rico e dinmico, enviesado, como um
risoma mesmo, ramificando, com imprevistos... E a ideia de no chegar ao tmulo, tanto que ele
demora, s no final do filme, a sim, de propsito, eu fico muito tempo na lpide parado, com as
formigas, com a coisa da terra. O que pedimos pro Carlo foi: olha, caminhos tortuosos, por
182
Anexos
diferentes ngulos, pela esquerda, pela direita, mas nunca chegar. Ele chega, rebate, volta. Era
uma ideia de no s essa questo da morte, da histria, de no explicar, a ideia da
impenetrabilidade. Todo filme antes tem tudo notcia, programa, foto, recibo, tudo mas
mesmo assim a gente no conhece esse cara, temos a msica dele, que o que sobrou. Ento a
ideia de no conseguir, e ao mesmo uma celebrao. Botar uma marchinha de carnaval no
cemitrio, superar um pouco tudo isso, mas tambm de no conseguir... no um conforto no
sentido de que se explicou ou de que ele foi resgatado, embora o filme resgate, pela repercusso
que teve, pelo filme em si. Mas um processo que no confortvel no sentido de dar
diagnstico, entroniz-lo. So diferentes caminhos que levam a uma nica coisa, mas essa coisa
refratria, voc no tem o domnio, s formiga na lpida. Ao mesmo tempo na lpide est
escrito Vassorinha, com erro de portugus, sem o U, a lpide est escrito o nome errado dele, a
tem aquela coisa do anjo que aponta, a cmera sobe. Ento toda essa questo da morte, de
cemitrio, marchinha de carnaval no cemitrio, movimentos de cmera que vo para o cu, para
a terra, enfim, uma forma de no conformar todo o trabalho a uma concluso que defina o
objeto. Acho que o Vassourinha continua como um mistrio, embora saibamos coisas dele. Com
o filme se sabe mais, embora o filme possa no ensinar muita coisa dele... no tem nenhuma voz
over dizendo quando, mas est l. Ningum fala quando ele morreu, mas est l o atestado de
bito. Sabe onde foi enterrado? Quanto ele ganhava? Todas as informaes bsicas esto ali,
mas no como um todo coerente, coerente enquanto facilidade, ensinando didaticamente. Mas
tem uma constelao de informaes, de fragmentos isso benjaminiano, mas enfim runa,
artefatos, fragmentos que compem uma histria. Acho que o filme uma espcie de alegoria
do papel do historiador, principalmente no sentido moderno, Hayden White, por exemplo, a
histria como fico, depois da teoria da nova histria, essa histria como construo de uma
narrativa, o historiador como um cara que no tem mais certeza de explicar aquela realidade
remota, mas como algum que interpreta, d sentido. E ele trabalha com materiais, artefatos,
fontes primrias no caso o disco, o recorte de jornal, a imprensa, o documento, e no mais
como uma histria que ficcionalizava isso tambm na histria do cinema tinha muito, que as
pessoas no usavam documentos primrios. Ento, de repente, o filme tambm traz uma nova
histria, embora isso no tenha sido feito como um projeto, tipo vou ilustrar, isso foi uma
coisa que eu percebi depois, com leituras, que o filme permite uma alegoria do papel do
historiador da nova histria. Algum que reconhece que o passado irrecupervel, que o
historiador algum que trabalha com runas, a histria por definio incompleta, o
documento uma questo que sempre volta, sempre passvel de leituras. Quer dizer, o
historiador dos anos 60 interpreta de um jeito, do ano 2000 vai interpretar de outro, porque cada
poca tem uma demanda. Nos anos 60, talvez fosse interessante resgatar o Vassourinha como
um sambista paulista, negro, criana, uma coisa ufanista. J no ano 2000 a ideia da runa, do
artefato, porque se tem uma outra viso de histria. O filme, nessa abertura polivocal dele, de
no fechar um caminho, oferece todas as informaes, est tudo ali. Mas o espectador que vai
fazer o seu uso, como se o espectador remontasse o filme na sua cabea. As coisas esto ali, as
relaes feitas de uma forma potica, no sentido de articulao formal de ritmo ou de ideias, no
sentido de criar uma constelao de relaes, mas nunca determinando, nunca fechando questo.
Isso uma coisa que procurei trabalhar muito: como o excesso de informao na tela no
satisfaz uma expectativa de compreenso fcil. O espectador completar e ler muito mais rica.
Na crtica do Z Geraldo tem uma coisa de que eu gostei, que a minha pedagogia de outra
183
Anexos
ordem, que a minha ambio extrema. uma pedagogia mais generosa, porque em vez de eu
tutelar o espectador, dizendo, teleguiando, eu dou uma informao, construo uma constelao,
mas no fecho a questo. Ele pode ler o que eu montei, no sentido de articulao, mas a
montagem uma combinao de porosidade permutacional, no aquela montagem de A + B =
AB. uma montagem que, em vez de apontar para um nico ponto, difrata. Acho que quando o
filme satura de informao, mas no amalgama de uma forma cimentada, dura, permite que a
pessoa veja o interstcio, a lacuna, o lapso, o que est faltando na histria.
At que ponto conseguiram ler o filme, compreender as diversas nuances, camadas que ele
contm?
