JOANÍDIA-2010 DalilaVasconcellosdeCarvalho

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

DALILA VASCONCELLOS DE CARVALHO

Renome, Vocação e Gênero: duas musicistas brasileiras

Versão Corrigida

São Paulo
2010
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

Renome, Vocação e Gênero: duas musicistas brasileiras

Versão Corrigida

Dalila Vasconcellos de Carvalho

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social do
Departamento de Antropologia da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para a obtenção do
título de Mestre em Antropologia Social.

Orientadora: Profª. Dr.ª Fernanda Arêas Peixoto


De acordo

São Paulo
2010
FOLHA DE APROVAÇÃO

Dalila Vasconcellos de Carvalho


Renome, Vocação e Gênero: duas musicistas brasileiras

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social do
Departamento de Antropologia da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para a obtenção do
título de Mestre em Antropologia Social.

Data da aprovação:___/___/_____

Banca Examinadora:

__________________________________
Profª. Drª. Heloísa André Pontes

__________________________________
Profª. Drª. Heloísa Buarque de Almeida

__________________________________
Profª. Drª. Fernanda Arêas Peixoto (orientadora)
Para Rafael, que fez de mim e deste trabalho parte de sua vida e para os meus avós
Eulário e Lázara de Carvalho (in memoriam).
AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Fernanda Peixoto, agradeço o apoio, o estímulo, a


confiança, os comentários e as críticas do quais este trabalho se beneficiou
imensamente.
As professoras Heloisa Buarque de Almeida e Heloisa Pontes, que compuseram
a banca do exame de qualificação e da defesa, pelas sugestões preciosas que procurei
incorporar na medida do possível.
Aos funcionários do Departamento de Antropologia - Celso, Edinaldo, Ivanete,
Rose e Soraya-, por me auxiliarem com a burocracia acadêmica. E também aos
funcionários da Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Fundação Biblioteca Nacional
e da Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ, por
disponibilizarem todo o material utilizado neste trabalho.
À Dona Julieta que abriu as portas de sua casa e do acervo de Helza Camêu.
À professora Luciana Dutra por compartilhar comigo o seu trabalho sobre Helza
Camêu.
À Mercedes Reis Pequeno, Noel Devo e Jacques Nirenberg, personagens
fundamentais para a história da música brasileira, que atenciosamente me receberam em
suas casas para uma entrevista.
Ao Alexandre, Isabela, Júlia Di Giovanni, Júlia Goyatá, Luiza, Thais Fernanda,
Thais Waldman, leitores animados deste trabalho, com quais tive o prazer de
compartilhar a mesma orientadora.
Aos meus amigos do PPGAS, Maurício, Lobão, Luís Felipe, Magda, Camila,
Pierina, Clara, Edson, Tatiana, Bruno, Inácio e Rafael, com os quais, em diferentes
momentos, vivenciei as etapas do mestrado e a confecção deste trabalho.
Às minhas companheiras de Convento, Luciana Kalil, Waldênia Leão, Susana
Abrantes, Tatiana Sena, Ana Lúcia, Simone, Suellen e Ana Paula, que me ajudaram a
suportar a peregrinação pelos acervos, o calor escaldante de Santa Teresa e as escadas
do convento, sempre mais seguras que o elevador!
Ao professor Francisco Assis, pela leitura e comentários.
À Ivna Fuchigami que é muito mais do que a revisora deste trabalho.
Ao Roberto Leal que me acolheu e ouviu, em meio a tantas outras estórias,
conflitos e angústias, o nascimento desse projeto.
À “Turma da Escada”: Ad, Diego, João Marcelo, Gi, Otávio, Pedrito, Raquel e
Sarah, amigos queridos de todas as horas, mas sempre presentes nas horas em que mais
se precisa de um amigo.
À minha família (meus avós Isa e Aparício, meus tios, tias, primas e primos) que
compreenderam minha ausência nos últimos tempos em razão deste longo trabalho.
À Maria Olívia e Romulo pela acolhida sempre festiva e animadora em Juiz de
Fora.
Agradeço, sobretudo, aos meus pais, João e Lucilia, por lutarem a vida toda para
garantir às filhas aquilo que para eles foi um privilégio distante: a oportunidade única de
“só estudar”. À minha irmã Damiana agradeço às inúmeras vezes que entregou, renovou
e retirou livros para mim na Biblioteca, e principalmente, por ter trazido para o seio
desta família a dupla animal: Oto Jr. e Oliver.
Esta pesquisa foi possível graças ao financiamento da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
RESUMO

O presente trabalho trata da trajetória de duas musicistas brasileiras: Helza Camêu


(1903-1995), pianista, compositora e musicóloga, e Joanídia Sodré (1903-1975),
pianista, regente e ex-diretora da Escola Nacional de Música (atualmente Escola de
Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro) cujas carreiras tiveram início,
respectivamente, em 1923 e 1927 no cenário musical do Rio de Janeiro. A construção
da trajetória destas artistas visa a uma reflexão acerca de como as convenções de gênero
estão imbricadas no processo social de construção de uma vocação musical neste
período. Trata-se de compreender a vocação como um fato social, isto é, como um
conjunto de práticas e representações sociais constituidoras da experiência do artista. A
análise da trajetória de Helza Camêu e de Joanídia Sodré constitui um modo
privilegiado para compreender de que maneira, na busca pela profissão de “artista”,
estas duas mulheres criaram novos valores e sentidos que lhes permitiram transitar entre
profissões “masculinas” e “femininas”.

Palavras-chave: Helza Camêu, Joanídia Sodré, Convenções de gênero, Vocação,


Sociologia da Cultura.
ABSTRACT

The present study concerns the trajectory of two Brazilian musicians: Helza Camêu
(1903-1995), pianist, composer and musicologist, and Joanídia Sodré (1903-1975),
pianist, conductor and former director of the National School of Music (currently, the
School of Music of the Federal University of Rio de Janeiro). Their career began in
1923 and 1927, respectively, in the music scene of Rio de Janeiro. The construction of
the trajectory of the above mentioned artists aims at conducting a careful thought about
how gender conventions are closely linked in the social process of the construction of a
musical vocation during that period. It is about to understand vocation as a social fact,
that is, as a set of practices and social representations that shapes the artist’s experience.
The analysis of the trajectory of Helza Camêu and of Joanídia Sodré constitutes a
privileged way to understand how those two female artists, in search for the “artist”
profession, created new values and meanings that allowed them to make their way
through “male” and “female” professions.

Keywords: Helza Camêu, Joanídia Sodré, Gender Conventions, Vocation,


Sociology of Culture.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO À PESQUISA: FONTES E PERSPECTIVAS DA ANÁLISE ........... 1

CAPÍTULO 1: VOCAÇÃO MUSICAL: CONEXÕES DE GÊNERO E CLASSE


SOCIAL EM TRÊS GERAÇÕES .................................................................................... 6

1.1. “MÚSICOS DO IMPÉRIO”: A VOCAÇÃO MUSICAL NO ÂMBITO DAS


INSTITUIÇÕES E DO MECENATO............................................................................ 10
1.2. “MÚSICOS DE TRANSIÇÃO”: A CISÃO SIMBÓLICA ENTRE O
UNIVERSO “ERUDITO” E O “POPULAR”................................................................. 27
1.3. “MÚSICOS CONTEMPORÂNEOS”: OS INTÉRPRETES E COMPOSITORES
NA ERA DA PERFORMANCE ..................................................................................... 34
1.4. AINDA A GERAÇÃO DOS CONTEMPORÂNEOS: OS COMPOSITORES-
REGENTES E A PIANISTA-COMPOSITORA ........................................................... 48
1.5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE VOCAÇÃO MUSICAL ENTRE
INTÉRPRETES E COMPOSITORES DE TRÊS GERAÇÕES..................................... 53

CAPÍTULO 2: A “PRODIGIOSA” JOANÍDIA SODRÉ ............................................. 58

2.1. DE “CRIANÇA PRODÍGIO” À “MOÇA ESTUDIOSA”....................................... 61


2.2. O CONCURSO DE 1927: DÉBUT DE JOANÍDIA SODRÉ .................................. 72
2.3. A BATUTA DA PROFESSORA MAESTRINA..................................................... 78
2.4. “O DIRETOR” DA ESCOLA DE MÚSICA ........................................................... 92

CAPÍTULO 3: COMPOR E ESCREVER: DUAS FACES DE HELZA CAMÊU ... 102

3.1. ESTRÉIA ÀS AVESSAS....................................................................................... 103


3.2. COMPOR: “O ALVO VISADO”........................................................................... 110
3.3. MUSICOLOGIA: UM DESVIO DE ROTA...................................................... ....126
3.4. “UMA CAMINHADA DE CURTA EXTENSÃO” .............................................. 132

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 137

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 139

FONTES ........................................................................................................................ 139


BIBLIOGRAFIA GERAL............................................................................................. 147
Introdução à Pesquisa: fontes e perspectiva da análise

O presente trabalho trata da trajetória de duas musicistas: Helza Camêu (1903-


1995), pianista, compositora e musicóloga, e Joanídia Sodré (1903-1975), pianista,
regente e ex-diretora da Escola Nacional de Música (atualmente, Escola de Música da
Universidade Federal do Rio de Janeiro), cujas carreiras tiveram início,
respectivamente, em 1923 e 1927 no cenário musical do Rio de Janeiro. A construção
da trajetória destas artistas visa a uma reflexão acerca de como as convenções de gênero
estão imbricadas no processo social de construção de uma vocação musical no período.
Trata-se de compreender a vocação como um fato social, isto é, como um
conjunto de práticas e representações sociais constitutivas da experiência do artista.
Nesse sentido, o objetivo aqui é compreender os aspectos sociais que se ligam
estreitamente à formação de uma vocação musical, isto é, as práticas pelas quais tais
circunstâncias sociais se transformam em motivações, interiorizadas em modos de
pensar e agir, em capacidades treinadas e exteriorizadas em respostas criativas sempre
variáveis em relação aos constrangimentos e aos estímulos do meio social.
Sapiro (2007) mostra que o modelo vocacional tornou-se a representação social
dominante acerca da compreensão e exercício das carreiras artísticas. A “concepção
vocacional da arte”, como ela denomina, está imbricada principalmente nas idéias de
predestinação, dom individual e carisma no sentido weberiano, ou seja, a vocação
artística é concebida como um dom (uma qualidade excepcional) que se revela
paulatinamente por meio do reconhecimento dos pares. O êxito ou o sucesso é a
comprovação do carisma, ou seja, de que se estava – ou não – predestinado a ser um
artista. Sendo assim, o nome próprio (renome) é o principal capital simbólico no campo
da produção cultural.
Com o esfacelamento das corporações de ofícios do Antigo Regime e com o
desenvolvimento do “mercado de bens simbólicos”, ao longo dos séculos XVIII e XIX,
a afirmação crescente da ideologia romântica do “criador incriado”, constituiu-se o
“ethos do artista”: uma forma de ascese moral e corporal que distingue a profissão de
artista das demais atividades, bem como separa o artista profissional do amador, pela
dedicação total e desinteressada da “ arte pela arte”. A obra aparece assim como um fim
em si mesmo, valorizada por representar o processo de criação visto como imprevisível
e original. Esses valores são interiorizados nos campos das artes e, especificamente, na
2

música, por um longo processo de aprendizagem, levado a cabo pela família e/ou por
instituições especializadas, como escolas e academias.
Todavia, não é possível desconhecer as clivagens que o gênero introduz no
universo artístico: a construção de vocações masculinas e femininas conhece derivas
distintas. Quando Françoise Escal (1999) analisa o lugar das mulheres na história da
música ocidental – e podemos considerar o mesmo para a história da música brasileira –
ela aponta dois problemas, também constatados por Mariza Corrêa (2003) com relação à
história da antropologia: as “versões masculinas” da história constroem as personagens
femininas como “menores”, geralmente apagadas sob a categoria de “esposas” ou de
mulheres “excêntricas”. Escal apresenta diversos exemplos para ilustrar, primeiro, o
caso da pianista e compositora Clara Schumann (1819-1896), que passou à história
como esposa do compositor Robert Schumann (1810-1856). Clara Wieck já era
considerada uma pianista virtuose quando se casou com o compositor. Mesmo sendo
esposa e mãe de oito filhos, Clara não deixou de realizar seus concertos com os quais
ajudou a divulgar as obras do marido e a sustentar a família (SILVA, 2008)1.
Segundo, as “obras-primas” inscritas na história da música ocidental são
exclusivamente de autoria masculina, exemplos: Don Giovanni, de Mozart; A Missa, de
Bach, e a Nona Sinfonia de Beethoven (ESCAL, 1999, p. 28). Françoise Escal
argumenta, que embora atualmente, a noção de “obra-prima” esteja em desuso, sendo
recusada por alguns músicos, o fato é que as “obras-primas” da música ocidental não
foram compostas por mulheres.
Ao longo do trabalho, a autora procura compreender as variações históricas e
culturais que relegaram uma série de compositoras à condição de desprestígio e de não
reconhecimento de suas obras. Uma das hipóteses levantadas por ela é que as teorias
naturalistas sobre a diferença entre os sexos ou sobre a inferioridade das mulheres,
aplicadas ao domínio da criação musical, produziram diversas concepções segundo as
quais as mulheres seriam “desprovidas de gênio”, no sentido de uma “aptidão inata e de
uma disposição natural”. Quer dizer, as crianças precoces, “fora do comum", só
poderiam ser do sexo masculino. Desta forma, a inaptidão para compor “tão bem” seria
um caso particular da incapacidade geral das mulheres para as “coisas do espírito”.

1
Clara era filha de pais músicos. Foi preparada desde a infância pelo pai Friedrich Wieck, afamado
professor de música em Leipzig, para se tornar uma virtuose do piano, inclusive, estimulando-a a compor.
Ela tinha apenas 11 anos quando deu seu primeiro recital de piano, logo partiu em tournée pela Europa
acompanhada pelo pai.
3

Como conseqüência disso, as musicistas são em geral percebidas como mulheres


dedicadas ao estudo, e não como portadoras de “talento”.
Todavia, não se trata aqui da realização de uma análise musical com vistas à
afirmação do eventual caráter de “obras-primas” das composições de Helza e Joanídia.
Tampouco construí uma biografia das personagens com o intuito de resgatá-las para o
público, retirando-as do silêncio que as cerca. Ainda que não desconsidere a produção
musical e musicológica de Helza Camêu e as poucas composições de Joanídia Sodré, o
foco desta análise recai sobre a reconstrução de algumas das “relações objetivas que
vinculam” estas musicistas “ao conjunto de outros agentes envolvidos” nesse mesmo
espaço social e que se “defrontam com o mesmo espaço de possíveis” (BOURDIEU,
1996, p.82). Além disso, busco delinear as conexões de gênero em aspectos centrais
para a construção de uma vocação musical, tais como: o ambiente familiar, a formação
musical, o início da carreira e os percalços contornados – ou não – no caminho para a
consolidação da profissão.
Nesse sentido, este trabalho vem se somar a outros realizados nas áreas da
sociologia da cultura interessados na cena cultural, artística e/ou científica do ponto de
vista da inserção das mulheres na cena cultural, artística e/ou científica. Os trabalhos de
Maria Lourdes Eleutério (2005) sobre as escritoras e de Ana Paula Simioni (2008)
sobre as pintoras examinam de perto o papel coadjuvante das mulheres na vida artística
e cultural, na passagem do século XIX para o XX. Na literatura, segundo Eleutério
(2005), a partir de 1889, a mulher passa a ter um papel importante na educação dos
jovens, o que faz dela professora, além de mãe e esposa. Se a leitura de revistas, jornais,
romances e poesias eram acessíveis, o sonho de publicar um livro ainda era uma batalha
quase perdida. O ingresso na Academia Brasileira de Letras, espaço de consagração
máximo da época, por sua vez, quase impossível. O magistério era então o único
caminho para o mercado de trabalho. O ato de escrever só era admitido como uma
extensão das atividades de mãe, esposa e professora. Os críticos, por seu turno,
julgavam o livro, a poesia, a prosa ou o romance a partir dos méritos da autora como
mãe, esposa, professora e não como profissional das letras.
Na pintura, Simioni demonstra que a mulher que almejasse ser uma artista
enfrentava cotidianamente uma série de estereótipos e restrições. Na Imperial Academia
de Belas-Artes durante o Império, elas são impedidas de freqüentar a instituição que, na
República, agora Escola Nacional de Belas-Artes, passa a incluí-las a partir de 1893. Do
4

mesmo modo, os críticos de arte avaliam as obras das pintoras por critérios imbuídos
nos papéis sociais distintos atribuídos a homens e mulheres2.
O trabalho de Heloísa Pontes (2008) sobre o teatro – em que as mulheres
tiveram uma projeção excepcional, conquistada mais cedo do que em outras esferas da
produção cultural e intelectual – indica que, quando as mulheres são o objeto da análise
no universo da produção cultural, é necessário adotar uma perspectiva que considere as
especificidades das conexões entre nome, corpo, gênero e marca dentro das convenções
sociais e artísticas em cada um dos campos em questão. A conexão específica entre
esses elementos no teatro brasileiro, por exemplo, fez dele um espaço peculiar no que se
refere à obtenção do renome pelas atrizes, como ilustra a carreira de Cacilda Becker
(1921-1969). Aproveitando a sugestão da autora, no caso da música, as conexões entre
nome, corpo e gênero aparecem traduzidas na figura do “gênio”: afinal, a manifestação
de genialidade na mais tenra infância é uma marca dos grandes compositores.
Outro trabalho importante é o da historiadora Vânia Carvalho (2008). Sua
análise sobre a casa moderna focado no estabelecimentos das rotinas diárias e dos usos
dos espaços sob as relações de gênero ajudou a compreender o piano (objeto) e o tocar
o piano (ação) inseridos nas práticas cotidianas que produzem e reproduzem sentidos e
valores acerca do feminino e do masculino. E, por fim, o trabalho do antropólogo Paulo
Guérios (2003), que analisou a trajetória do compositor Heitor Villa-Lobos e, entre
outras coisas, refletiu sobre as imagens projetadas sobre o compositor como construções
sociais que explicitam a lógica presente no universo musical.
A pesquisa que sustenta este trabalho foi realizada nos arquivos pessoais de
Helza Camêu e Joanídia Sodré depositados no Rio de Janeiro, respectivamente, na
Fundação Biblioteca Nacional, Divisão de Música e Arquivo Sonoro (DIMAS) e na
Biblioteca Alberto Nepomuceno, da Escola de Música da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Também foram coletados materiais no Museu da Imagem e do Som do Rio
de Janeiro, na sessão de Periódicos da Fundação Biblioteca Nacional e na Academia
Brasileira de Música. Outros materiais foram obtidos junto a Dona Julieta Machado
(1923), filha adotiva da compositora Helza Camêu, e à pesquisadora Luciana Dutra,
cuja dissertação de mestrado, Crepúsculo de Outono op.25 n.2 para canto e piano de
Helza Camêu: Aspectos analíticos, interpretativos e biografia da compositora de 2001,

2
“Percebidas como seres por excelência domésticos, sensíveis e com aptidão para a beleza decorativa,
suas obras eram uma extensão das capacidades concernentes ao âmbito do privado exibidas em público”
(SIMIONI 2004, p.10)
5

constituiu uma fonte fundamental para o trabalho. Foram ainda realizadas quatro
entrevistas: em 2009, com Dona Julieta; em 2010, com a bibliotecária Mercedes Reis
Pequeno (1927 - ), o fagotista francês Noel Devo (1936 - ), um dos principais
intérpretes da obra de Helza, e com Jacques Nirenberg (1923-2010), fundador do
quarteto de cordas da UFRJ e amigo de Joanídia Sodré. Além disso, utilizamos uma
extensa bibliografia sobre a história da música no Brasil: biografias, memórias,
dicionários especializados, entre outros.
O estudo está organizado em três capítulos.
No primeiro, Vocação Musical: conexões de gênero e classe social em três
gerações de músicos, faço uma análise do cenário musical no qual Helza e Joanídia
estão inseridas, a partir de um retrato coletivo composto pela trajetória de três gerações
diferentes de musicistas. O objetivo dessa construção analítica é elucidar os mecanismos
sociais presentes na aprendizagem do ofício musical entre homens e mulheres, bem
como compreender como a carreira musical se tornou uma opção para as mulheres no
século XIX. Com a ajuda dessa construção mais ampla, foi possível reduzir e ajustar o
foco nos capítulos seguintes.
No segundo, A “Prodigiosa” Joanídia Sodré, procurei construir o perfil da
musicista a partir das diversas facetas projetadas e incorporadas por ela em diálogo com
o contexto social em que viveu: “criança-prodígio”, “moça estudiosa”, “destemida”,
“regente principiante”, “senhora de sua arte”, “professora”, “diretor”, “ardilosa”,
“talentosa”, “competente”, “caprichosa”. A análise visa compreender em que medida
Joanídia se mostra uma figura ambígua por performatizar, no exercício de papéis
considerados “masculinos”, a incoerência de gênero entre o corpo, as ações (de tocar,
reger, dirigir) e os objetos (piano, batuta, vestimenta).
No terceiro capítulo, Compor e Escrever: duas faces de Helza Camêu , procurei
construir o perfil da compositora e musicóloga, analisando as inúmeras direções e
sentidos que constituem seu percurso singular entre o ofício musical e a pesquisa
musicológica, entre a prática musical e a escrita. Helza considerava-se uma compositora
fracassada, apesar do renome que alcançou, procuro compreender esta contradição,
mostrando o processo contínuo de definição e redefinição de suas ambições sociais no
jogo complexo entre a construção de um lugar para si e o espaço dos possíveis, marcado
pelas convenções de gênero.
6

CAPÍTULO 1: Vocação Musical: Conexões de gênero e classe social


em três gerações de músicos

O objetivo principal deste capítulo é construir o cenário da música erudita


carioca no qual Helza Camêu (1903-1995) e Joanídia Sodré (1903-1975) construíram
suas carreiras. Serão aqui consideradas suas trajetórias desde a infância, quando
ocorrem os primeiros contatos com o universo musical, de modo a compreender os
caminhos possíveis, os caminhos interditos e os outros ainda por fazer. A idéia é
apreender o sentido das escolhas por elas feitas tendo em vista o leque de opções
disponível na época.
Ao longo do capítulo, situaremos a trajetória de Helza e Joanídia em um
contexto mais amplo que será esboçado a partir da análise de um retrato coletivo
composto pela trajetória de alguns músicos. Nossa tarefa aqui não é fazer uma
reconstrução da história da música do período, mas esclarecer mecanismos sociais
presentes na aprendizagem do ofício musical entre homens e mulheres ao longo das
gerações aqui escolhidas para análise. Examinaremos a própria geração das
compositoras, além de duas gerações anteriores a elas, para acompanhar, entre outras
coisas, como a carreira musical tornou-se uma opção para as mulheres no século XIX,
quando elas já atuavam no meio musical como cantoras, pianistas e compositoras.
A análise estruturada a partir da identificação de três gerações diferentes, ao
contrário da metódica divisão em épocas ou escolas musicais, nos ajuda a entender o
processo que transformou o exercício de certas atividades musicais em carreiras
predominantemente femininas ou masculinas. A opção auxilia também a mostrar como
a classificação das práticas ou dos instrumentos musicais em femininos ou masculinos é
intrínseca ao modo como as relações entre homens e mulheres estão organizadas em um
determinado contexto social.
A seleção dos músicos e a composição de um retrato coletivo foram pensadas
em função de questões fundamentais para a compreensão do itinerário social e artístico
de Helza e Joanídia. Diversos problemas orientaram a construção da cena, a saber: quais
motivos afastaram Helza e Joanídia da carreira de pianista, quando esta era, no início do
século XX, um espaço de consagração entre as mulheres? Quais configurações sociais
viabilizaram o acesso dessas mulheres à composição e à regência, até então, duas
atividades restritas aos homens? O que a dedicação de ambas a outras atividades
7

“masculinas”, como a pesquisa musicológica e o cargo de diretor, respectivamente, têm


a nos dizer sobre as inflexões de gênero no universo musical erudito na primeira metade
do século XX?
Para reforçar a idéia de que homens e mulheres não estão em esferas sociais
separadas e, desse modo, evitar o uso descritivo da noção de gênero apontado por Scott
(1990), escolhemos a trajetória de compositores e compositoras, intérpretes cuja fama,
por razões que não discutiremos aqui, extrapola o próprio universo musical – Carlos
Gomes (1836-1896), Ernesto Nazareth (1863-1934), Chiquinha Gonzaga (1847-1935),
Magda Tagliaferro (1893-1986), Guiomar Novaes (1894-1979), Heitor Villa-Lobos
(1887-1959) e Bidu Sayão (1902-1999). Selecionamos também a trajetória de músicos
cujo reconhecimento está restrito ao universo erudito: Dinorá Gontijo de Carvalho
(1895-1980), Francisco Mignone (1897-1986), Vera Janacópulos (1892-1955), Paulina
D’Ambrósio (1890-1976), Antonietta Rudge (1885-1974) e Souza Lima (1898-1982).
Por fim, não poderíamos deixar de incluir a trajetória dos músicos que participaram da
trajetória de Helza e Joanídia, como Alberto Nepomuceno (1864-1920), Francisco
Braga (1864-1920) e Lorenzo Fernandez (1897-1948).
A princípio, eu havia escolhido construir também o percurso da compositora
carioca Luiza Leonardo (1859-1926). Contudo, ao consultar os principais arquivos do
Rio de Janeiro, não encontrei documentos suficientes para colocar sua trajetória no foco
da análise, como farei com Joanídia e Helza. Mesmo assim, optei por inserir seu
itinerário na análise do retrato coletivo de sua geração, já que seu percurso traz
dimensões fundamentais para a análise, como veremos.
Procurei na pesquisa bibliográfica que dá suporte a este capítulo reunir um
material que nos permitisse localizar recorrências, delinear perfis comuns e incomuns,
masculinos e femininos, sem anular a especificidade de cada trajetória, bem como
acompanhar os problemas e obstáculos enfrentados pelos músicos na construção de suas
trajetórias fora dos “centros da música ocidental”.
Segundo Guérios (2003, p. 82), o termo “música ocidental” designa “uma
manifestação estética englobante” reivindicada por uma elite musical, isto é, por países
como Itália, Alemanha e França, que “tinham a primazia na definição das formas
válidas de arte, ou em seus próprios termos, na definição das formas universais...” da
expressão musical. É sob os parâmetros estabelecidos pelos “centros da música
ocidental” que os demais países, em outros termos, seus músicos e sua produção
8

musical, deveriam constituir suas manifestações musicais para serem consideradas


legítimas.
Situando o universo musical brasileiro na periferia da “música ocidental”,
podemos compreender o sentido de certas práticas musicais e dos termos utilizados para
classificá-las. Por exemplo, podemos compreender por que a viagem ao exterior para
completar os estudos musicais foi um dos bens simbólicos mais almejados pelos
músicos brasileiros tanto no Império quanto na República: porque a viagem à Europa
alçava aspirantes à condição de artistas3.
Ao viajarem, estes músicos entraram em contato com um conjunto de idéias e
propostas forjadas na Europa ao longo do século XIX. Aqui, estou me referindo à
“música nacional” (GUÉRIOS, 2003, p. 82). Mais do que definir o termo, interessa
ressaltar que compor “música nacional” e constituir-se como “artista nacional” só se
tornaram opções possíveis para os compositores brasileiros quando se constituíram
formas valorizadas pelos centros da “música erudita”. Desse modo, as expressões
“música séria”, “música ligeira”, “erudita”, “popular”, são entendidas aqui como
princípios classificatórios gerados por uma “elite acadêmica” que têm como sua
principal referência os “padrões da música ocidental”. Assim, podemos dizer que as
práticas e manifestações musicais eram classificadas como “música ligeira” ou
“popular” quando consideradas afastadas deste modelo e, por isso mesmo,
desvalorizadas artisticamente. Por oposição, eram denominadas “música séria” ou
“erudita”, quando filiadas à “música ocidental”. Entretanto, com o advento da República
em 1889, o uso dos termos “erudito” versus “popular” é mais freqüente, pois denota
uma crescente polarização simbólica entre os universos.
Para organizar as três gerações em questão, relacionei três eixos principais: um
biográfico, um profissional e um último, relativo ao cenário musical, todos eles
relacionados aos seguintes fatos: Helza e Joanídia nasceram no ano de 1903; começam a
compor em uma mesma época, respectivamente, em 1928 e 1927; finalmente, o advento
da República em 1889 marca o início da constituição do campo “erudito” carioca. A
divisão entre Monarquia e República não é um mero referencial temporal, quero dizer,
um divisor entre épocas que retira a trajetória dos artistas de seu contexto particular; ao
contrário, a transição do regime monárquico para o republicano tem impacto direto no
campo musical e na trajetória dos artistas que se desenrolavam neste período.

3
Para ilustrar, entre os 12 músicos bolsistas do Imperador D. Pedro II, os destinos mais escolhidos foram
Paris e Milão (Auler, 1956).
9

Separamos a geração de compositores que antecedeu Helza e Joanídia em dois


grupos: o primeiro, aqui denominado “músicos do Império”, é formado por artistas
cujas trajetórias foram construídas sob o poder de D. Pedro II, são eles: Carlos Gomes
(1836-1896), Henrique Mesquita (1838-1906), Carlos Darbilly (1846-1918), Chiquinha
Gonzaga (1847-1935), Joaquim Callado (1848-1880) e Luiza Leonardo (1859-1934).
O segundo grupo, “músicos de transição”, são os artistas que de alguma forma
tiveram suas trajetórias profissionais afetadas pela passagem da Monarquia para a
República: Ernesto Nazareth (1863-1934), Carlos Mesquita (1864-1953), Alberto
Nepomuceno (1864-1920) e Francisco Braga (1864-1920). Por fim, a última geração,
“os músicos contemporâneos”, é constituída de artistas que se destacaram na cena
“erudita” nacional entre o nascimento (1903) e o começo da carreira de Helza e Joanídia
como compositoras (no final da década de 1920): Antonietta Rudge (1885-1974), Heitor
Villa-Lobos (1887-1959), Paulina D’Ambrósio (1890-1976), Vera Janacópulos (1892-
1955), Magda Tagliaferro (1893-1986), Guiomar Novaes (1894-1979), Dinorá Gontijo
de Carvalho (1895-1980), Lorenzo Fernandez (1897-1948), Francisco Mignone (1897-
1986), Souza Lima (1898-1982) e Bidu Sayão (1902-1999).
Nossa incursão bibliográfica começa pelo século XIX com a chegada da Família
Real ao Rio de Janeiro em 1808. A vinda da corte portuguesa foi fundamental para a
transformação da cidade no centro cultural e intelectual do país, especialmente no que
se refere ao universo musical. Durante o Primeiro e o Segundo Reinados, diversas
instituições são criadas e contribuem diretamente para o incremento dessas atividades.
Lembremos, entre outros, a criação do Instituto Histórico Geográfico (1838), do
Colégio Imperial D. Pedro II (1837), da Biblioteca Nacional (1810), do Museu Nacional
(1818) e da Imperial Academia de Belas Artes (1826).
A paixão pela música cultivada pela família real, especialmente por D. João VI e
D. Pedro II, em muito contribuiu para o fomento das atividades musicais4. Logo após
sua chegada ao Brasil, uma das preocupações de D. João VI foi transformar a igreja do
Convento em Capela Real para abrigar e manter o brilho das manifestações religiosas
que costumava realizar em Portugal (PAOLA; BUENO, 1998; AZEVEDO, 1956;
REZENDE, 1970). O intento foi alcançado, e a Capela Real tornou-se grandiosa,
chegando a possuir em torno de 100 músicos. Contudo, subordinadas ao poder político,

4
D. João VI e D. Pedro II, herdeiros da dinastia de Bragança, iniciada no século XVII em Portugal pelo
rei D. João IV (1604-1656), que fundou e manteve, durante seu reinado, a maior biblioteca de música da
Europa de seu tempo (Rezende, 1970).
10

as suntuosas manifestações religiosas não resistiram ao conturbado reinado de D. Pedro


I, entre 1822 e 1831, que chegou ao fim com sua abdicação. Ao final do Primeiro
Reinado, do efetivo de músicos da Capela, sobraram apenas 27 (AZEVEDO, 1956,
p.45).
As primeiras instituições de música voltadas para o ensino profissional são
criadas no Segundo Reinado, no contexto das primeiras tentativas de criação de uma
“música nacional”, ou seja, a partir da Independência em 1822, e de modo evidente a
partir de 1840, quando D. Pedro II apóia as primeiras iniciativas em torno da
estruturação de um campo musical “erudito”, concentradas em torno da ópera,
predileção da corte portuguesa. Nesta conjuntura são criados o Imperial Conservatório
de Música, a Imperial Academia de Música e a Ópera Nacional, respectivamente em
1848 e 1857, com o objetivo de formar músicos capacitados para atuar, sobretudo, no
teatro lírico (AZEVEDO, 1956; GUÉRIOS, 2003; MARIZ, 2005).
Vale mencionar ainda outras instituições, que, embora não fossem voltadas
exclusivamente para o ensino musical, ofereciam cursos de música em seus quadros,
gerando uma opção de ensino musical e, principalmente, de trabalho para os músicos
que nelas lecionavam: o Imperial Instituto dos Meninos Cegos (Instituto Benjamin
Constant) 5 e o Liceu de Artes e Ofícios6 fundados, respectivamente, em 1854 e 1856.

1.1. “MÚSICOS DO IMPÉRIO”: A VOCAÇÃO MUSICAL NO


ÂMBITO DAS INSTITUIÇÕES E DO MECENATO

A Imperial Academia de Música e a Ópera Nacional são duas instituições


criadas em 1857, sob o comando do cantor e compositor espanhol José Amat (1848 - ?),
tendo sido extintas precocemente em 1860. Em suas curtas existências, contemporâneas
ao apogeu do gosto pela ópera, apresentaram de modo precursor a obra de jovens
compositores brasileiros como Henrique Alves de Mesquita (1830-1906) e Carlos
Gomes (1836-1896).

5
O Imperial Instituto dos Meninos Cegos foi fundado com o objetivo de oferecer aos deficientes visuais
cursos que os preparassem para exercer uma arte, um ofício ou uma profissão liberal. Entre eles,
destacamos: organista, afinador de piano, professor de música, torneiro, encadernador, entre outros.
6
O Liceu de Artes e Ofício foi fundado com o objetivo de fornecer cursos profissionalizantes aos
trabalhadores em geral e da construção civil: homens livres ou estrangeiros. No início, o corpo docente
era composto de pessoas de prestígio que não eram remuneradas. Os cursos do Liceu são abertos às
mulheres somente em 1881.
11

A noite do castelo, encenada em 1861, no dia do aniversário de casamento do


Imperador D. Pedro II, é a primeira ópera de Carlos Gomes7. Após o sucesso da peça,
José Amat concedeu ao músico uma bolsa de estudos na Europa8. Carlos Gomes
mudou-se para Milão de onde regressou somente no final da vida devido a problemas
financeiros e de saúde. A ópera “O Guarani”, sua obra mais conhecida, estreou em
Milão em 1870.
Carlos Gomes nasceu em Campinas em 1836, filho de Manoel José Gomes,
mestre de capela durante 50 anos em Campinas. A trajetória de seu pai, conhecido como
Maneco Músico, ilustra como no século XVIII a música era indissociável da vida
religiosa; era a igreja que oferecia cursos de música e um dos cargos de maior status:
mestre de capela. Como empregado da igreja, Maneco Músico era responsável pela
música utilizada nas missas, isto é, deveria compor, reger, tocar, cantar, ensinar, fazer
cópias de partituras e contratar o serviço de outros músicos, quando necessário. A
execução destas tarefas visava proporcionar aos fiéis um ambiente propício ao culto
religioso. Para a geração de Manoel, o trabalho de um músico era como o de um
artesão, não havia a concepção do artista como autor de um trabalho único, original,
pelo qual realiza sua vocação (NOGUEIRA, 1997, p. 14).
Maneco Músico iniciou seus filhos na música, e a igreja foi o primeiro espaço
para o exercício musical. Carlos Gomes compôs suas primeiras peças para serem
executadas nas missas (MARIZ, 2005, p.76). Depois do pai, foi no irmão mais velho,
José Pedro de Sant’Anna Gomes, também maestro e compositor, que Carlos Gomes
encontrou apoio e incentivo para sua carreira musical. Antes de partir para o Rio de
Janeiro, o compositor fez alguns concertos em São Paulo acompanhado pelo irmão
(NOGUEIRA, 2007). Em Campinas, dava aulas de música, canto e piano para ajudar o
pai (MARIZ, 2005).
Em 1860, Carlos Gomes, então um músico de igreja, partiu para o Rio de Janeiro
com o objetivo de ser um artista, ou seja, um compositor “erudito” reconhecido por seus
pares devido a seus méritos artísticos. Na capital do Império, rapidamente tratou de
estudar: tornou-se aluno do Imperial Conservatório de Música, passando a estudar
harmonia e composição. Neste contexto, todo compositor brasileiro desejava ser

7
Os dados sobre Carlos Gomes aqui utilizados serão retirados ora de Nogueira (1997) e (2007), ora de
Mariz (2005).
8
É preciso dizer que Carlos Gomes nunca foi aluno regular do Conservatório de Milão em razão da idade
avançada, tinha quase 30 anos quando chegou à Itália. Contudo, teve aulas particulares como “compositor
em aperfeiçoamento.” (Nogueira 2007).
12

aplaudido no Teatro Lírico Fluminense, onde se apresentavam as grandes companhias


internacionais e as óperas de Rossini, Bellini, Donizetti, Verdi, entre outros. A ópera,
que predominava no Rio de Janeiro (a italiana e a francesa), se disseminou de várias
formas: apropriada pelo coro das igrejas; trabalhada pelos compositores brasileiros nas
modinhas, que, muitas vezes eram um trecho da melodia de uma ópera famosa cantada
com um texto poético de algum autor nacional (AZEVEDO, 1956, p.59); inspiração
para as operetas, gênero musical de conteúdo e música despretensiosa, chamado na
época de “música ligeira” (Idem, p. 62 e 63).
O Imperial Conservatório de Música do Rio de Janeiro, fundado por Francisco
Manuel da Silva (1795-1865) em 1848, logo se tornou o principal destino dos músicos
de todo o país. Afinal, era a única instituição oficial e gratuita dedicada à “música
erudita” no Brasil. O propósito do Conservatório deixa claro que seu objetivo era
oferecer um ensino “erudito” para atender ao teatro lírico e à ópera:

“(...) instruir na arte de música pessoas de ambos os sexos que a ela


quisessem dedicar-se, e a formar artistas que pudessem satisfazer às
exigências do culto e do teatro.” (PAOLA; BUENO, 1998, p. 21).

