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A REINSCRIÇÃO DE UMA LÍNGUA DESTITUÍDA: O NHEENGATU NO BAIXO

TAPAJÓS1

THE REINSCRIPTION OF A DESTITUTED LANGUAGE: THE NHEENGATU AT LOW


TAPAJÓS
Sâmela Ramos da Silva Meirelles2
Resumo
O presente trabalho se concentra no campo de estudo de revitalização e retomada linguística de
línguas indígenas, e tem como objetivo compreender a reinscrição do Nheengatu a partir de um
conjunto de memórias, discursos e práticas erigidas pelos povos do Baixo Tapajós, no Oeste do
Estado do Pará. Há mais de vinte anos, essa região tem uma intensa mobilização étnica,
contando atualmente com 13 povos, mais de 8 mil indígenas, 70 aldeias e 18 territórios em
diferentes etapas do processo de reconhecimento e demarcação. A reinscrição do Nheengatu
como língua étnica frente à paisagem linguística considerada monolíngue nessa região é tomada
como uma ação política diante dos discursos de extinção e de silenciamento de suas
coletividades e epistemologias. Trata-se de um projeto contra-hegemônico de autoafirmação de
coletividades indígenas, de reconstituição de uma memória ancestral e da afirmação da
continuidade de modos de ser e relações ancestrais por meio da rememoração e ressignificação
de práticas linguísticas e culturais. Assim, ao mesmo tempo que os povos do Baixo Tapajós se
reinscrevem como indígenas, reinscrevem o Nheengatu como língua ancestral.
Palavras-chave: Povos do Baixo Tapajós; Mobilização étnica; Retomada linguística;
Nheengatu; Língua ancestral.

Abstract
This work focuses on the study of revitalization and linguistic resumption of indigenous
languages, and aims to understand the reinscription of Nheengatu from a set of memories,
discourses and practices erected by the peoples of the Low Tapajós, in the West of the State of
Pará. This region has had an intense ethnic mobilization for over twenty years, currently
counting on 13 native peoples, more than 8 thousand indigenous people, 70 villages and 19
territories in different stages of the recognition and demarcation process. The reinscription of
Nheengatu as an ethnic language in the face of the linguistic scenario considered monolingual
in this region, is taken as a political action in view of the speeches of extinction and silencing
of its collectivities and epistemologies. This is a counter-hegemonic project for the self-
affirmation of indigenous communities, for the reconstruction of an ancestral memory and the
affirmation of the continuity of ways of being and also of ancestral relations through the
remembrance and re-signification of linguistic and cultural practices. Thus, at the same time
that the peoples of the Low Tapajós reinscript themselves as indigenous, they also reinscript
Nheengatu as an ancestral language.
Keywords: Low Tapajós People; Ethnic mobilization; resumption; Nheengatu language;
Ancestral language.

1
Tese defendida no Programa de Linguística da Universidade Estadual de Campinas em 2020, sob
orientação do professor Wilmar da Rocha D’Angelis.
2
Professora Adjunta na Universidade Federal do Amapá, Curso de Letras Libras/Português. Membro
do Grupo de Trabalho Nacional da Década das Línguas Indígenas e da Rede de Pesquisadores de
Línguas Ancestrais.
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1. Primeiras palavras
Este trabalho apresenta algumas reflexões históricas, político-identitárias e linguísticas
do processo de retomada do Nheengatu no Baixo Tapajós como língua étnica a partir de um
conjunto de memórias, discursos e práticas linguísticas. Essas reflexões são parte de minha tese
de doutorado (SILVA MEIRELLES, 2020)
O Baixo Tapajós, localizado no oeste do Pará, é uma sub-bacia hidrográfica do rio
Tapajós que compreende os estados de Mato Grosso, Pará e Amazonas, que tem uma grande
importância ambiental, social e cultural, e tem sido alvo de estudos para implantação de
barragens e hidrelétricas. Nessa sub-bacia estão situados três municípios: Santarém, Belterra e
Aveiro.
Desde o final da década de 90, a região do Baixo Tapajós tem sido palco de uma intensa
mobilização étnica. Comunidades antes categorizadas como “ribeirinhas” ou “caboclas”
passaram a se articular politicamente e reivindicar formalmente, junto à Funai, seu
reconhecimento étnico e a demarcação de suas terras. As lutas políticas e identitárias, nas quais
os povos considerados extintos articulam a reinscrição de suas identidades étnicas, têm
desestabilizado o cenário sociocultural e a paisagem linguística a partir das retomadas
linguísticas de suas línguas ancestrais.
Os povos do Baixo Tapajós são constituídos por treze identidades étnicas: Arapium,
Apiaká, Arara-Vermelha, Borari, Jaraqui, Kumaruara, Maytapu, Munduruku, Munduruku -
Cara Preta, Tapajó, Tupaiú, Tapuia e Tupinambá. Esses povos representam uma população de
8 mil indígenas, 70 aldeias e 18 territórios, e são representados, politicamente, pelo Conselho
Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA), cuja área de atuação compreende os rios Tapajós,
Arapiuns, Maró, e as regiões do Planalto Santareno e Eixo Forte, que englobam os municípios
de Santarém, Belterra e Aveiro.
Santarém é uma das cidades mais importantes dessa região. O padre João Felipe
Bettendorf fundou, no lugar onde era a “aldeia dos Tapajós”, a “Missão dos Tapajós” em 22 de
junho de 1661, que foi elevada à categoria de vila em 1758 pelo governador da província do
Grão Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, recebendo o nome de Santarém, em
homenagem à cidade portuguesa de mesmo nome. Como um grande polo regional, a cidade de
Santarém é um espaço de constantes disputas sociais, territoriais, conflitos resultantes da
implantação de grandes projetos, sobretudo ligados ao agronegócio, às empresas mineradoras,
à construção de portos, barragens e hidrelétricas, dentre outros. Essas iniciativas são parte de
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um conjunto de intervenções do próprio Estado e agentes econômicos que visam a exploração
dos recursos naturais.

Mapa 1 – Zona de confluência entre os rios Tapajós, Arapiuns e Amazonas, com principais Áreas
Protegidas (Terras Indígenas, Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns e Flona) e povos indígenas
contemporâneos

Fonte: Mahalem de Lima (2018).

Nossa pesquisa parte da análise do processo que denominamos reinscrição de línguas e


de identidades étnicas no Baixo Tapajós, no contexto de mobilização étnica implementada pelos
povos do Baixo Tapajós e suas organizações. Para desenvolver essas questões, tomamos duas
perspectivas como centrais para a discussão. A primeira é a perspectiva da historiografia social
que abarca as categorizações, descrições e informações construídas por missionários, viajantes
e demais agentes coloniais sobre a ocupação indígena da região, registros que foram feitos do
século XVII ao XX. Ainda nessa perspectiva estão classificações contemporâneas utilizadas
para definir as pessoas nessa região. A segunda diz respeito à articulação dos povos indígenas
e ao projeto político que eles têm construído no Baixo Tapajós a partir do final da década de
90. Damos visibilidade ao Movimento Indígena na região, levantando informações e reflexões
sobre suas primeiras ações e a constituição de suas organizações.

A seguir, abordamos a continuidade desses projetos políticos conduzidos pelos povos


no Baixo Tapajós. Enfatizamos as memórias e os discursos produzidos em torno da afirmação
do Nheengatu como língua étnica dando destaque à retomada do Nheengatu, tanto por meio da
escolarização quanto das oficinas e cursos desenvolvidos e articulados pelas organizações
indígenas locais.
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2. Panorama sociohistórico no Baixo Tapajós: duas perspectivas
Esta seção se situa num novo panorama social no oeste paraense a partir da articulação
dos povos indígenas e a sua luta para se reinscreverem na história da região. Discutimos esse
processo de mobilização étnica a partir da autoidentificação dos 13 povos indígenas do Baixo
Tapajós. Apesar de não termos a pretensão e a presunção de fazermos uma análise
antropológica completa do assunto, compreendemos a importância dessa contextualização
panorâmica, pois consideramos que a retomada do Nheengatu no Baixo Tapajós está
intrinsecamente relacionada ao processo de autoidentificação.
Consideramos fundamental contextualizar essa mobilização étnica, sua luta por seus
direitos constitucionais à terra e ao seu reconhecimento legal como povos originários. Dessa
maneira, a frase “eu existo, não neguem a nossa existência”3 tem sido a máxima no Movimento
Indígena no Baixo Tapajós, dada a constante deslegitimação dos processos de retomadas
indígenas articuladas pelos povos e suas organizações na região.

2.1. A historiografia oficial dos primeiros séculos: viajantes, jesuítas e demais agentes
coloniais e suas descrições
A história oficial da região do rio Tapajós e seus afluentes foi narrada por viajantes,
naturalistas, missionários e outros agentes coloniais que registraram suas viagens. Tratamos de
relatos, feitos nos séculos XVII, XVIII e XIX, sobre os povos que encontraram nessa região,
que descrevem a localização dessas nações, práticas de subsistências, características ambientais
e geográficas, além de práticas culturais e sociais, inclusive intertribais.
Quando a ocupação colonial dessa região iniciou, no século XVII, havia numerosa
população que habitava as margens desses rios. A primeira passagem pioneira da qual se tem
registro foi da expedição de Francisco Orellana e sua tropa pela desembocadura do rio Tapajós
em 1542. As primeiras expedições portuguesas ao interior do rio Tapajós de que se tem registro
foram as de Pedro Teixeira, em 1626 e 1628, quando, em companhia de Bento Rodrigues de
Oliveira, buscava aprisionar índios. Em 1661, os jesuítas fundaram a Missão dos Tapajó, porém,

3
Essa frase é frequente nas manifestações políticas que reivindicam a legitimidade dos povos do Baixo Tapajós,
sempre exposta em cartazes e nos discursos de lideranças indígenas.

