Tese - IdentidadesMusicaisCursoLIVIA NEGRAO
Tese - IdentidadesMusicaisCursoLIVIA NEGRAO
Tese - IdentidadesMusicaisCursoLIVIA NEGRAO
Belém
2011
Lívia Alexandra Negrão Braga
Belém
2011
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca de Pós-Graduação do IFCH/UFPA, Belém-PA)
Banca examinadora
_______________________________________– Orientador
Prof. Antônio Maurício Dias da Costa (PPGCS – UFPA)
A minha mãe, Fernanda, por ter sido para mim modelo de fé,
perseverança e coragem. Por ter me acompanhado e vibrado por cada sucesso meu
na escola. Por ter me ensinado o tempero essencial para compor o prato da vida.
Mamãe, obrigada por tudo e até breve!
Aos meus irmãos, Mara e Fernandinho, por todas as dores e alegrias que
partilhamos juntos, ainda que a distância. Obrigada por cuidarem de mim e me
amarem, apesar das minhas falhas.
Ao meu filho, Ygor, pela permissão de ser sua mãe e pela cumplicidade
musical.
Ao Movimento dos Focolares e sua fundadora – Chiara Lubich, por me
ensinarem que Deus é Pai e que Ele me ama imensamente.
Aos professores e estudantes do Curso de Música da Universidade do
Estado do Pará, por todos os ensinamentos musicais e humanos adquiridos ao
longo desses anos.
Ao Océlio, Jane e Climeni, por terem me socorrido e contribuído para que
eu pudesse concluir esta tese.
Ao meu orientador, Maurício, pela generosidade com que me acolheu e
me fez acreditar que seria possível ir além dos meus próprios limites. Desejo que
muitos outros tenham o privilégio de tê-lo como orientador.
Muito obrigada!
Há um mito arecuná (tribo do norte do Brasil e da Guiana, colhido por
Kock-Grunherg e analisado por Lévi-Strauss em O cru e o cozido)
que formula essa questão com a maior beleza possível. Trata-se do
mito da “origem do veneno da pesca” (o timbó, uma raiz que tem o
poder de narcotizar os peixes, e que tematiza ali as imbricações
polivalentes da passagem da natureza à cultura). Num certo ponto
desse mito, o arco-íris é uma serpente d’água que é morta pelos
pássaros, cortada em pedaços e a sua pele multicolorida repartida
entre os animais. Conforme a coloração do fragmento recebido por
cada um dos bichos, ele ganha o som de seu grito particular e a cor
de seu pêlo ou da sua plumagem.
O núcleo desse episódio é o sacrifício como origem do som e da cor
na escala zoológica (o som e a cor percebidos nitidamente pelo
pensamento selvagem como gradações cromáticas de um mesmo
princípio). A serpente arco-íris é o continuum dos matizes, a escala
os intervalos mínimos e indiscerníveis, como é a ordem das alturas
em música, antes de ser recortada pelas escalas produzidas pelas
culturas, e como é o próprio arco-íris, do qual só uma convicção
muito etnocêntrica pode afirmar que tem sete cores (a leitura das
cores do arco-íris varia enormemente entre as culturas, assim como
as escalas musicais). O sacrifício da serpente (que era um deslizar
cromático de nuances sem divisão) e o seu espedaçamento em
porções discretas provocará e produzirá a ordem colorística e sonora
que particulariza as espécies vivas (cuja profusa organização,
ricamente anotada pelo mito com grande acuidade etnozoológica, já
é obra da cultura) .
José Miguel Wisnik
RESUMO
This study aims at interpreting the different musical routes taken by the Music
Course students of the Universidade do Estado do Para- UEPA. The ethnographic
work allowed me to observe three profiles which stand out in the Course: the erudite
musician, the gospel musician and the popular musician. From the categories cultural
identity, musical identity, diversity and carrier, I sought to understand how these
musical identities interact and compound the singularity of a Course whose purpose
is to form musical educators. The study is presented in three parts: the first one deals
with the dense description of the Music Course, the students, the
professor/researcher and the role the disciplines Cultura Popular and Música e
Sociedade - taught by me- played considering the elaboration of the problem. The
second part begins with a theoretical approach related to the construction of
socialization networks among musicians and it also describes the profile of each
group, the erudite, the gospel and the popular, according to the way they present
themselves in the researched context. The interaction between these three groups is
the object of the third part. From the perspective of musical diversity – musical
preference and identities and cultural diversity – I point out the identities.
REFERÊNCIAS 136
APÊNDICES
146
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS – QUEM SOMOS
1
Doravante usarei também a expressão Curso de Música ou simplesmente Curso. Entenda-se,
portanto, que me refiro à Licenciatura e não ao Bacharelado.
2
Em 1895, a Sociedade Propagadora das Belas Artes criou a Academia de Belas Artes em Belém,
composta por dois departamentos: o Departamento de Artes Plásticas e o Conservatório de Música.
O maestro Carlos Gomes foi o primeiro diretor do Conservatório. De fama internacional, o maestro já
havia visitado a cidade em outras ocasiões e aceitou o convite para dirigir o Conservatório por um
curto período de quatro meses, quando faleceu. Em sua homenagem, desde então, o Conservatório
passou a ser chamado Instituto Carlos Gomes (VIEIRA, 2001). A importância do maestro nascido em
Campinas – São Paulo é tamanha que, por ocasião de sua morte, o então intendente Antônio Lemos
encomendou uma tela descrevendo a cena aos artistas plásticos italianos Domenico De Angelis e
Giovanni Capranesi. A obra, que foi concluída em 1899, é considerada o marco inicial da Belle
transformada em curso técnico, a partir da reforma do ensino superior no ano de
1968. Todavia, a obrigatoriedade da disciplina Educação Artística nas escolas
de 1º e 2º graus faz com que os egressos das escolas de música de Belém
tenham como única opção de continuidade de estudo a Licenciatura em
Educação Artística – Habilitação Música da então FEP/FAED. O Bacharelado
em Música só é fundado oficialmente em 1996.
Époque em Belém por pretender levar a Amazônia ao mundo europeu. O quadro que pertencente ao
Museu de Arte de Belém – MABE está longe de representar a realidade das últimas horas de Carlos
Gomes, e serve apenas de pano de fundo para a exibição da elite da borracha dominante na época e
com a qual ele mesmo mantinha estreito relacionamento. Sobre esse episódio ver a obra de Geraldo
Mártires Coelho, “O Brilho da Supernova: a morte bela de Carlos Gomes” (COELHO, 1995).
falta de opção, causando desconforto diante da inadequação à proposta
curricular do Curso.
