BACHTOLD, Isabele. Etnografia Como Evidência IPEA
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necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Ministério da Economia.
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comerciais são proibidas.
CAPÍTULO 7
1 INTRODUÇÃO
Como parte do rol de metodologias qualitativas, a pesquisa etnográfica ainda é
pouco utilizada no campo da análise de políticas públicas (Pacheco-Vega, 2020).
A obtenção de dados a partir de pesquisas quantitativas é comumente preferível,
entre os gestores públicos, aos dados obtidos por meio de pesquisas qualitativas,
nem sempre quantificáveis e fáceis de interpretar. Segundo Pires (2010), os métodos
qualitativos possibilitam a compreensão do funcionamento de projetos e progra-
mas por meio da apreensão de processos cotidianos, atividades organizacionais e
comportamentais, além das narrativas e práticas de seus agentes e do público aos
quais são direcionados. Nesse sentido, os métodos qualitativos podem ser vistos
não só como meio para auxiliar a tomada de decisão, mas também como forma
crítica de compreender ações e comportamentos que influenciam o cotidiano
operacional dos atores públicos.
Nos últimos anos, tem sido crescente, entre gestores e técnicos do governo
federal, a busca por informações e pesquisas contextualizadas, in loco, que reflitam
as complexidades, os múltiplos interesses, as perspectivas e os desafios da imple-
mentação de políticas públicas junto a cidadãos, usuários e trabalhadores da ponta.
Entender como as políticas são compreendidas, apropriadas e reproduzidas por
seus beneficiários e atores locais nos processos de implementação é fator relevante
para a construção e readequação das políticas públicas (Pires, 2019).
Segundo Howlett e Mukherjee (2018), entre os métodos qualitativos existen-
tes, a etnografia é o que melhor proporciona insights sobre o comportamento de
grupos e indivíduos, os quais podem ser utilizados como informações relevantes
no processo de desenho de políticas. A utilização de etnografia como método
3. Ainda que o estudo de caso analisado seja uma pesquisa de avaliação de políticas públicas (policy evaluation), o
debate sobre o uso de etnografias como evidência trazido neste capítulo não se pretende esgotar nessa etapa do
ciclo de políticas públicas. Assim sendo, o termo “avaliação de políticas públicas” (policy evaluation) será empregado
para se referir especificamente à pesquisa etnográfica discutida e/ou à etapa específica de avaliação da execução e
implementação de uma política. O termo “análise de políticas públicas” (policy analysis) será mantido em sentido
amplo, nas hipóteses em que a discussão se referir ao processo geral de políticas públicas, envolvendo outras etapas
que não apenas a avaliação.
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etnográficos para a análise de políticas sociais brasileiras
outros órgãos quanto quando interagimos com a sociedade civil, por meio de suas
organizações e contato individualizado com os cidadãos (Robert, 2020). Feita
essa consideração, é importante frisar que, como pesquisadoras, nos preocupamos
com a produção de dados científicos, os quais tratam tanto de questões teóricas
quanto empíricas, na busca do conhecimento dos processos sociais inerentes ao
campo estudado.
Com o objetivo de analisar o processo de produção de evidências etnográficas
pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), por meio da pesquisa inti-
tulada Estudos etnográficos do Programa Bolsa Família entre os povos indígenas, este
capítulo lança mão de três estratégias metodológicas: i) levantamento documental,
que engloba não só a referida pesquisa, mas também a análise de documentos
institucionais que se referem ao objeto em estudo; ii) realização de entrevistas
semiestruturadas com atores que participaram do processo analisado neste capítulo;
e iii) autoetnografia,4 abordagem de pesquisa que busca descrever e sistematizar, de
forma analítica, a experiência pessoal, para a compreensão da experiência cultural
(Maso, 2001).
Para o levantamento documental, foram considerados os relatórios elabora-
dos pelos antropólogos durante a pesquisa e os relatórios finais publicados pelo
MDS (Brasil, 2015; 2016); além de notas, e-mails, relatórios e demais registros
documentais. Ademais, foram realizadas cinco entrevistas com gestores e técnicos
que faziam parte do quadro de quatro secretarias do MDS, a Secretaria Nacio-
nal de Assistência Social (SNAS); a Secretaria Nacional de Renda de Cidadania
(Senarc); a Secretaria Nacional de Superação da Extrema Pobreza (Sesep) e a Secre-
taria Executiva (SE), à época da pesquisa e da Funai, sendo duas delas concedidas
em função da pesquisa para a dissertação de uma das autoras (Robert, 2020).