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trinta anos depois, segundo os registros da época, quase mais nada teria restado dos Tapajó e
nem dos Tupinambá (BETTENDORF, [1698] 1990).4
Segundo Bettendorf ([1698] 1990), a primeira missão na área Tapajós-Madeira foi a dos
Tapajós (1661) na foz do rio de mesmo nome, seguida da missão dos Tupinambarana (1669)
com aldeamento no rio de mesmo nome, atual Mamuru. O padre Antônio Vieira incumbiu o
padre João Bettendorf da missão na região do rio Tapajós.
Além da Missão dos Tapajós, os inacianos fundaram no rio Tapajós as missões: São
José dos Maitapús (1722), Iburari (1723), Nossa Senhora dos Arapiuns (1723), que a partir de
1730 passou a ser denominada como Cumaru (DANIEL [1776], 1976) e Santo Inácio (1740).
São José dos Maitapús foi descrita pelo padre jesuíta João Daniel ([1776] 1976), missionário
que visitou várias localidades da região e que atuou entre os Arapium. As missões de São José
dos Maitapús, Nossa Senhora dos Arapiuns, Iburari e São Inácio são, hoje, respectivamente,
Pinhel, Vila Franca, Alter do Chão e Boim. Atualmente, essas três primeiras antigas missões se
autoidentificam como Maytapú (Pinhel), Arapium (Vila Franca) e Borari (Alter do Chão).

Mapa 2 – Missões no rio Tapajós e localidades atuais

Fonte: Silva e Rego, 2020.


Os missionários jesuítas e seus aldeamentos dominavam a região entre os anos de 1680
a 1757 quase exclusivamente. Segundo Menendéz (1992), esporadicamente tem-se a presença
de tropas de resgate ou de expedições interessadas na extração das drogas do sertão. No

4
As edições em português, a partir da primeira, de 1910, nas páginas da Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, simplificaram a grafia do sobrenome do famoso jesuíta alemão; seu nome completo e corretamente
grafado na forma original era Johann Philipp Bettendorff.
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entanto, a partir da política pombalina, que promulga a expulsão dos jesuítas, a ocupação dessa
região começa a ser feita pelos colonizadores portugueses não-religiosos.
No século XVII, o explorador francês La Condamine ([1743-1744] 2000), em viagem
pelo rio Amazonas, destacou o trabalho dos missionários jesuítas em amansar as nações
selvagens e guerreiras no rio Tapajós. Os registros de La Condamine ([1743-1744] 2000) dão
ênfase aos Tupinambá como principais habitantes da região. Quando os portugueses chegaram
ao rio Tapajós, encontraram muitos povos indígenas. Os Tapajó e os Tupinambá eram os mais
fortes da região e mantinham sob sua influência outros povos (MENENDEZ, 1981/1982). De
acordo com João Barbosa Rodrigues (1875, p. 125), os Tapayu ou Tapajós dominavam o Baixo
Tapajós.
Em 1768, o padre José Noronha registrou a presença dos Topinambaz na região do lado
Uaicurapá, os quais passaram para a Missão de Santo Inácio, atual Vila Boim, ficando
conhecida como a barra do rio Topinambaránas (NORONHA, [1768] 1862, p. 26). Essa missão
foi formada pelo descimento dos Tupinambá, como demonstramos no mapa abaixo.

Mapa 3 – Deslocamento dos Tupinambá do rio Uaicurapá à Vila de Boim

Fonte: Silva e Rego, 2020.


Sobre os Tapayu ou Tapajó, os viajantes registraram o que chamaram de desintegração
e assimilação, ao passo que apenas “poucos se recordavam ainda da sua primitiva fala”, e
preferiam usar a “língua geral5” (NORONHA, [1768] 1862). Segundo Rodrigues (1875, p.

5
O termo língua geral é usado para se referir à Língua Geral da Amazônia (LGA), uma das línguas gerais do
Brasil. A Língua Geral da Amazônia desenvolveu-se no Maranhão e no Pará a partir do Tupinambá e tornou-se a
língua da colonização nos séculos XVII e XVIII, “veículo não só da catequese, mas também da ação social e
política portuguesa e luso-brasileira até o século XIX”. Essa língua ainda é falada na Amazônia, principalmente
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130), a época do desaparecimento dos Tapajó começou em 1750 por conta de “uma epidemia
de cursos de sangue”. De acordo com ele, em 1798, eles já não existiriam mais a não ser
cruzados com outros.
No entanto, durante sua viagem, feita em 1872, Rodrigues (1875) narra ter encontrado
com uma “velha Tapajós, em Santarém e nella vi pela primeira vez em seu pescoço um grosso
muirákitan, que guarda como uma relíquia, e diz ser boa para dores de garganta”
(RODRIGUES, 1875, p. 130). Os muiraquitãs serviam como amuletos de sorte e eram dados
como presentes. Atualmente, os muiraquitãs são usados como souvenir, como artesanato,
comercializados no âmbito turístico, mas também têm sido retomados pelos indígenas como
parte de aspecto ancestral.
Rodrigues (1875, p. 131) menciona outras nações que viviam pelas margens do rio
Tapajós e que foram, segundo ele, exterminadas pelos Muticurus, hoje denominado
Munduruku, ou haviam fugido para outros lugares da região: Apaunuariás, Amanajás,
Marixitás, Apicuricus, Moquiriás, Anjuariás, Jararéuaras, Apecurias, Cenecuriás, Motuari,
Anjuariás, Uarupás, Periquitos e Suariranas.
Esse quadro de desaparecimento dos Tapajó é reforçado nos registros do naturalista
Henry Bates, que viajou pela Amazônia no século XIX, chegando ao Pará em 1848. O viajante
afirmou que o nome da nação Tapajós não era mais conhecido na região, mas acreditava que
alguns descendentes deles viviam nas margens do Baixo Tapajós. O naturalista registrou
também os índios que moravam em Alter do Chão, denominados Burari. Ressalta que entre
1835-1836, os Burari se juntaram aos “revoltosos6 no ataque a Santarém”, e muitos morreram
no massacre subsequente, restando alguns poucos homens mais jovens, mulheres e crianças.
Bates (1852) registra uma situação de fome e penúria, na qual essas pessoas se encontravam:
“quando chegamos ao porto nossa canoa foi cercada por gente seminua [...] que vieram
mendigar um pedaço de pirarucu salgado [...]” (BATES, 1852, p. 161).

no Estado do Amazonas, rio Negro, língua materna de povos que não falam mais suas línguas ancestrais, como os
Baré. Atualmente, designa-se de Nheengatu (língua boa, fala bonita) e “difere não só do Tupinambá, mas também
da Língua Geral da Amazônia do século XVIII. As diferenças em relação a esta última se devem não apenas a
mudanças ocorridas com o passar do tempo[...], mas também ao fato de que certamente se constituíram diversos
dialetos da Língua Geral da Amazônia, segundo diferentes regiões em que ela veio a ser falada: baixo Tocantins,
baixo Tapajós, rio Negro, Solimões etc” (RODRIGUES, 1994, p. 103).
6
Os revoltosos se referem aos cabanos, como eram conhecidos aqueles que lutaram na Cabanagem entre 1835-
1840.
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Ainda no século XIX, Henri Coudreau, na viagem de 1895 a 1896, registrou algumas
aldeias da região, as quais já foram citadas nos registros acima, exceto Santa Cruz, Uxituba,
Alter do Chão (Borari). Segundo ele, Santa Cruz e São José dos Maitapús eram habitadas pelos
Munduruku predominantemente. Abaixo, inserimos a representação dos Munduruku, “Mulher
e criança Munduruku”, aquarela de Hercule Florence. Seus modelos eram indígenas membros
de um grupo do Tapajós que, em viagem, cruzou o acampamento da expedição Langsdorf em
abril de 1828.

Imagem 1 – Os Munduruku

Fonte: Florence (2007).


A respeito das políticas de apreensão de índios, na época das missões, havia sido
instituída a política de descimentos. Essa política consistia em trazer os indígenas para os
aldeamentos, seja pelo tratado de paz que eles eram obrigados a fazer após um período de
guerras com os colonizadores e suas tropas, seja pelo aprisionamento realizado pelas tropas de
resgate. Assim, o acesso à mão-de-obra indígena foi discussão central entre os agentes da
Amazônia colonial. O trabalho da catequese foi fundamental até o século XVIII, e provocou
uma grande e intensa movimentação de indígenas, que chegava a concentrar em um mesmo
aldeamento nações diversas. A política de aldeamento ia concentrando, numa mesma missão,
diferentes povos indígenas e nivelando-os por um só padrão linguístico e cultural, através do
aprendizado da língua geral, que se tornou a língua mais falada na região até o século XIX.