3
Ritmo percussivo típico do Estado do Pará, marcado por tambores chamados curimbós. A música
cantada ou simplesmente tocada acompanha os casais que fazem evoluções enquanto giram na
roda. Uma versão singular desta tradição encontra-se em Santarém Novo, na Região do Salgado
Paraense. A dança do carimbó naquele local representa a parte profana da Festa de São Benedito,
celebrada todos os anos no mês de dezembro. Diferentemente de outros lugares, os homens dançam
de paletó e gravata e as mulheres de saia longa e blusa de mangas compridas, porém descalços. É
expressamente proibida a entrada de casais não vestidos adequadamente para o baile. Esta norma
pode traduzir-se não apenas como sinal de respeito à tradição, mas como consolidação de valores
morais incorporados à comunidade. Crianças, jovens ou adultos devem obedecer à mesma norma. O
fato de guardarem este figurino particular no caso do carimbó, comumente dançado em todo o Estado
do Pará por homens de calça comprida enrolada na perna e blusa aberta no peito, e mulheres de saia
comprida e blusa com ou sem manga, pode ser explicado pelo diálogo não conflitual entre o sagrado
- Festa de São Benedito – e o baile profano. Importante contribuição para o estudo do carimbó
encontra-se em: SALLES, Vicente e SALLES, Marena Isdebski. Carimbó: trabalho e lazer do caboclo.
IN: Revista Brasileira do Folclore. Rio de Janeiro, 9 (25), set./dez. 1969. Este artigo concentra-se no
carimbó da cidade de Vigia de Nazaré, no Pará; BLANCO, Sônia Maria Reis. “Análise do carimbó em
Algodoal”. IN: VIEIRA, Lia Braga, IAZZETTA, Fernando. Orgs. Trilhas da música. Belém: EDUFPA,
2004. Essa dissertação de mestrado é o resultado de uma investigação sobre o carimbó da Ilha de
Algodoal, no Pará.
Em vista de tudo isso, meu objeto de estudo é uma interpretação das
trajetórias formadoras da identidade musical dos estudantes do Curso de
Música da UEPA, à luz de teorias antropológicas e etnomusicológicas4. Busco
na antropologia o embasamento teórico de autores que abordam a noção de
identidade e na etnomusicologia, a compreensão da música enquanto fenômeno
cultural. Utilizo como categorias de análise identidade cultural, identidade
musical, diversidade e carreira. Trata-se de ir aos fundamentos, buscar as
raízes teóricas a partir da observação das relações sociais entre os sujeitos e
observar as práticas de socialização que lhes conduzem a formular um
posicionamento sobre a diversidade musical abordada pelo Curso. Ao mesmo
tempo, se trata de entender como lidam os estudantes, futuros profissionais de
educação musical, com uma formação que compreenda a diversidade musical
da sociedade contemporânea a partir de suas vinculações identitárias prévias
no campo musical.
4
A temática das identidades musicais entre estudantes de música não é inédita. Há trabalhos
anteriores, como o de Elizabeth Travassos: “Apontamentos sobre estudantes de música e suas
experiências formadoras.” Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 12, mar. 2005: 11-19; e o de Vanda
Freire, Música e Sociedade – uma perspectiva histórica e uma reflexão aplicada ao ensino superior
de música. Rio de Janeiro, ABEM, 1992.
5
Segundo Krader (1980, p. 275-82), Etnomusicologia é “o estudo de aspectos sociais e culturais de
música e dança em contextos locais e globais. Os especialistas são treinados prioritariamente em
antropologia e em música, mas a natureza multidisciplinar do objeto leva a diferentes interpretações”.
“the study of social and cultural aspects of music and dance in local and global contexts. Specialists
Minha interpretação é fruto das observações realizadas ao longo da
minha trajetória docente. Ela surge, portanto, do engajamento intelectual com a
academia, do inventário de minhas próprias crenças, da busca pelas minhas
identidades musicais, daquilo que acredito como identidade musical –
identidades que estão em contínuo processo de construção e que, portanto,
permanecem inacabadas – do olhar etnográfico sobre o Curso de Música, para
elaborar o problema de pesquisa e contribuir para a reflexão sobre o conceito de
música como cultura com os estudantes.
are trained primarily in anthropology and in music, but the multidisciplinary nature of the subject leads
to different interpretations”. (Todas as traduções livres são de responsabilidade da autora da tese.)
Dentre os estudos clássicos na área da etnomusicologia, podemos citar três autores, por ordem de
aparição: Merriam, Alan. The Anthropology of Music. Evanston, Illinois: Northwestern University
Press, 1964; Blacking, John. Music, Culture & Experience. Editado por Reginald Byron. Chicago:
University of Chicago Press, 1995; Nettl, Bruno. The Study of Ethnomusicology: thirty-one issues and
concepts. Urbana e Chicago: University of Illinois Press, 2005.
intérprete da realidade pesquisada. A partir dessa convivência, surge a
confiança mútua e o desejo de transformar a realidade cultural e social.
6
O uso frequente de citações ao longo do texto é uma opção da autora da tese, cuja intenção é
dialogar com os entrevistados/interlocutores e os autores que fundamentam a pertinência do relato
etnográfico. A escrita polifônica representa, nesse contexto, o reconhecimento das vozes que
contribuíram para a elaboração do texto científico, tornando-o uma coprodução de vários parceiros.
Sobre a autoridade etnográfica e o discurso polifônico cf. Clifford, 1998.
encontros informais, reuniões de professores, professores e alunos e somente
alunos – na tentativa de entender o que corresponde à teoria e à prática das
relações sociais entre estudantes de música7. O objetivo das entrevistas foi o de
extrair delas diferentes significados de identidade para os estudantes. Também
foi aplicado um questionário aberto com três perguntas para professores/ex-
alunos do Curso, com o objetivo de entender como esses protagonistas veem o
momento histórico da fundação do Curso, a adaptação às disciplinas, ao
formato proposto pela licenciatura. Esse questionário pretendeu ainda descobrir
se a disciplina Folclore contribuiu de alguma forma para desenvolver nos atuais
professores uma escuta tolerante de outras culturas musicais.8
10
Adoto neste texto o conceito de gênero apresentado por Mário de Andrade: “Aspecto formal de
uma obra musical de uma época ou escola que se faz distinta por uma combinação de fatores:
quanto ao emprego do sistema sonoro de referência (modal, tonal, dodecafônico), quanto às
características estruturais (no plano da composição – forma sonata, forma imitativa, tocata), quanto
aos meios materiais de expressão (música vocal, instrumental; osquestral, de câmara), quanto ao
texto (sacro ou profano) e quanto à função (ritual ou litúrgica, para a dança, para o trabalho)” (Cf.
