Saude Mental Na Atencao Primaria 2022 Fernandes
Saude Mental Na Atencao Primaria 2022 Fernandes
Saude Mental Na Atencao Primaria 2022 Fernandes
NA ATENÇÃO PRIMÁRIA
Abordagem multiprofissional
Saúde mental na atenção primária : abordagem multiprofissional / Carmen Luiza C. Fernandes ... [et al.]. - 1.
ed. - Santana de Parnaíba [SP] : Manole, 2022.
; 23 cm.
1. Serviços de saúde mental - Brasil. 2. Medicina - Prática. 3. Cuidados primários de saúde - Brasil. 4.
Humanização dos serviços de saúde - Brasil. 5. Abordagem interdisciplinas do conhecimento. I. Fernandes,
Carmen Luiza C.
Dedicamos este livro a todos os profissionais da Atenção Primária à Saúde que têm a
necessidade de conhecer e buscar ferramentas para entender famílias e cuidar de pessoas.
Sumário
Apresentação
13. Aconselhamento
21. Alienação parental e a importância da sua identificação pelo profissional que atende em atenção
primária à saúde
28. Terminalidade
Apresentação
É de conhecimento popular que a paixão é um amor com tempo marcado para terminar,
mas também sabemos que ao nascerem os filhos a paixão se torna infinita. Hoje, dou-me conta
de outra paixão infinita, a paixão pela Medicina de Família e Comunidade, que, assim como
meus filhos, faz meu coração pulsar fortemente todos os dias, afastando o medo da finitude.
Os 34 anos na Medicina de Família e Comunidade foram marcados e abençoados por
modelos inesquecíveis, oportunidades únicas e uma inquietude pelo desejo de dominar
conhecimentos. A paz a essa inquietude só foi possível quando me aproximei dos meus mestres
e formamos parcerias que iluminaram nossos caminhos.
Este livro é o resultado de uma dessas parcerias.
Em conjunto com a mestre, Carmen Luiza Correa Fernandes, que dividiu comigo sua
amizade e conhecimento, foi possível idealizar este livro. Carmen, que é uma pessoa cheia de
energia, profundamente envolvida com o serviço e 100% engajada em fazer dar certo foi uma
das pioneiras, no nosso país, dessa especialidade em que a premissa é acreditar que todas as
pessoas têm o direito de receber uma saúde qualificada e que qualidade em saúde parte de
conhecer as pessoas, de saber olhar para elas e por elas, de saber ouvir e valorizar, de oferecer o
melhor de si com conhecimento e estudo em todos os momentos e, quando faltam recursos, de
acreditar que o recurso humano é o mais valioso. A gratificação do médico de família e
comunidade é colhida de pouquinho em pouquinho no dia a dia, após esforço árduo e
persistência.
Assim, durante os últimos 30 anos, idealizamos dividir com mais profissionais da atenção
primária à saúde um pouco do conhecimento que conseguimos sistematizar na nossa prática e,
para torná-lo real, nos unimos, no último ano, a duas jovens advogadas, especialistas em
práticas colaborativas e mediação de conflitos, mestres em Direito e Soluções Alternativas de
Controvérsias Empresariais. Duas pessoas iluminadas que unem harmonicamente
conhecimento e determinação! O resultado é este livro que a Editora Manole nos deu a honra
de escrever a oito mãos. Saúde mental na atenção primária: abordagem multiprofissional!
INTRODUÇÃO
Na década de 1950 surge uma nova forma de abordagem em saúde mental, a terapia
familiar. Ela amplia a percepção sobre o sofrimento de uma pessoa vinculado ao contexto,
principalmente o familiar, não excluindo outras práticas. Antes desse período, por exemplo, se
uma criança apresentasse um problema de mau comportamento na escola, seus pais teriam sido
orientados a buscar ajuda psicoterápica para a criança em si. O terapeuta tentaria descobrir o
que ocorreu de errado com ela e, independentemente da linha terapêutica, seriam evocadas
soluções com enfoque no indivíduo sintomático. Essa nova possibilidade de abordagem que
inclui a família no espaço da terapia e observa a dinâmica familiar como parte integrante do
processo de desenvolvimento dos problemas é chamada de terapia de família. A proposta de
realizar a abordagem sistêmica na atenção primária à saúde (APS) é utilizar as ferramentas que
a terapia de família reune para facilitar a compreensão do contexto que cada pessoa traz à
consulta.
Segundo Nichols e Schwartz (2007, p. 23), “a terapia familiar não é apenas um novo
conjunto de técnicas; é uma abordagem inteiramente nova ao entendimento do comportamento
humano – que é em essência moldado por seu contexto social.”
A intenção deste capítulo é fornecer informações básicas sobre a lógica sistêmica, que é
usada na terapia familiar, e facilitar as abordagens de famílias na APS.
Para Starfield (2002), a atenção primária é a porta de entrada ao sistema de saúde e deve
fornecer respostas aos problemas apresentados pelas pessoas, e não somente às suas patologias.
“Desta forma, fornece atenção para todas as condições, exceto às muito incomuns ou raras, e
coordena ou integra a atenção fornecida em algum outro lugar ou por terceiros”. Sendo assim,
o foco de atenção na pessoa, dentro do seu contexto, é essencial.
Na atenção primária à saúde, espera-se que a equipe avalie sistematicamente as pessoas
dentro do seu contexto e planeje intervenções para ajudá-la a lidar com seus problemas. Isso
implica entender o que a pessoa compreende sobre o seu problema e ter em mente questões-
chave, como (STEWART et al., 2017):
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
“O maior desafio enfrentado por aqueles que tratam famílias é enxergar além das personalidades e perceber
os padrões de influência que determinam o comportamento dos membros da família. Estamos tão
acostumados a ver o que acontece nas famílias como produto de qualidades individuais, como egoísmo,
generosidade, rebeldia, passividade, tolerância, submissão e assim por diante, que aprender a ver padrões
de relacionamento requer uma mudança radical de perspectiva.”
Dessa forma, a teoria geral dos sistemas (concebida nos anos 1940 pelo biólogo austríaco
Ludwig Von Bertalanffy) chama a atenção para a busca dos padrões de relacionamento, e não
somente das partes dentro de um conjunto. Assim, sob a perspectiva sistêmica, a entrevista com
uma família enriqueceria a compreensão das partes individuais de comportamento.
Para se mediar, influenciar, ou mesmo intervir, é preciso compreender o funcionamento das
famílias.
A cibernética é a outra teoria que fundamenta o princípio da abordagem sistêmica.
Nichols e Schwartz (2007, p. 101-102) explicam muito bem isso:
“A cibernética foi fruto da imaginação do matemático do MIT (Massachussets Institute of Technology)
Norbert Wiener (1948), que desenvolveu o que se tornaria o primeiro modelo de dinâmica familiar em um
ambiente muito improvável. Durante a Segunda Guerra Mundial, Wiener foi solicitado a estudar o
problema de como as armas de defesa antiaérea poderiam derrubar os aviões alemães, que voavam tão
rápido que era impossível ajustar as baterias de artilharia com rapidez suficiente para atingir os alvos. Sua
solução foi incorporar um sistema de feedback interno, em vez de confiar em observadores para reajustar
as armas depois de cada erro de alvo. Gregory Bateson entrou em contato com a cibernética em uma série
notável de encontros multidisciplinares, as conferências Macy, que iniciaram em 1942 (Heins, 1991).
Bateson e Wiener travaram uma camaradagem imediata nesses encontros, e seus diálogos tiveram um
profundo impacto sobre Bateson, levando-o a aplicar a teoria dos sistemas à terapia familiar.”
CENÁRIO ILUSTRATIVO
A família Ferreira é constituída pelo Sr. Pedro, o pai, pela Sra. Judite, a mãe, e por seus
dois filhos, Mário e Marcelo. Mário é um rapaz de 17 anos que, ao ir às festas da turma da
escola, sempre volta alcoolizado. Por conta disso, Sr. Pedro o coloca de castigo, corta sua
internet por 1 semana e o proíbe de ir à festa do próximo fim de semana. Ao ficar sem internet,
Mário tem ataques de fúria e sua mãe começa a dizer que está passando mal. O pai fica mais
irritado e amplia o corte da internet por mais uma semana.
Identificar o problema
Aumentar o castigo e passar mal são compreendidos como feedback negativo dos pais
para diminuir o desvio de Mário dentro do sistema, dentro das regras da família.
Mário reagir com ataques de fúria é compreendido como feedback positivo na tentativa
de mudar o sistema.
Possibilidades
Uma comunicação perturbada entre dois indivíduos unidos por um vínculo significativo
conduzirá, inevitavelmente, a condições que propiciam a manifestação de patologia
(ANDOLFI, 2003).
A família continua sendo uma unidade relacional básica na sociedade (McDANIEL,
2005). Sem levar em consideração a pessoa em seu contexto, o profissional pode
inadvertidamente limitar tanto a compreensão sobre o problema como coibir soluções.
Um problema individual pode ser a chave para compreender um problema familiar
(STEPHENSON, 2004).
Profissionais da APS não separam a doença da pessoa nem a pessoa de seu ambiente
(FREEMAN, 2018).
CONSIDERAÇÕES
Durante longo período, o solo da saúde mental foi fertilizado com ideias de que os
problemas nesse campo seriam desvendados com o aprofundamento exclusivo sobre a
patologia e seu indivíduo portador. Investimentos tecnológicos e descobertas biológicas
fomentaram essa corrente de pensamento, a ponto de novas ideias serem inicialmente
rechaçadas. A abordagem familiar surge, incluindo a família no setting terapêutico e tendo o
entendimento de que o contexto propicia condições para o aparecimento dos sintomas, assim
como facilita seu processo de cura. A abordagem sistêmica é a forma de compreender a pessoa
dentro de seus diversos contextos, pois conecta tudo com tudo!
Um dos cuidados especiais a serem tomados quando o atendimento ocorre por contato
virtual é não antecipar o entendimento da situação por meio de conclusões precipitadas sobre
as hipóteses iniciais. Dissecar o problema é essencial para ter domínio da situação.
REFERÊNCIAS
1. ANDOLFI M. Manual de psicologia relacional: la dimensión familiar. Roma: Corporación
Andolfi González e Accademia di Psicoterapia della Famiglia, 2003. p. 23.
2. ASEN Y, et al. Dez minutos para a família: intervenções sistêmicas em atenção primária à
saúde. Tradução: Sabrina Mello Souza; revisão técnica: José Mauro Ceratti Lopes. Porto
Alegre: Artmed, 2012. P.14.
3. CAPRA F. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982. p.260.
4. FREEMAN TR. Manual de medicina de família e comunidade de McWHINNEY. 4.ed. Porto
Alegre: Artmed, 2018. p.47.
5. McDANIEL SH, et al. Family-oriented primary care. 2.ed. Nova York: Springer, 2005. p.1-15.
6. MOURA, MS. A Trajectória do amor: ensaio sobre a medicina familiar. 1.e. Execução gráfica
Corlito/Setubal, 2000.
7. NICHOLS MP, SCHWARTZ RC. Terapia familiar: conceitos e métodos. 7.ed. Porto Alegre:
Artmed, 2007. p.23, 102, 103.
8. STARFIELD B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e
tecnologia. Brasília: Unesco, Ministério da Saúde, 2002. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.brbvspublicacoesatencao_primaria_p1.pdf>. Acesso em: 06
nov.2020.
9. STEPHENSON A. A textbook of general practice. 2.ed. London: Arnold, 2004. p.55.
10. STEWART M, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. 3.ed.
Porto Alegre: Artmed, 2017.
11. WALSH F. Processos normativos da família: diversidade e complexidade. 4.ed. Porto Alegre:
Artmed, 2016. p.29.
2
Fundamentos de abordagem familiar
INTRODUÇÃO
A família é o primeiro grupo social (sistema) do qual fazemos parte e do qual sofremos a
influência do pertencimento, independentemente das condições de presença, distância, raça,
religião, cor, escolaridade, gênero e classe social. O patrimônio afetivo e cultural será a base
com a qual estabeleceremos relações dialéticas e circulares em uma realidade social complexa.
Considerando a importância das experiências vividas no grupo familiar na formação do
indivíduo – em que a interação social ali construída define as relações futuras –, é fundamental
que o profissional entenda como se dão essas relações familiares e de que forma influenciam na
experiência individual.
Para compreender uma família ou um de seus membros, é necessário conhecer sua história,
o momento de evolução pessoal e familiar, as influências da intergeracionalidade, seus mitos,
suas crenças, seus papéis, suas funções e o entendimento da competência em executá-los ao
longo da vida familiar. Como se vê, esta não é tarefa fácil, uma vez que, além de compreender
o sistema familiar, seria importante trabalhar também a interação deste com outros.
Independentemente do tipo de abordagem a ser feita, esta sempre deve ter a cooperação e a
concordância de todas as partes envolvidas. Para que a família possa ter esse entendimento, o
profissional deve auxiliá-la contextualizando o motivo da abordagem.
O foco neste capítulo será o de trabalhar o sistema familiar em si, analisando seus
elementos, suas relações internas e suas interações com outros sistemas. Propõe-se organizar a
atuação do profissional de saúde com famílias para que possam construir intervenções que
façam sentido aos pacientes e, portanto, sejam mais eficientes no atendimento de suas
necessidades.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Família
Neste capítulo, para que possamos trabalhar com abordagem familiar sistêmica,
necessitamos conhecer a família sob essa ótica. Esta será vista sob três aspectos:
“Os modelos transicionais que regulam o comportamento dos membros de uma família são mantidos por 2
sistemas de constrições. O 1º compreende as regras que governam habitualmente a organização familiar e a
presença de uma hierarquia de poder – em que pais e filhos têm diferentes níveis de autoridade – e uma
complementaridade de funções – em que os membros do núcleo parental aceitam uma interdependência
recíproca etc. O 2º é representado fundamentalmente pelas expectativas mútuas dos vários membros da
família A origem dessas expectativas é sedimentada em anos de negociações explícitas e implícitas sobre
pequenos ou grandes acontecimentos do cotidiano.”
Abordagem familiar/sistêmica
Causalidade circular
Os membros da família interagem de forma interdependente. A mudança no funcionamento
de uma das partes (sistema) gera uma sequência de modificações nas outras partes de forma
multidimensional, e isso repercute provocando uma mudança em todos os membros do grupo,
na relação entre os subgrupos, e altera o sistema como um todo.
Homeostase
Todas as famílias se caracterizam por buscar manter a homeostase (equilíbrio) frente a
qualquer fato que ameace o seu funcionamento – tensões, crises, rupturas e outras variáveis
impostas pelo momento individual da família ou do meio em que estão inseridos (feedback
negativo). A tendência das famílias em qualquer situação de vulnerabilidade é reagir evitando a
mudança.
Quando o risco de “mudar” ocorre, cria-se no grupo uma divisão. Existem partes que
desejam a manutenção do status quo e outras que desejam mudança. Quando existe uma
diferença significativa no modo de funcionar, a família reage tendendo a voltar à condição
anterior (feedback negativo) como forma de manter a estabilidade, a continuidade e a coesão
familiar. Esse movimento de autopreservação é responsável pela condição, mas isso não
representa “saúde” no funcionamento. Em muitas situações é a manutenção de sintomas ou de
problemas no funcionamento familiar.
Morfogênese
A morfogênese é uma característica dos sistemas vivos. No sistema familiar, ela se
caracteriza por uma série de movimentos de avanço e retrocesso, cresce, expande e retrai,
flexibiliza e inflexibiliza sucessivamente, durante todo o ciclo da vida, de forma a atender às
demandas de seus componentes. Essa característica proporciona o treinamento de
pertencimento e distância, dependência e independência; estabelece regras e cumpre as tarefas
das partes (indivíduos) e do sistema familiar.
Feedback ou retroalimentação
Essa é a característica de circularidade no funcionamento dos sistemas. Tudo o que ocorre
em uma das partes é transmitido às outras partes e ao sistema como um todo, provocando
mudanças que, quando positivas, estabelecem um fluxo que segue em direção ao crescimento
e, quando negativas, fazem o sistema reagir de forma a estancar ou retroceder na busca de
homeostase.
Comunicação ou linguagem
“É todo tipo de troca dos seres vivos entre si e destes com o meio ambiente (gestos, posturas, silêncios,
ouvidos, equívocos etc.). As pessoas se comunicam de forma digital (verbal) e analógica (não verbal,
corporal, facial).”
(Dias, 2017)
Equifinalidade
A equifinalidade é uma característica dos sistemas abertos, vivos, que interagem
continuamente com o meio em que estão inseridos, tornando-os mutuamente interdependentes,
qualificando o sistema. Esse princípio aponta que não existe apenas um único modo de chegar
a um resultado, mas várias formas de alcançá-lo.
Essa premissa considera que o mesmo acontecimento ou fonte pode ter resultados
diferentes e que o mesmo resultado pode ser proveniente de diferentes fontes ou origens. Como
em todo sistema aberto, apresenta limites e obstáculos que conferem a sua amplitude na
interação com o contexto.
Regras ou normas
Nos sistemas vivos (família), as regras são construídas com o objetivo de estabelecer o
funcionamento e a sua homeostase familiar. A mediação das normas e das expectativas,
explícitas e implícitas, é o processo que regula as interações familiares, criando assim o estilo
de vida da família. Ainda, modulam a rigidez do sistema e estabelecem limites para o
comportamento de seus membros.
Padrões de interação
Os padrões de interação são o resultado das relações estabelecidas no sistema familiar
(funcionamento) e deste com o meio em que estão inseridos. Esses padrões são repetitivos e
estáveis e definem como irão ocorrer os limites, as relações nos subsistemas, no sistema e na
relação deste com outros sistemas.
O conhecimento dos fundamentos sistêmicos facilita o olhar sobre as famílias, levando-nos
a uma aproximação do conhecimento e entendimento de como se formaram, como construíram
seus valores, suas regras de funcionamento e estrutura, sua forma de se comunicar, demonstrar
afeto, interagir, enfrentar crises e a capacidade de construir resiliência. Quando associamos esse
conhecimento e o entendimento de outras ferramentas de abordagem familiar como
genograma, ciclo de vida familiar, ecomapa e ainda, se necessário, outros mais específicos para
intervenção em saúde mental, podemos propor intervenções mais adequadas, realistas e
contextualizadas às famílias que são fonte da nossa atenção.