De texto escrito, o do Dcio; o do Caetano, o ponto de vista dele, de msico, e como ele coloca
o filme na perspectiva do cinema brasileiro, como uma alegoria de histria do cinema; a resenha
do Jos Geraldo Couto pega o principal; o texto do Amir Labaki. O Helena lamentou no ter
podido escrever sobre o filme. Ele escreveu mais sobre o Vassourinha, mas era uma coisa de
jornal, tinha a matria dele e a resenha do Couto. Mas acho que a permanncia do filme, por
mais de 10 anos, por ele no se conformar e no se subordinar a uma ideia de filme de msica
brasileira, ou filme de memria brasileira, coisa formal, formol... Acho que por uma certa
insubordinao, como de colocar uma marchinha no cemitrio, por exemplo. Teve algum que
falou que teve uma coisa do Di, mas outro falou, no, mas mais que o Di, porque ali uma
outra histria. E tem uma coisa das reiteraes de movimento... Acho que o filme se presta a
esse tipo de leitura por causa da fatura dele, por causa da construo potica, que no facilita as
questes, mas busca um raciocnio potico, no racional ou silogstico ou teleolgico... ele no
afunila, ele expande.
184
Anexos
se colocar. Mas, de repente, nessa posio o espectador chega num ponto que ele tem uma
demanda quase de artista, porque ele deve ser criativo. Tem uma piada: uma vez eu vi uma
espectadora que falou assim, ah, mas o filme to pobre, quase no tem material, no tem
entrevista. Est tudo ali! Se, de repente, voc fizer uma entrevista com o Caetano, ou com o
Dcio, ou com o Z Geraldo Couto, ou com um espectador no annimo... Mas no tenho a
mnima iluso de que seja um filme fcil. Agora o filme circulou bastante, em festivais, no
circuito Unibanco. No sei te dizer se foi o meu filme mais popular, talvez por ser sobre um
msico popular, porque a coisa do samba. Mas, de todo modo, o tratamento impopular.
Acho que isso bacana, a coisa de criar um rudo, que uma coisa que o Caetano fala no texto.
Esse e o filme sobre o Rubens Lucchetti, que tambm um artista popular, mas o meu
tratamento no no sentido popular de ampliar o espectro. uma outra colocao, seja como
um objeto margem, um objeto esquecido. Essa questo do pblico sempre.... so os pblicos,
n? Acho que eu no me comunico no cinema com 100 espectadores, mas individualmente com
cada um deles, porque como o filme no dirige, cada um vai ter uma viso, no como filme
americano que dirige a emoo do espectador.
185
Anexos
ANEXO 4
Qual foi a origem do projeto? Era um filme de fico? Como se tornou documentrio?
Vou te dar uma viso geral. A produo demorou muito tempo. O projeto Cartola comeou em
1998, na primeira curadoria do Ita Cultural Rumos. Na verdade, no havia curadoria, voc no
mandava projetos, eles convidaram algumas pessoas. Eles partiram de um pressuposto: o olhar
estrangeiro dentro da produo nacional, relocalizar a produo cinematogrfica e o audiovisual
brasileiro com olhares distintos, chamar algum de Pernambuco, para um olhar sobre o Rio de
Janeiro, algum de Minas para o Amazonas. Na poca, havamos feito Baile Perfumado foi
em 97, na verdade, no 98 e Paulo Caldas e Lrio Ferreira foram convidados para ter esse
olhar sobre o Rio de Janeiro. A foi sugerido um sambista e falou-se de Cartola. Eu gostava
muito de Cartola e tinha escrito o roteiro de Baile Perfumado com eles, e fui convidado a
participar da execuo desse projeto. A execuo era a preparao de uma estrutura de roteiro a
ser entregue para o Ita Cultural. A ideia era que esse roteiro se desenvolvesse e o Ita cultural
funcionasse como uma chancela. Ele no dava dinheiro para a produo, apenas para executar
projetos. Logo que comeou, fui convidado e um pouco depois Paulo Caldas saiu, pois estava
fazendo O rap do pequeno prncipe. Cllia [Bessa], produtora do rap, foi convidada a participar
desse projeto, pois amos faz-lo pensando j na captao. Eu tinha uma ligao no grande
no sentido histrico com Cartola, mas por eu ser uma pessoa muito ligada msica de modo
geral. No sou pesquisador musical, no sou nacionalista, sou muito ecltico nesse sentido, mas
conheo bastante, tinha todos os discos de Cartola desde criana. Ento a ideia era como
desenvolver essa histria. Ento, sem tratar de produo, esse o primeiro passo. Depois que
fizemos esse primeiro tratamento para entregar para eles, um tratamento de que no ficou
basicamente nada, a gente entrou no projeto de captao de recurso para tentar transformar esse
filme em realidade. Bem diferente do que imaginvamos imaginvamos que uma figura como
Cartola e como o samba teria um pouco aval dos diretores, roteiristas, da produtora, que
fssemos ter alguma facilidade em relao a isso, mas no foi o que aconteceu. Foi
extremamente difcil.
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Anexos
para os clientes pegarem as putas, meio isca de puta ali dentro dos bares. Ele trabalhou muito a
vida inteira, nunca teve trabalho fixo, pois foi um cara que sempre pautou o tempo dele. Mas
isso tambm vinha cheio de um rano contemporneo, no sentido de que tinha sempre algum
interpretando Cartola. Basicamente Cartola era vrios personagens. Uma ideia moderninha, mas
meio chata.
O projeto, de incio era ficcional, ou isso era apenas uma tentativa de construir um
documentrio que variasse a linguagem?
Ele sempre foi um documentrio, mas era um documentrio que buscava essa forma nova, que
seria essa forma nova. E essa forma nova era uma coisa meio esprita, eles iam virar Cartola em
determinado momento, e interpretar aquela passagem da vida de Cartola. Tinha uma coisa de
fico misturada ali.
187
Anexos
Cartola... ciao, ele era o cozinheiro, eles no tinham muito mais o que fazer ali. quando eles
comeam a ter contato com o mundo suburbano, o pai dele vai trabalhar numa fbrica e depois,
por razes financeiras, ele [Cartola] vai morar na Mangueira. E a o que acontece? Quando ele
encontra Carlos Cachaa, que era mais velho que Cartola um tinha 12 anos, o outro 15 eles
se encontravam para beber, para jogar, para sair para a orgia. O sonho de todo jovem era ficar
velho, naquela poca. A me de Cartola ainda estava viva. Ela morre quando ele tinha 15 anos.