ANDRADE, 1989, pp. 242-243).
acompanham, mas também reais fraquezas teóricas e epistemológicas fazem
com que se recorra frequentemente em condições de grande confusão – que
levam mesmo alguns a interrogar-se sobre a justificação do seu emprego.
11
Tiradores de coco são solistas que improvisam os versos repetidos pelo coro na roda da dança do
coco, de origem alagoana. (ANDRADE, 1989)
12
Marabaixo – mar abaixo – é uma dança de origem malê ou sudanesa do Amapá. Os quilombolas
do Curiaú afirmam ter sido trazido pelos marroquinos. Coreograficamente lembra a roda de carimbó,
mas é sobretudo dança de mulheres. Aos homens cabe a função de tocar a caixa ou tambor do
marabaixo e responder ao refrão da solista com as outras mulheres. Os homens também podem
formar dueto com a solista no desafio.
13
Batuque é dança de roda com ritmo mais acelerado que o marabaixo e acompanhado por tambores
chamados carimbós ou curimbós.
ser portadora de preconceito racial. Portanto, não havia muito espaço para a
musicalidade de matriz africana no ambiente familiar.
14
Por entender que os estudantes de música são os verdadeiros protagonistas desta tese, optei pela
descrição densa de suas trajetórias no capítulo 2. As referências que acompanham as falas referem-
se, respectivamente ao nome do estudante, ao semestre e ao ano que estava cursando no momento
do registro. Por esta razão, em alguns casos, ocorrem os mesmos nomes com semestres e datas
diferentes. Uma vez autorizada verbalmente a utilização dos registros nesta tese de doutorado, não
houve necessidade de desidentificação dos intérpretes.
Além disso, o curriculum oferecido pela UEPA não corresponde às
suas expectativas. Mesmo após a mudança do desenho curricular, com o
acréscimo de disciplinas instrumentais, a insatisfação permanece e o
sentimento de não pertencimento é muito comum. Provavelmente, a raiz dessa
situação reside justamente no fato de o Curso ter sido pensado inicialmente
como Bacharelado e, depois, por cumprimento à normatização nacional, ter sido
adaptado à Educação Musical.
15
O virtuosismo será oportunamente abordado no capítulo 2, no qual se apresenta o músico erudito.
mais pro vestibular do que pro estudo do piano, aí acabou
que não deu pra preparar o repertório que precisa pro
Bacharelado (Karina, 2º semestre, 2009).
16
Outros ainda acreditam que a ênfase na formação do educador musical privilegie a teoria em
detrimento da prática.
premiado internacionalmente, ensaia três vezes na semana, não recebe
nenhuma bolsa de incentivo e apresenta-se muitas vezes gratuitamente. A falta
de vínculo com a Fundação obriga-o a buscar outras fontes de sobrevivência,
prejudicando assim sua performance musical. Músicos de outros lugares são
remunerados pelos seus ensaios, podem dedicar mais tempo à profissão e
consequentemente terão mais chances no mercado de trabalho. Os poucos
músicos paraenses que conseguem uma bolsa de estudo para fora do Brasil
raramente retornam. Daí a intenção de se criar estratégias por parte das
instituições de ensino de música, para que não ocorra o êxodo.
17
Emprego a expressão música de tradição oral, ou simplesmente música de tradição para referir-me
ao que antes denominávamos como música folclórica. A escolha justifica-se pelos debates no campo
da etnomusicologia, que entende ser música de tradição oral expressão mais significativa da
realidade musical observada.
18
A mudança de comportamento musical no final do século XIX deve-se à crise da produção musical
europeia, que questiona o sistema tonal, originando novos direcionamentos de músicos reconhecidos
no cenário internacional. Pode-se dizer que os movimentos de vanguarda musical europeia foram
extremamente influenciados pelos ideais revolucionários e nacionalistas, que caracterizaram o final
do século XVIII e o século XIX. Exemplo da reação contrária da crítica às inovações provocadas pelos
efeitos da modernidade no músico moderno de massa é o comentário de Charles Baudelaire a
respeito da receptividade de Tanhäuser, de Wagner, em março de 1861 em Paris: “Tão logo os
quando a Europa descobriu a música de outros povos e passou a registrá-la,
sempre comparando com a sua própria – daí a expressão musicologia
comparada, que antecede o termo etnomusicologia - mantendo sua supremacia
sobre as demais músicas do mundo19. Admitir que a música europeia é a
verdadeira música é legitimar o poder do colonizador sobre o colonizado, no
caso, o Brasil. A colonização contribuiu para o sentimento de inferioridade
brasileira. A música do séc. XIX é imposta nos currículos de música por uma
ideologia que data, no Brasil, do positivismo de Auguste Comte e da ditadura
militar e demonstra uma tentativa de desprezar as culturas ditas primitivas. A
diversidade musical dos estudantes nem sempre é valorizada pela instituição.
cartazes anunciaram que Richard Wagner apresentaria na sala do Italians fragmentos de suas
composições, deu-se um fato divertido, o qual já vimos e prova a necessidade instintiva, precipitada,
dos franceses, de tomar partido, sobre todas as coisas, antes de deliberar ou examinar. Uns
anunciaram maravilhas, e outros puseram-se a denegrir obstinadamente obras que ainda não tinham
escutado. Persiste até hoje essa situação burlesca, e pode-se dizer que nunca se discutiu tanto um
assunto que não se conhece. Em resumo, os concertos de Wagner anunciavam-se como uma
verdadeira batalha de doutrinas, como uma dessas solenes crises da arte, uma dessas querelas em
que críticos, artistas e público costumam lançar indistintamente todas as suas paixões; crises felizes
que denotam a saúde e a riqueza na vida intelectual de uma nação, e que tínhamos, por assim dizer,
desprendido desde os grandes dias de Victor Hugo” (BAUDELAIRE, 1999, pp. 23-24). (grifo do autor)
19
“São conhecidos os marcos que antecederam o advento da etnomusicologia, ou melhor, da
“musicologia comparativa”, o primeiro nome dado à nossa disciplina. Um desses marcos é a menção
a uma subárea da musicologia, feita em 1884 pelo musicólogo austríaco Guido Adler (1855-1941),
que aponta para a “análise da música dos povos extra-europeus e das culturas ágrafas”. Mesmo que,
a esta altura do final do Séc. XIX já existissem vários estudos sobre música e práticas musicais não
ocidentais, é este catedrático da Universidade de Viena o primeiro a inserir formalmente a pesquisa
da música não-ocidental no escopo da ciência musicológica” (OLIVEIRA PINTO, 2005, p. 104).
desenvolvendo no estudante de música – sobretudo o erudito – um sentimento
de rejeição a tudo o que não vem desse padrão musical. A música do outro
representaria a não-música, o que gera um comportamento inconcebível para a
sociedade contemporânea, uma vez que as identidades são construídas a partir
da interação entre as diferentes culturas (BARTH, 2000).