Não obstante, com vistas a apresentar a moldura contextual que permeou a
elaboração dos Estudos etnográficos do Programa Bolsa Família entre os povos indí-
genas, bem como a elaboração das respostas institucionais aos achados da pesquisa
e a validação dos resultados como evidências para os gestores, as autoras deste
capítulo entenderam que não bastaria analisar documentos e realizar entrevistas
com os atores que participaram do processo. Era importante também considerar
4. A autoetnografia é uma abordagem de pesquisa que busca descrever e sistematizar, de forma analítica, a experiência
pessoal, para a compreensão da experiência cultural. Enquanto se consolida como método científico para a análise de
políticas públicas, alguns pesquisadores que utilizaram essa abordagem afirmam que a autoetnografia é tanto o pro-
cesso quanto o produto da pesquisa (Ellis, Adams e Bochner, 2011). Assim, o pesquisador que se intitula autoetnógrafo
usa técnicas tanto da autobiografia quanto da etnografia no estudo das práticas relacionais de determinada cultura,
seus valores e crenças, por meio da observação participante, na qual o pesquisador divide sua experiência entre as
perspectivas nativas (insiders) e externas (outsiders).
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conceitos, métodos, contextos e práticas
5. Isabele Villwock Bachtold é analista técnica de políticas públicas no Ministério da Cidadania (ex-Ministério do
Desenvolvimento Social) desde 2013, mestre em antropologia pela Universidade de Brasília (UnB) e em estudos do
desenvolvimento pela Universidade de Sussex. Rut Rosenthal Robert é indigenista especializada na Funai desde 2010
e mestre em desenvolvimento e governança pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap).
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etnográficos para a análise de políticas sociais brasileiras
esta pesquisa, quais informações que deveriam ser levantadas para o entendimento
de como a política afetava os povos indígenas em estudo e como o conhecimento
das especificidades dessas populações, narradas em peças monográficas de cunho
etnográfico, poderiam contribuir para a proposição de ações que visassem à resolução
dos problemas apresentados em cada comunidade estudada; e ii) outro ex-post, em
que se propõe debruçar sobre como o MDS recepcionou os dados apresentados,
a dificuldade da gestão pública em traduzir os dados etnográficos em linguagem
próxima à utilizada pelos gestores públicos para a avaliação de políticas, dada a
sua natureza descritiva e subjetiva, e ainda as questões políticas que envolviam a
imagem do programa perante a sociedade e os gestores das demais políticas públicas.
Para tal, este estudo está estruturado em quatro seções. Além desta introdução,
na seção 2, apresentamos as discussões sobre o que é etnografia e um breve histórico
a respeito da relação entre etnografia e políticas públicas, com vistas a introduzir
parte da literatura sobre o uso de etnografias pelo Estado. Ainda que esse histórico
não esteja enquadrado na discussão sobre PPBEs, buscamos argumentar que o uso
de etnografias como evidência para atores estatais não é recente e faz parte do desen-
volvimento da antropologia como disciplina e da etnografia como método. Na seção
3, será apresentada a moldura contextual dos dois momentos antes mencionados,
ex-post e ex-ante, com foco nos contextos político e institucional/organizacional que
influenciaram a demanda pela pesquisa e o período de recepção e interpretação dos
dados etnográficos. Por fim, na seção 4, apresentaremos os fatores epistemológicos
que envolveram a análise dos dados etnográficos, enquanto propomos enquadrá-los
como evidências de caráter complexo, que necessitam ser devidamente traduzidas
para o seu efetivo uso de informar e aprimorar as políticas públicas.
2 SOBRE A ETNOGRAFIA
A resposta à pergunta o que é etnografia está longe de ser consensual. De modo
simples, a etnografia pode ser entendida como um método de pesquisa que envolve
o estudo de determinada cultura, seus valores e suas crenças, por meio do exercício
da observação continuada e descrição detalhada do modo de vida nativo. No senso
comum, predomina a visão de que a etnografia presume o deslocamento a áreas
distantes, o estudo de populações não ocidentais e a vivência em comunidades
nativas por um longo período de tempo. Esta visão não é apenas embasada em sua
origem etimológica,6 mas também na própria gênese do método e do campo da
antropologia, que se consolidou em resposta às demandas de estados coloniais por
entender e colonizar o outro que habitava os territórios além-mar (Dubois, 2015).