“(...) O objetivo da terapia de família não é simplesmente afastar os sintomas ou ajustar a personalidade ao
meio ambiente, mas, mais que isso, criar uma nova maneira de viver.” (Foley, 1990)
No mesmo livro, Foley (1990) acrescenta, ainda, que “não basta apenas melhorar as
comunicações, mas que também é necessário mudar as atitudes”.
A abordagem familiar vem se adequando ao longo do tempo, acompanhando as mudanças
histórico-sociais da configuração familiar de forma a propor intervenções pertinentes ao
contexto social no qual elas estão inseridas.
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
A paciente Andrea, 34 anos, casada, do lar, mãe de três filhos: Lucas, de 14 anos, Luciana,
de 12 anos, e Caio, de 2 anos. Vem à consulta por sentir-se muito cansada e triste, refere que
em algumas situações perdeu a paciência com Caio e sabe que às vezes exagera ao corrigi-lo.
Relata que esses sintomas começaram quando a família se mudou para Porto Alegre – vieram
morar em algumas peças na casa de sua sogra, dona Ana. O pai de Caio trabalha na construção
civil; Andrea relata que ele costuma chegar em casa muito cansado e que, por esse motivo, não
consegue ajudar. Refere também que após o trabalho frequentemente ele vai direto para a casa
de seus pais, onde tem um papel importante na resolução dos problemas da sua família de
origem.
Existem algumas perguntas que você necessita fazer a fim de compreender o contexto da
pessoa que veio à consulta e levantar questões para entender a queixa.
Identificar o problema
Possibilidades
CONSIDERAÇÕES
DICAS
DICAS
Sempre avalie a pessoa que o procura de uma maneira contextualizada no seu ciclo de vida.
Verifique se os papéis e funções estão sendo exercidos de maneira adequada e se
encontram sobrepostos (o papel e a função devem estar sendo exercidos pela mesma
pessoa ao mesmo tempo – o papel de mãe sendo exercido pela mãe, por exemplo).
Lembre-se de que quando você é demandado por uma queixa de tristeza ou agressividade, a
conceituação e a dimensão dessas queixas dependem da história, da cultura e da crença da
pessoa que as faz. Busque entender a magnitude do problema e avalie riscos.
REFERÊNCIAS
1. ASEN E, TOMSON D, YOUNG V, et al. Dez minutos para família: intervenções sistêmicas em
Atenção Primária à Saúde. Trad.: Souza PM. Porto Alegre: Artmed, 2012.
2. BREUNLIN DC. Metaconceitos: transcendendo os modelos de terapia familiar. Trad.: Douglas
C. Breunlin, Richard C. Schwartz e Betty Mac Kune-Karrer. 2.ed. Porto Alegre: Artes Médicas;
2000.
3. COLE-KELLY K, Seaburn DB. A family-oriented approach to individual patients. Family-
Oriented Primary Care. Philadelphia: Springer, 2005. p. 43-53.
4. ELKAIN M (org.). Panorama das terapias familiares. Trad.: Eleny Corina Heller. São Paulo:
Summus,1998.
5. FERNANDES CLC, DIAS LC. Ferramentas da prática do médico de família e comunidade:
abordagem familiar. In: Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade PROMEF
Programa de Atualização em Medicina de Família e Comunidade - Ciclo 10. Porto Alegre:
Artmed Panamericana, 2015. p.9-60 (Sistema de Educação Continuada a Distância, vol. 3).
6. FOLEY VD. Introdução a terapia familiar. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Porto Alegre:
Artes Médicas,1990.
7. GUSSO G, LOPES JMC, DIAS LC (orgs.). Tratado de medicina de família e comunidade:
princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed, 2017. p.282-292.
8. MCGOLDRICK M, GERSON R, PETRY S. Genograms: assessment and intervention. 3.ed. New
York: W.W. Norton & Company, 2008.
9. Minuchin P, Colapinto J, Minuchin S. Trabalhando com famílias pobres. Porto Alegre: Artmed,
1999.
10. PAYÁ R (org.). Intercâmbio das psicoterapias: como cada abordagem psicoterapêutica
compreende os transtornos psiquiátricos. 2.ed. Rio de Janeiro: Roca, 2017.
11. WALSH F. Processos normativos da família: diversidade e complexidade. tradução: Sandra
Maria Mallmann da Rosa; revisão técnica: Clarisse Pereira Mosmann: consultoria e
supervisão; Adriana Wagner. 4 ed. Porto Alegre: Artmed; 2016.
3
Família: segredos, mitos e crenças
INTRODUÇÃO
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Segredo
É comum que nas consultas apareçam segredos como nascimentos, relações extraconjugais,
aborto, adoção, doença física e mental, incesto, estupro, violência, adições, orientação sexual,
separações, desaparecimentos, falência financeira, suicídio e morte. Frequentemente, todos
esses temas aparecem de forma velada ou permeando uma série de informações que precisam
ser minuciosamente investigadas. Ao ignorá-las, estaremos impedindo o completo
entendimento de determinados problemas, doenças e comportamentos facilitados ou
dificultados por segredos da esfera da vida pessoal e familiar. Para Imber-Black (1994):
“Os segredos representam dilemas éticos que não são resolvidos através de regras simples. A revelação de
certos segredos pode ter um efeito profundamente curativo para indivíduos e relacionamentos, enquanto a
revelação de outros segredos pode colocar as pessoas em perigo, particularmente, quando estão envolvidas
questões de segurança física.”
Não existe uma posição única na literatura quanto à revelação de segredos, mas a maioria
dos autores estimula que sejam trabalhados e que possam ser revelados a fim de restaurar a
confiança nos relacionamentos.
O entendimento dos segredos traz clareza da importância de sua existência, uma vez que,
quando revelados, podem modificar a maneira de pensar de uma pessoa, um casal ou uma
família, podendo auxiliá-los na estrutura do relacionamento. Por outro lado, a manutenção
destes pode ser extremamente danosa e roubar possibilidades de saúde de indivíduos, famílias,
relacionamentos e da sociedade.
Estudo de caso
A família Silveira, composta pelo casal e três filhos, quando em uma consulta familiar,
trouxe à tona que os filhos tinham a crença de um conflito entre os pais. Estes negavam, mas
quando ficava somente um deles com os filhos, referiam-se ao seu cônjuge com ressentimento
e raiva. Normalmente, quando questionados sobre seu casamento, faziam questão de dizer que
viviam em plena harmonia e se sentiam gratos por um relacionamento tão satisfatório. Imber-
Black (1994) destaca que:
“Os segredos são fenômenos sistêmicos. Eles estão ligados ao relacionamento, moldam as díades, formam
triângulos, alianças encobertas, divisões, rompimentos, definem limites de quem está dentro e de quem está
fora e calibram a intimidade e o distanciamento nos relacionamentos.”
Identificar o problema
O conhecimento sobre um segredo deve ser explorado em todas as suas características,
como por exemplo: Para quem é segredo? Quem sabe? Quem não sabe? Qual o objetivo do
segredo? A serviço de que existe esse segredo? Quem se beneficia do segredo? O que pode
acontecer se ele for revelado?
Quando respondidas essas questões, podemos nos situar melhor e usar essa informação para
a compreensão da dinâmica de quem nos procura. A partir desse entendimento, confirmaremos
ou não as hipóteses, tendo uma clareza do contexto, das alianças, das lealdades, dos conflitos e
valores e usaremos essas informações na construção do plano de intervenção.
É importante lembrar que qualquer tema que vira um segredo foi criado a partir de um
entendimento das pessoas envolvidas de que mantê-lo teria um efeito protetor. A proposta de
intervenção terapêutica em muitas situações pode ser percebida como uma ameaça e, portanto,
necessita não só de entendimento, mas da capacidade do profissional de saúde mental em saber
o momento adequado em que ele deve ser trabalhado.
Frequentemente, os temas tomados pelas famílias como segredos atrapalham a
comunicação e vêm carregados de preconceito, culpa, vergonha e outros sentimentos de valor
individual. A construção de um segredo nunca é um processo solitário. Ele é construído e
mantido por pessoas que acreditam na necessidade de sua manutenção para um fim específico.
Quando revelado, possibilita outras leituras e novos significados, dando permeabilidade para a
intervenção – como no caso de famílias com doença mental, adoção, etnias, infertilidade,
preferências sexuais e religião, por exemplo.
A manutenção de segredos é, sem dúvida, responsável pelo estabelecimento e perpetuação
de crenças e pela criação de mitos que farão parte da história de pessoas, famílias e sociedade.
Crença
“Não tinha jeito. A gente viveu bastante tempo juntos, mas foi sempre meio forçado. E
no momento em que ela começou a se tornar uma pessoa ruim pra mim, assim, eu via a
minha mãe, porque meus pais também foram separados e as brigas que eu tive com ela
era mais ou menos como minha mãe teve com meu pai, parecia que eu estava vendo o
estilo da minha mãe depois”.
“Os homens não prestam, todos só se preocupam com o dinheiro.”
“As mulheres são todas iguais”.
Alguém que tenha crescido ouvindo frases desse tipo pode, inconscientemente, seguir essa
crença, construindo uma dinâmica de relacionamento na qual a confiança e as expectativas são
determinadas por esse suposto conhecimento sobre as pessoas.
Mito
O mito é uma narrativa de caráter simbólico, que se utiliza de uma imagem contextualizada
e evolui com as condições históricas e étnicas relacionadas a uma dada cultura. Procura
preencher lacunas imagéticas, que atendam aos objetivos da sua própria criação. Andolfi
(1988) refere que:
“Em qualquer relação, mais cedo ou mais tarde, cria-se um mito, pois permanece uma margem de
ambiguidade, de algo não expresso: no processo de construção de ligação e do conhecimento recíproco,
esses vazios de informação são preenchidos pela formação de estereótipos que induzem os participantes a
comportamentos específicos, funcionais à manutenção do vínculo.”
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
Chega à unidade de saúde dona Sônia, 58 anos, casada, doméstica, mãe de três filhos
(Rose, 34 anos; Maria, 30 anos; e Lucas, 22 anos). Vem à consulta porque refere que as filhas
têm brigado muito com ela, pois ela não coloca limites no filho Lucas. Este não tem hora para
chegar em casa, não tem limites, não estuda nem trabalha, é agressivo com a mãe e consome
todas as suas economias, segundo elas.
Quando questionada sobre o que pensa, dona Sônia relata que não é bem assim, na verdade
Lucas é muito parecido com o pai, que sempre foi muito inteligente, gentil e determinado no
que queria fazer. Ela atribui algumas das condutas de Lucas a ser muito inteligente e a ter
dificuldade de se adaptar às rotinas impostas. Dona Sônia relata que desde que o sr. Paulo saiu
de casa, há 10 anos, as filhas encamparam a necessidade de educar Lucas para que ele tivesse
uma formação diferente da do pai.
Identificar o problema
Estabelece-se uma organização hierárquica dos mitos: o mito individual (do pai e do filho)
e o familiar de que os homens são inteligentes e, portanto, estão autorizados a ter condutas não
regradas. A ausência do pai conduz as irmãs mais velhas a uma condição hierárquica próxima
da mãe e, portanto, conflitiva com o irmão, que é percebido como pertencente a um outro
grupo (subsistema). Nessa configuração, existe uma permissão velada da mãe para que o filho
mantenha os sintomas.
Possibilidades
Trabalhar com a mãe para que esta possa exercer a parentalidade de uma maneira mais
realista.
Discutir com a mãe quem deve exercer o papel e a função parental. Fortalecer o vínculo
fraterno e trabalhar com a família a existência do pai e a necessidade do seu exercício de
parentalidade, independentemente da relação conjugal.
DICAS
REFERÊNCIAS
1. ANDERSON SA. The use of family myths as an aid to strategic therapy. J Fam Ther.
1983;5:145-54.
2. ANDOLFI M. Tempo e mito em psicoterapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.
3. ASEN E et al. Dez minutos para a família: intervenções sistêmicas em atenção primária à
saúde. Souza SM (trad.); Lopes JMC (rev. tec.). Porto Alegre: Artmed, 2012. p.25-35.
4. BAGAROZZI D, ANDERSON S. The evolution of family mythological systems: Considerations
for meaning, clinical assessment, and treatment. J Psychoanal Anthropol. 1982.
5. DUNCAN BB, SCHMIDT MI, GIUGLIANI ERJ, DUNCAN MS, GIUGLIANI C. Medicina
ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. 4. ed. Porto Alegre:
Artmed; 2013.
6. FOLEY VD. Introdução à terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
7. IMBER-BLACK E. Os segredos na família e na terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas,
1994.
8. POTE H, STRATTON P, COTTRELL D, BOSTON P, SHAPIRO D, HANKS H. Manual de terapia
familiar sistémica. Traducción y Adaptación: Lic. Ismael Otero C. Equipo de Psicología
Sistémica Constructivista EPSIC. Departamento de Psicología, Universidad de Chile, 2004. p.
29-36.
9. SLUSKY CE. La presencia de la ausencia. Barcelona: Gedisa; 2011. p. 117-160.
4
Abordagem em saúde mental
“Até 75% de todos os cuidados de saúde mental são prestados no ambiente de atenção
primária.”
(McCARRON et al., 2009, p.1, apud REIGER, 1988)
INTRODUÇÃO
O âmbito de atuação dos profissionais de atenção primária à saúde (APS) é amplo e regido
por princípios que orientam suas ações diante das necessidades das pessoas, famílias e
comunidades (LOPES e DlAS, 2019). Dessa forma, o cotidiano de quem trabalha na linha de
frente é bastante exigente. Ao lado das doenças infectocontagiosas somam-se os problemas
crônicos, as queixas múltiplas e indiferenciadas e condições emocionais que as acompanham.
Esses profissionais ocupam a linha de frente para identificar e tratar os problemas
emocionais e as doenças psiquiátricas (McCULLOCH et al., 1998), mas existe uma lacuna de
conhecimento sistematizado que facilite o desenvolvimento desse cuidado.
A adoção da abordagem clínica centrada na pessoa, levando em consideração o indivíduo,
sua doença, o contexto em que ocorrem seus problemas e a corresponsabilização do cuidado,
tem sido uma das formas de assegurar que os problemas psicossociais sejam contemplados
(STEWART et al., 2017). Entretanto, permanece árduo trabalhar as três faces do modelo
biopsicossocial.
Segundo a World Organization of Family Doctors (WONCA, 2017), transtornos mentais
usuais, como a depressão, ocupam o segundo lugar como causa de incapacidade em anos de
vida, perdendo somente para as doenças cardiovasculares, e, mesmo assim, o método mais
frequentemente usado para gerenciar transtornos mentais comuns na atenção primária tem sido
a prescrição de medicamentos psicotrópicos e os encaminhamentos para uma rede escassa de
serviços especializados. Portanto, as habilidades que demonstrem escuta ativa, as técnicas de
abordagens individual e familiar, a consideração do contexto psicossocial e as orientações que
possam auxiliar a realização dos diagnósticos psiquiátricos mais frequentes são muito bem-
vindas.
Este capítulo sugere algumas direções para a abordagem em saúde mental, sem excluir a
busca por evidências científicas. A orientação é por um caminho que reforce a parceria com o
paciente e sua família, no qual os problemas físicos e emocionais sejam mais bem controlados
e a adesão aos regimes de tratamento conquistada.
Para identificar qual abordagem os profissionais de saúde devem seguir, é fundamental
buscar as respostas de algumas perguntas-chave:
Essas questões são essenciais para todos os profissionais e suas respostas auxiliarão a
definir quem deve agir e seu possível espectro de ação, para que, a partir daí, sejam tomadas as
primeiras condutas.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Dar importância às questões de saúde mental. Se por um lado existe uma tendência
por parte dos pacientes em evitar trazer os problemas emocionais com medo de serem
mal interpretados, por outro lado existe um receio natural por parte dos profissionais em
abordar assuntos que tenham menor domínio. Buscar competências em saúde mental é
uma das chaves mestras para a melhor abordagem.
Valorizar habilidades de comunicação. Sobre habilidades de comunicação, a WONCA
(2020, p.4) refere que:
“Boas habilidades de comunicação são essenciais para consultas eficazes, sejam quais forem as condições
apresentadas pelos pacientes. Eles são de particular importância no campo da saúde mental, onde os
pacientes muitas vezes se encontram em um estado de vulnerabilidade e incerteza e precisam de cuidados
da mais alta qualidade.”
A abordagem centrada na pessoa é uma das técnicas que facilita o acesso à emocionalidade
e que os profissionais da Atenção Primária devem dominar.
Identificar e manejar sinais e sintomas de problemas frequentes em saúde mental.
Em cada encontro com o paciente e/ou sua família, é fundamental identificar situações
de risco e avaliar a possibilidade de transtornos psiquiátricos, sejam os mais comuns ou
os mais graves (WONCA, 2020).
Compreender e exercitar técnicas de abordagem sistêmica. Segundo Rakel e Rakel
(2016), as pessoas são seres extremamente complexos e, para que possam ser
compreendidas, é preciso saber abordar por meio do entendimento sistêmico de
causalidade das situações, e não mais pelo entendimento de causalidade linear dos
problemas. O conceito de abordagem sistêmica é discutido no capítulo “Premissas da
abordagem sistêmica”.
Manejar casos simples ou complexos e saber encaminhar se necessário. Sobre o
manejo dos casos simples ou complexos e os encaminhamentos, a WONCA (2020)
sugere que os profissionais da APS devam usar uma gama de opções e recursos
disponíveis para cuidar de pessoas com problemas de saúde mental e adaptá-los às suas
necessidades e de seus cuidadores. Somente após esgotadas as possibilidades de
resolução na atenção primária a rede de apoio profissional com especialistas focais deve
ser acessada.
IDENTIFICAR O PROBLEMA
Os profissionais da APS atendem muitos pacientes com problemas de saúde mental, mas
geralmente hesitam em como ajudá-los.
