A PNATER Como Mecanismo

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A PNATER como mecanismo de justiça social para a agricultura familiar

A PNATER COMO MECANISMO DE JUSTIÇA SOCIAL


PARA A AGRICULTURA FAMILIAR

Cleiton Silva Ferreira Milagres1


Alex Pizzio2
Diego Neves de Sousa3
Waldecy Rodrigues4
Airton Cardoso Cançado5
RESUMO
Este artigo tem por objetivo debater as questões atinentes entre a prática da intervenção social e
o discurso que envolve o uso de técnicas participativas como forma de promover a agroecologia
e reconhecer os agricultores familiares como atores centrais da Política Nacional de Assistência
Técnica e Extensão Rural (PNATER). O conceito de participação vem-se consolidando no campo
de estudos dos métodos, em que se constitui como instrumento significativo – utilizado nos
processos de intervenção –, que visa a mudança social e auxilia a tomada de decisão dos públicos
envolvidos nas ações de desenvolvimento rural. Metodologicamente, o artigo foi elaborado com
base em revisão bibliográfica e na percepção dos autores durante as discussões que envolveram
a equipe de trabalho de campo, do Núcleo de Desenvolvimento Territorial (NEDET). Na análise
dos dados, recorremos à teoria da justiça social de Nancy Fraser e seu princípio de paridade
participativa. Entre os resultados, postula-se que associar o conceito de participação ao exercício
da ideia de justiça social pode incomodar os profissionais “românticos”, que veem no uso das
técnicas participativas a solução para validar o processo político de tomada de decisão.
Termos para indexação: ATER, agroecologia, desenvolvimento rural, políticas públicas,
diagnóstico rural participativo.

PNATER AS A SOCIAL JUSTICE MECHANISM FOR FAMILY FARMING

ABSTRACT
The objective of this article is to discuss the pertinent issues between the practice of social
intervention and the discourse involving the use of participatory techniques as a way to promote
the agroecological matrix, and to recognize family farmers as central actors of the National Policy

1
Bacharel em Gestão de Cooperativas, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Regional da Universidade Federal do Tocantins (UFT), professor do curso de Gestão de Cooperativas da
UFT, Palmas, TO. [email protected]
2
Bacharel em Ciências Sociais, doutor em Ciências Sociais, professor do Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Palmas, TO. [email protected]
3
Bacharel em Gestão de Cooperativas , doutorando Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural
(UFRGS), analista da Embrapa Pesca e Aquicultura, Palmas, TO. [email protected]
4
Bacharel em Economia, doutor em Estudos Comparados de Desenvolvimento, professor do Programa de
Pós-graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Palmas, TO.
[email protected]
5
Bacharel em Administração, doutor em Administração, professor do Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Palmas, TO. [email protected]

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for Technical Assistance and Rural Extension (PNATER). The concept of participation has been
consolidated in the field of method studies – in which it constitutes a significant instrument used
in the intervention processes –, aiming at social change and helping the decision-making of the
public involved in rural development actions. Methodologically, this article was elaborated based
on a bibliographical review, and on the authors perception during the discussions that involved
the fieldwork team of the Núcleo de Desenvolvimento Territorial (NEDET). In the data analysis,
we turned to Nancy Fraser’s theory of justice and its principle of participatory parity. Among the
results, we postulate that associating the concept of participation to the exercise of the idea of
social justice can be of concern to the “romantic” professionals who see the use of participatory
techniques as a solution to validate the political process of decision making.
Index terms: ATER, agroecology, rural development, public policies, participatory rural
diagnosis.

INTRODUÇÃO

A extensão rural pública e gratuita instituída no Brasil no final dos anos


1940, na perspectiva do modelo agrícola produtivista proposto pela Revolução
Verde, foi marcada por ser um projeto educativo voltado para o capital (Fonseca,
1985) e de adequação ao processo de modernização da agricultura brasileira
que estava em curso no país. Havia a necessidade de transformar a realidade
do meio rural, que por muito tempo foi consumidora de insumos agrícolas.
Até meados de 1970, a extensão rural esteve pautada de forma mais
intensa e sistemática no marco dos acordos de cooperação bilateral entre o Brasil
e os Estados Unidos. Foi perceptível a influência norte-americana na economia
agroexportadora brasileira, o que promoveu a reputação do Brasil no campo
das ciências agrárias e viabilizou, inclusive, a vinda de especialistas americanos
para treinar os brasileiros em cursos teóricos e práticos6, direcionados às
seguintes temáticas: agricultura, veterinária, administração agrícola e crédito
supervisionado (Ribeiro & Valentim, 2017).
Esse processo educativo no serviço de assistência técnica e extensão
rural brasileiras promoveu, em meados dos anos 1980, o “ensinamento de
novas práticas para a agricultura, [...] novos saberes, novos hábitos e difundiam
6
É importante ressaltar que esta prática foi protagonizada pela Universidade Rural do Estado de Minas Gerais
(UREMG), atual Universidade Federal de Viçosa (UFV), que foi criada nos moldes das escolas superiores
agrícolas norte-americanas. Esse fato histórico é importante para compreender a extensão rural brasileira,
pois, nessa mesma época, a American International Association (AIA), entidade filantrópica dirigida por
Rockfeller, declarava a intenção de implementar um programa de assistência técnica para a produção agrícola
e a educação no campo, bem como o incentivo para a criação da Acar – Associação de Crédito e Assistência
Rural, atual Emater – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural, que mais tarde inspirou a criação
de outras entidades públicas nos outros estados brasileiros (Ribeiro & Valentim, 2017).