20
Em 2010, Feliphe foi aprovado no exame de seleção para violinista da Orquestra Sinfônica do
Teatro da Paz.
especial pra mim por uma total reverência do público para
com os artistas (Denison, 2º semestre, 2009).
21
“The musical system is presented in an abstracted and somewhat artificial format” (NETTL, The
Study of Ethnomusicology: thirty-one issues and concepts. 2005, p. 391).
22
“...teachers, too, are very specialized, and that for this reason a student going through a bachelor of
art in music education may have some fifteen to twenty teachers of various kinds of musical activity
and knowledge over a four-year period” (NETTL, 2005, p. 391)
O sistema de aprendizagem em países do ocidente é eminentemente
teórico. Na Índia, em contrapartida, a improvisação tem origem na memorização
de combinações harmônicas. Mesmo os que criam suas próprias canções têm a
influência desse modelo. Os músicos indianos também são avaliados pela
capacidade de conciliar prática instrumental, prática ritual e estudo:
23
“Indians musicians are evaluated by each other only partly in accordance with their musicianship as
exhibited in performance, or with their knowledge of repertory, but also in large measure by their
reputation for disciplined practice and study, called riaz by North Indians” (NETTL, 2005, p. 392).
24
“the habit of singling out short bits of music in order to repeat them indicates the great stress on
technical proficiency we have developed in Western music” (NETTL, 2005, p. 395).
pois a performance musical desses é carregada da formação clássica ocidental.
Porém, é possível tocar e cantar a música do outro contextualizando-a no
próprio espaço.
25
“We want our students, above all, at all levels, to be able to locate themselves in a wide cultural,
historical, and musical space. To marvel at the incredible diversity of the world’s ideas about music,
and of the world’s musical sounds, that, it seems to me, is a worthwhile attitude for children, and the
child in everyone” (NETTL, 2005, p. 403).
A própria inquietação dos estudantes em relação ao Curso indica que
eles estão criando possibilidades concretas que deem sentido ao que fazem.
Esse processo é particularmente importante para meu objeto de pesquisa,
porque me permite extrair dados para análise, ao mesmo tempo em que
desenvolve a atitude de flexibilidade interpretativa da pesquisadora. Ao buscar
uma reflexão sobre identidade musical para os estudantes posso também estar
impondo um modelo ideal identitário.
26
“Las identidades, entre ellas la étnica, no son objetos fijos, sino con una intensa naturaleza
procesual. De ahí su carácter histórico, móvil, asumido y reasumido, formulado en voces y
reformulado de acuerdo no con el capricho, sino con circunstancias históricas y sociales siempre en
movimiento. De allí que sea a veces difícil definir la diferencia. Esta la vamos haciendo nosotros em el
curso de la historia” (DEVALLE, 2002, p. 27).
3 QUANTO VALE A SUA MÚSICA? O ESCAMBO MUSICAL NO CURSO DE
MÚSICA
Não faz música, porque isso é mais pra um hobby teu, faz alguma coisa
pra que tu possas contribuir pra sociedade (Andréia, 4º semestre, 2009)
27
Segundo Costa (2009, pp. 32-33), “uma das marcas basilares que identificam o brega “tipicamente
paraense” é o universo das festas de brega, cujo desenvolvimento acompanhou a ascensão do
“Movimento do Brega” desde o início dos anos 80. A face “caribenha”, que propõem os divulgadores
do ritmo na região, tem muito mais sentido ao se considerar as festas de “cabarés” e “gafieiras” das
regiões pouco afamadas da cidade nos anos 50 e 60, onde eram populares ritmos como o Bolero e o
Merengue, influências fundamentais do brega que se faz em Belém nos dias de hoje. A identificação
regional deste ritmo está intimamente ligada à presença das festas de brega em cidades do Amapá e
Amazonas, por exemplo”.
O campo de produção – que não poderia, evidentemente,
funcionar se não pudesse contar com os gostos já
existentes, propensões mais ou menos intensas a consumir
bens mais ou menos estritamente definidos – é que permite
ao gosto de se realizar ao oferecer-lhe, em cada instante, o
universo dos bens culturais como sistema das
possibilidades de um estilo de vida. Esquecemo-nos, de
fato, que o universo dos produtos oferecidos por cada um
dos campos de produção tende a limitar, de fato, o universo
das formas da experiência – estética, ética, política, etc. –
que são objetivamente possíveis em determinado momento.
Entre outras conseqüências, segue-se que a distinção
reconhecida a todas as classes dominantes e a todas as
suas propriedades assume formas diferentes segundo o
estado dos sinais distintivos da “classe” que, efetivamente
estão disponíveis (Bourdieu, 2008, p. 216). (grifos do autor)
28
Digo deveria, porque na prática a sala é utilizada como função de auditório para reuniões diversas
da própria UEPA.
verdadeiro jogo de sedução. A negociação faz parte do processo de
socialização e indica a permanência no grupo.
29
Gig, para o músico, é um trabalho free lance, sem vínculo empregatício.
quem toca, para ser reconhecido como músico de valor. Um simples músico de
barzinho, ou músico da noite não tem, de modo algum, o mesmo status de um
músico concertista. O perfil do músico de barzinho é normalmente o de
intérprete. Raramente será reconhecido como compositor. Está ali no palco
como figura de segundo plano, para o artista principal e, dependendo de quem
seja o artista, poderá ganhar ou perder prestígio no meio musical.
Por ser o filho mais velho de uma família humilde, a escolha de Rafael
pela carreira musical já aos treze anos representava, de alguma forma, a
desesperança para sua mãe, que depositara no filho a expectativa da
estabilidade financeira da família e o respeito da sociedade, enfim, uma
profissão de verdade.