Ao identificar um problema de saúde mental, os profissionais devem:
1º cenário
Utilize os atributos da APS, como: (1) facilite o acesso ao atendimento; (2) coordene o
cuidado; (3) conheça a pessoa ou família ao longo do tempo; e (4) preocupe-se com a
resolubilidade da situação. As atribuições e os princípios da APS são guias que orientam
as ações (VALLADÃO e RAMOS, 2017).
Realize a consulta utilizando o Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP), dando
ênfase com a técnica BATHE.
O MCCP é uma metodologia de abordagem bastante conhecida na APS, na qual o
profissional que está realizando o atendimento tem como tarefa “entender a pessoa e
entender a doença da pessoa” (FREEMAN, 2018, p.203). Tem como objetivo a
singularidade de cada indivíduo visto no seu contexto biopsicossocial e cultural
(RAMOS, 2008). Para tanto, o cuidado com a pessoa deve ser compreendido como uma
forma de tomar a decisão compartilhada.
De acordo com Stewart et al. (2017, p.4):
“...a noção hierárquica de que o profissional está no comando e de que a pessoa que busca cuidado é
passiva não se sustenta nessa abordagem. Para ser centrado na pessoa, o médico precisa ser capaz de dar
poder a ela, compartilhar o poder na relação, o que significa renunciar ao controle que tradicionalmente
fica nas mãos dele.”
O ato de compartilhar o poder na consulta tem início na descoberta do motivo real que traz
a pessoa em busca de ajuda. Muitas vezes a causa biológica é apenas uma desculpa para gerar o
encontro com o profissional, mas não o fato verdadeiro.
Para Stuart e Lieberman (2019), não há mais dúvidas da conexão entre a saúde das pessoas,
seus estados emocionais e as circunstâncias de suas vidas. Muitos problemas emocionais se
manifestam como problemas físicos e muitos problemas físicos têm consequências emocionais,
portanto devem ser tratados de forma integrada. Por esse motivo, faz-se necessário dominar a
técnica BATHE.
A técnica BATHE é um acrônimo que proporciona acessar as questões emocionais e facilita
a realização do Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP).
Segundo McCulloch et al. (1998):
“Numerosos estudos confirmam que os problemas emocionais são prevalentes em pacientes que procuram
médicos de família. Poucos desses pacientes são encaminhados para atendimento psiquiátrico, em parte
porque o clima atual de atendimento gerenciado desencoraja encaminhamentos de especialidades de saúde
mental. Mesmo quando os pacientes são encaminhados, eles muitas vezes relutam em seguir em frente com
especialistas em saúde mental por uma variedade de razões. Portanto, os médicos de família devem
desenvolver estratégias para tratar esses pacientes e, ao mesmo tempo, cuidar de seus problemas clínicos.
Em particular, eles precisam de um método eficaz de incorporar a psicoterapia na visita do paciente.
A técnica BATHE é uma forma de intervenção psicoterapêutica projetada para se adequar perfeitamente a
uma consulta de 15 minutos. A sigla BATHE se refere aos componentes da entrevista. Esse formato de
entrevista permite ao médico avaliar a situação de fundo, o afeto do paciente, o problema que é mais
preocupante para o paciente e a maneira como o paciente está lidando com o problema. Conclui com uma
resposta que transmite empatia.”
A técnica BATHE parte do princípio de que se você não sabe sobre a vida e o contexto do
paciente, a queixa principal não é realmente abordada. Idealmente, a técnica deve ser aplicada
no início da consulta. Cada letra da sigla “BATHE” tem um significado em inglês, e a tradução
seria:
Essa abordagem com a técnica BATHE é uma forma simples de lidar com as emoções e,
muitas vezes, suficiente para os pacientes. Essa é uma maneira de as pessoas perceberem que
estão sendo ouvidas e compreendidas e, também, um modo de auxiliar os profissionais a
identificarem depressão, ansiedade ou outros sintomas perturbadores. Pode ajudar a determinar
por que o paciente está aqui e agora na consulta. Oferecer uma resposta empática tranquiliza o
paciente de que o profissional o entendeu (STUART e LIEBERMAN, 2019).
2º cenário
Se você detectou uma situação de crise ou algum transtorno psiquiátrico sem sinais de
risco, deve, inicialmente, definir se a situação é individual ou se estão envolvidas outras
pessoas. Se a situação é individual, a princípio, não é preciso chamar a família, a não ser que
ocorra um transtorno psiquiátrico no qual seja necessária a participação da família.
Caso outras pessoas estejam envolvidas na situação de crise, sugere-se uma abordagem
familiar, pois as intervenções têm uma resposta mais rápida para que novos padrões de
funcionamento familiar sejam estabelecidos. A abordagem familiar é uma boa escolha quando
você detecta uma situação que exija uma intervenção planejada e continuada. Então, é
importante ter conhecimentos mais aprofundados sobre a teoria sistêmica, discutida no capítulo
“Premissas da abordagem sistêmica”.
3º cenário
No Brasil, não temos um sistema de atenção secundária articulado com outros níveis de
atenção de forma a desenvolver um melhor cuidado em saúde mental. Portanto, é fundamental
nos familiarizarmos com os diagnósticos mais frequentes e aprendermos a lidar com eles.
Acreditamos que o “screening” AMPS seleciona as situações que mais frequentemente
ocorrem na APS.
AMPS é uma sigla que designa os seguintes diagnósticos, em inglês:
O estudo minucioso dessas quatro situações é mandatório para domínio dos profissionais da
APS. Para médicos e enfermeiras, sugerimos a inclusão do exame do estado mental, que
equivale ao exame físico. Este deve estar documentado quando alterado (HERSEVOORT et al.,
2019).
Segundo Albuquerque e Dias (2019, p.295):
O exame do estado mental é parte fundamental da avaliação da pessoa. Diversas áreas merecem atenção e
devem ser examinadas no atendimento de uma pessoa com problemas de saúde mental. As principais são
atenção, sensopercepção, representações, memória, orientação, consciência, pensamento (juízo, raciocínio),
linguagem, afetividade, inteligência e atividade voluntária (conduta).
Elas podem ser agrupadas em uma fórmula mnemônica conhecida pelas suas iniciais, como:
ASMOCPLIAC (atenção, sensopercepção, memória, orientação, consciência, pensamento, linguagem,
inteligência, afetividade, conduta).
Existem outros cenários, mas esses três citados foram escolhidos por serem mais
prevalentes.
CONSIDERAÇÕES
Para trabalhar com saúde mental é fundamental primeiro perceber-se, ouvir-se internamente
e ser capaz de demonstrar escuta ativa. É importante demonstrar habilidades de cordialidade,
interesse, respeito, empatia e apoio ao paciente.
A capacidade empática é filha da curiosidade e a chave do respeito pelo outro.
Compreender é diferente de entender, segundo Andolfi (2003), compreender significa
participar com o outro, é fazer parte do mundo emocional e, para isso, o recurso indicado é a
técnica BATHE. Já o sentido da palavra entender designa a capacidade racional de perceber o
problema, sem incluir o afeto.
Precisamos capacitar pacientes e suas famílias para se tornarem melhores solucionadores de
seus problemas e, para tanto, a abordagem familiar sistêmica é ferramenta singular na APS.
Sugerimos também maior familiaridade com os diagnósticos mais frequentes na APS para
que possamos ter o máximo de resolubilidade com humanidade.
Muitos médicos de família se comunicam com os pacientes e suas famílias por meio de
aplicativos de vídeo ou chamadas telefônicas. Atente-se para excluir situações de risco de
morte.
REFERÊNCIAS
1. ALBUQUERQUE MAC, DIAS LC. Abordagem em saúde mental pelo médico de família. In:
GUSSO G, LOPES JMC, DIAS LC (orgs.). Tratado de medicina de família e comunidade:
princípios, formação e prática. 2.ed. Porto Alegre: Artmed; 2019. p. 295
2. ANDOLFI M. Manual de psicologia relacional: la dimension familiar. Colombia: Corporación
Aldolfi González/Accademia di Psicoterapia della Famiglia; 2003. p.184-185.
3. ARAÚJO lN, FIGUEIRA MD. Gestão da clínica. In: VALLADÃO JUNIOR JBR, GUSSO G, OLMOS RD
(eds.). Medicina de família e comunidade. 1.ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 2017. p.4
4. DOWRICK C (ed.). WONCA Global primary mental health care: practical guidance for family
doctors. London: Routledge; 2020. p. 4.
5. FREEMAN TR. Método clínico em manual de medicina de família e comunidade de Mc
WHINNEY. Islabão AG, Burmeister AT (trads.). 4.ed. Porto Alegre: Artmed; 2018. p.203.
6. HERSEVOORT S, McCARRON RM, XIONG GL. Primary care psychiatry handbook. Wolters
Kluwer Health; 2019. p.3.
7. LOPES JMC, DIAS LC. princípios da medicina de família e comunidade em tratado de
medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. Gusso G, Lopes JMC, Dias
LC (trads.). 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2019. p.4.
8. McCARRON RM, XIONG GL, BOURGEOIS JA. Lippincott’s primary care: psychiatry.
Philadelphia: Wolters Kluwer Health/Lippincott Williams & Wilkins; 2009. p.1.
9. McCULLOCH J, RAMESAR S, PETERSON H. Psychotherapy in primary care: the BATHE
technique. Am Fam Physician. 1998;57(9):2131-4.
10. RAKEL RE, RAKEL DP. Textbook of family medicine. 9.ed. Philadelphia: Elselvier Saunders,
2016. p.28.
11. RAMOS V. A consulta em 7 passos. 1.ed. Lisboa: VFBM Comunicação; 2008.
12. STEWART M, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Tradução:
Anelise Burmeister, Sandra Maria Mallmann da Rosa; revisão técnica: José Mauro Ceratti
Lopes. 3.ed. Porto Alegre: Artmed, 2017. p.4.
13. STUART MR, LIEBERMAN JA. The BATHE technique: Key to making your practice patient-
centered in The Fifteen Minute Hour- Efficient and Effective Patient-Centered Consultation
Skills. 6.ed. New York: CRC Press, 2019. p.1, 4, 8.
14. WONCA. Family doctors’ role in providing non-drug interventions (NDIs) for common mental
health disorders in primary care. 2017. Disponível em:
http://www.globalfamilydoctor.com/site/DefaultSite/filesystem/documents/Groups/Mental%
20Health/WPMH%20role%20of%20FPs%20in%20non%20drug%20interventions.pdf. Acesso
em: 2 jan. 2021.
15. WONCA. Por que precisamos de um grupo de trabalho em saúde mental; 2018. Disponível
em: https://www.globalfamilydoctor.com/groups/WorkingParties/MentalHealth3.aspx
Acesso em 7/1/2021.
5
Técnicas para abordagem familiar
INTRODUÇÃO
Perguntas importantes:
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Entrevista
ATENÇÃO
Objetivos da abordagem
Segundo Liotti y La Rosa (1991):
“Um de seus propósitos é facilitar o desenvolvimento da consciência reflexiva das regras que orientam o
comportamento de alguém e das pessoas com quem se mantém relações significativas.”
Objetivos
Objetivos do paciente
Alívio do sintoma.
Certificação da forma como vem trabalhando com o problema.
Elaboração de um projeto pessoal.
Criar vínculos significativos.
Objetivos do profissional
Definir com a pessoa se ela está em condição confortável consigo mesma para as trocas
a serem feitas em uma entrevista ampliada.
Melhorar e clarear a comunicação na família.
Facilitar a expressão de afetos.
Auxiliar a pessoa a adequar a necessidade para poder elencar prioridades.
Melhorar a capacidade de modular as emoções frente às situações difíceis e criar
resiliência.
ATENÇÃO
ATENÇÃO
Sempre chame quem da família você considerar importante ter na consulta, e faça-o o mais breve
possível. Isso evita distúrbios de comunicação entre o paciente, você e a família.
Agora que você já sabe o que é uma entrevista e quando ela é utilizada, você aprenderá,
passo a passo, como ela deve ser feita para obter resultados eficientes.
Momento pré-sessão
Apresentação
Receba o paciente e a sua família, agradeça-os por terem aceitado a participação e convide-
os a sentar. Nesse momento, observe a disposição das pessoas na sala, como se organizam,
quem é próximo de quem, se alguém comanda, por exemplo.
Apresente-se e, se tiver colegas na sala, peça que também o façam. Em seguida, solicite que
todos se apresentem e observe como fazem: se usam os nomes, a função, o papel na família, ou
adjetivam alguém.
Entendimento da situação
Comece perguntando se sabem por que foram convidados, quem os convidou, como e o
porquê.
Peça que cada um diga o que pensa sobre o que está acontecendo.
Após ouvir a todos, faça uma síntese.
Confirme se seu entendimento está correto.
Elenque as situações que apareceram.
Convide-os a elegerem o problema a ser trabalhado.
Definição do problema
A relação profissional-paciente tem a tarefa de compartilhar o problema e de resolvê-lo, de
forma a diminuir o sofrimento, ampliar a visão sobre ele e criar possibilidades e estratégias
para enfrentá-lo.
É nessa fase da entrevista que vai ser construído o vínculo terapêutico, por meio do
acolhimento, da atenção, da curiosidade, da comunicação clara e da empatia.
Para definir o problema, por meio de perguntas, o profissional de saúde auxilia o paciente a
reconhecer e definir os limites do problema. Exemplos de perguntas que podem ser utilizadas
nessa tarefa:
Contextualização
Dramatização
Nessa técnica, o profissional pede à família para que demonstrem como fazem, como
conversam, como ouvem, como discutem e, dessa forma, facilitam a intervenção terapêutica.
Os membros da família param a queixa no encontro e tentam descrever, comentar e explicar
ao profissional como a “queixa, briga, discussão” ocorreria em casa. Isto delimita o montante e
a qualidade da informação. Quando o profissional consegue que os membros da família
interatuem, discutindo alguns dos problemas que consideram disfuncionais e negociando
acordos e desacordos, isso desencadeia uma série de sequências que escapam ao controle deles.
A técnica coloca-os na situação e, aos poucos, a dinâmica habitual acaba por prevalecer,
evidenciando-se o que ocorre fora da entrevista, possibilitando a intervenção.
Focalização
É a seleção e organização dos relatos descritos pela família, em que a abordagem deve
conferir sentido e, ao mesmo tempo, promover mudança. O profissional, após ouvir a história,
vai colocar em relevo as prioridades, que serão o objeto “foco” da intervenção.
DICA
Cuidado para não perder o foco e não misturar prioridades. Quando temos muitas prioridades, não
temos um foco de intervenção.
Exemplo:
Reenquadramento
Exemplo:
Espontaneidade
Coparticipação
Coparticipar com uma família é mais uma atitude que uma técnica. É deixar a família saber
que você (profissional) os compreende e está trabalhando com os mesmos objetivos que eles.
Planejamento
Mudança
Reestruturação
Paradoxos
Situação-problema: o casal dorme em camas separadas e a mãe dorme com a filha mais
velha (8 anos), porque ela refere que tem medo. Nega-se a dormir no quarto da outra
irmã e só aceita a mãe.
Intervenção: se o entendimento é por medo e, se for, de que é? Quem sabe então por 1
semana toda a família dorme junto para se proteger. Com isso, aparecem os motivos de
por que a mãe, por que no quarto dela e por que então não proteger o resto da família.
Forças
As famílias que procuram atendimento apresentam uma história, uma cultura e um grupo
de valores que desconhecemos. Na abordagem familiar, é essencial a curiosidade sobre o
contexto atual e a história das famílias. A partir desse conhecimento, vamos levantar
potencialidades e legitimar as forças saudáveis existentes, que irão fortalecer a autoestima da
família e servirão de alavanca para a intervenção.
Por muitos anos, profissionais bem formados e com boas intenções foram treinados a
diagnosticar e avaliar vulnerabilidade, risco pessoal e familiar e, com isso, caracterizam
famílias por riscos. Com o aprofundamento do conhecimento sobre pessoas e famílias em
diferentes contextos (miséria, migrações, gênero, nacionalidades, etnia etc.) e um
reconhecimento das diversidades como tal, sem patologizar, adquirimos potencialidades
diversas.
Hoje, o processo terapêutico deve estar integrado ao contexto de quem procura atendimento
e com o objetivo de conhecer e reconhecer diferenças para potencializar pontos positivos,
resiliência, cultura, capacidade de adaptação, afeto e comunicação como elementos essenciais
na construção de uma proposta de tratamento ou acompanhamento de pessoas e famílias.
Exemplo:
Uma vez que tenha sido realizada a intervenção, o profissional deve criar, juntamente com
a família, um plano de seguimento, observando os seguintes aspectos:
Após a consulta, a família sai com um plano de ação claro e objetivo, mas não
necessariamente ele se manterá funcional ao longo do tempo. Por isso, é importante marcar um
novo encontro, possibilitando que o profissional faça com ela a avaliação dos objetivos criados
e o reajuste conforme a necessidade. Nesse momento, deve-se:
REFERÊNCIAS
1. ASEN E, TOMSON D, YOUNG V, et al. Dez minutos para família: intervenções sistêmicas em
atenção primária à saúde. Souza PM (trad.). Porto Alegre: Artmed, 2012.
2. CANEVARO A. Terapia individual sistémica com la participacion de familiares significativos.
Cuando vuelan los cormoranes. Madrid: Ediciones Morata; 2010.
3. FISCB R, SCHLANKER K. Brief therapy with intimidating cases. Changing the unehangeabl.
Ferrer I (trad.). 2.ed. Barcelona: Herder; 2012.
4. MCCUBBIN M, MCCUBBIN H. Resiliency in families: a conceptual model of family adjustment
and adaptation in response to stress and crises. In: McCubbin HI, Thompson AI, McCubbin M
(eds.). Family assessment: Resiliency, coping and adaptation. Madison, WI: University of
Wisconsin Publishers; 1996. p.1-64.
5. MCGOLDRICK M, GERSON R, PETRY S. Genograms: assessment and intervention. 3.ed. New
York: W.W. Norton & Company; 2008.