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crenças, o que implicava o seu disciplinamento e, consequentemente, um novo


modo de vida” (Ribeiro & Valentim, 2017, p.86). Entretanto, o argumento
central do difusionismo produtivista como orientador das concepções e práticas
extensionistas continuava a ser criticado, em razão da exclusão dos pequenos
agricultores, que não conseguiam seguir a dinâmica capitalista (Dias, 2007).
Em outras palavras, o modelo difusionista mostrou-se como fórmula
concentradora, pois, conservou “o poder nas mãos dos que já o tinham e
alijou ainda mais os excluídos”, criando “um problema social que pesa sobre
as responsabilidades dos profissionais das ciências agrárias” (Coelho, 2005,
p.53), o que induziu e promoveu um debate mais amplo, que ultrapassa os
limites do meio rural. O saldo foi que questões ligadas ao meio ambiente e ao
uso dos recursos naturais tornaram-se temáticas emergentes, abrindo espaços
para questionamentos fundamentados em práticas alternativas para as ações
de extensão rural.
Diante da necessidade de democratizar o acesso ao serviço de Assistência
Técnica e Extensão Rural (ATER), houve forte mobilização dos movimentos
sociais em favor da reforma agrária e da visibilidade e afirmação de uma política
que beneficiasse diretamente os públicos inseridos na categoria agricultura
familiar. Essa mobilização foi considerada no novo marco legal, que contribuiu
para uma nova política de mudança social na ATER nacional, em que esses
públicos se tornaram prioritários para a prestação deste tipo de serviço público
(Diesel et al., 2015).
A política de ATER foi instituída no ano de 2004 e, em 2010, foi
alterada com amplo processo de consulta aos agentes extensionistas e suas
instituições e às organizações representativas dos agricultores familiares. Assim,
a política de ATER nacional apresentou mudanças de orientação conceitual
e institucional, propostas pelo processo de reestruturação do serviço público
(Dias, 2007), como, por exemplo, os direcionamentos dados ao processo de
intervenção social, diante do uso das técnicas participativas, que fundamentam
a ação extensionista orientada para a promoção da agroecologia como matriz
tecnológica, contrariando uma prática da extensão rural tida como convencional
e produtivista. No entanto, “a principal crítica às metodologias participativas
não depende, necessariamente, da aplicação delas, mas da despolitização que o
discurso da participação pode fomentar” (Amodeo, 2007, p.55). Assim, como
explica Amodeo (2007), a participação tem a pretensão de se transformar em

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poder, possibilitando que as causas estruturais que provocam os problemas


e as necessidades das populações rurais não sejam renegadas a um segundo
plano, mas integradas aos processos participativos, para que cumpram com as
promessas que postulam.
A mudança de orientação de um modelo produtivista de intervenção
para outro, como é o caso da transição agroecológica, poderia até possibilitar
a construção de uma mediação social dos técnicos extensionistas perante os
agricultores, mas também continua a perpetuar um parâmetro tutelar da extensão
rural brasileira (Fiúza et al., 2007).
Nesse sentido, o presente trabalho tem por objetivo debater as questões
entre a prática da intervenção social e o discurso sobre o uso de técnicas
participativas como forma de promover a matriz agroecológica e reconhecer
os agricultores familiares como atores fundamentais da PNATER.
Metodologicamente, o artigo foi elaborado com base em revisão
bibliográfica e na percepção dos autores durante as discussões que envolveram
a equipe de trabalho de campo do Núcleo de Desenvolvimento Territorial
(NEDET)7, da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Para a análise dos
dados, recorreu-se às contribuições de Nancy Fraser sobre justiça social, a fim
de retomar as discussões acerca das transformações ocorridas com a PNATER
e, mais particularmente, em relação à prática da intervenção social e o discurso
participativo adotados pelos agentes de desenvolvimento inseridos nas empresas
de ATER pública, que são os responsáveis pelas ações de intervenção social
junto aos agricultores familiares.
O artigo está dividido em mais três seções, além desta introdução.
Na seção seguinte, apresenta-se a trajetória metodológica da extensão rural
brasileira. Em seguida, apresentam-se as escalas de justiça social estabelecidas
por Fraser (2008) e, fundamentando-se nos pressupostos da chamada “justiça
social”, assinalam-se algumas reflexões sobre a forma como se realiza a
intervenção social pela assistência técnica pública e a adoção das técnicas
7
O Núcleo de Extensão em Desenvolvimento Territorial (NEDET) da Universidade Federal do Tocantins
(UFT) foi criado em 2015, com o apoio das seguintes entidades: Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), por intermédio da
Secretaria do Desenvolvimento Territorial (SDT) e da Diretoria de Políticas para Mulheres Rurais (DPMR),
e a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República (SPM/PR). O NEDET/UFT atuou
em campo, tendo realizado reuniões e assessorado tecnicamente os colegiados territoriais e demais atores
dos territórios rurais, quanto à gestão social e à organização produtiva da agricultura familiar, buscando
consolidar a abordagem territorial como estratégia de desenvolvimento rural sustentável.