Era ela que defendia o filho, a o pai expulsa... eles vo embora e deixam ele no morro, ele fica
l abandonado. Ento, foi pegando esse links desses dois personagens e do comeo do sculo
que comeamos a redimensionar de que forma essa histria poderia ser contada. E outra coisa
que comeamos a perceber foi que no tnhamos como construir, a no ser de forma
narrativamente conservadora, se no for apelar somente para depoimentos dizendo o que
aconteceu nessa histria. Os bigrafos desse perodo so poucos, ao menos os de cultura
popular urbana. Ento dissemos vamos arrumar esse discurso, e esse discurso vai vir de onde?.
A a gente teve acesso s gravaes de Cartola no MIS, gravaes de programas, televiso, fitas
cassete, entrevistas, a partir disso a gente consegue contar a histria de Cartola com ele mesmo
narrando a histria da vida dele. Agora claro que, como qualquer personagem, a histria de
Cartola cheia de mentiras, inveno, ele subtrai fatos da vida dele, no conta alguns
momentos. Ento era voc ter aquela voz narrando, mas ao mesmo tempo ter outras vozes que
eram meio dissonantes, mais crveis em alguns momentos da vida dele. Mas como ilustrar essa
passagem tambm? A vem a grande virada que a gente d na narrativa do filme, dentro da
histria de produo, tambm porque comea a encarecer: estvamos lanando mo de uma
coisa muito importante, que era a tecnologia, no sentido de que poderamos conseguir materiais
e utilizar materiais que at ento no tnhamos usado. Descartamos a possibilidade de essa
tecnologia ser usada como efeito, para pasteurizar documento. O que a gente pensou foi: como a
gente vai usar eletronicamente o material que a gente tem? A gente trocou muito material por
restauro.
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Anexos
Cartola, quem est narrando, e de vez em quando voc cai em Cartola fazendo a ligao entre
eles. um pouco deixar o esprito ali flutuando, uma coisa tipo estou entendendo exatamente o
que vocs esto querendo dizer, ou no estou entendendo, talvez no, talvez sim, mas isso era
uma coisa muito proposital. Fizemos uma apresentao aqui na Folha Debate e quando acabou
uma estudiosa levantou dizendo que era um filme que no explicava nada sobre o personagem,
e queria saber se agora para assistir um documentrio as pessoas tinham de ir para uma
biblioteca depois. A foi timo, porque se a gente conseguisse que as pessoas fossem
biblioteca porque assistiram ao filme seria um ponto positivo. Mas isso era muito proposital, o
fato de as coisas serem jogadas com informaes que a gente tinha, por exemplo, quando a
gente comea com a ideia de Jards Macal lendo o incio de Memrias Pstumas de Brs
Cubas.
Podemos dizer que h quase a composio de uma genealogia prpria a, composta pelo
Machado, pelo Cartola, pelo Macal, pelo Bressane, por vocs?
Isso tudo foi meio que se colando, parecia um im de ideias que estavam confluindo naquele
momento. Isso era muito claro pra gente, assim como era claro que isso no ia ficar claro para
quem estivesse assistindo. De alguma forma, achamos que aquilo d resultado. como quando
voc escolhe um ritmo de montagem em que aquilo que voc pensou, o que usou como
referncia, talvez no salte aos olhos, o que talvez seja a melhor coisa da montagem, mas
algum vai saber que tem algum ritmo sendo empregado daquele jeito, tipo quando voc resolve
mergulhar com a imagem, sair com a imagem do outro lado, esse tempo que essa imagem
passa..., o Cartola, por exemplo, um filme de um morto, um filme psicografado, porque
comea com a morte de Cartola e termina com o enterro de Cartola, um mergulho durante a
morte de Cartola, ele morto meio que fazendo um exerccio de lembrana da vida dele,
machadiano nesse sentido. Alm disso, havia uma preocupao formal de como essas imagens
iam narrar de forma excitante, sem ser hermtica. Por que tambm poderia ser fcil se fssemos
meramente hermticos, tipo colocar qualquer imagem, vamos folclorizar esse sentido, uma
coisa meio tropicalesca, mas a gente tinha cuidado, para a gente faziam muito sentido aquelas
imagens. Tudo estava pautado por um acontecimento, por uma informao, por um momento
histrico. Conversas que a gente tinha sempre, algumas pessoas insistindo, principalmente da
Globo, que quis entrar no filme num determinado momento, quando j estava pronto, o Daniel
Filho, queria dar opinio, trocar algumas coisas, porque deveria trocar aqueles mais antigos por
algumas coisas contemporneas. Mas isso era um pressuposto do filme. Mas tambm no
insistiu muito, no. Creio que foi muito mais algo meio por autoridade de quem est tentando
entrar numa coisa, do que por convico. Mas muita gente dizia isso, ah porque no bota as
datas quando isso est acontecendo?. Tipo vou propor uma coisa que talvez seja to excitante
para voc, mas que talvez seja melhor acabar com isso, antes que voc tenha o direito de
imaginar. No tinha porque botar data. O nome dos filmes... Todas as pessoas vinham dizer ah,
tem de aparecer o crdito na hora do filme, dizamos, no, o crdito no aparece na hora do
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Anexos
filme. Nenhum filme aparece. A ideia fazer um filme que depois voc tem os crditos de todos
os filmes, as listas de documentos. Seria uma loucura, voc no veria o filme, teria de ter crdito
toda hora, pois a maior parte do filme com imagens de arquivo. E a segunda coisa porque
voc tiraria essa autonomia do personagem para dar autonomia ao material histrico,
referncia. E isso a gente queria tirar. E muita gente se divertia muito tentando identificar o que
era de qual filme.