Em meados do século XVIII, os missionários jesuítas foram expulsos das missões que
comandavam e veio o período do Diretório dos Índios (1757), do Marquês de Pombal, que entre
outras coisas proibiu o uso da língua geral. Mesmo assim, ela continuou sendo bastante usada
na Amazônia. Segundo Bessa Freire (2011, p. 17), “apesar da decisão política, a língua geral
continuou crescendo, e entrou no século XIX como língua majoritária da população regional”.
Sobre a presença dessa língua na região do Baixo Tapajós, Nimuendajú, na década 1920,
constata que “a grande maioria dos nomes locais indígenas da região pertence à língua geral,
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que até hoje em Alter do Chão não está ainda completamente extinta” (NIMUENDAJÚ, 1949,
p. 98).
Sessenta anos depois da edição do Diretório, Spix e Martius (1981) encontraram a
língua geral como a de principal uso dos indígenas na região. Os dois naturalistas subiram o
Amazonas, no trecho praticamente inabitado por brancos entre o Xingu e o Tapajós, em
setembro de 1819. Depois de relatar um episódio de pesca, chegando mais próximo do Tapajós,
afirmam que “os índios aldeados, em proporção com o tempo em que moram na povoação,
abandonaram os seus hábitos e línguas, e falam o tupi, ou, se mais longa é a sua convivência
com os colonos, falam o português” (SPIX; MARTIUS, 1981, p. 97).
Adiante, falando de Santarém (“chamada Tapajós na língua geral”), “a vila mais
importante de todo o Amazonas” (SPIX; MARTIUS, 1981, p. 98), esses dois naturalistas
afirmam que
[...] poucos se recordavam ainda da sua primitiva fala; também poucos haviam
assimilado perfeitamente o português ou a língua geral; antes falavam esta
última estropiadamente, cada um a seu modo. Já aqui começa a ser veículo
preferido a língua geral, por meio da qual os colonos se comunicam com os
índios... etc. (SPIX; MARTIUS, 1981, p. 100).

Isso quer dizer que a língua geral, ainda que falada “cada um a seu modo”, por conta do
contato linguístico com outras línguas, era majoritária naquela extensão e época. Era a língua
dos povos da região, e era também por ela que os não-indígenas se comunicavam com eles. As
línguas originais e mais antigas, de cada etnia, só tinham já seus últimos lembrantes.
Após a expulsão dos jesuítas, deu-se início a uma mudança completa na organização
política e de exploração nas missões que foram efetivadas como vilas. O padre João Daniel
([1776] 2000, p. 398) registrou o levante dos índios em São José de Maitapús que não estavam
satisfeitos com o novo governo e sua forma de controle e exploração do trabalho. Na ocasião
mataram o diretor, fugindo o vigário escondido pelos matos.
Mesmo depois das primeiras incursões dos colonizadores, da instalação das missões e
domínio dos religiosos, da instalação de uma nova organização política com o Diretório do
Índios, “os descendentes dos Maytapu, Gurupá, Mawé, Jaguaim, Munduruku, Cara Preta e
outros mais resistiam, ali, aparentemente submissos e silenciados [...]” (VAZ FILHO, 2010, p.
117-118).
Essa afirmação contundente contrapõe o discurso de intelectuais locais e de pessoas da
classe política que negam as alteridades indígenas na atualidade. Apenas de forma genérica ou

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folclórica a influência dos índios é citada na cidade de Santarém, seja no dia do folclore ou nas
festas juninas nas escolas da cidade, e até mesmo no Festival do Sairé7. Os livros mais usados
pelos estudantes em Santarém e municípios vizinhos registram a extinção dos povos indígenas
e os apresentam como parte apenas de um longínquo passado (FONSECA, 2015; SANTOS,
1974).
No entanto, o cenário de certa “estabilidade” começou a mudar pouco antes da virada
para o século XXI, quando se iniciou na região um intenso movimento de autoafirmação
indígena (IORIS, 2014; VAZ FILHO, 2010). Passados vinte anos do processo de mobilização
étnica, dezenas de comunidades da região, anteriormente classificadas como caboclas ou
ribeirinhas, declararam publicamente suas identidades indígenas, inauguraram a luta pelo
reconhecimento de seus direitos à autoidentificação e retomaram a luta pela demarcação de seus
territórios no Baixo Tapajós.

2.2. De índios a caboclos: as classificações e o padrão de indianidade como parâmetro


para a declaração de extinção
O que discutimos acima mostra como esses entes classificadores, dotados de
legitimidade, não somente descreveram agrupamentos humanos, culturas e línguas, mas os
classificaram sob seus próprios modelos. Tratamos, nesta seção, as classificações estabelecidas
pelos entes classificadores a partir do século XX, enfocando nos efeitos reais que tais
classificações têm.
Como aponta Moreira Neto (1988), a atitude anti-indígena dos setores dominantes da
sociedade regional na Amazônia consolidou políticas de homogeneização dos índios. Esse autor
chama esse processo de tapuização, processo de descaracterização e transformação em um
índio genérico, chamado de tapuio. Segundo Moreira Neto, “nesse processo havia uma
sistemática destruição de modos de vida tradicionais, da herança cultural dos grupos, o

7
A Festa do Sairé é realizada anualmente no distrito de Santarém denominado de Alter do Chão, localizado a 40
km de Santarém. Reúne elementos religiosos e profanos, e é resultado de práticas indígenas pré-coloniais recriadas
no contexto da catequese jesuítica e do que era possível manifestar como práticas religiosas. A festa é repleta de
simbolismo, com detalhes que mostram a influência do período de colonização, como é o caso do símbolo maior,
o arco do Sairé, que lembra um escudo português, e que louva o Divino Espírito Santo. Segundo Stradelli ([1929]
2014, p. 477), “Sairé, como geralmente se assevera, representa o mistério da SS. Trindade e seria uma piedosa
invenção dos jesuítas. [...] O sairé tem cantos e rezas especiais em língua geral, mas dos que tenho tido ocasião de
ver me parece poder afirmar que são de origem e procedência diversa, e que o que se canta no rio Negro é diverso
do que se canta no Solimões, no Baixo Amazonas, e no Pará”.

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apagamento de seus mitos, de seus pajés e de suas línguas, sendo que estas últimas eram
substituídas pela introdução da língua geral” (MOREIRA NETO, 1988, p. 36).
A política de desintegração das chamadas sociedades tribais empreendida pelo período
jesuítico continuou na reforma político-administrativa resultante do diretório pombalino. Sob
essa nova administração se elevam localidades à categoria de vilas, como Missão dos Tapajós
a Vila de Santarém, Missão dos Iburari a Vila de Alter do Chão, Nossa Senhora dos Arapiuns
a Vila Franca, São Inácio a Vila Boim, e São José dos Maitapús ao lugar Pinhel (todos nomes
de lugares em Portugal), e também eleva a categoria de seus moradores (MAHALEN DE
LIMA, 2015).
Bessa Freire (2011) aborda um processo de mudança de classificação que toma o uso
das línguas como critério distintivo. Segundo esse autor, há uma relação entre a situação
sociolinguística e as categorizações na Amazônia que começa na transição de índios tribais
para os aldeamentos. Esse autor apresenta as categorias índio tribal, índio manso, índio tapuio
e índio civilizado ligadas à situação sociolinguística que ele define como trânsito entre
monolinguismo e bilinguismo.
A nova administração desses espaços dá seguimento ao aprofundamento da mudança
social em toda Amazônia, agora não mais sob o comando dos missionários jesuítas, dando
continuidade ao mesmo projeto colonial de transformar aquelas nações em cidadãs de Portugal,
cristãs, falantes de português e, principalmente, mão de obra.
De acordo com Bessa Freire (2011), no final do século XIX, esse processo se
consolidava no estabelecimento de mais um termo, caboclo, como exposto no quadro acima,
para designar o índio civilizado. Segundo Bessa Freire (2011, p. 186), a categoria caboclo é a
designação usada para “tapuio ou seu mestiço que já não se exprime no, completamente
esquecido, nheengatu materno”. Ainda há mais um significado para caboclo, “ignorante e rude”
(BESSA FREIRE, 2011). Nesse contexto, essa classificação passou a ser usada para categorizar
a população tida como miscigenada, mestiça, “destituídos de conotações etnonímicas
específicas, que denotavam o pertencimento a nações gentílicas” (MAHALEM DE LIMA,
2015, p. 72).
Para Mahalem de Lima (2015), o relato de Curt Nimuendajú8, em 1924, marca uma
nova mudança classificatória. A expedição de Curt Nimuendajú tinha como objetivos

8
Segundo Mahalen de Lima (2015), a expedição começa quando “Nimuendaju partiu de Alter do Chão (aldeia
Borari) e atravessou o Tapajós até chegar à Vila Franca (aldeia arapiuns). De lá, navegou por doze dias até chegar
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inventariar sítios de terra preta e vestígios cerâmicos, identificar agrupamentos pré-
colombianos e especificar a partir de fontes escritas o que poderia ter levado essas populações
à extinção em meados do século XVIII (MAHALEM DE LIMA, 2015). A extinção dos Tapajó,
por exemplo, é dada pelas “ocorrências trágicas (epidemias, mortes, apresamento) que
provocaram o esvaziamento e a declaração de extinção da missão [Tapajó] (grafada no Mapa
Etno-histórico de Nimuendajú) é tomada como se fosse a própria extinção demográfica total
das populações que atravessaram essas contingências” (MAHALEM DE LIMA, 2015, p. 70).
Segundo esse autor, a declaração de extinção de povos etnicamente “distintos” em
meados do século XVIII tem mais relação com mudanças classificatórias produzidas pelos entes
classificadores em seus textos do que com a extinção demográfica e cultural dos classificados.
Essa afirmação se coaduna com a força ilocucionária dos enunciados que, no ato da enunciação
das classificações, cumprem seu papel performativo. Fazem isso ao classificarem os povos
indígenas e ao afirmarem quem eles são ou quem não são mais, seja por sua dada extinção física
ou cultural.
Essa perspectiva é sedimentada dentro das ciências antropológicas pelos trabalhos de
Charles Wagley e Eduardo Galvão na vila de Gurupá, cuja nome fictício foi Itá, tendo como
objetivo enfatizar a ideia de que suas análises e descrições poderiam ser expandidas para
qualquer localidade do vale do Amazonas (MAHALEM DE LIMA, 2015). Nesse cenário no
qual as “sociedades tribais” e “sociedades caboclas” eram vistas como fechadas em si mesmas
e definidas a partir de fronteiras bem delimitadas e fixas, nas próximas décadas aprofunda-se a
“ruptura entre os tipos de caboclo e o indígena” (MAHALEM DE LIMA, 2015).
No Brasil, a partir da década de 70, a norma legal que categoriza o índio, estabelecendo
existência jurídica, é o Estatuto do Índio, Lei n. 6.001/1973, para o qual a condição jurídica de
índio passa por dois critérios: 1) “origem e ascendência pré-colombiana”; 2) “se identifica ou é
identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da
sociedade nacional” (BRASIL, 1973). Ao assim proceder é que a legislação nega a legitimidade
de outras concepções de indianidade performadas e atualizadas pelos povos.