6. MINUCHIN S, FISHMAN HC. Técnicas de terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
7. Organização Mundial da Saúde (OMS), War Trauma Foundation e Visão Global Internacional.
Primeiros Cuidados Psicológicos: guia para trabalhadores de campo. Genebra: OMS; 2015.
8. SLUZKI C. A rede social na prática sistêmica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
9. MCDANIEL SH, CAMPBELL TL, HEPWORTH J, LORENZ A. 2.ed. Family - Oriented Primary Care.
New York: Springer; 2005.
10. VON SYDOW K, BEHER S, SCHWEITZER J, RETZLAFF R. The efficacy of systemic therapy with
adult patients: a meta-content analysis of 38 randomized controlled trials. Fam Process.
2010;49(4):457-85.
11. WALSH F. Fortalecendo a resiliência familiar. São Paulo: Roca; 2005.
6
Técnicas de abordagem para uma consulta rápida em saúde
mental
“Não pense por muito tempo, faça. Mas não faça por muito tempo, pense.”
Confúcio
INTRODUÇÃO
Parece difícil conjugar qualidade de uma consulta com uma abordagem rápida, assim como
expressar afetos de maneira veloz, mas o cotidiano da atenção primária à saúde (APS) é uma
“caixinha de surpresas”, sempre apresentando algo inusitado e diferente. Mediante tantas
necessidades que se apresentam, a realização de uma consulta rápida em saúde mental se faz
necessária.
A consulta rápida não se restringe a situações de emergência. Nesse caso, os riscos sobre a
saúde vão direcionar a velocidade e as técnicas que beneficiam o cuidado. Excluindo o
atendimento de emergência, a maior parte da atenção e tratamento na APS deve ocorrer por
meio do compartilhamento do poder entre profissional e paciente, e a tomada de decisão vai
considerar mediações de maior e menor risco, custo e grau de complexidade. Entretanto, a
atuação dos profissionais ainda pode ser “oportunista”, no sentido de viabilizar a resolução de
problemas expressos ou não, e como Stewart et al. (2017, p.15) referem: “às vezes, as
expectativas das pessoas são muito claras e diretas. (...) Logo, nem sempre é essencial explorar
com profundidade a percepção de sua saúde ou a experiência de doença da pessoa.” O
importante é definir a necessidade que se apresenta, trazida de forma explícita pela pessoa,
percebida como o problema ideal para ser abordado ou reconhecida pelo profissional como
algo que fará a diferença no contexto da situação.
Sendo assim, neste capítulo é considerada consulta rápida em saúde mental, um momento
em que foram abordadas as emoções das pessoas de forma intencional, encurtando tempos de
consulta e facilitando manejos. As técnicas são ferramentas facilitadoras que promovem o
acesso rápido para a definição do que seja o problema, assim como ações que diminuam o
impasse terapêutico.
Omer (1997, p.11) refere que: “o impasse prolongado provavelmente é a provação mais
dura e mais onipresente da psicoterapia.” O impasse descrito por ele trata-se do
questionamento sobre qual abordagem seria de melhor ajuda para desencadear uma evolução
terapêutica que possa estar estagnada.
O objetivo deste capítulo é colocar em evidência técnicas que facilitem acessar de forma
rápida as emoções das pessoas, abreviar tempos de consulta e nortear uma abordagem
emocional.
Perguntas-chave para o entendimento:
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
O processo evolutivo que a família passa ao longo dos anos (seu ciclo de vida) delimita
etapas nas quais ocorrerão eventos naturais de mudança e adaptação para que o sistema
familiar se prepare para a próxima fase do ciclo. Como refere Asen et al. (2012, p. 130): “toda
família passa por diferentes fases na sua vida, e cada nova fase apresenta um desafio à
organização e ao equilíbrio.”
Acredita-se que em cada fase há um processo de transição e vulnerabilidade, no qual os
sintomas poderão aparecer, principalmente se houver interrupção no ciclo em andamento. Os
momentos de crise são mais vulneráveis e essas crises podem ser previsíveis, já que se sabe que
em cada cultura as etapas do ciclo de vida são semelhantes. Dessa forma, é possível prever
possíveis vulnerabilidades classificando o momento do ciclo de vida que a pessoa e a família
estão passando.
As crises também podem ocorrer de forma imprevisível. Estas são chamadas de crises
acidentais, como morte não esperada, perda de emprego etc.
O ciclo de vida familiar fornece um modelo para acessar rapidamente as preocupações do
indivíduo e da família (McDANIEL et al., 2005) e assim direcionar, ou não, a entrevista.
Outra técnica que encurta os tempos de consulta é realizar uma entrevista organizada. Esta
fornece uma estrutura segura para as pessoas expressarem suas preocupações dentro de uma
limitação de tempo de uma agenda ocupada de um profissional. Organizar uma entrevista
significa ter objetivos que levarão em consideração o que é referido como sendo o mais
importante para o paciente (McDANIEL et al., 2005) e, a partir daí, dissecar os afetos,
distinguir quais prevalecem e que possam estar associados aos sintomas.
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
CONSIDERAÇÕES
A sequência de técnicas para uma consulta rápida pode seguir o seguinte modelo:
REFERÊNCIAS
“Famílias em crise muitas vezes parecem administrá-las de forma que você talvez não
compreenda, e, às vezes de uma maneira que você não escolheria. As rotas pelas quais as
pessoas navegam suas vidas são maravilhosamente variadas-isso é, em parte, o que faz da
APS um cenário tão rico para trabalhar.”
(ASEN, 2012, p.215).
INTRODUÇÃO
Ao longo da vida, as famílias passam por uma série de eventos, alguns previsíveis e outros
imprevisíveis, que constituem o ciclo de vida familiar. O tipo de evento e as características da
competência em resolvê-los estão diretamente relacionados a como irão enfrentar a situação e
se conseguirão passar de um estágio a outro da vida familiar. A prática de atenção primária à
saúde (APS) tem mostrado que pequenas intervenções nesses momentos de crise auxiliam as
pessoas e famílias a enfrentar crises com mais resiliência.
Todas as famílias têm crises e isso afeta de diferentes formas as pessoas. A reação familiar
depende da interação e das relações entre seus membros. Algumas responderão à crise com
afeto, segurança, equilíbrio e crescimento familiar, enquanto outras ficarão inseguras, ansiosas,
deprimidas, desorganizadas e com a sensação de incapacidade. Essas famílias estão
fragilizadas, vulneráveis e frequentemente chegam ao serviço de atenção primária por
adoecimento físico e/ou psíquico de seus membros decorrentes do estresse da situação
desencadeadora que enfrentam.
As famílias têm níveis de energia e de habilidade para enfrentar os desafios da vida, mas
nas crises a reação familiar depende de diversos fatores como: o momento do ciclo de vida
familiar, como se relacionam, o grau de independência e autonomia, a forma como passaram
por outras crises, a cultura familiar em que estão inseridas e a resiliência pessoal e familiar.
Para conhecer as famílias na sua estrutura, seu momento de vida, suas relações, sua rede de
apoio e a cultura intergeracional contamos com instrumentos simples e adequados à prática em
APS.
Os instrumentos mais frequentemente utilizados pelas equipes multiprofissionais são: a
entrevista, o genograma, o ciclo de vida e o ecomapa ou mapa de rede. Estes possuem a função
de auxiliar na obtenção de informações, organização, compreensão, síntese e intervenção.
Ao planejarmos pequenas intervenções, na grande maioria das vezes estamos pensando na
abordagem em crises. O ciclo vital por si só já é uma fonte de demanda das famílias, e em
muitas delas o objetivo é auxiliar precocemente no desempenho de papéis e funções de forma a
prevenir disfuncionalidades e sintomas. Outras situações de crise não previsíveis também
respondem muito adequadamente a esse tipo de intervenção como: o luto, as separações, os
divórcio, a violência, as situações de vulnerabilidade social, as adições e as migrações.
Quando não buscamos entender o momento da família e o contexto em que está inserida,
não conseguimos fazer hipóteses diagnósticas e poderemos incorrer no erro de fazer
intervenções não terapêuticas que, muitas vezes, podem perpetuar uma situação disfuncional.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Crise vital previsível: são as modificações esperadas que as famílias atravessam ao longo
da vida familiar no enfrentamento de tensões adaptativas a novos desafios no
desenvolvimento familiar. Por exemplo: o nascimento do primeiro filho, casal cujos
filhos estão saindo de casa.
Crise vital imprevisível: é uma situação não planejada com tensão e necessidade de
adaptação sob pressão pelo novo, inesperado e com adaptação de papéis, funções e um
novo contexto. Por exemplo: morte precoce de filho, perda da renda familiar, catástrofes.
Ciclo vital da família: é uma sequência de crises desenvolvimentais ao longo da vida
familiar.
Intergeracionalidade: transmissão da cultura familiar de uma geração a outra.
Genograma: é um instrumento gráfico de representação da família extensiva, com várias
gerações (geralmente três), com dados e relações que se estabelecem na família.
Ecomapa: instrumento gráfico que representa a rede de apoio e as relações que
estabelecem, constituindo o contexto no qual a família está inserida.
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
A sra. Lúcia, 57 anos, vem à consulta por apresentar cefaleia intensa e insônia desde que a
família se mudou para um apartamento mais próximo do centro da cidade. Refere que nunca
pensou em morar no centro, mas desde que ficou mais deprimida fica muito tempo em casa e
acha que teria muita dificuldade para cuidar do jardim e das árvores frutíferas do pátio. Relata
que “todos” estão trabalhando e ela não.
O médico de família que a atendeu percebeu que ela precisava falar um pouco mais e
resolveu marcar uma consulta programada, explicou a ela que seria para conhecê-la melhor e
também a sua família.
Recomendou que se ela quisesse poderia trazer fotos da família, porque ele iria fazer um
genograma, e com isso poderia saber como funcionam.
Identificar o problema
Existem várias formas de identificar o problema e, para isso, o profissional deve usar os
recursos que conhece e que são muito adequados em um atendimento de APS.
No cenário de intervenção relatado, faremos uma entrevista, usaremos o genograma e o
ciclo de vida.
Passados 5 dias:
D. Lúcia chega no posto para a consulta com Dr. Pedro: “Vamos fazer aquele desenho que você disse na
outra consulta? Como é mesmo o nome?”
Dr. Pedro: “É o Genograma. Vamos conversando desde o início da sua vida e eu vou montando o de vocês,
enquanto conheço um pouco da família. Pode ser assim?”
D. Lúcia: “Sim, estou muito curiosa.”
Dr. Pedro: “D. Lúcia, me apresente sua família e a de seus pais. Fale-me como é a família do seu Paulo.
Quem é a sua família? O que faziam? Trabalham, estudam? Você tem irmãos? São de onde?”
D. Lúcia: “Eu sou de Pelotas, tenho 57 anos, não trabalho fora e o Paulo, meu marido, era de Rio Grande.
Nos conhecemos em um aniversário na minha família, era uma festa de quinze anos da minha prima e ele
foi convidado, porque o pai dela vai à cidade dele para levar peças de motores para o porto. Eles se
conheceram no trabalho e meu tio brincou com ele que iria arrumar uma namorada para ele.
Na festa, fomos apresentados e logo começamos a namorar. Eu sou a filha mais velha de
dois filhos (eu e meu irmão), o Paulo é 2 anos mais velho que eu. Meus pais tinham comércio e
os pais dele tinham duas farmácias na cidade dele. Ele era filho único e bem mimado. A minha
sogra passou tanto trabalho com meu sogro que bebia muito e acho que foi por isso que acabou
muito agarrada com o Paulo.
No início do namoro foi difícil, meu pai tinha ciúme dele, não deixava a gente sair sozinhos
e sempre trazia como problema o fato de sermos de religiões diferentes. Na minha época a
gente só podia sair com os amigos. Eu já tinha terminado o 2º grau, trabalhava na loja e no
porto como auxiliar administrativo.
Quando casamos foi muito difícil o começo, o Paulo passou a trabalhar com o pai dele,
ficou gerenciando uma das farmácias, mas foi pior, ele trabalhava muito e ganhava menos que
no porto.
Estávamos juntos há 3 anos quando engravidei da Ana Paula, que hoje tem 30; na época eu
tinha 23 e o Paulo 25. Não planejamos a gestação, mas aceitamos em seguida. A família dele
não gostou e acabou brigando com o Paulo. Só fizeram as pazes quando ela ia fazer 15 anos e
eu já tinha a Rafaela, que hoje está com 22 anos. Nossas filhas moram conosco, mas a Ana já
teve um relacionamento e tem uma filha de 8 anos, que é a minha alegria. Ela nunca ficou com
o pai da Alice, mas nós ajudamos muito ela, eu sempre disse “deixa tudo comigo e vai
estudar’’ e ela aproveitou, agora tem um namorado há 2 anos e estão montando o apartamento.
Ela quer que a minha neta vá com ela, mas eu acho que ela deve começar o casamento e depois
a Alice vai.
Sabe Dr., eu não consigo imaginar a casa sem elas e ainda mais que com a pandemia a Rafa
tem vindo só no domingo para casa. Ela fica no namorado, que é mais perto do trabalho, e eles
ficam trabalhando um bom tempo em casa.
O Paulo não se mete, para ele já está na hora de as filhas darem um jeito na vida e sempre
diz que agora a preocupação é com os nossos pais, que já estão doentes. Na família dele todo
mundo tem pressão alta e diabetes, na minha só meu pai tem problema, mas foi por causa do
cigarro. Nossa! Eu falei tanto que cansei.”
O GENOGRAMA
DICA
A família da D. Lúcia e Seu Paulo pode ser vista na linha horizontal (o casal e as filhas). O
genograma tem quatro gerações (avós, tios, o casal Lúcia-Paulo, suas filhas e a neta).
Usaremos o caso da família de Lúcia e Paulo para exemplificar possibilidades ao longo de todo o
ciclo vital.
Possibilidades
FORMAÇÃO DE CASAL
Possibilidades
GESTAÇÃO OU ADOÇÃO
Possibilidades
Discutir como irão combinar a participação das famílias no cuidado com o bebê.
Discutir divisão de tarefas nos cuidados com o bebê.
Avaliar a necessidade de autonomia e cooperação.
Reforçar o vínculo do casal.
A família com filhos pequenos se caracteriza por uma expansão de papéis e funções de
todos os membros da família nuclear e extensa. Ocorre uma mudança, esse é um momento de
crise previsível e possível de ser trabalhado preventivamente.
DICA
Utilize outros espaços e outros profissionais (agente de saúde, enfermeira, serviço social,
psicólogos) na elaboração de um plano de acompanhamento.
Possibilidades
Discutir o cuidado.
Fortalecer a parentalidade da Lúcia e Paulo.
Auxiliar a conviver com os novos papéis e funções na família e aceitar colaboração.
FILHOS NA ADOLESCÊNCIA
Pergunte quem compõe a família nesse momento. São os pais biológicos ou é uma
família reconstituída?
Procure conhecer o contexto do adolescente em relação à família.
Questione sobre o convívio e a proximidade com o pai e a mãe; se houver madrasta ou
padrasto pergunte como se relacionam.
Avalie quem orienta e quem tem poder de decisão sobre o adolescente.
Pergunte como resolveram crises anteriores do casal, do casal com os filhos, dos filhos
entre si, da família nuclear com a família extensa e da rede de apoio.
Avalie como distribuem o poder, como demonstram afeto e como é a comunicação entre
eles.
Procure entender se a família é permeável, e se há entrada e saída de pessoas para avaliar
a socialização da família.
Busque conhecer a cultura familiar em relação à privacidade, sexualidade, dependência e
autonomia dos filhos.
Possibilidades
Esta é uma fase complexa da família, somam-se momentos de encolhimento da família pela
saída dos filhos de casa, aposentadoria, perda de amigos e de familiares da geração anterior. É
um momento mais introspectivo, a saúde física necessita de cuidados, a depressão é frequente e
a aposentadoria traz uma necessidade de adaptação a um novo contexto: pessoal, social,
econômico e relacional.
DICA
Lembre-se de que famílias muito fechadas, com vida social pobre, apresentam mais violência, uso
de substâncias psicoativas, negligência e todas as outras formas de sofrimento mental.
Possibilidades
TERCEIRA IDADE
A terceira idade é cada vez mais longa, por esse motivo uma série de transformações na
inserção familiar e social dessas pessoas é fonte de atenção. A classe popular tem a terceira
idade mais ativa economicamente, com frequência eles se encontram trabalhando ou sustentam
a família com a sua aposentadoria.
Outras condições são possíveis, como morar sozinho, depender de instituições, ter ou não
rede de apoio.
É muito importante trabalhar as angústias dessa fase da vida, discutir os planos para o
futuro e avaliar a saúde mental e física de forma a auxiliar nas questões de autonomia e
independência pessoais e em relação à família.
Possibilidades
REFERÊNCIAS
1. ASEN E, TOMSON D, YOUNG V, et al. Dez minutos para família: intervenções sistêmicas em
Atenção Primária à Saúde. Souza PM (trad.). Porto Alegre: Artmed; 2012.
2. BREUNLIN DC, SCHWARTZ RC, KUNE-KARR BM. Metaconceitos: transcendendo os modelos
de terapia familiar. Trad.: Magda França Lopes. 2.ed. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; 2000.
3. CARTER B, McGOLDRICK M, et al. The expandin life cyclo. Individual, family and social
perspectives. 5.ed. New Jersey: Pearson; 2016.
4. COLE-KELLY K, SEABURN DB. A family-oriented approach to individual patients. Family-
Oriented Primary Care. Philadelphia: Springer; 2005. p. 43-53.
5. ELKAIN M (org.). Panorama das terapias familiares. Trad.: Eleny Corina Heller. São Paulo:
Summus;1998.
6. FERNANDES CLC, DIAS LC. Ferramentas da prática do Médico de Família e Comunidade:
abordagem familiar. In: Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade PROMEF
Programa de Atualização em Medicina de Família e Comunidade - Ciclo 10. Porto Alegre:
Artmed Panamericana, 2015.p 9-60 (Sistema de Educação Continuada a Distância, vol. 3).