Inicialmente, o Conservatório oferecia cursos de: “rudimentos, preparatórios e


solfejos, canto para o sexo masculino, rudimentos e canto para o sexo feminino,
instrumentos de corda, instrumentos de sopro e harmonia e composição” (Idem, p. 21).
Não por acaso, os primeiros cursos abertos privilegiavam a formação de cantores,
cantoras, compositores e instrumentistas de corda e sopro utilizados na formação
orquestral, todos fundamentais para a consecução de uma ópera. Os outros cursos foram
sendo criados de acordo com a demanda e a disponibilidade de recursos (inclusive o
curso de piano foi criado oficialmente apenas em 1883).
Outro aspecto a ser ressaltado é que, desde a sua criação, o Imperial
Conservatório permitiu o ingresso das mulheres em seus cursos. Contudo, pelo que
indica a contratação de Leonor Tolentino de Castro, primeira professora da casa, para a
classe exclusiva de alunas de solfejo (ibidem, p.28), podemos inferir que elas não
receberam o mesmo ensino musical que os homens, assim como ocorria na França. O
Conservatório de Paris, criado em 1795, também não excluiu as mulheres de seus
cursos, mas possuía um aparato de regras para separar homens e mulheres, desde
13

estabelecer portarias diferentes para cada um, até classes e professores distintos. Alunas
e alunos se reuniam somente para os ensaios de cenas cantadas, mas a presença dos pais
dos alunos era obrigatória. Além disso, os salários pagos às professoras das classes de
mulheres eram menores do que a remuneração recebida pelos professores homens
(ESCAL, 1999, p. 79, 83).
Apesar deste quadro discriminatório, as mulheres eram a maioria entre os alunos
de canto no Conservatório de Paris. Entre 1795 e 1816, foram formadas 227 cantoras e
90 cantores, segundo a autora, em razão da demanda da ópera e do teatro lírico. Em
1823, entre os alunos de piano havia 41 mulheres e 32 homens (Idem, p. 80 e 81). Não
obstante, podemos afirmar que no Imperial Conservatório de Música, assim como no
Conservatório de Paris, a prática musical era permitida às mulheres desde que
submetidas às regras de decoro e decência da época. Neste sentido, alguns instrumentos
eram mais recomendáveis a elas do que outros. Por exemplo, o piano era um
instrumento que convinha às moças, mais do que qualquer outro porque “(...) elas
podiam tocar sentadas, com as pernas fechadas e sem fazer grandes movimentos –- além
de não ficarem de frente para o público fazendo trejeitos faciais ou corporais.” (SILVA,
2008, p.74). Ao contrário, a harpa não era considerada um instrumento adequado, pois
sua execução exigia uma exibição sem reservas do corpo (ESCAL, 1999, p. 72).
Em 1855, é instituído no Imperial Conservatório o prêmio de viagem ao exterior
que concedia uma bolsa de estudos para aperfeiçoamento na Europa ao melhor aluno.
Henrique Alves de Mesquita9, aluno de contraponto e órgão do professor Giocchino
Giannini (1817-1860) foi o primeiro a receber o prêmio. Oriundo de família pobre,
Henrique nasceu no Rio de Janeiro em 1830, era trompetista. Giocchino Giannini
sempre foi seu professor, primeiro no Liceu Musical10 e, a partir de 1847, no Imperial
Conservatório de Música.
Ao lado dos estudos no Imperial Conservatório, Henrique Mesquita fundou, com
o clarinetista Antônio Luis de Moura, o Liceu e Copistaria Musical, estabelecimento
musical que oferecia cursos de música, comercializava instrumentos, vendia
transcrições de peças musicais e fornecia orquestra para bailes. Envolvido com o meio,
Henrique compôs inúmeras peças “ligeiras” como a modinha O Retrato (1854), o

9
Os dados sobre Henrique Alves de Mesquita foram obtidos em Marcondes (2000) e Cacciatore (2005).
10
O Liceu Musical era um estabelecimento privado de ensino musical fundado em 1841 por um grupo de
professores. Mantinha cursos de piano, canto, flauta etc.
14

romance Ilusão (1855), a valsa Saudades de Mme. Charton (1856), o lundu Beijos de
Frade (1856), entre outras.
Henrique partiu para Europa em 1857, estudou no Conservatório de Paris, onde
foi aluno do compositor François Bazin (1816-1878). Em conseqüência de problemas
causados por relacionamentos amorosos, teve a carreira na capital francesa
interrompida, perdeu a bolsa que recebia do Imperial Conservatório, suspendida por D.
Pedro II, em vista da suspeita sobre conduta do compositor. Em 1863, a companhia de
Ópera Nacional encenou sua opereta O Vagabundo ou Infidelidade, Sedução e Vaidade
Punidas sobre libreto traduzido para o português do italiano Francisco Gumirato
(AZEVEDO, 1956, p. 69).
Ao retornar ao Brasil em 1866, Henrique tornou-se um famoso compositor de
operetas; como diretor da orquestra do Teatro Fenix Dramática11, escreveu muitas peças
para o gênero: Ali-Babá, Trunfo às avessas e Coroa de Carlos Magno alcançaram
grande sucesso. Além disso, foi organista da igreja de São Pedro, função que exerceu
entre 1872 e 1886. Ainda em 1872, foi nomeado professor de harmonia e solfejo do
Imperial Conservatório.
Olhando, lado a lado, as trajetórias de Carlos Gomes e de Henrique de Mesquita,
podemos ver que ambos não se conformaram ao caminho que já trilhavam: Carlos
Gomes segue os passos para suceder o pai na função de mestre de capela e Henrique
possui seu próprio estabelecimento musical – arriscando-se em novas oportunidades
oferecidas pelas instituições imperiais. Os dois compositores obtiveram êxito: suas
obras foram encenadas pela companhia de ópera de José Amat e conquistaram a
oportunidade de estudar na Europa. Não fosse pela bolsa que receberam, Carlos Gomes
e Henrique de Mesquita jamais teriam ido à Europa, pois teriam que financiar com
recursos próprios a viagem, ou pedir uma bolsa de auxílio para D. Pedro II, ou ainda,
recorrer ao apoio de pessoas influentes para se aproximar do Imperador, o que era bem
mais improvável, visto que o acesso ao círculo aristocrático era restrito a poucos.
No Império, para um músico ser reconhecido como artista e sustentar com o
trabalho a sua família, precisava “cair nas graças” da família real e da elite12
circundante. Para isso, havia três possibilidades: o mais difícil deles, completar a

11
Fundado, em 1863, como Teatro Eldorado, em 1868, passou a se chamar Teatro Fênix Dramático, foi
um espaço dedicado à apresentação de operetas e peças de música ligeira.
12
Seguindo a linha apontada por Needell (1993), quando usamos o termo elite para este período estamos
nos referindo a um grupo muito restrito de pessoas. Um bom exemplo para dimensionar este grupo são as
associações musicais que tinham, no máximo, como sócio-fundadores, 600 pessoas.
15

formação musical na Europa; exercer uma função na Capela Imperial ou mesmo nas
instituições imperiais recém-criadas, ou ainda, tornar-se um instrumentista (ou
compositor) afamado por toda capital do Império. Todavia, a maior prova de
reconhecimento era a nomeação para professor do Imperial Conservatório, afinal, todos
os professores desta instituição eram condecorados por D. Pedro II com a Ordem da
Rosa (DINIZ, 2008).
Como se sabe, D. Pedro II teve participação direta na trajetória de diversos
artistas (poetas, pintores e músicos) concedendo, conforme sua vontade, auxílio ou
bolsas para que os artistas pudessem se aperfeiçoar na Europa. A concessão de bolsas
transcorria da seguinte forma: ao receber um pedido de auxílio, o Imperador logo
iniciava uma investigação minuciosa sobre a vida e conduta moral do requerente. Não
encontrando nada que lhe desagradasse, informava-se sobre a quantia necessária e, em
seguida, concedia a bolsa por decreto ou portaria. Os bolsistas do Imperador eram
obrigados a apresentar, trimestralmente, um relatório com o andamento do curso,
freqüência, notas e bom comportamento. Ao todo, foram 151 bolsistas, dentre eles, 12
são músicos, entre os quais duas mulheres: a cantora Maria Monteiro (1870-1897),
nascida em Campinas, obteve o auxílio para estudar em Milão, em 1887, e a pianista
Luiza Leonardo, em 1873 (AULER, 1956).
Luiza Leonardo13 nasceu no Rio de Janeiro em 1859, filha do português
Victorino José Leonardo, professor de música do Imperial Instituto dos Meninos Cegos.
Sua mãe, Carolina de Oliveira Leonardo, era pernambucana, descendente dos Nassau; a
origem nobre garantia status a sua família. Batizada na igreja de São José, Luiza teve
como padrinho o próprio D. Pedro II.
Muito cedo, aos 7 anos de idade, iniciou seus estudos de piano. Foi aluna de
Isidoro Bevilacqua, pianista e professor que residia no Rio de Janeiro desde 1840,
quando se tornou professor de música da Família Real. Luiza não fez sua estréia em um
concerto privado, realizado no ambiente doméstico do salão, como era comum,
sobretudo, para as meninas. Bevilacqua organizou um concerto público no Teatro Lírico
Provisório com a presença de convidados ilustres, entre os quais se destacava a Família
Real. No final da apresentação, Luiza por volta dos 9 anos de idade, recebeu de D.
Pedro II uma bolsa de estudo para a Europa. Em 1873, aos 14 anos, Luiza ingressou no
Conservatório de Paris; em 1877, estreou como compositora com a Grande Marcha

13
Os dados sobre Luiza Leonardo foram obtidos em Boccanera Júnior [1903,1904 ] (1988).
16

Triunfal, dedicada a D. Pedro II, executada pela Orquestra Pasdeloup14. Em 1878,


concluiu o curso de piano no Conservatório de Paris obtendo o primeiro lugar, o que
favoreceu sua permanência na Europa.
Poucos foram os músicos que tiveram a chance de completar a formação musical
na Europa; muitos nunca saíram do país e se acostumaram a enfrentar as inúmeras
adversidades decorrentes de um universo musical incipiente. Para estes, a consolidação
da carreira musical dependia da popularidade obtida como intérprete ou compositor.
Dessa forma, dependendo do destaque alcançado, poderiam chamar a atenção da corte
portuguesa e, quem sabe, receber de D. Pedro II o reconhecimento como artista.
Esse foi o caminho do “pai do choro” e protetor de Chiquinha Gonzaga, Joaquim
Antonio da Silva Callado15, flautista e compositor de modinhas, lundus, maxixes.
Callado nasceu em 1848, mestiço, de família humilde, era um dos músicos mais
conhecidos do Rio de Janeiro nesta época. Quando criança aprendeu flauta e piano com
o pai professor de música, que tocava cornetim e trompete, e era mestre de Banda, isto
é, ele dirigia a Banda Sociedade União de Artistas. Esta era uma das sociedades
musicais existentes na época e ligadas aos festejos de Carnaval de rua.
Na adolescência, Callado era desajeitado no piano, pois não tinha meios de
custear as aulas com um bom professor particular, única forma de aprender o piano
neste período. Já a flauta tinha nas Bandas uma escola musical mais acessível à grande
maioria dos músicos pobres e mestiços. Callado optou mesmo pela flauta transversa,
que já tocava em bailes, saraus e salões. Em 1866, quando tinha 18 anos, passou a ter
aulas de composição e regência com o trompetista e compositor Henrique de Mesquita,
que acabava de retornar de Paris. Inspirado pelo carnaval, aos 19 anos, apresentou sua
primeira composição, a quadrilha “Carnaval de 1867.” (DINIZ, 2008, p.16-18).
Todavia, o compositor ainda não tinha uma obra publicada, e isto se deu
justamente na época em que o piano de Chiquinha Gonzaga (1847-1935)16 passou a
integrar seu grupo de choro, que era formado por dois violões, um cavaquinho e flauta.
Na execução, todos deveriam acompanhar a flauta. No grupo, apenas Callado e
Chiquinha sabiam ler partitura, os demais tocavam “de ouvido”. Assim, a execução era

14
A orquestra foi criada em 1861 pelo compositor Jules Pasdeloup (1819-1887) em razão dos Concerts
Populaires. O objetivo destes concertos era a ampliação do público de concertos e a divulgação de novos
compositores e músicos, não só franceses. Constituída de 80 músicos, apresentava-se em concertos
dominicais no Cirque d’hiver. Suas atividades foram interrompidas em 1886 e retomadas em 1919. Em
atividade até hoje, é a orquestra sinfônica mais antiga da França.
15
Os dados sobre Joaquim Antonio Callado foram obtidos em Diniz (2008).
16
Os dados sobre Chiquinha Gonzaga foram obtidos em Diniz (2005).
17

marcada pelo improviso. No grupo de choro, geralmente, os compositores eram os


flautistas, pois dominavam a escrita e leitura de uma partitura musical (DINIZ, 2005, p.
93).
A primeira obra publicada do compositor foi Querida por todos, dedicada à
Chiquinha Gonzaga, em 1869. A peça musical Lundu Característico (1871) alcançou
enorme popularidade. A Família Real, reconhecendo o seu talento musical, nomeou-o
professor de flauta no Imperial Conservatório e no Liceu de Artes e Ofícios. Em 1879,
já como professor do conservatório, recebeu mais uma prova de seu prestígio: foi
condecorado com a “Ordem da Rosa”. Callado faleceu jovem, aos 32 anos, em 1880,
três anos depois da estréia de Chiquinha.
Chiquinha estreou como compositora em 1877, aos 29 anos de idade, separada e
lutando para sustentar a si própria e ao filho, João Gualberto. Sua primeira música foi
composta na casa do mesmo Henrique de Mesquita, nesta época professor do Imperial
Conservatório, numa reunião da qual participavam os músicos famosos do período. Aos
poucos, Callado e os demais músicos presentes (violões, cavaquinhos, flautas, violinos
etc.) se juntaram a ela no piano num improviso que criou a polca Atraente.
Chiquinha nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1847, de uma união ilegítima
entre Rosa, uma mestiça pobre, e José Basileu, branco, instruído (bacharel em
Matemática e Ciências Físicas) e de “boa” família. Apesar da oposição familiar, José
Basileu, então primeiro-tenente do Exército Imperial, se casou com Rosa, após o
nascimento de Chiquinha.
O piano entrou na casa de Chiquinha não por uma vontade pessoal de seus pais
para que a filha fosse uma artista: nem o pai nem a mãe tinham qualquer envolvimento
com a música17. Quando decidiu dar à filha uma educação musical, não havia nenhuma
pretensão artística na atitude de José Basileu, cujo desejo era apenas educar a menina
conforme os padrões da época, que recomendavam a uma moça de boa família o ensino
musical ao lado de outras atividades: cozinhar, bordar e fazer renda; aprender francês e
dançar.
Seguindo as normas de decoro, que indicavam para as mulheres o ensino por
meio de aulas particulares, Chiquinha teve aulas de piano em casa com o compositor
Elias Álvares Lobo (1834-1901). É preciso lembrar também que a aula particular era o
modo predominante de aprender piano, já que neste período as mulheres não podiam

17
O único parente de Chiquinha envolvido com a música era o seu tio paterno e padrinho, Antonio Eliseu,
flautista amador, o grande animador musical da família.
18

freqüentar os cursos do Liceu de Artes e Ofícios e das associações musicais.


Lembremos que no Imperial Conservatório ainda não havia o curso de piano, nem para
homens nem para mulheres.
É evidente que a prática do piano integrada ao contexto das atividades
domésticas não visava à formação de uma musicista, nem sequer era vista como um
exercício artístico, mas sim como parte da educação feminina, um mero passatempo
antes do casamento:

“(...) ao pequeno espaço de tempo que mediava entre a vida da menina


e da senhora, que a moça entregava-se ao aprendizado da música e das
maneiras, ao interesse pelos vestidos, vivendo na expectativa da
chegada do marido” (SOUZA, 1987, p. 89).

Mesmo quando o casamento não punha um fim à sua prática, esta se destinava
ao entretenimento. O piano estava situado na sala de visitas ou na sala de música, dois
espaços femininos na casa, organizados de forma a permitir que a esposa apresentasse,
nas reuniões sociais, sua desenvoltura e polidez no trato social, indicativos da posição
social de sua família. O papel da mulher era ornamentar as reuniões sociais, sendo as
apresentações musicais (tocando e/ou cantando ao piano) apenas uma das formas de
cumprir sua tarefa (CARVALHO, 2008, p. 156 e 157). Decerto, a prática musical do
piano no âmbito da casa é parte do processo de modificação do espaço doméstico rumo
à especialização de seus ambientes: a “casa moderna” passou a expressar a posição
social da família, isto é, o consumo privado e individual adquiriu suma importância para
a construção de identidades sociais e sexuais neste período, daí a crescente
“mercantilização dos objetos domésticos e a sua exibição privada e ostensiva” (Idem, p.
22).
Não por acaso, Chiquinha teve suas aulas de piano até aproximadamente seus 13
anos, quando se casou com Jacinto Ribeiro do Amaral, oficial da Marinha Imperial. O
fato irônico é que seu pai lhe deu um piano como dote de casamento, piano este que será
um dos motivos da separação do casal. Com o casamento, Chiquinha não colocou o
piano depois de suas obrigações como esposa. E o marido, enciumado com tanta
dedicação da esposa ao que deveria ser somente uma prenda, exigiu que Chiquinha
escolhesse entre ele (o casamento) e o piano (sua ambição artística): ela escolheu o
19

piano. Ao se separar em 1869, ela foi renegada tanto pela família, que a proibiu de ver
os filhos, como também pela sociedade Imperial.
Ela transformou o piano em um instrumento de trabalho; afinal, precisava
sobreviver de suas apresentações como pianista, da venda de suas composições e das
aulas. Neste sentido, o apoio que recebeu de Callado foi fundamental para sua atuação
como pianista e, mais tarde, como compositora. Foi ele o responsável por sua
introdução no universo predominantemente masculino da vida boêmia do Rio de
Janeiro. Chiquinha inseriu-se aí “como um homem”: começou tocando seu piano no
grupo de choro de Callado tornando-se a primeira “pianeira”18. Tocou depois pelos
cafés-cantantes, confeitarias, bailes etc. Mais tarde, passou a compor peças dançantes
para o universo que a acolheu, isto é, próprias para “o salão”: lundus, maxixes, tangos; e
mais tarde, para o Teatro de Revista ou “Teatro Musicado”, que absorveu esta produção
musical. Chiquinha consolidou-se como compositora nas duas décadas finais do século
XIX, período em que mais compôs e participou ativamente da vida musical carioca, o
que demonstra a popularidade do repertório dançante e dos “pianeiros” nos salões.
Podemos dizer que o piano, no final do século XIX, ainda era um instrumento
predominantemente de “salão”, isto é, sua prática e seu repertório visavam à sua
execução na vida social de bailes, festas e salões. Era assim um instrumento
coadjuvante, “acompanhador”. Na Europa, por sua vez, devido a um longo processo
social e histórico que não pretendemos discutir aqui, o piano já era apresentado em
concertos solos, nos quais os “virtuoses”, já remunerados pelas suas apresentações,
eram a grande atração, como Clara Schumann (1819-1896)19e Franz Liszt (1811-1886),
considerados respectivamente, a primeira pianista a empreender uma carreira de
intérprete e o “pai do recital moderno” (BARONI, 1999, p. 55, 62).
À luz desse quadro, torna-se possível entender por que Luiza Leonardo
interrompeu a carreira de pianista ao retornar definitivamente para o Brasil, depois de
passar dois anos em Lisboa como pianista da corte de Luís I, de Portugal. Afinal, como
ela poderia se apresentar como um intérprete-pianista, aos moldes europeus, se o piano
no Brasil era ainda um instrumento da sala de visitas e seu repertório de valsas, polcas e
maxixes, destinado a alegrar recepções sociais?

18
Era esse o “nome pejorativo para músicos de pouca formação musical e muito balanço.” (MACHADO,
2007, p. 20).
19
Clara Schumann deu seu primeiro concerto solo em 1830, em Leipzig. logo depois, acompanhada pelo
pai, partiu em viagem pela Europa, apresentando-se em vários países (SILVA, 2008).
20

Luiza não foi a primeira bolsista do Imperador a enfrentar os problemas e as


dificuldades existentes no universo musical erudito carioca no seu retorno ao Brasil. O
pianista e compositor Carlos Cavalier Darbilly (1846-1918)20, 13 anos mais velho que
ela, encontrou as mesmas dificuldades anos antes, em 1871, ao retornar do
Conservatório de Paris onde também foi estudar com o auxílio concedido por D. Pedro
II. Ao retornar ao Rio de Janeiro encontrou a seguinte situação: não havia o curso de
piano no Imperial Conservatório. Por falta de recursos financeiros desta instituição,
quem ensinava o instrumento aos interessados, uma vez por semana, era o professor de
canto, Arcângelo Fiorito (1813-1887). Ao deparar-se com as condições precárias e o
com o descaso do ensino do piano no Imperial Conservatório, Darbilly se ofereceu para
dar as aulas de piano sem receber por elas nenhuma remuneração. Foram quase dez
anos, entre 1873 e 1881, em que contribuiu para a consolidação do ensino do piano na
instituição. Somente em 1883, aos 37 anos, depois de passar em concurso, tornou-se o
primeiro professor nomeado de piano do Imperial Conservatório.
Carlos Darbilly retomou igualmente suas atividades na “música séria” e na
“música ligeira”: tocava e compunha peças para as operetas, para o Teatro de Revista, e
era professor do Liceu de Artes e Ofícios. Mesmo antes de partir para Paris, já estava
habituado a se revezar entre os estudos de piano no Conservatório Imperial e a
composição de peças “ligeiras”, pois assim aprendeu com o pai, o francês Charles Juste
Cavalier, que era, ao mesmo tempo, trompetista da Capela Real de D. Pedro II e
organizador, compositor e regente das orquestras de bailes.
Luiza, ao contrário de Darbilly, não teve outra escolha, senão iniciar outra
carreira. Dividida entre o teatro lírico, para o qual tinha mais afinidade, e o teatro
dramático, decidiu-se pelo segundo, seguindo o conselho dado pela mãe. Não sabemos
se sua mãe pretendia afastá-la da ópera ou do teatro de revista, já que os dois gêneros
eram muito apreciados no Rio de Janeiro e as cantoras de ópera, reverenciadas pelo
público. De qualquer forma, a escolha pelo teatro evidencia que a carreira de atriz e a de
cantora eram duas possibilidades para as mulheres, enquanto a carreira de pianista
“virtuose” parecia impossível no país.
Luiza estreou em 1884, no teatro Polytheama, com a peça O gênio de fogo, de
Primo Costa. Mais uma vez ela contou com a anuência do Imperador D. Pedro II, que
compareceu à sua estreia. Viajou pelo Brasil apresentando-se em inúmeros espetáculos,

20
Os dados sobre Carlos Cavalier Darbilly foram obtidos em Marcondes (2000) e Cacciatore (2005).
21

entre os principais: Casa de bonecas, de Henrik Ibsen, Dama das camélias, de


Alexandre Dumas Filho e Maria Tudor, de Victor Hugo. Na década de 1890, no auge
do sucesso do teatro de revista, o teatro dramático foi perdendo espaço na cidade, pois
as companhias, priorizando o lucro, preferiam cada vez mais encenar as operetas, “o
teatro musicado”, em detrimento dos textos dramáticos. Luiza não apreciava o teatro de
revista. Entretanto, mesmo contrariada, participou de alguns espetáculos. Ela dedicou-se
ao teatro dramático até 1900, deixando os palcos após a morte de Moreira de
Vasconcellos diretor da companhia em que atuava do qual era também amiga.
Na época em que Carlos e Luiza retornaram ao Brasil, não havia a prática do
concerto de piano solo e os concertos de câmara e sinfônicos eram escassos. O processo
de renovação musical que fomentará a prática dos concertos, de modo geral, só teve
início na década de 1880, com a criação dos principais clubes musicais, e chegará ao
seu apogeu às vésperas da proclamação da República. Os clubes musicais, isto é, as
associações privadas de música, cujos sócios eram formados por membros da corte e de
sua elite circundante, foram criadas para incentivar a prática do concerto de câmara e
sinfônico e divulgar o repertório clássico, em detrimento da ópera (AZEVEDO, 1956).
Embora a primeira associação musical, A Sociedade Filarmônica, tenha sido
fundada em 1834 por Francisco Manuel da Silva (1795-1865), só no final do Império é
que elas ganham força graças ao apoio da Princesa Isabel:

“Uma das principais razões do sucesso dessas associações, que


marcaram época no cenário artístico fluminense, foi a adesão das
elites do Segundo Reinado, bem como da família imperial, tendo á
frente a “Sereníssima Princesa Imperial”, a qual, além de patrocinar a
Sociedade de Concertos Clássicos, não raro exibia seus dotes de
pianista amadora em bailes e concertos no Palácio Isabel em
Laranjeiras, sendo secundada, em seu apoio à musica, por seu
“Augusto Esposo”, distinguido, em 1887, com o título de presidente
honorário do Clube Beethoven” (PEREIRA, 2007, p.49).

Tais associações foram importantes sob vários aspectos, dentre os quais, cabe
destacar a apresentação de muitos pianistas estrangeiros, entre eles Thalberg (1812-
1871), pianista virtuoso apontado como rival de Liszt. Foram eles que trouxeram ao
Brasil o modelo do concerto solo de piano no qual o pianista executava suas próprias
composições e peças de outros compositores como por exemplo Chopin (1810-1849),
22

compostas especificamente para o instrumento, além de fazer improvisações sobre


peças muito conhecidas do público21.
Outro aspecto importante das associações é que elas colocaram ao alcance dos
músicos brasileiros um espaço de concerto, de trabalho e de ensino musical, em
oposição aos grandes teatros. Contudo, é preciso ressaltar que, com exceção da princesa
Isabel, até 1888, as mulheres não podiam freqüentar a programação cultural das
associações tampouco apresentar-se como artistas. Outro obstáculo, portanto, à carreira
de Luiza e das mulheres em geral, um espaço a menos para apresentações públicas.
Entre as associações mais importantes estão: o Clube Beethoven (1882), A
Sociedade de Concertos Clássicos (1883) e a Sociedade de Concertos Populares
(1887). No Clube Beethoven, o mais importante, apresentaram-se os principais músicos
do período e, entre os pianistas brasileiros, destacamos Carlos Mesquita (1864-1953),
Carlos Cavalier Darbilly e Alberto Nepomuceno (1864-1920).
A Sociedade de Concertos Populares foi criada pelo pianista e compositor
Carlos de Mesquita, que realizou, entre 1887 e 1889, a primeira série de concertos
sinfônicos públicos do Brasil. A Sociedade divulgou obras da escola francesa de Jules
Massenet (1842-1912) e apresentou em primeira audição obras de compositores
brasileiros: o próprio Carlos Mesquita, Leopoldo Miguéz (1850-1902) e Francisco
Braga (1868-1945) (PEREIRA, 2007, p. 46).
É preciso dizer que Carlos Mesquita22 foi aluno de composição de Massenet e de
piano de Antoine-François Marmotel no Conservatório de Paris, onde foi estudar com
bolsa do imperador D. Pedro II. Em 1881, antecedido por Luiza, ganhou o primeiro
prêmio de piano do Conservatório de Paris. Ao retornar ao Brasil, tornou-se professor
do Imperial Conservatório de Música.
Em São Paulo, a vida musical também se consolidava no final do século XIX.
Para tanto contribuíram os estrangeiros que fixaram residência em São Paulo, entre eles,
destacamos Henrique Luís Levy (? -?), clarinetista francês que veio para São Paulo e, no
ano de 1860, abriu um importante e tradicional estabelecimento comercial de música: a
Casa Levy, que funciona até hoje (AZEVEDO, 1956, p.155 e 156). Aí também as
associações contribuíram para a divulgação e expansão da prática do concerto, essencial
para o desenvolvimento do piano enquanto instrumento solista. As associações de maior

21
Entre 1850 até o final do século XIX, pelo menos 37 pianistas estrangeiros vieram se apresentar no Rio
de Janeiro ou em São Paulo (Toffano, 2007, p.64).
22
Os dados sobre Carlos Mesquita foram obtidos em Marcondes (2000) e Cacciatore (2005).
23

destaque são: o Clube Haydn, fundado em 1883, e o Clube Mendelsohn. Entretanto,


quando finalmente as associações estavam no auge – isto é, o gosto pelos concertos
sinfônicos e de câmara se disseminara e o repertório musical se diversificara – a
proclamação da República em 1889, marcou o fim da monarquia e com ela, encerraram-
se as atividades das associações musicais. O Imperial Conservatório é extinto para a
criação do Instituto Nacional de Música, em 1889.
A trajetória dos artistas que tiveram relações de amizade e gratidão com o
Imperador D. Pedro II sofreu um revés; Carlos Darbilly, por exemplo, foi afastado do
cargo de professor de piano com a criação do Instituto Nacional de Música e fundou o
Conservatório Livre de Música. Não obstante, o caso mais emblemático desta mudança
repentina ocorreu com o compositor Carlos Gomes, que foi rejeitado pelo Instituto
Nacional de Música e colocado no ostracismo pela República.
Às vésperas da proclamação da República, D. Pedro II pretendia reformar o
Imperial Conservatório de Música e nomear o compositor para a sua direção. Porém, em
seguida, aos 15 de novembro de 1889, foi nomeada uma comissão para reformar o
velho conservatório. Sendo o projeto aprovado, a antiga instituição é extinta e criado o
Instituto Nacional de Música, para o qual foi nomeado diretor o compositor Leopoldo
Miguéz (1850-1902). Carlos Gomes, mesmo enfrentando graves problemas de saúde e
financeiros, retornou a Milão, sabendo de sua rejeição: “Lá não me querem nem para
porteiro do conservatório” (NOGUEIRA, 2007, p. 20). No fim da vida, em 1895, foi
convidado para dirigir o Conservatório de Belém do Pará, mas já muito doente, nem
chegou a tomar posse; morreu em 1896.
Luiza Leonardo, de seu lado, também enfrentou muitos obstáculos para
continuar a carreira no Rio de Janeiro após 1889. Com o fim da monarquia, perdeu não
somente a pensão que recebia de D. Pedro II, mas também sua proteção, passando a ser
julgada pela sociedade carioca: estava então separada do segundo marido e precisava
prover seu próprio sustento. Luiza casou-se pela primeira vez na França, teve dois
filhos, falecidos em tenra idade. Viúva, casou-se pela segunda vez em São Paulo, com
João da Costa Nogueira, do qual logo se separou. Depois de abandonar o teatro, passou
um período apresentando-se ao piano na Argentina e no Paraguai. Neste país, foi
convidada para dar aulas de canto e piano no Instituto Paraguaio, mas recusou o cargo,
preferindo voltar ao Brasil.
Em 1901, no Rio de Janeiro, lutou com muito esforço para dar seus concertos,
um deles, realizado no Conservatório Livre de Música, graças ao apoio de seu fundador,
24

o compositor e pianista Carlos Darbilly. Mesmo assim, a situação desfavorável em nada


se alterou e Luiza continuou à margem do cenário musical “erudito”. Cansada, resolveu
partir para Bahia na esperança de lá conseguir novas oportunidades artísticas e,
novamente, viu-se desamparada, sem meios para sobreviver. Luiza foi acolhida como
preceptora dos filhos do viúvo e jornalista Sílio Boccanera Júnior (1863-1928). O
casamento de Luiza e Sílio ocorreu em 1904, após tornar-se viúva do segundo marido.
Com o casamento, Luiza abandonou definitivamente a carreira artística aos 45 anos de
idade.
Comparando a trajetória dos “músicos do Império” aqui considerados em função
do ambiente familiar, é possível dizer que, com exceção de Chiquinha Gonzaga, todos
os demais – Carlos Gomes, Henrique de Mesquita, Carlos Darbilly, Joaquim Callado e
Luiza Leonardo – são iniciados na música pelo pai. Mais do que isso, para Carlos
Gomes, Henrique de Mesquita, Carlos Darbilly e Joaquim Callado, o pai transmite não
somente o gosto, mas também o ofício da música, ou seja, uma atividade profissional
para sustentar a si próprio e a família. Assim, o aprendizado e o início da carreira se
desenrolam junto ao pai, no seu espaço de atuação: na igreja, nos bailes ou na corte. Os
filhos aprendem tocando e, mais tarde, almejando ir além das conquistas do pai,
procuram aprofundar o conhecimento musical na busca pelo reconhecimento como
compositores.
O aprendizado musical, que antes só podia ser feito com um professor particular,
agora era também realizado no Imperial Conservatório e, para alguns, na Europa. Para
todos eles a composição está associada à prática de instrumentista; primeiro, começam a
compor peças para o meio em que estão inseridos, isto é, gêneros musicais com os quais
tinham familiaridade. Mais tarde, Carlos Gomes, Henrique de Mesquita e Carlos
Darbilly, para mostrar seus conhecimentos e buscando o reconhecimento de seus pares
na “música erudita”, passam a compor óperas, missas, peças sinfônicas, entre outras.
Entre estes músicos, é comum tocar mais de um instrumento e exercer múltiplas
funções (instrumentistas, regentes, compositores, professores), pois atuavam numa
gama enorme de atividades musicais, circulando em esferas diferentes: nas igrejas, nos
bailes e salões, nas orquestras dos Teatros de Revista ou na corte.
Carlos Gomes foi o único que, após a consolidação da carreira de compositor,
pôde se dedicar exclusivamente à música erudita, e isso se deve à sua permanência na
Europa. Para Henrique de Mesquita e Carlos Darbilly, a formação na Europa deu-lhes
novas e melhores oportunidades ofertadas pelas igrejas, pela corte, pelas associações
25

musicais e pelas instituições. Entretanto, não permitiu o abandono das outras atividades
que lhes garantiam o sustento. Ainda assim, podemos dizer que Carlos Darbilly,
Joaquim Callado e Henrique de Mesquita chegaram ao topo da profissão ao serem
nomeados professores do Imperial Conservatório de Música, como dito anteriormente, o
principal sinal de prestígio da época.
A trajetória de Chiquinha Gonzaga em muitos aspectos é semelhante à dos
compositores de sua geração: do mesmo modo foi professora, pianista, compositora,
maestrina. Começou a carreira de pianista circulando pela vida noturna carioca tocando
em bailes, saraus, confeitarias, cafés. A faceta de compositora surgiu logo em seguida:
imbuída pelo gênero dançante de música, compôs polcas, maxixes, lundus bem como
para o teatro de revista.
Contudo, Chiquinha não teve na família um ambiente musical favorável, ao
contrário, nunca teve o apoio dos pais para desenvolver sua ambição musical, o que
levou ao rompimento familiar definitivo. Para ela, a música deixou de ser uma prenda
doméstica e se transformou numa vocação irresistível, impulsionando-a a buscar suas
realizações em detrimento dos papéis de mãe e esposa. Uma vez que não herdou da
família o ofício musical, o apoio e o incentivo de Callado são essenciais para sua
inserção na “música ligeira”, meio predominantemente masculino.
Além disso, se compararmos sua trajetória com a de seu padrinho, sob o ponto
de vista dos índices de consagração da época, observaremos que, em nenhum momento,
ela esteve próxima da Família Real, apesar da popularidade que alcançou. O que nos
leva a afirmar que Chiquinha conseguiu realizar sua vocação, mas sempre sofrendo as
conseqüências do trânsito no universo masculino da boêmia e do fim do seu casamento.
Por esse motivo, ao contrário de Callado, Chiquinha não foi condecorada nem nomeada
professora do Imperial Conservatório. Ao longo de sua carreira, recebeu apenas o
reconhecimento popular, seu prestígio restringiu-se ao universo da “música ligeira”.
Luiza Leonardo, por sua vez, tem uma trajetória muito peculiar comparada aos
demais “músicos do império”. Também formada pelo pai, Luiza foi preparada para ser
uma pianista “erudita”; estimulada desde cedo, dedicou-se exclusivamente ao
instrumento (seu desenvolvimento no piano foi precoce, como visto). Formada pelo
Conservatório de Paris, além de adquirir um conteúdo musical sólido e “erudito”, foi
estimulada a compor. Ao ganhar o prêmio de piano, foi considerada uma “virtuose” do
instrumento e estava pronta para exibir-se em concertos.
26

Luiza é a primeira intérprete-pianista brasileira bem-sucedida na Europa; o


incentivo precoce dado pelo pai e a proteção de D. Pedro II foram fundamentais para
que alcançasse um alto nível como pianista e atriz, acima dos parâmetros atingidos por
homens e mulheres de seu tempo. Por outro lado, o fracasso de sua carreira como
pianista no Brasil pode ser atribuído a dois motivos principais: a inexistência da prática
do concerto solo de piano no Rio de Janeiro e a impossibilidade de uma mulher seguir
carreira artística e viver do seu trabalho. Na ausência da proteção Imperial, Luiza
tornou-se, sobretudo, uma transgressora: uma mulher sem marido tentando sustentar a si
própria com a música, assim como Chiquinha Gonzaga.
Portanto, o fracasso de Luiza Leonardo e o não reconhecimento de Chiquinha
pelo meios “eruditos” demonstram que a carreira musical, seja como “pianeira” ou
como concertista, era quase impossível para as mulheres desta geração tanto no
universo da música popular quanto da erudita. Nem a popularidade conquistada por
Chiquinha, nem o apoio imperial, o diploma e o prêmio obtidos na França por Luiza
foram suficientes para alçá-las à condição de artistas/profissionais.
Se para Carlos Gomes, Carlos Darbilly e Luiza Leonardo o fim da monarquia foi
um desastre para suas carreiras, para outros músicos, o advento da República e a criação
do Instituto Nacional de Música descortinaram um novo horizonte pleno de
oportunidades, sobretudo para aqueles que não obtiveram as benesses imperiais, como
foi o caso do pianista e compositor Alberto Nepomuceno, que teve seu pedido de
auxílio ao Imperador negado.
Logo, se até o advento da República, o Conservatório era uma instituição
subordinada ao poder político do imperador como todas as instituições dos meios
artísticos, grande mecenas do período, entre 1890-1920, o agora chamado Instituto
Nacional de Música tornou-se o centro de uma disputa encabeçada pelos três primeiros
diretores-compositores da escola – Leopoldo Miguéz (1850-1902), Alberto
Nepomuceno (1864-1920) e Henrique Oswald (1852-1931) – instaurada não apenas
pela conquista de um cargo institucional, mas pelo poder de construir uma instituição
própria para o músico “erudito” e de impor seus projetos estéticos neste espaço ainda
em formação (PEREIRA, 2007).
27

1.2. “MÚSICOS DE TRANSIÇÃO”: A CISÃO SIMBÓLICA ENTRE


O UNIVERSO “ERUDITO” E O “POPULAR”

Logo após a Proclamação da República, iniciou-se um processo progressivo de


substituição dos símbolos monárquicos, entre eles, o primeiro a ser remodelado foi o
hino monárquico, que deu lugar ao novo hino republicano. Por meio de um concurso
lançado em 22 de novembro de 1889, o hino vencedor foi composto pelo compositor e
diretor do INM, Leopoldo Miguéz; em segundo lugar, ficou o hino do compositor
Francisco Braga e no terceiro, o hino de Alberto Nepomuceno23.
Francisco Braga e Alberto Nepomuceno receberam como prêmio uma bolsa de
estudos de quatro anos para se aperfeiçoarem na Europa. Nepomuceno, que já estava na
Europa, precisamente na Itália – financiado por amigos, pois não havia conseguido o
auxílio do Imperador – ao receber a bolsa, partiu para Alemanha, em 1890, com vistas a
estudar composição. Mesmo estando na Alemanha, foi nomeado professor de órgão do
INM, em 1894, e mais tarde, foi seu diretor por duas vezes, respectivamente em 1902-
1903 e 1906-1916.
Alberto Nepomuceno nasceu em Fortaleza em 1864. Aprendeu a tocar piano
com o pai, que era músico profissional: violonista, regente, professor, compositor e
organista da catedral de Fortaleza. Pensando na carreira musical do filho, a família
mudou-se para Recife em 1872. Aos 16 anos, com a morte do pai, Nepomuceno passou
a sustentar a mãe e a irmã, como professor de música. Anos depois, conheceu o músico
Euclides d’Aquino Fonseca (1854-1929), nessa época regente da orquestra do Clube
Carlos Gomes de Recife, que contribuiu sob vários aspectos para o desenrolar da
carreira do pianista. Nepomuceno logo se destacou no piano, apresentando-se em
diversos clubes. Em 1885, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde iniciou a carreira como
pianista e professor na academia do Clube Beethoven. Animado pelo amigo, o escultor
Rodolfo Bernadelli (1852-1931), tentou obter o auxílio para completar os estudos na
Europa, mas teve seu pedido negado; não se sabe ao certo o que motivou a recusa.
Passados os primeiros anos de instabilidade política no país, algumas
associações que haviam encerrado suas atividades por ocasião do advento da República,
foram retomadas com novos nomes e outras, criadas com o objetivo de “modernizar” o

23
Os dados sobre Alberto Nepomuceno foram obtidos em Pereira (2007).
28

gosto musical. O projeto da Sociedade de Concertos Populares, sob o nome de


Associação de Concertos Populares foi reaberta em 1896 por Nepomuceno, que passou
a reger a orquestra. Um dos termômetros da alteração do gosto é a preferência nesse
momento pelo alemão Richard Wagner (1813-1883), “moderno” aos olhos do público
apreciador de música erudita, em detrimento da ópera de estilo italiano, que se tornava
sinônimo de “atraso”.

“O espaço ocupado por Nepomuceno era de suma importância e ele o


utilizou para trazer aos palcos fluminenses primeiras audições de
obras inéditas na cidade. Regeu muito Beethoven, Liszt, Wagner,
Saint-Saens, e os brasileiros Carlos Gomes, Miguéz, Henrique Oswald
e a si próprio” (PEREIRA, 2007, p.122).

Nepomuceno também se destacou pela defesa do canto em português. Se outrora


alguns compositores como José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), Francisco Manuel
da Silva (1795-1865) e Carlos Gomes (1836-1896) escreveram inúmeras modinhas que
alcançaram popularidade, Nepomuceno é considerado o criador da “canção de arte” no
vernáculo, já que as modinhas, muitas delas escritas em italiano ou francês, não eram
incluídas no repertório “erudito” (MARIZ, 2002). Tal mudança ocorreu a partir do
trabalho de Nepomuceno em prol do canto em português e de sua atuação como
compositor, produzindo muitas canções com versos e textos de escritores brasileiros24.
Segundo Pereira (op.cit.), o projeto estético e político de Nepomuceno tem como matriz
o imaginário social e político da primeira República: o debate sobre a constituição de
uma nação brasileira. Em consonância com o projeto ideológico do regime
Republicano, Alberto Nepomuceno torna-se o músico oficial do regime (p.193).
O concurso do hino também foi a grande oportunidade da carreira do clarinetista
Francisco Braga25, oriundo de família pobre e sem qualquer vínculo com a música; ele
dificilmente teria ido estudar na Europa, se não tivesse ganhado o prêmio. Francisco,
então com 21 anos, escolheu estudar em Paris com o compositor Jules Massenet (1842-
1912). Depois de permanecer seis anos na capital francesa, instalou-se em Dresden na
Alemanha. Nesta época, influenciado pelas obras de Wagner, passou a compor obras de

24
Em 1904, foram publicados dois volumes de canções de Nepomuceno que reuniram os nomes mais
expressivos das letras da época (PEREIRA, 2007, p.165).
25
Os dados sobre Francisco Braga foram obtidos em Azevedo (1956), Mariz (2005).
29

maior envergadura, transformando-se em um compositor de obras sinfônicas. São desse


período o poema sinfônico Marabá e Jurupira (MARIZ, 2005 p. 125). No entanto,
apesar da proeminência que conquistou no meio erudito, Francisco Braga, ao lado das
obras “eruditas”, compôs inúmeras partituras para bandas militares e, principalmente,
para a banda do Asilo dos Meninos Desvalidos, onde tudo começou.
Francisco Braga nasceu no Largo da Glória no Rio de Janeiro, em 1868. Mestiço
e órfão, foi internado no Asilo dos Meninos Desvalidos aos oito anos de idade. O diretor
da instituição percebendo o interesse de Francisco pela música, permitiu que estudasse
no Imperial Conservatório, onde fez os cursos de clarineta com Antonio Luís Moura e
composição com Carlos de Mesquita. Logo passou a reger e a compor para a Banda do
Asilo. Com o apoio do seu professor, Carlos de Mesquita, que dirigia a Sociedade de
Concertos Populares, teve uma de suas composições apresentadas pela primeira vez ao
público. Em seguida, com o advento da República, participou do concurso do hino.
Em 1900, ano em que retornou ao Brasil, Francisco Braga foi nomeado diretor
da Banda do Asilo dos Meninos Desvalidos. Neste mesmo ano, foi encenado pela
primeira vez no Rio de Janeiro seu poema sinfônico Jurupira no Teatro Lírico. Embora
sua carreira como compositor se desenvolvesse muito bem, impulsionada pela
notoriedade e pelo prestígio advindos do concurso e de sua ida à Europa, Francisco
enfrentou grandes dificuldades para se sustentar. Somente em 1902, com sua nomeação
para professor de contraponto e fuga e composição do Instituto Nacional de Música,
conseguiu alguma estabilidade financeira. Em 1905, compôs o hino à Bandeira cujos
versos são do poeta Olavo Bilac. Durante 20 anos Francisco Braga regeu a orquestra da
Sociedade de Concertos Sinfônicos, fundada em 1912 pelo também clarinetista e
professor do INM, Francisco Nunes (1875-1934).
Não parece exagerado afirmar que a consolidação do Instituto Nacional de
Música dá-se de forma integrada à “modernidade das idéias republicanas”, da qual
também fazia parte alcançar a “civilização via música”. A instituição torna-se
imediatamente o palco de uma disputa entre os professores recém-formados na Europa,
que lutavam para implementar uma estética moderna – leia-se a estética alemã e
francesa, representadas respectivamente por Richard Wagner e Camille Saint-Saëns
(1835-1921) – contra “o conservadorismo” que significava a estética italiana
predominante entre professores antigos do Instituto e defendido pelo principal crítico
musical, Oscar Guanabarino (1857-1937) (GUÉRIOS, 2003, p. 88).
30

As transformações internas do Instituto parecem estar articuladas ao impulso de


modernização pelo qual passava a cidade do Rio de Janeiro. Denominado a Belle
Époque carioca, seu marco político é a volta da estabilidade sob a égide das elites no
governo Campos Sales (1898-1902). No entanto, é no governo Rodrigues Alves (1902-
1906), com a nomeação de Pereira Passos (1836-1913) para prefeito, que o processo de
“civilização” da capital da República chegou ao seu auge por meio de transformações
urbanísticas inspiradas em Haussmann. O principal símbolo deste período é a abertura
da Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco), um enorme bulevar inaugurado em
1904. Os principais edifícios públicos construídos em suas margens são: o Teatro
Municipal (1909), o Palácio Monroe (1906), a Biblioteca Nacional (1910) e a Escola
Nacional de Belas-Artes (1908) (NEEDELL, 1993, p.61).
Do ponto de vista da cultura, verifica-se uma verdadeira obsessão das elites pelo
progresso que transformará o espaço público, o modo de vida e a mentalidade carioca
conforme quatro princípios: condenação dos hábitos e costumes ligados à sociedade
tradicional – “a negação de todo e qualquer elemento” da cultura popular; reurbanização
da cidade, que expulsou a população pobre do centro, isolando-o para o desfrute das
elites e “um cosmopolitismo agressivo identificado com a vida parisiense”
(SEVCENKO, 1985, p.30).
Este processo conflituoso de conversão aos padrões cosmopolitas impulsionado
pelas elites e de negação do passado colonial, sobretudo da herança negra, tem impacto
sobre o universo musical carioca, tornando mais rígidas as fronteiras entre “a música
ligeira” e a “música séria”, progressivamente denominadas “música erudita” e “música
popular”. Os elementos associados à “música popular” revestem-se de uma pecha que
põe em dúvida não somente a qualidade da obra musical como também a reputação do
músico. Desta forma, tais elementos deveriam ser evitados, ou ainda “camuflados”,
principalmente pelos compositores que buscavam ser reconhecidos como “eruditos”.
Na geração anterior, era comum os músicos transitarem entre os dois universos
sem que isso representasse um problema. Um compositor podia compor óperas e
modinhas, pois enquanto a primeira lhe dava prestígio, a segunda, a popularidade e o
sustento. Isso não quer dizer que a circulação dos músicos entre os dois universos tenha
deixado de existir; mas a partir de então, é necessário utilizar certas estratégias, como o
uso de pseudônimos, para esconder o trânsito entre as fronteiras. Em 1911, por
exemplo, Alberto Nepomuceno, não querendo vincular seu nome às operetas,
considerado um gênero menor pelos compositores “eruditos”, firmou em cláusula
31

contratual a publicação das obras sob pseudônimo João Valdez e o sigilo da editora em
relação ao nome do compositor (PEREIRA, 2007, p. 225).
No bojo do processo de modernização da cidade, a vida social dinamizava-se e,
do mesmo modo, o universo musical com o cinema (nessa época, toda sala de cinema
mantinha um pequeno conjunto musical para acompanhar os filmes), o teatro de revista
e as lojas de música. O piano fazia parte dos três ambientes. Se, no princípio, ele é um
instrumento doméstico, atrelado aos hábitos aristocráticos da corte, exclusivamente
“erudito”, no início do século XX, está presente em todos os espaços sociais das cidades
do Rio de Janeiro e de São Paulo. Coexistia nas salas de concertos, nos teatros, no
espaço acadêmico do Instituto Nacional de Música e do Conservatório Dramático e
Musical de São Paulo, mas também nos lugares de lazer das camadas médias e pobres,
que se divertiam no cinema, nas confeitarias, nas lojas de música ou no espaço
doméstico das festas, em torno do piano tocado pelos “pianeiros”.
Diante de um público ávido por diversão, uma espécie de mercado cultural se
constituiu em torno de três elementos fundamentais: o teatro, o piano e os editores de
música. A música que fazia sucesso nos teatros logo era impressa em partituras e
vendidas nas lojas de música após ser exibida pelo pianista demonstrador de partituras
(PEREIRA, 2007, p. 226). A produção musical proveniente desta tríade foi vista como
“popular”, “banal”, “chula”, sem valor artístico.
Em um contexto no qual a presença do “popular” é incontestável e concomitante
às estratégias cosmopolitas de uma elite armada de práticas e discursos segregacionistas,
acirram-se as fronteiras entre os dois universos, gerando novos princípios
classificatórios. Se, antes, a corte ditava e hierarquizava o valor artístico, com suas
benesses, instituições e condecorações, na República, o Instituto Nacional de Música
torna-se o reduto da “música erudita” ocupando posição central na definição e
hierarquização da produção musical conforme os critérios advindos da “música
ocidental”. Por esse motivo, a consolidação da carreira no universo “erudito” passa a
depender também da capacidade do músico de entrar no jogo social dando sentido a sua
vocação, ao seu projeto autoral. A trajetória de Ernesto Nazareth é um exemplo
emblemático porque podemos observar claramente os recursos que mobilizou para se
diferenciar dos “pianeiros”, como por exemplo Chiquinha Gonzaga. Afinal, ele tinha
ambição de ser reconhecido como compositor e pianista “erudito”.
32

Nazareth26 nasceu numa família modesta, em 1863; seu pai, Vasco, era
despachante aduaneiro no porto da cidade do Rio de Janeiro, e sua mãe, Carolina,
provavelmente, dona de casa. Foi ela que fez a iniciação musical dos quatros filhos:
Vasco Filho, Nazareth, Júlia Adélia e Maria Carolina, mas apenas Nazareth prosseguiu
na carreira. Aos 10 anos de idade, devido à morte da mãe, o pai chega a proibi-lo de
tocar, mas logo muda de idéia e consegue outro professor de música para o menino,
deixando claro que não apoiaria uma possível carreira musical.
Nazareth compõe sua primeira peça aos 14 anos, a polca Você bem sabe (1877),
que, ironicamente, dedica ao pai. Essa peça foi apresentada a Arthur Napoleão (dono da
Casa Editorial Arthur Napoleão & Miguéz), que resolve publicá-la. Nessa época,
existiam duas opções para editar: ou o compositor vendia a obra antecipadamente ou
arcava com os custos da edição em troca do lucro da vendagem, o que raramente
recebiam (PEREIRA, 2007, p. 25). Com o sucesso da publicação, Nazareth começa a se
tornar “conhecido” na cidade. Os tios, entusiasmados com sua fama, unem-se na
tentativa de arrecadar fundos para enviar o compositor à Europa, realizando o maior
desejo de sua vida. Infelizmente, o plano não se realiza e Nazareth prossegue sua
carreira no Brasil, apresentando-se no circuito dos clubes das sociedades da elite
fluminense, como: o Clube do Rio Comprido, o Clube do Engenho Velho e o Clube de
São Cristóvão, o mais aristocrático de todos. Nazareth consegue viver assim da renda de
suas músicas, do cachê das apresentações e das aulas particulares. Mais tarde, em plena
Belle Époque carioca, torna-se um dos compositores mais conhecidos da cidade.
Sustentava a família, a esposa e os quatro filhos, com as aulas particulares de música,
como pianista demonstrador de partituras nas casas de música e tocando em cinemas da
cidade. Por muitos anos foi contratado para tocar na sala de espera do cinema Odeon
para entreter o público27.
Entretanto, Nazareth mostra-se “avesso à celebridade popular” (MACHADO,
2007, p. 97), não aceitando compor para o teatro de revista, por exemplo. Para se afastar
do gênero “popular”, decide nomear suas composições “tango brasileiro”, executando
também suas peças em andamento lento para não acentuar o caráter dançante das
sincopas (p.90). Todas essas estratégias revelam sua ambição de se tornar reconhecido
pelas instituições e porta-voz das expressões legítimas da “música erudita” como
“compositor erudito” e não como “popular”.