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participativas como componente do desenvolvimento rural. Apresentam-se,


em seguida, as considerações finais.
Assim, conforme constatado no estudo de Amodeo (2007) sobre a tirania
da participação, a intenção deste trabalho não está em apontar os limites que
ultrapassam a prática agroecológica, nem tampouco diminuir sua potencialidade
como proposta de política nacional, mas apenas apontar reflexões que possam ser
consideradas no processo de intervenção social no campo e no reconhecimento
da categoria da agricultura familiar.

DA TRANSMISSÃO À PARTICIPAÇÃO: O PROCESSO DE


INTERVENÇÃO NO CONTEXTO DA EXTENSÃO RURAL

A extensão rural é concebida como um serviço de assessoria técnica


para agricultores e suas famílias, grupos informais e organizações coletivas,
nos campos da tecnologia da produção agropecuária, administração rural,
educação alimentar, educação sanitária, educação ecológica, associativismo
e ação comunitária (Figueiredo, 1984). A disseminação de informações, o
conhecimento técnico-científico e o uso de tecnologias, aplicados ao modo de
vida da população rural, estão sistematicamente vinculados aos modelos de
pesquisa e desenvolvimento atribuídos ao trabalho do extensionista.
As ações de intervenção, por muito tempo, restringiram-se apenas
ao papel de transferência de tecnologias e foram realizadas de forma
verticalizada e de forma intencionada por quem as coordenava. O enfoque
sistêmico nas ações de pesquisa-extensão, denominado como modelo
de pesquisa Farming Systems Research (FSR), orientou instrumentos
metodológicos na busca de inserir a participação das populações rurais e
outros segmentos sociais que se encontravam à margem do desenvolvimento
que se almejava para o meio rural.
Na tentativa de uma melhor interação entre atores partícipes do processo,
a participação se tornou o elemento essencial em todos os métodos de pesquisa
para o meio rural, embora não seja entendida da mesma maneira em todos eles.
Karam & Freitas (2008) esclarecem que alguns métodos consideraram como
participação o simples fato de o experimento ser realizado no estabelecimento
do produtor rural e não totalmente em um centro experimental, como ocorria
à época. Porém, havia alternativas em que a participação desempenhada pelo

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produtor poderia ser mais ativa, em que ele se envolveria e debateria com o
pesquisador e outros produtores sobre o que estava sendo pesquisado, numa
perspectiva bottom-up, que resultaria em conhecimento novo para todos os
atores envolvidos. Entretanto, a aplicação sempre era orientada de acordo
com o desejo da instituição coordenadora e dos propósitos socioeconômicos,
ambientais e políticos que esta pretendia alcançar.
Nesse contexto, Chambers (1993) propôs um novo modelo de pesquisa
para o espaço rural, em que os atores presentes na comunidade seriam os
agentes protagonistas de seu próprio desenvolvimento, definindo, por sua
vez, um modelo chamado nas ciências agrárias de Farming First (FF), pelo
qual a comunidade é convidada a acessar o uso da tecnologia conforme
suas capacidades e prioridades. O objetivo não é transferir tecnologia para
a comunidade, tampouco que a análise seja feita pura e simplesmente pelos
agentes externos, mas empoderar a comunidade para aprender, adaptar e fazer o
melhor uso da tecnologia. Nesse modelo “o conhecimento local é único, sendo
sistematizado e avaliado para a assimilação e incorporação ao conhecimento
científico” (Diniz, 2007, p.24).
Por muito tempo, os pesquisadores estiveram enraizados no modelo
tradicional de transferência de tecnologia, exercendo funções de comando na
tomada de decisões e não contando com a participação da comunidade nas
questões locais. No entanto, com o tema da participação em voga, atribuído pelo
modelo FF, bem como a importância da comunicação face a face e por ações
– muitas vezes, inadequadas à realidade das comunidades –, mudanças foram
ocorrendo, e a qualidade da interação entre os agentes externos e produtores
foi-se transformando, atribuindo-se a esses agentes novos papéis, como se
destaca na tabela a seguir.