7. FOLEY VD. Introdução à terapia familiar. Trad.: Abreu JOA. Porto Alegre: Artes Médicas;1990.
8. GUSSO G, LOPES JMC, DIAS LC (orgs.). Tratado de medicina de família e comunidade:
princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 2017. p.282-292.
9. MINUCHIN P, COLAPINTO J, MINUCHIN S. Trabalhando com famílias pobres. Porto Alegre:
Artmed; 1999.
10. MCGOLDRICK M, GERSON R, PETRY S. Genograms: assessment and intervention. 3.ed. New
York: W.W. Norton & Company; 2008.
11. PAYÁ R (org.). Intercâmbio das psicoterapias: como cada abordagem psicoterapêutica
compreende os transtornos psiquiátricos. 2.ed. Rio de Janeiro: Roca; 2017.
12. WALSH F. Processos normativos da família: diversidade e complexidade. Trads.: Mosmann
CP, Wagner A. 4.ed. Porto Alegre: Artmed; 2016.
8
Comunicação eficiente nos cuidados da atenção primária
“Comunicação não é o que você fala, mas o que o outro compreende do que foi dito”.
Claudia Belucci
INTRODUÇÃO
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
É impossível não comunicar. A comunicação verbal e não verbal está em tudo, inclusive no
silêncio, e propicia entendimento (e desentendimentos) entre as pessoas. Na área da saúde, a
comunicação é ainda mais uma ferramenta de troca de informações e solução de problemas.
Para Vasconcelos (2020, p.164), “um indivíduo vivo não tem como deixar de comportar-se.
Comportamento é comunicação, é o modo, consciente ou não, de expressar valores, interesses e
sentimentos”.
A comunicação é formada por elementos essenciais, tais como:
Emissor: é quem envia a mensagem. Precisa ter cuidado para se expressar de forma que
o receptor entenda a mensagem que está sendo enviada.
Receptor: é quem recebe a mensagem enviada. É fundamental que essa pessoa entenda a
mensagem que recebeu. Sem essa decodificação a comunicação não se completa. A
escuta é um importante aliado nesse momento.
Mensagem: é o que está sendo comunicado. Uma fala, um sorriso, um silêncio, por
exemplo. É a informação enviada pelo emissor e que precisa ser decodificada pelo
receptor. O sintoma que o seu paciente apresenta também é uma mensagem que está
sendo enviada.
Canal: também conhecido como meio de comunicação. É a forma como emissor e
receptor irão se expressar. Pode ser por meio da fala (o mais comum no âmbito da
saúde), da escrita, pela linguagem corporal, por meio de desenhos etc. Emissor e
receptor usam da criatividade e da adaptação para escolher a melhor forma de transmitir
a mensagem que desejam.
Efeito: é o impacto que o emissor deseja que sua mensagem tenha ao chegar no receptor.
Apesar de parecer simples, nem sempre esses elementos interagem entre si da maneira
esperada e aí surgem os ruídos, ou seja, tudo aquilo que causa uma dificuldade ou perturbação
no processo de comunicação. O ruído de alguma maneira perturba o envio e/ou a recepção da
mensagem.
Campos et al. (2021, p.26), ao fundamentar a comunicação clínica, destacam que:
“Quando se discute a comunicação no campo da saúde, as trocas de informações são a base da interação
entre os profissionais de saúde e pacientes que procuram um serviço de saúde. É de fundamental
importância que a comunicação clínica ocorra de forma adequada”.
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
Como seres relacionais, a comunicação faz parte da nossa vida desde o nascimento, porém,
na atuação como profissional de saúde, a comunicação eficiente pode (e deve) ser desenvolvida
ainda mais.
A comunicação clínica é uma ferramenta essencial no atendimento aos pacientes. Campos
et al. (2021, p.26) afirmam que, ao usar a comunicação assertiva, “a relação torna-se mais
harmoniosa, com redução da incidência de processos por erros médicos, promoção do melhor
cuidado da saúde, diminuição do desperdício e mau uso de medicações, bem como redução da
quantidade de tempo de internação”.
Todo profissional que atua na saúde mental na atenção primária depende da comunicação
para a realização do seu atendimento às pessoas e para construir (e manter) os vínculos
relacionais. Para Morrison (2010, p.199), “o que você diz é regido até certo grau pela
capacidade do paciente de entender, e ela, por sua vez, pode ser bastante influenciada pelo
transtorno em si”.
A relação interpessoal que você vai ter com seu paciente e a forma como irão se comunicar
influenciam na qualidade do serviço que será prestado. Desde o momento do primeiro encontro
com o paciente, é a sua forma de comunicação que transmite mensagens como segurança,
acolhimento e competência.
No momento do diagnóstico, ela será a ponte para que seu paciente se sinta seguro,
tranquilo e consciente. No tratamento, sua importância se dá na compreensão adequada do que
precisa ser feito, bem como na adesão às medidas apropriadas àquela condição clínica.
Em cuidados paliativos, a comunicação é a chave para o bem-estar do paciente, permitindo
que este aceite sua condição e se comprometa com os cuidados que sua saúde (física e mental)
pede. Não há como falar em qualidade do serviço de APS sem falar da satisfação do paciente, e
é por meio da boa comunicação que esse resultado é possível.
Apesar de ser uma habilidade fundamental na APS, nem sempre a comunicação é estudada
e desenvolvida durante a formação dos profissionais de saúde. Frequentemente, ela é vista
como algo dado e inerente à cada pessoa e o resultado é crítico. O emissor se comunica
esperando um resultado como conexão, empatia e acolhimento e o inverso acontece: sensação
de descaso, afastamento e abandono.
Como os pacientes não costumam revelar como se sentiram, acabam apenas não retornando
às consultas e, quando perguntados, referem insatisfação genérica com o serviço prestado,
ainda que do ponto de vista clínico o problema tenha sido resolvido.
Cada vez mais a comunicação tem sido entendida como indispensável ao atendimento e no
tratamento em APS.
Profissionais com treinamento nessa área são capazes de dar informações de forma clara
para os pacientes e serem compreendidos adequadamente por eles. São capazes de perceber
que as emoções (suas, dos pacientes e familiares) são fatores que influenciam diretamente na
forma como as mensagens são enviadas e recebidas. Sendo assim, preocupam-se não somente
com o conteúdo da mensagem a ser dita, mas também com a forma como ela se dá.
O profissional treinado é capaz, também, de perceber que uma comunicação qualificada
percorre todas as dimensões do atendimento, do rapport ao diagnóstico e do tratamento aos
cuidados paliativos.
Esse tipo de comunicação abrange escutar os interesses, necessidades e sentimentos da
outra pessoa, auxiliando-a a gerir suas emoções, bem como a enviar mensagens claras,
adequadas aos próprios interesses, necessidades e sentimentos. É cuidar do outro sem deixar de
transmitir o que importa para si.
As pessoas assertivas, além de expressarem o que desejam, conseguem ouvir o que os
outros querem. Dizem e escutam um não sem ofender e se sentir ofendidas; fazem e aceitam
pedidos quando possível sem se tomar por usadas; reconhecem e aceitam seus erros e defeitos,
da mesma forma que os dos outros; oferecem opiniões, permanecendo permeáveis à mudança.
Moimaz et al. (2010) consideram que:
“O acolhimento não se limita apenas a uma recepção cordial, mas extrapola esse conceito, incluindo a
escuta ativa do usuário. Aspectos como vínculo, resolutividade e desempenho profissional estão
relacionados com o acolhimento”.
Essas frases têm alguns elementos comuns que as fazem ser boas opções para quem busca
se comunicar melhor. A primeira está escrita em primeira pessoa, a segunda convida à solução
conjunta e a terceira abre a oportunidade de escutar a opinião do outro.
Essas três opções denotam pequenas mudanças que podem ser feitas para manifestar menos
agressivamente a sua vontade.
O primeiro recurso é frequentemente encontrado na literatura como “linguagem eu” ou
“mensagens-eu”. Essa ferramenta consiste em traduzir a compreensão de que aquele é um
ponto de vista da situação (e não a única verdade possível), além de minimizar o tom
acusatório em um diálogo especialmente difícil. Soa diferente a quem escuta as frases: “você
me ofende” (acusatório) e “eu me senti ofendido” (mensagem-eu). “Você me irrita” é diferente
de “eu me senti irritado com tal situação”, pois essa forma traz a cada um a responsabilidade
por seus próprios sentimentos.
Vejamos outros exemplos:
Mensagens-você Mensagens-eu
Você me ignorou quando não respondeu a Eu me senti chateada quando você não
minha mensagem. respondeu a minha mensagem.
Você me decepciona quando não toma suas Eu me sinto frustrado quando você não toma
medicações adequadamente. suas medicações adequadamente.
Você faz isso só para incomodar! Eu me sinto incomodado quando você faz...
(descrever a situação).
Essa estrutura de fala se notabiliza por ser sobre si mesmo, reduzindo os impactos
negativos que uma acusação pode ter em uma conversa e gerar para uma relação. Ao falar do
próprio sentimento, a pessoa tem mais chance de ser escutada verdadeiramente e não
questionada, diferente do que acontece quando colocamos o outro em uma posição de defesa.
Nesse caso, provavelmente ele irá questionar tudo o que ouve a fim de se preservar.
As estruturas da segunda e da terceira frases são construções que aproximam o outro, seja
pela escuta ou pela disponibilidade de se construir conjuntamente a solução para a situação.
Esse tipo de comunicação, aliada a uma fala sobre si e ao respeito no uso da linguagem,
aumenta a compreensão, o interesse e a qualidade das relações.
Formada por um conjunto de competências essenciais na conversa com o paciente, a
comunicação funcional cria uma relação paciente/profissional de mais conexão e aumenta a
adesão ao tratamento. Destacamos dez “Cs” que, se utilizados de forma adequada, melhoram
de forma significativa sua relação com o paciente:
Clareza
Quando enviamos uma mensagem, nossa intenção é que o paciente a entenda. E como
podemos fazer isso?
O primeiro passo é termos clareza do que realmente queremos que ele entenda. Comece
sendo objetivo e tendo foco no que precisa dizer. Se a conversa for difícil, planeje-se. Se
houver um tempo limitado de conversa, esse planejamento é ainda mais importante para que a
mensagem a ser enviada seja clara. Para Pygall (2018, p.42), “para que a comunicação seja
efetiva, ela deve ser recebida e compreendida com clareza em ambos os lados”.
Não precisa escrever um roteiro de tudo o que vai dizer, mas elencar os pontos principais de
maneira prévia irá te ajudar a não divagar em demasia e a não deixar nenhum ponto importante
“de fora” daquele diálogo. Em situações sensíveis, a clareza também tem importância – talvez
ainda maior –, então evite suavizar de tal forma a sua linguagem que a sua mensagem se perca.
Transmita ao paciente ou sua família o que ele efetivamente precisa saber.
Seu paciente não tem como adivinhar o que se passa na sua mente, então não deixe de falar
algo que você pensa ou sente por achar que é “óbvio”. Às vezes, o óbvio precisa ser dito.
Comece pelo que tem de mais importante e justifique depois, se necessário.
Consistência
A consistência da sua mensagem está ligada à ideia de firmeza e densidade do que você
tem a dizer. Quando for passar uma informação ao paciente ou sua família, busque
fundamentos.
Estude o assunto e ofereça mais do que somente a sua convicção, dê bases aos seus
argumentos. As perguntas podem aparecer e é bom que você saiba (e sinta que sabe) do que
está falando. Argumentos vazios afastam o ouvinte de você.
Consideração
Sempre que for falar com o paciente, é preciso considerar as características dessa pessoa.
Use e abuse da empatia. O paciente é uma criança ou um idoso? Está abalado emocionalmente?
Fala outro idioma? Possui outra cultura? A linguagem e o canal de comunicação que você vai
utilizar precisam ser adequados.
Coriolano-Marinus et al. (2014) destacam que “uma série de motivos vem apontando o
modelo dialógico, que respeite a cultura e os saberes dos usuários, como o mais factível dentro
da atual conjuntura da assistência à saúde”.
O conteúdo da sua mensagem é, portanto, somente uma parte do que você faz chegar ao
outro. De nada adianta, por exemplo, enviar uma mensagem por e-mail para alguém que não
usa esse meio de comunicação. Pense nisso quando for se comunicar. Sua mensagem precisa
ser compreendida e, para isso, você deve considerar quem é o seu receptor.
Contexto
Observe o contexto em que você e o outro se encontram. Cada comportamento, por
exemplo, chorar, sorrir, falar muito ou pouco, tem um significado diferente a depender do
contexto em que você e seu paciente estão.
Pense também no contexto físico em que a comunicação está acontecendo ou vai acontecer.
O ambiente é o adequado para ter essa conversa? E o momento, é o melhor? Cuidar disso faz
parte de uma boa comunicação. Imagine ter uma conversa que deveria ser em um ambiente
calmo em um local cheio de pessoas ouvindo, sem nenhuma privacidade?
Ainda que a sua maneira de falar seja adequada, se o contexto não for, seu paciente não lhe
escutará da forma que precisa. Conversas apressadas no corredor, na porta de entrada ou na
lanchonete podem não ser a melhor forma de falar um assunto importante, por exemplo.
Em muitos contextos, pode ser necessário, por exemplo, que você utilize materiais escritos
(sejam materiais educativos ou orientações de tratamento) para evitar que haja dúvidas ou
esquecimento quando o paciente estiver sozinho.
Compreensão
A comunicação necessita alterar momentos de fala e de escuta. Quando seu paciente estiver
falando, exercite a escuta ativa e busque compreender os verdadeiros interesses que ele
apresenta. O que ele está querendo dizer para você? O que ele precisa nesse momento?
Nem sempre as pessoas conseguem expressar com clareza as suas necessidades,
especialmente porque muitas em nosso país não tiveram acesso à educação formal. Então, ao
escutar, esteja disponível para compreender o que a outra pessoa pensa e o que ela quer
verdadeiramente dizer para você.
Quando for o seu momento de falar, lembre-se de não utilizar uma linguagem científica e
um vocabulário técnico que impeça a compreensão da mensagem. A sua comunicação não
pode ser verticalizada, ela deve construir com o seu paciente um espaço de diálogo no qual ele
compreenda o que está sendo dito e possa se expressar.
Comportamento
Além da preocupação com o próprio desempenho, perceba os sinais enviados pelo paciente.
Há inúmeras formas de ele não demonstrar interesse, atenção e compreensão. Merece ainda
mais destaque essa informação quando diversas pessoas estão presentes na consulta, pois muito
se pode inferir a partir da forma como interagem durante o atendimento.
Cordialidade
Tratar o paciente com respeito é um dever – como cidadão e profissional – e contribui para
construir uma relação de confiança e simpatia. Todas as pessoas necessitam de respeito. Muitas
vezes, o estresse do seu dia a dia pode te levar a uma comunicação mais descuidada e que pode
ser lida como agressiva e reativa.
Não deixe de dar atenção para o cuidado com o outro: você não sabe o que ele está
passando nos outros setores da vida. Se você pudesse se colocar no lugar do outro e soubesse
que ele está passando por uma situação difícil, o trataria de forma diferente? O tratamento
afetuoso para com o paciente é fundamental.
Concisão
Se você tem uma mensagem importante para transmitir, seja breve e destaque aquilo que é
essencial. Com cuidado e empatia, vá direto ao ponto. Muitas vezes, a fundamentação é tão
extensa que o foco se perde no meio do caminho.
As pessoas não gostam de ser enroladas (e sempre percebem quando isso acontece). Evite
ficar tempo demais com a fala, seja breve e deixe que o paciente fale e tire suas dúvidas
também.
Credibilidade
A confiança do seu paciente não se conquista da noite para o dia. Essa é uma construção
que exige dedicação e cuidado. Ser confiável significa que seu paciente acredita no que você
diz.
Para construir credibilidade é necessário ter competência e transmitir adequadamente a
mensagem, com segurança, honestidade e transparência. Para pessoas mais desconfiadas, fazer
combinações com o paciente (inclusive que comprometam você) e cumpri-las também é uma
forma de ilustrar que é possível confiar em você.
Calma
As pessoas são diferentes, possuem necessidades e valores diferentes e passam por distintas
situações na vida. Por isso, nem sempre elas entenderão a sua mensagem da forma e na
urgência que você quer. Cuidado com as suas reações nesse momento.
Essas situações podem ser desafiadoras, mas não se desespere. Mantenha a calma e
explique a importância da mensagem. Isso não fica sempre evidente.
Se estiver com dificuldades de se controlar, você pode criar estratégias pessoais que lhe
tragam mais tranquilidade. Algumas pessoas contam até 10, fazem uma meditação breve ou
repetem algumas respirações mais prolongadas antes das conversas sensíveis.
Ter essa lista de dez Cs vai lhe ajudar a priorizar e a organizar a sua comunicação. Utilize
esses itens como um checklist na sua preparação ou após o final de uma conversa, para analisar
como foi. Se perceber que houve alguma lacuna importante, retome o contato com o paciente e
ajude-o a ter o melhor atendimento que puder.
“Este exercício de comunicar estabelece uma relação, e, nesse sentido exige treino, reflexão,
aprendizagem, prática e sobretudo uma série de atitudes e comportamentos que envolvem as palavras, o
sentido compreensivo e lógico da estrutura, mas também os gestos, toda a linguagem do corpo”.
Uma das críticas mais frequentes aos profissionais de saúde é no que diz respeito à forma
como se comunicam, de uma forma “fria”. Tendo em vista que várias comunicações irão
acontecer ao longo da sua relação com o paciente, demonstre empatia e compaixão se
comunicando de forma acolhedora. Na comunicação empática, o profissional se preocupa em
como falar com o paciente, e falar de forma que ele possa entender. A comunicação deve ser
pensada de maneira individualizada, utilizando a escuta como ferramenta indispensável.
CONSIDERAÇÕES
A comunicação remota, cada vez mais frequente no atendimento em saúde mental, exige
alguns cuidados, tais como ser o mais claro e objetivo possível.
Outro cuidado importante é com a linguagem. Como a comunicação remota tende a ser
mais formal do que a presencial, se você ainda não tem um vínculo criado com o
paciente, observe a melhor forma para se expressar.