Como método, a etnografia é composta de “técnicas e de procedimentos de
coletas de dados associados a uma prática do trabalho de campo a partir de uma
desses povos às regras e leis nacionais (Dubois, 2015). Na Inglaterra dos anos
1920, etnógrafos eram empregados pelo Império Britânico em territórios coloni-
zados, cumprindo, assim, um papel consultivo e colaborativo para a empreitada
colonialista (Dubois, 2015; Bennet, 1996). Buscava-se obter conhecimento sobre
populações ditas primitivas, que estariam fadadas à extinção, conforme fossem
incorporadas à sociedade ocidental. Nos Estados Unidos, os estudos de comunidade
(ECs) estiveram em voga entre 1920 e 1950, período em que etnografias passaram
a ser utilizadas para analisar o impacto socioeconômico de políticas sociais do New
Deal, em comunidades rurais que faziam parte de programas de desenvolvimento
(Bennet, 1996).
Os ECs realizados nos Estados Unidos (1920-1950) tiveram papel fundamental
na institucionalização das ciências sociais no Brasil nos anos 1940 e 1950 (Maio e
Oliveira, 2010), refletindo o cenário global da disciplina. No caso brasileiro, entre
as décadas de 1940 e 1960, realizou-se uma série de estudos etnográficos, denomi-
nados à época de ECs, com a intenção de se conhecer o povo brasileiro por meio
de retratos de diferentes comunidades e regiões, os quais, juntos, deveriam nos dar
uma ideia de como era organizada a sociedade brasileira. Nas palavras de Nogueira
(2018, p. 130), em discurso na I Reunião Brasileira de Antropologia, em 1953,
os estudos de comunidades oferecerão ao administrador, ao político, ao homem de
gabinete, aos habitantes das capitais e das grandes cidades, um quadro realista da vida
dos pequenos e rústicos aglomerados do interior e da população rural, mostrando
o seu lado dramático e humano, seus problemas e suas dificuldades, suas condições
reais e suas aspirações, seus recursos e sua experiência. Em outras palavras, à medida
que se multiplicarem, em que se divulgarem seus resultados e se obtiver, através de
sua síntese, uma visão panorâmica mais adequada da realidade nacional, os estudos
de comunidades poderão contribuir para concentrarem os recursos disponíveis na
solução de problemas que afetam as populações.
Segundo Nogueira (2018),7 os estudos de comunidades se referem a estudos
de um grupo local, de base territorial, integrado em uma estrutura social complexa,
que é tomado como amostra para o conhecimento de determinadas situações ou
problemas. Os ECs, no Brasil, também receberam o incentivo da Organização
das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), que, entre
1951 e 1952, patrocinou uma série de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil
(Maio, 1999). Essa pesquisa possibilitou o surgimento de novas leituras acerca da
sociedade brasileira, destacando a existência de complexa rede de relações sociais
7. Na década de 1950, esses estudos de comunidades ainda não recebiam o nome de estudos etnográficos, mas sim de
estudos monográficos, pois o seu resultado era uma monografia, em forma de livro, cuja metodologia abarcava tanto
a observação participante quanto a realização de entrevistas. Entre esses estudos, podemos destacar a obra de autores
como Oracy Nogueira, Emílio Willems, Charles Wagley, Antônio Cândido, entre outros.
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conceitos, métodos, contextos e práticas
que organizam dada comunidade delimitada, cuja análise engloba aspectos sociais,
regionais, ambientais e raciais (Maio, 1999).