à cachoeira do Aruá, localizada na foz do rio homônimo, um dos três principais afluentes do rio Arapiuns. A
viagem insere-se no contexto em que o autodidata alemão realizou seis jornadas de investigação (1923 e 1926)
focadas no levantamento de sítios arqueológicos e fontes escritas primárias sobre toda a região da Amazônia
central. Os trabalhos foram realizados com apoio do Museu de Gotemburgo na figura de Erland Nordenskiold, e
do Museu Paraense Emílio Goeldi, onde colaborava sobretudo Manoel Barata” (MAHALEM DE LIMA, 2015,
p. 67).
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Carneiro da Cunha (2017, p. 254) trata dos critérios que podem decidir se uma
comunidade é ou não indígena, iniciando por aqueles “critérios que a antropologia social
rechaçou formalmente”. A condição jurídica à qual a sentença se refere ao retomar o Estatuto
do Índio é a origem e ascendência pré-colombiana, e está vinculada ao problemático e
“duvidoso critério racial ou pseudo-genético (origem e ascendência pré-colombiana) que deixa,
ademais, no limbo a questão da ‘pureza’ de tal origem e ascendência” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2015, p. 24).
Na década de 90 outras classificações emergem no cenário social, são as populações
tradicionais, indígenas e quilombolas. Tais classificações passaram a contrariar as teses
generalizantes atreladas a uma ideia de universalismo abstrato, “sociedades caboclas” ou
“campesinato tradicional” que se referiam às populações da Amazônia, Baixo Tapajós
(MAHALEM DE LIMA, 2015); e à ideia de “perda cultural”, assimilação ou desintegração
étnica.
Há dois outros critérios centrais para a análise dos discursos de extinção. O primeiro, e
mais antigo, é o critério racial que está relacionado com a compreensão biológica, assentado
nos aspectos físicos que compõem uma outra raça distinta dos europeus. O segundo, não menos
biologizante que o primeiro, deu “à noção de cultura reificação semelhante à noção de raça”
(CARNEIRO DA CUNHA, 2017, p. 240). Esses dois critérios estão vinculados a uma
perspectiva essencialista e natural de se conceber os sistemas de significação (CUCHE, 2002).
Nesse sentido, a antropologia de base biológica, enquanto ciência ocidental, dominada pelo
positivismo da sua fundação, compreendia a cultura como dotada de “qualidades de substância
natural” (SAHLINS, 1997, p. 41).
A condição indígena e a condição negra foram forjadas sob concepções eurocêntricas
através da construção de novas identidades na classificação da população mundial, e não apenas
da América. Essas questões nos fazem entender como as identidades foram naturalizadas numa
ideia de “raça”, uma construção mental que possuía um status de categoria biológica
(QUIJANO, 2005). A raça enquanto construção teórico-ideológica é analisada por teóricos
decoloniais como resultado da categorização dos povos em uma hierarquia cronológica. Em
vez da distância geográfica apenas, os povos da América, suas línguas e seus conhecimentos
são considerados “primitivos”, como se colonizadores e colonizados estivessem em tempos
históricos diferentes.

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A partir desse quadro teórico-analítico tomamos a concepção de indianidade autêntica
que compõe os discursos, não só os contemporâneos, que promulga a extinção, assimilação ou
mestiçagem dos agrupamentos humanos no Baixo Tapajós. Mais recentemente, diante do
processo de mobilização étnica, os discursos de extinção também se fundamentam na
inexistência das etnias indígenas na região, “entextualizando e atualizando discursos coloniais
que reiteram uma representação generalizante, estática e essencializada de uma indianidade
autêntica, construída como inevitável e natural, mantida por rígidas fronteiras biológicas
(ligadas à ideia de raça) e culturais (ligadas à ideia de etnicidade)” (NASCIMENTO, 2018,
p. 1424).
A concepção de uma indianidade autêntica se vale dos sinais diacríticos como prova
de etnicidade. O vínculo estabelecido entre a ausência de um traço diacrítico, como língua
indígena, escancara uma concepção hegemônica que tem confrontado povos que passaram por
um longo processo histórico, colonial e nacional, de imposição de outras línguas e de outros
modos de existência. Em resposta à exigência de traços diacríticos, pautados por um padrão
de indianidade, urge a necessidade de línguas indígenas para marcar a diferença. A partir dessa
pressão externa que impõe elementos como “cultura” e “língua” como amarras aos povos
originários (NASCIMENTO, 2018; MAHER, 2010; 2016) e vincula a “disponibilização” de
direitos a uma indianidade autêntica, uma reação possível é a de mostrar as provas que
legitimariam a etnicidade.
As concepções hegemônicas de língua como produtora de etnicidade é parte dos
discursos de resgate. Consideramos a dimensão dialética desse processo, pois ao mesmo tempo
que a concepção de língua como produtora de identidade afeta as suas práticas de linguajamento
(o ato de pensar as línguas como estratégias de ser/estar no mundo), há também uma
apropriação desses construtos hegemônicos como uma maneira de resistir, de subverter a
pressão externa. Os povos do Baixo Tapajós lidam com a representação da prefiguração
identitária que pode ser encontrada até mesmo na Constituição de 88, “onde ‘ter direito a sua
língua’ é também ‘tenha uma língua diferente do português’ para que eu te reconheça como
indígena” (OLIVEIRA; PINTO, 2011, p. 329).
O padrão de indianidade pressuposto pela prefiguração identitária pressupõe a
estabilidade, como se coletividades humanas pudessem permanecer, ou, como preferem alguns,
“preservar/manter” línguas e culturas étnicas intactas. Ou seja, qualquer movimento que
desestabilize o padrão de indianidade torna-se suspeito (MAHER, 2010; 2016), e por ser
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suspeito não apresenta uma indianidade autêntica. Podemos confirmar isso nos discursos da
sociedade não-indígena, da mídia, dos agentes econômicos e da classe política ligada ao grande
capital que tentam monitorar e controlar as identidades minoritárias no Brasil movidos por seus
interesses na exploração das terras indígenas.
Nesse sentido, dialogar com os construtos de línguas hegemônicos, como língua como
produtora de identidade, e se apropriar deles é também subverter sua legitimidade, se torna mais
um instrumento de luta contra os discursos que negam autoidentificações e que os colocam em
posição de menos índios ou até índios falsos. O intelectual indígena Gersem Luciano (Gersem
Baniwa) afirma que se discrimina os povos indígenas, ou por serem índios demais ou serem
índios de menos. “Se eu sou índio demais, esse é o exótico, o romântico, deixa ele pra lá...se é
índio de menos, coitado, esse aí não é mais índio” (LUCIANO, 2017).
Os discursos de extinção, seja pela mudança classificatória, seja os mais
contemporâneos que negam as continuidades étnicas, se ancoram em uma concepção de
indianidade composta por enunciados ilocucionários que rejeitam as indianidades dinâmicas e
em constante atualização enunciadas pelos próprios indígenas, agem e atualizam uma ideia de
uma única indianidade estática, “autêntica”. Como atos ilocucionários, performativos, as
classificações têm efeito real sobre os povos no Baixo Tapajós.