Como você só está vendo uma parte da pessoa, preste mais atenção na comunicação não
verbal, nas expressões faciais da pessoa.
REFERÊNCIAS
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Comunicação clínica: aperfeiçoando os encontros em saúde. Porto Alegre: Artmed; 2021.
2. CORIOLANO-MARINUS MWL, QUEIROGA BAM, RUIZ-MORENO L, LIMA LS. Comunicação nas
práticas em saúde: revisão integrativa da literatura. 2014. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/sausoc/a/v4qzCcwMMwyyz5TtztQ9sMg/?lang=pt&format=pdf.
Acesso em: 16 jun. 2021.
3. DIAS MO. Um olhar sobre a família na perspectiva sistêmica. O processo de comunicação no
sistema familiar. 2011. Disponível em:
http://z3950.crb.ucp.pt/biblioteca/gestaodesenv/gd19/gestaodesenvolvimento19_139.pdf.
Acesso em: 16 jun. 2021.
4. MOIMAZ SAS, MARQUES JAM, SALIBA O, GARBIN CAS, ZINA LG, SALIBA NA. Satisfação e
percepção do usuário do SUS sobre o serviço público de saúde. 2010. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312010000400019. Acesso
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5. MORRISON J. Entrevista inicial em saúde mental. Porto Alegre: Artmed, 2010.
6. ORNELAS RH, CRUZ MRP. Construção da relação. In: DOHMS M, GUSSO G. Comunicação
clínica. Porto Alegre: Artmed; 2021.
7. PYGALL SA. Triagem e consulta ao telefone: estamos realmente ouvindo? Porto Alegre:
Artmed; 2018.
8. VASCONCELOS CE. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: Método; 2020.
9
A importância de perguntar de forma eficaz
INTRODUÇÃO
Perguntar é uma forma (possivelmente a melhor) de trocar informações entre duas ou mais
pessoas. Além disso, as perguntas ajudam o profissional a estruturar a conversa e entender o
contexto do paciente. Quando usadas no contexto de atenção primária, elas podem ter
diferentes objetivos, como:
Contextualizar a situação.
Incrementar a comunicação.
Ajudar a estruturar a conversa.
Promover compreensão.
Produzir reflexões que contribuem para soluções.
Gerar troca de informações: esclarecem as informações existentes e introduzem novas.
Ajudar a perceber a própria parcela de responsabilidade.
Gerar movimento e mudança de perspectiva.
Confirmar uma suposição.
Existem diversos tipos de perguntas, que servem a objetivos distintos. Para escolher qual o
tipo de pergunta que você deve fazer, antes é preciso ter claro o que você espera alcançar com a
pergunta que fará. Não existe uma classificação unânime entre diferentes autores que exploram
a temática, mas todos se baseiam em dois grandes tipos principais: perguntas abertas e
perguntas fechadas. Por isso, essa classificação será adotada no presente capítulo, como forma
de tornar mais acessíveis e claros os conceitos necessários para que se façam melhores
perguntas.
Abertas
Perguntas abertas são aquelas que não podem ser respondidas somente com sim ou não e
dão ao paciente a possibilidade de responder com liberdade. A sua elaboração é feita de forma
a não sugerir possibilidades a partir das quais o respondente elege a correta; ao contrário, a
resposta é totalmente feita por ele. Para Stewart e Cash Junior (2015, p.79), nas perguntas
abertas, “aquele que responde tem considerável liberdade para determinar a quantidade e o tipo
de informação a ser dada”.
Fazer perguntas abertas permite que seu paciente amplie o que vai relatar e oportuniza que
você descubra pontos da história até então desconhecidos. Essa construção estimula respostas
mais abrangentes, que trazem consigo mais do que somente fatos ou informações objetivas, são
espaços de reflexão, raciocínio e criatividade.
Fechadas
As perguntas fechadas são mais direcionadas e têm o objetivo de confirmar (ou não) uma
intenção ou informação. Elas são respondidas com respostas curtas, que se limitam a sim/não
ou a uma resposta limitada, como por exemplo a idade ou cidade de nascimento. Exigem
menos reflexão.
Esse tipo de pergunta frequentemente é mal interpretado e tido como pior do que as
perguntas abertas. Isso, no entanto, não se verifica na realidade. Sua condução pode, sim,
induzir respostas e, por isso, sua construção precisa ser cuidadosa.
Isso, porém, não desmerece seu valor de alcançar respostas objetivas e averiguar certezas.
Para Morrison (2010, p.24) “elas também são úteis, e às vezes necessárias, para obter mais
informações em menos tempo”.
Por economizarem tempo, é frequente que se utilize demasiadamente essas perguntas,
acreditando na otimização absoluta do tempo de consulta. No entanto, o seu uso exclusivo,
além de indutivo, pode gerar diversos pontos invisíveis, uma vez que as informações obtidas
vão depender exclusivamente da criatividade e curiosidade daquele que realiza a entrevista.
Nesse sentido apontam Rollnick et al. (2009, p.66):
“A maioria das consultas, é claro, exige questões abertas e fechadas. Uma abordagem comum é construir
uma interação em torno de questões abertas básicas, usando as questões fechadas apenas para afunilar e
evocar informações específicas quando necessário”.
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
As perguntas se inserem em todo o cuidado de saúde, nos seus mais diversos níveis de
complexidade e de urgência. Por isso, saber quando perguntar é tão importante quanto saber
como perguntar.
Todas as vezes em que estiver atendendo você fará perguntas, por isso, não deixe que esse
ato seja algo automatizado nas suas consultas.
Muitas vezes, o paciente chega na consulta ansioso e com medo. Faça uma pergunta de
cada vez. Pense no seu objetivo com ela, faça-a e espere a resposta. Só depois de a primeira ter
sido respondida é que você pode fazer outra. Além de trazer mais tranquilidade para esse
momento da consulta, uma pergunta de cada vez traz mais clareza para quem vai responder.
Ademais, perguntas múltiplas podem soar inquisitórias. Rollnick et al. (2009, p.68)
apontam que fazer questões seriais “também tendem a evocar uma postura defensiva, muitas
vezes levando a respostas que são meias-verdades como um meio de proteger a autoestima”.
No início das consultas, é natural que você faça perguntas com a intenção de mapear quem
é aquela pessoa e em que contexto está inserida; que queixas possui e que a levaram a buscar
atendimento de saúde nesse momento. Se não houver urgência, aproveite esse primeiro
momento para construir vínculo e verdadeiramente escutar.
Com o passar do tempo e o decorrer do atendimento, pode ser necessário se fixar em um
ponto ou outro, explorando-o mais a fundo ou trabalhando para identificar que comportamentos
atrapalham ou ajudam a melhorar a condição de bem-estar do paciente. Toda pergunta causa
um impacto no emissor e no receptor, por isso, além de pensar no porquê você precisa saber
aquela resposta, pense em por que é importante que se fale sobre aquilo.
Existe um momento da consulta mais adequado para fazer a pergunta que você planeja
fazer? Perguntas mais íntimas, por exemplo, tendem a ter melhores respostas quando a consulta
tiver se desenrolado mais, enquanto perguntas gerais costumam ser mais bem recebidas no
início dos encontros.
Seu paciente é destinatário da pergunta e, possivelmente, se sentirá à vontade com algumas
perguntas e com outras nem tanto. Você precisará usar a sua sensibilidade no momento de fazê-
las e mudar a forma como pergunta de acordo com a reação para não soar como
demasiadamente invasivo.
Mesmo que ele se sinta desconfortável, há perguntas que precisam ser feitas no âmbito da
saúde e como elas têm um objetivo em si, quando achar importante e necessário, exponha a sua
motivação. Morrison (2010, p.23) indica que “quando você fizer a sua primeira pergunta, seja
específico. Diga ao paciente exatamente o que quer ouvir”. Assim, ele perceberá que a sua
intenção é ajudá-lo e não somente saciar uma curiosidade humana.
Quando for abordar um assunto sabidamente sensível, avise antes. Explique por que aquela
pergunta é importante para o seu atendimento, assim a pessoa não é pega de surpresa e,
possivelmente, não entrará em um modo defensivo e se disponibilizará para responder. Se
achar que ainda não tem um vínculo suficiente com o paciente para fazer esse tipo de pergunta,
analise a viabilidade de adiá-la.
Você incentiva o paciente a falar dando pistas verbais e não verbais, mas é importante
pensar até onde deve ir com as perguntas. Sua consulta não pode ser um interrogatório, mas é
importante que você pergunte até onde precisar e seu paciente permitir. Como refere Morrison
(2010, p.102), “uma entrevista efetiva não envolve apenas fazer uma pergunta após a outra.
Você também deve prestar atenção na coerência geral do que você e o paciente estão dizendo.”
IDENTIFICAR O PROBLEMA
As perguntas são a ferramenta base do seu trabalho na atenção primária à saúde, pois é por
meio delas que você usa seu conhecimento para auxiliar as pessoas.
Entrevistar o paciente, além de lhe dar as informações necessárias para o seu atendimento,
é um momento de criar conexão. Como refere Morrison (2010, p.11), “se o processo de
entrevistar envolvesse apenas fazer os pacientes responderem perguntas, os clínicos poderiam
atribuir a tarefa a computadores e passar mais tempo tomando café”.
Fazer perguntas da forma correta permite que seu paciente expresse mais do que
informações sobre sua saúde ou hábitos, mas que revele seus sentimentos, medos, angústias e
problemas. Se ele ainda não está à vontade para responder suas perguntas, possivelmente vocês
ainda não criaram um vínculo. É essa criação de vínculo com o paciente que permite que ele te
apresente, com mais facilidade, a sua história.
Outros elementos que estimulam o paciente a falar de forma mais aberta são a forma como
você organiza a sua sala e seu comportamento verbal e não verbal, por exemplo. Existe mesa
ou outro bloqueio físico entre você e o paciente? Seus braços estão cruzados? Você interrompe
o paciente assim que faz a pergunta? Cada um desses comportamentos dificulta a sua conexão
com ele e fará com que você tenha um trabalho a mais na hora de obter respostas.
Outro cuidado a ser tomado é quanto às suas anotações sobre o que o paciente responde.
Tomar nota de nomes, por exemplo, pode ser importante para não os dizer equivocadamente.
No entanto, lembre-se de ser breve e anotar palavras-chave, assim você presta mais atenção na
pessoa do que no seu papel.
Muitas vezes, o paciente não responde imediatamente à pergunta. Permita que ele use o
silêncio como um momento de reflexão. Não se apresse em cortar o silêncio e não faça outra
pergunta na sequência. Espere para ver como o paciente reage, sua reação é, também, uma
forma de resposta.
Use uma linguagem simples com o paciente. Um obstáculo para a boa comunicação é usar
expressões que somente alguém da área conhece. Muitos pacientes se sentem constrangidos ao
dizer que não entenderam alguma orientação, por isso, lembre-se de que sua linguagem precisa
ser adequada ao seu interlocutor.
Abertas
Como vimos, as perguntas abertas demonstram ao paciente o seu interesse na história dele.
Elas são especialmente importantes nas primeiras consultas, já que aumentam a quantidade de
informações relatadas e aspectos importantes do caso podem aparecer. Para Fernandes (2017,
p.516), essas perguntas “são as responsáveis por abrir as portas do mundo daquele com quem
se conversa, permite enxergar a partir do seu olhar e ver uma história a partir do seu ponto de
vista”.
Faça perguntas abertas para identificar e compreender o contexto do seu paciente, bem
como as questões trazidas por ele que precisam de prioridade e de solução da sua parte. Ao
respondê-las, o paciente reflete sobre o assunto e esclarece suas ideias.
A estrutura dessas perguntas geralmente se inicia com: o que, qual, onde, como e quando.
Essas expressões ajudam a evitar a adivinhação e a condução das respostas.
As perguntas abertas oportunizam que você conheça mais uma experiência que o paciente
teve, sobre como ele se sente ou sobre fatos. Como refere Morrison (2010, p.23), “como
convidam os pacientes a falar um pouco sobre o que lhes parece importante, elas promovem
um estilo descontraído de entrevista já desde o início, o que ajuda a construir o rapport”.
Trata-se de um convite à conversa. “‘Posso lhe perguntar sobre...?’ é uma questão que capta
muito bem a qualidade cortês e respeitosa de um atendimento projetado para satisfazer as
necessidades do paciente” (ROLLNICK et al., 2009, p.67).
Ainda que essa forma de perguntar seja importante, também existem desvantagens na sua
utilização. A principal delas é o tempo de resposta, porque esta fica inteiramente nas mãos do
entrevistado. Nesse sentido, refere Pygall (2018, p.59):
“Questões abertas sugerem que você não procura nada em especial, mas você pode demorar muito tempo
tentando chegar ao ponto, ao passo que questões fechadas podem direcionar o interlocutor e você pode
terminar com informações totalmente incorretas ou não confiáveis”.
Como é o paciente quem detém esse poder, ele pode utilizar o tempo de consulta para
fornecer informações sem importância para aquele momento. Daí a importância de aliar
diferentes tipos de perguntas, mantendo o controle da reunião (STEWART e CASH JUNIOR,
2015, p.79). De qualquer forma, o profissional deve estar atento (e até perguntar ao paciente)
por que julgou importante trazer uma informação aparentemente irrelevante para o
atendimento.
DICA
Não tenha medo de fazer perguntas, mesmo que elas pareçam óbvias!
Fechadas
Reafirma-se que as perguntas fechadas, apesar de muitas vezes percebidas como vilãs da
comunicação, são bastante úteis, desde que utilizadas no momento e com o objetivo correto. É
a partir delas que os profissionais controlam o tipo e o tempo das respostas e guiam os
entrevistados para que ofereçam as informações necessárias. Por isso, em urgências, esse é um
recurso muito útil.
Além disso, as respostas a essas perguntas são mais facilmente comparáveis e
classificáveis. Para saber se determinados fatos ocorreram ou se certos sintomas foram
percebidos, as questões de natureza fechada podem ser as mais adequadas (ROLLNICK et al.,
2009, p.66).
As desvantagens das perguntas fechadas se referem principalmente ao fato de que as
respostas oferecem somente uma pequena porção de informação, por isso, elas podem ser
insuficientes. Por vezes, são necessárias várias perguntas até “adivinhar” a pergunta correta a
ser feita. Além disso, a falta de oportunidade de o paciente explicar mais sobre sua resposta ou
fornecer outras informações que julgue relevantes pode fragilizar a confiança depositada no
profissional, que corre o risco de parecer apressado aos seus olhos. Outro risco é que, ao
oferecer uma possibilidade limitada de respostas, o paciente venha, ao não se identificar com
nenhuma, a selecionar uma, mesmo que com ela não se identifique (STEWART e CASH
JUNIOR, 2015, p.79).
Há algumas perguntas que necessitam ser evitadas, especialmente aquelas que induzem
respostas, porque sugerir ou demonstrar preferências pode fazer com que as pessoas prefiram
essas respostas às que livremente responderiam. São exemplos: “você não acha que fazer
exercícios poderia lhe ajudar?”, “você não concorda que deveria ter vindo antes?”.
POSSIBILIDADES
Ainda que se conheçam todas as técnicas para perguntar bem, a prática e a atenção ao
feedback que o paciente oferece são as principais formas de você melhorar nessa habilidade.
Observar que tipos de perguntas você fez e como os pacientes reagiram a elas vai te ajudar a
encontrar o que funciona melhor para cada situação. Rollnick et al. (2009, p.76) trazem alguns
dos efeitos que buscamos:
“Você sabe que está fazendo boas perguntas orientadoras quando alguma ou todas as seguintes coisas
acontecem:
• Você se sente conectado com os pacientes e interessado em suas respostas.
• Seus pacientes falam de um modo positivo sobre a mudança de comportamento.
• Seus pacientes questionam em voz alta por que e como poderiam mudar.
• Um paciente parece incomodado e engajado, e está tentando resolver as coisas.
• Um paciente faz perguntas sobre como e por que poderia mudar.
• Mesmo quando o tempo é curto, a consulta não parece apressada.”
É certo que os primeiros questionamentos podem ser muito desafiadores para os
profissionais de saúde. Para facilitar essa tarefa, propõe-se algumas perguntas que podem ser
adaptadas conforme a necessidade e o caso específico.
CONSIDERAÇÕES
Perguntar é um ato que propulsiona entendimento e mudança. É por meio das perguntas
que demonstramos ao outro que temos interesse nas informações que carrega e em seus
pensamentos.
As perguntas, antes mesmo de serem respondidas, já são ferramentas extremamente
poderosas, uma vez que tiram o sujeito de uma posição de saber e o colocam em uma posição
de atenção e de reflexão.
Quando falamos em APS, falamos inevitavelmente de presença e de cuidado com o
paciente e para atingir esses objetivos, a capacidade de perguntar bem é essencial a todo e
qualquer profissional.
É por meio de questionamentos que é possível entender o contexto do paciente, montar seu
diagnóstico e criar um plano de tratamento personalizado e adequado às suas necessidades.
DICA
DICA
Cuidado com a curiosidade! Mesmo que você tenha nas mãos o grande poder de conhecer a vida
do outro, tenha responsabilidade de, ao mesmo tempo, perguntar todo o necessário e de não
extrapolar.
Perguntas são portas para a intimidade, por isso, verifique se a pessoa está em condições
(ambientais e emocionais) de responder.
Algumas vezes, presencialmente, usamos perguntas em que a gente coloca o
relacionamento com a pessoa em jogo e se mostra rígido, como, por exemplo, “você precisa se
comprometer ou não é necessário voltar. Você tem condições de fazer isso?”. Essa postura dura
pode, eventualmente, funcionar no presencial, mas no virtual sair da reunião/não voltar é uma
barreira menor, então pode ser que você perca o paciente.
Algumas perguntas podem ser mais desconfortáveis de serem respondidas de forma não
presencial. Assim, caso haja previsão de ver o paciente em uma consulta presencial, avalie a
possibilidade de não a fazer.
Pode ser que seu paciente não se sinta seguro ao ser atendido na modalidade remota. Não
vale a pena insistir nesse formato até que haja um vínculo criado entre vocês.