Agora dentro dessa estrutura de filme, de histria, da prpria histria do samba existia uma
coisa para a gente que ainda era maior: quando voc expe documentos, no queramos deixar
de exp-los porque estavam gastos ou ruins, tecnicamente ruins. Era propositalmente a ideia de
que a memria, preservada daquele jeito, em mau estado, estivesse presente. uma brincadeira
que a gente usa em alguns momentos, em que a fala de alguns personagens est relacionada com
a narrativa, mas est relacionada tambm com o material. Quando Moreira da Silva fala, Aracy
de Almeida, esto falando algo como uma coisa meio que vagabunda, e a imagem fica tudo
saindo. Isso parecia engraado, fazia sentido pra gente, era um passo a ser dado na compreenso
do que estvamos fazendo. Nesse sentido, a produo do filme teve um valor que foi
exatamente igual a esse valor de.. foram oito anos de montagem, de exerccio, de descoberta,
exerccio com o prprio personagem. Primeiro a gente queria trabalhar com o mito, mas a
vimos que o homem e o mito no iam ter muitas diferenas, as coisas que eram turvas em
relao biografia de Cartola ficaram turvas enquanto narrativa, como a histria do tnel, por
exemplo. uma passagem de tempo que voc tem ali, em que o Cartola desaparece, a gente
sabe mais ou menos de mil fontes, mas ningum sabe exatamente. Ficou doente, teve uma
amante, a mulher era traficante, tem um monte de histria, ento a ideia que a gente deu era que
entra no tnel e quando sai do outro lado do tnel, voc est em Copacabana, Humberto Mauro,
uma imagem de Copacabana, o mundo tinha mudado, exatamente nessa poca, anos 40/50, que
o mundo saiu do centro e foi para a zona sul carioca. meio intrincado, um exerccio
interessante que estava todo pensado.
Vira uma linguagem muito radiofnica, numa poca que a do auge do rdio...
Aquela hora do tnel, por exemplo, quando comea a entrar com a Eliseth Cardoso cantando e
comea uma fuso, o carro andando em direo a Copacabana, vai ficando escuro, e quando
voc comea a ver, comea com o jogo Brasil e Uruguai. Isso tinha vrias leituras, eu estava
fazendo muitos trabalhos com Csar na poca, estava namorando com ele, e ele estava fazendo
trabalho sobre Jos Lins do Rego nos Estados Unidos, e tinha toda essa histria, algum que eu
tinha entrevistado tinha falado sobre Jos Lins do Rego, os anos 50 foram muito tristes pro
Brasil, era o momento que o Brasil ia dar certo, essa coisa meio sazonal de o Brasil ser o pas do
futuro, e o primeiro grande sinal de que no seria foi quando deu errado na Copa de 1950. Todo
mundo deu uma descida, foi pra trs, ento aquela histria da narrao do jogo, que o gol do
Uruguai no Brasil, comea com isso, a voc vai para uma informao que da gente, o Srgio
Cabral falando alguma coisa pegou meningite, teve uma amante, a daqui a pouco entra o
direito de amar em rdio (eu tinha muita coisa para te dizer, mas isso um grande segredo). A
gente ficou brincando com todos esses nveis de informao que era informao captada pela
gente, informao radiofnica que existia na poca, e quando sai do tnel aparece aquela
imagem de Humberto Mauro e a aparece a primeira imagem de Cartola no filme, que de
Orfeu Negro, que a primeira imagem de fato feita de Cartola assim. Depois vai aparecer ele
cantando no Ensaio, j na dcada de 70, mas a primeira imagem de Cartola que se tem, que
sobrou hoje, ele no Orfeu Negro, que ele e dona Zica trabalhavam no filme, ela cozinhava, ele
era porteiro, e botaram ele numa cena, que uma cena colorida. Tudo isso fazia parte desse
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Anexos
processo, que mundo novo esse que apareceu. Ele descoberto numa garagem entre
Copacabana e Ipanema, no Arpoador.
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Anexos
uma entrevista de Lou Reed hoje falando daquela poca. Ento, tinha uma coisa que eu achava
engraada era que voc pode construir o discurso de uma poca pegando vrias pocas e
brincando com elas, e pode ver de que forma esses olhares vo se modificando. Tudo isso que a
gente est falando agora fruto de uma reflexo, no fruto de uma atitude. Ningum fez
samba porque essa a cultura urbana, essa a representativa, no, algum se apropria disso por
um motivo qualquer e voc faz uma reflexo em cima disso a partir do tema. No Brasil tudo
muito precipitado. Essa discusso entre regionalismo e modernismo pouco para ter uma ciso.
A impresso que tenho que o mundo acadmico se segura muito rpido numa opinio para no
deix-la escapulir... A discusso sobre a criao literria brasileira, sobre o universo brasileiro,
sobre a questo social brasileira, entre regionalismo e modernismo, acho muito tacanha em
relao possibilidade que voc tem. Voc tem uma possibilidade de leitura muito maior.
Gilberto Freyre, Srgio Buarque para mim so incio, no fim, para parar a discusso to rpido.