Apesar disso, na década de 1960, o Estado começa a ser retratado de modo
crítico nas etnografias, em um contexto de crescente questionamento acadêmico e
político das práticas governamentais com resquícios coloniais. A investigação dos
impactos de ações estatais em sociedades nativas, indígenas e rurais, e dos fatores
de desestabilização e dominação decorrente dessas ações se tornam, então, foco das
etnografias nesse período (Spiess, 2016; Dubois, 2015). Ao mesmo tempo, a con-
solidação do campo da cooperação internacional e da indústria do desenvolvimento
fomentaram projetos de pesquisa, como o referido projeto da UNESCO, sobre o
impacto de intervenções em populações tradicionais em países do terceiro mundo
(Souza Lima e Castro, 2015). Até esse momento, no entanto, os estudos etnográ-
ficos restringiam-se, a priori, à pesquisa e descrição de populações não ocidentais,
isoladas, ou aos efeitos disruptivos do Estado em realidades consideradas exóticas.
No caso brasileiro, não foi diferente a consolidação da antropologia como
campo disciplinar. Isso ocorreu em meio ao fortalecimento do regime militar, cujos
projetos desenvolvimentistas atingiam violentamente os territórios de populações
indígenas e camponesas (Machado, Motta e Facchini, 2018; Spiess, 2016). Segundo
Leirner (2013), a “situação colonial de lá correspondia à situação nacional daqui”,
e muitas das etnografias realizadas nesse período tinham como objeto de análise as
frentes de expansão territorial e as consequências avassaladoras dos projetos estatais
em populações indígenas e tradicionais. Não obstante, as consequências do êxodo
rural e o crescimento desordenado trazia à tona discussões sobre favelas, migração,
trabalho assalariado; começam a surgir etnografias realizadas na cidade de grupos
considerados marginais e minoritários (Bevilaqua e Leirner, 2000).
Seja no contexto brasileiro, seja no global, etnógrafos e antropólogos tende-
ram a trabalhar com políticas sociais, partindo da análise do ponto de vista nativo,
observando “a percepção, o uso e os mecanismos de defesa com que os setores de
classes populares encaram os serviços do Estado” (Souza Lima e Macedo, 2015,
p. 29). Até então, as etnografias eram, em grande parte, permeadas por uma tensão
inerente entre o Estado e os nativos (Leirner, 2013), sendo estes não mais apenas
as comunidades indígenas e tradicionais, mas também o pobre, o dominado, o
subalterno, o conquistado (op. cit.). A partir das décadas de 1980 e 1990 e com o
avanço dos debates pós-coloniais e do pensamento crítico sobre Estado e poder,8 o
Estado passa a ser visto como “parte nativa a ser explicada” (Leirner, 2013, p. 74) e
os pesquisadores etnógrafos passam também a se voltar para os que estão acima9 –
8. Souza Lima e Macedo (2015) apontam alguns fatores que tiveram importância decisiva para essa mudança: a dis-
seminação das obras de Michel Foucault e de Pierre Bourdieu; a crítica pós-moderna e pós-colonial; a crítica feminista;
os estudos sobre nacionalismos, desenvolvimento, subalternidade, globalização e transnacionalismo, entre outros.
9. Uma das obras precursoras é o texto Up the anthropologist: perspectives gained from studying up, de Nader (1972).
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etnográficos para a análise de políticas sociais brasileiras
ou seja, para o estudo não apenas dos efeitos da ação estatal sobre a população e
os grupos específicos, mas a partir da perspectiva das instituições, dos processos
e dos atores que compõem a burocracia estatal e a formulação de políticas públicas.10
Nas últimas décadas, a relação entre Estado, políticas públicas, etnografia e
antropologia tem se tornado cada vez mais imbricada, seja pela crescente deman-
da por estudos etnográficos que avaliem a implementação de políticas públicas,
seja pelo interesse dos etnógrafos em trazer o Estado para dentro de suas análises.
A presença de antropólogos na esfera pública se intensificou a partir da Constituição
de 1988 (CF/1988).11 Os antropólogos passaram a se dedicar à promoção e à defesa
dos direitos de populações indígenas e tradicionais, tanto de dentro do Estado,
da academia ou em organizações da sociedade civil (Machado, Motta e Facchini,
2018). A produção de dados etnográficos como evidências é uma proposta que
vem sendo solidificada ao longo dos anos, juntamente com a atuação de antropó-
logos na esfera pública, que contribuem na elaboração de laudos antropológicos e
demais peças que compõem e instruem os processos administrativos ou judiciais,
em especial no campo de atuação junto aos povos e às comunidades tradicionais.