REFERÊNCIAS
“Empatia é uma coisa estranha e poderosa. Não há script. Não existe uma maneira certa ou
errada de fazer isso. É simplesmente ouvir, segurar espaço, não julgar, conectar-se
emocionalmente e comunicar aquela mensagem incrivelmente curativa de ‘Você não está
sozinho’.”
Brené Brown
INTRODUÇÃO
Até pouco tempo, mal se falava em empatia como um termo relevante. Hoje, a palavra
estampa matérias jornalísticas ao redor do mundo. Mas será que esse termo – tão amado por
uns e odiado por outros – é, de fato, conhecido ou é usado apenas como um suporte para os
clichês de cuidado com o próximo?
Na área da saúde, a empatia é pedra basilar, mas muitas vezes essa matéria é deixada de
lado, ora como se fosse um conteúdo óbvio, ora um talento que a pessoa tem, ou não tem. E
todos estamos certos de que temos. Mesmo assim, quando estamos do outro lado, como
ouvintes, somos capazes de apontar inúmeras situações em que houve falta de empatia. Por que
essa conta não fecha?
É passada a hora de os profissionais de saúde olharem a empatia como um instrumento que
compõe o seu trabalho e, sendo assim, dedicarem-se ao domínio dessa habilidade. A empatia
não é, como muitos fazem parecer, uma ingenuidade sobre a qual não se reflete e não se
verificam limites. Isso não a faz, no entanto, menos necessária.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Para o profissional de saúde, é importante o domínio de todos esses conceitos, sem misturá-
los. A empatia é largamente utilizada como uma panaceia para todos os males, como se ela, por
si só, pudesse resolver todos os problemas de injustiça e desigualdade no mundo. No entanto,
como vimos em seu conceito, sua aplicação é limitada, na medida em que nos permite sentir o
sentimento da pessoa e ver o mundo através dos seus olhos, independentemente das razões
morais que tenha para isso. Assim, se não equilibrada com a compaixão, mais ligada aos
aspectos altruístas e benevolentes, ela pode nos levar a evitar empatizar com outros pontos de
vista.
No que toca à simpatia, esta diz respeito unicamente à capacidade de perceber que o outro
tem um sentimento muito latente diante de uma determinada situação e de reconhecê-lo ou
minimizá-lo. Segundo Sinclair et al. (2017), a simpatia “tem sido definida na literatura da
saúde como uma reação emocional de piedade em relação ao infortúnio de outra pessoa,
especialmente aqueles que são percebidos como sofrendo injustamente”. Ela, no entanto,
muitas vezes é percebida como indesejada e baseada na pena, marcada pela falta de
compreensão e pela intenção do observador de se autopreservar.
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
No ambiente profissional da área da saúde (e de todas as demais áreas), não basta mais
somente a habilidade técnica. As competências relacionais e de empatia são fundamentais para
o exercício profissional, principalmente porque os atendimentos acontecem em momentos
difíceis das pessoas, quando elas ou seus afetos estão doentes.
Nesses momentos, pacientes e famílias enfrentam uma enorme sobrecarga emocional e as
informações trazidas pelos profissionais estão intimamente ligadas a isso. Não existe receita
pronta para a forma de se comunicar e é necessário que você encontre a sua própria forma de
fazer isso, com autenticidade e empatia.
Um diálogo honesto sobre as informações que o paciente e sua família precisam ter é
absolutamente necessário, mas ser honesto não significa não ser empático. A empatia está
ligada à maneira como você vai dizer o que precisa ser dito e a estar pronto a acolher. Há
pacientes que já ficam nervosos na mera presença de um médico e agem de forma diferente do
que em geral se comportam: alguns se esquecem das orientações, têm vergonha, se fecham e
outros ficam agressivos.
O profissional pode não concordar com o comportamento dos pacientes, mas é necessário
compreender que, mesmo em situações de discordância, é possível entender suas razões e
sentimentos. Nesse sentido, destaca Morrison (2010):
“Seu objetivo é expressar empatia, ou seja, em algum nível, você pode se sentir como o paciente se sente –
você pode se colocar no lugar do paciente. Ter empatia significa entender a motivação por trás do
comportamento de um paciente, embora você possa não concordar que o que ele fez estava certo.”
Demonstrar empatia pelo paciente não significa que você vai viver por ele o sofrimento
dele, mas que vai assimilar o que o outro está vivendo e se conectar com esse sentimento,
reconhecendo-o e validando-o. Nem sempre este é um movimento fácil e requer
autoconhecimento do profissional e dedicação ao desenvolvimento da sua capacidade
empática. Quanto aos caminhos para isso, também Morrison (2010) elucida que:
“Você transmitirá melhor seus sentimentos empáticos se tiver em mente este pensamento: ‘como seria estar
no lugar desse paciente falando comigo agora?’. Isso pode parecer difícil quando o paciente demonstra
muita raiva, ansiedade ou mesmo psicose. No decorrer da sua vida profissional, você deverá trabalhar com
todos os tipos de pessoas. Algumas parecem mais agradáveis que outras. Se não puder responder
positivamente ao conteúdo do que é dito, talvez você possa empatizar com alguns dos sentimentos que
estão por trás.”
IDENTIFICAR O PROBLEMA
Isso leva ao outro principal problema ligado à empatia na área da saúde, o “misturar-se”. A
empatia, quando em níveis muito altos, pode fazer com que o profissional tenha dificuldade de
se separar do paciente e entender que, apesar de reconhecer a sua dor, às vezes dilacerante, é
dele, não sua.
Quando a empatia é demais, incapacita. O profissional, frente à situação, se torna tão
emocionalmente instável quanto o paciente e a sua capacidade de julgamento e tomada de
decisão se reduz.
Esse fenômeno é cada vez mais comum na rotina da saúde e ficou conhecido como burnout
empático ou superexcitação empática. Esse estado de incapacidade decorrente da exaustão
emocional (em grande medida pela atribuição a si dos sentimentos vividos pelos pacientes) tem
grande incidência entre as pessoas que trabalham em situações extremas e traumáticas.
Para compreender de que forma é possível lidar com a empatia, precisamos, inicialmente,
entendê-la mais a fundo. Esse é um fenômeno multidimensional e complexo, no qual se
destacam dois principais componentes: o cognitivo e o afetivo.
A empatia cognitiva diz respeito ao pensar e relaciona-se com a ideia de entender o que o
outro sente, sabendo que este é um ponto de vista e que jamais será capaz de se igualar ao da
pessoa que sente. Quando o profissional de saúde atua dentro dessa dimensão, ele consegue se
diferenciar do outro, protegendo-se do desgaste emocional.
A dimensão afetiva da empatia, por outro lado, trata do compartilhamento de um
sentimento. É um aprofundamento tão grande da forma como o profissional se sente que passa
a sentir com o outro, a compartilhar com ele a sua dor.
O processo empático combina esses dois elementos, completando-se quando há equilíbrio
entre eles. Para Goleman (2014, p.99):
Em um cenário ideal, portanto, nem o profissional fecha-se em si, como ocorre na empatia
cognitiva, nem se perde no outro, como acontece na empatia emocional. Há situações que vão
ser extremamente exigentes com a capacidade empática do profissional, levando-o ao limite.
Quando o estresse emocional é muito intenso, é útil o uso de uma estratégia de consciência
de limites, dos pessoais (em que cabe ao profissional reconhecer a necessidade de afastamento
de um determinado caso) e dos relacionais (no qual pode ser auxiliado por outros profissionais
da equipe ou em supervisão a equilibrar-se emocionalmente e restabelecer as fronteiras com o
paciente). A única atitude que não pode ocorrer é a evitação, pois com ela pode haver
dificuldade de ação do profissional, o que possibilita consequências de toda ordem
(administrativa, jurídica etc.).
A regulação emocional do profissional possibilita os aspectos positivos da empatia e
minimiza a angústia pessoal. Com ela, há possibilidade de acessar os recursos cognitivos para o
manejo de situações clínicas, minimizando o risco de burnout. É este também o
posicionamento de Pimenta et al. (2006, p.481), para os quais “é fundamental que tenhamos
clareza de nossos limites, crenças, sentimentos e de como usamos mecanismos de defesa que
podem deteriorar nossa saúde física e mental, ocasionando o burnout, a exaustão física e
mental”.
POSSIBILIDADES
DICA
DICA
Competir pelo sofrimento → a pessoa conta uma coisa e você imediatamente diz “ah, mas
comigo (ou com outro paciente) foi pior...”.
Interromper → a pessoa está falando e você diz “tá, chega, vamos continuar, deixa isso pra
lá”; “esquece isso, vira a página”. O cuidado com o tempo pode ser importante, mas se o
paciente escolhe falar sobre algo, pergunte a importância daquele tema para ele naquele
momento. A interrupção minimizadora não convida ao diálogo.
Solidarizar-se → a pessoa entra no papel de vítima e você aceita o convite, manifestando
piedade e confusão dos seus sentimentos com ela: “ai, coitadinha...”.
Questionar → interromper para perguntar a todo momento. As pessoas criam uma linha de
raciocínio e isso pode prolongar o assunto ao invés de encurtá-lo: “mas quando isso
aconteceu?”, “Mas e aí, o que ele falou?”.
Aconselhar → você, como profissional de saúde, pode ter prescrições a fazer, mas isso é
diferente de aconselhar a pessoa em aspectos que você (dentro das suas crenças) considera
certo. Independentemente da situação, fica o convite de primeiro oferecer empatia e
conexão.
A empatia pode – e deve – ser exercitada. Como um músculo, quanto mais treinamos a
nossa capacidade empática, mais pronta para o uso ela estará quando precisarmos dela. Da
mesma forma, se não a utilizarmos, pode ser que seja um pouco desconfortável o seu uso
quando se fizer necessário.
Krzranic (2015, p.56) afirma que “nossa cota pessoal de empatia não é fixa”; o cérebro
permite reequipar o circuito neural. A capacidade empática é como a habilidade musical, em
parte um dom inato e em parte adquirido.
A primeira habilidade a ser treinada na empatia é a escuta com disponibilidade. Isto é, sem
distrações, com presença. A empatia é uma habilidade que se desenvolve por meio da
sensibilidade, respeito, apreciação dos sentimentos do outro. Por isso, é necessário
autoconhecimento suficiente para nos silenciarmos frente a ele (TAKAKI e SANT’ANA,
2004). Terezam et al. (2017) enfatizam que:
“A ausência de julgamento prévio, a escuta receptiva e atenta, os cuidados relativos à comunicação não
verbal, a consideração das percepções das outras pessoas em relação às nossas características e o
aprendizado gerado pelas próprias experiências também contribuem para desenvolver a habilidade da
empatia.”
Filmes:
Livros:
Séries:
Grey’s anatomy.
This is us.
REFERÊNCIAS
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2. GOLEMAN D. Foco: a atenção e seu papel fundamental para o sucesso. Rio de Janeiro:
Objetiva; 2014.
3. GOLEMAN D. Inteligência emocional: a teoria revolucionária que define o que é ser
inteligente. Rio de Janeiro: Objetiva; 2012.
4. KRZNARIC R. O poder da empatia: A arte de se colocar no lugar do outro para transformar o
mundo. Rio de Janeiro: Zahar; 2015.
5. MACHADO L, SOUZA E. Empatia: O olhar além do espelho. In: MACHADO L, PEREGRINO A,
CANTILINO A. Psicologia médica na prática clínica. Rio de Janeiro: Medbook; 2018.
6. MACHADO L, PEREGRINO A, CANTILINO A. Psicologia médica na prática clínica. Rio de
Janeiro: Medbook; 2018.
7. MOIMAZ SAS, MARQUES JAM, SALIBA O, GARBIN CAS, ZINA LG, SALIBA NA. Satisfação e
percepção do usuário do SUS sobre o serviço público de saúde. Physis. 2010;20(4).
8. MORRISON J. Entrevista inicial em saúde mental. Porto Alegre: Artmed; 2010.
9. PEIXOTO MM, MOURÃO ACN, SERPA JUNIOR OD. O encontro com a perspectiva do outro:
empatia na relação entre psiquiatras e pessoas com diagnóstico de esquizofrenia. Ciênc
Saúde Colet. 2016;21(3).
10. PIMENTA CAM, MOTA DDCF, CRUZ DALM. Dor e cuidados paliativos: enfermagem, medicina
e psicologia. Barueri: Manole; 2006.
11. PINHEIRO JP, SBICIGO JB, REMOR E. Associação da empatia e do estresse ocupacional com o
burnout em profissionais da atenção primária à saúde. Cien Saude Colet [internet]. 2019.
Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/associacao-da-empatia-e-
do-estresse-ocupacional-com-o-burnout-em-profissionais-da-atencao-primaria-a-
saude/17080?id=17080. Acesso em: 28 mar. 2021.
12. SINCLAIR S, BEAMER K, HACK TF, MCCLEMENT S, BOUCHAL SR, CHOCHINOV HM, et al.
Sympathy, empathy, and compassion: A grounded theory study of palliative care patients’
understandings, experiences, and preferences. Paliative Medicine. 2017;31(5):437-47.
13. TAKAKI MH, SANT’ANA DMG. A empatia como essência no cuidado prestado ao cliente pela
equipe de enfermagem de uma unidade básica de saúde. Cogitare Enfermagem. 2004;9(1).
14. TEREZAM R, REIS-QUEIROZ JR, HOGA LAK. A importância da empatia no cuidado em saúde e
enfermagem. Rev Bras Enferm [internet]. 2017;70(3):669-70.
11
Construindo vínculos
INTRODUÇÃO
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
A formação de vínculo é um desafio, pois, em geral, as faculdades não ensinam o estudante
a ser compreensivo e zeloso, e muitos dos erros na prática têm origem em falhas de
comunicação, que poderiam ser evitadas. São profissionais que falham em entender o que a
pessoa quer dizer ou em expressar o que eles mesmos querem orientar (FREEMAN, 2018).
Brunello et al. (2010) definem vínculo como sendo:
“A relação pessoal estreita e duradoura entre o profissional de saúde e o paciente, permitindo, com o passar
do tempo, que os laços criados se estreitem e os mesmos se conheçam cada vez mais, facilitando a
continuidade do tratamento, e consequentemente evitando consultas e internações desnecessárias.”
Os sintomas que as pessoas trazem são algo que elas reconhecem como errado que esteja
abalando o seu cotidiano. Portanto, o processo de comunicação tem início com uma situação
desagradável para o paciente, que se encontra vulnerável. É um pedido de ajuda que revela
fragilidade. Encontrar o outro implica um ato de coragem da pessoa com o problema, que
mostra uma balança de relação desigual. Criar vínculos é a tentativa elementar de trazer
equilíbrio na “balança” das relações.
Afora essas condições, são considerados impasses para a formação de vínculo os pacientes
que demonstram raiva e os que não aderem aos tratamentos.
A relação que seu paciente vai estabelecer com você pode ter como base experiências
anteriores que não foram agradáveis. Quando a pessoa chega para a consulta, ela vem com
expectativas que podem ser satisfeitas ou não. Dias e Fernandes (2021, p.52) lembram que para
o melhor desfecho do caso é fundamental:
CONSIDERAÇÕES
A formação dos profissionais, na maior parte das faculdades, tem sido direcionada em
capacitar as questões técnico-científicas, na tentativa de detalhar e objetivar o sofrimento
humano. O resultado dessa situação é a valorização de evidências científicas em detrimento da
subjetividade, das emoções envolvidas, acarretando forte necessidade de solicitação e
sofisticação de exames complementares.
A construção do vínculo na relação entre pacientes e profissionais de saúde é a chave para
contornar essa dificuldade e tentar equilibrar e valorizar as relações humanas.
REFERÊNCIAS
“Todos nós precisamos de alguém que nos dê feedback. É assim que nós melhoramos”
Bill Gates
INTRODUÇÃO
Talvez você nem saiba, mas dá e recebe feedbacks o tempo todo. Feedbacks são respostas
oferecidas a alguém por seu comportamento em relação a situações e a pessoas. Como
aprendemos de forma desestruturada e intuitiva, acabamos cometendo erros simples que, ao
invés de nos aproximarem do outro, nos afastam.
É possível que você tenha escutado o termo feedback como um sinônimo de avaliação de
desempenho. Algumas instituições, especialmente as de saúde, usam esses termos de forma
equivocada.
A avaliação de desempenho é um processo de análise estruturada do cumprimento de
objetivos. Normalmente com frequência fixa, essa metodologia busca atender à necessidade do
avaliador, de saber se o avaliado está alcançando as metas estabelecidas, e à do avaliado, de
saber se e em que precisa dedicar-se mais. Normalmente, essa avaliação vem em forma de
notas ou de conceitos que podem ser rotuladores, merecendo cuidado especial na sua
realização.
O feedback, por outro lado, faz parte da nossa comunicação interpessoal de forma rotineira.
Pode dar-se de forma fluida ou como um processo estruturado. Sua natureza de
retroalimentação sugere que mais do que somente uma avaliação, o feedback consiste em uma
análise compartilhada da situação, contendo sugestões de melhora – ditas direta ou
indiretamente. É uma oportunidade de quem recebe o feedback entender como a outra pessoa
enxerga aquela situação.
Essa distinção tem relevância para que vejamos que os processos não se substituem, ao
contrário, são absolutamente complementares. Além disso, essa diferenciação dá clareza a um
fato importante: o feedback é sempre uma oportunidade. Pelo temor de serem vistas
negativamente pelo outro, muitas vezes as pessoas perdem de vista que existe de forma
intrínseca no feedback o espaço para a mudança focada no aprimoramento e crescimento
futuros.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Feedback vem da junção das palavras inglesas “feed”, que significa alimentar, e “back”,
que significa voltar. Dessa junção, depreende-se que o processo é mais do que somente a
transmissão de uma opinião ou comentário. Há informação que visa proporcionar uma
mudança produtiva. E que ela é um fenômeno de ida e de volta.
O feedback pode ser usado com diferentes propósitos nas áreas de gestão, desenvolvimento
ou informação, a depender da necessidade. A utilização correta exige: atenção para a
habilidade de comunicação de quem oferece sua percepção; entendimento do processo,
evitando que ele seja percebido de forma errônea por quem o recebe; e capacidade de criar um
ambiente propício para o momento, pautado em uma relação de confiança.