Tabela 1. Atividades dos produtores e os novos papéis dos agentes externos


Atividades dos atores locais Novos papéis dos agentes externos
Análise, escolha, experimento Articulador, catalisador, conselheiro,
investigador, auxiliar, agente de opções,
orientador, consultor, facilitador, mediador
Fonte: adaptado de Chambers (1993) e Diniz (2007).

Coube aos atores locais a análise, escolha e forma de conduzir os


processos do experimento, responsabilidades que antes eram assumidas apenas

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pelo pesquisador. Foi a partir da adoção de um modelo criado numa perspectiva


participativa que surgiram, em meados da década de 1970, os primeiros
manuais do diagnóstico rural participativo (DRP), que possibilitavam obter
novas informações sobre os aspectos socioeconômicos e os possíveis recursos
provenientes no meio rural.
Segundo Dias (2006), os diagnósticos rurais apareciam como meios para
a melhor compreensão dos processos de promoção do desenvolvimento e de
estímulo à participação dos beneficiários das ações. Os diagnósticos defendiam
a ideia de que não seria possível intervir em uma realidade, sem antes conhecê-
la. Neste caso, a introdução de novas tecnologias dependeria de sua adequação
à realidade diagnosticada.
O uso de técnicas participativas no processo de intervenção social e o
papel assumido ou atribuído aos agentes externos que as utilizam passaram
a ganhar espaço nas discussões sobre as ferramentas utilizadas para o
reconhecimento dos grupos sociais no meio rural. O uso dos diagnósticos
participativos representa um verdadeiro avanço para o processo de participação
da comunidade e, consequentemente, para a construção da cidadania e o
protagonismo dos produtores (Souza, 2009), desde que sejam incorporadas as
especificidades de cada comunidade.
É necessário ajustar a técnica à realidade da comunidade local, sem
preocupar-se apenas com sua aplicação, mas é imprescindível valorizar os
aspectos éticos e morais presentes na interação social dos indivíduos, pois,
em muitos casos, as técnicas participativas precisam ser adaptadas em virtude
da realidade local e do processo de intervenção (Milagres, 2011). O uso das
ferramentas participativas permite maior compartilhamento e controle das
informações que estão sendo geradas, proporcionando a base para a participação
e o empoderamento das comunidades (Milagres & Ferreira Neto, 2016).

As técnicas participativas “são desenhadas para trazer os menos


privilegiados para dentro do processo de desenvolvimento” (Lorio, 2002, p.32).
A questão não é só a utilização de uma metodologia participativa, mas fazer
com que a comunidade e os técnicos entendam-se quanto à implementação
desse processo. Deve-se considerar a multidimensionalidade das necessidades
dos indivíduos, bem como suas capacidades para enfrentar metodologicamente
os reais problemas e desafios.

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Para Lorio (2002), a participação tem ganhado destacada relevância


como mecanismo no processo de empoderamento. Experiências em diversas
partes do mundo têm mostrado que processos participativos possibilitam
estratégias de empoderamento, e que o uso das metodologias participativas
favorece o estabelecimento de práticas de desenvolvimento que contemplam as
necessidades das pessoas envolvidas no processo. Entretanto, a mesma autora
chama a atenção para a forma como são trabalhados os conceitos de participação
e empoderamento. Para a autora, esses são conceitos diferentes. Enquanto o
empoderamento pode ser considerado um fim em si mesmo, a participação é tida
como um meio para atingir essa finalidade, podendo ou não ter como resultado
o empoderamento dos indivíduos. Se as metodologias participativas utilizadas
não ficarem limitadas apenas ao nível mais baixo e forem capazes de romper o
isolamento de alguns grupos sociais, poderão impulsionar o empoderamento
para mudar relações sociais, políticas e econômicas, além de criar identidades
positivas para os atores partícipes do processo.
A participação dos indivíduos deve ser compreendida como um processo
permanente de construção social ao redor de conhecimentos, experiências e
propostas de transformações para o desenvolvimento. A participação deve
ocorrer no marco do diálogo de saberes, de forma ativa, organizada, eficiente
e decisiva (Andrade, 1997).
Apesar de oferecer vantagens para o processo de desenvolvimento, a
participação recebe, também, algumas críticas por aqueles que a veem a partir
de uma perspectiva mais pragmática. No estudo Six unconventional theories
about participation, Kliksberg (2000) nos faz refletir sobre o quanto é necessária
uma abertura nas relações de poder, para que as promessas da participação
comunitária possam tornar-se realidade em benefício dos setores desfavorecidos
de uma região e colocar em foco o que consiste a sua nova legitimidade.
Segundo o referido autor, a participação tem triunfado no discurso, mas na
prática nem tanto. A participação implica profundas mudanças sociais, o que
gera resistências e, quando ameaça interesses estabelecidos, desenvolvem-se
estratégias para impedir que ela seja realmente implementada.
Para Kliksberg (2000), alguns empecilhos ao avanço da participação
podem ser apontados, tais como: a) quanto à eficiência, ao se questionar a
participação em termos de custo e tempo; b) o reducionismo, ao se privilegiarem
as relações de custo/benefício, medido em termos de incentivos econômicos e