Nesse contexto, cumpre destacar que, por parte de atores estatais, a demanda
por estudos etnográficos está, em sua maioria, vinculada às questões afetas a grupos
indígenas e populações tradicionais, principalmente para a confecção de laudos e
perícias antropológicas para a demarcação de terras (Helm, 2011), ou para o em-
basamento de decisões judiciais (Rego, 2007) envolvendo povos indígenas.12 Em
geral, tanto as pesquisas etnográficas sobre a implementação de políticas públicas
in loco quanto as realizadas nas instituições governamentais são conduzidas por
pesquisadores autônomos, servidores e consultores contratados por instituições
públicas que utilizam esses profissionais na sua esfera de atuação, como a Funai e
o Ministério Público Federal (MPF). Porém, ainda há aquelas que são realizadas,
independentemente, por estudantes de mestrado ou doutorado, ou por grupos de
pesquisa financiados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq),13 a fim de compreender determinado problema social,
10. No campo da antropologia, podem-se destacar duas tendências em resposta a essas demandas: i) o fortalecimento
da antropologia aplicada, que busca atender a questões específicas de governos e instituições financiadoras, de modo
a prover informações aos formuladores de políticas públicas e tomadores de decisão; e ii) o surgimento do campo da
antropologia da política, ou antropologia do Estado, que questiona as próprias premissas, símbolos, relações de poder
e discursos das políticas públicas e do fazer estatal.
11. A colaboração de antropólogos foi notável na elaboração da CF/1988. Segundo Helm (2011, p. 3), “durante os
trabalhos realizados na Assembleia Nacional Constituinte, ocorreu uma aproximação mais forte entre antropólogos,
juristas e povos indígenas. Foram elaboradas as propostas, contendo os termos adequados, para que os parlamentares
pudessem redigir o capítulo que foi incorporado à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988”.
12. No âmbito do direito à convivência familiar e comunitária, está previsto no inciso III, do art. 28 do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), que é necessária a intervenção do órgão indigenista em ações de destituição do poder
familiar de crianças indígenas, e de antropólogos, que deverão integrar a equipe multidisciplinar que avaliará o caso.
13. Uma exceção é a etnografia realizada no Ipea entre 2013 e 2015 (Teixeira e Lobo, 2018).
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conceitos, métodos, contextos e práticas
Roteiro Básico Comum15 (RBC), o qual deveria ser seguido pelos antropólogos
contratados para a realização da pesquisa. O direcionamento proposto por esse
roteiro buscava abarcar diferentes aspectos da vida social indígena, que iam desde
as percepções e os significados atribuídos ao PBF pelas comunidades estudadas,
possíveis efeitos sobre as atividades produtivas e a segurança alimentar, questões
de gênero, modalidades de uso do recurso, percepção sobre as condicionalidades
do PBF e seu acompanhamento, até questões estruturais e logísticas relacionadas
diretamente à elegibilidade, ao recebimento e aos gastos do benefício (Robert, 2020).
Os contratos firmados com os antropólogos previam quatro etapas de pesquisa.
Ao fim de cada uma delas, um relatório deveria ser apresentado: o primeiro, sobre
a proposta de trabalho e metodologia; dois relatórios preliminares sobre o trabalho
de campo, a serem produzidos enquanto os antropólogos ainda estavam nas TIs;
e o último, um relatório analítico, com análise dos dados coletados, principais
resultados e recomendações para a gestão, a ser apresentado em até três meses após
o fim da pesquisa.
Conforme acordado com a Funai, os consultores e as lideranças indígenas das
terras pesquisadas – e em atendimento à Convenção no 169 da Organização Inter-
nacional do Trabalho (OIT) –, os resultados da pesquisa e as respostas às demandas
dos indígenas deveriam ser apresentados in loco por meio de ações devolutivas.
Concluída a pesquisa em 2014, seus resultados só vieram a público em 2016, por
meio do Relatório final dos estudos etnográficos sobre o Programa Bolsa Família entre
povos indígenas (Brasil, 2016), compilado pelo antropólogo Ricardo Verdum, que
apresenta um resumo dos principais aspectos tratados nos relatórios específicos,
os quais estão, até hoje, sob sigilo. As ações devolutivas foram realizadas apenas
quatro anos depois, em 2017 e 2018 (Brasil, 2019).