No tem nem 100 anos da literatura deles pra gente ficar discutindo de uma maneira to radical,
dividindo em grupos, quem dono de quem, quem responde por qu. Ento tem uma coisa
nesse sentido, no precisa ser refm, mas a gente est fazendo a reflexo de um tempo que j
existiu. E essa reflexo um documentrio que est usando Cartola, no um documentrio
sobre Cartola. Cartola um personagem que est a, todo mundo pode fazer vrios
documentrios, leituras, como quiser. Poderamos ter pego outro, poderamos pegar Paulo da
Portela, que talvez nesse sentido de linha um personagem incrvel, o homem que levou
basicamente a elegncia da Pequena frica para os subrbios cariocas, que criou a Portela.
um personagem muito rico nesse sentido, cheio de conflitos. Cartola outro tipo de
personagem. Nelson Cavaquinho tambm no deixaria de ser, Carlos Cachaa no deixaria de
ser. A gente criou Cartola, que para mim um dos poetas fundamentais dessa linha de tradio
urbana, de cultura, de fazer poesia e msica. E esse um olhar que a gente deu, nem um pouco
fechado, um olhar muito aberto para a crtica, para quem quisesse fazer crtica, nunca foi a
ideia da gente que no fosse. Era a nossa ideia, vamos chacoalhar. Fomos muito desautorizados,
principalmente no Rio de Janeiro, porque ramos pernambucanos falando de um smbolo
carioca. Mas Cartola no um smbolo carioca, um smbolo brasileiro. No me passaria nunca
pela cabea desautorizar Nelson Pereira do Santos por ter filmado Vidas Secas. Que tipo de
autoridade essa que eu tenho por minha raiz? Acho que melhor olhar a cultura do outro do
que a minha prpria. Mas houve preconceito, principalmente de um jornalista que escreveu uma
matria maldosa, muito ruim, principalmente porque todos os dados estavam errados. Ele falava
coisas do tipo isso no existe porque bota Cartola como se ele cantasse Bossa Nova, diz que
Cartola era comunista. E no tinha nada daquilo. Era uma leitura de poca, acho que ele nem
viu o filme, algum falou e ele veio pra cima... E ele s falava aqueles rapazes de
Pernambuco.
Vocs fizeram um filme que lidava com documentos audiovisuais, com a historiografia. Vocs
se questionaram como lidar com isso, com quais so as questes contemporneas sobre os
documentos, sobre o audiovisual como documento?
Teve uma coisa que, durante o processo do Cartola, ficou muito em pauta, que era a questo do
direito de imagem, do direito autoral, essa coisa toda. O filme terminou virando um filme muito
caro, para o que deveria ser.
Quanto custou?
Tenho a impresso, posso estar errado, de que o Cartola custou R$ 1,4 milho. Digamos que R$
1 milho foi de direitos autorais. E dentro de uma regra de imagem que era muito torturante.
Foram-se abrindo possibilidades dentro dessa coisa da imagem e do audiovisual e do poder que
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Anexos
se ia tendo sobre esse material, mesmo que o uso dele no fosse atico, ou antitico, ou imoral,
porque eu tambm nem concordo com isso, a gente comeou a ver a priso que a gente vivia em
relao a esses documentos. Durante esse processo, a impresso que eu tinha que tenho
tambm em relao a outras coisas que o Brasil atropela experincias prticas para dar um
passo adiante em coisas que talvez no interessem tanto. A questo do documento, a impresso
que eu tenho que est havendo uma privatizao to grande em relao ao alcance da memria
que voc tem do audiovisual, que ela se torna vtima de donos. Quem que est melhor
mantendo a memria do audiovisual desse pas hoje em dia? A Fundao Moreira Salles est
comprando tudo que tem. As pessoas falam ah, ainda bem que eles esto comprando, esto
preservando. Eles no esto preservando, esto comprando um bem, esto investindo, isso
futuro, em breve toda a memria de um pas vai estar nas mos de um grupo privado. Ah, mas
eles mantm... No sei. A Globo mantm um material vasto de memria da televiso e do
jornalismo brasileiro, mas que voc no pode usar quando quer. No , por exemplo, como a
Biblioteca do Congresso [americano], que voc tem acesso s imagens e pode usar. Ai dizem:
ah se eu pegar a imagem de algum e falar mal da pessoa?. A pessoa que processe voc, mas
eu no posso no ter o direito de no ter acesso imagem. Politicamente, vejo uma falta de
autonomia hoje em relao a esses documentos no Brasil, estou falando da coisa que me bate
direto, que o audiovisual, mas estou falando do documento em geral. A questo de abrir o
esplio da tortura, dos prisioneiros, uma coisa que pases extremamente conservadores no
sentido do Estado, como Argentina e Uruguai, j venceram essa barreira. Tem um cdigo de
cumplicidade de tal ponto que esses documentos vo sendo velados, em vez de se criar algo que
d autonomia a esses eles, cria-se uma forma de esses documentos ficarem na mo de poucos.
Aos poucos essa coisa [do acesso ] informao vai diminuindo, e voc no tem muito de onde
fazer sua reflexo em relao a um olhar prprio. E isso acho que no Cartola era uma das coisas
que a gente mais falava para as pessoas: que era para deseducar o olhar quando fosse ver o
filme. Se voc for ver com um olhar educado, vai demorar muito tempo para entrar na histria.
A ideia era ver aquelas imagens como se fossem um mantra narrativo, com um monte de
colagens, que vai levando voc para algum lugar.
Quando voc escolhe imagens que no representam a cronologia de forma estrita, voc retira
da narrativa aquele efeito absoluto de realidade. Esse embaralhamento foi uma coisa
pensada? Por outro lado, em outros momentos, como no do encontro musical entre Cartola e
Paulinho da Viola, reafirma-se o documento.
Fazia muito tempo que ela havia sido descoberta, l na Globo Imagem, j estava deteriorada.
Tem uma coisa, que comeamos a trabalhar no comeo e depois perdemos um pouco do pudor.