2.3. A reinscrição do passado e as transformações do presente: articulação política e as


organizações indígenas no Baixo Tapajós
Reinscrição é um conceito que usamos para definir a ação política dos povos do Baixo
Tapajós frente aos discursos de extinção das identidades étnicas e das línguas indígenas. O
processo de mobilização étnica dos povos do Baixo Tapajós constrói um novo discurso e
ressignifica práticas linguísticas e socioculturais, memórias, laços ancestrais, a história que não
foi narrada na historiografia oficial, nas práticas, nos corpos subalternizados, no repertório
linguístico e nos conhecimentos ancestrais.
A reinscrição retoma, ressignifica e atualiza línguas, memórias ancestrais e lutas
ancestrais e identidades. Essas identidades étnicas são construídas por referência, tendo um
projeto político comum e uma história, uma memória histórica compartilhada. Nesse sentido, a
reinscrição do passado está relacionada a um passado comum, pois a compreensão da existência
de um passado compartilhado é constitutiva do estabelecimento de identidades étnicas. No
entanto, isso não significa a manutenção perene das tradições, mas a sua atualização,
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ressignificação. Desse modo, esse processo não é a volta ao passado, mas é a reinscrição do
passado nas transformações do presente. Ao mesmo tempo que eles/as se reinscrevem como
povos originários, reinscrevem o Nheengatu como uma de suas línguas étnicas.
É fundamental iniciarmos contextualizando a atuação das organizações indígenas nesse
panorama de engajamento étnico e político na região. Nosso primeiro interlocutor, nesta seção,
é o ativista e pesquisador indígena Florêncio Vaz Filho, mais especificamente sua tese de
doutorado, “A emergência étnica de povos indígenas no Baixo Tapajós”.
A primeira entidade fundada nesse contexto foi o Grupo de Consciência Indígena (GCI)
em 1997, que teve como principal idealizador Florêncio Vaz Filho junto com jovens advindos
do Grupo de Reflexão dos Religiosos Negros e Indígenas (GRENI) e outros ligados ao
movimento pela criação da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns9. Antes mesmo do Grupo de
Consciência Indígena (GCI) ser criado, militantes sociais de Santarém se organizavam no
Grupo de Reflexão de Religiosos Negros e Indígenas (GRENI), um grupo criado,
nacionalmente, em 1993 no âmbito da Igreja católica (VAZ FILHO, 2010).
Os primeiros militantes do GCI eram quase todos provenientes das comunidades da
região, mas que já residiam em Santarém. O objetivo era “resgatar a cultura e a identidade
indígenas. Suas atividades concerniam em reuniões com estudos e celebrações religiosas, com
destaque para a história, os símbolos e cânticos indígenas” (VAZ FILHO, 2010, p. 35, grifo do
autor). As lutas contestando a extinção dos indígenas no Baixo Tapajós se iniciaram de forma
mais sistemática com a criação do GCI e essas ideias em ebulição partiam da retomada de
alteridades indígenas que emergiam com relatos e memórias do que lhes contavam seus avós
sobre a presença indígena na região.
Os militantes do GCI passaram a realizar estudos sobre a história e as tradições culturais
dos indígenas no Brasil e, particularmente, na Amazônia. Nesse contexto, o pesquisador
indígena Florêncio Vaz Filho é fundamental. Os primeiros trabalhos de pesquisa sobre essa
memória das práticas indígenas se iniciam com as incursões desse pesquisador nas
comunidades, em destaque para Pinhel e Taquara.

9
A Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns (Resex) é uma unidade de conservação federal do Brasil categorizada
como reserva extrativista e criada por Decreto Presidencial, em 06 de novembro de 1998, numa área de 647.610
hectares, no estado do Pará. A Resex abrange 74 comunidades localizadas nos municípios de Santarém e Aveiro,
criada a partir da articulação dos moradores do rio Arapiuns e Tapajós que tinham suas áreas exploradas de forma
predatória, principalmente pela atividade madeireira. Nessa conjuntura, ONGs, Associações Comunitárias e
entidades de base da Igreja Católica se uniram em defesa das terras e contra o avanço do grande capital na região.

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O trabalho de consciência indígena que o GCI começou a fazer ressignificou a
designação índio. As constantes visitas às comunidades consistiam em reuniões e encontros
realizados a partir de 1999 e continuaram intensamente até 2004, “ao redor de uma grande
fogueira, à noite, cantavam e dançavam, tomando as bebidas fermentadas de mandioca e
lembravam os seus antepassados” (VAZ FILHO, 2010, p. 36).
O I Encontro Indígena foi realizado na comunidade Jauarituba, entre os dias 31 de
dezembro de 1999 a 01 de janeiro de 2000. Participaram desse encontro as comunidades Santo
Amaro e Taquara, além de militantes do GCI. Abaixo, um registro do ritual de abertura,
realizado na praia, às margens do rio Tapajós.

Imagem 2 – Ritual no I Encontro Indígena, em 1999/2000

Fonte: Vaz Filho (2010).


Ao mesmo tempo, em Santarém, o movimento de retomadas étnicas teve visibilidade
por meio da realização de seminários, nos quais os líderes indígenas se faziam presentes como
palestrantes nas mesas-redondas, entre antropólogos e ativistas de Belém e de outros lugares do
país. Nessas oportunidades, o GCI e os primeiros líderes indígenas davam visibilidade para a
mobilização étnica que estava emergindo nas comunidades.
Durante os anos 1998 e 2004, os ativistas do GCI contribuíram significativamente com
assessoria às comunidades na organização de cursos sobre direitos indígenas e formação inicial
de lideranças, além disso, estabeleceram intercâmbio com outras organizações políticas
indígenas como o Conselho Indígena Missionário (CIMI) e com a Coordenação das
Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).
Como desdobramento da articulação étnica e do contato com outras organizações
indígenas de outras partes do país, em 23 de maio de 2000, foi fundado o Conselho Indígena

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Tapajós e Arapiuns (CITA), para representar o Movimento Indígena da região que mantinha,
juntamente com o GCI, um escritório em Santarém. Nesse momento inicial de mobilização
étnica, os encontros indígenas realizados de 1999 a 2004 (sem interrupções) se constituíam em
ações de formação política. Esses encontros foram espaços políticos fundamentais para o
fortalecimento cultural e político, que também se consolidavam como espaços de formação de
lideranças e de desenvolvimento de novos discursos sobre si mesmos, suas memórias ancestrais
e práticas que passaram a ser reivindicadas como indígenas.
No ano seguinte da criação do GCI, 1998, dois acontecimentos foram cruciais para a
mobilização étnica e são a chave para compreendermos como esse movimento se consolidou.
O primeiro é o falecimento de Laurelino Cruz, o líder espiritual da comunidade de Taquara e
pajé muito respeitado em toda a região, que se autodeclarava índio numa época em que os
moradores rejeitavam tal designação (IORIS, 2014; SILVA, 2013; VAZ FILHO, 2010). A
morte do pajé Laurelino trouxe grande comoção entre os moradores de Taquara, o que se
desdobrou na decisão de se assumirem como indígenas, já que o próprio ancião sempre
declarava essa identidade.
Imagem 3 – Pajé Laurelino Cruz

Fonte: Vaz Filho (2010).


Por consequência disso, no mesmo ano de seu falecimento, 1998, seus filhos procuraram
a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), na cidade de Itaituba/Pará, para informar que eram
índios e que estavam reivindicando a demarcação do seu território como terra indígena, bem
como o reconhecimento de sua alteridade.
Taquara, Bragança e Marituba foram as três primeiras comunidades a declararem
publicamente sua autoidentificação étnica Munduruku. Em seguida, Muratuba e Vila Franca,

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comunidades também no rio Tapajós, assumiram-se indígenas, contrariando os discursos
oficiais de extinção de alteridades indígenas na região.
Como argumentamos anteriormente, uma série de eventos organizados pelo GCI e CITA
marcou os primeiros passos dessa mobilização étnica na região, dentre eles estão: a Assembleia
da Terra e Tradição, a I Missa Indígena e o I Encontro do Povos Indígenas do Rio Tapajós,
todos realizados em 1999. Na Marcha dos 500 anos, em Porto Seguro (BA), em abril de 2000,
11 comunidades se autoidentificavam indígenas (SILVA; VAZ FILHO, 2018).
Atualmente, são 13 povos indígenas, 70 aldeias, reunindo cerca de 8 mil pessoas, que são
representadas pelo Conselho Indígena dos rios Tapajós e Arapiuns (CITA).

Mapa 4 – Territórios indígenas no Baixo Tapajós

Fonte: Silva; Rego, 2020.

Ao longo desses anos de articulação política dos povos do Baixo Tapajós, tem se
construído um amplo processo de resistência a esses discursos que deslegitimam a luta indígena
na região. A partir desse quadro de apresentação dos povos indígenas no Baixo Tapajós,
podemos evidenciar que esses povos se reinscrevem como sujeitos dentro de outra lógica de
historicização, ou seja, da sua autoinserção na construção de signos que marcam sua entrada
nessa história regional, construindo uma memória atualizada de seus vínculos étnicos, do que
significa ser indígena numa região, até pouco tempo, tida como “área cultural cabocla”.

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3. O ensino de Nheengatu como estratégia política de retomada
A principal política que instaurou o processo de retomada linguística foi construída por
meio da educação, em primeiro momento com espaços de ensino articulados pelas próprias
organizações indígenas e em um segundo momento de forma institucionalizada. Diante das
demandas iniciais, a instrução do Nheengatu como segunda língua se mostrava uma ação
factível, para a qual se necessitava estabelecer parcerias e intercâmbios com falantes de
Nheengatu de outros lugares e contar com a colaboração deles nesse processo.
O primeiro ciclo é inaugural e norteador para as demais ações que foram elaboradas nos
dois outros ciclos. Consideramos que esses ciclos têm particularidades e representam momentos
específicos, apesar de terem um mesmo objetivo, a retomada do Nheengatu como língua
ancestral, como fonte de experiências e modos de pensar ancestrais, e também pela subversão
do cenário sociolinguístico da região.
Esse primeiro ciclo marca a atuação do GCI na elaboração e execução das primeiras
oficinas de Nheengatu no Baixo Tapajós. Essa organização foi a primeira organização indígena
a discutir, planejar e construir ações em torno do Nheengatu na região. Para realizar as oficinas,
o GCI estabeleceu intercâmbio com indígenas falantes de Nheengatu do Alto rio Negro,
Amazonas, pois considerava que precisava de apoio de outros povos que ainda usavam
plenamente a língua. Essa estratégia se consolidou em todos os ciclos de ensino do Nheengatu
no Baixo Tapajós.
A primeira oficina de Nheengatu foi realizada em janeiro de 1999, em Santarém, na
Faculdade Integrada do Tapajós (FIT) sob a organização do GCI. A realização da oficina foi
noticiada pelos jornais locais10. Essa primeira oficina teve a assessoria de Celina Baré, da região
do rio Negro (AM), e tinha o objetivo de resgatar a língua indígena, o que passou a constituir
os objetivos das primeiras lideranças indígenas. O desafio de retomar o Nheengatu como língua
étnica ficou ainda mais urgente depois da “Marcha Indígena dos 500 Anos”. Esse evento
reforçou a necessidade de estratégias em torno da retomada do Nheengatu, o que desencadeou
a discussão de que precisavam “resgatar” sua língua por meio das referências e memórias que
tinham dela.