26
Os dados sobre Ernesto Nazareth foram obtidos no trabalho de Machado (2007).
27
Em 1910, em homenagem aos donos, Nazareth compôs o tango Odeon.
33

Segundo Machado (op.cit.), a frustração de não ter ido estudar na Europa foi
determinante na trajetória do compositor, pois é neste momento que “(...)
simbolicamente os universos da chamada música erudita e popular se cindiram (...)”
(p.26) para o músico: Nazareth fez sucesso como pianista tocando suas polcas e peças
do repertório clássico romântico nos salões da elite fluminense; como compositor,
consagrou-se como “o rei dos tangos”. No entanto, seus tangos não eram considerados
nem “música popular” nem “música erudita” do período. A obra musical de Nazareth só
será vista como “música erudita nacional” a partir da década de 1920, quando é relida
sob o ponto de vista modernista28.
O autor indica três episódios que, segundo ele, retratam “o não lugar” de
Nazareth nesse cenário musical que se quer estritamente demarcado e segregado. O
primeiro, ocorrido em 1918, quando o pianista polonês Arthur Rubinstein (1887-1982),
considerado um dos maiores pianistas virtuoses do século XX, veio se apresentar pela
primeira vez no Brasil. Rubinstein interessou-se em conhecer e ouvir o autor dos
famosos tangos brasileiros. No encontro com o pianista, Nazareth, ao invés de
apresentar suas próprias composições, insistiu em tocar Chopin.
O segundo episódio ocorreu em 1922. Ao apresentar suas obras num concerto
dedicado a compositores “eruditos” brasileiros no Instituto Nacional de Música do Rio
de Janeiro, alguns setores reagiram mal à sua inclusão no concerto. O último episódio
ocorreu em 1930, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, num concerto da pianista
Guiomar Novaes (1896-1979). Nazareth, que já enfrentava problemas de saúde, saiu no
meio do espetáculo, lamentando: “Por que eu não fui estudar na Europa? Eu queria ser
Guiomar Novaes!” (MACHADO, 2007, p. 27).
O que faltou a Nazareth para que ele se tornasse um concertista como Guiomar
Novaes, por exemplo? Para responder a esta pergunta, é preciso primeiro construir um
perfil dos intérpretes-pianistas que se destacaram internacionalmente no início do século
XX, para compreender os aspectos sociais envolvidos no êxito ou no fracasso de uma
carreira em que a busca pelo alto nível separa intérpretes de compositores e
profissionais de amadores.
É evidente que o fato de não ter ido à Europa foi decisivo, mas há seguramente
outros aspectos a serem ponderados: por exemplo, o piano na sua ascensão como

28
Tardiamente, aos 57 anos, Nazareth foi retratado como “gênio” num artigo publicado em 1920 pelo
compositor francês Darius Milhaud (1892-1974), que surgiu no panorama musical francês desde 1920,
quando integrou o Grupo dos Seis. Esteve no Brasil entre 1917-1918 influenciando o Modernismo
(Wisnik, 1977, p. 39).
34

instrumento solo, e de outro, a separação da carreira do intérprete da do compositor,


levam ao desenvolvimento de tarefas cada vez mais especializadas, exigindo uma
formação precoce e individualizada para os concertistas, sejam eles, pianistas, cantores
ou instrumentistas.
Isto significa dizer que, quando Helza e Joanídia começam a estudar nas
primeiras décadas do século XX, as carreiras de compositor e intérprete já se haviam
diferenciado, sendo comum que cada profissional exercesse predominantemente apenas
uma dessas atividades, diferentemente do que ocorria até o século XIX.

1.3. “MÚSICOS CONTEMPORÂNEOS”: OS INTÉRPRETES E


COMPOSITORES NA ERA DA PERFORMANCE

No começo do século XX, é crescente o processo de especialização nas


atividades artísticas no Ocidente; em seu bojo, a figura do intérprete emancipado do
compositor torna-se tão valorizada quanto este. Afinal, sua performance musical não
está mais subordinada ao texto musical; ao contrário, ela é cada vez mais independente
da partitura; a capacidade interpretativa torna-se a principal habilidade em detrimento
da improvisação e composição (SAID, 1991).
Para entender as mudanças no papel do intérprete ao longo do século XX,
precisamos recordar que, no século XIX, era comum, entre os primeiros concertistas,
como Clara Schumann, Franz Liszt e Thalberg, o hábito de compor e improvisar peças
para os concertos nos quais exploravam e demonstravam virtuosismo. Muitas vezes,
improvisavam peças e temas musicais amplamente conhecidos para tornar o concerto
solo menos monótono e mais agradável ao público (SILVA, 2008; BARONI, 1999). Se
outrora, os grandes compositores eram afamados também como intérpretes de sua
própria obra, como Mozart, Beethoven, Liszt, Chopin, apenas para citar alguns, no
século XX, embora existam exceções, os grandes pianistas são essencialmente
intérpretes da obra de outros compositores (SAID, 1991).

“É no início do século XX que a interpretação de grandes


compositores parece tornar-se suficiente para a carreira de concertista.
A interpretação passa a ser considerada criativa por si mesma. A
sensibilidade, a emoção e a personalidade dos intérpretes vêm a ser
35

exaltadas pela imprensa escrita e pela crítica” (TOFFANO, 2008,


p.15).

Antes do advento da gravação, a imprensa escrita especializada, sobretudo os


jornais, contribuiu para imortalizar o momento fugaz das “performances ao vivo”,
exaltando as particularidades de cada artista; ajudou a consolidar seus “nomes próprios”
e a sedimentar a imagem dos “virtuoses”, das “crianças-prodígio”, como portadores de
habilidades excepcionais, distanciando o artista do ouvinte, o profissional do amador.
Dois episódios ocorridos no Brasil na década de 1920 nos ajudam a ilustrar o
status, a importância e o poder conquistado pelo intérprete no universo erudito. Em
1920, Arthur Rubinstein visitava o país pela segunda vez e, curioso pelas informações
que recebera sobre certo compositor brasileiro, tomou a iniciativa de conhecê-lo. Foi,
então, ao cinema ouvir a orquestra na qual Heitor Villa-Lobos (1887-1959) trabalhava.
Percebendo a presença do pianista, a orquestra, que então tocava um repertório
internacional, em seguida apresentou algo totalmente diferenciado: uma peça de Villa-
Lobos. Encantado, Rubinstein foi aos bastidores para conhecer o compositor, mas por
algum desentendimento entre os dois, Villa-Lobos deu-lhe as costas. Dias depois, Villa-
Lobos reuniu um grupo de intérpretes e foi até a casa do pianista para apresentar
algumas de suas peças. Novamente entusiasmado com o compositor, Arthur Rubinstein
passou a incluir peças de Villa-Lobos, como a Prole de Bebê, em seus concertos e a
apoiá-lo publicamente; mais ainda, comprou algumas obras do compositor para ajudá-lo
financeiramente. Foi a partir do apoio de Rubinstein que o nome de Villa-Lobos ganhou
evidência e passou a ser considerado um compositor no meio erudito carioca
(GUÉRIOS, 2003, p. 115-117). Em outras palavras, Villa-Lobos, ao ser “contaminado”
pelo prestígio do renomado intérprete estrangeiro, recebeu a chancela simbólica que lhe
faltava para ser incluído nas disputas do universo erudito.
O segundo episódio refere-se à participação da pianista Guiomar Novaes na
Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, e mostra o poder e o fascínio que o
intérprete exercia sobre o seu público. Como veremos, em 1922, Guiomar já era uma
pianista de renome internacional e ajudou a promover a Semana emprestando seu
prestígio e atraindo o público para o evento. Contudo, Guiomar não esteve de acordo
com todas as polêmicas levantadas pelos modernistas, durante a semana. Manifestou-se
publicamente contrária à “zombaria” feita ao compositor polonês Frédéric Chopin
36

(1810-1849) 29. A dissonância da pianista em relação às propostas modernistas reforça a


idéia de que Guiomar foi convidada em função da sua importância como intérprete, em
detrimento do seu engajamento com o evento.
Por outro lado, entre os músicos comprometidos com as propostas modernistas,
havia uma única mulher, a violonista Paulina D’Ambrosio (1890-1976), que no evento
executou, entre outras, as obras do único compositor brasileiro a ser considerado
“moderno” naquele momento: Villa-Lobos (Travassos, 2000; Guérios, 2003). Paulina
executou pela primeira vez, ou melhor, realizou a primeira audição de muitas peças do
então novato compositor, tornando-se sua violonista predileta.
Embora Paulina seja sempre citada entre os principais artistas do modernismo
(apareça em fotos ao lado de Villa-Lobos e outros) e amplamente conhecida pela
“escola de violino” que formou na Escola de Música do Rio de Janeiro, curiosamente
não encontramos nenhuma biografia ou estudo sobre ela. Segundo a enciclopédia
consultada30, ela iniciou seus estudos em São Paulo e logo se transferiu para a Europa,
onde se formou em violino pelo Conservatório de Bruxelas, conquistando o grande
prêmio desta instituição. Paulina recebeu propostas para continuar na Europa e construir
uma carreira internacional, mas foi impedida pelo pai31. Prosseguiu sua carreira na
32
cidade do Rio de Janeiro, foi “spalla” da extinta Orquestra Sinfônica do Rio de
Janeiro.
Paulina não foi a única intérprete brasileira formada na Europa a empenhar seu
próprio renome contribuindo diretamente para a aceitação e, consequentemente, para a
consolidação da carreira do compositor das Bachianas; as cantoras Vera Janacópulos
(1892-1955) e Bidu Sayão (1902-1999) também realizaram a primeira audição de
muitas de suas obras; Bidu tornou-se grande amiga e intérprete, numa parceria que
durou até a morte de Villa-Lobos, que dedicou a estas três musicistas algumas de suas
obras, uma atitude que demonstra claramente a importância das intérpretes para sua
carreira. É curioso notar que Villa-Lobos nunca foi intérprete de sua própria obra, talvez
por não ser um exímio violoncelista.

29
Trata-se de uma peça do compositor francês Erik Satie (1866-1925), que faz uma paródia da Marcha
Fúnebre do compositor polonês Frédéric Chopin (1810-1849) (Wisnik, 1977).
30
Ver em Referências Bibliográficas: Marcondes (2000).
31
Esta informação foi concedida por Jacques Nirenberg, violonista e aluno de Paulina, em entrevista
concedida em 18 de novembro de 2009.
32
Nome dado ao primeiro violino de uma orquestra. É responsável pela execução dos solos e atua como
regente substituto repassando as orientações do maestro à orquestra.
37

Vera Janacópulos33, cantora de câmara, e Bidu Sayão, cantora de ópera,


construíram uma carreira internacional. Vera concentrou sua carreira na Europa, embora
tenha cantado em várias partes do mundo; e Bidu, nos Estados Unidos. Ambas
realizaram seus estudos na Europa, inclusive tiveram o mesmo professor, o célebre
tenor e professor russo Jean de Reszke (1850-1925).
Vera nasceu em Petrópolis em 1892; seu pai era grego, sua mãe era irmã de João
Pandiá Calógeras (1870-1934), ministro da Guerra no governo Epitácio Pessoa entre
1919 e 1922. Aos quatro anos e meio, foi morar em Paris na companhia da irmã
Adriana, que se tornará escultora. Ao que parece, Vera e Adriana(?-?) tiveram que
enfrentar a incompreensão da família para seguir a carreira artística. Vera começou
estudando violino com o grande violinista e compositor romeno, George Enescu (1881-
1955). Aos 16 anos, resolveu estudar canto e seu professor lhe indicou a cantora Reja
Bauer (?-?). Anos mais tarde, foi aluna de Jean de Reszke. Vera se apresentou no Brasil
pela primeira vez em 1920, depois em 1930 e 1933. Foi convidada para uma cátedra de
canto no Conservatório de Paris, mas recusou o convite porque não queria se naturalizar
francesa.
Não foram apenas as obras de Villa-Lobos que Vera apresentou em primeira
audição; era uma escolha pessoal sempre apresentar em seus concertos obras de jovens
compositores ainda desconhecidos do público. Foi assim que fez a primeira audição de
diversos compositores “modernos” como: os russos Igor Stravinsky (1882-1971), que
foi seu profundo admirador, e Sergei Prokofiev (1891-1953), o francês Maurice Ravel
(1875-1935) e o espanhol Manuel de Falla (1876-1946). Em muitas de suas
apresentações esteve acompanhada pelos próprios compositores, que aprovavam suas
soluções interpretativas.
Bidu Sayão34 nasceu no Rio de Janeiro em 1902. Aos cinco anos de idade,
perdeu o pai, que era advogado, cabendo à mãe, Maria José, a responsabilidade pela
família. Bidu pretendia ser atriz, influenciada pelo tio, o teatrólogo Alberto Costa (?-?).
Todavia, foi aconselhada pela família, que considerava a carreira de atriz um risco para
a “moral” de uma moça de família e sem o pai, a não seguir a profissão.
Começou a estudar canto ainda na adolescência com a professora romena Helena
Theodolini. Estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1920, aos 18 anos de
idade. Depois de quatro anos de estudo, foi levada para a Romênia pela professora e lá

33
Os dados sobre Vera Janacópulos foram obtidos no trabalho de França (1959).
34
As informações sobre a cantora Bidu Saião foram obtidas em Marcondes (2000), Cacciatore (2005).
38

deu início a sua carreira internacional. Com a morte da professora, sua mãe a conduziu
até Nice, na França, para ser aluna de Jean de Reszke.
Em Roma, no ano de 1926, estreou no teatro lírico interpretando Rosina, da
ópera O Barbeiro de Sevilha, do compositor italiano Gioachino Rossini (1792-1868).
Em 1937, Bidu estreou no Metropolitan Opera House35 e permaneceu no seu quadro de
artistas por mais 15 anos. Foi a principal intérprete de Villa-Lobos, fez gravações de sua
obra que se tornaram consagradas, como as Bachianas nº. 5, gravada em 1945; durante
dois anos foi o disco mais vendido de música erudita nos Estados Unidos. Bidu faleceu
aos 92 anos, em 1995, nos Estados Unidos36.
Analisando conjuntamente as poucas informações obtidas sobre a carreira de
Paulina, Vera e Bidu, elas apontam pistas valiosas acerca da profissão do intérprete na
era da “performance desligada da composição” (SAID, 1991, p. 32), mostrando, por
exemplo, como uma sólida formação “erudita” obtida na Europa é fundamental para
alcançar o êxito na profissão.
Tendo em vista que, na geração anterior, Luiza Leonardo, apesar de formada
pelo Conservatório de Paris, teve imensas dificuldades para atuar como uma pianista
profissional no Brasil e por isso, abandonou a carreira, interessa-nos saber como
Guiomar Novaes, Antonietta Rudge (1885-1974) e Magda Tagliaferro (1893-1986)
tornaram-se as primeiras intérpretes-pianistas do país. Vejamos mais de perto de que
modo a vocação surgiu, como foi recebida pela família, os incentivadores, o caminho
seguido e os obstáculos existentes até a profissionalização.
Quando Antonietta, Magda e Guiomar nasceram, o piano já estava em seus lares,
ou seja, foi na família que encontraram o estímulo para o estudo, de modo que foram
iniciadas no instrumento por volta dos cinco anos de idade e, antes dos dez anos, já se
apresentavam em público.
Guiomar37 teve com os irmãos mais velhos o primeiro contato com o piano.
Nasceu em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo, em 1894, sendo a décima
sétima filha, dos 19 filhos do casal Anna, dona de casa, e Manoel, major do Exército e
negociante de café. Suas irmãs mais velhas tocavam piano incentivadas pela mãe, que,
no passado, teve pretensões artísticas e que, frustrada, estimulou os filhos, pois

35
Fundado em1880, é a maior organização de música clássica dos Estados Unidos. É, ainda hoje, um dos
principais palcos da ópera no mundo.
36
Pouco antes de morrer, a vida da cantora foi tema do samba-enredo da Escola de Samba Beija-Flor de
Nilópolis. Bidu entrou na avenida no último carro alegórico.
37
Os dados sobre Guiomar Novaes foram obtidos no trabalho de Orsini (1992).
39

“desejava ardentemente que um dos seus filhos seguisse a carreira artística.” (ORSINI,
1992, p.31). Antonietta e Magda foram iniciadas no piano respectivamente, pela mãe e
pelo pai. Antonietta38 nasceu na capital paulista, em 1885, filha de João Henrique e Ana
Emília, de ascendência inglesa. Ana Emília a iniciou no piano e estimulou seus estudos.
Magda39 nasceu em Petrópolis (RJ) em 1893, filha de Paulo Tagliaferro e
Louise, ambos franceses. Seu pai desejava ser cantor e pianista, mas fora impedido pelo
pai, tornando-se engenheiro; ainda sim, enquanto estudava engenharia, teve aulas de
canto e piano. No final, acabou por abandonar a profissão para se tornar professor de
música, uma vez que já era tarde para iniciar uma carreira de cantor ou pianista
(TAGLIAFERRO, 1979, p. 9).
Quando Magda completou cinco anos, ele imediatamente a iniciou no piano.
Aos nove anos, ela faz sua estréia em concerto realizado no Clube Internacional de São
Paulo. Até sua morte, em 1907, o pai incentiva e planeja sua carreira musical levando-a
até Paris com um único objetivo: prepará-la para ingressar no Conservatório da capital
francesa. Em 1906, aos 13 anos, Magda ingressou no Conservatório de Paris e, em
1907, ganhou o primeiro prêmio do Conservatório; em seguida saiu em “tournée” pela
França acompanhada pelo compositor francês Gabriel Fauré (1845-1924). No âmbito
pessoal, sua vida amorosa foi pouco convencional para época: teve três maridos, mas de
fato, nunca se casou. Sobre o casamento disse:

“Eu já era refrataria à idéia de perder minha independência e, além


disso, o casamento haveria de trazer problemas para minha carreira, o
que me fazia afugentar todo o importuno. Eu passava por todos esses
romances, muito encantada, mas raramente conquistada. Aliás, foi
quase sempre assim (eu digo “quase”!) pela minha vida afora. Não
obstante, fui uma pessoa concentrada em mim mesma e creio que
assim me tenho mantido” (TAGLIAFERRO, 1979, p. 32).

Em São Paulo, já no final do século XIX e início do XX, em plena “era do


café”, a cidade emergia como um pólo musical. A riqueza das famílias produtoras de
café e o fluxo imigratório, sobretudo de italianos, contribuíram para a efervescência

38
Os dados sobre Antonietta Rudge foram obtidos em Toffano (2007), Marcondes (2000) e no
documentário: ANTONIETTA RUDGE: O ÊXTASE EM MOVIMENTO. Direção Norma Bengell. Rio
de Janeiro: RioFilme, 2003. 1dvd (86 min).
39
Os dados sobre Magda Tagliaferro foram obtidos em um livro de memórias escrito pela própria pianista
em 1979.
40

cultural da cidade. Foi um grupo de fazendeiros que trouxe o maestro italiano Luigi
Chiaffarelli (1856- 1923) para ensinar piano às moças paulistas em 1883. Contudo, sua
competência e compromisso com o ensino ajudaram a difundir o piano como um
instrumento de concerto. Nos 40 anos em que viveu na cidade, ele consolidou uma
escola de piano que formou diversos artistas de renome, entre eles Antonietta, Guiomar
e Souza Lima, os dois últimos ganhadores do prêmio de piano do Conservatório de
Paris. Em sua casa reunia alunos e recebia os músicos estrangeiros que visitavam a
cidade. Ademais, participou da fundação do Conservatório Dramático e Musical em
1906.

“O professor Chiaffarelli residiu em São Paulo por quarenta anos; este


mestre teve uma intensíssima atuação no desenvolvimento musical de
nosso meio. Homem de vastíssima cultura artística, formado na
Alemanha, onde teve, entre outros mestres, Sigmund Lebert, lecionou
também na Suíça. Diplomado em Letras, era professor de italiano,
francês e alemão; chegou a falar treze idiomas. Foi, indiscutivelmente,
o pioneiro do ensino de piano em São Paulo, formando os pianistas de
maior renome do Brasil” (LIMA, 1986, p. 28).

Antonietta foi uma das primeiras pianistas paulistas a alcançar reconhecimento


internacional. Ainda na infância, despertou a atenção de Chiaffarelli, e depois da
imprensa, que sempre a retratou como uma criança-prodígio, ressaltando sua habilidade
excepcional para a memorização e para leitura à primeira vista40. Apresentou-se pela
primeira vez na Sala Levy, em 1893. Mais tarde, fez outras apresentações no Clube
Internacional, no Clube Germânia e no Salão Steinway. Em 1912, participou da
fundação da Sociedade de Cultura Artística em São Paulo. Nesta instituição, fez vários
concertos; há também registros de apresentações suas no Teatro Municipal de São Paulo
e no Instituto Nacional de Música no Rio (TOFFANO, 2008, p.100).
Apesar do talento e da carreira que se desenvolvia muito bem, com o apoio
financeiro da família para a realização de concertos, casou-se muito jovem com o
primo, também de ascendência inglesa, Charles Miller (1874-1953)41. Aos 20 anos, em
1905, viajou para a Europa pela primeira vez, acompanhada do marido, que a ajudou a
realizar concertos no Bechstein Hall em Londres. Depois, se apresentou ainda na França

40
Há relatos de que ela era capaz de memorizar e tocar com perfeição uma peça musical tendo ouvido
apenas uma vez (Toffano, 2008).
41
Charles Miller é considerado o introdutor do futebol no Brasil.
41

e Alemanha. Após o casamento e o nascimento dos dois filhos do casal, Antonietta


passou a se apresentar esporadicamente, recusou vários convites para novas tournées na
Europa, pois não queria ausentar-se de sua família. Além disso, sabe-se que Charles
Miller gostava que Antonietta tocasse o piano, mas não chegou a tomar a mesma atitude
do marido de Guiomar Novaes, ex-aluno de piano de Chiaffarelli: Octavio abandonou
sua carreira profissional de arquiteto para cuidar pessoalmente da carreira da esposa e
da família (ORSINI, 1992).
Segundo Toffano (2008), a carreira de Antonietta ficou irremediavelmente
abalada com o fim do seu casamento. Nos anos 20, separou-se de Miller para viver com
o poeta Menotti Del Picchia (1892-1988). O casamento desfeito para viver com outro
homem tão conhecido e respeitado quanto Charles Miller, tornou-se um escândalo. Sua
atitude foi reprovada pela família e pela sociedade da época, que não poupou Antonietta
de um julgamento feroz.
Guiomar, a primeira aluna de Chiaffarelli a ganhar o prêmio do Conservatório de
Paris, chegou a São Paulo levada pela mãe graças à ajuda financeira para a viagem que
recebeu da madrinha e amiga da família, Alda Silva Prado (1857-1940). Guiomar
tornou-se aluna do mestre Chiaffarelli e, em 1902, aos oito anos, fez sua primeira
apresentação em público. Estudar no Conservatório de Paris esteve, desde cedo, no
horizonte da pianista, estimulada pelo professor, pela madrinha e pela mãe; tornou-se
seu maior sonho. Em 1909, aos 15 anos, ganhou uma bolsa do governo do Estado de
São Paulo para estudar na França e foi admitida em primeiro lugar no Conservatório.
Em julho de 1911, ao concluir o curso de piano, ganhou o primeiro prêmio, o que
favoreceu a realização de muitos concertos na Europa. A um deles, em 1912, a princesa
Isabel esteve presente.
Guiomar casou-se em 1922. O primeiro filho nasceu em 1923; teve dois filhos, e
mesmo depois de casada e mãe, não abandonou a carreira, pois tinha o apoio do marido
que cuidava da família e da sua carreira. Ao ficar viúva em 1950, Guiomar, pela
primeira vez em sua vida, aos 56 anos de idade, teve de cuidar de sua vida profissional e
familiar; devido à sua inabilidade para tal tarefa, enfrentou inúmeros problemas
profissionais e financeiros (TOFFANO, 2008).
Ao final do esboço sucinto da trajetória das pianistas, podemos destacar alguns
aspectos fundamentais para compreender a construção da vocação, a começar pelo fato
do gosto musical ser um bem cultural herdado da família. O surgimento precoce do
interesse pelo instrumento deve-se à constituição no âmbito familiar de uma relação
42

íntima com a música, pois como bem nos lembra Bourdieu (1994): “A música não são
os discos e a eletrola dos vinte anos, graças aos quais descobrimos Bach e Vivaldi, mas
o piano da família ouvido desde a infância e vagamente praticado até a adolescência
(...)” (Idem, p.97).
A transição do “piano tocado vagamente” para uma prática com vistas a uma
carreira profissional requer a figura do incentivador, geralmente uma pessoa da família,
assim como a figura do professor abalizado que oriente o estudo das exigências técnicas
do instrumento; juntos, família e professor, assumem a responsabilidade de conduzir os
primeiros passos da carreira. Vimos que no caso de Magda, seu pai exerceu as duas
funções, de pai e professor, e com a sua morte, a concertista assumiu não só condução
de sua vida profissional e afetiva, bem como o sustento da própria mãe. Guiomar teve
em Chiaffarelli o professor e mestre, e na mãe, a pessoa da família que participou
ativamente para que tivesse um bom professor de piano e pudesse se dedicar
exclusivamente ao estudo do instrumento. Mais tarde, Otávio ocupou o lugar da mãe na
condução da carreira e da vida pessoal de Guiomar.
Quando examinamos a trajetória de Antonietta sob o mesmo aspecto,
começamos a desvendar alguns dos motivos que levaram à interrupção precoce de sua
carreira. Primeiro, observamos que o apoio dado pelos pais no início da carreira não foi
suficiente para desviá-la do seu destino social. Sua posição social elevada contribuiu
para que ela cumprisse o destino das moças refinadas, a saber: casar-se ainda jovem
para garantir e manter o status social da família. Soma-se a isto, sua falta de ambição
profissional, segundo depoimentos de sua filha Helena; Antonietta nunca almejou
construir uma carreira profissional, não gostava de tocar em público (RUDGE apud
TOFFANO, 2007, p.102 e 103).
Ainda que o casamento e a maternidade fossem as principais obrigações
femininas e, frequentemente, os principais obstáculos à carreira profissional, Magda e
Guiomar conseguiram burlar as convenções de gênero: primeiro, graças ao apoio
incondicional da família, que não teve dúvidas em afastá-las das atribuições de mãe e
esposa em prol da carreira; segundo, a carreira internacional deu-lhes mais liberdade
para conduzir suas vidas. Morando muitos anos no exterior, não estavam submetidas
aos preconceitos e julgamentos vigentes na sociedade brasileira.
Embora as carreiras de compositor e de intérprete tenham se tornado distintas,
isto não quer dizer que os músicos não pudessem transitar entre as duas ao longo da
vida. Neste sentido, é interessante analisar a trajetória de Souza Lima, pois ela constitui
43

um caso exemplar face às inúmeras possibilidades existentes: primeiramente, iniciou a


carreira como intérprete-pianista (sua presença era uma exceção entre as mulheres).
Depois, passou a compor e, no final da vida, dedicou-se sobretudo à regência.
Souza Lima42, nascido em 1898 na capital paulista, foi o segundo aluno de
Chiaffarelli a receber o prêmio do Conservatório de Paris. Tornou-se aluno do
prestigiado professor em 1910 e chegou ao Conservatório de Paris, em 1919, aos 21
anos, depois de receber uma bolsa de estudo do Pensionato Artístico do Estado de São
Paulo43. Obteve o primeiro prêmio de piano em 1922, aos 24 anos. É interessante notar
que, ao contrário das pianistas, Souza Lima chegou bem mais velho ao Conservatório;
de fato, se não fosse pelos danos causados pela Primeira Guerra, jamais teria estudado
no Conservatório, pois quando desembarcou em Paris já havia ultrapassado a idade
limite, que só foi estendida em razão da guerra.
Souza Lima partiu para a capital francesa sem expectativa alguma: estudar no
conservatório e quiçá ganhar o primeiro prêmio já se configuravam frustrações. Em sua
biografia, ao relembrar o que sentiu com a oportunidade de ingressar no conservatório,
evidencia o significado da escola e do prêmio para sua carreira profissional:

“Foi, então, para mim, o início de uma vida nova, cheia de mais
entusiasmo, cheia de ambição e de vontade de me tornar um artista de
verdade e possuir um diploma que seria uma honra e uma glória para a
minha profissão” (LIMA, 1986, p.67).

Seguramente, o diploma e o prêmio eram as chancelas simbólicas que faltavam


para que Souza Lima se sentisse “um artista de verdade”, a despeito dos longos anos de
estudo e do prestígio que já alcançara como pianista nos círculos artísticos e intelectuais
da cidade. Assim como as pianistas, Souza Lima encontrou na família um ambiente
propício para o desenvolvimento musical; todos seus irmãos e irmãs aprenderam a tocar
piano, e sua mãe sempre apoiou sua carreira. Entretanto, o irmão mais velho, Paulo
Augusto, destacava-se entre eles, segundo Souza Lima “(...) foi, talvez, um dos

42
Os dados sobre Souza Lima foram obtidos em uma autobiografia escrita pelo próprio pianista em 1982.
43
O Pensionato Artístico foi uma instituição criada em 1912 e extinta em 1931 pelo governo do Estado de
São Paulo com o objetivo de promover a produção artística no Estado concedendo bolsas de estudos para
Europa aos artistas que a comissão julgava merecedores. Naquela época, o Estado não tinha nenhuma
Faculdade ou curso superior de artes.
44

primeiros pianistas do sexo masculino que se dedicou com afinco para tornar-se um
concertista” (Idem, p.18).
Ao que tudo indica, assim como seu irmão, Souza Lima está entre os poucos
homens de seu tempo que se tornou um intérprete-pianista. Conforme seu relato, era o
único homem entre as alunas de Chiaffarelli; não por acaso, nas reuniões com os alunos
que organizava em sua casa, Souza Lima sentava-se ao lado do mestre.
Foi sob a influência e a orientação do irmão que Souza Lima, aos quatro anos de
idade, deu seus primeiros passos na música. Somente aos 12 anos, tornou-se aluno do
professor Chiaffarelli, pois o irmão estava sobrecarregado com as atividades de sua
própria carreira. Sem deixar de lado o piano, Souza Lima foi encaminhado pelo próprio
Chiaffarelli para aulas de composição com o professor Agostinho Cantú. Não tardou
muito para que o jovem aprendiz de composição se arriscasse como compositor
participando de dois concursos: o primeiro foi um concurso de composição promovido
pela revista “A cigarra” e patrocinado pela Casa Levy. Era preciso compor uma valsa e
um tango. Souza Lima ficou em primeiro lugar com o tango Então, té logo e em
segundo com a valsa Charmante. O segundo concurso foi promovido pelo Centro
Musical de São Paulo e destinava-se à música sinfônica; Souza Lima ficou em segundo
lugar com um minueto, o primeiro, foi dado ao seu irmão, Paulo Augusto.
Concomitantemente aos estudos, Souza Lima trabalhou muito tocando e regendo
as orquestras dos cinemas, apresentando-se nas reuniões de casas de família,
acompanhando os músicos de renome que vinham se apresentar na cidade. Foi graças a
um amigo que conheceu, por exemplo, a família da pintora Tarsila do Amaral (1886-
1973).
Mais tarde, novamente conduzido por um amigo, Waldemar Otero, tornou-se
assíduo frequentador da famosa Vila Kyrial. Trata-se da mansão do Dr. José de Freitas
Valle, advogado e político importante que ocupou altos cargos no governo; sua casa era
um centro cultural da cidade aonde afluíam artistas, intelectuais, escritores e políticos.
Participavam das reuniões desde artistas consagrados até os novos talentos. Segundo
Souza Lima, era um ambiente em que se respirava arte. Freitas Valle juntamente com
Ramos de Azevedo e Sampaio Viana constituíam a comissão que dirigia o Pensionato
Artístico de São Paulo; sem dúvida, a oportunidade para Souza Lima decorreu do seu
contato com Freitas Valle na Vila Kyrial. Podemos dizer que sua entrada no círculo da
elite intelectual paulista pode ser considerada um sinal de que o pianista gozava de
prestígio e ascendera socialmente, situação que a bolsa veio apenas ratificar.
45

A concessão da bolsa a Souza Lima foi recebida de forma controversa por sua
família. Seguramente, o único que apoiou desde o princípio sua ida para Paris foi Paulo
Augusto, o irmão mais velho. A reação defensiva de sua família pode ser interpretada de
várias formas, mas claramente demonstra que a ida de Souza Lima à Europa era algo
inesperado; de certa forma, ele já tinha uma carreira profissional que transcorria bem,
aos moldes da carreira do irmão mais velho.
Souza Lima voltou de Paris em 1930, casou-se e retornou à capital francesa com
a esposa. Realizou tournées internacionais e depois pelo Brasil. A cena por ele
encontrada conhecia algumas alterações. Em 1935, como sabido, foi criado o
Departamento de Cultura do Município de São Paulo pelo prefeito Fábio Prado, que
convidou os intelectuais Paulo Duarte e Mário de Andrade para organizarem a entidade
da qual Mário seria o diretor. Nessa ocasião, o Teatro Municipal foi reestruturado,
criou-se o corpo estável com uma atuação fixa e definida composto pela orquestra, que
já existia, e pelos recém-criados: Coral Lírico, Coral Paulistano, o Quarteto de Cordas,
que recebeu o nome de Quarteto Haydn, e o trio (piano, violino e violoncelo)
denominado Trio São Paulo. Souza Lima foi convidado a integrar o Trio São Paulo. Sua
atuação como regente começou a partir de um convite de Mário de Andrade para reger
pela primeira vez um concerto sinfônico. Tratava-se na verdade de um teste; sabiam que
Souza Lima havia estudado regência na França e desejavam avaliar o desempenho do
então pianista conduzindo uma orquestra sinfônica. Em vista do êxito da estréia, Souza
Lima foi oficializado como regente da Orquestra Municipal de São Paulo, sua principal
atividade musical ao longo de 32 anos. Trabalhou ainda na Rádio Tupi e Gazeta como
diretor artístico e regente das orquestras das respectivas rádios (LIMA, 1982 p.176 e
177, 182).
A partir dos traços reunidos aqui, podemos comparar a trajetória do pianista
Souza Lima à das pianistas Antonietta, Guiomar e Magda, buscando construir um perfil
destes “virtuoses” dos primórdios do século XX e evidenciando como as convenções de
gênero estão entrelaçadas a aspectos importantes na construção da carreira de
concertista, a começar pelo ambiente familiar.
A presença solitária de Souza Lima, e do próprio irmão, entre as pianistas –
situação ressaltada por ele nos seus relatos sobre “o pioneirismo” do irmão e sua
presença solitária entre as alunas de Chiaffarelli – oferece uma pista segura acerca da
predominância das mulheres no instrumento, o que é confirmado pelos números. De
fato, no século XX, as mulheres são a maioria entre os alunos de piano: entre 1912 e
46

1921, dos 50 alunos laureados no curso de piano, 41 são mulheres e 9 são homens. No
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, entre 1913 e 1929, dos 634
diplomados no curso de piano, apenas 17 eram homens (TOFFANO, 2008, p. 78 e 79,
85).
A predominância feminina no piano é consequência da inclusão do ensino do
instrumento na educação feminina como parte das prendas domésticas, isto é, como uma
obrigação que independe do envolvimento dos pais com a música, da vontade e da
aptidão das moças. Ainda que tal ensino não tivesse como objetivo a formação de
artistas e profissionais, ele facilitou o acesso das mulheres a sua prática, uma vantagem
significativa se considerarmos que a “precocidade” é uma marca comum entre os
concertistas consagrados.
Já para os rapazes, o contato com o piano dependia muito mais da relação dos
pais com a música: de uma mãe, que apesar do casamento e das obrigações familiares,
não tenha abandonado o hábito de tocar o piano, carregando consigo uma vocação
frustrada que acabava por transmitir aos filhos (homens e mulheres); ou de um pai,
músico amador nas horas de folga. Portanto, o ensino do piano para os homens é um
capital cultural transmitido principalmente pelos pais, sem o envolvimento mais
próximo destes com a música; dificilmente o piano seria mais do que um móvel da sala
de visitas para um menino.
De certa forma, a precocidade atenua o peso dos longos anos de estudos exigidos
para formar um intérprete-pianista; quer dizer, é apenas o primeiro passo, de modo que
nessa fase de formação, o aprendizado do instrumento requer sempre muitas horas de
estudo. Para isso, é necessário que o estudo também seja uma prioridade para a família.
A ela cabe incentivar o estudo, acompanhar as primeiras apresentações, procurar bons
professores, pagar aulas, adquirir os métodos etc.
Nas trajetórias de Souza, Magda, Guiomar e Antonietta, encontramos um
ambiente familiar propício e figuras centrais que ajudaram a despertar, e depois, a
construir a vocação musical: o pai de Magda, a mãe de Guiomar e a de Antonietta, a
mãe e o irmão mais velho de Souza Lima.
As diferenças entre seus percursos aparecem em relação ao inicio da carreira e à
formação musical. Enquanto Magda, Guiomar e Antonietta se dedicaram
exclusivamente ao piano e logo buscam na Europa a oportunidade de uma carreira
internacional como concertistas, Souza Lima começa a trabalhar tocando piano tanto em
sociedades dedicadas à música erudita quanto em cinemas, lojas de música, pequenas
47

orquestras e clubes. Ele começa também a compor; e aqui vale dizer que a composição
entrou em sua vida por iniciativa de Chiaffarelli. O professor separa claramente as
tarefas: ao aluno, a composição; às mulheres, o piano.
Podemos dizer que para Souza Lima a carreira de intérprete-pianista era uma
possibilidade, entre outras, compor, reger e tocar em conjunto de bailes – opções que
não estavam disponíveis às mulheres em razão das restrições de gênero e classe social.
Assim que, resguardando a reputação e a posição social da família, as opções para as
mulheres eram: na ausência de aptidão musical, abandonar o instrumento; tornar-se
diletantes, quando o casamento não punha um fim à prática do piano; ou concertistas,
quando encontravam apoio da família para o desenvolvimento artístico do instrumento
em detrimento dos papéis de mãe e esposa. A escolha feita por Chiquinha Gonzaga – de
atuar no universo boêmio da “música popular” – continuava a ser uma subversão às
convenções de classe e gênero.
Enquanto Antonietta, Magda e Guiomar se especializaram cedo, focando os seus
estudos e metas exclusivamente em razão da carreira de concertista, Souza Lima tinha
outras opções de atividades musicais e, aos poucos, explorou algumas delas. Em razão
disso, os anos foram se passando e a oportunidade lhe surgiu quase “por acaso”, já com
uma carreira em andamento.
A consolidação da carreira do concertista é um processo longo, apesar do
começo ainda na infância. Os primeiros obstáculos surgem logo na transição para a
adolescência, quando aparecem outras responsabilidades sociais a concorrer com os
estudos do piano. Em razão disso, o apoio familiar continua fundamental para que o
pianista continue a se dedicar exclusivamente ao piano em detrimento de qualquer outra
tarefa.
Para os homens a necessidade de prover seu próprio sustento ou mesmo o da
família impõe aos músicos, entre eles aos pianistas, o trabalho: dar aulas, tocar e
compor nos mais diversos estilos e ambientes, não havendo muito tempo para o estudo
aprofundado do instrumento. A situação se agrava quando os pais, desejando uma
carreira de maior status social e ganho financeiro para o filho, são contrários à carreira
musical obrigando-os, muitas vezes, a seguir outra profissão. Já para as mulheres, o
casamento constitui um dos maiores obstáculos à carreira musical, pois o apoio dos pais
à prática do piano na infância, muitas vezes, não se sobrepõe ao desejo de que as filhas
realizem um bom casamento, como pudemos observar na trajetória de Antonietta
48

Rudge. Casadas e mães, dependem do apoio do marido e da família para colocar a


carreira à frente das obrigações de mãe e esposa, como no caso de Guiomar Novaes.
Todavia, a trajetória de Antonietta Rudge revela que há ainda outro desafio a ser
enfrentado pelas mulheres: a exposição pública a que são submetidas em um concerto.
Ainda que sejam possuidoras de habilidades suficientes para o exercício do piano,
muitas pianistas não se sentiam à vontade na situação de concerto, pois estavam pouco
preparadas para a exibição no espaço público.
Para concluir, cabe dizer que Nazareth fez fama como intérprete de suas próprias
composições e, justamente por isso, sentia-se “fora de lugar”; desejava ter alcançado o
renome como intérprete-pianista de um grande compositor da “música erudita”, quem
sabe de Chopin. Para além das dificuldades próprias do cenário musical já descritas,
ainda lhe faltariam dois elementos essenciais encontrados no perfil dos intérpretes-
pianistas analisados até aqui: apoio familiar (com a morte da mãe que o iniciou no
piano, o pai recusa-se a apoiá-lo) e uma formação “erudita” sólida no piano, iniciada na
infância e consolidada nas instituições musicais da Europa.