Porque se no queramos ter essa relao cronolgica e factual presente, depois a gente achou
que estava sendo escravo da prpria armadilha. Ento vimos que no tinha porque abrir mo
disso quando essas coisas fossem pertinentes. Quando essas coisas esto de fato conversando
com a narrativa do filme, quando isso ocorre podemos ter esse material mais prximo. O uso
desses documentos, desde que para ns no fugisse de uma questo tica... Por exemplo, tem
um momento do filme que engraado nesse sentido, que no deu confuso, mas duas ou trs
pessoas falaram. o depoimento de Pelo, quando ele fala de Marcus Pereira. Obviamente que
Pelo no f de Marcus Pereira, eles brigaram. E tem gente que f. Eu no sou muito f,
nunca fui muito f dos livros que li dele, achava ele muito conservador de esquerda demais.
Mas a inteno naquele momento no era essa, tinha um documento, que era o disco que foi
gravado e o depoimento que estava l. Durante muito tempo a gente ficou com medo de cometer
alguns deslizes em relao a esses documentos, se aquilo estava sendo chocante no para uma
pessoa, mas no geral, que a gente estivesse fazendo piada. Mas acho que a gente no caiu muito
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Anexos
nisso, mas a gente no tinha pudor de usar o documento como referncia cronolgica quando
ele parecia necessrio. At o prprio montador de vez em quando vinha com essa posio
tambm, vamos dar um pouco de respiro para as pessoas saberem onde que elas esto
andando. Por que a primeira parte do filme , nesse sentido, muito mais intensa do que a
segunda. Por que at a metade do filme a gente no tem material, era muito material fotogrfico
e pouca imagem [em movimento], ento a gente alegorizou mais a primeira parte do que a
segunda.
Nesse sentido, a primeira parte muito mais desafiadora do que a segunda, em que voc tem
imagens dele...
E demorou muito mais, porque aquela era muito maior, porque fomos nos dando opes. E
tambm tinha de tirar opes, porque seno ia ficar muito grande e tnhamos a ansiedade de
fazer um filme curto. Queramos fazer um filme com uma cadncia... Nesse primeiro momento,
que samos construindo, como no tnhamos esse pudor cronolgico, estvamos muito mais
vontade. A brincadeira que a gente teve tempo e espao, onde que as coisas esto se
passando, quem so esses fenmenos que esto ali, nesse primeiro momento era sensacional,
porque a gente no tinha nada de Cartola, tinha uma foto de Cartola, duas fotos em que ele
aparece jovem, que a gente usa de maneira muito discreta no filme para no ficar exagerado.
Ento, no tem imagem, a gente escolhe o smbolo do menino, o menino no aparece depois da
primeira parte do filme, uma referncia somente do incio. A nica coisa que a gente poderia
ter era aquele diabo que estava solto no meio daquelas narrativas. Cartola era o menino que saia
vestido de diabo no Carnaval, isso naquele grupo de arrepiados. E a imagem do menino diabo, o
negro vestido de diabo que era um menino muito levado. Aquelas coisas que ele faz de
passagem, era nosso vis, nesse sentido, voc contar com essa quantidade de imagens
documentais, fazendo aquela colcha de retalhos, e usando um monte de coisas filmadas por ns,
que fazem muito sentido para ns, imagens como o bonde na Lapa, quando ele est chegando
ali, que vai desenhando (?) os casares, a forma que o menino filmado, os lugares em que ele
aparece, a relao dele com o Fluminense, so coisas que no esto gritadas, mas esto ali.
Coisas que foram feitas de modo a, por exemplo: Aviso aos Navegantes, voc vem, entra na
vida dele, volta para os depoimentos, a vem para o filme de Saraceni, Arraial do Cabo. Tudo
aquilo tinha uma referncia muito forte para a gente, de que forma poderamos trazer essa ideia
desse cinema brasileiro para um tempo onde no vai ter imagem para uma representao to
rpida. Na segunda parte do filme, a gente tem essa imagem mais presente, tanto
cinematograficamente como com a televiso, que vai satisfazer. E mesmo assim, mesmo que a
gente tivesse, a gente tentou pautar isso muito mais por sua poca do que pela cronologia exata.
A parte em que faz a passagem dele servindo cafezinho l no Ministrio, que vai para outra
parte, aquelas imagens de surfistas, tem um pulo de Copacabana para Ipanema. De certa forma,
a gente est vendo as classe sociais brasileiras se avacalharem no sentido geogrfico, est indo
para outra noo de tempo, outro universo. Tambm tentamos fazer, mas uma alegoria menos
pesada no sentido do uso do que na primeira parte. E o prprio discurso era mais conflituoso.
Tem muita coisa que no est ali, mas que voc ouve, a prpria busca dessa identidade
brasileira, o que ia representar o Brasil a partir de determinado momento, porque entre a queda
do imperador e o Estado Novo, o Brasil ficou num vcuo cultural... A impresso que voc tinha
que no teve nada. Obviamente que teve muita coisa importante, hoje se sabe, mas naquele
perodo isso era uma coisa muito ferrenha, tanto que a briga entre regionalismo e modernismo
surge um pouco por conta desse vcuo que est ali, cada um querendo ter seu quinho de
presena, termina o samba sendo o grande representante principalmente do Estado Novo,
colocando o samba num pedestal. Depois tem o baio, mas o samba vinga como representao
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Anexos
brasileira. Meio caricato mas vinga nesse sentido. Se voc pegar hoje uma classe popular
urbana, se pegar o pessoal do Norte tem um movimento de eletrobrega, mas isso no levado
em considerao. Voc pega movimentos que aconteceram, como a ax music, populares
mesmo, de massa, no conseguem tomar esse lugar de representao. E tem uma indstria
cultural muito forte por trs, o Par menos, mas a msica baiana teve uma indstria cultural
muito pesada. A msica sertaneja tambm. No entanto, a referncia de nacionalidade est colada
[no samba], talvez como voc possa ter o rockn roll americano, mas nada vai ser to influente
como o jazz e a soul music americana, que na verdade o pai de tudo isso.