Antes de prosseguirmos com a análise dos períodos ex-ante e ex-post dos
estudos etnográficos, cumpre uma ressalva. A opção por separar os fatores que com-
puseram a moldura contextual destes dois momentos entre fatores: i) político;
ii) institucional/organizacional; e iii) epistemológico é uma tentativa de organizar
as narrativas trazidas nas entrevistas e rememorada por nós. É inegável, no entanto,
que os fatos e as percepções narradas se entrelaçam nessas categorias, muitas vezes,
sobrepostas e indissociáveis.
15. O RBC era composto pelos seguintes temas: percepções e significados do PBF para os povos indígenas; atividades
produtivas e comerciais locais; segurança alimentar; acessibilidade ao Sistema Único de Assistência Social (Suas);
logística de pagamento/recebimento do benefício; utilização do benefício financeiro; Cadastro Único para Programas
Sociais do Governo Federal (Cadastro Único); condicionalidades; formas de relação dos indígenas com o poder público
e a sociedade local; questões de gênero.
Etnografia como Evidência: contribuições e desafios do uso de estudos | 263
etnográficos para a análise de políticas sociais brasileiras
16. O termo fricção interétnica é utilizado aqui para chamar a atenção à relação que se estabelece entre os povos
indígenas, representados por seus membros individuais; e a sociedade nacional, representada tanto pelos agentes
públicos quanto pelos demais cidadãos brasileiros. O conceito tem origem em Roberto Cardoso de Oliveira e traz em
si noções de conflito e interesses antagônicos em uma totalidade dialética, para esclarecer uma realidade específica: o
contato entre grupos indígenas e a sociedade nacional (Peirano, 1997, p. 18).
17. Participaram desse grupo: Sagi, Senarc, SNAS, Secretaria Nacional de Segurança Alimentar (Sesan) e Sesep.
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conceitos, métodos, contextos e práticas
18. “O termo ‘ponta’ é comumente utilizado nos órgãos públicos, sediados em Brasília, para referir-se aos locais nos
quais os programas, ações e políticas públicas são implementados” (Bachtold, 2017), ou seja, fora dos centros de decisão,
nos municípios, nas periferias, áreas rurais, áreas onde a política pública é, de fato, implementada.
19. Como citado anteriormente, o RBC apresentava temas a serem abordados pelos pesquisadores a partir do método
etnográfico que, apesar de previamente definidos, não indicavam quais categorias deveriam ser utilizadas para tratar
cada uma das questões propostas. Assim, apesar da definição de eixos temáticos, a forma de abordagem era livre, tendo
em comum unicamente o método etnográfico como premissa.
266 | Políticas Públicas e Usos de Evidências no Brasil:
conceitos, métodos, contextos e práticas
20. Muitos desses servidores haviam chegado recentemente no ministério, quando da criação do cargo de analista
técnico de políticas sociais (ATPS).
Etnografia como Evidência: contribuições e desafios do uso de estudos | 267
etnográficos para a análise de políticas sociais brasileiras
21. Apesar de serem tratados como povos e comunidades tradicionais na linguagem institucional, os povos indígenas
têm resistência em se considerar como povos tradicionais, tendo em vista a questão da etnicidade. Sendo assim, o
movimento indígena brasileiro usa a terminologia povos indígenas para se referir aos povos originários do Brasil.
22. Lançado em 2011, o BSM era composto de um conjunto de cerca de cem programas e ações voltados ao atendi-
mento de um público específico, os extremamente pobres, ou seja, população que vivia com renda per capita mensal
inferior a R$ 77,00, à época. Sob a coordenação do MDS, o BSM envolveu 22 ministérios e a parceria de outros entes
federados (estados e municípios), da sociedade civil e do setor privado.
23. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2013 apontavam uma taxa de extrema pobreza
em cerca de 3% de população brasileira. Indicadores de pobreza multidimensional do Banco Mundial apontavam para
0,5% de pessoas em situação de pobreza severa, enquanto os indicadores do Human development report indicavam
2,8% de pessoas em situação de extrema pobreza (Falcão e Costa, 2015).