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não de valores e motivações humanos do processo participativo; c) o predomínio


de uma cultura organizacional formal, em que a ordem, a hierarquia, os processos
formalmente regulados e uma percepção verticalizada e autoritária produzem
um choque de culturas entre técnicos e comunidade; d) a subestimação dos
pobres, pois acredita-se que os excluídos e não alfabetizados são incapazes
de participar segundo as exigências do técnico, o que resulta em trapaças no
processo participativo, e a participação se converte em profecia autorrealizada
em domínio das elites; e) a tendência à manipulação da comunidade, via
clientelismo com um discurso de promessas e apoio aos líderes escolhidos “de
cima”, o que ocasiona frustrações quanto a projetos ditos participativos; e, por
último, f) o problema do poder que nem sempre é compartilhado por parte das
autoridades ou das elites dominantes.
Nesse sentido, o papel daquele que conduz o processo de intervenção
(pesquisador/extensionista) em trabalhos que envolvem ação de cunho
participativo é o de estabelecer o diálogo e a aprendizagem mútua, com todos
os sujeitos envolvidos no processo. Coelho (2005) ressalta que a intervenção
não ocorre apenas com o fundamento de promover uma mudança de ordem
técnica, mas mudanças que tenham relações com questões sociais e políticas,
além da decisão coletiva de grupos humanos se tornarem reconhecidos.
A comunidade, o produtor rural, todos trazem consigo conhecimentos
locais que são fontes de um saber que pode ser complementado e inserido num
saber científico. Por isso, trabalhos que utilizam métodos participativos são
importantes, pois distribuem o poder entre aqueles envolvidos na intervenção
social. É responsabilidade do agente externo trabalhar a qualidade do processo
de discussão; não é seu papel, porém, participar ativamente da discussão do
grupo, mas otimizar a discussão em torno de interesses coletivos (Colette, 2001).
O agente externo tem a incumbência de conduzir o diálogo, sem perder
de vista o seu papel de equacionar os problemas, acompanhar e avaliar as ações
planejadas, tudo isso feito de forma a gerar reciprocidade por parte do coletivo
envolvido no processo de intervenção.

Nota-se, portanto, que os empecilhos a serem enfrentados em relação


aos processos participativos não dependem tão fundamentalmente do uso
de métodos participativos, mas sim das pessoas envolvidas no processo de
intervenção que trazem consigo o discurso da participação. Assim, deve-

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se considerar que, no processo de intervenção, a participação não deve ser


entendida como um conceito que tem por objetivo igualar as pessoas, mas sim
o de articular interesses distintos, que envolvem o exercício do poder entre o
trabalho dos técnicos e suas instituições e o conhecimento local da comunidade.

ESCALAS DE JUSTIÇA SOCIAL E EXTENSÃO RURAL

A ideia de uma teoria da justiça e o enfretamento da injustiça é o ponto


crucial dos estudos elaborados por Nancy Fraser. O objetivo da autora (Fraser,
2001, 2002) é o de mostrar que tanto as injustiças formadoras das desigualdades
econômicas, quanto as do não reconhecimento da identidade de determinados
grupos sociais são impedimentos à participação plena na esfera pública. Neste
caso, o problema reside em encontrar soluções que contemplem ambos os
níveis da justiça, de maneira que não haja uma substituição de um nível por
outro. Em outras palavras, sem o estabelecimento da igualdade em seus vários
níveis, não há uma participação que se dê, de fato, entre iguais (Pizzio, 2016).
Nessa perspectiva, Fraser (2001, 2006) postula a formulação de um
princípio normativo que inclua ambas as reivindicações, sem reduzir umas às
outras. Desta forma, propõe o princípio da paridade de participação, segundo
o qual a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros da
sociedade interagirem como pares. Pretende-se, neste artigo, analisar a prática
da extensão rural, a partir do trabalho de mobilização dos técnicos extensionistas
com os agricultores familiares, tendo-se por elemento mediador a adoção
participativa da agroecologia, marco dos sistemas de produção sustentáveis
adotados pela política nacional de extensão rural. Interessa-nos, também, refletir
acerca da noção de justiça social como critério de intervenção social e o uso
das técnicas participativas que os extensionistas utilizam com os agricultores
familiares.
Pizzio (2016) menciona que, apesar de este tema ser controverso, o que
é o caso da justiça social, o seu caráter impreciso decorre de uma abordagem
que a concebe como derivada de um procedimento institucional, vinculado a
uma justiça formal e de base material, e uma outra procedente de uma conduta
individual vinculada à ética e à moral. Superar a injustiça significa desmantelar
os obstáculos institucionalizados que impedem o caráter participativo pleno de
exercer seu direito na interação social (Fraser, 2008). Dito de outra forma, as