Vocs no conseguiram todo o material que queriam. O que ficou de fora? Como esses
materiais seriam utilizados?
Teve algumas coisas que a gente desistiu, at porque durante o processo elas se tornaram menos
preciosas do que imaginvamos. Mas tinha uma imagem que era bem importante que era de um
curta feito com Cartola, de Roberto Moura, de 1973, da Corisco Filme. Ele foi bem pouco
generoso, proibiu o uso. Primeiro deixou, depois viu o filme e disse que no queria que
usssemos. A gente conseguiu aquelas imagens que entram do Ministrio, era tudo cena de
Cartola andando, mas era do filme dele, a gente teve de tirar. Engraado, porque a Corisco era
dele e do Murilo Salles na poca, que foi o fotgrafo no filme de Cartola. De resto, as outras
imagens, obviamente a gente tinha dificuldade, principalmente quando voc chegava em alguns
pontos que pareciam mais difceis, por exemplo, usar umas coisas de Glauber Rocha. Talvez
tivssemos usado mais se no fosse to confuso e to caro. E tinha o projeto da prpria memria
de Glauber, que tava com Joel Pizzini e dona Lcia, ento tinha a questo de at que ponto
vocs vo usar imagens que meu projeto no vai ser colocado em risco por causa disso.
Compreensvel. Ento, o desnimo inicial era muito grande tambm, a gente logo partia para
outras possibilidades. Mas nesse ponto foi muito mais fcil negociar com filmes de fora, como,
por exemplo, Orfeu Negro, do que com filmes daqui.
Na primeira parte, teve alguma coisa que vocs queriam usar que ficou de fora?
No, na primeira parte o problema da gente era muito mais descobrir onde amos conseguir a
negociao do material. Houve muita negociao, o material da Atlntida sempre muito
demorado, mas sabamos que amos conseguir, tem conversa. Mas materiais de arquivo mais
antigo que voc no sabe exatamente quem so os donos... Voc ia Cinemateca, mas voc tem
de ter autorizao de determinada pessoa que tambm no a dona do filme, mas est
responsvel, entra num ciclo que voc no sabe mais quem dono. A poltica de voc ter um
produtor que toma conta do material de arquivo uma coisa meio recente no Brasil. Voc pega,
por exemplo, as imagens do Golpe de 64 so muito poucas no Brasil. A tem um problema bem
srio, a gente tinha um banco de arquivo que era a TV Tupi, isso foi tudo para a cinemateca, l
no Jabaquara ainda, e esse material dado como arquivo morto hoje em dia, porque todas as
referncias foram perdidas, tem um amontoado de 1 polegada e de filme que voc no sabe
exatamente o que . Talvez um dia tenha de ter um projeto para levantar isso. O material que a
gente tinha foi dado por Silvio Tendler, que quando fez os filmes tinha feito essa pesquisa antes,
e esse material foi perdido depois. So vrias, porque em Jango tem muitas imagens.
Entre elas aquela imagem que os militares aparecem andando pra trs...
Isso, tem vrias, em Jango tem muitas imagens. Se voc olhar os documentrios brasileiros,
essas imagens so meio repetidas, elas aparecem. A gente no to rico de imagem dessa
poca. A gente at pensou que se fosse atrs de emissoras locais, movimentos cineclubistas,
super 8mm, mas no... Esse material no bem resguardado. Mas achamos muito pouca coisa,
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Anexos
pessoal, de quem tenha filmado esse tipo de coisa. O que um dado que acho sensacional, que
a abertura do filme todo, o material feito por Raolino. Ns chamamos Raolino para ser fotgrafo
do filme antes de saber que ele tinha imagem. Ele falou oh, tem uma coisa engraada:, eu
filmei o enterro de Cartola em 16mm, fiz um curta, mas os stalinistas no deixaram nunca eu
passar esse filme, disseram que era um desrespeito. Coisas do Raolino. O filme passou s num
festival de estudantes e nunca mais passou, ficou na cinemateca guardado. E a gente tambm
restaurou o filme. A banda sonora do filme j no existe, s as imagens. Ento a gente pegou e
tudo remontado, a gente pegou as imagens brutas. O filme p&B, mas o final colorido, que
o filho aguando uma planta, uma coisa assim, s a ltima cena. Mas aquele finalzinho que est
no filme [Cartola] outro filme, de Frederico Smith, que ele fez um documentrio na dcada de
80 chamado Fala, Mangueira, filmou no mesmo dia de Raolino, no enterro, s que filmou de
outro ngulo. O fim do filme de Raulino uma brincadeira, o filho dele regando uma planta,
no tem nada a ver com o enterro. Mas so imagens incrveis, ele consegue um close de Cartola
dentro do caixo.
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Anexos
Pela experincia que vocs tiveram ao fazer o filme, o conhecimento sobre as imagens de
arquivo est mais na mo de pessoas que as conhecem do que sistematizado e catalogado?