10
Vaz Filho (2010) cita as notícias sobre as oficinas de Nheengatu que circularam nos jornais escritos em
Santarém: “FIT promove Curso Intensivo de Nheengatu”, A Gazeta de Santarém, Santarém, 27/12/1998 a
09/01/1999; “Curso vai ensinar a língua indígena”, Tribuna do Tapajós, Santarém, 02-08/janeiro/1999;
“Reaprendendo o Nheengatu”, Jornal de Santarém e Baixo Amazonas, Santarém, 4 a 10 de janeiro de 1999; “Índios
e Brancos Resgatam Identidade”, Jornal de Santarém e Baixo Amazonas, Santarém, 11 a 16 de janeiro de 1999.
97

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A segunda oficina foi realizada em duas etapas, nas aldeias de Muratuba e Taquara em
julho de 2000 e duraram cerca de 15 dias, e tiveram a professora Celina Baré como ministrante.
As duas oficinas tinham como objetivo a ênfase nos estudos de gramática, mas também
abordavam dimensões históricas e culturais do uso de língua, pois além dos aspectos
linguísticos, os participantes eram levados a refletir sobre suas origens. Celina Baré afirmava
que o resgate histórico da língua tinha relação com o olhar muito mais profundo sobre as origens
daqueles povos.
A relação com essa primeira professora de Nheengatu também proporcionou um
intercâmbio de vivências. Nesse contexto, no qual seus vizinhos nutriam ainda desconfianças
sobre a sua indianidade, a presença dela conferia reconhecimento e legitimidade aos indígenas
do Baixo Tapajós, como argumentam os militantes do GCI (VAZ FILHO, 2010). Outro aspecto
importante dessas percepções e acionamento de memória também afetou a professora Celina
Baré. Em 2016, no Encontro dos 20 anos do Movimento Indígena do Baixo Tapajós11, para o
qual a professora Celina Baré foi convidada, seu relato enfatizou a potência daquele processo
que ela presenciou, pôde reconhecer como não se reduzia a uma “aprendizagem”, era a
retomada de uma língua adormecida, a identificação e valorização de práticas ancestrais.
Nos anos seguintes, 2003 e 2004, outros ciclos de oficinas foram ministrados também
por professores do rio Negro, Alberto Baniwa e Vitor Cecílio Baniwa. Esses professores
visitaram intensamente as aldeias ministrando aulas de Nheengatu e ensinando técnicas de
artesanato. Vitor Baniwa fixou residência na região e se casou com uma indígena Munduruku
de Taquara.
As oficinas organizadas pelo Grupo de Consciência Indígena (GCI) se estenderam pelos
outros anos, e “[...] estimulavam a revalorização de vários aspectos da vida comunitária, como:
crenças nos espíritos e nos pajés, alimentação e medicina tradicional, artesanato, valores morais
etc. Eram momentos de revalorização do modo de ser desses grupos [...]” (VAZ FILHO, 2010,
p. 271). Nesse aspecto, as oficinas funcionaram também como espaços de valorização de vários
aspectos da vida comunitária: crenças nos espíritos encantados, na pajelança, na alimentação e

11
Esse encontro ocorreu nos dias 30 e 31 de dezembro de 2016 e 01 de janeiro de 2017, na comunidade
Aningalzinho, no rio Arapiuns. Os objetivos do encontro eram celebrar os 20 anos de movimento indígena na
região, celebrar a memória das lutas e conquistas, refletir sobre a importância desse movimento e da articulação
política dos povos do Baixo Tapajós, incentivar os mais jovens mostrando o percurso das lutas desde seu início,
homenagear os primeiros guerreiros da mobilização étnica na região, planejar ações futuras como forma de
fortalecer o Movimento Indígena. A dinâmica do encontro foi formada por reuniões de discussão política,
atividades de espiritualidade e festas de confraternização.
98

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nas outras práticas em equilíbrio com os “donos dos lugares” - mães de rio, do mato. Falava-se
também das lembranças da infância, do que ouviram dos seus avós/ôs, que ainda falavam
palavras do Nheengatu; falavam sobre a negação do passado indígena.
A prioridade em resgatar a sua língua originária, aquela que “foi roubada”, aparece em
vários argumentos de lideranças indígenas. Nesse sentido, resgatamos a seguir a fala do cacique
Francisco de Assis (SILVA, 2013) que trata da “tomada de consciência” sobre si e suas práticas
ancestrais que esses momentos propiciaram.

[...] começamos a conhecer a realidade da língua (falando sobre a língua


Munduruku) que é mesmo nossa, que nós começamos a aprender, porque foi
uma parte que a outra classe nos tirou, o nosso conhecimento da língua
materna. Quer dizer, em modo geral... assim... Quer dizer, em modo geral,
assim, ROUBOU a nossa língua para que nós não pudéssemos mais falar
ela...conhecer [...] (SILVA, 2013, p. 90).

Os indígenas de Taquara também participaram das oficinas de Nheengatu organizadas


pelo GCI, mas nutriam o desejo de terem contato com o Munduruku, língua por eles
considerada como a sua língua originária. Depois de um longo processo de reivindicação, que
se iniciou em 2007, pelo ensino de língua Munduruku nas escolas indígenas em Belterra,
somente em 2010 as aulas de Munduruku começaram nas escolas indígenas (SILVA, 2013).
A partir desse momento, se inicia um segundo ciclo de ações que se concentravam no
estabelecimento da educação escolar indígena. As principais reivindicações dos povos do Baixo
Tapajós no início da mobilização étnica era a educação escolar diferenciada. Segundo Anjos
(2010), “as lideranças afirmavam que foi a ausência de um trabalho voltado para a valorização
do índio que contribuiu significativamente para a vergonha de se reconhecer indígena”.
Anjos (2010) ressalta que além das oficinas de Nheengatu, o Movimento Indígena, por
meio das suas duas organizações, articulou eventos anuais e fóruns sociais. É importante
enfatizar o caráter formativo e organizativo que esses espaços políticos proviam e como eles
foram fundamentais para mobilizar mais comunidades e dar organicidade necessária para
aquelas coletividades que se articulavam em torno da autoafirmação étnica. Como resultado
desses eventos deliberativos, as duas secretarias de educação, a do estado do Pará e do
município de Santarém, foram pressionadas a atender as demandas das comunidades quanto à
educação escolar indígena.

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Como resultado dessas articulações foi implantado o Magistério Indígena nas
comunidades, substituído, atualmente, pelo Ensino Modular Indígena. Na época, foi de
responsabilidade do Movimento Indígena fazer o levantamento dos alunos, efetuar as suas
inscrições e encaminhar a SEDUC em Belém. De acordo com Anjos (2010, p. 35), “o
magistério indígena foi considerado um dos avanços mais positivos para os grupos indígenas
que fazem parte do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns – CITA”.
Em 2006 foi criada a Coordenação de Educação Escolar Indígena na Secretaria
Municipal de Educação (Semed) de Santarém. Nesse mesmo ano, foram cadastradas 26 escolas
indígenas no censo escolar: 04 estão localizadas na região do planalto santareno, 07 em
comunidades do rio Tapajós e 15 em comunidade do rio Arapiuns. Desde 2007, com a
efetivação da educação escolar indígena pela Secretaria Municipal de Educação (Semed) de
Santarém, seguida pelas prefeituras de Belterra e Aveiros, os indígenas reivindicaram o ensino
das línguas indígenas nas escolas municipais.
Assim como o Magistério Indígena foi um espaço para a formação inicial de professores
indígenas, além de outros professores que já estudavam em universidades públicas e
particulares em Santarém, investindo em suas próprias formações, em 2012, a Universidade do
Estado do Pará (UEPA) começou a ofertar o curso de Licenciatura Intercultural Indígena,
campus Santarém.
Nesse contexto, no qual já estava estabelecida a Coordenação Escolar Indígena em
Santarém, as políticas em torno do ensino do Nheengatu começaram a ser objeto de luta dentro
do espaço institucional da secretaria de educação de Santarém e começou-se a delinear uma
proposta de implantação do ensino de Língua Nheengatu e Notório Saber, e seis escolas foram
escolhidas para a implementação desse projeto em 2012: Nossa Senhora Assunção, aldeia de
Vila Franca; Nossa Senhora do Carmo, aldeia Caruci; Nossa Senhora de Fátima, aldeia
Garimpo; Nossa Senhora Aparecida, aldeia Arimum; e Professor Antônio Pedroso, em Alter-
do-Chão.
Com a inserção dessas disciplinas no currículo das escolas indígenas, a formação de
professores indígenas se mostrava uma demanda importante a ser consolidada. A crescente
demanda pela formação de professores indígenas, dada a dinâmica de criação de novas escolas
indígenas nas aldeias dos 13 povos indígenas do Baixo Tapajós, provocou um novo ciclo de
cursos de Nheengatu para formar novos professores indígenas que pudessem lecionar a
disciplina Língua Nheengatu nas escolas indígenas.
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Esse terceiro ciclo é uma fase que passou a articular além das organizações indígenas e
as parcerias com falantes de Nheengatu do rio Negro, a relação com a universidade e
pesquisadores/as. Esse ciclo também está marcado pela realização do Curso de Extensão
Nheengatu e a produção de materiais pedagógicos como resultado das reflexões desenvolvidas
a partir dele pelos/as ministrantes, pesquisadores/as e estudantes indígenas. O curso de
Nheengatu foi uma atividade extensionista coordenada pelo professor Florêncio Vaz Filho, por
meio do Programa de Extensão Patrimônio Cultural na Amazônia (Pepca/Ufopa) e da Diretoria
de Ações Afirmativas (DAA/Proges/Ufopa), em parceria com o Grupo de Consciência Indígena
(GCI). O curso teve o apoio do Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns (CITA), da Custódia São
Benedito da Amazônia (Frades Franciscanos), Grupo de Pesquisa LEETRA (USP/UFSCar), da
Rádio Rural de Santarém e da Pró-Reitoria da Cultura, Comunidade e Extensão (Procce/Ufopa).
Nessa conjuntura, a atuação de militantes do Movimento Indígena na Universidade
Federal do Oeste do Pará (UFOPA), estudantes indígenas, dos professores Florêncio Vaz Filho
em parceria com a professora Luciana Carvalho (ambos do curso de Arqueologia e
Antropologia), do Programa de Extensão Patrimônio Cultural na Amazônia, é fundamental para
a idealização dessa ação.
Os objetivos delineados por esse projeto extensionista revelam como as demandas
indígenas e alguns setores da universidade, principalmente, aqueles/as intelectuais envolvidos
com os movimentos sociais, conseguiram dialogar. O objetivo central estava na formação de
professores/as de Nheengatu para lecionarem nas aldeias do Baixo Tapajós. Outros objetivos
estavam vinculados com a valorização e divulgação das culturas e os modos de ser indígena na
região amazônica, principalmente dos povos do Baixo Tapajós, com a difusão do Nheengatu
na região e com o desenvolvimento de competência linguística no Nheengatu para o
fortalecimento dos espaços sociais de uso do Nheengatu.
O curso iniciou em 2014 e tinha carga horária total de 360 horas, ofertado em período
intervalar, entre os meses de janeiro e fevereiro e julho e agosto, o que permitia que professores
e estudantes de comunidades diferentes se deslocassem para a cidade de Santarém, onde o curso
era oferecido. As aulas eram realizadas no Centro Indígena Maíra, da Custódia São Benedito
da Amazônia (Frades Franciscanos).
Entre 2014 e 2015 o curso foi ministrado pelo professor Agripino Nogueira Neto,
indígena da etnia Baré do município de Santa Isabel, na região do rio Negro (Amazonas) e pelo