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situações de justiça e injustiça implicam critérios institucionais que envolvem,


além de elementos éticos e morais, aspectos materiais e simbólicos (Pizzio, 2016).
O apogeu do estado de Bem-Estar, no pós-guerra, tinha como preocupação
as políticas de redistribuição no combate às injustiças: “seja como políticas de
transformação social – quando a redistribuição questiona as bases do poder
–, seja como políticas compensatórias” (Vianna Jr., 2010, p.84). No entanto,
as políticas redistributivas não teriam resolvido “as questões relacionadas à
injustiça de gênero, de raça, de etnia, e o reconhecimento da diferença, da
identidade desses grupos passou a ser relevante mesmo para uma redistribuição
de renda mais efetiva” (Vianna Jr., 2010, p.85).

Nesse sentido, Fraser (2008) contribui com o debate ao citar alguns


dilemas da redistribuição e do reconhecimento. Aponta que: a) é preciso que
se investigue se o problema do reconhecimento é uma questão de justiça ou
autorrealização; b) deve-se analisar se a redistribuição e o reconhecimento
são efetivamente dois paradigmas normativos diferentes, ou se alguns deles
podem ser subsumidos; c) descobrir como podemos separar as reivindicações
de reconhecimento legítimo daqueles que são injustificáveis; e, ainda, d)
estabelecer se a justiça requer o reconhecimento do que é distintivo em grupos
ou indivíduos, ou se é o reconhecimento da nossa humanidade comum.
Por muito tempo, acreditou-se que “as reivindicações de uma distribuição
igualitária representavam o ideal de justiça” (Pizzio, 2016, p.358). Entretanto,
o que ocorre é que o problema da justiça no mundo globalizado necessita ser
reformulado. É nesse entendimento que Fraser (2008) propôs determinada
estratégia para pensar a questão da justiça social, diante dos efeitos produzidos
pelas instituições sociais a partir das práticas e valores que elas difundem na
sociedade.
A reivindicação do reconhecimento da diferença de culturas – inclusive materiais
– não hegemônicas, herdadas e transmitidas por grupos sociais subalternos
historicamente excluídos dos benefícios das políticas públicas pode ser vista
como um esforço em direção da desinstitucionalização dos critérios de valoração
econômica e dos indicadores de produtividade que atribuíram historicamente a
tais comunidades as qualidades negativas do atraso tecnológico e da insuficiência
competitiva (Acselrad, 2010, p.29).

Para Fraser (2008), a crítica deve ser feita tomando-se como base a
injustiça econômica e a forma como as políticas redistributivas são adotadas.

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Além disso, a globalização está introduzindo uma “fissura” cada vez mais ampla
entre a territorialidade estatal e a efetividade social.

Figura 1. A tridimensionalidade da justiça social por Fraser (2008)


Fonte: Fraser (2008).

Desse modo, como assinala Fraser (2008), as teorias da justiça devem


converter-se em três dimensões: uma que incorpore a dimensão cultural
(reconhecimento), outra a dimensão econômica (redistribuição) e, ainda, uma
dimensão política (representação).
A tridimensionalidade da justiça social, como teoria proposta por Nancy
Fraser em seu livro intitulado “Escalas de Justicia”, pode nos ajudar na reflexão
acerca dos discursos que envolvem o uso de técnicas participativas, como
mecanismo de intervenção realizado pelos técnicos da ATER pública, para
promover o modelo agroecológico e reconhecer os agricultores familiares como
agentes protagonistas da PNATER.
É importante considerar que a extensão rural passou por uma fase de
“difusão de tecnologias” para o uso agregado de ferramentas de desenvolvimento
rural, indo além das questões agronômicas, tornando ampla a atuação acerca
das soluções para os problemas do campo, em especial para os públicos da
agricultura familiar.
Na dimensão redistributiva, os estudos de Resende & Mafra (2016)
apontam que o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(Pronaf) é uma política de crédito para a categoria agricultura familiar, que
deve ser pensada para além dos números de acessos e entendida como voltada