Creio que esse acesso pblico ao arquivo, pelo menos o conhecimento da existncia dele
muito pouco. A Fundao Joaquim Nabuco muito engraada nesse sentido, tem um banco de
dados que voc entra e consegue saber se vai ter o arquivo l. Algumas coisas tm, mas voc
sabe onde esto esses arquivos. Digamos que esse processo eletrnico melhor do que o fato
quando voc vai procurar l mais complicado. Na Cinemateca no sei como est funcionando
hoje em dia o acesso a essas informaes, porque ficaram um tempo em crise. O material que
voc tem l no necessariamente esteve disponvel, mas voc sabia, como um banco de arquivo
em que voc pudesse entrar, mas realmente no posso fazer crtica, pois faz tempo que no vou
Cinemateca fazer esse tipo de pesquisa. Mesmo assim muito pouco para a memria efetiva
do audiovisual no pas. Voltando um pouco a essa coisa da Fundao Joaquim Nabuco, a TV
Jornal do Comrcio, dos Dirios Associados, hoje em dia do SBT, mas no final da dcada de 80,
ela queria se desfazer de todos os filmes que tinha, pois no tinha mais espao para guardar
aquele material. E era uma prtica normal queimar esse material. De vez em quando tinha
protestos, mas tinham de queimar por dois motivos: primeiro, por quantidade; segundo,
comeava a representar risco, material extremamente inflamvel. Terminou que a Fundao
Joaquim Nabuco pegou esse material. Tipo Nelson Ferreira, compositor extremamente
importante. O funeral dele est l porque foi salvo dessa queima e hoje est l na Fundao. E a
liberao desse material no a Fundao, eles tm l para preservar e voc pode ter acesso.
Acho que essa memria, no s saber que isso existe. Seu prprio uso deveria ter uma
legislao mais malevel do que a que est sendo usado hoje. No sei o que pior, se saber
que uma imagem, uma memria est desaparecendo, deteriorando-se, ou saber que ela existe e
voc no pode fazer nada com ela. s vezes, isso pode ser mais angustiante, porque voc partir
do princpio que, para poder manipular essa imagem, tem de obedecer s regras que esto
contidas nesse contrato, meio injusto. Perguntam porque no fazem documentrio no Brasil
falando mal das pessoas. Por que as pessoas no deixam, s por isso. muito difcil ter acesso,
como legislar em causa prpria. Voltando um pouco Globo, na dcada de 80 teve um
documentrio sobre Roberto Marinho feito na Frana, que foi proibido, e a legislao brasileira
quase mudou por conta disso. [Na verdade, um documentrio britnico, dos anos 90]. Na
verdade, no era nem um grande documentrio, foi banido e foi feita uma legislao como a lei
do direito autoral regida pelo Mickey, toda vez que Mickey faz uma idade, muda a lei. Vai se
regendo por essas coisas de a imagem ter autonomia, e no virar um bem pblico.
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A ideia era ir embrenhando. Obviamente quando voc vai embrenhando, vai acumulando mais
coisas. Ento, a gente comeou por um processo de excesso para descer at um processo de
contingncia, ou seja, fomos pautando aquilo que queramos pela quantidade de coisas que
fomos tirando ou colocando, no existia uma matemtica na cabea, existia talvez uma
matemtica sensorial, mas no quanto deve aparecer.
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imagens que valorizasse aquele momento, como o Inverno do meu tempo, por exemplo,
quando a maioria das imagens de cinema, mas trs ou quatro so de TV. Eu, por exemplo, sei
quais so as imagens de TV e acho que isso salta aos olhos de qualquer pessoa. Mas a gente
achava que era importante ter. E por outro lado, tinha uma discusso meio ntima da gente.
Quando eu comecei a fazer cinema, tinha umas regras, tipo um travelling no se corta no
movimento, no se usa zoom no cinema. E eu achava Visconti um puta diretor, e Visconti fazia
zoom, no que seja bonito. Mas que regra essa que estabelece que no usa? At chegar o
Dogma 95 e quem no usasse zoom e cortasse no meio era careta...tipo voc era tachado de
conservador se fizesse um movimento com tudo enquadrado certinho... Qual o problema de ser
careta, que onda essa? Ento essa coisa que a gente encaixou de cozinha francesa do
tratamento, a gente queria jogar fora. Porque uma coisa a gente estava querendo deixar claro: o
material que estvamos manipulando era um material conservador, no sentido que a gente tinha
de documento. Mas no estvamos lanando mo do conservadorismo para falar do filme. No.
Estvamos utilizando todos os recursos eletrnicos possveis para poder utilizar aquela imagem.
Cartola [o filme], ele tem um contedo conservador? No, ele no seria possvel se no fosse a
tecnologia. E no seria possvel restaurar coisas se no fosse a tecnologia. A gente s no queria
que a tecnologia fosse um dado, um elemento aparecendo naquele filme. E no nada contra a
tecnologia, tudo em questo daquele produto especificamente, que pensamos que deveria ser
daquele jeito. Tem uma crtica que estava falando, sobre literatura, ento ela falava: essa
ditadura das editoras americanas nada contra as editoras americanas, e tudo contra as
ditaduras. No eletrnico tem isso, uso muito recurso eletrnico, gosto de usar, apesar de ser
meio aleijado tecnologicamente. Quando voc decide fazer uma coisa, tem de saber como usar,
qual o tamanho...
E o Altemar Dutra.
Ele cantou aquilo em 77, 78, no uma referncia antiga. Esse momento, a dcada de 60 no
Brasil, tem uma ruptura muito grande de uma hora para outra. Eu tenho 45 anos, teoricamente,
no sou muito diferente do que eu era quando tinha 25. Sou mais velho, a dizem assim, ah
voc fica andando como jovem, por isso fica adultescente muito tempo. Mas talvez seja porque
os jovens estejam ficando velhos. Talvez a gente se vista como se vestia. E agora quando as
pessoas comeam a ficar velhas, os jovens comeam a querer ser que nem os velhos, de usar o
mesmo tnis, o mesmo cabelo, parece que no tem muita diferena. Mas naquele tempo teve
uma ruptura. Acho que Nelson Motta no filme deixa bem claro quando fala que no incio a
Bossa Nova parecia tudo que era de novo, e depois voc volta a olhar aquela produo de samba
e ver como aquilo era refinado. Mas, para isso, precisou ter esses personagens importantssimos
da histria, como Nara Leo, um personagem incrvel dentro da histria da msica popular
brasileira desse perodo.
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