1.4. AINDA A GERAÇÃO DOS CONTEMPORÂNEOS: OS


COMPOSITORES-REGENTES E A PIANISTA-COMPOSITORA

Villa-Lobos foi o único compositor eleito como “moderno” pelos organizadores


da Semana de 1922, em razão do uso que fazia de técnicas composicionais consideradas
de “vanguarda” (GUÉRIOS, 2003, p.121). Se compararmos a formação musical do
compositor com a formação musical das intérpretes tratadas anteriormente,
observaremos que, ao contrário delas, Villa-Lobos foi praticamente um autodidata:
nunca teve aulas com um professor renomado, muito menos estudou em instituições
como o Instituto Nacional de Música, tampouco se aperfeiçoou na Europa. Quando
viajou para Paris em 1923 foi para se apresentar como compositor. A falta de um
diploma, de uma educação musical formal foi um argumento usado inúmeras vezes por
seus detratores para desqualificar suas obras.
Ao lado dos compositores de seu tempo, como Dinorá Gontijo de Carvalho
(1895-1980), Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948) e Francisco Mignone (1897-1986),
a diferença de sua formação musical permanece visível: Lorenzo foi aluno do Instituto
49

Nacional de Música, enquanto Dinorá e Francisco são formados pelo Conservatório


Dramático e Musical de São Paulo, com aperfeiçoamento na França e na Itália,
respectivamente.
Villa-Lobos44 e Francisco Mignone45 foram iniciados na música pelo pai: Raul
Villa-Lobos era um músico amador; Alfério Mignone, um músico profissional.
Mignone nasceu em São Paulo em 1897, filho de imigrantes italianos; aprendeu a tocar
flauta com o pai, que era flautista da Orquestra Municipal de São Paulo. Aos 10 anos de
idade começou a estudar piano, sem deixar de tocar a flauta que o pai lhe ensinou
(MARIZ, 2005).
Villa-Lobos nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1887. Filho de imigrantes
espanhóis, começou a estudar música com o pai, funcionário público que tocava
violoncelo e clarinete. Por volta dos 12 anos de idade, perdeu o pai, seu grande
incentivador. Sua mãe passou a sustentar a família lavando e passando guardanapos
para a famosa Confeitaria Colombo, localizada no centro do Rio de Janeiro (GUÉRIOS,
2003, p. 49). Ela não queria que Villa-Lobos fosse músico, preferia que seguisse a
profissão de médico. Aliás, um desejo comum dos pais na época, pois Lorenzo
Fernandez, carioca e também descendente de imigrantes espanhóis, começou a estudar
medicina por imposição dos pais. Depois de uma crise nervosa, foi obrigado a
permanecer em repouso, começou a estudar música por distração e nunca mais se
afastou. Estudou piano e teoria. Ingressou no Instituto Nacional de Música aos 20 anos
e lá foi aluno de piano de Henrique Oswald, e de contraponto e fuga de Francisco
Braga. Destacando-se como aluno, em 1924, aos 25 anos tornou-se professor de
Harmonia do INM. Começou a ganhar destaque como compositor depois de vencer, em
1922 e 1924, dois concursos de composição promovidos pela Sociedade de Cultura
Musical, instituição que ajudou a fundar em 1920 e durou até 1926. Em 1936, fundou o
Conservatório Brasileiro de Música (MARIZ, 2005).
Villa-Lobos, sem recursos para estudar e precisando trabalhar, inicia sua vida
profissional tocando violoncelo em diversas orquestras, chegando a viajar para outros
estados, sem deixar de tocar seu violão e conviver com a música dos chorões. Quando
voltou ao Rio de Janeiro, por volta de 1912, decidido a empenhar-se na música, passou
a trabalhar na Sociedade de Concertos Sinfônicos, dirigida por Francisco Braga. Foi

44
Os dados sobre Villa-Lobos foram obtidos no trabalho de Guérios (2003).
45
Os dados sobre Francisco Mignone e Lorenzo Fernandez foram obtidos no trabalho de Mariz (2005),
Cacciatore (2005), Azevedo (1956), Marcondes (2000).
50

esta orquestra que o apresentou como compositor executando pela primeira vez uma
obra de sua autoria, uma Suite Característica para instrumentos de corda (GUÉRIOS
2003, p. 104). Casou-se pela primeira vez em 1913 com a pianista Lucília Guimarães.
Começou a compor por volta dos 27 anos, em 1914 (Idem, 2003).
Mignone, seguindo o caminho do pai, já na adolescência dividia suas atividades
entre o universo da música “erudita” e “popular”: estudava no Conservatório Dramático
e Musical de São Paulo, diplomando-se em piano, flauta e composição em 1917. Ao
mesmo tempo, fazia apresentações como pianista e flautista em pequenas orquestras e
conjuntos de todos os tipos, e compunha “música popular” sob o pseudônimo Chico
Bororó. A primeira vez em que deixou de utilizar o pseudônimo foi num concurso46 de
composição promovido pela Revista A Cigarra e patrocinado pela Casa Levy, em que
era preciso compor uma valsa e um tango: Mignone ganhou o primeiro lugar na valsa e
segundo com o tango (MARIZ, 2005).
Como foi dito anteriormente, o uso de pseudônimo é uma estratégia usada pelos
compositores para esconder o trânsito pela “música popular”, de modo a preservar suas
ambições no meio “erudito”, avesso a contaminações populares. Por essa razão, durante
a década de 1910, Villa-Lobos pouco utilizou elementos associados à “música popular”
em suas obras, pois aqueles constituíam um risco às suas pretensões artísticas, ainda
mais porque o valor atribuído à “música nacional” era insignificante se comparado à
supervalorização de tudo o que fosse do exterior (GUÉRIOS, 2003, p.99 ). É
interessante observar que Mignone e Villa-Lobos começam a conceber uma idéia sobre
“música nacional” e a utilizar elementos da “música popular” ou indígena para esse fim,
depois de viajarem à Europa na década de 1920.
Em 1919, depois do êxito de sua apresentação como pianista e compositor no
Teatro Municipal de São Paulo, Mignone ganhou uma bolsa do Pensionato Artístico do
Estado de São Paulo, foi estudar em Milão com o compositor Vicenzo Ferroni. Para
mostrar suas aptidões compôs sua primeira ópera, O Contratador de Diamantes, de
1921, da qual se destacou Congada, peça de bailado que integrava o segundo ato da
ópera, em que Mignone aproveitou um tema de lundu extraído do livro de Johann

46
Trata-se do mesmo concurso que premiou Souza Lima e seu irmão.
51

Baptist von Spix (1781-1826) e Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868)
publicado no século XIX, contendo transcrições de melodias populares e indígenas47.
A peça foi tão bem aceita que Mignone, ainda na Europa, produziu outras peças
sinfônicas utilizando elementos da “música popular”. Em 1929, voltou para o Brasil; em
1933, mudou-se para o Rio de Janeiro, nesta época, tem início a colaboração com o
poeta Mário de Andrade, que o incentivou a seguir as propostas modernistas. A primeira
obra produzida neste contexto foi Maracatu do Chico Rei, segundo Mariz (2005), “um
bailado afro-brasileiro.” (p.232).
Em 1934, Mignone tornou-se professor de regência no INM, substituindo o
maestro Walter Burle- Marx (1902-1990), sua estréia na condução de uma orquestra
sinfônica ocorreu em 1920, regendo suas próprias composições. Destacou-se como
regente na década de 1930, se apresentando não somente no Rio de Janeiro, mas em
outras cidades brasileiras e até na Europa: Berlim e Roma, entre 1937 e 1938
(AZEVEDO 1956, p. 296, 305 e 306).
Villa-Lobos foi o primeiro compositor “erudito” a escutar as gravações de
música indígena e utilizá-las em suas composições (GUÉRIOS, 2003, p.143). Em 1925,
o compositor ouviu os fonogramas gravados pelo antropólogo Edgard Roquette Pinto
(1884-1954) durante sua participação em uma dessas expedições realizadas em 1908.
Na sua volta da Europa, Villa-Lobos buscou fontes que lhe fornecessem informações
sobre a música indígena, além de ouvir os fonogramas, consultou obras como: Histoire
d’un voyage à la terre du Brésil, de Jean de Léry e Rondônia, de Roquette Pinto (Idem).
O compositor descobriu-se brasileiro em Paris, foi a partir desta viagem, isto é, do
contato com as impressões européias sobre a nação e a nacionalidade brasileira que
passou a construir-se como artista brasileiro; sob o nome de Choros o compositor
agrupou as músicas nacionais que passou a produzir:

“Para representar o Brasil musicalmente, Villa-Lobos achava


necessário sintetizar a música popular e a música indígena. Fica claro
que o Brasil que Villa-Lobos representa em sua música é o Brasil
selvagem e exótico – não qualquer Brasil, mas o Brasil concebido
pelos parisienses. Nos choros, Villa-Lobos transportava para a
linguagem musical as imagens européias sobre a nação brasileira: a
nação da natureza, dos índios e também de personagens da música

47
Trata-se de dois pesquisadores austríacos que vieram ao Brasil fazer um levantamento explanatório
(botânico, zoológico, mineralógico etc.) e coletaram canções populares e indígenas que foram transcritas
e publicadas no livro: Brasilianische Volkslieder und Indianische Melodien.
52

popular. Villa-Lobos tornou-se um músico brasileiro conforme a


imagem que o espelho europeu lhe mostrava” (GUÉRIOS, 2003, p.
142 e 143).

Villa-Lobos foi seguido por Lorenzo Fernandez, que também utilizou as


gravações de Roquette Pinto em Imbapara (1929), poema sinfônico sobre o texto do
escritor mineiro Basílio de Magalhães (1874-1957), que narra as aventuras de um
guerreiro indígena condenado à morte (MARIZ, 2005, p.201). No mesmo ano, esta peça
foi executada pela primeira vez pela Orquestra do Instituto Nacional de Música sob a
regência do maestro Francisco Braga (AZEVEDO, 1956, p. 319). Na década de 1930,
Lorenzo Fernandez também atuou como regente apresentando suas próprias obras, bem
como, de outros compositores brasileiros. Em 1936, Lorenzo Fernandez fundou o
Conservatório Brasileiro de Música. Faleceu em 1948, depois de reger a Orquestra do
INM (Escola Nacional de Música) (CACCIATORE, 2005 p. 234 e 235).
É interessante observar que para os compositores Villa-Lobos, Lorenzo
Fernandez e Francisco Mignone, a prática da regência surge associada à composição,
esta ainda não havia se tornado uma especialidade, tal qual conhecemos hoje, onde o
músico (instrumentista e/ou compositor), tem a possibilidade de escolher dedicar-se à
ela exclusivamente, preparando-se por meio de uma formação musical específica. Vale
dizer que o primeiro professor de regência do INM, o maestro Walter Burle-Marx
(1902-1990) estudou regência na Suíça, nomeado em 1932, foi sucedido por Mignone
em 1934.
Além de Francisco Mignone, Mário de Andrade também exerceu sua influência
sobre Dinorá de Carvalho48; não fosse pelo seu incentivo e apoio, a pianista jamais teria
se tornado uma compositora engajada nas propostas modernistas. Dinorá nasceu em
Uberaba em 1895, começou a estudar piano muito cedo, incentivada pelo pai Vicente
Gontijo, que era músico amador. Com a morte do pai em 1904, a família transferiu-se
para São Paulo. Dinorá está entre as primeiras turmas formadas pelo Conservatório,
onde ser formou em 1916, aos 21 anos. Aos moldes dos pianistas do século XIX, tinha o
hábito de compor e improvisar em seus recitais de piano. Suas primeiras composições
datam de 1912. Destacando-se como pianista, conquistou uma bolsa do Governo do
Estado de Minas Gerais para estudar em Paris com o famoso pianista Isidor Philip
(1863-1958). Dinorá permaneceu na França entre 1921 e 1924 (Carvalho, 1996).

48
Os dados sobre Dinorá de Carvalho foram obtidos no trabalho de Carvalho (1996) e Caccitore (2005).
53

Assim como Souza Lima, Dinorá já possuía uma carreira em andamento quando
foi estudar na Europa, tardiamente, aos 26 anos, em comparação às trajetórias de
Guiomar Novaes e Magda Tagliaferro. A pianista permaneceu na França entre 1921 e
1924. Ao retornar ao Brasil, realizou alguns concertos, mantendo sempre o hábito de
apresentar composições suas, até que em um deles, sua obra Sertaneja foi ouvida por
Mário de Andrade, presente ao concerto. Entusiasmado, o poeta incentivou a pianista a
compor outras peças e lhe apresentou o professor de composição Lamberto Baldi (1895-
1979), com quem ela iniciou seus estudos de composição. Só a partir de então, por volta
de 1929, Dinorá passou a se dedicar à composição com afinco. Apesar do seu ingresso
tardio no universo da composição, por volta dos 34 anos, Dinorá ainda recebeu nove
prêmios como compositora, o primeiro deles foi em 1936, com a obra Festa na Vila
(1936), composta para orquestra.
Embora o hábito de compor fosse cultivado pela pianista desde a infância, foi
necessário o incentivo de Mario de Andrade para que ela levasse a sério o próprio
talento para a composição. A insegurança de Dinorá revela que a composição era uma
atividade predominantemente masculina e o ingresso das mulheres neste universo não é
feito sem apoio e incentivo de seus pares. De outro lado, sua trajetória vem demonstrar
como, aos poucos, o piano deu às mulheres acesso à composição, uma alternativa nova,
ainda que a sua escolha fosse um desafio cercado de conflitos e dilemas para as
mulheres da época.
Dinorá casou-se aos 43 anos, em 1938, com um admirador paranaense, José
Joaquim Bittencourt Muricy, que passou a cuidar inteiramente da carreira da
compositora. Segundo Carvalho (1996), o casamento tardio é conseqüência de sua
dedicação total à música. Desde a infância, a família afastou Dinorá de todas as tarefas e
funções comumente atribuídas às mulheres.

1.5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE VOCAÇÃO MUSICAL


ENTRE INTÉRPRETES E COMPOSITORES DE TRÊS
GERAÇÕES

Ao longo deste percurso procuramos desvendar pela consideração dos diversos


perfis colocados lado a lado, as circunstâncias e os condicionamentos sociais
54

fundamentais à construção da vocação musical, em suas faces feminina e masculina.


Nesse sentido, uma primeira conclusão possível é que a vocação musical é um bem
cultural herdado da família, sejam os pais, músicos profissionais, amadores ou músicos
de certo modo frustrados.
O nível de envolvimento dos pais com a música interfere no modo de inserção
de seus filhos no mundo profissional, pois quando os pais são músicos profissionais
(instrumentistas, compositores ou professores de música) – tais como os pais de Carlos
Gomes, Carlos Darbilly, Joaquim Callado, Luiza Leonardo, Alberto Nepomuceno,
Magda Tagliaferro e Francisco Mignone – transmitem aos filhos o ofício musical, isto é,
oferecem um modelo de atuação no meio que significa muito mais do que ensinar um
instrumento; trata-se de aparelhar os herdeiros para entrarem no jogo social em vigor no
universo em questão. Em alguns casos, são os(as) irmãos(ãs) a desempenharem este
papel, como é o caso de Paulo Augusto, irmão mais velho de Souza Lima, exemplo
profissional em uma época em que faltavam modelos “masculinos” no piano.
A figura do professor de música torna-se importante quando o pai e mãe, apesar
de grandes incentivadores – normalmente, frustrados em seu desejo de serem músicos –,
são incapazes de prover todo o conhecimento musical aos filhos, encaminhando-os,
sempre que possível, aos melhores professores. Foi assim com Guiomar Novaes.
De todo modo, os professores particulares de música e os estabelecimentos de
ensino têm a sua função tanto como fonte de ensino musical quanto via de acesso ao
universo da “música erudita”, principalmente para os músicos oriundos de família com
pouco ou nenhum envolvimento com o universo musical, como Chiquinha Gonzaga,
Francisco Braga ou Lorenzo Fernandez, que adquiriram o conhecimento musical
necessário por estes meios.
A criação das primeiras instituições de música no País, como o Imperial
Conservatório de Música, a Imperial Academia de Música e a companhia de Ópera
Nacional, ofereceu uma alternativa gratuita aos professores “pagos”; Joaquim Callado,
que desistiu do piano porque não podia pagar um professor particular, por exemplo,
aperfeiçoou-se no Imperial Conservatório. Além disso, as escolas proporcionaram um
meio mais acessível de concorrer a uma bolsa de estudos para a Europa, oportunidade
aproveitada pelos compositores Carlos Gomes e Henrique de Mesquita, conforme visto.
Na geração de músicos contemporâneos, vemos surgir uma outra forma de mecenato, o
Estado de São Paulo financiou a ida para o exterior de artistas como Guiomar Novaes,
55

João de Souza Lima, Francisco Mignone, já o Estado de Minas Gerais concedeu bolsa
de estudos para Dinorá de Carvalho.
A figura do professor particular de música teve suma importância no
desenvolvimento da prática do piano no Brasil. São eles que acolhem, a pedido dos pais,
o talento dos filhos, orientando-os e preparando-os para a vida musical. Lembremos que
são os professores Elias Álvares Lobo, Isidoro Bevilacqua e Chiaffareli a oferecerem
aos seus alunos – respectivamente, Chiquinha Gonzaga, Luiza Leonardo, Antonietta
Rudge, Guiomar Novaes e Souza Lima – o ensino “erudito” do piano.
Outro aspecto comum a ser destacado é a viagem à Europa como elemento
primordial para a consolidação e o reconhecimento profissional, para compositores e
intérpretes. Afinal, a ida à Europa tornou-se uma marca de distinção porque assinalava o
status de artista, confirmando ao músico e aos seus pares seu pertencimento à “música
ocidental”. Por outro lado, conforme o processo de formalização do ensino musical foi
se acentuando, o diploma obtido em instituições européias, como o Conservatório de
Paris, foi adquirindo valor nas disputas por autoridade artística. Ao longo das três
gerações, os músicos que viajaram ao continente europeu, entraram em contanto com
diversas idéias e propostas musicais, entre elas as próprias formulações acerca da
“música nacional”, sobre a qual criaram novas perspectivas e reinventaram suas
próprias experiências.
Entre os que estudaram na Europa, apenas Carlos Gomes, Magda Tagliaferro,
Guiomar Novaes e as cantoras Bidu Sayão e Vera Janacópulos conseguiram construir
uma carreira internacional. Os outros músicos retornaram ao Brasil onde deram
prosseguimento às suas carreiras enfrentando problemas de toda ordem, inclusive
financeiros, o que exigiu certa capacidade de adaptação. Afinal, depois de muitos anos
engolfados na “música erudita”, eram obrigados a emergir num universo musical de
práticas musicais múltiplas.
Dois compositores estiveram à margem do Imperial Conservatório de Música
(ou Instituto Nacional de Música), são eles Ernesto Nazareth e Villa-Lobos. Depois de
perderem a figura que os incentivava (Nazareth, a mãe, e Villa-Lobos, o pai), pouco
tempo tiveram para estudar. Sem recursos, tornaram-se autodidatas e logo foram em
busca das oportunidades de trabalho como instrumentistas nas orquestras do cinema,
nos bailes e saraus realizados nas casas de família.
Nas três gerações analisadas, salvo Lorenzo Fernandez, o começo da carreira
entre os compositores é muito semelhante: o trabalho como instrumentista, circulando
56

por espaços sociais distintos marca um ponto de partida. Tocam (piano, flauta,
violoncelo) tanto em conjuntos musicais dedicados à “música séria” quanto à “música
ligeira”. Com exceção de Villa-Lobos e Ernesto Nazareth, dois autodidatas, os demais
compositores, Carlos Gomes, Henrique Mesquita, Carlos Mesquita, Joaquim Callado,
Carlos Darbilly, Francisco Braga, Alberto Nepomuceno, Lorenzo Fernandez e Souza
Lima, ainda que com dificuldades, sempre conseguiram estudar, seja em instituições
seja com professores particulares, obtendo boa formação “erudita” e até diploma.
Todavia, se para os compositores e instrumentistas era absolutamente comum a
convivência com estilos e ambientes musicais diversos, o mesmo não se verifica entre
as pianistas, cantoras e compositoras. Ao contrário, seus estudos musicais e suas
carreiras, desde o início, concentram-se na “música erudita” e no aprendizado de um
instrumento. Confinadas a alguns espaços sociais, as pianistas eram proibidas de se
apresentarem em público e de serem remuneradas, com exceção das cantoras de óperas
estrangeiras e, mais tarde, das cantoras do Teatro de Revista. As moças de conservatório
tinham pouco contato com “a música ligeira” ou “popular”, que chegava à sala de
visitas pelas mãos dos “pianeiros”, pela compra de alguma partitura, pelas melodias
ouvidas nas ruas ou pela freqüência aos teatros.
O perfil assemelhado das pianistas e compositoras dificultou a inserção destas
artistas no universo musical, a exemplo de Luiza Leonardo, cuja formação
exclusivamente “erudita” no piano foi um dos empecilhos para o prosseguimento de sua
carreira no Brasil. Entretanto, no início do século XX, é justamente este perfil o grande
trunfo das mulheres (Antonietta, Magda, Guiomar) na carreira de intérprete-pianista.
Não por acaso, Chiquinha Gonzaga é uma das poucas mulheres que conseguiu
trabalhar e sobreviver exclusivamente da música já no século XIX. Para isso, trilhou um
caminho masculino no universo da “música ligeira”, gênero musical considerado de
pouco valor artístico. Com o fim do casamento e das relações familiares, perdeu sua
posição social, não havia mais o que resguardar. Condenada socialmente, mergulhou no
meio que teve suas portas abertas pelo amigo Callado e, como ele, trabalhava tocando,
compondo, dando aulas etc.
A carreira de intérprete-pianista tornou-se uma opção de carreira no Brasil
apenas no início do século XX, para a “geração dos contemporâneos”, em razão da
consolidação do ensino do piano, da ascensão do concerto solo do piano, da
emancipação do intérprete do compositor e da vinda de inúmeros pianistas estrangeiros
que ajudaram a difundir a prática do concerto. Tal carreira se desenvolveu em meio ao
57

processo de formalização e hierarquização da estrutura do universo artístico, o qual


levou à especialização das atividades artísticas. A performance musical, cada vez mais
independente da partitura, exigia do intérprete o domínio criativo e técnico do seu
instrumento.
No perfil dos intérpretes-pianistas, observamos como o ambiente familiar
favorável relaciona-se diretamente ao aparecimento precoce da vocação, que é
prontamente reconhecida e encaminhada para um renomado professor de música,
muitas vezes o próprio pai. Em seguida, pais e professores, unidos para a realização da
carreira, não hesitam em prepará-los para a viagem à Europa visando à carreira
internacional, já que no Brasil as possibilidades de profissionalização como intérprete
seriam remotas, ainda mais para as mulheres. Portanto, o envolvimento íntimo da
família com a música e, posteriormente, com a carreira do pianista, é primordial para o
sucesso numa profissão na qual a precocidade é uma das marcas de distinção.
Deste modo, podemos afirmar que a carreira do intérprete-pianista constituiu-se
cercada por elementos fundamentais para a materialização da vocação e consolidação da
carreira profissional: envolvimento familiar com a música propiciando um estímulo e
reconhecimento precoce da vocação; dedicação aos estudos objetivando uma formação
“erudita”; conquista de prêmios e concursos em instituições internacionais.
É preciso ressaltar que a preparação do artista envolve ainda o desenvolvimento
de disposições corporais e mentais capazes de dominar o risco intrínseco ao ato de tocar
em público. O concerto implica a exposição pública do artista, uma situação adversa
para as mulheres daquela época, que tinham pouca ou nenhuma chance de exercitar a
exposição pública, restritas às salas de visitas de suas casas. Ainda que treinadas desde a
infância para as apresentações públicas, nem sempre conseguiam se sentir “socialmente
seguras”, encontrando dificuldades para prosseguir na profissão. Antonietta Rudge é um
exemplo: não gostava de se apresentar em público apesar de toda sua desenvoltura
técnica e criativa, e talvez por isso, não tenha priorizado a carreira profissional em
detrimento da família.
Fica claro que a associação do piano à educação das mulheres foi fundamental
para que a carreira de concertista se tornasse um espaço de consagração para elas, pois
quando a carreira conquistou status igual ou até superior ao do compositor no universo
musical, as circunstâncias que outrora as prejudicavam, as impeliram a postulantes à
carreira de intérpretes-pianistas, em detrimento dos homens, cujo perfil múltiplo
58

colocava o piano como um instrumento de trabalho que permitia a ascensão social no


trânsito e no contato com pessoas de classes sociais elevadas.
A carreira de intérprete-pianista tornou-se mais uma possibilidade aberta pela
vida cosmopolita que então se formava no Rio de Janeiro e São Paulo, sobretudo para
essa geração de mulheres que experimentavam uma transição de modelos de
comportamento. Com a criação do curso de piano, o Instituto Nacional de Música
transformou-se num espaço intermediário entre a casa e o palco, onde elas puderam
vivenciar uma nova forma de sociabilidade, fazer suas redes de relações e trocas na
construção de uma carreira profissional. Assim, várias mulheres reorientaram os papéis
sociais para os quais foram educadas (de mãe e esposa). A falta de êxito na carreira de
pianista não mais decretava a interrupção definitiva da profissionalização; o conteúdo
musical obtido no piano deu condições para que estas mulheres (como Dinorá, Helza e
Joanídia) se arriscassem em novas modalidades de atuação e inserção: a composição, a
regência e a musicologia, opções preferencialmente masculinas.

CAPÍTULO 2: A “PRODIGIOSA” JOANÍDIA SODRÉ

Neste capítulo pretendo analisar as múltiplas imagens produzidas sobre Joanídia


Sodré (1903-1975) em três momentos de sua longa e diversificada trajetória: “o
surgimento” da vocação na infância; as disputas institucionais em que se envolveu
como professora do Instituto Nacional de Música; o retorno ao Brasil marcado pelo
início de sua carreira como maestrina e os seus dois primeiros mandatos como diretora
da Escola Nacional de Música da UFRJ (antigo Instituto Nacional de Música) entre
1946-1954. Trata-se de construir o perfil da musicista a partir das diversas facetas
projetadas e incorporadas por ela em diálogo com o contexto social em que viveu:
“criança-prodígio”, “moça estudiosa”, “destemida”, “regente principiante”, “senhora de
sua arte”, “professora”, “diretor”, “ardilosa”, “talentosa”, “competente”, “caprichosa”
etc. As imagens dizem muito sobre a figura pública de Joanídia na medida em que são
constituídas a partir do que seus pares vêem, do que falam e pensam sobre ela, o que
permitem compreender assim as expectativas diversas sobre as ocupações femininas e
masculinas implicadas na construção de uma vocação musical.
59

As fontes documentais aqui mobilizadas - principalmente os jornais, os


processos judiciais e as fotos - descrevem nossa personagem em ação: tocando o piano,
regendo uma orquestra, dirigindo a escola, discutindo em uma reunião, respondendo às
críticas etc.; são em práticas cotidianas como essas, ensina Vânia Carvalho (2008), que
“o gênero do espaço, do objeto e do próprio corpo pode se estabelecer” (idem, p.182).
Meu interesse é compreender em que medida, ao construir uma carreira profissional,
Joanídia torna-se uma figura ambígua por performatizar, no exercício de papéis
considerados “masculinos”, a incoerência de gênero entre o corpo, as ações (de tocar,
reger, dirigir) e os objetos (piano, batuta, vestimenta).
É preciso dizer que há todo um conjunto de imagens que não serão tratadas neste
trabalho. Ao iniciar a pesquisa no acervo de Joanídia depositado na Biblioteca Alberto
Nepomuceno (cujo prédio atual foi inaugurado por ela em 1957), deparei-me com o
seguinte fato: a produção de imagens sobre a maestrina não cessou com sua morte em
1975. Joanídia continua viva nos corredores da Escola de Música da UFRJ, instituição à
qual esteve associada desde a juventude, primeiro como aluna de piano e composição; a
partir de 1925, como professora, e, mais tarde, como diretora entre 1946-1967, somando
quarenta e dois anos dedicados à escola.
A simples menção ao seu nome faz surgir uma “má fama” que cerca sua figura,
um conjunto de narrativas que reeditam fofocas e anedotas, por exemplo, sobre seu
relacionamento amoroso com Carlos Anes, nas quais ele é retratado como “um homem
muito bonito, mas sem nenhum talento musical” que se aproximou de Joanídia, “uma
mulher horrorosa”, interessado apenas em promover sua carreira de compositor. Outras
narrativas, mais jocosas, dizem que o “espírito de Joanídia” ainda ronda a Escola de
Música.
Seja como “bruxa” ou como “fantasma”, o imaginário atual produzido sobre
Joanídia não é relevante para o escopo da presente pesquisa. Contudo, é preciso dizer
que ele tem efeitos sobre as práticas arquivísticas atuais: a organização com feições de
provisoriedade e inacabamento e o acesso restrito dos documentos indicam que o acervo
de Joanídia não é considerado uma fonte importante de saber sobre a própria Escola de
Música. O que me fez compreender a reação ao meu projeto, seguida da seguinte
pergunta: mas por que você escolheu estudar Joanídia? Como veremos ao longo deste
capítulo, a trajetória de Joanídia não diz respeito somente à sua busca pessoal por uma
carreira artística, mas constitui, sobretudo, um acesso privilegiado às disputas do
universo carioca centradas na Escola de Música.
60

Podemos dizer, nos termos de Mariza Corrêa (2003), que Joanídia passou à
história como “um personagem menor”. A autora, ao estudar personagens femininas que
ocuparam posições de poder no cenário acadêmico das primeiras décadas do século 20,
deparou-se com fato semelhante. Suas personagens Leolinda Daltro, Emília Snethlage e
Heloísa Alberto Torres passaram à história da antropologia como “figuras de corredor”,
lembradas não pelos trabalhos que desenvolveram ao longo de suas carreiras, mas pelas
“histórias picantes”. Como ela, entendemos que essas histórias ajudam “a explicar mais
os personagens que as contam do que as personagens que as motiva.” (p.17).
Do ponto de vista institucional, Joanídia foi uma figura preeminente: foi a
primeira mulher a se tornar diretora da escola de música e, mais tarde, a primeira reitora
da universidade na década de 1960. A despeito da centralidade de sua posição
institucional, a trajetória de Joanídia Sodré não foi objeto de análises ou biografias. É
curioso que hoje ela seja lembrada pelas tais “histórias picantes” sobre sua vida pessoal
quando entre os documentos examinados, há poucos vestígios sobre a esfera íntima e/ou
familiar da maestrina. Não encontramos nenhum documento autobiográfico, relatos ou
lembranças; nem mesmos fotos de cenas íntimas ou cartas trocadas entre ela e Carlos
Anes. O acervo de documentos se refere exclusivamente à sua vida profissional:
recortes de jornais, fotos, processos judiciários, programas de concertos, cadernos de
música, partituras, entre outros. É na fase como diretora que encontramos os poucos
manuscritos e correspondências nos quais Joanídia aparece em primeira pessoa
respondendo, solicitando, despachando, cobrando, organizando, negociando, recebendo
pedidos de apoio etc.
Em meio a tantas fontes diversas, cabe destacar o único momento em que
Joanídia revê sua trajetória, organizando o passado em razão do presente, isto é, do seu
retorno ao Brasil como maestrina. Estamos nos referindo ao Ligeiro Esboço Biográfico
da Novel Regente Joanídia Sodré, escrito por Ascendino Dantes e publicado em junho
de 1930. Tudo indica que se trata de um trabalho encomendado pela própria Joanídia ou
por seus pais. Na época da publicação, Joanídia retornava ao Brasil depois de três anos
de estudos na Alemanha, às vésperas de sua estréia como regente no Teatro Municipal
do Rio de Janeiro. Embora o trabalho seja marcado pelo tom economiástico, ele é
importante porque a imagem apresentada é, ao mesmo tempo, aquela que é projetada
pelo biógrafo em razão do que ele acreditava ser condizente com a posição ocupada por
ela naquele momento; e, por ser um trabalho encomendado por ela, é também a imagem
que a própria Joanídia projetava de si enquanto artista.
61

2.1. DE “CRIANÇA PRODÍGIO” A “MOÇA ESTUDIOSA”

Joanídia Sodré nasceu em 1903, na cidade de Porto Alegre, sendo filha única de
João Sodré Filho e Leonídia Nunes Sodré; pai dentista e mãe dona de casa. Quando a
família se transferiu do sul do País para o estado do Rio de Janeiro, Joanídia era uma
criança de cinco ou seis anos de idade. Primeiro, foram morar na cidade de Campos e,
por volta de 1911, em Niterói, capital fluminense, situada próxima ao Rio de Janeiro,
capital do país, pólo cultural que atraía artistas de todo o país, sobretudo os músicos
interessados em estudar no prestigiado Instituto Nacional de Música, como vimos no
capítulo anterior.
Com a família morando próximo à capital federal, João Sodré encontrou
condições favoráveis tanto para se instalar e trabalhar no seu consultório dentário
quanto para garantir os estudos regulares e musicais de Joanídia, realizados,
respectivamente, em casa com professores particulares e no Instituto Nacional de
Música. Joanídia teve todo o apoio dos pais para desenvolver sua vocação musical,
assim como os intérpretes-pianistas tratados no primeiro capítulo. Seus progenitores
tiveram grande participação no surgimento do seu interesse pela música: foi com sua
mãe, Leonídia, que desde muito cedo aprendeu a tocar o piano.
Ainda em Porto Alegre, em 1908, às vésperas de completar cinco anos de idade,
João e Leonídia organizaram uma audição em sua casa à qual estava presente o
jornalista da Gazeta do Comércio. Não sabemos ao certo se ele foi convidado ou se
estavam presentes outros jornalistas, mas o fato é que a decisão dos pais de apresentá-la
à imprensa em um concerto “íntimo” foi uma maneira de tornar pública a vocação
musical de Joanídia, significando sua introdução no meio musical.
Como dissemos no capítulo anterior, a imprensa escrita era a principal forma de
registro e divulgação de um evento artístico, ou seja, ter o nome nos jornais era a forma
mais eficaz para tornar-se um artista conhecido e reconhecido antes do advento de
outras mídias e da gravação. Desta forma, os jornais produziam em suas manchetes um
imaginário rico e diverso sobre a figura do artista e das práticas musicais, no interior do
qual se destaca a figura do “gênio”, que será também projetada sobre Joanídia pelos
jornais na ocasião de suas primeiras apresentações.
62

No trecho do relato do jornalista que assistiu à apresentação de Joanídia, abaixo


transcrito (publicado no jornal Gazeta do Comércio de Porto Alegre, em 14 de
dezembro de 1908), é possível observar, de forma clara, a articulação de certas idéias e
noções recorrentes na imagem do “gênio”:

“Tivemos ontem, o coração a transbordar do maior entusiasmo em face de uma


revelação que constitui uma glória para o Rio Grande e para o Brasil.
Trata-se de uma criança de cinco anos, apenas, de idade, filha do
distinto moço dr. João Sodré Filho. Chama-se Joanídia Nunes Sodré,
essa figurinha leve de balada que recém desponta para a vida, que é
ainda uma esperança em botão, uma pérola que ainda descansa na
concha perfumada e inocente do berço pequenino. Vimo-la ontem,
graciosa, delicada, deixando as mãozinhas brancas resvalarem por
sobre as teclas do piano, como se fossem duas borboletas em
carícias suaves sobre pétalas de lírios. (...) E, vendo- a ali, junto ao
piano, com os cabelos crespos e loiros caídos sobre os ombrinhos,
vendo aquele vulto de criança arrancar notas e executar músicas
inteiras, tínhamos a impressão de enxergar um anjo que houvesse
descido do reino encantado das estrelas por um raio branco de luar.
(...) Não possui, podemos afirmar, essa indiferença que caracteriza
os de sua idade quando se firmam na popularidade, arrastados
nas asas robustas do gênio. Joanídia sente quando toca e faz sentir.
Impressiona-se com a música e sabe imprimir doçura às peças que
executa. É um gênio, mas um gênio que tem alma vibrátil, e que
voa nas asas diáfanas da fantasia pelo país suavíssimo do sonho.”
[grifos meus]49

Podemos dizer que o termo “gênio” é produzido por um arranjo de convenções


acerca do feminino e do masculino, da infância e do talento/dom. O gênio é aquele que
possui um dom inato e individual que pode ser revelado, mas que jamais pode ser
aprendido. Por conseguinte, nasce-se gênio ou não. Não por acaso, a infância é o locus
privilegiado para a manifestação desse “dom inato”, afinal, como um criança de tão
pouca idade poderia ter aprendido tal habilidade? A profusão de sentimentos despertada
no crítico mostra a força destes argumentos.
A principal fonte de explicação para o surgimento de um “gênio” é a “natureza”;
daí as diversas metáforas que situam a criança, o piano e o ato de tocar em sua esfera:
Joanídia é como a concha que guarda o dom (pérola), as teclas são as pétalas de lírio e o
tocar é como o vôo da borboleta. Em seguida, quando o crítico passa a descrevê-la ao
piano, podemos observar que o corpo, o ato de tocar (ação) e o piano (objeto) são
49
Fonte: Gazeta do Comércio. Porto Alegre, 14 dez. 1908. Biblioteca Alberto Nepomuceno. Escola de
Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
63

construídos em relação ao gênero, daí o uso dos adjetivos “delicada”, “graciosa”; das
metáforas das mãos como “borboletas”, da tecla do piano como “pétalas de lírios” e do
tocar como “carícias”, todos se referindo a características, objetos e ações considerados
femininos.
O relato do crítico sobre a apresentação de Joanídia mostra que a percepção do
ato de tocar é indissociável da apreensão do corpo e do instrumento produzidos em
conformidade com a expressão de um “feminino”. Entretanto, se o corpo, a ação e o
objeto são coerentes com a expressão do “feminino”, a figura do gênio, ao contrário,
parece não se conformar ao “feminino” e vice – versa, o que pode ser observado no
esforço, um tanto confuso, de produzir “o gênio” no “feminino” em oposição ao “gênio”
“masculino”: Joanídia não é um gênio “indiferente de asas robustas”, ela é “um gênio”,
porém diverso porque toca com “sentimentos” e “doçura”, tem imaginação e sonha.
A segunda apresentação de Joanídia aconteceu na cidade de Campos em 1909,
em um evento beneficente organizado pelo jornal O Tempo, em favor do abolicionista
Pedro Albertino Dias de Araújo. No trecho a seguir, vemos que Joanídia era uma
criança como outra qualquer, alheia à complexidade dos acontecimentos à sua volta,
mas que já compreendia o significado de tocar piano:

“(...) fomos procurar o seu ilustre pai e solicitamos dele que permitisse
que sua filha tomasse parte no próximo festival de domingo em
benefício do grande e velho abolicionista cego Pedro Albertino...” (...)
“O Dr. Sodré, que é um cavalheiro amável e distintíssimo, de uma
bondade rara, como se tratasse de uma bela festa de caridade, não
hesitou um momento; e graças a ele e a sua exma. gentilíssima
senhora, a festa de Pedro Albertino vai ter um concerto todo especial.
Joanídia não compreendeu e percebeu apenas que ia tocar em
alguma parte.” [grifos meus]50

A “festa de caridade” que se realizou em um domingo, no teatro Moulin Rouge


teve em seu programa a apresentação de palestras, monólogos, peças teatrais e música.
Nas críticas sobre o evento publicadas nos jornais A Capital, O Tempo, Gazeta do Povo,
destacaram-se os nomes dos três oradores, dos atores que apresentaram o monólogo, da
“atriz cantora” Dolores Rentini, da “menina” Joanídia e da companhia de teatro “dos
artistas Ismênia e Fróes”, que representou “duas comédias”. Examinei com mais
atenção o programa da “matinée” porque ele exemplifica como as atividades artísticas e

50
Fonte: O tempo. Campos, 23 jun. 1909. Ibidem.
64

intelectuais estavam divididas entre homens e mulheres (aos homens, a palavra; às


mulheres, a música), mostrando também que a apresentação pública de uma menina ao
piano e de uma “atriz cantora” já faziam parte do cotidiano da época. Cabe ressaltar,
ainda, que o teatro devia ser a única atividade artística que congrega homens e mulheres
no seu exercício, como parece indicar o nome da companhia de teatro.
O fascínio do público pela figura do gênio aparece em todas as críticas, como no
trecho publicado no jornal:

“Era enorme a ansiedade de toda platéia ouvir aquela graciosa menina,


de cinco anos apenas (...). E foi com o máximo interesse que todos
acompanhavam-na nos seus menores movimentos. Todos os olhos
estavam cravados na figura “mignon” da precoce artista; todos os
ouvidos estavam atentos como se tratasse de alguma dessas
notabilidades que chamam para si todas as atenções.”51

Imagine qual não seria o tamanho da frustração da platéia, caso Joanídia não se
apresentasse? E isto quase aconteceu, a menina adoeceu na véspera da apresentação;
mesmo assim, Joanídia apresentou-se mostrando que suas apresentações ao piano não
eram tratadas pelos pais como uma brincadeira, ao contrário, já implicavam a noção de
compromisso e “sacrifício”:

“A menina Joanídia deslumbrou o auditório, que ficou pasmo diante


da grande aptidão musical revelada em uma criança de cinco anos. Por
um compromisso com o público, nós fomos arrancá-la do leito,
Joanídia, a meiga, a pequenina, a divina Joanídia achava-se doente e
com febre. O público a aplaudiu freneticamente, mas ninguém
compreendeu o sacrifício daquela criança, que é a mais bela e a mais
adorável de todas as crianças.”52

Ainda no mesmo ano de 1909, no mês de outubro, Joanídia apresentou-se pela


primeira vez na cidade do Rio de Janeiro, no sarau da poetisa Júlia César, que
apresentou uma palestra curiosamente intitulada “O homem julgado pela mulher”,
realizado no Salão Nobre dos Empregados do Comércio do Rio de Janeiro. O evento foi
amplamente noticiado pelos jornais da capital: Correio da Manhã, Jornal do Comércio,

51
Fonte: Recorte de jornal sem título e data. Ibidem.
52
Fonte: O Tempo. Campos, 28 jun. 1909. Ibidem.
65

O Paiz, Gazeta da Tarde, Gazeta de Notícias, Correio da Noite, A Tribuna, e pelo


jornal Gazeta do Povo, de Campos.

1. Convite da primeira apresentação de Joanídia Sodré no Rio de Janeiro, dado a


ela por Júlia Cesar.

É interessante observar que o jornal O Paiz, ao anunciar a “audição” da


“criança-prodígio”, conta a história de Joanídia reproduzindo a crítica publicada em
1908 pelo jornal Gazeta do Comércio de Porto Alegre. Não parece exagerado afirmar
que aquela primeira imagem do gênio é retomada e reproduzida pela crítica do Rio de
Janeiro, e que antes mesmo da apresentação, Joanídia é tratada pelos jornais como uma
“revelação”, “criança-prodígio” e “virtuose precoce”, para citar apenas os termos mais
usados. Como apontamos no começo, “as revelações prodigiosas fazem-se cedo”, daí a
ênfase do crítico do Jornal do Brasil à idade de Joanídia, aspecto que a colocaria ao
lado de outras “revelações prodigiosas” como Mozart, Pico della Mirandola e
Mieczysław Horszowski; tratados como um “fenômeno” da natureza, surgem como
“cardumes”:

“Tem cinco anos de idade. Este fenômeno nasceu em Porto Alegre.


Há dois anos, isto é, com três anos apenas, já se exibia na cidade de
Campos e alcançava sucesso. Chamamos-lhes fenômeno, e, contudo,
66

não é mais uma espantosa raridade. As revelações prodigiosas


fazem-se cedo. Já não se pode admirar mais o caso da precocidade de
Mozart tocando piano aos nove anos de idade, nem o de Pico della
Mirandola, poliglota e conhecedor dos priscos idiomas obscuros.
Hoje, aos dois, aos três, aos quatro anos já vem à tona os prodígios,
Mieczysław Horszowski interpretava fantasias e valsas de Gluck, de
Schubert, de Chopin, de Bach, de Paganini, quando mal ensaiava ficar
de pé. O Brasil está dando um cardume: um cardume luminoso,
especialmente o sul.” [grifos meus] 53

É interessante analisar a apresentação de três exemplos masculinos de “gênio”:


um na esfera intelectual, o filósofo renascentista Giovanni Pico della Mirandola, e os
outros dois na esfera musical, o compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart
(1756- 1791) e o intérprete - pianista polonês Mieczysław Horszowski (1892-1993).
Dentre eles, segundo Elias (1995), Mozart é considerado até hoje “o prodígio par
excellence” em razão da infância “muito especial” que teve “sob a instrução do pai”.
Aos quatro anos, era capaz de aprender a tocar peças muito complexas; em pouco
tempo, aos cinco anos já compunha e, antes de completar seis, o pai o levou, juntamente
com as irmãs, para a primeira tournée de concertos em Munique, onde se apresentou
para o príncipe-eleitor Maximilian III. “Mozart era admirado e louvado em todos os
lugares por seu extraordinário talento musical” (Idem p.67), mas à medida que
envelhece, “sua fama ia se esvaindo” (Ibidem p.69).
A precocidade, isto é, a “revelação” na mais tenra idade de um talento torna-se
uma marca do gênio, um bem simbólico de suma importância para os músicos na
construção a posteriori de suas biografias. O destaque dado pelos jornais à idade, à
descrição das habilidades apresentadas tais como a execução de peças complexas e à
capacidade de memorização, são recorrentes no caso de Joanídia, e em toda a geração
de músicos a que pertence, sobretudo entre os intérpretes-pianistas analisados no
primeiro capítulo:

“Não podia ser mais brilhante sua apresentação. Possuidora de uma


memória prodigiosa para a sua idade, e de uma técnica bastante
aproveitável, a galante menina executou de cor, com admirável
serenidade, vários trechos de óperas conhecidas, como O Guarani e
Lúcia di Lammermoor, e também a Marcha de Schubert.

53
Fonte: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 14 out. 1909. Ibidem.
67

Incontestavelmente, ela é uma grande revelação musical, pois é


notável a sua intuição artística.”54

É nesse sentido que devemos compreender a publicação, em 1910, de duas peças


musicais compostas por Joanídia Sodré intituladas, respectivamente, Rosa, amor e
botão e Paz e amor, ambas escritas com a ajuda do professor Domingos de Sá. Mais
uma vez, João Sodré não somente arcou com as despesas da edição das partituras como
se encarregou de enviar os exemplares aos jornais e lojas de música. No trecho abaixo,
publicado no jornal Gazeta do Povo de Campos, fica evidente que a peça em si não
possui nenhum valor. Entretanto, quando atribuída a uma “criança-prodígio”, é
investida de sentidos e significados que lhe dão importância, pois traduzem a
“revelação” de um “talento”:

“O dr. J. Sodré Filho, sempre cativante e sempre bom, teve a gentileza


de enviar-me a Rosa Amor e Botão, valsa composta pela galante
Joanídia, sua filhinha e seu encanto. (...) Ao receber a música levei-a
ao pianista da casa, fi-lo executar sem saber de quem era e colhi sua
opinião alheia e desinteressada, posto que a minha era a melhor
possível e já parcial.