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conceitos, métodos, contextos e práticas
3.2 Análise ex-post: recepção dos dados e seu uso (ou não) como evidência
para embasar mudanças na política pública
Logo após o fim do trabalho de campo e antes mesmo da conclusão dos relatórios
finais, o MDS convidou os consultores a Brasília para apresentação dos resultados
aos servidores do órgão. Durante dois dias, representantes de todas as secretarias
participaram da Oficina de sistematização dos resultados: Bolsa Família entre povos
indígenas, na qual cada um dos antropólogos relatou os principais achados da
pesquisa. Para a maioria dos servidores, era a primeira vez que visualizavam as
24. De acordo com a Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), povos e comunidades tradicionais são
“grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social,
que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral
e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (Brasil, art. 3o, I, 2007).
Etnografia como Evidência: contribuições e desafios do uso de estudos | 269
etnográficos para a análise de políticas sociais brasileiras
dificuldades dos povos indígenas em acessar não apenas o PBF, mas também outros
serviços e políticas públicas. Os relatos, os vídeos e as fotografias apresentados em
PowerPoint traziam concretude às demandas que a Funai costumava apresentar
ao ministério nas reuniões interministeriais e salas de situação.
A sensação de que a pesquisa caiu como uma bomba foi comum entre todos
os entrevistados. Os dados sobre a realidade da população indígena que a pesquisa
trazia à tona eram consideravelmente piores do que se esperava. Acostumados,
de certa forma, a ouvir e enaltecer os impactos positivos das políticas sociais co-
ordenadas pelo ministério, os servidores se depararam com situações de extrema
pobreza, vulnerabilidade, exploração, preconceito e racismo institucional; relatos
de tratamento desumano e abuso por parte de atores locais; denúncias de crimes
e casos de polícia. Diferentemente de outros estudos divulgados pelo ministério,
eram situações que não poderiam ser solucionadas com a chegada do Estado, visto
que, muitas vezes, era o próprio Estado o causador e perpetuador das desigualdades
e violências narradas. Como relatado por uma servidora:
Eu lembro que eu fiquei muito apavorada. Por mais que a gente soubesse que a situação
era crítica, eu lembro que alguns relatos me pegaram pesado. Ver as imagens me pegou.
Aí veio esses relatos de como a população fica à mercê de uma série de restrições, e
amarras em função de serem populações indígenas, em função de suas especificidades.
Dessa forma, durante cinco meses, no primeiro semestre de 2014, os relatórios
de campo eram enviados à Sagi e encaminhados às áreas finalísticas. Considerando
que os dados apresentados eram extremamente sensíveis, optou-se por manter
os relatórios restritos ao âmbito interno, evitando seu compartilhamento com a
Funai antes que o ministério pudesse absorver e sistematizar os dados e elaborar
estratégias de resposta, incluindo a devolutiva à população pesquisada.
Indubitavelmente, a apresentação dos dados preliminares na oficina gerou
muita ansiedade entre técnicos e gestores, que buscavam acessar aos relatórios finais
e organizar tentativas de diálogo para coordenar uma resposta aos problemas apre-
sentados. Conforme as pesquisas avançavam, mais detalhados e densos tornavam-
-se os textos que chegavam aos e-mails e pen drives dos gestores. Se o número de
páginas dos relatórios aumentava, o número de pessoas que tinham acesso aos
relatórios tornava-se cada vez mais reduzido, visto que crescia a preocupação sobre
a divulgação dos dados e a inexistência de respostas para os problemas relatados,
dada a complexidade das questões por eles abordadas.
Não raro, os técnicos (em sua maioria, servidores da carreira de analista de
políticas sociais e com formação em ciências sociais e áreas correlatas) eram insta-
dos a resumir os relatórios e organizá-los para apresentar os pontos principais às
instâncias superiores. Segundo uma entrevistada:
270 | Políticas Públicas e Usos de Evidências no Brasil:
conceitos, métodos, contextos e práticas
25. Senarc, Sesan, SNAS, SE e, à época, a Sesep. Parte dos achados foi também debatida com representantes da Funai,
do Ministério da Saúde (MS) e do Ministério da Educação (MEC) (Brasil, 2018).
26. A justificativa apresentada pela Senarc, à época, foi a dificuldade de operacionalização da Caixa Econômica Federal
(Caixa) e o fato de que a taxa de saque atual dos indígenas é semelhante à de outros grupos.
27. Como consequência da pesquisa do PBF junto a povos indígenas, a SNAS contratou nova pesquisa etnográfica para
aprofundar as análises relativas ao atendimento da rede de assistência social.