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A PNATER como mecanismo de justiça social para a agricultura familiar

a sujeitos de direito em busca do reconhecimento de suas especificidades. Para


os autores, é preciso problematizar o reconhecimento potencial, por parte do
Estado, dos sujeitos rurais que acessam esta política, assumindo-se que esse
reconhecimento não se faz com uma política eminentemente redistributiva, que
se limita a uma ótica capitalista e de acumulação de riquezas8.
No que se refere à dimensão política, a agricultura familiar ganhou
espaços nos serviços de extensão rural a partir de eventos como a criação da
PNATER, em 2004 e sua alteração com a Lei n º 12.188/2010 (Brasil, 2010),
e da Lei 11.326 de 2006, conhecida como Lei da Agricultura Familiar (Brasil,
2006). A luta dos movimentos sociais organizados e os direcionamentos dos
programas de desenvolvimento rural, do extinto Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA), foram importantes para a consolidação dessa conquista.
No entanto, em razão da gama de agricultores familiares no rural brasileiro
(pescadores artesanais, assentados, extrativistas, quilombolas, indígenas,
entre outros situados em comunidades tradicionais), bem como suas tipologias
diversas de produção (convencionais e orgânicos), defender apenas um tipo de
modelo agrícola é excluir do papel do técnico de ATER a função de mediador
social e, assim, é necessário estabelecer diálogo que permita administrar a
realidade dos agricultores. “A mediação deve operar como um espaço construído
e legitimado socialmente por grupos que interagem a partir de debates sempre
renovados e circunscritos a circunstâncias específicas” (Fiuza et al., 2007,
p.36). Assim, a PNATER de 2004 e a Lei 12.188 têm entre seus princípios a
recomendação de fomento a uma agricultura em bases ecológicas sustentáveis,
sem excluir outros modelos produtivos. Trata-se, portanto, muito menos de um
modelo exclusivo e muito mais da recomendação de princípios alinhados com
uma agricultura em bases sustentáveis.
Fraser (2008) postula que reforçar essa dimensão política fornece
a criação de novos cenários onde se desenvolvem lutas por redistribuição
e reconhecimento. Pode-se, então, questionar: ao colocarmos todos os
agricultores familiares como usuários e beneficiários de um sistema de produção
sustentável e da adoção dos princípios da agricultura de base ecológica, estamos
fortalecendo e direcionando o acesso deles a projetos que incentivam apenas
práticas agroecológicas? Levam-se em conta, no processo participativo, os
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Nesse sentido, embora Fraser destaque a importância do reconhecimento como elemento fundamental, a
autora não descarta a importância das políticas de redistribuição econômica como medida para garantir
independência e voz aos participantes.

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C. S. F. Milagres et al.

direcionamentos tecnológicos produtivistas que, por muito tempo, contribuíram


para atender as necessidades de um mercado interno? Ou estamos por elaborar
e disseminar técnicas participativas que, ao propor modelos de produção mais
amplamente utilizados, têm dificultado o reconhecimento dos inúmeros públicos
que envolvem a categoria agricultura familiar?

Ainda, no que se refere ao trabalho realizado pelas instituições públicas


de extensão rural, o que se nota é a tendência de articular as necessidades da
comunidade com os objetivos propostos pelos editais públicos (ou chamadas
públicas), o que contribui para a dependência do/subordinação ao Estado, ao
invés de se reivindicar o reconhecimento e a representação dos agricultores
familiares. Em outras palavras, a adoção de uma agricultura agroecológica em
detrimento de uma agricultura produtivista estabelece critérios de pertencimento
social. E é a dimensão política da justiça que especifica o alcance das demais
dimensões e diz quem está incluído ou excluído do conjunto daqueles intitulados
a uma justa distribuição e reconhecimento recíproco (Fraser, 2008).

Na dimensão reconhecimento, chamamos a atenção para o papel do


mediador social, exercido pelo técnico extensionista perante os agricultores
familiares que buscam reconhecimento como categoria sociopolítica. Estendendo-
se a proposição de desenvolvimento para além da matriz tecnológica, há o
entendimento de que o reconhecimento desses agricultores familiares somente
poderia ocorrer com a intervenção social de agentes de desenvolvimento como
mediadores. O processo de reconhecimento e de intervenção ocorreria, então, por
meio da utilização de técnicas participativas adequadas ao público atendido pelo
serviço de extensão rural, embora seja preciso compreender que este processo de
intervenção se baseia na produção de consensos coletivos, a qual se afasta das
proposições usuais de participação (Muniz, 2007). Além disso, a dimensão do
reconhecimento busca enfrentar as variações culturais que são transformadas em
hierarquias de valores mediante esquemas interpretativos injustos. Ademais, as
diferenças de grupos não existem antes de sua transvalorização hierárquica e são
contemporâneas de si mesmas. Nesse sentido, busca-se valorizar a peculiaridade
do grupo, reconhecendo-se sua especificidade. Revitalizam-se, assim, questões
como a divisão sexual do trabalho no meio rural e a valorização e contribuição
do trabalho das mulheres nesse ambiente. Existe aqui toda uma dimensão de
reconhecimento da contribuição das mulheres rurais para o desenvolvimento da
agricultura familiar, que se desdobra em meio ao empoderamento dessas mulheres