- Fraquinha, disse-me. Mas ninguém pode se envergonhar de assiná-


la.

Voltei então a página. Lendo os cinco anos de Joanídia e o quanto


tem ela feito, o meu pianista achou que a valsa é excelente, que não
pode ser melhor, que é uma verdadeira revelação e que Joanídia é
um verdadeiro portento.” [grifos meus]55

Outro ponto freqüentemente destacado pelas críticas é a desenvoltura com que


Joanídia se apresenta ao piano, comparável à dos “grandes pianistas”, “calma e serena”,
ela comportou-se como uma “virtuose acostumada à presença do público”, tocou como
“qualquer aluna de conservatório”, agindo “como deve ser o artista que só se ocupa da
sua arte.” Em outras palavras, Joanídia imitava a “pose de artista”. Na matéria do jornal
Gazeta de Notícias, podemos observar que a descrição dos gestos e da postura corporal
de Joanídia, um ano depois de sua primeira apresentação, aponta para um aprendizado

54
Fonte: O Paiz . Rio de Janeiro, 15 out. 1909. Ibidem
55
Fonte: Gazeta do Povo. Campos, 18 fev. 1910. Ibidem.
68

corporal, para a inscrição no corpo do que é ser um pianista. Sua performance de


pianista mobiliza simultaneamente significados de gênero e do gênio:

“Joanídia Sodré alcançou sucesso exibindo sua delicada arte.


Joanídia somente percorreu as suas pequeninas mãos por sobre o
teclado e pasmou de comoção o auditório. Foi um momento de
expectativa dolorosa quando a mignone virtuose apareceu, porém, a
calma com que se apresentou impôs imediatamente a admiração
geral. Joanídia Sodré executou com segurança os trechos do seu
repertório. Nem a pose dos grandes pianistas lhe faltou. A mise-en-
scène foi completa, como completo foi o seu sucesso.” [grifos meus]
56

A análise dos jornais permite afirmar que, primeiro, o aparecimento precoce de


uma vocação musical está relacionado a um ambiente familiar que estimula, acolhe e
encaminha para o reconhecimento público possibilitando a construção de uma carreira.
Nestas primeiras apresentações, Joanídia tocou o repertório ensinado pela sua mãe,
inclusive tocando juntas, a quatro mãos, a Marcha Militar de Franz Schubert (1797-
1828). Vale observar que o repertório composto, principalmente por trechos de ópera,
do italiano Gaetano Donizetti (1797-1848) e do compositor brasileiro Carlos Gomes,
remete a uma prática “amadora” do piano da sala de visitas, justamente por refletir mais
o gosto pela ópera do que pela prática do piano de concerto, cujo repertório é formado
pelas obras de compositores consideradas fundamentais para o desenvolvimento das
especificidades técnicas e expressivas do instrumento, tais como Chopin, Mendelssohn,
Schumann, Beethoven, Clementi, Mozart, Haydn, Liszt, entre outros57.
Não há dúvida de que os pais de Joanídia levavam a sério sua vocação musical,
de modo que logo a encaminharam para um professor renomado que lhe fornecesse uma
formação específica para o instrumento e, assim, que lhe abrisse as portas do meio
profissional, algo que a mãe, “amadora”, não poderia fazer. Nos próximos anos de sua
vida, Joanídia dedicou-se aos estudos musicais, em torno dos 10 e 12 anos; ingressou no
INM como aluna de piano do então diretor e professor da instituição, o celebrado
compositor Alberto Nepomuceno. Joanídia foi aluna do mestre até sua morte em 1920,
quando sua classe foi assumida pelo professor João Nunes. Formou-se em piano em

56
Fonte: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 15 out. 1909. Ibidem.
57
Estes são os compositores mais encontrados no Programa de piano de 1912 do Instituto Nacional de
Música, ou seja, no repertório musical programado para o estudo do piano do primeiro até nono ano de
curso; impresso na capa e na contracapa dos cadernos de estudos de música de Joanídia Sodré.
69

1921, mas permaneceu na escola em razão do curso de composição cujo diploma obteve
em 1924. Segundo Dantas (1930), Joanídia tinha um carinho especial por Nepomuceno,
a ele atribuía um papel de destaque em sua formação musical. Ao longo de sua carreira,
cultivou o hábito de incluir a obra do compositor nos programas de concerto que regeu
ou tocou.
A foto a seguir ilustra a relação assimétrica e próxima entre o professor e aluna:
Nepomuceno de cabelos desalinhados e de barba está sentado de modo relaxado, com os
braços apoiados na cadeira. Situado em diagonal ao piano e à aluna, seus olhos
acompanham atentamente a partitura executada por Joanídia. Em contraposição,
Joanídia apresenta uma postura rígida e estática; pés e braços alinhados de modo
simétrico. Apenas as mãos movimentam-se sobre o piano, as costas permanecendo
afastadas do encosto da cadeira. Um dos pés está apoiado no chão enquanto o outro
aciona, com a ponta, o pedal. Com os olhos fixos na partitura, Joanídia mostra-se
absolutamente concentrada na execução, postura de aluna disciplinada e estudiosa.

2. Joanídia em aula na residência do professor Alberto Nepomuceno.

Entre 13 e 21 anos, Joanídia formou-se em diversos cursos que lhe deram ampla
formação musical: teoria e teclado em março de 1916; harmonia em dezembro de 1918;
70

contraponto em dezembro de 1920; piano em março de 1921; fuga em dezembro 1921;


instrumentação e composição em junho de 192458.
Segundo Dantas (1930), em 1922, antes de sair de férias com a família para
Porto Alegre, Joanídia organizou um recital de piano, realizado em uma das salas do
Teatro Lírico do Rio de Janeiro, convidando toda a imprensa carioca. Executou obras de
Chopin, Beethoven, Liszt pertencentes ao programa do sétimo e do nono ano do curso
de piano do INM59 (exceto o Noturno de Alberto Nepomuceno), revelando a escolha
pessoal da pianista. De todas as matérias publicadas, Dantas escolhe reproduzir a
avaliação feita pelo crítico, segundo ele, de maior prestígio, cujo nome não é citado,
mas acreditamos tratar-se de João Nunes (1877-1951)60.
João Nunes retoma a imagem de “criança-prodígio” para mostrar que Joanídia
não é mais aquela criança “viva, expansiva de uma infantilidade alegre”; ela tornou-se
uma “moça estudiosa e contemplativa”, devotada a aprender “os segredos” da música,
que é “a arte dos sonhos”. O interesse incomum de Joanídia pela composição, um ofício
masculino, é entendido nos termos de uma relação amorosa, fundada nos sentimentos
(paixão e amor). Para o crítico, a composição é a mais elevada das atividades musicais
sendo completo o artista que domina a criação:

“Ouvindo-a ainda criancinha prodígio, aos cinco anos de idade,


quando maravilhava os circunstantes com o despertar de suas
aptidões e de suas habilidades, era viva, expansiva, de uma
infantilidade alegre. Passaram-se alguns anos e a menina se fizera
moça, estudiosa e contemplativa. As habilidades pianísticas
tomaram outra feição, o amor da arte dos sonhos absorveu-lhe quase
todos os pendores e o seu espírito mergulhou fundo nesse oceano de
belezas que é a música. Nem só o piano lhe mereceu os carinhos de
um estudo apaixonado e profundo; ela quis conhecer todos os
segredos da mais bela das artes, que é a arte do ideal intangível que
move todos os corações, e dedicou-se aos cursos que se concatenam
para a decifração dos mistérios musicais. (...) Agora vai ela chegar ao
mais alto altar do templo e penetrar no sacrário da composição; a
artista estará completa tendo percorrido todos os domínios da
arte dos sons, habilitada para criação, que deve ser o seu maior
escopo.” [grifos meus] 61

58
Fonte: Apelação Cível contra União Federal. Rio de Janeiro, 1934. Ibidem.
59
Fonte: Caderno de Música de Joanídia Sodré. “Aula de Contraponto”, 1920. Ibidem.
60
Compositor e pianista nascido no Maranhão, foi aluno de piano do INM, diplomando-se com medalha
de ouro. Ganhou bolsa de estudos do seu estado natal para estudar na Europa. Foi professor do INM e
crítico musical de três jornais cariocas: O Globo, O Jornal e Diário Carioca (CACCIATORE, 2005,
p.319).
61
Fonte: Dantas, Luiz Ascendino. Ligeiro Esboço Biográfico da Novel Regente: Homenagem ao
Instituto Nacional de Música. Rio de Janeiro, 1930 p. 15-17. Ibidem.
71

Vemos assim que a imagem de “criança-prodígio” acompanhou Joanídia durante


a infância, mas à medida que envelhece, a imagem de “moça estudiosa” se impõe, sem
que a primeira seja desvalorizada ou esquecida. Se, por um lado, a trajetória musical da
infância à juventude parece comum a muitas outras senhoritas – afinal aprender a tocar
o piano e, mais tarde, estudá-lo no Instituto Nacional de Música era o caminho trilhado
por muitas moças –; de outro, na análise das imagens projetadas (“a menina ao piano”,
“a moça estudiosa”) fica claro que a figura de Joanídia mobilizava significados
normativos acerca do gênero ao mesmo tempo em que desorganizava estas mesmas
convenções ao apresentar-se como “gênio” e ao fazer o curso de composição no INM.
Em 1925, aos 22 anos, Joanídia foi nomeada professora catedrática de Teoria e
Solfejo do Instituto Nacional de Música, somando-se às poucas professoras do quadro
docente da instituição. Analisando os dados do quadro docentes de 1922 apresentados
por Paola e Bueno (1998), observa-se que do total de 40 docentes, apenas 11 são
mulheres. Estas mulheres estão lecionando nas cadeiras de piano, solfejo, canto e
violino. A única cadeira em que o número de mulheres é maior é a de canto: três
professoras e dois professores. Na cadeira de solfejo, por sua vez, são quatro professoras
e quatro professores62. É preciso ressaltar três aspectos. Primeiro, a cadeira de
composição, atividade considerada no topo da hierarquia das atividades musicais, foi
sempre ocupada por professores; segundo, até o piano, considerado um instrumento
feminino, era ensinado predominantemente por professores, sendo o canto a única
exceção; terceiro, as professoras eram responsáveis pelo ensino das noções teóricas
elementares, daí a cadeira de solfejo ser a de menor prestígio. Enquanto os professores
ocupavam as cadeiras mais valorizadas: o ensino da composição (o estudo teórico
avançado das técnicas e regras da criação musical) e da prática dos instrumentos. É
preciso ressaltar que a cadeira de regência ainda não havia sido criada (Idem, p. 59).
Se a nomeação de Joanídia não é uma exceção, já que havia outras mulheres
lecionando no Instituto, ela fez parte de um grupo seleto de alunas que se tornaram
professoras no INM, cujo prestígio contaminava seus professores e, principalmente,
oferecia certa estabilidade financeira em um universo onde renome e ganhos materiais
estão quase sempre dissociados. Além disso, como professora do INM, Joanídia teve
acesso a outras oportunidades que ela não desperdiçou, o que demonstra que suas

62
Na cadeira de piano são seis professores para duas professoras; na cadeira de violino, são três
professores e apenas uma professora, Paulina D’Ambrosio.
72

expectativas em relação à carreira iam além do cargo que acabara de conquistar;


Joanídia queria ser mais do que uma professora, como veremos a seguir.

2.2. O CONCURSO DE 1927: DÉBUT DE JOANÍDIA SODRÉ

Em 1927, o Instituto Nacional de Música realizou um concurso de composição,


cujo prêmio era um curso de aperfeiçoamento na Europa. O edital publicado no Diário
Oficial dizia:

“Instituto Nacional de Música concurso para pensionistas

(...) estará aberta na secretaria deste instituto, pelo prazo de trinta dias,
a contar de 19 do corrente, a inscrição ao concurso para prêmio de
viagem ao estrangeiro, para os discípulos do estabelecimento
diplomados no concurso de composição.

Para ser admitido ao concurso, provará o candidato:

1º) Ser brasileiro nato e ter, no máximo, 30 anos de idade;

2º) Ser diplomado no referido curso. Nos termos do art. 248, do


regulamento, e 42, do regimento interno, o candidato demonstrará ter
conhecimentos gerais das línguas francesa e italiana, observando-se na
parte musical o seguinte programa: Composição de uma cantata para
solo e coro com acompanhamento de orquestra, sendo o texto de
escolha do concorrente, mas sujeito à aprovação da comissão
julgadora. A composição será executada sob a direção do concorrente
ou de um regente à sua escolha.”63

O edital revela, ao mesmo tempo, o perfil social do compositor almejado e o dos


alunos do INM, já que o concurso é dirigido aos “discípulos”, isto é, aos compositores
por eles formados. Fica claro dessa forma que o concurso não contemplava todo e
qualquer compositor, mas apenas os que tinham um diploma e uma boa educação,
capazes, por exemplo, de dominar uma língua estrangeira (o que já eliminava muitos
candidatos de “talento”, mas de origem humilde, sem condições de ter acesso a esses

63
Fonte: Brasil. Diário Oficial. Rio de Janeiro, 18 de mai. de 1927. Biblioteca Alberto Nepomuceno.
Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
73

bens culturais). De modo que estudar música no INM e dominar outro idioma eram bens
simbólicos acessíveis a poucos.
Joanídia, que seguia sua carreira como professora, decidiu participar da
competição. Se a condição de professora do INM, por si só, já a colocava em uma
posição privilegiada em relação aos demais concorrentes, é preciso dizer que, desde sua
formatura no curso de composição em 1924, não se destacava como compositora, fato
comprovado pela inexistência de obras neste período.
Das inscrições à divulgação do ganhador, o concurso foi cercado por celeumas
de grande repercussão que ocuparam as páginas dos principais jornais da cidade. O
primeiro fato envolveu o compositor Antônio Assis Republicano (1897-1960) – negro,
conterrâneo e colega de turma de Joanídia Sodré (ambos alunos da turma de
composição de Francisco Braga e diplomados em 1924). Assis Republicano era um
compositor conhecido no Rio de Janeiro. Em 1925, sua ópera O Bandeirante foi
encenada no Teatro Municipal da cidade na fase áurea das temporadas de ópera64; em
1926, regeu um concerto de obras suas no Teatro Lírico65.
Joanídia e Assis Republicano foram os únicos inscritos na competição que se
tornou manchete de jornais quando foi descoberto que Republicano tinha mais de 30
anos e havia falsificado sua certidão de nascimento para tomar parte no concurso. A
justiça interveio, impedindo a participação do compositor. Tal decisão acabou
beneficiando Joanídia, que concorreu sozinha ao prêmio. Em conseqüência, houve
divergências entre os professores do INM, pois muitos não concordaram com a decisão
judicial que afastou Assis Republicano da disputa, por entenderem que Joanídia, na
condição de professora da instituição, tampouco poderia participar da disputa. Alguns
professores, tais como Luiz Amábile, se recusaram a participar do júri. Sua carta de
recusa foi publicada no jornal A Noite em 5 de setembro de 1927:

“Parece, à primeira vista, que a intenção do legislador fora criar


prêmios tão somente para os discípulos diplomados no Instituto. Puro
engano. O Art. 247 reza: “Não poderão inscrever-se professores
conjuntamente com alunos.”. É este o lado antipático da lei que
faculta ao professor, forte, afastar o aluno fraco e humilde, embora

64
Entre 1913 e 1926, na gestão do empresário Walter Mocchi, as temporadas de ópera foram patrocinadas
pela Prefeitura do Rio de Janeiro (AZEVEDO, 1950, p. 210 e 211).
65
Assis Republicano diplomou-se em fagote no INM em 1920, obtendo medalha de ouro. Em 1921, seu
poema sinfônico intitulado Ubirajara foi executado pela Sociedade de Concertos Sinfônicos. Em 1930,
foi nomeado professor de contraponto e fuga no Conservatório Mineiro de Música de Belo Horizonte,
mais tarde, tornou-se professor do INM (CACCIATORE 2005, p.32 e 33).
74

este se chame Assis Republicano e a sua bagagem musical já se


imponha à admiração dos mestres que o apontam como uma glória
atual da geração brasileira. (...)

A solução do governo, afastando por uma questão de somenos


importância, um candidato de valor de Assis Republicano, para
amparar uma professora catedrática, a quem, aliás, estimo, considero e
admiro, tornou-se antipática.”66

As palavras do professor Amábile ressaltam, de um lado, a incoerência na


aplicação do regulamento beneficiando Joanídia, que, por ser professora do INM, não
poderia participar do concurso; de outro, as qualidades musicais de Assis Republicano
já reconhecidas pelos seus pares, os “mestres”, mostrando que ele tinha condições de
vencer a disputa.
Apesar de todos esses incidentes, Joanídia fez as provas previstas pelo edital em
outubro. Em seguida, outro problema a levou a recorrer à justiça. Segundo o
regulamento, a prova escrita deveria ser mantida em sigilo até que o júri,
conjuntamente, viesse a julgá-la. Contudo, antes que o júri se reunisse, dois professores
tiveram acesso à prova e divulgaram o voto desfavorável sem esperar o resultado
oficial67..
Mais uma vez, amparada pela justiça, Joanídia leu sua refutação ao voto destes
dois jurados, Giovanni Giannetti e Fernand Jouteux, perante o comitê julgador do
concurso de Composição para o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro do Instituto Nacional
de Música, em 19 de dezembro de 1927. Ao longo da carta, rebateu o argumento dos
dois jurados, usando terminologia técnica especializada que demonstrava seus
conhecimentos musicais. Refutou, de saída, a acusação de ser uma principiante,
afastando-se da pecha de “amadora” e provando sua competência por meio do diploma
do curso de composição, obtido em 1924:

“Relativamente ao voto do maestro Giannetti, passo a analisá-lo:

Diz no início: “O trabalho apresentado pela senhorita Joanídia Sodré


no concurso para prêmio de viagem à Europa e destinado a um
primeiro exame foge a qualquer análise técnica demonstrando, à

66
Fonte: Amábile, Luiz. “As questões que agitam o Instituto Nacional de Música - Um concurso que não
se realiza por falta de comissão julgadora.” A Noite, Rio de Janeiro, 5 set. 1927. Ibidem.
67
Fonte: Petição: Joanídia solicitando ao Ministro da justiça o direito de se defender. Rio de Janeiro, 24
out. 1927. Ibidem.
75

primeira vista, uma deficiente posse de conhecimentos fundamentais


de harmonia, contraponto e composição em virtude da qual uma obra
orgânica e obediente às leis técnicas e estéticas desaparece.”

Enganou-se o Sr. Giannetti não é este o primeiro exame de


composição que presto, pois já fiz em prova prestada por ocasião de
meu exame final de instrumentação e composição em 1924, perante
banca examinadora composta de competentes mestres e professores
deste estabelecimento, da qual obtive aprovação unânime, o que depõe
contrariamente à sua primeira alegação.”68

Afastados os dois jurados, uma nova comissão julgadora foi constituída e


formada pelos seguintes professores: Henrique Oswald (1852-1931), professor de piano,
e Agnello França (1875-1964), professor de harmonia (ambos antigos professores de
Joanídia). Os demais: Joaquim Antonio Barroso Neto (1881-1941), professor de piano;
José de Lima Coutinho (1862-1946) e José Raymundo da Silva (?-?), professores de
solfejo e, por fim, Agostinho Luiz Gouvêa (?- 1941), professor de fagote. Por cinco
votos contra um, eles concederam o prêmio a Joanídia Sodré pela composição da ópera
intitulada Casa forte, com texto do escritor Goulart de Andrade (1881-1936)69.
A polêmica em torno do concurso de composição, envolvendo personagens
como a justiça, os professores do INM e os jornais, marca a entrada de Joanídia no
campo da música erudita carioca. Trata-se da primeira disputa na qual se envolveu;
nela, podemos observar pela primeira vez a personalidade de Joanídia, demonstrando
condições psicológicas adequadas para arriscar-se em provas e sua capacidade de
manejar, a seu favor, recursos como a justiça, a imprensa e seu pertencimento à
instituição, para enfrentar publicamente seus opositores e vencer a disputa. Mostrava-se
desse modo uma hábil jogadora.
Para entender as razões que levaram Joanídia a participar deste concurso é
preciso observar que, primeiro, do ponto de vista dos ganhos materiais, o cargo de
professora catedrática do INM lhe garantia uma estabilidade financeira, bem incomum
entre os musicistas em geral e sobretudo entre as mulheres de sua geração. Do ponto de
vista do prestígio, do seu início precoce no piano à sua formação como pianista e
compositora no INM, não se seguiu uma carreira aos moldes dos intérpretes-pianistas
nem dos compositores, conforme vimos no primeiro capítulo. Assim, não parece

68
Fonte: Idem.
69
Foi um jornalista, poeta e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras. Pertenceu ao grupo de
poetas boêmios tais como: Olavo Bilac, Guimarães Passos, entre outros.
76

exagerado afirmar que suas atividades como pianista e compositora se desenrolaram


como uma resposta às demandas de sua formação no INM, e não em função
exclusivamente de um projeto artístico e autoral. Prova disso, é a sua produção
composicional reduzida e pontual. Além de Casa Forte, compôs A cheia do Paraíba,
em 1924, para concluir o curso de composição e algumas peças de câmara no período
em que esteve na Alemanha, mencionadas por Dantas (1930), às quais, infelizmente,
não podemos confirmar a existência.
As evidências indicam que Joanídia não havia se realizado como artista, ainda
lhe faltava o renome. Afinal, a conquista de um prêmio como este oferece dois bens
simbólicos: primeiro, o renome ao compositor vencedor, fundamental para consolidar a
carreira; segundo, a oportunidade de estudar na Europa, distinção capaz de alçar o
músico a uma posição de maior prestígio nas disputas no meio musical no Brasil.
Joanídia queria ganhar o prêmio, mas para ela, o bem simbólico em disputa não era o
reconhecimento como compositora, mas a oportunidade de construir uma carreira
artística e ser incluída nas disputas do campo musical no seu retorno ao Brasil.
É a partir deste concurso que as imagens projetadas sobre ela passam a expressar
a tensão das relações em jogo. Ascendino Dantas fez uma avaliação a posteriori do
episódio no Esboço Biográfico publicado em 1930, na qual deixa entrever a imagem
controversa projetada sobre Joanídia por seus pares, divididos entre críticos severos e
admiradores. É curioso notar que o autor narra o acontecimento como se o concorrente,
Assis Republicano, tivesse sido favorecido, e não ela. Para isso, lança a imagem da
artista competente não mais amparada no “talento” (como destacado no período da
infância), mas na formação, nos diplomas e em sua inteligência:

“Tão grande é já o interesse, que nos nossos meios artísticos vai


despertando as coisas do ensino musical nesta capital, que um dos
mais ruidosos concursos ali realizados em 1927, impressionou até os
mais indiferentes. Referimo-nos ao concurso de composição, uma
das mais interessantes pugnas artísticas de que há memória nos anais
daquela casa de ensino harmônico. (...) O que foi esse acontecimento
musical, narrou-o a imprensa desta capital naquela época, com os
episódios mais interessantes, registrados em negrito. Joanídia Sodré
apresentou-se aliás, com valiosas credenciais, tais eram suas notas e
diplomas das várias séries em que se formara: passando então pelas
mais rudes provas e exigências burocráticas, de que foi mister,
para livrá-la da eiva de proteção, com que outros concorrentes se
apresentaram. Das provas, saiu-se galhardamente vitoriosa,
vencendo pela sua completa ilustração musical e luminosa
inteligência artística. Criticada severamente por inveja, por uns,
77

mas extraordinariamente admirada por outros, pela sua modéstia,


pela sua vasta cultura e seu grande gênio musical.” [grifos meus] 70

A compositora partiu para Alemanha em 28 de junho de 1928, hospedada na


casa de uma família judia que apreciava música e que criava um ambiente propício para
os seus estudos71. Joanídia fez curso de harmonia, contraponto, fuga, instrumentação e
composição como professora hóspede da Staatliche Akademische Hochschule für
Musik, atualmente Universidade das Artes de Berlim. Fez também curso de regência,
prática de direção sinfônica e de ópera com o compositor e maestro polonês Ignatz
Waghalter (1881-1949) na hoje denominada Deutsche Oper de Berlim (Casa de Ópera
de Berlim).
A viagem para a Alemanha possibilitou uma nova perspectiva para Joanídia à
medida que, em Berlim, ela pode obter uma formação específica para a regência (curso
até então inexistente no Instituto Nacional de Música) e também dirigir pela primeira
vez uma orquestra sinfônica. Encerrando suas atividades na Alemanha em 27 de março
de 1930, Joanídia regeu a Orquestra Filarmônica de Bonn, que executou peças dos
compositores alemães Ludwig van Beethoven (1770-1827) e Carl Maria von Weber
(1786- 1826), do francês Georges Bizet (1838-1875) e do finlandês Jean Sibelius (1865-
1957)72. No mesmo ano, a regente retornou ao Brasil (três anos antes do nazismo chegar
ao poder). A seguir, apresento o guia de concertos de Berlim, onde há o programa
acompanhado de uma fotografia de Joanídia aos vinte e seis anos:

70
Fonte: Dantas, Luiz Acendino. Ligeiro Esboço Biográfico da Novel Regente: Homenagem ao
Instituto Nacional de Música. Rio de Janeiro, 1930. Ibidem.
71
Esta informação foi concedida por: Nirenberg, Jacques. Entrevista concedida a Dalila Vasconcellos de
Carvalho. Rio de Janeiro, 20 nov. 2009.
72
Fonte: Programa de Concerto regido por Joanídia Sodré na Alemanha, 27 mar. 1930. Biblioteca Alberto
Nepomuceno. Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
78

3. Anúncio do concerto regido por Joanídia na Alemanha.

Joanídia é fotografada de pé. Apesar de portar saia e sapato de salto, peças da


indumentária feminina, seu corpo está em grande parte coberto por um casaco, peça da
indumentária masculina. Destacam-se na foto uma de suas mãos, apoiada sobre o
móvel, e o seu rosto: o queixo erguido e o olhar fixo, sem voltar-se diretamente para as
lentes, revelando a imagem ambígua (masculina e feminina) de uma figura altiva que se
expõe ao olhar de outrem.

2.3. A BATUTA DA PROFESSORA MAESTRINA

Joanídia fez sua estréia como regente no Brasil, em 17 de julho de 1930, no


Teatro Municipal do Rio de Janeiro, regendo o mesmo programa de concerto
apresentado na Alemanha. O concerto foi amplamente noticiado pela imprensa carioca e
fluminense, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Diário de Notícias, Diário da Noite,
O Globo e O Correio Fluminense. Analisando a repercussão do concerto nos jornais, o
primeiro aspecto a ser observado é o quão excepcional era uma mulher reger uma
orquestra sinfônica no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Tanto que nas críticas que se
79

seguiram ao concerto, alguns críticos se declaram “surpreendidos” pela atuação de


Joanídia e pelo público numeroso formado inclusive por pessoas importantes:

“O grande teatro da avenida Rio Branco logrou uma concorrência


pouco comum, estando ali representado todo o mundo artístico desta e
da cidade vizinha, homens de letras, políticos, muitas senhoras e
senhoritas, o que bem atesta o interesse causado pela demonstração da
grande e jovem artista.”73

“O Concerto Sinfônico de ontem à tarde, no Municipal, constituiu,


sem nenhum exagero, um autêntico sucesso artístico. Contra todas as
previsões, havia uma boa casa e o ambiente era o melhor possível para
a estréia da sra. Joanídia Sodré, a primeira mulher no Brasil a reger
uma orquestra.” 74

A princípio, poderíamos ser levados a atribuir o ceticismo dos críticos


unicamente ao fato de ser uma mulher a reger uma orquestra; contudo, uma análise das
circunstâncias da prática da regência e das orquestras na década de 1930 nos faz
compreender as razões do lugar inusitado ocupado por ela e também as imagens
contraditórias projetadas sobre a maestrina.
Em 1930, existiam apenas duas orquestras sinfônicas em atividade na cidade do
Rio de Janeiro: a Orquestra Sinfônica da Sociedade de Concertos Sinfônicos e a
Orquestra do Instituto Nacional de Música. A orquestra mantida pela Sociedade de
Concertos Sinfônicos foi o mais importante conjunto sinfônico deste período, sendo a
única a existir por mais de vinte e dois anos75. Criada em 1912 por Francisco Nunes
(1875-1934)76, regente e professor de clarinete do INM, foi dirigida pelo maestro
Francisco Braga até sua extinção em 1934, quando deixou de ser subsidiada pela
Prefeitura (pois desde 1931, já estava em atividade a Orquestra Sinfônica do Teatro
Municipal do Rio de Janeiro, sendo seu primeiro maestro titular o mesmo Francisco
Braga)77. Sua importância para música de concerto é assinalada pelos jornais da época e
pela historiografia. Segundo Azevedo (1956), suas apresentações eram “acontecimentos

73
Fonte: O Fluminense, Niterói, 18 jul. 1930. Biblioteca Alberto Nepomuceno. Escola de Música da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
74
Fonte: Diário de Noticias. Rio de Janeiro, 18 jul. 1930. Ibidem.
75
Como já dissemos no primeiro capítulo, foi nesta orquestra que Villa-Lobos trabalhou como
violoncelista e fez sua estréia como compositor.
76
Francisco Nunes deixou a Sociedade em 1925, quando foi organizar e dirigir o Conservatório Mineiro
de Música de Belo Horizonte (CACCIATORE 2005, p.319).
77
Francisco Braga deixou o posto em 1933, sendo substituído por Henrique Spedini (?- ?), que ficou no
cargo até se aposentar em 1954 (Idem, p.518).
80

significativos na vida artística e mundana da cidade, reunindo largas audiências e


despertando o entusiasmo vaidoso de um público satisfeito pela tão protelada aquisição
de uma orquestra permanente.” (p.187)
A orquestra do INM, por sua vez, começa a ser organizada em 1924 pelo diretor
Fertin Vasconcellos, sendo formada a princípio pelos alunos das classes de cordas
(violino, viola, violoncelo, contrabaixo). Em 1925, em sua quarta apresentação, era
constituída de sessenta músicos: professores, alunos e ex-alunos. Entre 1924 e 1928, foi
regida pelos professores de violino Ernesto Ronchini (1863-1931) e Humberto Milano
(1878-1933) e Francisco Braga, professor de composição (Paola; Bueno, 1998, p.63).
Embora os concertos com a orquestra fossem irregulares, esta deu oportunidade a novos
solistas e compositores brasileiros; executou, por exemplo, pela primeira vez a “Suíte
Sinfônica sobre três temas brasileiros” de Lorenzo Fernandez, que foi apresentada em
1925, sob a regência de Humberto Milano (AZEVEDO, 1956, p. 318). É curioso
observar que a orquestra da escola tenha sido organizada antes mesmo da criação do
curso de regência em 1932.
Diante de um cenário tão reduzido de possibilidades para a prática da regência
cabe ressaltar a posição central de Francisco Braga como maestro, à frente de todas as
orquestras existentes, mantidas pela Sociedade de Concertos Sinfônicos, pelo INM e
pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Podemos dizer que Francisco Braga foi um
compositor-regente, pois, como outros de sua geração, começou regendo os concertos
de obras suas na Banda do Asilo dos Meninos Desvalidos. Na época era comum que os
compositores regessem a execução de suas próprias obras; além de Francisco Braga,
outros compositores arriscavam-se na regência neste período. Podemos citar: Assis
Republicano, Lorenzo Fernandez, Villa-Lobos, Francisco Mignone, João de Souza
Lima (primeiro regente da recém- criada Orquestra do Teatro Municipal de São Paulo).
Nesse contexto, a expectativa, a curiosidade e mesmo a desconfiança dos críticos
e público na estréia de Joanídia estão relacionadas também à estrutura incipiente dos
concertos sinfônicos; a falta de recursos financeiros inviabilizava a criação de uma
estrutura fixa que garantisse as condições mínimas de ensaios para que uma orquestra
sinfônica se apresentasse de modo satisfatório e com regularidade. Conseqüentemente, o
número ínfimo de orquestras reduzia as oportunidades para a prática e o surgimento de
novos regentes, homens ou mulheres. Além disso, tampouco existia no INM o curso de
regente. Dessa forma, apenas alguns renomados compositores arriscavam-se nesta
atividade; no início, regendo suas próprias obras. Nessas condições, a regência era uma
81

prática associada à figura dos compositores e, como tal, predominantemente masculina.


De modo que o surgimento de uma mulher regente era um fato duplamente raro em um
contexto de escassez de candidatos ao posto:

“Numa terra em que a falta de regentes se faz sentir de modo quase


absoluto (só temos tido nestes últimos anos, com raras exceções, no
posto espinhoso de chefe de orquestra, o maestro Francisco Braga) o
aparecimento de um novo regente, dada ainda mais a circunstância
especial de ser “uma” regente, devia constituir forçosamente um
caso sensacional.” [grifo meu] 78

Se não era comum o surgimento de regentes, menos ainda de “uma regente”. Isto
quer dizer que, ao ocupar a posição de maestro, Joanídia estava, aos olhos dos críticos,
postulando uma posição masculina. Sua ambição masculina de glórias é vista como
positiva desde que submetida aos papéis de esposa e mãe:

“Não é raro, hoje, ver a mulher em atitudes másculas, discutindo


política, desejando votar e ser votada, assumindo compromissos
comerciais, tomando a seu cargo as grandes obras de benemerência,
perscrutando os segredos da assistência e da arte, num crescendo de
justificada ambição de glórias. Nem nos parece que o Lar, seu único
santuário em tempos de antanho, seja prejudicado com o novo surto
de suas aptidões. Parece mesmo que, não desprezados os princípios
morais garantidores da integridade da família, essa nova tendência
da mulher poderá assegurar, mais positivamente, a educação dos
filhos.” [grifo meu]79

A falta de um apoio oficial à estréia de Joanídia pode também ter contribuído


para aumentar as suspeitas do público e dos críticos. Ao ser analisado o programa do
concerto, foi observado que nenhuma das duas orquestras em atividade naquele ano
participou do evento, tendo sido indicada apenas a participação de “uma grande
orquestra.” Este detalhe parece indicar que Joanídia não obteve o apoio oficial da
Sociedade de Concertos Sinfônicos e nem do Instituto Nacional de Música. Isto não
quer dizer que as duas instituições não tenham ajudado ou que os músicos destes dois
conjuntos não tenham integrado a orquestra regida por ela. O fato é que, Joanídia

78
Fonte: Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 19 jul. 1930. Biblioteca Alberto Nepomuceno. Escola de
Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
79
Fonte: Gonçalvez, Armando. Correio Fluminense. Niterói, 27 jul. 1930. Ibidem.
82

assumiu publicamente a organização do próprio concerto, inclusive, arcando com as


despesas necessárias para sua realização.
Portanto, coube a ela constituir a orquestra que iria reger, tarefa nada fácil.
Afinal, o sucesso de um regente dependia da qualidade e do desempenho do trabalho
conjunto dos instrumentistas. Assim não se tratava apenas de contratar os melhores
músicos disponíveis, mas também de estabelecer uma relação de confiança e respeito
necessária para garantir o empenho de todos na execução das peças. Ao que parece,
Joanídia exerceu sua capacidade de “dirigir” antes mesmo de subir aos palcos,
demonstrando liderança suficiente para mobilizar os músicos em torno de seus objetivos
artísticos e alcançar as condições mínimas para a realização do concerto. O trabalho
realizado por ela nos bastidores aparece nos elogios do crítico João Nunes:

“Para a exceção, em condições normais, de uma obra sinfônica, é


indispensável a presença dos seguintes fatores: bom regente, boa
orquestra e meios de custear tantos ensaios quantos forem
necessários para que os professores da orquestra se familiarizem com
as intenções do regente e apresentem um conjunto disciplinado.
Obedeceu a este quadro o Concerto Sinfônico que a senhorita Joanídia
Sodré, professora catedrática de teoria e solfejo do Instituto Nacional
de Música, realizou ontem, no Teatro Municipal. Demonstrando reais
aptidões para a difícil e complexa arte de dirigir grandes orquestras,
cercou-se a regente estreante de um núcleo magnífico de
professores e, depois de ensaiá-los devidamente, deu-nos uma
audição sinfônica perfeitamente equilibrada.” [grifos meus]80

Analisando o conjunto das críticas disponíveis sobre a estréia da maestrina,


notamos que a maioria dos críticos tece comentários sobre os gestos corporais de
Joanídia com a batuta, avaliando não somente a precisão técnica dos movimentos, mas o
modo como expôs sua figura no palco. Lembremos que o corpo do regente, em primeiro
plano, fica totalmente exposto à observação da platéia, que tem absoluta liberdade para
esquadrinhá-lo.
A crítica de Arthur Imbassahy, publicada no Jornal do Brasil, exemplifica como
a diferença de gênero aparece, sutilmente, na avaliação dos críticos. No primeiro
momento, o olhar do crítico volta-se para a apresentação musical, para o desempenho da
orquestra e para atuação da regente, visando apontar qualidades e falhas em razão de
uma expectativa do que é ser um “chefe de orquestra”. Contudo, em seguida, ao focar

80
Fonte: Nunes, João. O Globo. Rio de Janeiro, 18 jul. 1930. Ibidem.
83

sua análise sobre o gestual de Joanídia para avaliar a expressividade de sua mímica
corporal observamos que há um julgamento que extrapola as qualidades técnicas e
artísticas e remete a certa moralidade do corpo feminino.
Imbassahy estava entre os críticos receosos das capacidades de Joanídia, não
pelo fato de ela ser mulher, mas por considerar sua formação musical, em composição,
insuficiente para o exercício da função de regente. Para isso, apresenta o exemplo do
músico italiano Arturo Toscanini (1867-1957)81, na época, regente principal da
Orquestra Filarmônica de Nova York, que se dedicava exclusivamente à carreira de
maestro; e do músico francês Hector Berlioz (1803-1869), que, mesmo sendo um
grande compositor, sentiu dificuldades em reger a própria obra:

“Confesso que não foi sem uma certa dose de prevenção que me
apresentei anteontem no Municipal, para assistir ao concerto sinfônico
que, em vesperal, ia ser dirigido pela sra. Joanídia Sodré,
recentemente chegada da Europa, para onde fora no intuito de se
aperfeiçoar, segundo ouvi, em seus estudos de composição. (...) Para
que um musicista seja considerado um bom diretor de orquestra, não
basta saber, mesmo profundamente, as regras de composição e
harmonia, nem ensinar sua profissão: não são raros os operistas
que não sabem dirigir a orquestra de sua música. Quase não existe
compositor de ópera, ou de qualquer música de fôlego, como a
sinfonia bem elaborada, cuja batuta não se curve à de Toscanini
que, aliás, não me consta tenha escrito qualquer coisa de valia nesse
gênero. Berlioz nas suas Memórias (...) confessa, falando da execução
de uma missa sua (...) em Paris, [que] não possuía requisitos
necessários quando teve que dirigir a orquestra e os coros do
Odéon, para fazer ouvir esse seu trabalho musical.