Normalmente é assim. Dizem que santo de casa não faz milagre, mas
na verdade alguns pais músicos – não é o meu caso – confiam mais na Escola
de Música para alfabetizar seus filhos musicalmente. Para exemplificar o que
digo transcrevo a seguir trecho da entrevista com Beatriz (2º semestre, 2009):
Difícil. Difícil. Até hoje em dia é difícil. Eu tocar com ele, mas por
causa do tempo corrido. Ele trabalha direto, de manhã, de tarde e de
noite. Aí às vezes a gente tem um tempo pra tocar, nós dois.
Não. E a família do meu pai tem cantor, tem gente que toca piano,
violão, mas é incrível, a gente faz umas reuniões de família de vez em
quando aí dá pra unir, mas nada frequente, espontaneamente, não
tem.
Como ela mesma conta, o pai fez o ritual de iniciação da música para
a filha de uma maneira muito espontânea, sem pressões. E já que ela
demonstrou interesse, ele então entendeu que ela já poderia ir para a escola,
porque – de acordo com os princípios da Educação Musical – a alfabetização da
escrita musical se dá ao mesmo tempo que a alfabetização na língua materna.
30
Especificamente em relação à música no Pará no século XIX, alguns acontecimentos contribuíram
para a criação do Conservatório: “O desenrolar do século XIX permite observar três ações distintas: a
importação de músicos-professores-europeus, o trânsito de músicos locais entre o Pará e a Europa e
a instalação de músicos de companhias líricas após a conclusão das temporadas nos teatros locais.
Essas ações favoreceram a contínua transposição da prática musical europeia, que pôde, assim,
manter-se localmente atualizada em relação à produção contemporânea, na Europa, pois, por meio
daqueles agentes retransmissores, tornaram-se audíveis e visíveis, em Belém e no interior do Estado,
aspectos do cenário musical internacional, como repertórios, instrumentos, conjuntos musicais,
formas de organização de entidades musicais, comércio musical, espaços de ensino e de prática
musical, entre outros aspectos, que fizeram do Pará um lugar da música erudita europeia. Estas
foram as condições de eficácia da afirmação local da música erudita como bem cultural e de
desenvolvimento do modelo de ensino, que contribuíram para garantir a preservação e a difusão
dessa música, bem como para diferenciá-la de outras práticas musicais e de ensino, como as das
bandas de música. O declínio da economia da borracha transformou brutalmente este cenário,
principalmente no que se refere à saída dos músicos eruditos. Grande parte deles partiram. Os que
aqui ficaram, sem importação, com o porto fechado às inovações, mantiveram o modelo de realização
musical até então desenvolvida” (VIEIRA, 2001, p. 56).
O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como
uma população de tipos degenerados com base na origem racial
de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de
administração e instrução (BHABHA, 1998, p. 111).
Ainda assim, o músico está tão seguro dessa tradição que a maioria
dos que não fizeram o Conservatório lamenta esta lacuna na vida acadêmica.
31
Para a análise interacional dos estudantes do Curso de Música da UEPA, utilizo o conceito de
Goffman, considerando os grupos formados no interior do Curso como equipes: “Usarei o termo
“equipe de representação” ou, abreviadamente, “equipe”, para me referir a qualquer grupo de
indivíduos que cooperem na encenação de uma rotina particular” (GOFFMAN, 1983, p. 78). (grifos do
autor)
“Então eu vejo que a pessoa, pelos próprios alunos ela fica afastada, ela não
tem como entrar naquele grupo, porque eles começam a conversar só sobre
aquela unidade, sobre aquele conservatório, aquela escola.”
Em casa tu tocas?
Toco como estudo mesmo. Quando tem festinha, aí pedem pra tocar
um pouco. Eu toco o erudito mesmo. Que é o que eu sei.
É.
Por quê?
Tem todo aquele clima, dá aquele nervoso, mas eu acho que faz
parte, e a gente tem que ter toda uma preparação por trás, tem os
ensaios...
Não, tem o dia a dia, já toca e tá lá... Não tem aquela expectativa de
preparar.
Acho que sim, apesar de que a maioria eu acho que não tem o
contato, alguns eu acho que não gostam muito, outros, geralmente,
são os mais velhos que gostam mais, mas os mais jovens não se
interessam muito.
Tu tocas quanto?
33
O termo evangélico foi escolhido para ser usado neste trabalho por ser mais adequado ao grupo de
estudantes entrevistados. O termo protestante refere-se ao grupo de igrejas oriundas do movimento
da Reforma Protestante, séc. XVI, também conhecidas como igrejas históricas: Luterana, Anglicana,
Congregacional, Metodista, Presbiteriana, Batista.
34
Em monografia de conclusão do Curso de Licenciatura em Música do Instituto Villa Lobos no Rio de
Janeiro, COSTA (2008) afirma que esta é uma realidade no Brasil.
35
“Social institutions are validated through songs wich emphasize the proper and improper in society,
as well as those which tell people what to do and how to do it” (pp. 224-225).
36
O louvor pode ser executado simplesmente por um solista, como por um coro, acompanhado por
uma banda ou orquestra, que também executa solos instrumentais ao longo da pregação. O papel da
música no louvor é, portanto, essencial porque faz parte da doutrinação do culto.
Eu vivo de música desde a minha infância. Minha família é
de músicos. Tios, primos, todos músicos. Então eu também
tenho esse lado familiar, de música ser uma coisa que
representasse a nossa família, e ouvir muitos músicos.
Outra questão é de fazer parte de uma Igreja. Então a
música pra mim tem assim um sentido de ser uma forma de
expressão, de comunicação com Deus, me ensinaram
também assim, tocar na igreja desde menino (Phellipe,
2º semestre, 2009). (grifos meus)
37
“There is considerable evidence to indicate that music functions widely and on a number of levels
as a means of emotional expression. In discussing song texts, we have had ocasion to point out that
one of their outstanding features is the fact that they provide a vehicle for the expression of ideas and
emotions not revealed in ordinary discourse” (MERRIAM, 1964, p. 219).
música. E essa espiritualidade é um privilégio de qualquer músico,
independentemente de religião. No próprio Curso de Música da UEPA,
identifiquei estudantes que não professam nenhum credo religioso, mas que têm
suas próprias convicções, capazes igualmente de conduzi-los ao estado de
interioridade, do qual fala Bourdieu.
38
“To some extent music is inspired, in the sense that we cannot analyze the way in which it finds its
way into the thinking of a musician; but perhaps more important, it is also the result of the manipulation
and rearrangement of the units of a given vocabulary, of hard work and concentration. The concepts
of inspiration, of genius, and of acquiring music directly from supernatural sources are very
widespread among human societies, simple and complex” (NETTL, 2005, pp. 28-29). (grifos do autor)
No entanto, as igrejas que investem na formação do músico têm também uma
concepção tradicional de ensino.