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professor/pesquisador Antônio Fernandes Góes Neto12, estudante de mestrado que pesquisava
o Nheengatu no rio Negro. Nessa primeira fase o curso foi dividido em dois módulos –
Nheengatu Básico e Nheengatu Avançado – cada um com 180 horas. As metodologias
envolviam aulas de aspectos gramaticais da língua, também com ênfase na dimensão sócio-
histórica e aulas práticas, que envolviam as práticas de conversação, compreensão de textos e
escrita. O curso foi frequentado por professores/as indígenas e não indígenas e por outras
pessoas que não eram professores/as.
Em 2016 e 2017 começou outra etapa do Curso de Nheengatu13 com os outros
professores. Dessa vez o professor Miguel Piloto e a professora Maria Bidoca, da etnia Baniwa
ministraram o curso junto com a professora/pesquisadora Patrícia Veiga, estudante de
doutorado no programa de Antropologia da Unicamp, e que estudava a língua Nheengatu e
educação escolar indígena na região do rio Içana, da qual vinham Miguel Piloto e Maria Bidoca.
Ao final desses dois períodos, 2014-2015 e 2016-2017, mais de 100 alunos/as conseguiram
concluir o curso.
O Curso de Nheengatu proporcionou um maior aprofundamento dos conhecimentos
gramaticais que já circulavam por conta dos outros espaços de ensino dessa língua. Mas há um
aspecto importante no tipo de metodologia que os professores Baniwa e a pesquisadora Patrícia
Veiga construíram. Durante as aulas de conteúdos gramaticais eram construídos espaços
também para a socialização de aspectos culturais e históricos que envolveram e ainda envolvem
o uso do Nheengatu. Essas socializações eram conduzidas pelos professores, e, ao mesmo
tempo, os/as alunos/as conseguiam também relacionar com a vivência em suas comunidades e,
assim, conseguiam compreender que expressões/palavras conhecidas por eles/as, de uso
cotidiano e outros que acionavam memórias de pais/mães e avós/avôs, tinham relação com o
Nheengatu.
Esses conhecimentos produzidos durante as aulas constituíam um esforço coletivo em
torno de conhecimentos linguísticos e socioculturais que envolvem a presença do Nheengatu
contemporaneamente, proporcionando o reconhecimento e prestígio de uma língua indígena.

12
A sua dissertação teve o título “O novo Testamento em Nheengatu: um capítulo da História da Traduções Bíblica
para línguas indígenas”, defendida em 2015, no Mestrado em Estudos da Tradução na Universidade de São Paulo
(USP).
13
Frequentamos o curso, etapa de 2016-2017, pelo interesse em aprender o Nheengatu e pelo interesse na pesquisa
sobre as políticas de retomada implementadas no Baixo Tapajós, das quais o curso é uma parte significativa. Sendo
assim, nesta seção e nesta tese enfatizamos as discussões e reflexões que experienciamos durante o curso.

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Ao longo do curso, os/as alunos/as foram construindo uma profunda relação com o Nheengatu,
compreendendo essa língua como parte das suas práticas linguísticas e das práticas
socioculturais, conhecimentos ancestrais que ao longo dos mais de 20 anos do movimento
indígena têm se erigido no Baixo Tapajós.
Outro aspecto que já discutimos em outras seções está relacionado às memórias que as
atividades de reflexão linguística acionaram. Uma situação comum no curso era contemplarmos
os alunos retomando histórias que seus avós/avôs e outros mais velhos contavam sobre o uso
dessa língua, e se valendo de recursos morfológicos para explicar certos segmentos
morfológicos, como -péua (chato, achatado) nas palavras cuiapéua e acarapéua (próximo
capítulo retomamos esses elementos) e –rana.
Há, por fim, um aspecto que a estratégia política de ensino do Nheengatu desenvolveu:
a produção de materiais advindos desses momentos de produção de conhecimentos linguísticos
e culturais. Dois materiais foram produzidos a partir do curso. O primeiro deles foi o livro
“Nheengatu Tapajowara”14, uma produção coletiva dos/as alunos/as juntamente com os
ministrantes do curso no primeiro período de 2014 a 2015. Trata-se de uma produção bilíngue,
Nheengatu e português, que apresenta uma variedade de textos: relatos históricos, letras de
cantos, narrativas, receitas culinárias típicas da região etc.; acompanhados de uma série de
exercícios para aprendizagem do Nheengatu. A ênfase que se dá no título do livro ao Nheengatu
local, do Baixo Tapajós, emerge das reflexões geradas nesse curso. Emerge também da
concepção do Nheengatu como língua que está presente nas práticas linguísticas desses povos,
acionada e atualizada nesse processo de mobilização étnica.
Imagem 4 – Capa do livro “Nheengatu Tapajowara”

Fonte: http://www.leetra.ufscar.br/libraries/index/page:1/type:2

14
GOES NETO; VAZ FILHO, 2016.
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Outro material produzido em conjunto com professores/as e os/as alunos/as foi o CD
“Nheengatu – Canções na Língua Geral Amazônica”15. Trata-se de uma produção coletiva,
gravada em 2016, a partir de um processo criativo que associou a musicalidade, conhecimentos
tradicionais e o aprendizado/retomada do Nheengatu. O CD é composto por músicas de domínio
público traduzidas pelo professor Baniwa Miguel Piloto, outras músicas de compositores da
região e músicas escritas também pelo professor Miguel Piloto.

Imagem 5 – Capa do CD “Nheengatu – Canções na Língua Geral Amazônica”

Fonte: Imagem da autora.

Dentro desse terceiro ciclo, motivado pela ampliação de demandas relacionadas à


formação de professores, a Coordenação da Educação Escolar Indígena de Santarém iniciou
suas formações de professores. As duas últimas formações, 2017 e 2019, aconteceram pela
iniciativa dessa coordenação, sem financiamento direto da Semed, com o autofinanciamento
dos/as próprios/as professores/as indígenas e de suas comunidades.
Segundo Gedeão Arapium, via essa coordenação, começou-se a fazer curso de formação
e certificar os professores, “o Nheengatu sempre avançou, têm as formações, os professores que
ensinam o básico. Tu vai nas comunidades, tu vê a presença do Nheengatu nas escolas, os
meninos cantando [...]”.
A Coordenação Escolar Indígena, na esteira das estratégias de ensino de Nheengatu no
primeiro ciclo do qual falamos anteriormente, tem organizado um processo de intercâmbio
desde 2012, por exemplo, quando articulou um curso de Nheengatu ministrado pelo professor
Cláudio Mura, da etnia Mura, do município de Autazes, no estado do Amazonas. Segundo

15
Músicas disponíveis em: http://fgcproducoes.fabiocavalcante.com/alunos-de-nheengatu.html.
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Gedeão Arapium, o professor Cláudio Mura “ajudou a escrever um projeto de implantação, que
ofertasse um curso de formação, durou por um tempo, até que Semed parou de pagar o curso”.
Sobre essa experiência em Santarém, Cláudio Mura16 afirmou que

[...] na verdade, a gente nem ensinou, na verdade a nossa missão foi despertar
em cada um, né, que estava ali com a gente, foi despertar o que já existia
dentro deles, o que tava guardado dentro deles e que precisava sair pra fora,
precisava ser provocado pra fora [...].