(...) dizia ele: sai- me muito regularmente; que bem longe estava eu de
possuir as mil qualidades de precisão, de sutileza, de calor, de
sensibilidade e sangue frio, unidos a um instinto indefinível, que
constituem o talento do verdadeiro chefe de orquestra, sendo-me
preciso tempo, exercícios e reflexões para adquirir algumas.” [grifos
meus]82

Assim, tomando como referência as qualidades apontadas por Berlioz como


necessárias para um regente, Imbassahy faz uma avaliação criteriosa, apontado as
falhas, mas também o potencial de Joanídia, que já demonstrava possuir algumas das
qualidades fundamentais para o posto:

81
Hoje, é considerado um dos principais maestros do século XX.
82
Fonte: Imbassahy, Arthur. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19 jul. 1930. Ibidem.
84

“A Srta. Joanídia Sodré, se no concerto citado sob a sua batuta


diretorial, não conseguiu uma execução absolutamente perfeita; se não
foram observadas rigorosamente todas as minúcias das peças que se
ouviram, para que tivessem todas os seus efeitos, nem por isso deixou
de obter muito, muitíssimo mesmo, de merecer os aplausos. Várias
daquelas qualidades apontadas por Berlioz, além de outras ali não
enumeradas, elas as possui manifestamente, como sangue frio,
sensibilidade e aquele instinto que constitui o verdadeiro chefe de
orquestra.” [grifos meus]83

Em seguida, ao detalhar as qualidades apresentadas tais como atenção, gestual


expressivo, memória, intuição e interpretação, observamos que o crítico também elogia
os gestos “comedidos” e a sua postura irrepreensível:

“Foi aí que eu pude reconhecer na talentosa musicista qualidades


superiores para dirigir grandes orquestras: sua atenção volta-se, quase
sempre, para os pontos em que era preciso se estar alerta para não se
dar qualquer deslize; os movimentos de sua batuta, notavelmente
comedidos, estavam a indicar o que ela queria; memória já digna de
registro para não precisar ter os olhos fixos na partitura e poder
despertar, à tempo, a atenção do instrumentista; intuição clara da arte;
interpretação verdadeira e séria das peças que dirigia; e finalmente
correção nas suas atitudes.” [grifos meus]84

Portanto, há dois elogios que não se referem a nenhuma das qualidades


apresentadas anteriormente, mas sim ao modo como Joanídia portou-se no palco. Os
gestos corporais da maestrina são duplamente avaliados, tanto pela sua destreza técnica,
quanto pela decência na apresentação. Por isso alguns termos utilizados pelos críticos
em geral, tais como: “exatidão” e “sobriedade”, “precisão de movimentos” e
“comedimento dos gestos” - estão a julgar aspectos diferentes, embora pareçam referir-
se à mesma coisa.
Em outra crítica publicada pelo jornal Diário da Noite, podemos notar o mesmo
procedimento: Joanídia é elogiada por adequar o ato de reger (a segurança, a precisão
dos gestos) à elegância “feminina”, ou seja, por reger sem exibir o seu corpo
acentuadamente:

83
Fonte: Idem.
84
Fonte: Idem.
85

“Dirigindo a orquestra com segurança e elegantemente, sem


espalhafatosa articulação, consoante aos hábitos, nesse “métier”,
do país onde acaba de chegar – a Alemanha – fazendo-se obedecer
pelos músicos da orquestra.” [grifos meus]85

Em outra notícia publicada no jornal Diário de Notícia, contraditoriamente, o


crítico elogia a maestrina pelo seu “estilo próprio” de reger marcado mais pela
“coordenação” do que por uma atuação pessoal sobre a orquestra, pelo equilíbrio
“calculado” controlando o “temperamento de moça”, cujas “explosões” são
incompatíveis com a “função” de “dirigente de orquestra”. Mais uma vez observamos o
uso do termo “sobriedade”, para se referir à moralidade dos gestos, e “exatidão”, para
descrever a habilidade técnica:

“Suas aptidões são realmente pouco comuns e a sua atuação agradou


quase sem restrições. Possui, na verdade, aquela nossa artista, estilo
próprio e um conjunto de qualidades que a tornam, já agora, não
apenas uma estreante, no sentido literal da expressão, mas uma
dirigente de orquestra segura do seu papel e com uma compreensão
exata da importância de sua função (...) Não se nota, de fato, de sua
parte, nenhum exagero na maneira por que é conduzida a sua
função, a qual parece muito mais de coordenação da massa
sinfônica do que propriamente de dirigente, no sentido de ser
imposta a sua atuação pessoal; como fator preponderante na execução
total. Ao contrário disso, percebe-se justamente que ela quase sempre
controla explosões que seriam, aliás, justificáveis em seu
temperamento de moça, suprindo com sobriedade e exatidão
qualquer outra qualidade que, acaso, lhe faltasse. A esse respeito, o
ininterrupto e calculado equilíbrio com que, durante todo o
concerto, sua atuação foi conduzida, mostra que, apesar de sua
escola ser alemã e possuir a artista o sentimento romântico da beleza
sonora pura, nunca, entretanto, se perde numa manifestação, por
assim dizer, de rebeldia pessoal. É sempre calculadamente
comedida.” [grifos meus]86

Apesar de ter sido encorajada pela crítica, Joanídia só volta a conduzir uma
orquestra no ano seguinte, em 1931. Neste ano, regeu três concertos: um organizado em
comemoração à independência política do Uruguai, com a presença do presidente
Getúlio Vargas e do ministro plenipotenciário do Uruguai, e os outros dois organizados

85
Fonte: Diário da Noite. Rio de Janeiro, 18 jul. 1930. Biblioteca Alberto Nepomuceno. Escola de
Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
86
Fonte: Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 18 jul. 1930. Ibidem.
86

pela Sociedade de Concertos Sinfônicos. Joanídia estreou na condução da orquestra da


Sociedade com a responsabilidade de substituir o maestro Francisco Braga, que, por
razões não explicadas, não pôde regê-la, mas assistiu ao concerto na platéia que se
realizou no Teatro Municipal em 2 de maio, com o concurso do pianista alemão e, então
diretor do Conservatório de Leipzig, Max Pauer (que executou o Concerto nº 5 para
piano e orquestra de Beethoven).
As críticas foram de modo geral positivas, assinalando o privilégio alcançado
pela maestrina “principiante” de reger um solista internacional de longa carreira. Arthur
Imbassahy, que havia comentado sua estréia em 1930, neste segundo concerto, aponta
novamente as qualidades necessárias de um chefe de orquestra e, mesmo criticando-a
pela falta de autoridade decorrente da ausência de prática, coloca a atuação de Joanídia
ao lado dos outros regentes existentes:

“Todo o programa foi executado sob a direção da nossa talentosa


maestrina Joanídia Sodré que, se no seu posto diretorial, não
conseguiu tudo quanto se podia ou devia esperar da orquestra, não
esteve, entretanto, aquém dos que aqui presentemente já se
fizeram, ou já vieram feitos, no comando de corporações
sinfônicas. Via-se sem dúvida que lhe faltava ainda, sobretudo no 5º
Concerto para piano e orquestra de Beethoven, certa autoridade na
batuta regencial. E que essa qualidade só se adquire com o tempo,
na prática constante de se dirigir orquestra, e isso mesmo
subordinado a condições especialíssimas: talento e aptidão para o
mister, sólida educação musical, excelente ouvido, fino gosto artístico,
penetração de espírito, memória feliz, cultura literária, senso crítico e
analítico, mímica expressiva, movimentos promptos e gesto
sugestivo.” [grifos meus] 87

A crítica de Octavio Bevilacqua (1887-1969)88 publicada no jornal Globo e


transcrita a seguir traz de forma condensada e clara todos os aspectos imbricados no
olhar dos críticos: a musicista, cujos desejos se orientam para “especialidades
masculinas” e enfrenta, corajosamente, em um período marcado pelo movimento
feminista, os obstáculos de uma profissão incipiente no meio musical carioca, cujas
dificuldades fazem desistir até os homens. Joanídia é a imagem do inusitado, da
maestrina ao mesmo tempo corajosa, sóbria e elegante:

87
Fonte: Imbassahy, Arthur. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 5 mai. 1931. Ibidem.
88
Filho do compositor Alfredo Bevilacqua, foi aluno e professor do INM e membro fundador da
Academia Brasileira de Música. Como crítico musical trabalhou no jornal O Globo desde a sua fundação
(Cacciatore 2005, p.56, 57).
87

“O concerto do último sábado, se não nos enganamos, teve uma nota


inédita em nosso meio musical. Tratava-se de uma audição sinfônica
sob batuta em mãos femininas, o que pode mostrar quanto vão
avançadas as conquistas do sexo frágil entre nós. Joanídia Sodré, a
quem coube a regência neste dia, proporcionando-nos este espetáculo
raro em qualquer parte do mundo civilizado, desde cedo manifestou
desejos de dirigir sua atividade musical para especialidades
geralmente entregues para os homens. Assim, foi a composição
que a atraiu e, vencidas as dificuldades para a obtenção de seu prêmio
de viagem, viu na batuta, talvez, um êxito maior para sua carreira.
Ei-la, destemerosa em sua orientação. Este mérito, ao menos,
ninguém lhe tirará - o de enfrentar, corajosa, dificuldades diante das
quais muitos hesitam. A tarefa, porém, é difícil, não só pelo estado
mais ou menos embrionário em que nos encontramos ainda em
questões de execuções orquestrais, como pelos próprios escolhos do
ofício. Não diremos, pois, que as execuções foram perfeitas; o que
dadas as circunstâncias, era impossível. Poderemos, contudo afirmar
que a novel regente portou-se com muito garbo, não tendo
escapado a todos certa elegância de seu gesticular.” [grifos meus]89

Em década marcada pelo movimento feminista que reivindicava, entre outras


coisas, o direito das mulheres ao voto (concedido no Brasil em 1932), o segundo
concerto organizado pela Sociedade de Concertos Sinfônicos foi realizado em
homenagem ao 2º Congresso Feminista, em 27 de junho de 1931. Joanídia apresentou
pela primeira vez obras das compositoras francesas Cécile Chaminade (1857 - 1944) e
Augusta Homès (1847 - 1903), da inglesa Ethel Smyth (1858 - 1944) e da brasileira
Branca Bilhar (?-?). A imprensa não deixou de comentar o evento voltado para a
execução da obra de compositoras regidas pela maestrina. Diz Octavio Bevilacqua:

“As mulheres dirigem às vezes, excelentes chefes de orquestra –


seus maridos – por que, pois, não poderão dirigir a própria
orquestra se dirigem seus chefes? Assim pensa Richard Strauss e
com ele, a Sociedade de Concertos Sinfônicos que em uma
época de intenso feminismo e querendo homenagear um
congresso feminista, realizou um concerto extraordinário sob a
batuta de um dos membros do mesmo - a nossa maestrina
Joanídia Sodré.”90

89
Fonte: Bevilacqua, Octavio.O Globo. Rio de Janeiro, 05 mai. 1931. Biblioteca Alberto Nepomuceno.
Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
90
Fonte: Bevilacqua, Octavio. O Globo. Rio de Janeiro, 30 jun. 1931. Ibidem.
88

Joanídia não conseguiu a regularidade necessária para se exercitar na regência,


ficando sem reger até 1933. Afastada dos palcos, o ano de 1932 foi marcado por uma
disputa no Instituto Nacional de Música pela cadeira de regência, criada pela reforma do
ensino superior de 1931. Na época, Joanídia manifestou seu interesse em transferir-se
para a cadeira recém criada para o diretor, Luciano Gallet, que faleceu logo em seguida
sem dar solução ao preenchimento da vaga.
Em uma reunião da Congregação realizada em 5 de abril de 1932, Guilherme
Fontainha, que então assumiu a direção da escola, resolveu a questão transferindo
Joanídia para a cadeira de Harmonia e Morfologia e contratando para a cadeira de
regência Walter Burle-Marx (1902-1990), ex- aluno do INM, que havia retornado da
Europa em 1930, onde estudou composição e regência. Desde 1931, Walter regia a
orquestra que fundara, a Orquestra Filarmônica do Rio de Janeiro (CACCIATORE,
2005, p.74 e 75). Na reunião, Joanídia manifestou-se contrária à decisão, questionando
o diretor. Houve discussão entre os professores, e o maestro Francisco Braga
manifestou-se assim, segundo a transcrição da ata da reunião:

“(...) a senhorinha Joanídia Sodré lhe foi trazida pelas mãos de


Alberto Nepomuceno que muito confiava no seu futuro artístico. Foi
uma aluna esforçada, estudiosa e aplicada, de contraponto e fuga,
instrumentação e composição; obteve o prêmio de viagem ao
estrangeiro no concurso de composição realizado em 1927, embora
muito discutido, como em geral, são todos os concursos dessa
natureza; fez estudos especiais na Alemanha, como está provado
oficialmente, regeu um concerto com muita autoridade, valendo-lhe
isso muitos aplausos. Dizem que esse concerto tinha sido estudado
na Alemanha, mas toda lição é estudada com alguém. Reúne, pois, a
seu ver, os requisitos para o cargo que pretende, mas achando-se a
cadeira de regência provida pelo prazo de um ano, considera o seu
caso irremediavelmente perdido, devendo entregar os pontos.”91
[grifos meus]

Apesar de afirmar que Joanídia tinha os requisitos para ocupar a cadeira de


regência, sua argumentação a favor da regente é contraditória: a cada aspecto positivo
apontado, segue-se uma ressalva, uma restrição que põe em dúvida a competência da
musicista e a opinião dada pelo maestro. Joanídia não seguiu os conselhos do mestre e
pleiteou na justiça a anulação da decisão que nomeou Walter Burle- Marx, mas perdeu a
ação permanecendo na cadeira de Harmonia e Morfologia para a qual fora transferida.

91
Fonte: Apelação Cível contra a União Federal. Rio de Janeiro, 1934. Ibidem.
89

Em 1933, buscando um meio de se apresentar regularmente, Joanídia participou


da organização que criou o Centro de Intercâmbio Musical Luso-Brasileiro, associação
criada para divulgar obras musicais de compositores brasileiros e portugueses. Como
diretora artística e regente do centro, organizou e regeu cinco concertos. Os concertos
de maior repercussão entre os críticos ocorreram em 1934, mais uma vez, devido à
presença de dois solistas internacionais, o pianista polonês Moriz Rosenthal (1862-
1946) e o violonista Léo Cherniavsky (1890-1974).
Os críticos, de certa forma, continuavam incentivando Joanídia Sodré,
salientando o “esforço” de seu trabalho na regência, segundo João Itiberê da Cunha
(JIC) (1870-1953)92, motivado por um dever patriótico:

“Não podemos deixar de salientar o esforço inteligente da maestrina


patrícia Joanídia Sodré, que vem se impondo, sem estardalhaço, e
realizando um trabalho consciente e artístico na regência. O seu
segundo concerto sinfônico vale-lhe, em aplausos, a recompensa que
merece. Nós temos a mão vezo do exclusivismo! É um ponto de vista
injusto e muitíssimo falso. Há, debaixo do sol, lugar para muita gente.
Querer eliminar uns em proveito de outros não se justifica de modo
algum. E, quando um artista se inicia na carreira, como a valente
maestrina brasileira, é, além de aberrante, antipatriótico. O sucesso
alcançado com os seus dois concertos sinfônicos deste ano deve
animá-la a prosseguir.”93

Contudo, a partir de 1934, a atividade de Joanídia como regente decresce, tendo


o Centro de Intercâmbio Musical Luso-Brasileiro, ao que tudo indica, encerrado suas
atividades em 1934. Ainda sim, Joanídia regeu três concertos, um em 1935, outro em
1937 e o último, em 1938. Infelizmente, sobre o concerto realizado em 1937 no INM,
em homenagem ao músico Francisco Braga (no qual a Orquestra do Teatro Municipal
foi regida pelo seu maestro principal, Henrique Spedini, pelo compositor Oscar Lorenzo
Fernandez e por Joanídia Sodré), encontramos apenas o programa do concerto.

O concerto realizado em 1935 foi organizado por uma empresa que então surgia
no cenário, a Empresa Artística Teatral, mas a iniciativa comemorada pelos críticos não

92
Compositor e crítico musical nascido no Paraná, filho do compositor Brasílio Itiberê da Cunha (1846-
1913) (CACCIATORE, 2005, p. 118).
93
Fonte: Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 6 out. 1934. Biblioteca Alberto Nepomuceno. Escola de
Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
90

teve continuidade. O interessante é mostrar que a situação dos concertos sinfônicos e


das orquestras continuava precária, impossibilitando a prática da regência, como
podemos notar na crítica de Octavio Bevilacqua:

“A Empresa Artística Teatral fez realizar um concerto sinfônico, este


sob a regência da maestra Joanídia Sodré. Age assim, esta empresa,
em favor do que entre nós desejam empunhar a batuta, sem ocasião
para tal. De tantos sabemos que, mártires desta ansiedade, vem
esmorecer seu entusiasmo que poderia ser profícuo. Um conhecemos
nós que, em falta do que reger, regia-se a si próprio, de batuta em
punho, cantando e assoviando (...) E quantos desgostos já têm
causado, em nosso meio, as lutas pela conquista da varinha mágica.”
94

No concerto realizado em 1938, Joanídia participou pela primeira vez da série


oficial de concertos da Orquestra da Escola de Música, regendo obras de sua escolha:
uma sinfonia de Alberto Nepomuceno, o Concerto nº 1 para piano e orquestra em mi
menor de Chopin, um poema sinfônico de Leopoldo Miguéz e a abertura de Tannhauser
de Richard Wagner. Joanídia conhecia bem o programa do concerto, que foi elogiado
por Octavio Bevilacqua; com exceção da peça de Miguéz, ela já havia regido as demais
obras anteriormente. Lembremos que Joanídia atuava como regente há oito anos, tendo
regido neste período doze concertos, apesar de todos os obstáculos já apontados. Regeu
um repertório de trinta e oito obras diferentes, e entre os compositores que mais
executou, estão Francisco Braga e Alberto Nepomuceno, seguidos de Richard Wagner,
Chopin e Beethoven. Fez também a primeira audição de doze obras; além das peças das
compositoras Branca Bilhar, Ethel Smyth, Cécile Chaminade e da Augusta Homès, já
citadas, destacamos Finlândia de Sibelius e o poema sinfônico Stenka Razin do
compositor russo Alexander Glazounov. Assim que, passados oito anos de sua estréia, a
imagem da “regente principiante” dá lugar à imagem de uma regente tão “senhora de
sua arte”, isto é, segura, cuidadosa e fria, quanto seus pares masculinos:

“Vendo-a reger, tem-se a impressão de que é senhora de sua arte.


Mas achamo-la algo fria. Talvez erro de nossa visão: chamamos
frieza o que é apenas sobriedade. Entretanto, com este ou outro

94
Fonte: Bevilacqua, Octavio. O Globo. Rio de Janeiro, 10 jun. 1935. Ibidem.
91

reparo, o certo é que a maestrina Joanídia Sodré pode figurar sem


favor ao par de outros aplaudidos regentes do sexo oposto que,
carecendo também de mais calor, não a superam na interpretação
meticulosa e segura das peças que dirigem.” [grifos meus] 95

Segundo João Itiberê da Cunha (JIC), Joanídia se impõe como regente no meio
musical por meio das suas qualidades artísticas e pessoais somadas ao seu trabalho
persistente, e não por ser mulher. Curiosamente, o crítico prefere tratá-la como
“professora”, ao invés de “maestrina”, mais condizente talvez com a atuação
profissional que acabara de ressaltar. Se o título de “professora” é significativo do ponto
de vista institucional, da perspectiva do renome artístico, o de maestrina é muito mais
importante, sobretudo para a própria Joanídia:

“O interessante concerto sinfônico de anteontem, à noite, sob a


regência da professora Joanídia Sodré constituiu um esforço bem
compensado. Detestamos dar-lhe o nome de maestrina,
pretensioso, cheirando a bas bleu. Trata - la - emos, de preferência,
pelo título seguramente mais valioso e significativo de
“professora”. Joanídia Sodré é um exemplo de inteligência e de
constância, de vocação musical e de amor ao trabalho. Toda a sua
carreira ela a fez com brilho, sem estardalhaço, sem necessidade de
invocar prerrogativas de um “feminismo” sectário e antipático,
que invade mais do que envolve as coisas ambientes.” [grifos meus]96

Joanídia segue sua carreira sem desistir da regência; ao contrário, encontra um


meio de conciliar seu desejo “pretensioso” de reger com a imagem de professora, mais
conveniente, segundo o crítico. Em 1939, fundou a Orquestra Infantil para conduzir e
ensinar o aprendizado musical de jovens instrumentistas. No período posterior, de 1939
até 1946, que antecede a sua eleição para o cargo de diretora, não encontramos
programas ou relatos sobre suas atividades musicais. Joanídia volta à cena como
regente, anos mais tarde, já como diretora da Escola Nacional de Música do Rio de
Janeiro.

95
Fonte: D’Alva, Oscar. O Globo. Rio de Janeiro, 24 out. 1938. Ibidem.
96
Fonte: Cunha, João Itiberê da. “Concerto Sinfônico da Escola Nacional de Música.” Correio da Manhã.
Rio de Janeiro, 21 out. 1938. Ibidem.
92

2.4. “O DIRETOR” DA ESCOLA DE MÚSICA

Joanídia dirigiu a Escola de Música entre 1945-1967, assumindo ao fim do


Estado Novo, fase de enormes crises políticas, mas também da reforma no ensino
superior assinada por Francisco Campos (1931). No mesmo ano, foi criada a
Universidade do Brasil ao qual o Instituto Nacional de Música, agora denominado
Escola Nacional de Música, é anexado, tornando-se a instituição de educação musical
mais importante do País. Esta reforma educacional sedimentou as bases para a
montagem estrutural das universidades brasileiras “prevendo a existência de órgãos e
funções básicas, como reitoria, o conselho universitário, a assembléia universitária e a
direção de cada escola. O corpo docente era composto por catedráticos, auxiliares de
ensino e livres-docentes” (MOTOYAMA, 2004, p. 33).
Durante sua gestão, dá-se o retorno de Getúlio Vargas ao poder em 1952 e seu
suicídio em 1954, assumindo a presidência em seu lugar Café Filho. Em seguida, o
governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, entre 1955-1960, a eleição de
Jânio Quadros em 1961, e sua renúncia, seguida pelo Golpe Militar de 1964. No âmbito
do universo musical carioca, seu mandato teve início às vésperas do centenário da
Escola Nacional de Música, comemorado em 1948, evento amplamente aguardado por
todo cenário artístico da época, colocando sua gestão no centro das atenções.
Em seus dois primeiros mandatos, entre 1945-1954, Joanídia introduziu e
renovou “(...) várias disposições de regimentos anteriores que ainda não tinham sido
aplicados, e que se mostravam indispensáveis para a vida administrativa e didática da
instituição” (PAOLA; BUENO, 1998, p.84). Em outras palavras, implementa um novo
regimento escolar, aprovado pelo conselho universitário, com algumas disposições já
previstas pela reforma universitária de Francisco Campos, mas ainda não executadas na
Escola de Música, tais como: a criação dos cursos de Aperfeiçoamento e
Especialização, que poderiam ser ministrados por catedráticos ou por livres-docentes; e
a divisão do curso de graduação em dois cursos, um voltado para a formação de
professores e outro para a formação profissional (executantes).
É preciso dizer que, nesta época, muitos professores estavam em situação
irregular. O quadro docente da Escola de Música contava com poucos professores
catedráticos, muitas cadeiras sendo ocupadas por professores interinos contratados e por
assistentes dos catedráticos que não recebiam por seu trabalho. De modo que a expansão
93

da estrutura escolar e a situação caótica do corpo docente levaram Joanídia a intensificar


a realização de concursos para cátedras e professores livres-docentes.
Como se sabe, ao longo da história da Escola de Música, o preenchimento das
cátedras por meio de concurso, transferência ou nomeação de professores, bem como os
concursos a prêmios, estiveram na origem de muitos infortúnios, pois mobilizavam uma
teia conflituosa de interesses individuais e institucionais, em função de insatisfações
com os resultados obtidos. Em 1916, realizou-se o primeiro concurso para professores
que terminou com a demissão do diretor Alberto Nepomuceno.
Em 1915, o então professor da cátedra de solfejo, Henrique Braga, foi jubilado
do cargo, sendo substituído interinamente pela professora livre-docente Maria Clara
Lopes. O professor de clarineta, Francisco Nunes, solicitou sua transferência para a
cadeira vacante, ao que Nepomuceno se opôs, preferindo que fosse realizado um
concurso para moralizar o preenchimento da vagas na instituição, decisão acatada pelo
Conselho Docente. E assim, transcorreu o concurso. O resultado foi anulado depois de
um dos concorrentes ao cargo acionar a Justiça contestando a imparcialidade do júri,
alegando que o vencedor, Octavio Bevilacqua, era filho e cunhado de dois professores
da escola. O caso terminou com o pedido de demissão do diretor Alberto Nepomuceno.
Joanídia, ainda uma aluna de treze anos, juntou-se aos 342 alunos que assinaram uma
homenagem de apoio ao ex-diretor (PEREIRA, 2007, p. 254-264).
A própria Joanídia, como vimos, envolveu-se em duas disputas quando era
professora: da primeira, em 1927, ela saiu vencedora do concurso de composição; na
segunda, perdeu a cadeira de regência, para a qual almejava ser transferida, para o
maestro Walter Burle-Marx. Como diretora da escola, Joanídia exerceu seu poder de
veto, escolhendo os professores conforme seus próprios critérios, como podemos
observar no depoimento de Jacques Nirenberg (1923-2010)97:

“Ela provou ser uma criatura ardilosa, por causa disso, ninguém
gostava dela. Eu digo ninguém porque você pode ter visto, conversado
com as pessoas, e essas pessoas não conheceram Joanídia, ouviram
falar. Poucas pessoas conheciam dona Joanídia. As que conheciam,
conheciam por alguma negativa que ela fizesse, porque ela não se
deixava levar na lábia. Ou ela gostava da pessoa ou não, então não
adiantava nada você trazer diploma da Sourbonne ou diploma de

97
Jacques Nirenberg, nascido no Rio de Janeiro em 1923, foi músico, médico psiquiátrico e professor de
música de câmara na Escola de Música da UFRJ. Foi aluno de violino da professora Paulina D’Ambrósio
e membro do Quarteto Oficial da Escola de Música e membro da Academia Nacional de Música. Jacques
teve uma relação profissional e de amizade com Joanídia Sodré, sendo seu amigo pessoal.
94

Harvard, não adiantava nada, nada. Ela não queria saber disso. Ela
queria uma pessoa que pudesse ajudá-la na administração da escola.”98

Outro episódio que diz muito sobre a personalidade da diretora foi a conquista
de uma reivindicação antiga, a troca do antigo órgão doado por Leopoldo Miguéz em
1890 (levado para a capela da Universidade do Brasil) pelo novo órgão encomendado
na fábrica Giovanni Tamburini da Itália, inaugurado em 13 de agosto de 1954. Logo
que assumiu a direção da escola, Joanídia envolveu-se na realização deste projeto. A
princípio, a diretora pretendia apenas reformar o antigo órgão, mas devido aos custos
elevados da reforma, passou a considerar a possibilidade de comprar um novo,
empreendimento financeiro vultuoso que jamais teria sido concretizado se a diretora não
tivesse conquistado o apoio do reitor da universidade, Pedro Calmon, e do vice,
Deolindo Couto (PAOLA; BUENO, 1998, p.90).
Se, no âmbito da universidade, Joanídia conduzia com diplomacia suas relações,
fora dela, o relacionamento, sobretudo com os críticos, não era lá muito amistoso; ao
contrário, eles rejeitavam a diretora da escola que, por sua vez, menosprezava o papel
da imprensa, como podemos observar em outro trecho do depoimento de Nirenberg:

“Os críticos não entravam na escola! Tinham uma ojeriza pela


Joanídia! O nome de Joanídia criava uma barreira. Não entravam!
Faziam Boicote! É porque ela era uma pessoa, quero dizer... era assim
mesmo que ela dizia: - Crítica? Eu nem leio, nem quero saber, nem
abro o jornal para ler crítica porque não vale a pena. Eles estão no
bem bom, não estudam nada, vem aqui, sentam e vem olhar só os
erros, não olham coisa boa não, só as coisas ruins, só as coisas ruins
que eles olham. E de fato, ela tem razão. Embora a crítica seja
necessária para o artista, na maioria das vezes ela é venal, de
modo geral, é. Então, a Joanídia criou essa fama e essa..., e essa
rejeição.”99

O modo ditatorial como Joanídia comandava a escola, contrariando diversos


interesses individuais (sobretudo no que se refere aos concursos para professor),
somado à rejeição dos críticos, ajuda a compreender por que, em 1954, eclode uma
oposição ferrenha à sua administração, encabeçada, justamente, por um grupo de

98
Fonte: Nirenberg, Jacques. Entrevista concedida a Dalila Vasconcellos de Carvalho. Rio de Janeiro, 20,
nov. 2009.
99
Idem.
95

artistas, críticos, compositores e intérpretes que estavam fora da Escola e não pelos
professores da instituição que tinham acabado de reelegê-la para mais um mandato.
Por meio de uma carta dirigida ao presidente Café Filho, o grupo pede a saída de
Joanídia da direção da escola de música, colocando em suspeita o processo eleitoral e
acusando-a de proteger o compositor Carlos Anes. Dos vinte e cinco signatários, quinze
declaram-se membros da Academia Brasileira de Música. O primeiro a assinar a carta é
o compositor Villa-Lobos. Dentre os demais, destacamos os críticos Andrade Muricy
(Jornal do Comércio), Renzo Massarani (Jornal do Brasil), Eurico Nogueira França
(Correio da Manhã), os compositores Helza Camêu, Alceu Bocchino, Cláudio Santoro,
Jayme Ovale, Frutuoso Vianna. Assinou também: Odina Dantas (Diário de Notícias), o
compositor Camargo Guarnieri (então no Departamento de Cultura do Estado de São
Paulo), o escritor Manuel Bandeira, Luiz Gonzaga Botelho (Sociedade Cultura Artística
de São Paulo), entre outros 100..
A Academia Brasileira de Música, fundada em 1945 por Villa-Lobos, tinha
como objetivo reunir as personalidades do universo musical: compositores, intérpretes e
musicólogos. Na época de sua fundação, o projeto educacional dirigido por Villa-Lobos
no período Vargas encontrava-se já implementado; o compositor deixara a chefia do
SEMA (Superintendência da Educação Musica e Artística) permanecendo na direção do
Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, criado em 1942 (GUÉRIOS, 2007, p.198).
Curioso é notar que, na carta, Villa-Lobos se apresentou primeiro, como membro do
Instituto da França101 (estabelecimento francês que inspirou a criação da Academia) e
depois, como presidente da ABM.
Apresentamos abaixo o trecho que inicia o manifesto contra Joanídia. Nele
podemos observar aspectos do contexto da disputa; primeiro, nota-se que a “música
nacional” é a expressão do potencial da nação, o que situa o País ao lado dos países
“civilizados”. Disso resulta a importância da Escola de Música no encaminhamento
profissional deste “dom da natureza”, isto é, a tradição no ensino musical estaria sendo
deixada de lado pela “direção da escola”:

100
Fonte: Carta Manifesto contrário a Joanídia Sodré ao Exmo. Presidente da República. Rio de Janeiro, 3
dez. 1954. Biblioteca Alberto Nepomuceno. Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
101
É uma instituição francesa de 1795 que reúne as cinco grandes academias francesas: L' Académie
Française, L'Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, L'Académie des Sciences, L'Académie des
Beaux-Arts, L'Académie des Sciences Morales et Politiques. Fonte: Institut de France. Disponível em:
http://www.institut-de-france.fr. Acessado em 2 ago. 2010.
96

“No quadro das nossas atividades culturais tem a música importância


relevante, constituindo uma das artes cujo exercício, no duplo sentido
de criação e interpretação, mais nos elevam no conceito dos demais
povos cultos. Nossos compositores e intérpretes são o fruto que
condensa, já em alto plano estético, a seiva musical da nacionalidade,
que nutre as belas expressões do nosso folclore e as vocações
artísticas que brotam, de norte a sul do país. Esse quadro adquire
nítida significação cultural na medida em que o dom da natureza é
aproveitado pela aprendizagem bem conduzida da profissão de
músico. Na evolução histórica de nossa música há, de fato, um ponto
decisivo, quando Francisco Manuel da Silva, o autor do hino
Nacional, funda em 1833, a Sociedade de Beneficência Musical, que
D. Pedro II transforma, em 1848, no Conservatório Imperial de
Música do Rio de Janeiro. Daí se origina o tradicional instituto, em
cuja direção passam vultos ilustres, como Leopoldo Miguéz e
Alberto Nepomuceno, e que vem transformar-se na atual Escola
Nacional de Música da Universidade do Brasil. Os músicos
brasileiros que assinam este manifesto, Exmo. Presidente da
República, compositores, intérpretes e críticos, se vêem na
contingência de trazê-lo a Vossa Excelência, movidos por justificado e
incoercível ímpeto de protesto, contra o desprezo, já público e notório,
que a direção da Escola Nacional de Música vota às
responsabilidades pedagógicas do estabelecimento, que defluindo de
suas nobres tradições relembradas acima, só deveriam alargar-se,
presentemente. Na sua alarmante decadência, entretanto,
caracterizada inclusive pela deturpação das finalidades normais de
ensino e cultura, para servir a interesses mesquinhos e escusos, a
Escola Nacional de Música exige, de fato, perante o supremo
magistrado da Nação, este pronunciamento nosso.” [grifos meus]102

O recurso ao passado histórico para afirmar o ensino como tradição do


estabelecimento, também faz menção a uma tradição “masculina” na direção da escola,
pelo resgate das figuras de Alberto Nepomuceno e Leopoldo Miguéz, acentuando a
ruptura com o passado e associando a “decadência” atual à direção de Joanídia.
No trecho seguinte, em que as acusações à administração da musicista são
apresentadas, manifesta-se o conflito entre o feminino e o masculino na construção de
uma imagem essencialmente ambígua sobre a diretora:

“(...) É que, de há muito, conforme a própria imprensa da capital do


país tem, assiduamente, refletido, o diretor da Escola Nacional de
Música, professora Joanídia Sodré, cujo alto posto galgou, com
surpresa geral, em 1945, estabelece suas relações administrativas com

102
Fonte: Carta Manifesto contrário a Joanídia Sodré ao Exmo. Presidente da República. Rio de Janeiro, 3
dez. 1954. Biblioteca Alberto Nepomuceno. Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
97

o corpo docente do estabelecimento na base exclusiva da troca de


favores. Se determinado professor se mostra disposto a apoiar o
diretor em quaisquer medidas, sejam embora as mais nocivas,
pedagógica e artisticamente - si esse professor, principalmente,
empenha o seu voto para a reeleição do diretor, então o diretor, por
sua vez, o apóia. Esse processo, Exmo. Sr. Dr. Café Filho, levou a
suscitar-se, na Congregação da Escola Nacional de Música, uma
corrente majoritária que cerca a professora Joanídia Sodré,
conduzindo-a a reeleições sucessivas, conforme ainda há pouco
ocorreu; corrente não apenas de professores que se sentem forçados a
pactuar, pela força das circunstâncias, com o situacionismo
dominante. Assim chegou a estabelecer-se o incontestável arbítrio da
professora Joanídia Sodré em nosso estabelecimento padrão de
ensino musical universitário. Seu aspecto mais deprimente reveste
conseqüências lamentáveis, a um tempo, educacionais e artísticas. É a
imposição que, no uso caprichoso e soberano de todos os meios de
prestígio e influência de que dispõe a Escola Nacional de Música, faz
o diretor da casa de ensino, de um autor de músicas, cuja
capacidade técnica é absolutamente negada pelos signatários deste
documento. Desconhecido, anônimo, esse autor de submúsica
surgiu no meio musical brasileiro, lançado em nosso conservatório
oficial por obra e graça da senhora Joanídia Sodré. E não se
contentou o diretor do estabelecimento em torná-lo o mais executado,
dentre os compositores nacionais que figuram nos programas oficiais
da escola, nem em conceder-lhe o maior destaque, na Exposição
comemorativa, há alguns anos, do centenário do estabelecimento.
Logo, de fato, com genuíno escândalo de professores, críticos e
artistas, passaram aquelas músicas, assinadas por Carlos Anes, a
figurar nos próprios programas de ensino, em muito maior número do
que as de compositores brasileiros consagrados (...)”103 [grifos
meus]

Segundo eles, a diretora, mediante “troca de favores” com alguns professores e


coação a outros, conseguiu formar um grupo “majoritário” na congregação da escola
visando perpetuar-se na direção. Além disso, teria usado o prestígio da escola e a
influência de que dispunha para promover e impor nos programas de ensino as obras de
Carlos Anes, compositor desconhecido e que não possuía “capacidade técnica”.
Numa primeira leitura, observamos que Joanídia é tratada de modo ambíguo. Em
nenhum momento o texto se refere a ela como a diretora, mas sempre como “o diretor”.
Denota-se aí a dificuldade em conceber uma mulher exercendo esta função “masculina”,
em oposição à profissão de professora, mais condizente com as funções “femininas” de
ensinar, cuidar e assistir (PERROT, 2005, p.285). Conforme visto, a mesma questão
aparece na avaliação dos críticos sobre a regência de Joanídia: é mais fácil compreendê-
la como professora.

103
Fonte: Idem.
98

A confusão provocada pela presença de uma mulher na direção da escola torna-


se mais gritante quando notamos que ela é acusada de ter uma conduta ao mesmo tempo
“masculina” e “feminina”. Isto é, de uma só vez ela é “soberana” e “caprichosa”. Quer
dizer, é criticada por utilizar artifícios do universo “masculino” da política – troca de
favores, conchavos, coação, favorecimento de amigos – todos os sinais inequívocos de
“virilidade”, e incongruentes, não com a função de diretor104, mas com o
comportamento “feminino” de “agradar” e “seduzir”, duas habilidades fundamentais
para uma boa esposa. (CARVALHO, 2008 p. 240). Além disso, a promoção de Carlos
Anes não é compreendida como inserida na lógica das disputas do campo, ao contrário,
é considerada uma extravagância “feminina”.
Parece curioso que em uma carta dirigida ao presidente Café Filho – que tinha
acabado de assumir em razão do suicídio de Getúlio Vargas – cujo objetivo é pedir a
saída de uma diretora eleita, se dê tanta importância ao favorecimento de um compositor
“anônimo”, como eles próprios afirmam. De fato, nas acusações não encontramos
nenhuma crítica direta às mudanças ou atos de Joanídia no período. A queixa dos
signatários se refere ao profundo incômodo causado pelo relacionamento amoroso entre
a diretora da Escola de Música, Joanídia (então com 51 anos), com Carlos Anes,
engenheiro e funcionário do Ministério da Aeronáutica, oito anos mais novo que ela. A
assimetria de poder e de idade não passou incólume aos seus opositores, alunos e
professores da escola.
Carlos Anes Martins Teixeira nasceu na cidade Rio de Janeiro em 1911, tendo
começado a estudar música na infância. Foi aluno da Escola de Artes e Ofícios
Wencesláu Braz, mas quando estava prestes a se formar abandonou o curso de violino
para encontrar os pais que estavam na cidade do Porto, em Portugal, onde tocou violino
na Orquestra Estudantil Almeida Garrett. Regressou ao Brasil em 1933, e em 1940,
formou-se no curso de Engenharia Civil na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.
(CACCIATORE, 2005, p. 435).
Segundo Nirenberg (2009), Joanídia apoiou incondicionalmente sua carreira de
compositor, sempre incluindo uma composição dele nos concertos que regia na escola e
fora dela, o que foi condenado pelos executantes da orquestra. Outra atitude que
desagradou a todos, foi a inclusão das obras de Anes nos eventos comemorativos do

104
Lembremos, por exemplo, a figura de Leopoldo Miguéz, outro diretor tão contradito quanto ela pela
sua atuação “ditatorial” (Pereira 2007, p. 69), mas cujos méritos administrativos são referendados até hoje
pela historiografia musical.
99

Centenário da Escola e em outras atividades artísticas promovidas pela instituição,


como a “1º Exposição de Música Erudita de Compositores Brasileiros e de música
folclórica”, organizada em 1949.
Entretanto, Joanídia parecia não se importar. Aliás, nunca fez questão de
esconder esse relacionamento – registrado em fotos de época a partir de 1949 – que não
sabemos ao certo como e nem quando começou. O fato é que Joanídia aparece sempre
acompanhada do pai e de Carlos Anes nos eventos realizados na Escola. Há, inclusive,
uma viagem que fizeram juntos para o Paraná, noticiada pelos jornais de Curitiba, e para
Portugal em 1953. Nirenberg (2009) ao falar sobre o relacionamento entre Joanídia e
Carlos Anes, confirma o apoio de Joanídia a despeito da qualidade duvidosa das obras
de Anes, referindo-se a ele como “o engenheiro que fazia composições”:

“Joanídia ficou noiva. Se apaixonou por um engenheiro, Carlos Anes,


e esse engenheiro fazia composições. E ela não perdia tempo, você
sabe, a paixão fala tudo! Ela pegou as composições, com valor ou
sem valor, e tocava na orquestra. Nessa época, já foi feita a
orquestra, a Orquestra da Escola de Música. E aí, ela colocava as
músicas [no programa de concerto]. Eu fiz parte da orquestra até e
isso foi muito mal criticado. (...) E quando se apaixonaram tinha esse
problema (...) Durou pouco, infelizmente, não chegou nem a consumar
o ato de casamento, nada. Eu acho que, pra mim, era mais um amor
platônico, sabe. Não era nem, nem verdadeiramente o amor. (...) Mas
ela tinha uma vida assim, um pouquinho, não digo mórbida não,
mas era uma vida, assim, triste, sabe. E quando teve noivo, ela
brilhou um pouco.” [grifos meus] 105

Carlos Anes faleceu abruptamente em 1959, vitimado por um tumor no cérebro.


Em suas palavras, Nirenberg deixa entrever, de um lado, que havia um problema no
relacionamento, para além do problema de saúde do músico, atribuído talvez à
disparidade profissional ou à diferença de idade existente entre eles. Nossa hipótese é de
que a diferença de idade e a imagem de certo modo andrógina de Joanídia (o “diretor”)
colocavam o relacionamento sob suspeita.
Mais uma vez, Joanídia não se intimidou diante dos opositores e em 10 de
dezembro de 1954, O Jornal publica sua resposta às acusações:

105
Fonte: Nirenberg, Jacques. Entrevista concedida a Dalila Vasconcellos de Carvalho. Rio de Janeiro, 20
nov. 2009.
100

“Nunca na escola de música foram executadas tantas obras de


compositores brasileiros como agora. Entre outros, posso citar de
momento, J. Octaviano, Assis Republicano, Domingues Raimundo,
Newton Pádua, José Siqueira, Djalma Guimarães, Batista Siqueira,
Virginia Fiúza e Carlos Almeida. Cujas obras, nas administrações
anteriores, eram legadas às estantes em benefício da exclusividade de
execução das obras de Villa-Lobos e Camargo Guarnieri. É por essa
razão que minha administração tem desgostado a esses compositores,
cujas obras, porém, convém ressaltar, nunca foram excluídas do
repertório da Escola, como acontece nos setores em que atuam os
signatários do memorial em relação aos demais compositores
brasileiros que não fazem parte de seu diminuto grupo. (...) Repito
agora pelas colunas de O Jornal o convite que já fiz aos
signatários do memorial. Prestem concurso, ingressem no corpo
docente da Escola Nacional de Música e venham, então,
legalmente, opinar sobre a sua vida.” [grifos meus] 106.

Em 12 de dezembro, os professores catedráticos da Escola se manifestaram em


defesa da diretora, escrevendo uma carta que, em tom acusatório, mostra como Villa-
Lobos ocupava, nessa época, uma posição central no cenário da música “erudita”
carioca, interferindo nela por meio das instituições que tinha sob o seu comando:

“É curioso também que pessoas como o seu H. Villa-Lobos encabece


assinaturas de protesto contra a continuação da atual direção na escola
de música, quando ele próprio é diretor, desde a fundação do
Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, cargo que ocupa sem
possuir qualquer título oficial de música ou mesmo de
humanidade, o que é ilegal. Cumpre notar também que a maioria das
assinaturas do manifesto em tela pertence a pessoas que ascenderam à
Academia Brasileira de Música sem jamais terem dado provas de
mérito e apenas porque formam ao lado do Sr. Villa-Lobos, seu
idealizador, criador e senhor onipotente que distribuiu as cadeiras
da imortalidade a seu “bel prazer”, sem nenhum processo que
estabelecesse pela seleção o valor dos seus ocupantes - isto sim é caso
para uma sindicância.” [grifos meus] 107

Uma leitura desatenta deste conflito pode levar a pensar que se trata apenas de
compositores ofendidos em sua vaidade, preteridos pela diretora em favor de um
compositor menor. Porém, estamos diante de um embate pela hegemonia no campo
musical, no qual Joanídia ocupa uma posição privilegiada do ponto de vista

106
Fonte: “Façam concurso e ingressem na congregação da escola, se querem influir na sua vida.” O
Jornal, Rio de Janeiro, 10 dez. 1954. Biblioteca Alberto Nepomuceno. Escola de Música da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
107
Fonte: Abaixo-assinado em defesa de Joanídia dos professores da Escola Nacional de Música. Rio de
Janeiro, 12 dez. 1954. Ibidem.
101

institucional, subvertendo a ordem entre os papéis masculinos e femininos. O conflito


entre Joanídia e Villa-Lobos define os termos de uma disputa entre instituições em
confronto: de um lado, a instituição do establishment musical e seus cargos públicos,
ocupados por um seleto grupo de professores, nem sempre bem sucedidos do ponto de
vista do renome artístico; de outro, a Academia Brasileira de Música, formada por
artistas que, como Villa-Lobos, “se fizeram sozinhos”, isto é, por meio do mecenato e
das suas redes sociais, agora, formalizadas pela academia, e que mesmo tendo
conquistado o reconhecimento, não tinham um lugar garantido na Escola de Música.
Não por acaso a disputa traz à tona a questão do diploma: ter ou não uma
formação musical acadêmica para a construção da carreira. O diploma não é
fundamental para a conquista do renome, a própria trajetória de Villa-Lobos demonstra
isso. Entretanto, receber um diploma não é um ato formal sem importância, ao
contrário, é uma forma de consagração que separa, por toda vida, os diplomados dos
não diplomados. Na disputa entre Villa-Lobos e Joanídia, podemos observar que o
primeiro conquistou o renome como compositor “erudito”, enquanto ela conquistou
postos “masculinos” como a composição, a regência e a direção da escola, submetendo-
se a provas e concursos, isto é, ao jogo institucional em que diplomas e prêmios são os
principais trunfos, algo que Villa-Lobos nunca fez, não por incapacidade,
evidentemente, mas por ter alcançado o prestígio e a consagração que tanto desejava por
outro caminho. Muito mais que sancionar uma competência técnica, o diploma expressa
uma competência social que consagra, por intermédio da escola, uma diferença social
preexistente (BOURDIEU, 1996, p. 38).
A imagem controversa de Joanídia vai se formando e se fortalecendo à medida
que ela passa a concorrer aos prêmios e cargos de poder, conseguindo-os efetivamente.
Sua trajetória transcorre assim equilibrada entre os êxitos e a contestação pública de
cada uma de suas conquistas. O que de fato a disputa implicada em todas estas
polêmicas parece colocar em jogo é a posição ambígua de Joanídia, ambígua por
desarrumar os modelos normativos de gênero em torno das atividades musicais, atuando
em atividades “masculinas” por excelência.
102

CAPÍTULO 3: COMPOR E ESCREVER: DUAS FACES DE HELZA

CAMÊU

“Eu tenho a agradecer ao Museu da Imagem do Som, agradecer


aos presentes que tiveram a bondade de vir até aqui para que eu
dissesse alguma coisa da minha vida tão modesta, tão apagada,
mas vivida com muita sinceridade, e eu a todos agradeço de
coração.”108

As palavras acima revelam a imagem que Helza Camêu fazia de si: considerava-
se uma compositora fracassada. Se, no capítulo anterior, o perfil da maestrina Joanídia
Sodré foi construído a partir das imagens projetadas sobre ela, neste capítulo é a auto-
imagem de Helza que orienta a análise. Este sentimento é reiterado em um conjunto de
fontes em que ela fala sobre si mesma: nas duas entrevistas que concedeu, nas suas
correspondências, na análise que fez sobre a trajetória de Bidu Sayão e Guiomar
Novaes.
Helza desempenhou vários papéis: pianista, compositora e musicóloga tendo
sido premiada em todos eles. Conquistou a medalha de ouro em piano em 1920 no INM,
foi premiada como compositora duas vezes em 1936 e 1943 e, por fim, em 1977, seu
livro Introdução ao Estudo da Música Indígena Brasileira recebeu o Prêmio Especial
da Caixa Econômica Federal, conferido à melhor interpretação da cultura brasileira.
Assim, podemos dizer que ela era uma artista multifacetada que foi capaz de
tocar, compor e escrever, produzindo uma obra profícua. Curiosamente, porém, Helza
em nenhum momento valoriza seu perfil múltiplo e “masculino”, ao contrário, vê na
diversidade das atividades que realizou o sinal do fracasso como compositora. Neste
sentido, pretendemos compreender sua própria noção de “fracasso” analisando as
inúmeras direções e sentidos que constituem seu percurso singular entre o ofício
musical e a pesquisa musicológica, entre a prática musical e a escrita. Começando pelo
seu interesse musical, o modo como este foi acolhido no ambiente familiar –
principalmente pelo pai; por que motivos Helza desistiu da carreira de pianista; as

108
Camêu, Helza. Depoimento à posteridade. Rio de Janeiro, 16 mar. 1977. Museu da Imagem e do Som
do Rio de Janeiro.
103

razões da opção pela composição e os caminhos que a levaram à pesquisa sobre a


música indígena.
Ao contrário do acervo de Joanídia Sodré, cujas fontes se restringem à vida
pública e profissional da maestrina, o material utilizado para a construção do perfil de
Helza Camêu ofereceu uma visão mais equilibrada entre vida íntima e profissional,
entre as imagens projetadas sobre ela e aquela construída sobre si mesma. Além dos
recortes de jornal, fotos, programas de concerto, partituras e cadernos de música,
examinamos: as cartas, entrevistas e dois manuscritos.
Entre as cartas, destacamos a correspondência da compositora com Mário de
Andrade em 1937; com sua primeira professora, Paula Ballariny (entre 1937 e 1942);
com o compositor Lorenzo Fernandez, em 1946 e, por fim, com o crítico musical
Andrade Muricy, em 1961. A primeira entrevista foi concedida para o projeto do Museu
da Imagem e do Som do Rio de Janeiro denominado Depoimento para Posteridade,
gravado em 16 de março de 1977. Trata-se de um programa do museu que, desde 1966,
convida personalidades dos mais diversos setores culturais (música, teatro, cinema, artes
plásticas etc.) para gravar em áudio ou vídeo um depoimento109. A segunda entrevista
foi concedida a Lauro Gomes em 1991 no programa Música e Músicos do Brasil da
Rádio MEC. Helza escreveu muito ao longo da vida, preparando textos para programas
de rádio ou para as palestras que ministrava; no interior destes, encontram-se dois
manuscritos da década de 1960 sobre as artistas Bidu Sayão e Guiomar Novaes.