Eu estudei com essa pessoa [da igreja] dois anos e não era
uma musicista profissional e não tinha mais o que me
passar. Chegou ao limite dela. Então ela mesma disse:
olha, se tu quiseres continuar tu podes procurar a Escola de
Música da UFPA ou o Conservatório Carlos Gomes. E aí foi
quando eu procurei a Escola pra poder continuar essa
vivência, porque eu me sentia muito bem em estar tocando,
ter conversas muito agradáveis sobre música com outras
pessoas que entendiam sobre música. Sempre com um
nível baixo de conhecimento, mas sempre absorver
realmente o que essa pessoa tinha pra passar, o que de
bom essa pessoa poderia me passar (Denison, 2º semestre,
2009).
Tu estudaste na igreja?
Sim.
39
A importância da banda da Assembléia de Deus deve-se ao fato do número de instrumentos e
instrumentistas, destacando-a como pioneira no Estado. Hoje, outras denominações, como a Igreja
Batista também já têm o mesmo padrão de recursos de orquestra e coro.
Estados Unidos e acompanha, dentre outros, Bebel Gilberto – congregaram no
Templo Central, como também é conhecida a igreja matriz em Belém.
A música dita secular tem para ele um objetivo específico. “Mais pro
meu aprimoramento técnico, então escolhi mais pra isso” (Phelippe, 2º
semestre, 2009). E sua opção não significa um limite imposto pela igreja, mas a
música com a qual se identifica é sempre a gospel.
40
No meio evangélico, contudo, a orientação bíblica é de se oferecer a Deus o culto racional (em que
o adorador tem consciência do culto que presta a Deus), não havendo, nas igrejas protestantes
tradicionais, incentivo aos momentos de êxtase.
É preciso dizer que Luis demonstra radicalidade na sua opção
religiosa. Em dezembro de 2009, os estudantes do Curso organizaram uma
mesa redonda para discutir o papel da indústria cultural na formação do gosto
musical. Proposta do professor da disciplina Música Popular, Professor Augusto
Souto, a mesa foi composta por um músico de brega, um pastor evangélico, um
professor de estética, um antropólogo e por mim mesma.
41
“Samba-de-cacete, s. m. Variação coreográfica do mineiro-pau, dança dos pauliteiros, como em
Portugal, em que os dançarinos simulam luta de cacete. Cametá, Baixo Tocantins, principalmente nas
comunidades remanescentes de quilombos” (SALLES, 2003, p. 231).
sua equipe42. Mário não via nessa atitude nenhum xenofobismo, mas uma
necessidade natural da modernidade.
42
Por ocasião de sua passagem pelo Pará, Mário de Andrade fez descobertas significativas, que
contribuíram, sobretudo, para o entendimento das religiões de matriz africana no Brasil. Segundo
FIGUEIREDO (2009), houve uma intencionalidade de Mário em valorizar as origens afro-indígenas da
religiosidade afro na Amazônia, na tentativa de diferenciá-la da cultura europeia. Figueiredo destaca o
fato de Oneyda Alvarenga, assistente de Mário e relatora da Missão Folclórica, ter interpretado o
Babassuê – culto assim designado, segundo seu pajé, Satiro de Barros, por estar localizado em
Santa Bárbara, município do Pará – como a inventividade de uma religião especificamente
amazônica, embora o próprio Satiro confirme nos relatos à Missão sua herança das linhas de culto
existentes no Pará: a cambinda, a nagô e a jeje ou batuque.
A postura relativista como premissa também da etnomusicologia leva-
nos a considerar como objeto de análise todas as músicas, em todos os
contextos. Segundo essa perspectiva, o músico popular constitui-se como um
grupo social, cujas categorias tais como repertório, aprendizagem, público vão
variar de acordo com o contexto observado.
Aos treze anos, aprendeu com seu pai os primeiros acordes no violão.
“Depois minha preferência pela música foi mudando. Passei a ouvir Nélson
Gonçalves, Altemar Dutra, Vicente Celestino, Augusto Calheiro, Lindomar
Castilho e assim por diante43” (Paulo Nataly, 3º semestre, 2007). Apesar de se
situar na zona rural, bem longe da tecnologia, Paulo sempre esteve em contato
com as músicas produzidas nos grandes centros urbanos através do rádio. Os
cantores mencionados por ele faziam parte da indústria fonográfica dos anos
1950, 1960 e, como nos dias atuais, os meios de comunicação filtravam os
sucessos comerciais e os divulgavam. Pelo rádio, essa realidade existia no
Brasil desde 1932.
44
Cf. FERNANDES, José Guilherme dos Santos. Festa, trabalho e memória na cultura popular do
Boi Tinga de São Caetano de Odivelas, Pará. Belém: Universitária, 2007; e SANTOS,
Cleiduardo dos. História e músicas dos Bois de Máscaras de São Caetano de Odivelas – Pará.
Belém: UEPA, 2010.
relação a determinados eventos eminentemente urbanos, como apresentado por
Laíla.
45
COSTA afirma em artigo sobre o carimbó que essa tendência ao regionalismo é típica do discurso
artístico desde a primeira metade do século XX. “A um só tempo, nas décadas de 1960 e 1970, um
conjunto de fatores históricos levou o carimbó a se tornar ao mesmo tempo ‘música popular’
identitária e ‘música folclórica’ identitária da região. A partir desse momento no Pará a música popular
havia elegido/construído uma tradição (em parte como continuação e produto dos debates
ganha novo significado, mais abrangente, extrapolando as fronteiras do popular
e do erudito.
modernistas sobre o popular regional, e em parte como invenção das décadas de 1960 e 1970). Esta
tradição local, por sua vez, precisaria obrigatoriamente passar pelo carimbó (pau-e-corda ou
moderno), por mais que para alguns músicos também devesse se associar à grande tradição da
música popular vinda do sudeste do país” (COSTA, 2010, p. 81). (grifos do autor)
Existe um consenso, hoje em dia, entre pesquisadores e
aficionados da música popular que se cria no Brasil: a sigla
MPB, que tanto define quanto borra essa definição de
gêneros e estilos da canção popular, tem raízes históricas
bem demarcadas. Foi no âmbito dos desdobramentos da
bossa nova no início dos anos 60 – com a incorporação
pelos músicos da temática política e com o engajamento
social de alguns deles –, da proliferação de programas
musicais na televisão e do grande sucesso dos festivais da
canção ao longo dessa década, que a Música Popular
Brasileira (MPB) surge como instituição e se firma como
marca da música brasileira por excelência.