Essa afirmação do professor indígena Cláudio Mura corrobora as palavras de Celina


Baré sobre como o trabalho deles contribui para o acionamento e a consciência das práticas de
linguagem já existentes. Trata-se não de ensinar uma língua nova, mas de proporcionar
referências para que eles possam retomar e atualizar conhecimentos linguísticos. O professor
Miguel Piloto, ministrante do Curso de Nheengatu (2016-2017), da etnia Baniwa, também
exprime a mesma percepção. Segundo ele,

[...] nós não fomos ensinar uma língua nova, e sim, a língua já existia antes.
Para mim, o que nós percebemos com a Maria17, os antepassados que
moravam por aí, já falava, as etnias que tava lá já falava...não totalmente como
está agora, mas era essa língua. Então, os antigos que moravam por aí, os mais
velhos, nós percebemos que já falava essa língua. A língua estava viva. Até
mesmo os lugares por aí, existe os nomes da cidade, do rio, dos lugares por
essa língua, a língua Nheengatu, que muitos não sabem que tava sendo falado
pelo Nheengatu.

Para o professor Miguel, a experiência dos cursos de Nheengatu possibilita a


compreensão de um repertório que permanece nos “lugares por aí”, mas que “muitos não sabem
que tava sendo falado pelo Nheengatu”.
A retomada linguística pelo ensino de Nheengatu nas escolas indígenas tem sido uma
estratégia de grande proporção na região. A política linguística inserida na escola indígena
encontra um espaço de retomada, subvertendo a escola como espaço de homogeneização e
“civilização”, apagamento da diversidade. Em outras palavras, a escola passa a ser um espaço
de valorização das práticas socioculturais e linguísticas locais.

16
Conversamos com o professor Cláudio Mura, que mora no Estado do Amazonas, por telefone no mês de agosto
de 2019.
17
Maria Bidoca, sua esposa, e que também foi professora no Curso de Nheengatu (2016-2017).
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Segundo Gedeão Arapium, “hoje podemos perceber uma grande mudança nas escolas
indígenas, as crianças valorizam a cultura indígena, cantam em Nheengatu... tem uma geração
mais bem preparada, que se compreende como indígena e valoriza isso”. Para ele, a escola é
“aliada fundamental e central” nesse processo, pois “tem uma geração que veio de 2006 pra cá,
eles valorizam porque teve esse contato desde cedo”. Assim, a educação escolar indígena
formou uma nova geração de indígenas no Baixo Tapajós, inclusive, muitos deles já estão na
Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) como estudantes universitários por meio do
processo seletivo específico18.
A escola também tem sido um espaço de retomada a partir da perspectiva de Enilda
Borari:

Dentro das escolas indígenas o ensino da língua ultrapassa a sala de aula, pois
os professores buscam com os mais velhos das aldeias o conhecimento que
eles têm e podem repassar aos alunos e professores, descobrindo palavras
novas que jamais ouviram. Dessa forma cresce o vocabulário com palavras
novas que vão para o dicionário que os próprios alunos podem construir juntos
com os professores, deixando o material na escola para que outros possam
utilizar, assim o professor e aluno passam ser pesquisadores da língua [...]. E
através de suas medicinas tradicionais, ritual, artesanato e oralidade faz com
que se revitalize a língua.
Auricélia Arapium, da coordenação executiva do CITA, também avalia que o ensino de
Nheengatu tem sido importante no processo de retomada. Para ela,

As crianças de hoje já são mais falantes do que antes. E a comunidade toda


acaba também estudando um pouco dessa língua, para a valorização da nossa
cultura. Não falamos a língua materna não porque nós não queremos. Isso veio
pela colonização. Falar o português hoje, para nós, é um pouco violento,
porque o processo foi violento. Então, reaprender e voltar a falar o Munduruku
e o Nheengatu é muito importante, para fortalecer a memória da nossa
ancestralidade, nossa identidade. É resgatar o que nos foi tirado.

No excerto abaixo, a professora Márcia Amâncio também destaca que o ensino de


Nheengatu é um aspecto chave nesse processo de retomada.

18
O Processo Seletivo Especial (PSE): ofertado desde 2010, inicialmente chamado de Processo de Seleção
Diferenciada, é destinado aos discentes indígenas e, a partir de 2015, também aos estudantes quilombolas. Esse
processo tem como objetivo a implementação da política de inclusão dos povos indígenas e quilombolas na
UFOPA, mediante reserva de vagas, por meio de processo de seleção diferenciada para os cursos de graduação da
instituição. Vale ressaltar que alguns alunos indígenas, por opção, ingressam também pelo PSR (Processo Seletivo
Regular) via Enem (PEREIRA, 2017).
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Os pais dizem assim que as crianças chegam em casa falando as palavras, né,
em Nheengatu que a gente ensina na escola. As crianças chegam cantando pra
eles, então, eles ficam espantados porque os pais, eles já tiveram um pouco
contato, como hoje eles falam eles ficam surpresos que as crianças sabem falar
mais palavras em Nheengatu que os adultos. Então, eu acho que a nossa
situação do Nheengatu é essa, transmitir para a base que nem a gente falava,
que lá, a gente tem que começar da base, não de cima pra baixo, é de baixo
pra cima.

Recentemente, houve o lançamento do livro "NHEẼGATU ASUÍ KUXIIMAWARA


KUAUSAWA TAPAJOWARA"19, que é o resultado da produção coletiva de professores
indígenas que participaram das formações continuadas promovidas pela Coordenação Escolar
Indígena que aconteceram entre os anos de 2015 e 2017 no município de Santarém.

Imagem 6 – Capa do livro “NHEẼGATU ASUÍ KUXIIMAWARA KUAUSAWA TAPAJOWARA"

Fonte: Imagem da autora.


Os três momentos que discutimos acima são resultado de ações políticas que
estabeleceram a centralidade nas experiências de linguagem. Refletem, portanto, a consciência
política das lideranças em compreender como a ideologia colonial sempre esteve atrelada de
forma sangrenta e inescrupulosa à eliminação das diferenças. Por isso, essas ações se apropriam
de um espaço de poder que é a escola e o ensino de língua, ocupam os espaços institucionais
para operaram os projetos educativos de suas línguas.

19
Esse livro foi organizado por Cauã Borari e Iára Arapium, produzido coletivamente por professores/as indígenas
do Baixo Tapajós. Trata-se de uma gramática pedagógica, resultado das discussões e conhecimentos veiculados
nas formações para professores/as indígenas que aconteceram de 2015 a 2017, organizada pela Coordenação da
Educação Escolar Indígena do município de Santarém.
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Considerações Finais
Apresentamos um quadro de análises sobre a reinscrição do Nheengatu como língua
étnica a partir de um conjunto de memórias, discursos e práticas, linguísticas e socioculturais,
erigidas pelos povos do Baixo Tapajós, compreendendo a reinscrição como parte de um esforço
e luta política. O projeto político dos povos do Baixo Tapajós evidencia a constituição de uma
ampla consciência política, ancestral e de pertencimentos a coletividades, que depois de vinte
anos de mobilização étnica tem consolidado as retomadas indígenas. Esse projeto político tem
sido conduzido pelo Movimento Indígena no Baixo Tapajós, e reúne 13 povos, mais de 8 mil
indígenas, organizações e associações indígenas, e desestabilizou a dinâmica social da região,
reinscrevendo vínculos ancestrais, subvertendo a ordem social e as classificações
homogeneizantes.

Nesse contexto, os povos do Baixo Tapajós têm atualizado práticas, incorporado outras
e negociado os seus significados diante do Estado brasileiro e da sociedade majoritária que tem,
cada vez mais, usado as lógicas identitárias sob um viés naturalista e purista, na reiteração de
um rótulo a partir de uma concepção de indianidade autêntica. É com essas amarras que os
povos indígenas brasileiros, em especial os do Baixo Tapajós, têm lutado contemporaneamente,
e que significam um entrave ao acesso de direitos originários, como a demarcação de suas
terras.
Buscamos trazer questões para a compreensão do projeto de retomadas étnicas que têm
sido protagonizadas pela própria agência indígena, com a contribuição de parceiros, e partem
de uma práxis que articula objetivos, estratégias, metodologias e políticas linguístico-culturais
com as epistemologias indígenas.
Consideramos que não estamos apenas tratando de um projeto de retomada linguística,
mas da defesa de outros modos de vida e a sua apresentação como processo civilizatório
possível diante das crises que se aprofundam, como as crises ambientais e econômicas. Assim,
a reinscrição do Nheengatu como língua étnica é também a reinscrição de modos de vida
subalternizados, e que podem nos apresentar possibilidades alternativas de relações sociais que
retomam o comunal. Como apontam as feministas comunitárias, todos podemos construir
comunidade, e essa comunalidade pode ser uma alternativa ao modelo de sociedade
individualista, capitalista, racista e opressora em vários sentidos.

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A persistência dos povos do Baixo Tapajós a partir da memória, dos discursos e das
práticas ancestrais reinscreve seus modos de pensar/relacionar e experienciar, que representam
continuidades que dão sentido à vida comunitária, aos laços com a natureza, com os seres
protetores, com os vínculos comunitários ancestrais. É desse modo, em meio às lutas históricas,
que os povos indígenas brasileiros têm articulado movimentos pujantes de resistência, e os
projetos de revitalização e retomadas linguísticas representam isso. São práticas que combatem
opressões, espoliação e expropriação material e simbólica que atuam sobre seus modos de vida,
epistemologias e línguas.

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