Etnografia como Evidência: contribuições e desafios do uso de estudos | 271
etnográficos para a análise de políticas sociais brasileiras
28. Para mais informações, ver cartilha Trabalho social com famílias indígenas na proteção social básica (Brasil, 2017).
29. Para mais informações, ver cartilha Atendimento à população indígena na proteção social especial. Disponível em:
<https://bit.ly/3llviCs>.
30. Estão documentadas na publicação da Sagi, Caderno de Estudos: desenvolvimento social em debate, n. 32 (Brasil, 2018).
272 | Políticas Públicas e Usos de Evidências no Brasil:
conceitos, métodos, contextos e práticas
i) a estrutura operacional do PBF, que preza por soluções universais com vistas ao
atendimento de um amplo público; ii) o fator de sucesso do PBF e o quadro de
servidores da Senarc; e iii) a preferência por métodos quantitativos ou mistos para
estudos de monitoramento e avaliação de políticas públicas coordenados pela Sagi.
Com relação ao primeiro fator, à época da pesquisa, o Bolsa Família completava
dez anos desde seu surgimento e se consolidava como a principal política social
brasileira, sendo reconhecido internacionalmente como referência em transferência
de renda condicionada e como um caso de sucesso no combate à pobreza, ainda
que entre a sociedade brasileira esse reconhecimento era oscilante, como argumen-
taremos adiante. À época, o programa atendia a 13,8 milhões de famílias, cerca de
um quarto da população do país. Ainda que se reconhecesse que, para combater a
extrema pobreza residual, era necessário elaborar estratégias específicas para a in-
clusão do público mais vulnerável ainda ausente da rede de proteção social – entre
eles, povos e comunidades tradicionais –, havia certa resistência em modificar o
Bolsa Família, seja pela dificuldade de operacionalização, seja pelo pequeno im-
pacto nos números finais do programa. Justamente pelo seu reconhecimento entre
a burocracia estatal, alterações no Bolsa Família eram constantemente propostas
por outros órgãos. Cabia aos gestores, portanto, blindar o programa e evitar que
soluções específicas prejudicassem seu atendimento universal. Como alegado por
um gestor à época, “não dá para ficar colocando penduricalhos no Bolsa Família, o
programa não é árvore de Natal”. Esta postura de gestores da Senarc foi levantada
pelos entrevistados, conforme segue:
a Senarc sempre foi muito mais reativa com relação ao Bolsa, porque o Bolsa é super
complexo, todo mundo chega lá e quer dar uma ideia. Naquela época tinha uma
resistência a propor alterações no Bolsa, porque é uma operação muito difícil.
Tem uma questão quantitativa: a gente tem um programa desenhado para um país
com o grau de desigualdade do Brasil e que funciona muito bem. Mas ele conseguiu
chegar nas pessoas de uma maneira que talvez nenhum outro programa tenha con-
seguido chegar, nem a aposentadoria. E aí a gente traz o panorama da diversidade,
ainda que só a pontinha do iceberg, de fato não se faz tanto sentido em mudar algo
do programa se a gente está falando em menos de 10%. Só que ao mesmo tempo a
angústia que gerou a pesquisa era exatamente essa: será que a gente está atendendo, de
maneira adequada, a população indígena deste país? Então não importa se representa
1% do programa?
No tocante ao segundo fator, a postura defensiva da Senarc em relação ao
programa é também reflexo do quadro de servidores que, à época, ocupavam os
cargos de médio e alto escalão da secretaria. Dentro do ministério, a Senarc era
vista como uma secretaria com baixa rotatividade dos gestores, elevada profissio-
nalização, cujos cargos eram ocupados majoritariamente por servidores de carreira,
com alta qualificação e experiência em administração pública (Oliveira, Lotta e
Etnografia como Evidência: contribuições e desafios do uso de estudos | 273
etnográficos para a análise de políticas sociais brasileiras
31. O sentido strictu sensu de evidência pode ser entendido aqui como aquele que aponta as causas e os efeitos de
determinada situação. No sentido lato sensu, as evidências podem trazer informações de variados matizes, as quais
concorrem, juntas, para a compreensão dos efeitos de dada situação.
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conceitos, métodos, contextos e práticas
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