46
A Casa do Gilson ou Bar do Gilson, como é mais conhecido, tem o nome de seu proprietário, o
cavaquinista Gilson Borges. Trata-se de uma casa especializada em choro e samba em Belém do
Pará. Sua localização na periferia da cidade não impede a lotação nos finais de semana por músicos
e apreciadores do chorinho para ouvir o próprio Gilson acompanhado de outros músicos que
frequentam o Bar religiosamente. Em 2008, o grupo Gente de Choro, que é originário desse convívio
musical gravou CD comemorativo aos 20 anos da Casa do Gilson, que foi lançado no Teatro da Paz,
o mais importante da cidade, certificando a importância do lugar para o cenário musical belenense.
amizade, te faz nunca deixar de ir lá. Às vezes tu não vais,
aí tu ficas, poxa, nunca mais eu fui lá. E não tem aquela
obrigação de tocar certo, você vai tocar, você vai se sentir,
se errou uma nota, tudo bem, o que interessa é o que tu
estás sentindo, é essa relação, aquela linguagem junto, de
chegar, falar com todo mundo, sobe aqui, vamos tocar
(Laíla, 2º semestre, 2009). (grifos meus)
47
Interessante perceber a semelhança do contexto dos chorões do início do século XX comparados
aos da atualidade. O Bar do Gilson localiza-se fisicamente no fundo do quintal da casa de seu
proprietário e ali frequentam eruditos e populares. “Os excluídos sociais foram expulsos para os
subúrbios ou para os morros (favelas). As perseguições de policiais tornaram-se frequentes em face
da presença de homens pobres, descalços ou maltrapilhos que perambulavam pela Avenida Central
ou pela Rua do Ouvidor. Esses novos espaços urbanísticos tornaram-se pólos de entretenimento das
elites brancas e burguesas. Paulatinamente, Durante os anos 1910 e 1920, com o surgimento dos
cinemas, dos dancings, cafés, cabarés, os chorões (em geral negros e despossuídos sociais)
passaram a se exibir em conjuntos musicais nesses novos “espaços” considerados “civilizados” pelas
elites dominantes... E os sons emitidos pelos instrumentos tocados pelos chorões passaram a
emocionar os artistas eruditos da época: Heitor Villa-Lobos, Alberto Nepomuceno, Luciano Gallet,
Darius Milhaud, Arthur Rubinstein, que descobriram um Novo Brasil fortemente ligado ao chamado
primitivismo musical” (CONTIER, 2004, p. 7). grifos do autor. No caso do Bar do Gilson, chama a
atenção o fato que músicos e apreciadores de chorinho de origem social elevada vão a um bar na
periferia da cidade em busca de um espaço de celebração da música popular dotada de sentido
sofisticado.
era apresentado. Percebemos que nas rodas de Choro, a
distinção entre profissionais e não-profissionais é eliminada
pelo democrático exercício do Choro, onde cada um faz o
que sabe e aprende tocando. (...) Vê-se, nesse contato
musical, o estabelecimento de intercâmbio e de trocas, que
tendem a alimentar os músicos e favorecer a renovação a
partir da atualização. Há quinze anos, Gilson e “seus
chorões” compartilham aprendizagens e fortalecem
amizades. (grifos da autora)
Thonnys também toca chorinho. Aos treze anos ele percebeu que
estava perdendo a visão. Foi diagnosticado com cegueira progressiva. Nesse
período, seu irmão havia saído de casa e deixou o violão. A música foi
indispensável para que ele se curasse do quadro de depressão que se instalou
após a notícia que mudaria toda sua vida.
Em sua resposta, não procura ser exaustivo. Tenta dar uma visão
panorâmica da sua escuta. Contudo, a expressão “porém na medida do possível
com alguma seleção” revela que essa escuta não é aleatória. De alguma forma,
ele seleciona aquilo que ouve estabelecendo uma hierarquia do gosto musical,
de acordo com seus valores estéticos pessoais. Bourdieu (2008, p. 434) explica
que, ao orientar o gosto, o indivíduo também orienta sua posição social no
mundo, diferenciando-o dos demais.
48
Tecno-Melody é uma variação do Tecnobrega. Segundo AMARAL (2006, p. 281), “O tecnobrega
caracteriza-se tecnicamente pela bricolagem de melodias e ritmos com percussão eletrônica,
lançando mão basicamente de computadores e de softwares ‘piratas’ baixados da internet”. (grifos do
autor)
de uma criança que nasce e se cria em um bairro periférico
da capital, que na maioria das vezes não tem condições de
freqüentar uma escola de música e se acostuma a ouvir
somente a música que gira em torno de si em seu ambiente,
que geralmente com certeza não vem a ser a música
erudita e muitas vezes nem a MPB (Antônio Damasceno,
2º semestre, 2010). (grifos meus)
49
“Dança e canto dos índios tapuias (Amazonas), em louvor a São Tomé, Santo Antônio, São João e
Santa Rita, costume introduzido pelos missionários que visitaram a região. O nome vem do
instrumento que é levado na procissão” (ANDRADE, 1989, p. 450). A tradição é uma adaptação de
crenças religiosas indígenas ao catolicismo popular.
A imagem sonora não é somente uma metáfora do que existe
virtualmente entre dois alto-falantes. Somos capazes de reconstituir a realidade
do som escutado entre dois alto-falantes porque já o ouvimos antes, ou porque
ouvimos um som semelhante. A imagem auditiva oferece uma presença
aparentemente mais forte, mais sensível, quando instrumentada pelo olho, um
som acompanhado por uma imagem – ou mais exatamente uma imagem
acompanhada por um som. As experiências vividas nem sempre podem ser
traduzíveis, como é o caso da música. No entanto, a memória do momento traz
as imagens que elaboram o sentido à cena.
50
Cf. CD Amor Amor de Lia Sophia – 2009 e Trilogia de Nilson Chaves, Lucinha Bastos e Marco
Monteiro – 2008.
equilíbrio vem da cultura, do imaginário cultural, porque a partir da cultura o
homem reencontra seu eixo.