3.1. ESTRÉIA ÀS AVESSAS

Helza de Cordoville Camêu nasceu no Rio Comprido, bairro da zona norte da


cidade do Rio de Janeiro, em 28 de março de 1903, quinta dos seis filhos do casal
Francolino Camêu e Corinthya de Cordoville Camêu: os dois primeiros, Milton e
Agenor, morreram ainda pequenos; depois nasceram Graziela (1898), Francolino
(1901), Helza e por fim, Nilton (1905). Francolino e Nilton faleceram logo em seguida,
vitimados por epidemias que assolavam o Rio de Janeiro na época, como a febre

109
Helza Camêu foi entrevistada por Aloysio de Alencar Pinto (pianista, compositor, folclorista);
Mercedes Reis Pequeno (professora e bibliotecária); Cleofe Person de Matos (musicóloga, regente de
coral e professora); Maria Sylvia Pinto (cantora e principal intérprete da compositora); Eurico Nogueira
França (crítico e musicólogo); Adhemar Alves Nóbrega (musicólogo)e por João Vicente Salgueiro,
diretor do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
104

amarela (DUTRA, 2001, p.8). Em 1910, Graziela faleceu aos 12 anos de idade. Helza
tornou-se assim filha única tendo toda a atenção dos pais voltada para si.
Se os primeiros anos de sua infância foram marcados pelo sofrimento gerado
pela perda dos cinco irmãos, eles significaram também a descoberta da música. Helza
guarda muitas recordações dessa fase, como revela em carta escrita a Andrade Muricy
em 1961. Foi observando as aulas de piano da irmã mais velha, Graziela, que ela se
interessou pelo piano, iniciando-se no instrumento aos sete anos, com a mesma
professora da irmã, a alemã Paula Ballariny.

“Eu comecei a estudar música de verdade com sete anos. Eu tocava de


ouvido (...) desde os dois anos. Batia no piano e atrapalhava minha
irmã que estudava, nessa ocasião, já com seriedade, já fazia uma coisa
muito boa com a Paula Ballariny, uma senhora alemã, casada com
brasileiro.”110

Muito provavelmente, as meninas foram incentivadas pela mãe, que tocava


piano “de ouvido” e gostava de música “popular”, embora este gênero não fizesse parte
dos estudos de Helza, o que parece significativo. Na entrevista que concedeu à série
Depoimentos à posteridade, em 1977, o musicólogo Ademar Alves Nóbrega perguntou
se Helza não sentiu vontade de compor ou tocar no “gênero” de Chiquinha Gonzaga,
então no auge do seu sucesso. Na resposta de Helza, podemos observar como os termos
“música brasileira” ou “música popular” denominavam uma expressão musical
desvalorizada pelos “professores de música”. As partituras chegavam à sua casa por
meio do gosto musical da mãe, que as adquiria:

“Ademar Alves Nóbrega: Quando você começou a estudar, a glória de


Chiquinha Gonzaga era uma coisa palpitante e atual ainda. Você não
se sentiu tentada a fazer música naquele gênero ou pelo menos tocá-
la?

Helza Camêu: Ademar, na minha época, sobre esse ponto de música


brasileira, foi muito sacrificada. Porque os professores estavam
imbuídos de uma superioridade. Alguma coisa fora do comum. De
maneira que [eles] achavam que a música popular estragava o gosto
do aluno. Se eu conheci música de Nazareth, se eu conheci um
pouquinho de música popular [foi] graças a minha mãe. Porque ela

110
Fonte: Camêu, Helza. Depoimento à posteridade. Rio de Janeiro, 16 mar. 1977. Museu da Imagem e
do Som do Rio de Janeiro.
105

gostava. Havia nesse tempo cidadãos que vendiam música na rua,


então ela comprava.” [grifos meus]111

O pai Francolino, por sua vez, trabalhou no serviço de taquigrafia do Senado.


Chegou ao cargo de diretor e exerceu o magistério por vinte e cinco anos como
professor de taquigrafia. Atuou também como jornalista e publicou, ainda, obras de sua
autoria112, que foram doadas ao Arquivo Nacional113. Com isso, ele garantiu
estabilidade financeira e boa posição social para a família. Segundo Helza, seu pai
também gostava muito de música, tendo contribuído para a formação do gosto musical
da compositora:

“Em casa, meu pai gostava muito de música, tinha uma pianola, só
tinha peças clássicas, de criança, ouvia Beethoven, Mendelssohn,
Sonho de uma noite de verão. Dormia ouvindo Sonho de uma noite de
verão! (...) Ah! Mas tinha A Sertaneja! Interessante! (...) Mais fora
disto, o que eu me habituei a ouvir foi isso.”114

É interessante notar que, se Francolino e Corinthya eram dois apreciadores de


música, foi o gosto musical paterno que prevaleceu na formação de Helza, bem como o
gosto pela escrita. De todo o modo foi a mãe, pianista amadora, a grande incentivadora
da carreira profissional de Helza, intercedendo junto ao marido que se opunha à carreira
musical por acreditar que uma “moça de família não deveria trabalhar”.
Em 1919, Helza foi levada pela professora Paula para ter aulas particulares com
Alberto Nepomuceno, o compositor e professor de piano do Instituto Nacional de
Música (INM), que lhe despertou profunda admiração, como reconhece em 1991:

“Foi ela [Paula Ballariny] que me levou porque eu não comecei a


estudar com Alberto Nepomuceno, mas com [Henrique] Oswald. Mas
ela tinha admiração pelo Nepomuceno e levou-me até o professor. E
eu também fiquei encantada por ele. Era um velho admirável né, um
homem fino, um homem inteligente, sabia animar o aluno.” 115

111
Fonte: Idem.
112
As obras de Francolino não foram consultadas.
113
Fonte: Correia, Julieta. Manuscrito. Rio de Janeiro, 2 de abr. 2000.
114
Fonte: Camêu, Helza. Depoimento à posteridade. Rio de Janeiro, 16 mar. 1977. Museu da Imagem e
do Som do Rio de Janeiro.
115
Fonte: Camêu, Helza. Entrevista à Lauro Gomes na Rádio MEC. Rio de Janeiro, 1991.(cópia cedida
pela pesquisadora Luciana Dutra).
106

Helza, que já havia concluído seus estudos regulares no colégio Pedro II,
instituição de ensino prestigiada na época, ingressou, em 1920, no Instituto Nacional de
Música para obter o diploma. Devido às aulas particulares que fizera desde 1910, em
apenas um ano se formou na instituição, não precisando cursar os nove anos exigidos
para o curso de piano. Com a morte de Alberto Nepomuceno, assumiu a classe de piano
João Nunes (1877-1951)116. No trecho abaixo, podemos observar como a relação entre
professor e aluno nem sempre se estabelece de maneira fácil, exigindo um esforço de
adaptação de ambos os lados; mas, ao começo difícil, seguiu-se uma relação de
cumplicidade:

“Eu já escrevi sobre isso e foi um pouquinho penoso para mim porque
eu senti o choque entre os dois temperamentos. O Nepomuceno era
uma criatura extremamente extrovertida, muito, como dizer, muito
animado, muito (...). O outro [João Nunes] era o contrário, uma
criatura muito retraída, ele deixava sempre uma grande diferença entre
o aluno e ele, de maneira que eu senti esse choque muito grande. (...)
Você sentia que não havia aquela aproximação do professor e aluno,
não havia. Havia uma grande distância. Felizmente, eu fui muito feliz
até o final do ano porque depois, ele modificou-se, mas na hora, eu
senti essa diferença que foi muito brusca, a diferença entre os dois,
porque o Nepomuceno era uma criatura que dava sua personalidade,
seu entusiasmo, o outro, guardava muito e fazia sempre muita
restrição e nem sempre oportunamente. Infelizmente, eu sou obrigada
a dizer isso porque eu não gosto de dividir o que eu não sinto.”117

No final de 1920, Helza passou pelos exames finais com distinção, sendo por
isso convidada a participar do concurso a prêmio promovido pelo INM para os melhores
alunos de flauta, violino, canto, harpa e piano. Para cada instrumento havia uma banca
de jurados e um repertório exigido. O júri de piano foi composto entre outros, por Oscar
Guanabarino (1851-1937), crítico musical do Jornal do Comercio, pelo professor
Francisco Braga (1868-1945), e pelo pianista e compositor Ernani Braga (1888-1948).
Uma análise detida do programa do concurso mostra que somente no piano há
alunos concorrendo ao prêmio. Na flauta, no violino, no canto e na harpa, apenas
alunas, o que indica uma maioria de mulheres. Helza concorreu com 11 candidatos: três
homens e nove mulheres. Curiosamente, para o piano há uma distinção entre alunos e

116
Fonte: Camêu, Helza. Depoimento à posteridade. Rio de Janeiro, 16 mar. 1977. Museu da Imagem e
do Som do Rio de Janeiro.
117
Fonte: Idem.
107

alunas, isto é, exige-se uma peça diferente para cada grupo. Para as moças, a Balada
op.24 de Grieg e para os rapazes, Variações Sérias op. 54 de Mendelssohn.
Não era um recurso para avaliar alunos em níveis diferentes já que as duas obras
faziam parte do repertório exigido para alunos do último ano do curso de piano do INM.
Então, por que avaliar homens e mulheres separadamente? Como vimos no capítulo
anterior, a percepção do ato de tocar é indissociável da apreensão do corpo e do
instrumento (objeto), logo que o pianista, ao tocar, performatiza expectativas diversas
sobre o “feminino” e o “masculino”.
Agraciada com a medalha de ouro, Helza podia concorrer à bolsa de estudos no
exterior, também concedida pelo Instituto Nacional de Música: o sonho e a ambição de
muitos musicistas, como discutimos no primeiro capítulo. Entretanto, ela nem sequer
cogitou a possibilidade em função de sua família:

“Filha única e pais doentes. Eu nunca tinha a liberdade de fazer certas


coisas. Filha única de sete, o senhor pode imaginar que todo o carinho,
toda atenção, era focalizado só sobre mim. De modo que isso tolhia
muito, mas demais mesmo, né. De modo que eu não podia pensar que
eu ia pra Europa. Eles ficavam doidos ou então, tinha que ir a família
toda, né! Não é possível!”118

O excesso de zelo dos pais, conseqüência da morte de cinco filhos, somado às


restrições impostas pelo pai à filha mulher, são os principais obstáculos às pretensões
artísticas da pianista. E é, portanto, nas brechas destas limitações que Helza vai
construindo um caminho sinuoso no processo constante de definição e redefinição de
suas ambições profissionais. Se viajar para Europa parece um sonho impossível, seguir
a carreira como intérprete no Brasil parecia algo factível, como visto no primeiro
capítulo: nesta época a carreira de intérprete- pianista fazia parte do horizonte das
mulheres, sobretudo daquelas que dominavam certo repertório “clássico”, como era o
caso das alunas do INM. Assim sendo, já no ano seguinte à sua formatura, estimulada
pelo prêmio, prosseguiu os estudos de piano com João Nunes e continuou investindo em
sua formação musical, dando início aos estudos particulares de harmonia com o
professor Agnello França (1875-1964).
Em 1922, Helza teve sua primeira e fugaz experiência como professora: João
Nunes convida-a para ser sua assistente no colégio Sacré-Cœur, onde dava aulas de

118
Fonte: Idem.
108

música. Este fato marca o início da luta que travaria com o pai para seguir sua carreira
profissional. Francolino não queria que a filha trabalhasse, mas permitiu que aceitasse o
emprego desde que ele fosse levá-la e buscá-la diariamente na porta do colégio, atitude
que desagradava profundamente a jovem professora (DUTRA, 2001, p.15).
Entre a formatura no INM e o primeiro recital de piano, foram três anos de
estudos. João Nunes prepara-a para o primeiro recital, vislumbrando uma carreira de
intérprete-pianista para a pupila. A confiança do mestre na qualidade e na competência
de Helza pode ser observada no exame detalhado do programa de audição de suas cinco
alunas de piano, realizada em 22 de agosto de 1923, no Salão Nobre do INM. O nome
de Helza é destacado no programa pela seguinte informação: “1º prêmio de piano do
Instituto Nacional de Música”. Helza encerrou o programa tocando parte do repertório
que então preparava para o seu concerto solo, executando, inclusive, a peça
Marionnettes, composta por João Nunes e a ela dedicada. Além disso, Helza executou
uma peça considerada extremamente difícil: São Francisco de Paula caminhando sobre
as ondas de Liszt, executada em geral por virtuoses.
Seu primeiro concerto realiza-se dois meses depois, em 24 de outubro. O crítico
Oscar Guanabarino anunciou o evento no Jornal do Comercio:

“Concerto – Na sala do Instituto Nacional de Música realiza-se hoje,


ás 9 horas da noite, o primeiro recital de piano da senhora Helza
Camêu, com o seguinte programa:

1º. Parte: Chopin, Sonata, op. 58, “Alegro majestoso”, “Scherzo”,


“Largo” e “Final”; Chopin, “Estudo, op. 25, n.12”, “Noturno, op. 27,
n.1” e “Scherzo, op. 31”.

2º Parte: Schumann, “12 Estudos Sinfônicos”.

3º Parte: Villa-Lobos, “O Ginete de Pierrozinho” e “Polichinelo”,


John Ireland “The Island Spell”; João Nunes “Marionnette”, Debussy,
“L’isle joyeuse”, Liszt, “Rapsódia n.12”.” 119

Helza se apresenta publicamente pela primeira vez, tocando peças já “clássicas”


no repertório dos concertistas: os compositores românticos Chopin, Liszt, Schumann,
que exploram o virtuosismo e a expressividade do piano, ao lado de peças de autores
contemporâneos, como o compositor inglês John Ireland (1879-1962) e dos

119
Guanabarino, Oscar. “Teatros e Música”. Jornal do Comercio. Rio de Janeiro, 24 out. 1923. Divisão
de Música e Arquivo Sonoro, Fundação Biblioteca Nacional.
109

compositores brasileiros João Nunes, então seu professor, e Heitor Villa-Lobos. É


interessante ressaltar que a terceira e última parte do programa é marcada pela escolha
de três compositores diferentes cujas peças mostram uma inspiração no impressionismo
francês, sobretudo em Debussy. Tanto Marionnette de João Nunes quanto Polichinelo
de Villa-Lobos foram compostas sob inspiração da concepção de Children’s corner de
Debussy (GUÉRIOS, 2003; AZEVEDO, 1950). Outro detalhe importante: O Ginete de
Pierrozinho foi executado pelo pianista Ernani Braga na Semana de 1922, indicando
que Helza e João Nunes estavam atentos às novidades da época.
Em 1961, escrevendo a Andrade Muricy sobre sua carreira, Helza se referiu ao
seu primeiro e único concerto. Embora as críticas musicais sobre sua apresentação
tenham sido, em sua maioria, positivas, como a própria compositora ressalta, Helza
desistiu de ser uma concertista atribuindo o ocorrido ao seu “temperamento nervoso” e a
“uma série de contratempos”, sem especificar que acontecimentos foram esses:

“Em 1923, apresentei-me como pianista sendo bem recebida pela


crítica, com exceção de Guanabarino que me fez sérias restrições
baseadas em informações (Folhetim de J. do Comercio). Continuei os
estudos com João Nunes durante bastante tempo parecendo que o
professor reconhecia em mim algum merecimento, no entanto, tudo
fracassou, concorrendo para isso o [meu] temperamento nervoso
aliado a uma série de contratempos suficientes para desanimar. E
com isso, ficou encerrada uma experiência que hoje posso afirmar
poderia ter sido continuada com bastante margem.” [grifos meus] 120

É interessante lembrar que Helza, aos 17 anos já havia passado (e bem) por uma
situação de igual ou maior grau de exigência, em que se apresentou em público,
concorrendo com outros candidatos e sob o julgamento de jurados: o concurso para
medalha de ouro em piano do Instituto Nacional de Música, em 1920. Na época, o
próprio Oscar Guanabarino concedeu-lhe o voto para medalha de ouro.
Em uma entrevista concedida por ela a Lauro Gomes em 1991, Helza fala mais
uma vez sobre estréia, mas agora, fazendo uma comparação entre as duas situações
dando novas pistas para compreender sua desistência:

“Foi o primeiro e último! (...) Porque eu nunca me senti bem com o


público. Na minha carreira de pianista, digamos, eu só me senti muito
bem uma vez: o concurso a prêmio [1920]. Me senti bem aquele dia,

120
Fonte: Camêu, H. [Carta] 27 fev. 1961, Rio de Janeiro [para] Muricy, A. Rio de Janeiro. Ibidem.
110

eu estava feliz! Mas quando me vi diante de uma público para


concerto..., não era meu temperamento.” [grifos meus]121

Enquanto na carta escrita em 1961, a compositora diz que desistiu da carreira de


pianista em razão do seu “temperamento nervoso” e dos “contratempos” referindo-se,
provavelmente, aos conflitos com o pai, na segunda entrevista de 1991, ela revela que
seu “temperamento nervoso” estava associado ao fato de não se sentir bem em público.
O pudor ou o recato, um aspecto da socialização feminina, tornou-se um empecilho para
muitas candidatas à carreira de concertista. Vale lembrar o caso da pianista Antonietta
Rudge, citado no primeiro capítulo. Se o decoro “feminino” retirou-a do palco, não a fez
desistir definitivamente da carreira musical; ao invés de realizar-se como pianista, como
muitas mulheres de sua geração, decidiu se arriscar na composição, uma opção
“masculina”.
Helza já compunha nessa época, mas “não sabia direito se era aquilo” que
queria; sentia que “faltava alguma coisa”122. Fez sua primeira composição aos 14 anos,
escolheu um poema da escritora paulista Ilka Maia (1906-1988) para compor uma
canção que dedicou à mãe (DUTRA, 2001, p. 12). A partir de 1926, a pianista começa a
investir na formação de compositora. Iniciou as aulas particulares de contraponto e fuga
com Francisco Braga, mas, em razão da enfermidade deste, estuda composição com
Assis Republicano (1897-1960) e, depois do primeiro concerto em 1934, com Lorenzo
Fernandez (1897-1948)123.

3.2. COMPOR: “O ALVO VISADO”

Para o primeiro concerto, de 1934, no salão do Instituto Nacional de Música,


Helza fez uma seleção das primeiras músicas que compôs antes dos estudos que
realizou:

121
Fonte: Camêu, Helza. Entrevista à Lauro Gomes na Rádio MEC. Rio de Janeiro, 1991.(cópia cedida
pela pesquisadora Luciana Dutra).
122
Fonte: Camêu, Helza. Entrevista à Lauro Gomes na Rádio MEC. Rio de Janeiro, 1991.(cópia cedida
pela pesquisadora Luciana Dutra).
123
Completam os estudos particulares, o curso de história da música com Octavio Bevilacqua (1887-
1965), o de técnica do violoncelo com Newton Pádua (1894-1966) e de o técnica do violino com Paula
Ballariny. Fonte: Muricy, Andrade. Ficha dos Acadêmicos: Helza Camêu. Jornal do Comercio. Rio de
Janeiro, 1961. Academia Brasileira de Música.
111

“Eu já trabalhava um pouquinho, mas sem orientação propriamente


né. Depois, arvorei-me a escrever. Fiz assim, uma espécie de seleção
do que eu tinha, umas coisas eu destruí e dei um concerto. (...) Aí eu
convidei Lorenzo Fernandez para o concerto e ele foi e a crítica que
ele fez, (...), eu vi que ele estava com toda a razão, realmente as
minhas falhas ele apontou. Eu fui estudar com Lorenzo Fernandez por
causa disso, pelas críticas que ele me fez. Antes... ah, eu já tinha
estudado com Republicano, mas não tinha me apresentado.” [grifos
meus] 124

Em seu depoimento, Helza mostra como a opinião dos críticos musicais ou dos
compositores renomados, como era o caso de Lorenzo Fernandez, é significativo para o
músico iniciante porque assinala sua aceitação ou não entre seus pares. Neste sentido, é
possível compreender por que Helza se tornou sua aluna particular de composição. A
auto-crítica, ainda que exacerbada, como é o caso de Helza, que “destruiu” as peças que
julgou “ruins”, não é suficiente para confirmar seu “talento”, apenas mostra seu
compromisso com a “arte”, sua busca pela “obra perfeita”.
O programa do concerto de 1934 foi dividido em duas partes: na primeira, foram
apresentadas duas canções: Cismando, sobre poema de Manuel Bethencourt, e
Cavalgada, poema de Raymundo Corrêa (1859-1911); duas peças para violino e piano:
Melodia e Scherzetto, um Prelúdio em mi bemol maior e um Estudo op. 19 n. 4 (sobre
fragmento de um canto indígena) para piano. Na segunda parte, duas peças para piano e
violino: Cantilena e Capricho sobre um canto popular. Para encerrar, uma peça para
piano e violoncelo: Meditação; e duas canções: A hora cinzenta, poema de Raul de
Leoni (1895-1926) e Oração ao sol, poema de Renato Travassos (1897-1960)125. Nestas
obras compostas entre 1928 e 1933, podemos observar que Helza manifesta sua
preferência pelos poemas de escritores contemporâneos e neo-simbolistas126.
A estréia de Helza como compositora recebeu a crítica de João Itiberê da Cunha
(JIC), publicada no jornal Correio da Manhã, que inicia seu texto elogiando a
compositora por ser “dotada”, isto é, prendada, tratando-a como uma principiante:

124
Fonte: Camêu, Helza. Depoimento à posteridade. Rio de Janeiro, 16 mar. 1977. Museu da Imagem e
do Som do Rio de Janeiro.
125
Fonte: Programa do “Concerto extraordinário – Composições de Helza Camêu”. Rio de Janeiro, 8 dez.
1934. Divisão de Música e Arquivo Sonoro, Fundação Biblioteca Nacional.
126
Segundo Dutra (2001), Helza escolheu para suas canções poemas de escritores neo-simbolistas cujas
obras se encaminhavam para o modernismo, e a obra de muitas escritoras e poetisas, entre as quais:
Florbela Espanca, Cecília Meireles, Helena Kolody, Ilka Maia, entre outras. (p.61)
112

“Trata-se de uma jovem compositora patrícia, excelentemente


dotada e que nos fez ouvir as suas primeiras tentativas musicais. A
estréia foi auspiciosa. Evidentemente, Helza Camêu, não ignora o
movimento e as tendências atuais, mas prefere dar livre curso ao seu
extinto e à sua ciência musical que ainda é controlada pelas lições
escolares recebidas na véspera. A sua inspiração é simples e
sentimental. As aplicações da harmonia são medrosas; o
contraponto, bisonho. Salvam-se as suas peças pela naturalidade e,
sobretudo, por um sentimento de emoção que as domina quase
todas.” [grifos meus] 127

Os termos da crítica deixam ver que ele considera Helza “dotada” de


“naturalidade” e de “sentimento de emoção”, características atribuídas ao
comportamento “feminino”, que “domina” todas as obras apresentadas. O crítico segue
valorizando a performance e termina louvando os “dotes” da compositora, sobretudo
sua “espontaneidade” e “sinceridade”:

“As composições da primeira parte agradaram francamente: as de


violino, as de canto e as de piano, excelentemente interpretadas pelo
professor Carlos de Almeida, pela cantora Ruth Valladares Corrêa e
pela fulgurante pianista Noemi Coelho Bittencourt. O “Prelúdio”, em
mi bemol maior, e o “Estudo” esplendidamente executados pela
ilustre virtuose, causaram magnífica impressão. Há neles matéria
para maior desenvolvimento. Tal como ressentem-se também um
pouco de unidade. Mas não é possível exigir de uma estreante
qualidades que só se adquirem pelo estudo e pelo tempo. Os dotes
de espontaneidade e de sinceridade, esses , Helza Camêu os tem.
Infelizmente não pudemos ouvir as peças da segunda parte.” [grifos
meus]128

Não parece exagerado afirmar que, enquanto os elogios feitos por JIC se referem
às qualidades pessoais de Helza (ele avalia seu comportamento “feminino”), a crítica
desfavorável se dirige à “compositora principiante”, reforçada pelo descaso do
comentador, que nem precisou assistir à segunda parte do concerto para fazer suas
considerações.
Em contraste com a crítica anterior, Octavio Bevilacqua fez observações mais
animadoras ao concerto, não exclusivamente em razão das qualidades musicais das

127
Fonte: Cunha, João Itiberê da. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 12 dez. 1934. Divisão de Música e
Arquivo Sonoro, Fundação Biblioteca Nacional.
128
Fonte: Idem.
113

obras, mas por se tratar de um fato incomum. Ironicamente, o crítico afirma que, a
despeito do “feminismo triunfante” e das mulheres serem a maioria entre os alunos nas
escolas de música, o surgimento de um “autor feminino” é ainda uma “coisa muito
rara”:

“Uma audição de composições musicais de autor feminino é sempre,


aqui ou acolá, coisa muito rara. E o feminismo triunfante parece
não ter modificado este estado de coisas, apesar da porcentagem
esmagadora feminina que se dedica à música. A senhorita Helza
Camêu, entretanto, vem, cheia de entusiasmo para a liça e se apresenta
agora, como compositora, depois dos estudos preliminares de piano
e teoria superior da música. E sua audição deixou na assistência, uma
impressão que, se não foi de intensa vibração (tal não podia ser, dado
o pouco tirocínio da artista, como produtora) foi, contudo, de
agrado sincero, havendo, mesmo, números como “Meditação” (para
violoncelo e piano), por exemplo, que tiveram as honras de pedidos de
bis. Há, de certo, na obra da talentosa musicista muito ainda a
ganhar em desembaraço e técnica, principalmente, tomando-se em
conta o mérito e inteligência da mesma, tão bem demonstrados. Sua
inspiração é distinta, revelando passagens assaz interessantes. E
tanto assim é que os louvores lhe vieram da assistência em calorosos
aplausos (...) [grifos meus]” 129

É evidente que, desta vez, o tratamento dispensado à compositora estreante foi


mais criterioso, levando-se em consideração a formação musical da musicista e a reação
da platéia e atendo-se mais à análise das obras executadas. Contudo, pode-se dizer que,
se as críticas do primeiro concerto são marcadas por avaliar seu comportamento
feminino em detrimento das peças musicais e por assinalar a “raridade de autoras”,
mostrando que a criação ainda era uma atividade masculina, nos próximos concertos, os
críticos passam a considerá-la como artista dando um sentido para sua obra.
Em 1936, Helza organiza uma segunda audição de suas composições, com o
apoio do Conservatório Brasileiro de Música e do seu professor Lorenzo Fernandez.
Observando o programa de concerto notamos que Helza escolhe peças de maior
complexidade (a Suite em estilo antigo para quarteto de cordas, a Suite infantil para
piano e a Sonata para duo de piano e violino e ainda três canções). Com um programa
mais extenso dividido em três partes, conta com o concurso de seis intérpretes: um
pianista, uma cantora e um quarteto de cordas. Com exceção da cantora Ruth Valladares
Corrêa presente ao seu primeiro concerto, os demais executavam pela primeira vez suas
129
Fonte: Bevilacqua, Octavio. O Globo. Rio de Janeiro, 15 dez. 1934. Divisão de Música e Arquivo
Sonoro, Fundação Biblioteca Nacional.
114

obras130. Constam também no programa: os “Dados Biográficos” e uma síntese de sua


formação musical, destacando sua filiação institucional: “(...) aluna do Curso de
Aperfeiçoamento de Composição do Conservatório Brasileiro de Música”.
Novamente, o crítico João Itiberê da Cunha teceu comentários sobre o concerto;
agora, o tom é outro, e suas considerações, mais positivas, reconhecem nela “uma
artista” promissora cujo “progresso” é evidente. Pela primeira vez, o crítico atribui um
lugar e um sentido à sua obra, segundo ele, situada “fora da inquietude moderna”:

“A compositora brasileira Helza Camêu apresentou-se ao público


anteontem, à noite, pela segunda vez, no salão do Instituto Nacional
de Música. Fez ouvir algumas das suas obras mais recentes. A sua
primeira audição como autora, teve lugar há quase dois anos, a 8
de dezembro, naquele mesmo local, com êxito promissor.
Evidentemente, agora há progresso. O concerto de anteontem
revelou uma artista com as mais belas possibilidades, sobretudo,
inteirada com um conhecimento já muito seguro das formas
musicais de composição, o que já é meio caminho andado para a
concepção de planos mais arrojados e de mais audaciosa inspiração. A
senhorita Helza Camêu acha-se ainda na fase clássica e romântica,
fora da inquietude moderna e do rebuscamento das originalidades
forçadas- e que Deus a conserve por muito tempo nesse estado de
espírito, que o lucro não será somente seu, mas também do público,
farto das extravagâncias do marxismo musical (...) Um pouco de
paz nesse sentido não é para desdenhar!” [grifos meus] 131

O crítico segue, fazendo observações pormenorizadas das peças apresentadas,


ressaltando “o domínio” da compositora sobre os “gêneros” apresentados, destacando a
a feição “moderna” da sonata para violino e piano e a expressividade das canções. Ao
final, assinala o apoio do Conservatório Brasileiro ao evento:

“(...) A festa foi patrocinada pelo Conservatório Nacional de Música,


instituição nova e de extraordinária eficiência artística e que já
vem se impondo ao nosso meio musical.” [grifos meus]132

130
Nessa época, Iberê Grosso integrava o trio formado pelo violoncelista Oscar Borgerth e pelo pianista
espanhol Tomás Teran, que era professor do pianista Arnaldo Estrela então, iniciando sua carreira de
intérprete-pianista (Cacciatore 2005, p. 134,175 e 176).
131
Fonte: Cunha, João Itiberê da. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 24 set. 1936. Divisão de Música e
Arquivo Sonoro, Fundação Biblioteca Nacional.
132
Fonte: Idem.
115

O que teria ocasionado a mudança de postura de JIC do primeiro para o segundo


concerto? De fato, no segundo programa Helza preocupou-se em apresentar peças que
explicitassem seu conhecimento das formas e técnicas musicais (tanto é que o crítico
assinalou o seu “progresso”). Além disso, Helza apresentou-se também como aluna de
composição de Lorenzo Fernandez, compositor, regente, professor do INM e,
principalmente, diretor do Conservatório Brasileiro de Música.
Lorenzo Fernandez estava presente ao concerto, e sua presença não passou
despercebida. A foto abaixo ilustra sua posição proeminente na cena, sentado ao centro,
cercado pela cantora Ruth, à esquerda, pelos demais intérpretes em pé ao fundo e, ao
seu lado direito, pela compositora Helza Camêu, que mais parece uma coadjuvante:

1. Sentados (da esquerda para a direita): a cantora Ruth Corrêa, o compositor Lorenzo
Fernandez e Helza Camêu.

É interessante comparar as figuras da cantora e da compositora na fotografia.


Enquanto Ruth volta-se para as lentes da câmera com um sorriso acentuado pelo batom,
portando uma blusa cujo enfeite e transparência ressaltam o colo, deixando à vista os
braços e as unhas pintadas, Helza usa uma blusa que encobre todo o colo e os braços,
cujo enfeite destaca o rosto, de perfil, parecendo esquivar-se do olhar direto.
116

O terceiro concerto de Helza tem lugar em 1943, quando participa do 10º


Concerto Cultural organizado pelo Conservatório Brasileiro de Música, em 18 de
novembro. Para este programa, a compositora apresenta, na primeira parte, Suite op. 22
A Baratinha e João Ratão e mais quatro canções: Desencanto, Madrigal, Torre Morta
do ocaso e Crepúsculo. Na segunda, é executada Sonata op. 24, para violoncelo e piano.
Mais uma vez, a cantora Ruth Valladares e o violoncelista Newton Pádua participaram,
ao lado dos pianistas Geraldo Rocha Barbosa e Murillo Tertuliano dos Santos; este, uma
criança de 12 anos.
Nesse momento, Helza é reconhecida por sua competência profissional, como o
mostra Arthur Imbassahy no texto em que descreve um dia de glória para a compositora
no qual não lhe faltou o reconhecimento nem do público – aplausos, cumprimentos e
flores – nem de seus pares:

“O que mais tornava interessante esse concerto foi o fato de nele só se


executarem composições da compositora brasileira Helza Camêu,
musicista dentre os mais destacados, por sua equilibrada inteligência,
pela cultura e vivacidade de seu espírito e por sua competência
profissional na matéria que exercita.” [grifos meus]133

É de se notar que, pela primeira vez, sua linguagem pessoal é reconhecida. JIC
assinala uma das grandes qualidades da compositora: a criação de canções em que
melodia e poesia, música e texto, combinam-se formando uma unidade harmoniosa e
expressiva:

“A compositora patrícia apresentou alguns de seus trabalhos mais


significativos: uma “Suite” infantil lindamente humorística (...). A
cantora Ruth Valladares Corrêa, com proficiência habitual, incumbiu-
se dos números de canto (...) cujas melodias, e em geral a fatura
musical, foram muito bem inspiradas pelas poesias, o que implica
necessariamente compreensão literária do texto. Salientamos esse
ponto, porque nem sempre assim sucede com os compositores. (...) A
“Sonata” é obra inteiramente moderna, (no bom sentido) com
excelente desenvolvimento, variedade de ritmos e muita liberdade de
fatura. O segundo movimento, lento, é quase uma “seresta” séria. O
terceiro, justifica perfeitamente a denominação: impetuoso e
apaixonado. Aliás, todo esse opus 24 é feito com estranha
desenvoltura, indicando propensões para o atonal e o politonal,
mata de cipós e de espinhos que requer grandes cautelas para penetrar
nela sem perigo. Tudo é perfeitamente compreensível. Ao prazer um
pouco mistificante de apresentar coisas revolucionárias – que já o são

133
Fonte: Imbassahy, Arthur. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, sem data. Ibidem.
117

há tempo, sem maiores resultados – não é muito melhor fazer como


Helza Camêu que apenas palmilha os terrenos fronteiriços, onde a
música ainda é música, deixando de ser simplesmente ruído bárbaro
e primitivo?” [grifos meus]134

Segundo o crítico, sua obra é “moderna” porque está na fronteira, ou seja, não
acompanhava nem o nacionalismo, nem os movimentos vanguardistas da época, como o
dodecafonismo. Sua obra dialoga com o atonal e o politonal, com a incorporação de
melodias indígenas e com o impressionismo de Debussy de forma independente, sem
aderir a nenhum dogma.
Além da avaliação positiva dos críticos, outro sinal de reconhecimento de sua
obra foram os dois prêmios que conquistou como compositora. Em 1936, Helza se
inscreveu no concurso para quartetos e orquestra promovido pelo Departamento de
Cultura do Estado de São Paulo, dirigido por Mário de Andrade (1893-1945). Fez sua
inscrição assinando apenas as iniciais do seu nome: H.C. A compositora concorreu com
16 candidatos e recebeu o segundo lugar com o Quarteto em si maior. Vale notar que
apenas sua obra foi premiada, não houve primeiro nem terceiro lugares; somente duas
menções honrosas às obras do carioca Ernani Braga e do paulista Assuero Guarritano
(1889-1955).
Foi o próprio Mário de Andrade que escreveu à compositora, comunicando-a do
prêmio e da organização do “Concerto Público” no qual apresentaria sua obra. O
quarteto de Helza foi executado em primeira audição no Teatro Municipal de São Paulo,
no dia 10 de maio de 1937. Para a rápida viagem a São Paulo, visto que sua mãe estava
muito doente, além da companhia de Julieta, o pai exigiu que Helza (na ocasião com 34
anos), fosse acompanhada também pela pianista e amiga da família, a compositora
Amélia de Mesquita:

“Quando eu fui a São Paulo, depois do concurso do departamento, eu


fui com a Julieta, minha afilhada, porque ela era menina, podia
passear. Meu pai convidou dona Amélia Mesquita para me
acompanhar? (risos) Pô! Mas a questão é que eu já trabalhava e tudo
isso (...) mas era aquele cuidado, aquele receio que acontecesse
alguma coisa, né.”135

134
Fonte: Cunha, João Itiberê da. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 20 nov. 1943. Ibidem.
135
Fonte: Camêu, Helza. Depoimento à posteridade. Rio de Janeiro, 16 mar. 1977. Museu da Imagem e
do Som do Rio de Janeiro.
118

O programa do concerto ressaltou a combinação de melodias populares com as


técnicas eruditas de composição como uma das qualidades da peça, o que demonstra,
mais uma vez, que Helza não ignorava as práticas composicionais em voga, sobretudo
no que refere à incorporação de elementos “nacionais” na música “erudita”:

“O departamento de cultura apresenta hoje a primeira obra das


premiadas nos concursos musicais do ano passado o Quarteto em Si
maior, da compositora carioca Helza Camêu. Trata-se de um trabalho
valioso em que se percebe o esforço muito inteligente feito pela
compositora para acomodar as melodias nacionais e os nossos
processos populares de acompanhamento instrumental às
exigências técnicas do quarteto de cordas. Os temas são sempre
muito bem inventados, bem característicos e duma deliciosa frescura.
Dos três tempos de que se compõe este Quarteto.” [ grifos meus] 136.

Com a realização do concerto, a relação entre Mário e Helza parecia encerrada.


Contudo, há dois conjuntos de cartas trocadas entre eles: o primeiro motivado pelo
extravio pelo correio de duas composições137; o segundo, pelo desejo da compositora de
realizar um concerto em São Paulo, analisadas a seguir.
Dois meses depois da apresentação de sua obra premiada pelo Departamento,
Helza escreve novamente a Mário de Andrade solicitando seu apoio para a realização de
um concerto na cidade de São Paulo, onde pretendia apresentar sua obra para piano e
orquestra, o poema sinfônico Yara:

“Como a ambição e a audácia são fatores indispensáveis à vida do


artista estou certa que você me compreenderá e, ainda uma vez, terá a
bondade de emprestar uma informação. Conforme já tive ocasião de
lhe comunicar tenho um recital organizado, faltando apenas o pianista
e um bom quarteto vocal. Mas, como a temporada lírica extraordinária
somente encerra-se em novembro creio que este ano não mais será
possível a realização do concerto que poderá ser dado em melhores
condições em principio da temporada de 1938. Mas de qualquer forma
seria bem agradável poder fazer executar o mesmo recital aí em São

136
Fonte: Programa do “17º Concerto Público do Departamento Municipal de Cultura.” São Paulo, 10
abr. 1937. Divisão de Música e Arquivo Sonoro, Fundação Biblioteca Nacional.
137
Helza, antes de retornar ao Rio de Janeiro, solicitou a Mário a devolução das partituras do quarteto
premiado e do poema sinfônico Yara, que ela também havia inscrito no concurso para orquestra. Quando
enfim Mário mandou o pacote com as obras em questão pelo correio, ele foi extraviado. Helza ficou
extremamente preocupada, pois se tratava dos originais do poema sinfônico Yara, não havendo cópias.
Trocaram cartas até que o pacote fosse encontrado por acaso em um depósito do correio no Rio de
Janeiro. Helza não esperava que Mário mandasse as obras pelo correio e sim por uma pessoa de
confiança. Tendo confiado a devolução das obras a Mário de Andrade e não ao Departamento de Cultura,
a compositora se aborreceu com o tom impessoal das cartas do poeta ao tratar do assunto.
119

Paulo. Por isso, peço-lhe o obséquio de me informar se acha possível


a minha idéia e no caso afirmativo em que condições. O programa
mostrará do poema sinfônico Yara, concerto para piano e orquestra
e de uma cantata – “Terra de sol”– (...) para orquestra, coro, solos e
um quarteto vocal. Lorenzo Fernandez, o mestre e amigo sincero
reputa a cantata um trabalho digno de atenção (perdoe-me a falta
de modéstia). Por todo esclarecimento que você puder me dar sou-
lhe, antecipadamente, profundamente grata. Saudações cordiais”
[grifos meus] 138

Entusiasmada com o prêmio e com o tratamento dispensado à sua obra premiada


no concerto pelo Departamento de Cultura, Helza arrisca-se, pedindo sutilmente o apoio
e a ajuda de Mário de Andrade para realizar uma ambição maior: ver executada duas
obras de grande estrutura formal, o poema sinfônico Yara (orquestra) e a cantata Terra
de Sol (orquestra, coro e solistas). Não hesitou em recorrer inclusive ao prestígio de seu
professor Lorenzo Fernandez para atestar a qualidade de sua obra. Helza sabia que o
apoio e o prestígio de Mário de Andrade e do seu Departamento de Cultura seriam
fundamentais para conseguir mostrar ao público e aos críticos que não compunha
apenas canções e peças para piano, consolidando-se assim como compositora.
Mário responde como diretor, em papel timbrado do Departamento de Cultura
de São Paulo, que não vai organizar o concerto das obras da compositora, mas que, caso
ela conseguisse organizá-lo sozinha, ele cooperaria cedendo o coro ou o quarteto de
cordas. Contudo, o empréstimo estava condicionado à boa vontade dos músicos:

“Helza Camêu

Recebi sua carta. Nada vi de extraordinário na sua proposta e nada


houve entre nós que pudesse qualificar de “audácia” como você diz, a
bonita idéia de realizar aqui em São Paulo um concerto de obras suas.
Com o departamento de cultura esse concerto não poderá ser
realizado e explico-lhe a razão. Já por duas vezes me recusei a dar
concertos de um só autor, e ambos me foram oferecidos grátis. Isso
prejudica, por enquanto, a orientação do Departamento de Cultura
dando a um, parte máxima do que tenho para distribuir entre todos.
Caso, porém, você se decida a realizar o concerto aqui em SP, talvez o
departamento possa cooperar na empreitada, cedendo-lhe os coros. E
provavelmente o quarteto vocal, isto dependendo porém, de consulta
prévia aos Madrigalistas, pois, por contrato, não posso obrigá-los a
tanto. Mande-me sempre contar seus trabalhos e o dia do seu concerto
aí no Rio. Isto com alguma antecedência para que eu possa dispor meu
tempo de forma a comparecer aí com minha curiosidade e muita

138
Fonte: Camêu, H. [Carta] 30 ago. 1937, Rio de Janeiro [para] Andrade, M. São Paulo. Divisão de
Música e Arquivo Sonoro, Fundação Biblioteca Nacional.
120

admiração. Lembre-me ao Lorenzo Fernandez e aceita mais carinhosa


139
simpatia do Mário de Andrade.” [grifos meus]

Helza ainda insiste trocando mais duas cartas sobre o assunto, mas Mário não
oferece nada de concreto para a viabilização do concerto em São Paulo, que, de fato,
nunca aconteceu. Esse conjunto de cartas demonstra as dificuldades de Helza em se
fazer ouvir e, sobretudo, em executar obras que exigiam uma estrutura maior como
orquestra e coro. Observe-se que, no concerto de 1934, são apresentadas obras de
pequena escala: canções, prelúdios e peças de câmara. Assim, devido à falta de apoio do
Departamento de Cultura e, conseqüentemente, aos altos custos com os quais deveria
arcar – os cachês dos músicos, por exemplo – a compositora desistiu definitivamente de
realizar o concerto. O poema sinfônico Yara jamais foi executado.
Anos mais tarde, em 1943, Helza decide participar do concurso para
compositores brasileiros, promovido pela Orquestra Sinfônica Brasileira e pelo
Departamento de Imprensa, com o poema sinfônico Suplicio de Felipe dos Santos,
sobre texto do escritor Gastão Penalva (1887-1944). A obra, composta em 1937, é a
primeira parte da obra Quadros Sinfônicos, que possui mais dois poemas sinfônicos:
Vila Rica e Consagração dos Mártires, composta a pedido de Gastão Penalva, que
enviou à compositora um texto sobre a Inconfidência Mineira. Em maio de 1938, ao
receber a obra acabada, o escritor escreve à compositora elogiando-a pelo trabalho de
“mulher” e “artista”:

“Prezada senhora e ilustre artista, muito e afetuosa saúdas. Uma


simples comunicação telefônica não desse do meu encanto e da minha
honra ao receber a sua grande obra musical, e em pleno original.
Tenho em casa também, para guardar, a maquete de um instrumento
que idealizei para Ouro Preto e representa, em escultura, o que é a sua
sinfonia em música. Muita inspiração, muita grandiosidade e muito
esforço artístico. Ambas me desvaneceram bastante, pela atenção e
confiança que me dispensaram. Mas no seu caso, estou amplamente
honrado. Foram mãos de mulher e de artista que me escolheram para
guardar de tão registro tesouro (...). 140

139
Fonte: Andrade, M. [Carta] 6 set. 1937, São Paulo[para] Camêu, H., Rio de Janeiro. Ibidem.
140
Fonte: Penalva, G. [Carta] 22 mai. 1938, Rio de Janeiro [para] a Camêu, H. Rio de Janeiro. Ibidem.
121

A compositora se inscreveu “escondida” do pai e sob o pseudônimo Jó141. Desta


vez, sua obra recebeu o primeiro prêmio; o segundo lugar foi concedido ao compositor
Cláudio Santoro (1919-1989) pela obra Numa usina de aço e o terceiro ao compositor
Baptista Siqueira (1906-1992) com a dança Muiraquitã. Os três receberam como
prêmio uma quantia em dinheiro, além da execução das obras, o que só ocorreu três
anos mais tarde, em 1946 142.
Depois de três anos de espera, finalmente a obra Quadros Sinfônicos é executada
em 14 de abril de 1946 pela Orquestra Sinfônica Brasileira, sob a regência do maestro
substituto Eleazar de Carvalho (1912-1996), no Cine Rex no Rio de Janeiro. Depois do
sucesso alcançado nesse concerto, o prêmio obtido viria consolidar a carreira de Helza
como compositora. A execução de sua obra pela Orquestra Sinfônica Brasileira
realizaria assim uma ambição antiga, mas acabou por significar um grande desgosto
para ela e um ponto de virada em sua trajetória.
A direção da orquestra organizou os concertos com a primeira audição das obras
laureadas na ordem inversa da premiação, como se quisesse “corrigir” o erro cometido
pelos jurados. Além disso, nos dias que antecederam ao concerto, a peça de Helza não
foi ensaiada. A OSB executou a obra pela primeira vez no ensaio geral, horas antes do
concerto, como podemos notar na crítica publicada no Jornal Diretrizes:

“A O.S.B., seguindo uma orientação inversa da normal, apresentou,


em 1º audição, a obra que havia sido distinguida com o 1º Prêmio no
Concurso realizado por ela própria. Inversa porque as obras foram
apresentadas de traz para diante. Em primeiro lugar, foi executada a
que obteve o terceiro prêmio; em segundo a que obteve o segundo e
em terceiro a que obteve o primeiro prêmio. Incrível! Ao que
parece, entretanto, a direção da O.S.B. quis demonstrar o engano do
Júri que classificou as referidas obras e se propôs a apresentá-las na
ordem que, realmente, mereciam: 1º lugar - A Suite de bailado, do
Sr. Siqueira; 2º - A Usina, do Sr. Santoro e 3º - O Quadro, da Sra.
Elza. Uma obra nova, principalmente quando é ouvida pela primeira
vez, merece ser tratada com respeito a que faz jus a pessoa que a
produz, cujo valor só pode ser apreciado com justiça e observação.
(...) Durante toda semana passei pela rua Álvaro Alvim, procurando
ver se ouvia algum pedacinho dos ensaios da peça em questão.
Inútil, porém o meu desejo. Só conseguia ouvir “Kodaly”,
“Tchaikovsky”, “Levy”, “Liszt” e uma única vez “Morte e
transfiguração”. Julguei mesmo, que não seria mais executada a
peça de D. Elza. Não fui ao Municipal pela manhã porque nunca
141
Fonte: Camêu, Helza. Depoimento à posteridade. Rio de Janeiro, 16 mar. 1977. Museu da Imagem e
do Som do Rio de Janeiro.
142
Fonte: Muricy, A. Ficha dos Acadêmicos: Helza Camêu. Jornal do Comercio. Rio de Janeiro, 1961.
Academia Brasileira de Música.
122

imaginei que, no ensaio geral do concerto da tarde, fosse ser ensaiada


a referida obra.” [ grifos meus] 143

Segundo o crítico, mal executada, a obra tornou-se incompreensível para os


ouvintes e irreconhecível para a própria autora, Helza se retirou, antes do fim da
apresentação, alegando que haviam “deturpado” sua obra: “não era aquilo que havia
escrito.” (Correia, Julieta apud Dutra 2001, p. 33):

“Desta primeira audição, ficou-me a impressão de um vazio


absoluto. Uma mistura incrível de estilo. Uma harmonização
esquisita. Um plano esquemático irreconhecível. Um diagrama tonal e
formal que não pude definir se convencional ou inverossímil. Idéias
musicais que não se definem e uma ausência completa de
conhecimentos de instrumentação, se bem que a sua orquestração
resulte, em alguns pontos, sonora e pomposa, cujos efeitos foram
extraídos, mais dessa pompa, do que mesmo através da expressão
estética, musical e artística.” [grifos meus] 144

Nos dois concursos dos quais participou: em 1934, realizado no Departamento


de Cultura de São Paulo e, em 1943, promovido pela Orquestra Sinfônica Brasileira do
Rio de Janeiro – a compositora usou de estratégias para esconder seu nome – no
primeiro assinou apenas com as iniciais H.C. e, no segundo, utilizou o pseudônimo Jó.
Como vimos no primeiro capítulo, alguns compositores “eruditos” usavam
pseudônimos para esconder seu trânsito pela desvalorizada “música popular”, com o
intuito de proteger sua reputação artística. No teatro, segundo Heloisa Pontes (2008),
para as atrizes em São Paulo nos anos 1940, a troca de nomes145 atendia a um
expediente prático: proteger o nome da família, visto que as atrizes eram associadas às
“mulheres de vida fácil” ou “de moral duvidosa”; e simbólico, pois ao ocultar o nome
da família, permitia o acesso a uma nova identidade, no caso de serem bem-sucedidas
(Idem, p.156).
O que Helza Camêu pretendia esconder com o uso de pseudônimos nos
concursos dos quais participou? A hipótese é que ela queria garantir um julgamento
isento de possíveis desconfianças ou receios advindos do fato de ser mulher. Helza

143
Fonte: Rico. Jornal Diretrizes. Rio de Janeiro, 15 abr. 1946. Divisão de Música e Arquivo Sonoro,
Fundação Biblioteca Nacional.
144
Fonte: Idem.
145
A autora ressalta que a troca de nome era feita por aquelas cujo nome da família não representava um
capital simbólico no teatro, como o caso da atriz Bibi Ferreira, filha do ator Procópio Ferreira.
123

queria ser julgada pelo seu trabalho de “artista”, e não de “mulher”, daí o uso do
pseudônimo Jó. Se o prêmio obtido no concurso de 1936 deu-lhe segurança para tentar
realizar um concerto em São Paulo, o segundo acentuou-lhe o sentimento de desânimo e
frustração revelado na entrevista de 1977, em que fala sobre a “reserva” que pesava
sobre as compositoras e o significado “relativo” dos concursos em sua carreira:

“Mas eu sinto certa reserva, eu sinto. Porque quando eu concorri ao


concurso da sinfônica [OSB], eu concorri com pseudônimo
masculino. Me deram o prêmio, mas nunca mais eu tive a execução
da peça. (...) Houve a apresentação, Deus sabe como! (...) De maneira
que, (...) penso sim que há uma certa reserva (...) E eu digo a você, os
concursos pra mim tem um valor muito relativo porque eu tenho a
impressão [de] que o concurso é uma promoção da entidade ou do
diretor desta entidade (...). [ o premiado] só ouve uma vez ou duas,
como foi em São Paulo, eu ouvi duas vezes. (...) É premiado, tocado
e arquivado.” [ grifos meus] 146.