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A PNATER como mecanismo de justiça social para a agricultura familiar

nos processos de governança e no seu reconhecimento diante das políticas públicas


para a agricultura familiar.
A perspectiva de gênero estabelece um viés crítico diante da naturalização
das formas de subjugação de homens e mulheres, em uma sociedade de
dominação masculina, o que se expressa de fundamental importância no campo
de possibilidades onde os indivíduos posicionam-se socialmente (Fiúza, 2012).
O papel exercido pela mulher rural nas atividades do campo, por exemplo,
precisa ser evidenciado e, ainda, situado dentro das dinâmicas globais a que
se refere o trabalho participativo de que trata a extensão rural. O trabalho da
mulher é frequentemente interpretado como não técnico e, por muitas vezes,
sua participação, embora decisiva, permanece detrás da fachada ocupada pelo
“chefe de família”, o homem. Ainda que houvesse uma melhora, por meio da
concessão de Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) para as mulheres, o seu
reconhecimento está atrelado a uma questão redistributiva, conforme trata o
Pronaf Mulher.
A participação é um processo social dinâmico e multidimensional e,
por trás do discurso “participativo” e de sua incorporação ao discurso do
desenvolvimento, está o reconhecimento de complexas relações sociais,
econômicas, políticas, culturais, ambientais e históricas que explicam a realidade
das comunidades (Amodeo, 2007). Além disso, ressalta-se o risco que existe
nos processos participativos de se utilizar uma noção simplista do conceito
de comunidade, que desconheça as relações de poder, os desequilíbrios de
interesses e as necessidades dos diferentes segmentos sociais, como é o caso
do contexto da agricultura familiar.
A comunidade, para se beneficiar dos projetos, passa a integrar novas
instâncias participativas e, de certa forma, abandona as organizações tradicionais
locais. Quando os projetos acabam, as organizações constituídas para esse fim
não conseguem sobreviver. O que se percebe, portanto, nada mais é que uma
representação falida da categoria agricultura familiar, em que as regras que
envolvem a decisão política negam injustamente os indivíduos que pertencem
à classe dos agricultores familiares de participar como pares na concretização
do projeto/ação de extensão rural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abordagem apresentada por Nancy Fraser assinalou algumas
contribuições e reflexões, para pensarmos os sentidos atribuídos aos processos

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C. S. F. Milagres et al.

participativos que almejam o reconhecimento e a representação política da


agricultura familiar ante as práticas agroecológicas de extensão rural exercidas
pelas instituições públicas de ATER.
Atribuir a participação como elemento do reconhecimento, redistribuição
e representação, ou seja, como exercício da ideia de justiça social, pode
incomodar os profissionais “românticos”, que veem no uso das técnicas
participativas a solução para validar o processo político de tomada de decisão.
Entretanto, a matriz agroecológica também pode ser interpretada como um
modelo politizado, em que o Estado pretende manter seu poder de regular,
controlar e enquadrar o público atendido.
Apesar de a mulher rural ser valorizada a partir da crítica ao modelo de
desenvolvimento produtivista, como salienta Fiúza (2012), não se nota uma
atenção aos papéis que a mulher exerce no meio rural nem um reconhecimento
delas como trabalhadoras rurais e beneficiárias de políticas públicas para além
da questão produtiva. Ainda que o trabalho da mulher ocorra em casa, por
meio de serviços “do lar” e/ou com atividades manuais e artesanais, este não
amplia a participação da mulher no espaço público e, consequentemente, o seu
reconhecimento. Entretanto, é preciso reconhecer os avanços obtidos com o
Pronaf Mulher.
Faz-se também uma análise crítica acerca dos métodos participativos
e da forma como estes veem sendo exaltados pelas próprias instituições
públicas de ATER e seus respectivos técnicos. Esta crítica não tem por
objetivo a proposição de reforçar os modelos de dominação repulsados pelo
conhecimento técnico-científico e amplamente difundidos na extensão rural
brasileira, mas apenas separar o discurso da prática e da forma tutelar como
os mediadores realizam os serviços públicos de assistência técnica e extensão
rural no campo.

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Trabalho recebido em 19 de maio de 2018 e aceito em 13 de novembro de 2018.

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