51
“Music” is a primary modeling system of human thought and a part of the infrastructure of human
life. “Music” making is a special kind of social action which can have important consequences for other
kinds of social actions. “Music” is not reflexive; it is also generative, both as cultural system and as
human capability, and an important task of musicology is to find out how people make sense of
“music” in a variety of social situations and in different cultural contexts, and to distinguish between the
innate human capabilities that individuals use in the process of making sense of “music” and the
cultural conventions that guide their actions (BLACKING, John. Music, Culture & Experience. Editado
por Reginald Byron. Chicago: University of Chicago Press, 1995, p. 223). (grifos do autor)
52
As primeiras contribuições para o estudo da etnomusicologia vêm do físico e foneticista Alexander
John Ellis, que em 1885 reconheceu a diversidade da escala musical em diferentes culturas. A
invenção do fonógrafo também contribuiu para a difusão dessa diversidade, na medida em que serviu
para rever falsos conceitos da música folclórica. Foi constatado que ela tinha estabilidade e era
sistematizada (BLACKING, 1995, p. 223).
Para Blacking, a interpretação da música envolve conhecimentos que
vão além dos conhecimentos teóricos, estabelecendo assim a diferença entre os
instrumentos e registros sonoros e a cultura de um povo.
53
Musical instruments and the transcriptions or scores of the music that is played on them are not the
culture of their makers: they are the manifestations of culture, the products of social and cultural
processes, the material results of the “capabilities and habits acquired by man as a member of
society” (BLACKING, John. Music, Culture & Experience. Editado por Reginald Byron. Chicago:
University of Chicago Press, 1995, pp. 226-227). (grifos do autor)
instituições e organizações familiares e políticas, mas sobretudo crenças,
expressões artísticas. É interessante observarmos como as concepções
artísticas acompanharam o desenvolvimento do pensamento antropológico
cultural. Enquanto o europeu acreditava ser o único detentor do conhecimento,
o selvagem não tinha nada para lhe oferecer. Na verdade, ele não poderia
pensar na hipótese de alguém, isolado da civilização, produzir arte, música.
É apenas com Franz Boas (2004) que vamos ter o início de um novo
comportamento no trabalho de campo, onde o objeto antropológico será
considerado e valorizado dentro de seu contexto. No início do século XX, Boas
faz uma primeira crítica desta definição para impor uma abordagem
absolutamente particularista de cultura54. O antropólogo americano de origem
alemã afirma que as formas e os modos de vida dos homens não evoluem como
um modelo linear e em função do nível do seu desenvolvimento mental, mas
que eles são o produto de processos históricos locais. Esses processos
históricos são determinados não somente pelas condições do meio no qual vive
54
Particularismo da cultura: “Um costume particular só pode ser explicado se relacionado ao seu
contexto cultural. Trata-se assim de compreender como se formou a síntese original que representa
cada cultura e que faz sua coerência” (Cf. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais.
Bauru, EDUSC, 1999, p. 45).
a sociedade em questão, mas também pelos contatos que ela mantém com as
sociedades vizinhas.
55
Relativismo cultural “Na medida em que cada cultura exprime um modo único de ser do homem,
ela tem o direito à estima e à proteção, se estiver ameaçada” (CUCHE, 1999, p. 46).
função daquilo que conhecemos dele, das práticas e das circunstâncias nas
quais ele se exprime.
56
Esta reflexão teórica é particularmente importante para meu objeto de estudo, por colocar em
relevo a diversidade dos estudos culturais, que, se por um lado, procuram estar na vanguarda das
novas tendências do pensamento científico, por outro lado, não negam e reconhecem as primeiras
abordagens no campo da antropologia. Por essa razão, recorri à literatura clássica e à
Contemporaneamente, contudo, as vertentes que orientam o estudo
da música como cultura valorizam a dinâmica social da manifestação sonora
observada, dando vozes à comunidade e ao seu fazer musical (OLIVEIRA
PINTO, 2008). Esse comportamento etnográfico está afinado com os novos
rumos da antropologia evocados por Sahlins (1997) e que, segundo ele, ainda
permanecem desconhecidos por aqueles que estão atrelados somente aos
preceitos da antropologia clássica. Ele descreve esse comportamento como
pessimismo cultural, que decreta a morte da cultura em função da sua
inadequação aos padrões clássicos verificados no passado.
57
“Ce ne sont pas les relations entre les groupes appartenant à des cultures différentes qui
caractérisent l’interculturalité mais la façon dont l’analyse prend en compte la variable culture selon un
paradigme qualifié d’interculturel. À une approche élaborée à partir de catégories culturelles,
l’approche interculturelle privilégie la dynamique des changements et des stratégies utilisées par les
individus pour agir et s’affirmer” (ABDALLAH-PRETCEILLE, 1996, p. 36).
interação, num espírito de conciliação entre as culturas. Colocado em situação
favorável – exposição em contexto cultural – o indivíduo tem a oportunidade de
formular e reformular suas representações culturais.
58
Especificamente neste artigo, Torres não menciona a data da realização da pesquisa.
Os sons afinados pela cultura, que fazem a música, estarão
sempre dialogando com o ruído, a dissonância. Aliás, uma das
graças da música é justamente essa: juntar num tecido muito fino
e intrincado, padrões de recorrência e constância com acidentes
que os desequilibram e instabilizam. Sendo sucessiva e
simultânea (os sons acontecem um depois do outro, mas também
juntos), a música é capaz de ritmar a repetição e a diferença, o
mesmo e o diverso, o contínuo e o descontínuo. Desiguais e
pulsantes, os sons nos remetem no seu vai-e-vem ao tempo
sucessivo e linear mas também a um outro tempo ausente,
virtual, espiral, circular ou informe, e em todo caso não
cronológico, que sugere um contraponto entre o tempo da
consciência e o não tempo do inconsciente. Mexendo nessas
dimensões, a música não refere nem nomeia coisas visíveis,
como a linguagem verbal faz, mas aponta com uma força toda
sua para o não-verbalizável; atravessa certas redes defensivas
que a consciência e a linguagem cristalizada opõem à sua ação e
toca em pontos de ligação efetivos do mental e do corporal, do
intelectual e do afetivo. Por isso mesmo é capaz de provocar as
mais apaixonadas adesões e as mais violentas recusas (WISNIK,
1989, p. 28).
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Vila Rica;
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WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo, Companhia das Letras,
1989.
APÊNDICES
APÊNDICE A- Questionário aberto para professores ex-alunos do Curso de
Música da UEPA
1. Qual foi o primeiro instrumento que você tocou? Onde e com quem você
aprendeu a tocá-lo? Onde você aperfeiçoou as técnicas? Por quê? Você ainda
toca esse instrumento? Qual é a sua realidade profissional hoje?
3. Como foi seu contato com os conteúdos da disciplina Folclore? Você já havia
tido algum contato com a música de tradição oral? Após a disciplina, houve
alguma mudança no seu comportamento como músico/educador?
APÊNDICE B - Entrevista semiestruturada com estudantes