Ainda em 1946, Helza, aos 43 anos, ingressa na Academia Brasileira de Música


para ocupar a cadeira 19 cujo patrono era o compositor Brasílio Itiberê da Cunha. Seu
nome foi indicado por Lorenzo Fernandez. Em 26 de agosto, a compositora escreve ao
compositor agradecendo o convite para levar sua “modesta colaboração” à Academia:

“Respondendo a sua consulta relativa à apresentação de meu nome nas


próximas eleições da academia de música. Tenho o prazer de lhe
comunicar que na hipótese de ser aceita a indicação sentir-me-ei
lisonjeada em poder levar a essa academia a minha modesta
colaboração. Atenciosamente Helza Camêu.” 147.

De acordo com o que foi apresentado até aqui, pode-se dizer que, a partir de sua
estréia como compositora em 1934, Helza dedicou-se com afinco à sua carreira de
compositora: realizou dois concertos, em 1936 e 1943, participou de dois concursos,
tendo sido premiada nos dois. Em termos de produção, entre 1936 e 1943, compôs um
terço de toda sua obra musical. Estimulada pelo prêmio de 1936, sua produção que, até
então, se destinava à voz, a instrumentos solistas ou a pequenos grupos instrumentais,
voltou-se para orquestra e para conjuntos de câmara maiores (DUTRA, 2001, p. 29).

146
Fonte: Camêu, Helza. Depoimento à posteridade. Rio de Janeiro, 16 mar. 1977. Museu da Imagem e
do Som do Rio de Janeiro.
147
Fontes: Camêu, H. [Carta] 26 ago. 1946, Rio de Janeiro [para] Fernandez, O. L. Rio de Janeiro.
Academia Brasileira de Música.
124

Embora não ignorasse o “movimento e as tendências” da época, como disse JIC,


não podemos dizer que a obra de Helza se inclua no “(...) nacionalismo modernista que
se desenvolveu e se tornou hegemônico na música brasileira entre as décadas de 1920 e
1950 e que teve em Heitor Villa-Lobos seu expoente máximo.” (PEREIRA, 2007, p.
22). Ainda que a compositora tenha passado pelo curso de Canto Orfeônico ministrado
por Villa-Lobos no Rio de Janeiro em 1932148 e tenha mantido uma relação de amizade
com o compositor em virtude das reuniões da Academia Brasileira de Música, em que
riam, brigavam, discutiam – tudo ao mesmo tempo149 – e de sua admiração por ele,
manifesta na obra Vocalize, de 1961, dedicada ao compositor.
Segundo Dutra (2005), especialista nas canções de Helza Camêu, elas
constituem a parte principal da obra da compositora, tanto pela quantidade, são mais de
140 canções, quanto pelo seu valor musical, podendo ser dividida em duas fases
composicionais: uma primeira, que teve início em 1928, caracterizada pelo seu caráter
nacionalista e pela influência da música francesa, e a segunda, que começou em 1958,
marcada por uma linguagem pessoal e moderna, depois de um período dedicado às
harmonizações. Parece possível afirmar que, na condição de compositora, Helza Camêu
adotou uma postura muito específica e nuançada e, na busca pela própria linguagem
musical, manteve certa distância dos dogmas do modernismo musical e dos movimentos
vanguardistas que eclodiram entre 1920 e 1930.
Para que sua obra pudesse chamar a atenção do público e dos críticos do
universo erudito carioca, era preciso que fosse executada. Helza sabia disso; tanto que
tentou realizar concertos com suas obras. Porém, de fato, realizou-os menos do que
gostaria, não somente porque era mulher, mas porque a realização de um concerto,
mesmo de pequeno porte, implica o envolvimento de intérpretes, ensaios e gastos
financeiros. Outro dado importante: a única vez em que uma orquestra executou uma
obra de grande escala de sua autoria foi por ocasião do prêmio da Sinfônica Brasileira e,
conforme foi visto, a grande chance de sua vida tornou-se uma enorme frustração.
É preciso dizer ainda que Helza precisou conciliar seus planos artísticos com os
cuidados dos pais idosos e debilitados, que vieram a falecer: a mãe em 1941, e o pai em
1946. Com a morte dos dois, a compositora, aos 43 anos de idade, passa a ter que se
sustentar sozinha com os rendimentos inconstantes de sua carreira. Nessa época, Julieta,

148
Com o apoio de Getúlio Vargas, o canto orfeônico tornou-se obrigatório em todas as escolas
municipais. Helza chegou a dar aulas em uma escola municipal, mas logo se afastou por discordar dos
rumos tomados pelo projeto.
149
Fonte: Correia, Julieta. Entrevista concedida a Dalila V. de Carvalho. Rio de Janeiro, 19 mar. 2009.
125

sua filha adotiva, tinha um bom salário na Remington e a ajuda com as despesas da
casa. (DUTRA, 2001, p. 39). Ao lado disso, a ausência dos pais trouxe um pouco de
liberdade para que ela conduzisse a própria vida, depois de um longo período de
privações, como podemos notar na carta de Paula Ballariny:

“Agora é justo que você recupere os longos anos que você ficou
privada de freqüentar bons concertos. Teu bom e prezado pai e
também a querida D. Corinthya seriam os primeiros a dizer: Helza,
minha filha nós somos ti gratos pela sua imensa dedicação que tiveste
noite e dia conosco. Aproveita agora para cuidar da tua arte e tirar as
tristezas que estão prejudicando a tua saúde.”150

A partir de 1947, Helza, que já dava aulas particulares, voltou a atuar


profissionalmente como pianista, acompanhando cantores e outros instrumentistas,
atividade que não lhe agradava muito, levando a professora e amiga Paula Ballariny a
incentivá-la, mostrando as vantagens do piano em relação à composição:

“Agradou-me muito saber que estas ti dedicando novamente ao teu


piano, tocando até em concertos. Eu sempre gostei de fazer
acompanhamentos. Às vezes é cacete, como você diz, mas também
muitas vezes, bem interessante quando se ajuda um artista de valor.
Nem todas as pianistas, embora, toquem bem, se ajeitam em fazer
acompanhamentos, porque é uma coisa espontânea e necessita muita
inteligência musical. Também é preciso tirar as músicas bem à
primeira vista e amoldar-se ao artista. O piano tem muitas
vantagens: lecionar, tocar em rádio e concertos etc. Composições
dão um trabalho imenso, muita despesa e leva tempo até que o
valor delas seja reconhecido.” [grifos meus] 151

Talvez por todas as dificuldades enumeradas acima, Helza passa a se dedicar a


outras atividades e, aos poucos, vai se afastando da carreira de compositora . Segundo
Dutra (2001), entre 1947 e 1960, ela não compôs nenhuma obra de estrutura formal
mais elaborada.

150
Fonte: Ballariny, P. [Carta] 29 out. 1947, Caxambu [para] a Camêu, H. Rio de Janeiro. Divisão de
Música e Arquivo Sonoro, Fundação Biblioteca Nacional.
151
Fonte: Idem.
126

3.3. MUSICOLOGIA: UM DESVIO DE ROTA

De 1950 em diante, Helza passa a exercer diversas funções: musicóloga,


conferencista, professora, pesquisadora e redatora da rádio MEC.
Em 1949, dirige-se ao Serviço de Proteção ao Índio para retomar as pesquisas
sobre música indígena que iniciara em 1929. Tudo começou quando, pretendendo
inscrever-se em um concurso de canto coral promovido pela Prefeitura do Rio de
Janeiro (que nunca se realizou), foi até o Museu Nacional à procura dessas gravações de
música indígena realizadas em 1912 por Roquette Pinto. Buscava retirar da música
indígena novos temas para a construção de uma obra coral (DUTRA, 2001, p.18).
Roquette Pinto, então diretor do Museu Nacional, recebeu-a, ajudando-a em sua
pesquisa, embora ela nunca tenha sido oficialmente sua aluna; recebeu dele, assim, a
orientação necessária para começar e ampliar sua pesquisa sobre música indígena. Outra
pessoa que a ajudou em suas pesquisas no Museu foi a antropóloga Heloisa Alberto
Torres152.
O interesse da compositora pelo estudo da música indígena é bem anterior a sua
atuação profissional como musicóloga, tendo sido despertado, segundo ela, no ambiente
familiar. Entre 1912 e 1913, seu pai Francolino hospedou o engenheiro alemão Dr.
Niebler, que começara a trabalhar no Museu do Índio. Lá, conheceu Cândido Mariano
da Silva Rondon (1854-1958), que na época realizava expedições à região amazônica.
Interessado nas expedições, Dr. Niebler logo passou a fazer parte delas e quando
retornava à casa da família Camêu, as conversas sobre suas experiências junto aos
povos indígenas entusiasmavam a pequena Helza, então com 10 anos153. O que era uma
curiosidade infantil passa a ser fonte de inspiração para as primeiras composições sobre
temas indígenas, uma delas apresentada no concerto de 1934.
Quando, anos mais tarde, Helza procura o Serviço de Proteção ao Índio, seu
interesse é a pesquisa. Cândido Rondon encaminha-a à Seção de Estudos, cujo diretor
era o Dr. Herbert Serpa. Ela, imediatamente, logo passa a trabalhar em um setor
incipiente de musicologia indígena, no interior do qual transcreve as gravações de

152
Fonte: Idem.
153
Fonte: Correia, Julieta. Entrevista concedida a Dalila V. de Carvalho. Rio de Janeiro, 19 mar. 2009.
127

músicas trazidas pelo antropólogo Darcy Ribeiro154. Helza pretendia realizar uma
pesquisa de campo na Serra dos Carajás no Pará com o objetivo de coletar e estudar a
música dos índios Carajás quando seu cargo foi extinto, em 1953, sem maiores
justificativas.
Anos mais tarde, Helza se dirige à discoteca da rádio MEC (Serviço de
Radiodifusão Educativa do Ministério da Educação e Cultura) em busca de um disco
para ilustrar uma de suas palestras, quando o amigo René Cavé, diretor artístico da
rádio, oferece-lhe um emprego. Assim, praticamente por acaso, Helza passou a trabalhar
na Rádio MEC (1955), primeiro organizando a discoteca e depois, integrando, como
redatora, a equipe do programa155 Música e Músicos do Brasil (1958). Permanece no
cargo até a aposentadoria, em 1973.
Ao lado disso, profere várias conferências sobre compositores brasileiros na
Associação Brasileira de Imprensa e na Associação dos Artistas Brasileiros, publicando
ainda artigos sobre música indígena em jornais e revistas especializadas. Seu primeiro
artigo “Apontamentos sobre música indígena” aparece, em 1950, no jornal Tribuna da
Imprensa do Rio de Janeiro.
Um pouco mais tarde, é requisitada pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro,
onde fez a catalogação e análise do acervo de instrumentos musicais. Participou, ainda,
em 1964, da organização, juntamente com a naturalista Maria Eloísa Fenelon Costa
(1927-1996), da exposição da coleção de 200 instrumentos indígenas promovida pelo
departamento de Antropologia do Museu Nacional156. Dois trabalhos contribuíram para
o amplo (re)-conhecimento como musicóloga: o artigo Valor histórico de Brasílio
Itiberê da Cunha e sua fantasia característica: A sertaneja, publicado em 1970, e o
livro “Introdução ao Estudo da música Indígena Brasileira”, concluído pela autora em
1972, mas só editado em 1977. Com esta obra, Helza recebeu o Prêmio Especial da
Caixa Econômica Federal, conferido à melhor interpretação da cultura brasileira.
Na década de 1960, quando Helza estava afastada da carreira de compositora,
embora nunca tenha deixado de compor, volta a ser reconhecida como tal. As diversas

154
Parte destas transcrições foi utilizada pelo antropólogo nas obras “Religião e mitologia Kadiweu” e
“Noticias de Ofaié Chavante”, publicadas respectivamente, em 1950 e 1951. Fonte: Muricy, A. Ficha dos
Acadêmicos: Helza Camêu. Jornal do Comercio. Rio de Janeiro, 1961. Academia Brasileira de Música.
155
A equipe era composta pelo maestro Alceu Bocchino (1918 -), pelo compositor Edino Krieger (1928-),
pelo musicólogo Ademar Alves Nóbrega (1917-1979), pelo musicólogo e crítico musical Aires de
Andrade (1903-1974), pelo musicólogo Mozar de Araújo (1904- 1988). e dirigida por Andrade Muricy
(1895-1984), presidente da Academia Brasileira de Música.
156
Fonte: Muricy, Andrade. Ficha dos Acadêmicos: Helza Camêu. Jornal do Comercio. Rio de Janeiro,
1961. Arquivo da Academia Brasileira de Música.
128

atividades que realizava desde a década passada – os artigos publicados em revistas e


jornais, as conferências, o programa da rádio MEC e também sua participação como
jurada em concursos de piano –, longe de silenciarem a compositora, provocam um
retorno de suas obras às salas de concerto, o que leva à divulgação ampla e inédita de
sua obra. Em 1965, Helza realiza um concerto no Círculo de Arte Vera Janacópulos. No
mesmo ano, o programa Ondas Musicais da Rádio Globo esteve dedicado à execução
de parte de suas obras. A composição Cidade Nova – Diálogos ao luar, por sua vez, fez
parte do álbum Música Moderna Brasileira157, gravado pela Odeon, única obra gravada
em álbum durante a vida da compositora158. Em 1968, a obra Cidade Nova fez parte do
programa de concerto que inaugurou a série “Música Moderna no Brasil” realizado na
sala Cecília Meireles, no qual foram executadas obras de Villa-Lobos e Radamés
Gnattali.
Olhemos rapidamente para duas críticas à obra da compositora nessa fase: a
primeira, publicada em 4 de novembro de 1965, no Jornal do Brasil, na qual Renzo
Massarani (1898-1975) escreve sobre o concerto de câmara realizado no Círculo de Arte
Vera Janacópulos, e a segunda, de 12 de janeiro de 1966, do Jornal do Comercio, na
qual Andrade Muricy (1895-1984) reproduz o texto que escrevera para apresentar ao
público a compositora Helza Camêu no programa da Rádio Nacional Ondas Musicais
que foi ao ar no final de 1965.
Muricy e Massarani, além de críticos musicais de jornais importantes, eram
amigos pessoais de Helza Camêu, que os acompanhava nos concertos. Talvez por essa
razão, a imagem projetada por eles sobre a amiga apresente tantos aspectos reveladores
da personalidade de Helza Camêu, nessa época, uma mulher de 62 anos de idade,
solteira, de pais já falecidos, morando com a filha adotiva, Julieta, em um apartamento
alugado em Copacabana. A tarefa dos críticos consistia em explicar aos leitores quem é
essa compositora, mais conhecida como musicóloga, que não é nem estreante nem
amadora. Como justificar sua ausência das salas de concertos? A pergunta que Renzo
Massarani pretende responder indica que a compositora Helza era, de fato, uma ilustre
desconhecida:

157
No mesmo disco constavam também as obras dos compositores Villa-Lobos, Marlos Nobre e Lorenzo
Fernandez.
158
Em 2005, o selo Rádio MEC, em comemoração aos 60 anos da Academia Brasileira de Música, lançou
um CD comemorativo dedicado à obra de Helza Camêu.
129

“Quem é Helza Camêu? Antes de mais nada, não é uma amadora.


Estudou harmonia, contraponto, fuga e composição; trabalha
intensamente, como musicista, na rádio MEC, no Museu do Índio,
no Museu Nacional, pertence à Academia Brasileira de Música.
Apesar disso, sua obra continua quase que desconhecida e é bem
possível que até um ou outro dos seus companheiros e amigos se
aproximassem do concerto de sexta-feira, com certas dúvidas e
receios. Porque a compositora teria preferido manter-se tão longe
do campo de batalha de todo músico, a sala de concertos? Por
duvidar, ela também? Por um pouco de altivez diante do volgo
sciocco que deveria julgá-la?” [grifos meus]159

A grande dificuldade do crítico é explicar ao leitor a carreira multifacetada na


qual Helza desempenhou diversos papéis: compositora, redatora e musicóloga. Ele
parece sugerir que Helza escolheu afastar-se das salas de concerto, “campo de batalha”
de todo o músico. Restaria conhecer suas motivações: insegurança ou orgulho?
No trecho seguinte, para não deixar dúvidas de que Helza não era uma amadora
o crítico faz uma análise pormenorizada das obras executadas, cujas qualidades
“técnicas” servem para confirmar a competência da compositora afastando-a por
completo dos “amadorismos fáceis” e “diletantismos”. Para ele, sua “musicalidade” não
possui os traços da timidez ou da insegurança que por ventura poderiam explicar a saída
de cena; ao contrário, mostram a firmeza de seu caráter:

“Entretanto, neste dias de amadorismos fáceis e de diletantismos


invadindo, presumindo, o caso de Helza Camêu é tão límpido como a
água de que ela, nas suas músicas, parece gostar tanto. As canções
cantam longe dos melosos lugares comuns dos amadores e
bastariam para evidenciar um severo domínio técnico, que não se
improvisa e que encontra uma confirmação definitiva na construção
e difícil, da Sonata para fagote e piano; e nos substanciais e
espontâneos contrapontos a duas vozes dos Diálogos entre clarinete e
fagote. A técnica, está claro, não basta para fazer um músico; mas
nenhum músico existe fora da técnica; hoje, menos que nunca. A
musicalidade desta compositora não é tímida (como faria pensar seu
longo silêncio) e não falta de um seu caráter bem demarcado.”
[grifos meus]160

Andrade Muricy, por sua vez, ao apresentar a compositora, primeiro, aos


ouvintes do programa Ondas Musicais e depois aos leitores do Jornal do Comercio,
situa a compositora em um contexto mais amplo da “raridade da criação artística” como
159
Massarani, Renzo. Coluna Música. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 4 nov. 1965. Academia Brasileira
de Música.
160
Fonte: Idem.
130

decorrência de processos históricos e sociais de exclusão que afetaram, principalmente a


“arte da composição musical”, quando, em outras áreas artísticas, algumas “notáveis” e
outras “geniais” artistas já se destacavam:

A raridade da criação artística de autor feminino em todo mundo


é notória, resultante do peso das sucessivas conjunturas sociais e
históricas, – ainda neste momento inibitórias, apesar das
importantes conquistas de todos sabidas, – demarcou também a arte
da composição musical, quando já desde muito presenças triunfais
indicavam a presença de notáveis, e até mesmo geniais artistas
femininas na Poesia (Narusa Amália, Francisca Júlia, Gilka
Machado, Cecília Meireles), no Romance (Julia Lopes de Almeida,
Clarice Lispector, outros), na Pintura, na crítica, na crônica
jornalista... Na música? Branca Bilhar, Clorinda Rosato, Dinorá de
Carvalho, Esther Scliar, outras ainda. Não me refiro a intérpretes,
mas a criadoras. E dentre estas, e de primeira plana, duas cariocas:
a extraordinária Chiquinha Gonzaga, e a compositora cujas obras
camerísticas ireis ouvir hoje, numa mostra que representa um
privilégio para o grande público radiofônico do Brasil: Helza
Camêu.161

Entre as “criadoras”, Chiquinha Gonzaga aparece como referência e, ao seu


lado, está Helza Camêu. Assim como Massarani, Muricy atribui o desconhecimento do
nome de Helza a uma escolha pessoal da compositora. Do mesmo modo, ressalta sua
formação musical enumerando os nomes dos professores e das instituições das quais foi
aluna, e descreve sua atuação profissional como conferencista e musicóloga:

Privilégio, porque somente depois de cumprida uma carreira frutuosa


e da mais elevada distinção, esta artista consentiu em que, afinal, seja
a sua obra mais amplamente divulgada. Aluna de Alberto
Nepomuceno, Francisco Braga, Lorenzo Fernandez; Medalha de
Ouro, 1º prêmio de piano, da Escola Nacional de Música, tendo
estudado composição no Conservatório Brasileiro de Música,
promoveu cursos de divulgação musical na Associação Brasileira de
Imprensa e na Associação de Artistas Brasileiros. Especializou-se
em música indígena, colaborando com a Divisão de Musicologia do
Museu Nacional e no Museu do Índio, do que resultou importante
obra, inédita ainda, de musicologia indígena. Exceção feita da
execução do seu Quarteto de cordas da Sonata para violoncelo e piano
e de algumas canções de câmara, praticamente a sua obra tem
permanecido ignorada do próprio meio musical. A sua produção
afirma-se duma excepcional maturidade de concepção e de

161
Fonte: Muricy, Andrade. Helza Camêu nas Ondas Musicais. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 12
jan. 1966. Divisão de Música e Arquivo Sonoro, Biblioteca Nacional.
131

realização, o mais distante possível do amadorismo que infirma a


quase totalidade das obras de compositoras femininas entre nós.”

Apesar de Andrade Muricy ter iniciado seu texto apontando os aspectos


históricos e sociais como “inibidores” da criação entre as mulheres, no final, para
afirmar a “excepcionalidade” da obra de Helza, atribui ao seu talento individual a
capacidade de romper com o “amadorismo” predominante entre as mulheres: este deixa
assim de ser o efeito de condicionantes sociais, para se tornar uma condição feminina.
Não parece casual o esforço empreendido pelos dois críticos para afastar Helza
Camêu do rótulo de “amadora”, pois ela era uma artista obscura para o público. Os dois
críticos justificam sua ausência das salas de concertos, dos discos e das edições em
virtude de uma escolha pessoal, deixando entrever que Helza tinha tudo para ser uma
compositora plena. A formação musical sólida obtida com professores e em instituições
renomadas, o prêmio como pianista, a consistência técnica e musical de sua obra
composicional descritos por ambos parecem indicar que Helza se desviou de uma rota
que seria a sua: a carreira como compositora.
Ao contrário da hipótese sugerida pelos críticos, Helza não guardou suas
composições a sete chaves, como vimos. Até 1946, ela se dedicou exclusivamente à
carreira de compositora, compondo e lutando para que sua obra fosse ouvida. Ainda que
tenha obtido reconhecimento no meio “erudito” do Rio de Janeiro, não conseguiu
consolidar-se como tal: não se projetou nem em função da sua obra nem em decorrência
de um cargo institucional importante, como no caso de Joanídia Sodré. A ausência da
compositora Helza Camêu das salas de concertos e sua entrada na pesquisa
musicológica na década de 1960, longe de expressar uma opção pessoal inequívoca, é
conseqüência de uma inflexão na trajetória da compositora e da construção de novas
posições em outros “campos de batalha” desde os anos 1950. De qualquer modo, a
imagem da artista resignada, projetada pelos amigos Andrade Muricy e Renzo
Massarani, parece significativa menos por expressar a “verdade” sobre os fatos, mas por
estar em consonância com a imagem que a própria Helza fazia de si mesma: ela se via
como uma compositora fracassada, desviada de sua rota.
132

3.4. “UMA CAMINHADA DE CURTA EXTENSÃO”

Em 1961, Andrade Muricy pediu a Helza que esclarecesse algumas informações


sobre sua carreira, pois seria publicado no Jornal do Comercio uma ficha dos membros
da Academia Brasileira de Música. Helza redigiu uma carta de próprio punho, relatando
toda sua carreira artística em um exercício de memória, em que seleciona e organiza sua
biografia. O que chama atenção nesta curta “autobiografia” é o último parágrafo
encerrado com um tom de frustração e fracasso:

“Bem pouco tenho mais a dizer. Só posso acrescentar que em tudo


tem havido falta de continuidade motivada por causas ora justas,
ora inesperadas e insuperáveis que sempre acabaram por me
afastar do alvo visado.” [grifos meus] 162

Helza diz apenas que foi desviada, sem deixar claras as causas e o “alvo visado”.
Afinal, qual era o seu objetivo? Continuar a carreira de pianista? Não ter deixado em
segundo plano a carreira de compositora? Ter feito a pesquisa de campo entre os
Carajás?
Essa imagem de uma compositora frustrada pode ser encontrada em outros dois
manuscritos, também da década de 1960: um sobre a trajetória da pianista Guiomar
Novaes e outro sobre a cantora Bidu Sayão. O artigo sobre esta última foi escrito em
1962 para uma conferência que nunca se realizou, segundo anotações da própria Helza.
Já o texto de Guiomar parece ter sido escrito no mesmo período, provavelmente para o
programa da rádio MEC.
Helza se propõe a analisar a carreira de Guiomar e Bidu como uma história de
sucesso que se desenrola desde o surgimento da “vocação” no qual todos os
acontecimentos e aspectos de suas vidas são organizados com um único sentido (realizar
a vocação) e de modo coerente (com o sucesso) produzindo uma identidade fixa e
coerente (o artista). Ao falar dessas mulheres, Helza faz uma reflexão sobre sua própria
carreira musical, nas entrelinhas, em contraposição às carreiras de ambas, definidas por
ela em duas palavras: “sucesso ininterrupto”. O que teria faltado a ela própria para ser
uma artista de renome? Em outras palavras, quais teriam sido as causas “justas”,

162
Fonte: Camêu, H. [Carta] 27 fev. 1961, Rio de Janeiro [para] Muricy, A. Rio de Janeiro. Ibidem.
133

“inesperadas” e “insuperáveis” de seu fracasso como compositora? Este parece ser o


mote implícito que organiza a economia interna desses textos.
Ao expor seu próprio “fracasso”, Helza revela um modelo de “sucesso”
subjacente à sua reflexão, em que ela expressa as convicções que a atravessam, o “ethos
de artista”. Desse modo, podemos dizer que ela constrói um modelo de sucesso
analisando os seguintes aspectos na trajetória de Bidu e Guiomar: a revelação da
vocação, o ambiente familiar, a personalidade, a formação musical e a carreira.
Não por acaso, ela começa a reflexão sobre a carreira das duas artistas pela
revelação precoce da vocação. Entretanto, para ela, se na esfera pessoal a vocação surge
como uma força irresistível, na esfera social ela depende de certos fatores, como o
ambiente familiar:

“Não há dúvida que a força de uma vocação se impõe, mas em parte


depende do meio em que se desenvolve. As revelações precoces em
sua maioria acabam enveredando por dois caminhos: ou se tornam
individualidades absolutamente normais (o que é ainda aceitável) ou
se convertem em verdadeiras nulidades (o que é sempre de lamentar).
E, infelizmente, nesta última categoria se enquadra grande parte das
crianças talentosas que por um momento atravessaram uma fase
brilhante.” [grifos meus] 163

Ao dar ênfase ao papel da família na construção dos caminhos para a vocação,


inegavelmente ela se remete à falta de compreensão e apoio do pai que, ao longo da
vida, criou enormes entraves para sua carreira profissional como pianista e compositora.
No artigo sobre Bidu Sayão, a compositora é ainda mais enfática sobre o papel decisivo
do “ambiente” na vocação, tomando-o agora em um sentido mais amplo, isto é, em
relação aos “fatores” sociais:

O fato de possuir qualidades marcantes nem sempre é garantia


segura do triunfo completo. Longe disso. Há fatores negativos que
sufocam iniciativas, decisões que anulam talentos que às vezes
desaparecem do cenário deixando apenas pálida lembrança (quando
deixam). O desaparecimento desses talentos assemelha-se a passagem
de meteoros; luzem por momentos e logo se apagam. Não realizam

163
Fonte: Camêu, Helza. Guiomar Novaes. Sem data. (manuscrito). Divisão de Música e Arquivo Sonoro,
Biblioteca Nacional.
134

propriamente uma carreira, mas uma caminhada de pequena


extensão.” [grifos meus]164

Helza não deixa de apontar os obstáculos enfrentados por Bidu Sayão na busca
pela profissionalização decorrentes das convenções de gênero impostas à conduta
feminina pela sociedade, bem como sua luta pessoal contra aqueles que consideravam
sua voz inadequada para uma cantora lírica:

“Para chegar a pisar os palcos europeus, Bidu Sayão teve que


enfrentar dificuldades e travar três lutas decisivas: com a família,
com a sociedade e mais uma terceira, a mais difícil por se relacionar
com a sua própria pessoa- a questão vocal. Se na primeira contou
com o apoio do Dr. Alberto Costa, seu tio, que teve bastante
habilidade para convencer à família de que uma vocação nunca
deverá ser contrariada; a segunda, não foi tão fácil de vencer devido
aos preconceitos conservados pela sociedade da época em relação às
mulheres no teatro. E a oposição da família prendia-se justamente
aos prejuízos que lhe poderiam advir com a carreira escolhida.
Naquele tempo uma jovem bem nascida ser atriz representava um
passo em falso, uma diminuição para dignidade da mulher, um
atentado aos brios da sociedade.” [grifos meus] 165

A principal conseqüência desta visão que interdita a carreira artística às


mulheres, segundo ela, é o amadorismo:

“Preconceitos dessa ordem certamente que destruíram muitas


esperanças, mataram muitas vocações (...) Mas não só o teatro era
mal visto. Também não admitiam a remuneração pela atuação em
público de instrumentistas e cantores, tivessem ou não talento. Desse
modo, firmou-se um conceito de falsa arte estimulando o
amadorismo (o que infelizmente ainda perdura mesmo em
agremiações cuja finalidade é realizar programas culturais.” [grifos
meus]166

Os problemas que ela levantou contradizem sua própria noção de sucesso, a tal
ponto que ela parece perguntar-se como: Bidu não desistiu da carreira? Como alcançou
o renome? Helza retoma então a noção de “predestinação”, considerada a realização do
dom como destino que se impõe ao indivíduo e à sociedade, a despeito dos “fatores”
sociais apontados por ela anteriormente:

164
Fonte: Camêu, Helza. Bidu Sayão. 1962 (manuscrito). Ibidem.
165
Fonte: Idem.
166
Fonte: Idem.
135

“Observando a vida artística de Bidu Sayão notamos que a trajetória


de certos artistas parece obedecer a uma predestinação, pois nem o
próprio indivíduo, nem o preconceito, menos ainda o derrotismo dos
mal intencionados, consegue modificar. O interessante é que na
mesma ocasião, no mesmo ambiente, outros aspirantes à carreira
apresentam igualmente qualidades dignas de apreço que lhes poderiam
favorecer caminho fácil. Mas apenas um só, entre todos consegue
alçar-se, alcançando lugar de destaque, ascendendo a culminâncias da
arte. Para esses, portanto, já havia um encontro marcado com a glória
e o acontecimento ninguém poderia evitar. Poderemos logo imaginar
que há diferenças profundas entre o que vence e os que se deixam
vencer. Na resolução de não se deixar vencer está o segredo da
vitória.” [grifos meus]167

No modelo de “sucesso” de Helza, Guiomar e Bidu são construídas como


mulheres de personalidade forte. Ela destaca a vontade, a ambição, a segurança e a
coragem como características marcantes, presentes nestas duas artistas desde a estréia,
quando já se impuseram sem dar margem à insegurança e à dúvida, que certamente
tornariam a carreira um desafio ainda maior:

“A segurança com que enfrentou as cenas, o público, venceu as


dificuldades vocais da partitura demonstrou, desde logo, que ali havia
uma decidida vocação à espera que o tempo se encarregasse de
desenvolver e aperfeiçoar. Se naquele momento Bidu Sayão
fracassasse não faltariam críticas, recriminações e certamente que
daí em diante os preconceitos, as dúvidas se teriam reforçado
enormemente. Mas Bidu Sayão venceu e o orgulho justificado que a
sua vitória provocou fez com que se formasse uma nova mentalidade
inteligente, liberal colocando as coisas em seus termos justos.” [grifos
meus] 168

Já no que se refere à formação musical, para ela, a segurança, além de ser um


aspecto da personalidade é também conseqüência de muitas horas de estudos que
garantem ao artista o domínio técnico e interpretativo do instrumento.

Neste sentido, o professor deve apoiar e estimular o desenvolvimento do aluno


levando em consideração sua individualidade. Vale lembrar que Helza sempre investiu

167
Fonte: Idem.
168
Fonte: Idem.
136

em sua formação musical, dedicando-se com afinco aos estudos, mas não se considerava
uma boa professora por ser impaciente:

“A segurança com que enfrenta problemas de técnica pianística ou de


interpretação é conseqüência natural de uma severa formação
musical. As qualidades que a colocaram num plano único entre as
intérpretes mulheres e em igualdade de condições com os maiores
pianistas em geral, não foram adquiridas mas desenvolvidas pelo
estudo bem orientado que nunca a desviou de sua rota. Guiomar
Novaes teve poucos professores e esses, todos de inteligência
capacitada para a arte e para o magistério: Antonietta Rudge, que lhe
desvendou o mundo fantástico da música; Luigi Chiaffarelli, que lhe
amparou, realmente, o talento excepcional não lhe molestando nem
de longe a personalidade que já se fazia anunciar superiormente,
Isidor Philipp que, igualmente, soube respeitar as convicções da
discípula, bem cedo se mostrando deliciosamente intransigente (...)”
[grifos meus]169

Quanto à carreira, Helza narra um trajeto repleto de críticas sempre positivas,


sobretudo as internacionais, a confirmar o talento excepcional de Guiomar e Bidu.
Também aponta a auto-crítica de Guiomar como um aspecto de seu compromisso com a
“obra de arte”. Contudo, é interessante ressaltar que, para Helza, uma carreira artística
não se realiza apenas com o desejo e/ou sorte, representa uma escolha de vida que se
impõe menos em razão do “amor pela arte” do que pela “vocação”, exigindo muitos
sacrifícios, especialmente das mulheres “delicadas”:

“Isso não se alcança apenas com o desejo de realizar, isso não se


acha comodamente na esperança que o acaso coloque o artista frente
ao seu ideal, não. Isso representa, na vida de arte de nossa patrícia,
muita energia, muito sacrifício não diremos que apenas pelo amor
à arte, mas sobretudo pela exigência de seu temperamento de sua
vocação. Uma vez, não nos lembramos quando, Bidu Sayão afirmou
que vivia e trabalhava pela arte, para arte e com a arte. Eis aí um
plano de vida que requer energias duplicadas especialmente para a
constituição delicada das mulheres.” [grifos meus] 170

169
Fonte: Camêu, Helza. Guiomar Novaes. Sem data. (manuscrito). Divisão de Música e Arquivo Sonoro,
Biblioteca Nacional.
170
Fonte: Fonte: Camêu, Helza. Bidu Sayão. 1962 (manuscrito). Ibidem.
137

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vocação concebida como um dom excepcional que se impõe ao músico que


cria suas obras exclusivamente em virtude deste talento inato, faz com que se perca de
vista o conjunto de práticas e representações sociais constitutivas da experiência do
artista. Inatingível na figura do “criador incriado”, os músicos são normalmente
retratados em biografias que procuram desvendar os caminhos de sua genialidade.
Quando se trata da vida de mulheres artistas, o mote da biografia é reconstruir
sua história ou para mostrar que foram excluídas ou para salientar o pioneirismo das
mesmas. É comum que tanto a perspectiva do “resgate” quanto a do “pioneirismo” não
questionem o modelo vocacional subjacente às propostas, dando ênfase ao dom ora para
questionar a exclusão ora para justificar o surgimento de “notáveis” mulheres.
O trabalho procurou mostrar justamente que Helza e Joanídia não são nem
pioneiras e menos ainda silenciadas ou excluídas da cena musical. Ao contrário, aqui
ficou evidenciado que Joanídia e Helza corresponderam às aspirações, objetivos e
atitudes que as posições de pianista, maestro, diretor, compositor e musicólogo
comportavam, sendo reconhecidas pelos seus pares por isso.
Para compreender aquilo que parecia improvável, isto é, mulheres exercendo
profissões masculinas, foi necessário primeiro reconstruir o cenário musical sob o
enfoque dos estudos de gênero, pois a chave para compreender o processo que deu a
estas mulheres o acesso a profissões “masculinas” estava no piano.
Os trabalhos sobre a história do piano no Brasil afirmam que sua prática é uma
prenda doméstica posteriormente transformada em carreira profissional por algumas
“raras” mulheres, mas não mostram que tal prática era a ponte entre carreiras
“masculinas” e “femininas” e mais, que o piano, enquanto objeto, pode ser “feminino”
ou “masculino”.
Só foi possível compreender isto a partir da análise do retrato coletivo de três
gerações de músicos, a contextualização histórica em épocas musicais ou a consideração
das trajetórias separadamente são insuficientes para mostrar como a prática musical está
inserida de modo diverso entre meninos e meninas.
A análise conjunta sobre artistas de três gerações mostrou que os limites entre
carreiras “femininas” (intérprete-pianista) e “masculinas” (composição, regência e
musicologia) vão sendo traçados e retraçados na interação entre homens e mulheres.
138

Verificou-se que Helza Camêu e Joanídia Sodré constroem a si próprias e as suas


trajetórias como mais “femininas” ou “masculinas”, dependendo da posição social que
ocupam. Vimos que ajustar o foco da reflexão sobre as duas musicistas permitiu
observar que a experiência de artista é clivada por convenções prático - simbólicas
acerca da “concepção vocacional da arte” e do gênero.
Nenhuma ação, nem mesmo nas artes, é neutra do ponto de vista do gênero.
Procurei mostrar que não somente a obra (enquanto produto acabado do artista), bem
como a performance, o ato de tocar ou de reger são compreendidos a partir da apreensão
do corpo, produzidos de forma coerente com as convenções de gênero.
A análise da carreira de Helza e Joanídia para as quais o piano foi apenas uma
ponte para carreiras mais comumente “masculinas” – a composição, a regência e a
musicologia – mostrou que as fronteiras entre profissões “masculinas” e “femininas”
são fluidas. Isto não significa dizer que as artistas não tenham enfrentado obstáculos; ao
contrário, a figura ambígua projetada sobre Joanídia Sodré e o ponto de vista negativo
de Helza Camêu sobre sua própria trajetória revelaram os conflitos e os dilemas
pessoais que cada uma enfrentou a seu modo e em lados opostos.
No universo reduzido da “música erudita” carioca, há indícios de que Helza e
Joanídia se conheciam, mas uma não fazia parte do círculo de amizades da outra. Mais
do que isso, elas faziam parte de grupos opostos nas disputas pelo renome no universo
musical. Como vimos no episódio do manifesto contra a reeleição de Joanídia: Helza
estava ao lado de Villa-Lobos, a figura que melhor performatizou o “gênio”, “o criador
incriado”, assinando a carta que pedia a saída de Joanídia da direção da escola, cujo
poder não advinha do carisma, mas da legitimidade da própria instituição.
139

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apoio. Ibidem.

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Solicitando o apoio do Departamento de Cultura para realizar um concerto.

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Solicitando o apoio do Departamento de Cultura para realizar um concerto. Ibidem.

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Agradecendo a pela composição. Ibidem.

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Felicitando a compositora pela sua volta ao piano. Ibidem.

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Fernandez e Helza Camêu. “10º Concerto Cultural da Série de 1943- Programa de
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Fotos

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Júlia Cesar, 14 out. 1909. Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da
UFRJ.

2. Joanídia em aula na residência do professor Alberto Nepomuceno (sem data). Ibidem.

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