Se encarado e efetivado corretamente, o feedback pode ser o elemento-chave para o bem-
estar de todo tipo de relação, podendo ocorrer entre duas ou mais pessoas. Ou seja, é possível
um feedback dual somente entre paciente e profissional de saúde, ou coletivo, no qual uma
grande corporação pode dar feedback sobre o funcionamento de uma nova área hospitalar, por
exemplo.
IDENTIFICAR O PROBLEMA
O dia a dia do cuidado impõe ao profissional de saúde não somente clareza das
informações, mas cuidado com o outro no momento de emiti-las. Mais importante ainda é o
que acontece quando é momento de receber as informações sem perder de vista a empatia com
a outra pessoa.
Os papéis de emissor e de receptor do feedback se alternam, podendo cada um dos polos
estar no lado ativo em um momento e no subsequente, no polo passivo.
Entendemos que essa ferramenta pode ser utilizada de três diferentes formas:
Como ferramenta de gestão: quando utilizado no contexto de gestão, o feedback
auxilia na articulação das atividades de uma dupla ou um grupo. Ele é o pontapé inicial
para que todo e qualquer objetivo possa ser concretizado.
Como recurso de desenvolvimento: para ser utilizado como recurso de
desenvolvimento pessoal ou profissional, o feedback se relaciona com aspectos
importantes da individualidade, como valores, interesses, motivações e competências de
cada pessoa. Ele trata de temas sensíveis e com frequência é tido como “pessoal”.
Como fonte de informações: quando focado na obtenção ou doação de informações, o
feedback é um recurso para unir elementos com vistas a uma tomada de decisão.
Fazer bons feedbacks permite que profissionais de saúde transformem suas conversas
diárias em oportunidades de desenvolvimento dos pacientes, alunos e colegas. Isso é a
possibilidade de fazer o oposto do que tradicionalmente ocorre: fazer um convite para um
feedback e gerar no outro a imediata reação de medo e percepção de ameaça.
Quem trabalha na área da saúde lida com temas sensíveis, inúmeras pessoas e diferentes
perfis. Entender como relacionar esses diferentes elementos com a sua comunicação é tão
imprescindível quanto a própria parte técnica.
O feedback é um recurso que pode ajudar os profissionais de saúde a melhorarem sua
capacidade de comunicação, gerando diversos benefícios, dentre eles:
O feedback pode ser construído de forma individual ou coletiva, devendo ser pactuado
previamente o formato e a clareza dos itens que serão abordados. É importante, ao montar um
feedback coletivo, que seja ponderada a necessidade de cada pessoa envolvida. O ideal é que de
fato o feedback seja coletivo quando todas as pessoas precisam recebê-lo, evitando situações
em que este é direcionado a somente uma pessoa, mas é feito na frente das outras.
Exemplo: João, estagiário de serviço social, realiza, sob supervisão, uma pesquisa exemplar
de instituições que podem colaborar com a rede de apoio de um paciente que possui uma
condição rara. Sua supervisora, Mara, espera a reunião de equipe para elogiá-lo, dizendo:
“pessoal, gostaria da atenção de vocês para que juntos possamos destacar o trabalho do João
junto ao paciente X. Esse é o tipo de trabalho que nós queremos aqui no serviço, proativo,
inteligente e sem preguiça”.
Nesse caso, a intenção de Mara foi a de reforçar o esforço de João, o que é muito positivo.
Se analisarmos cuidadosamente, ela falou somente de João, no entanto, Laura e Marcelo,
também estagiários do serviço, nunca receberam esse tipo de tratamento. Além disso,
entenderam que ela estava oferecendo uma indireta de que eles eram preguiçosos.
Naturalmente, ficaram chateados e pediram à chefia uma troca de equipe, que não foi aceita. O
clima da equipe foi abalado pela situação.
Como se vê, os feedbacks realizados em conjunto podem ser bastante problemáticos, pois,
se negativos, podem ser vistos como um constrangimento; se positivos, como favoritismo ou
bajulação. É sempre um risco e, por isso, cada participação precisa ser minuciosamente
analisada a fim de não gerar consequências indesejáveis.
Independentemente da sua escolha, tome cuidado com a confidencialidade. É muito
desagradável para quem recebe um feedback que aquela conversa (privada) seja comentada
abertamente. Nem sempre a pessoa se sente à vontade para isso e fazê-lo pode disparar um
sentimento de desvalia que pode ser difícil de superar.
Assim, se você precisar se reportar a alguém sobre a conversa que aconteceu, ela pode ser
tratada em linhas gerais como “falamos sobre o desempenho”, ou “conversamos e criamos um
plano de evolução”, mas evite trazer relatos sobre o que foi compartilhado.
Com relação a esses sentimentos que são gerados a partir de uma conversa sobre
percepções, precisamos lembrar que as pessoas emprestam significado às mensagens de forma
diferente. Nós nos julgamos pelas nossas intenções, enquanto os outros nos julgam pelas
impressões que causamos.
Para minimizar esses efeitos, é interessante identificar os gatilhos mais comuns que podem
gerar sentimentos prejudiciais ao objetivo do feedback. Elencamos os três caminhos comuns na
prática do feedback que disparam sentimentos difíceis (STONE e HEEN, 2016, p.30-41):
É difícil impedir que um gatilho ocorra quando se está na posição de receptor, mas
conhecê-los permite a reflexão e a mudança de padrão daquela conversa. Receber bem um
feedback não é aceitar e acatar tudo o que é dito como verdade absoluta e inquestionável. É um
processo de classificação e filtragem de informações. Nesse processo, temos a oportunidade de
crescimento a partir da compreensão de como o outro vê as coisas. Com base nisso, cabe ao
receptor pôr à prova uma compreensão diversa, questionar. A partir disso, filtrar, eliminando o
que parecer de fato inadequado e aproveitando o potencial do que for apropriado.
POSSIBILIDADES
Quando fazer
Algumas pessoas – e algumas empresas – optam por fazer feedbacks contínuos, utilizando
esse espaço para revisar eventuais rotas. Assim, caso o receptor esteja precisando de ajuda, o
emissor pode favorecer escolhas melhores. Na área da saúde, esse tipo de feedback é bastante
comum em equipes e, também, com pacientes que são atendidos de forma continuada,
normalmente revendo os compromissos da última consulta.
O feedback contínuo merece cuidado para que não gere mais malefícios – pela expectativa
e ansiedade – do que benefícios. Esse efeito pode ser mitigado com o uso de reuniões informais
sobre a revisão de desempenho, como a orientação de uma chamada por telefone, e-mail ou
mensagem, entre outros.
Por isso, o ideal é analisar quando o feedback realmente é de fato pertinente, para que não
se torne enfadonho ou forçado. Evite realizá-lo em situações que possam descaracterizar os
seus objetivos e nas quais (HALVORSON, 2019, p.33):
Excluindo-se situações em que realmente seja melhor esperar, entrar em ação prontamente
pode apresentar resultados melhores, como a mensagem de que os problemas não são
ignorados, que as falhas são corrigíveis e que o esforço pela melhoria importa.
Antes da conversa:
Prepare-se: comece pela sua preparação pessoal, prevendo o tempo e o conteúdo
necessários para que a conversa seja produtiva. Quais os seus objetivos com aquele
feedback? Está clara e específica a oportunidade de melhora no que se deseja dizer?
Você está preparado para, nessa oportunidade, também receber um feedback sobre você?
Esteja preparado para escutar e disponível para a flexibilidade. Auxilia estar ciente de
que talvez seja necessário dizer não a algum pedido e que nem sempre você precisa se
desculpar por isso, é possível ser acolhedor e ao mesmo tempo recusar um pedido.
Agende-se: quando for uma conversa que você pode prever a necessidade, reserve um
tempo na sua agenda, independentemente do quanto possa levar ou do grau de
formalidade que envolva. Muitas vezes, as conversas mais profundas nascem daquelas
menos pretensiosas e, por isso, mesmo com essas é importante fazer um preparo
adequado. Se puder, leve em consideração se é melhor que aquele diálogo se dê no início
do dia, antes que outros assuntos tirem a atenção, ou ao final do dia, para que possam
refletir mais sobre o assunto. Considere os compromissos posteriores dos envolvidos, se
você os conhecer, como aniversários, consulta médica, férias, entre outros. A rotina da
saúde é bastante atarefada e as conversas muitas vezes se realizam com menos tempo do
que o ideal para que todos fiquem confortáveis. Ao preparar a reunião, considere que
todos os envolvidos precisam falar e que se a conversa for delicada, as pessoas podem
precisar de um tempo para retomarem suas atividades.
Cultive o relacionamento, mas não seja falso: em muitos textos e aulas sobre feedback
é dito que as pessoas devem fazer elogios, mesmo se o feedback for negativo. No
entanto, isso confunde e minimiza o que precisa ser dito. O que se esconde por trás dessa
dica é a necessidade de buscarmos conexão com o outro. As pessoas gostam de
tratamentos diretos e objetivos, sem rodeios, mas isso não quer dizer ignorá-las ou não as
escutar. Para minimizar esse efeito, você pode, antes de se reunir com o outro, procurar
se conectar de forma genuína com o que sabe sobre aquela pessoa além desse feedback.
Busque identificar na sua memória suas potencialidades e características positivas. Esse
exercício auxilia na humanização do ouvinte.
Escolha um local apropriado e organize-o: priorize sempre que possível um local com
privacidade para que a conversa não seja escutada, evitando distrações e interrupções. Se
não for um momento em que você deseja utilizar a distância física para reforçar a sua
autoridade, considere sentar-se sem uma mesa no meio ou mesmo caminhar lado a lado,
se adequado para a circunstância. Se houver formulários que precisam ser preenchidos,
tente prepará-los antes, assim como papel e caneta.
Durante a conversa:
DICA
Estimule o teletransporte: talvez você tenha pensado muitas vezes nas situações que
levaram você ao momento do feedback. Talvez a outra pessoa nunca tenha pensado
naquela situação novamente. Ou, ainda, talvez ela não tenha conectado situações
diferentes como você fez. Se ela estiver estressada no momento do feedback, pode ser
ainda mais difícil para ela fazê-lo durante a reunião, não compreendendo adequadamente
as suas colocações. Para que o seu feedback seja efetivo nessa situação, dê várias
informações para ajudar a pessoa a se transportar até os momentos aos quais você se
refere. Frases do tipo “ontem, após a reunião de equipe, nós ficamos na sala e nesse
momento você me disse que…” ou “nos momentos finais da nossa última consulta, após
eu ter referido as medicações que você teria de tomar, percebi que...”.
Seja interessado: especialmente quando o feedback for negativo, dedique-se a investigar
se e de que forma o outro percebe que você pode estar contribuindo para aquela situação.
Mesmo que ele ache que você não está diretamente ligado ao problema, por você querer
entender ele perceberá que pode contar com você para novas situações.
Identifique valores, interesses e motivações: se for um feedback importante, pode ser
útil você buscar identificar esses pontos no seu interlocutor. Os valores, interesses e
motivações de quem escuta um feedback podem servir como explicação ou impulso para
a mudança da situação ou da atuação do ouvinte.
Pense em soluções: o ideal é que as pessoas sempre saiam do feedback com um plano
concreto, que inclua objetivos, metas e execução. Se possível, recomenda-se que esse
plano seja pensado em conjunto, pois isso garante uma maior percepção de autonomia e
justiça das decisões, além de um maior cumprimento dos combinados. Inclua, quando
possível, estímulos com base nos valores, interesses e motivações que você tenha
mapeado.
Encerramento: muito é discutido em uma reunião de feedback e é fácil perder
informações. Sendo assim, para garantir que você tenha sido escutado e que o conteúdo
da sua fala tenha sido realmente apreendido, repasse os conteúdos em um resumo ou
convide o outro a fazê-lo. Manifeste otimismo no cumprimento dos combinados e
confiança na melhora (ou manutenção) dos pontos levantados.
Marque uma nova data para revisão do processo combinado, quando aplicável.
DICA
Foque em ser: assertivo com o problema, adequado com o momento, específico com a
situação, educado com a pessoa e cuidadoso com as palavras.
O momento do feedback é interativo. Reflita sobre o desenrolar do processo e corrija
eventuais mal-entendidos.
Observe a linguagem não verbal do seu interlocutor. Ele está ouvindo e realmente
entendendo o que você está dizendo? Se a resposta for não, pare. Talvez essa não seja a
melhor oportunidade para isso. Considere remarcar.
Se puder, evite feedbacks escritos. Além de a comunicação por escrito ser mais impessoal, é
difícil para quem recebe perceber o tom que você quer dar para aquela conversa. Ainda, é mais
difícil criar o vínculo anterior e necessário para que se possa dar um feedback sem gerar
percepção de ofensa ou crítica vazia.
Verifique se a pessoa está sozinha (ou utilizando fones de ouvido). Como mencionamos, o
feedback pode ser prejudicado quando outras pessoas escutam as percepções que eram
direcionadas a somente um destinatário. Isso pode gerar sentimentos de vergonha e tornar o seu
feedback imobilizador.
Não fale demais. A distância física pode criar em quem oferece um feedback a necessidade
de se explicar em demasia. Em quem ouve, a explicação demasiada corre o risco de ser
repetitiva e fazer com que se perca o interesse. Seja breve, estimule que o outro lhe faça as
perguntas que estiver preparado para ouvir.
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Perguntas-chave
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
Um aspecto que merece destaque é a adaptação ao contexto do serviço de saúde para que os
profissionais desenvolvam competências em aconselhamento sem que, com isso, substituam os
psicólogos (TRINDADE e TEIXEIRA, 2000). Nesse sentido, agregar habilidades de empatia,
escuta e reflexão a todos os profissionais que lidam no processo saúde-doença é ampliar a
resolubilidade na APS.
Para situações clínicas, realizar o passo a passo do Método Clínico Centrado na Pessoa é a
melhor forma de dar início ao processo de aconselhamento. Entretanto, Asen et al. (2012, p.37)
referem que: “...entre 30 e 60% de todas as consultas de APS são diretamente sobre sofrimento
mental ou contêm importantes questões psicológicas”. Sendo assim, usar a técnica BATHE,
descrita no capítulo “Abordagem em saúde mental”, cria uma oportunidade terapêutica de
aconselhamento centrado na pessoa.
No cenário individual, a questão inicial é a definição do problema. Para isso, o primeiro
momento é a equalização sobre o tema de ajuda. Essa etapa é facilitada quando o problema é
trazido de forma clara, mas, muitas vezes, a queixa clínica é a chave para o pedido. Quando é
assim, o profissional deve fazer as perguntas facilitadoras que propiciem o aparecimento do
real sofrimento (o capítulo “A importância de perguntar de forma eficaz” traz detalhes
metodológicos).
Em um segundo momento, dissecar a situação compreendida como problema é parte
integrante do movimento que produz necessidade de mudança, além de trazer conforto por
poder falar sobre algo doído. Esses dois momentos lançam-se, com o passar do tempo, para a
terceira fase, em que se manifesta, mais fortemente, a necessidade de mudança. Essa etapa é
especial, pois lida com o sentido do sofrimento e a dor em si. Falar sobre o que dói e explicitar
os sentimentos existentes faz com que a pessoa acredite que precisa mudar.
No cenário de intervenção com grupos na comunidade, a ênfase do aconselhamento é
conduzida pelos movimentos gerados pelo grupo. As expressões desenvolvidas e expressadas
que geram mudanças positivas são reforçadas e colocadas em evidência pelo profissional e,
assim, fortalecem o processo de mudança.
Permeadas pela possibilidade de expressar sentimentos, a configuração das etapas do
aconselhamento, independentemente se individual, familiar, grupo comunitário ou
institucional, são:
CONSIDERAÇÕES
De um modo geral, pode-se dizer que o aconselhamento psicológico é uma prática inerente
ao trabalho na APS e que, inclusive, confere prestígio a esse campo.
Entre tantas definições de aconselhamento, a mais usual para a APS é de que seja um
processo facilitador para buscar o bem-estar. O profissional que aconselha deve buscar o
conjunto de situações que envolvem o conteúdo do problema e servir como um guia, um
ajudante, não como protagonista ou alimentador de soluções.
O aconselhamento é um processo compartilhado, não é apenas de responsabilidade do
profissional. As pessoas que reconhecem a necessidade de realizar mudanças dedicam mais
esforços para superar as dificuldades; ao se sentirem compreendidas, são capazes de se
assumirem como autores da sua história.
O processo de mudança está diretamente relacionado com a percepção de necessidade
desenvolvida e reconhecida pela pessoa. O profissional que aconselha é o facilitador do
processo.
Estar atento ao que foi compreendido. Sugere-se sempre esclarecer, como, por exemplo:
“Seria isso ‘...’ que você quis dizer?”; “Você poderia me dizer o que compreendeu sobre
nossa conversa?”.
Buscar identificar os problemas mais importantes emocionalmente para o paciente e não
para o técnico.
Discutir possibilidades de soluções.
REFERÊNCIAS
1. ASEN Y, et al. Dez minutos para a família: intervenções sistêmicas em Atenção Primária à
Saúde. SOUZA SM (trad.). LOPES JMC (rev. téc.). Porto Alegre: Artmed; 2012. p.37.
2. FORGHIERI YC. Aconselhamento terapêutico: origens, fundamentos e prática. São Paulo:
Cengage Learning; 2016. p.44.
3. FREEMAN TR. A melhora da saúde e a prevenção de doenças em Manual de Medicina de
Família e Comunidade de Mc WHINNEY. ISLABÃO AG, BURMEISTER AT (trads.). LOPES JMC,
DIAS LC (rev. téc.). 4.ed. Porto Alegre: Artmed; 2018. p.276.
4. RAKEL RE, RAKEL DP. Textbook of Family Medicine. 9.ed. Philadelphia: Elselvier Saunders;
2016. p.7.
5. SCHEEFFER R. Teorias de aconselhamento. São Paulo: Atlas; 1986. p. 14-5.
6. SCORSOLINI-COMIN F. Aconselhamento psicológico e psicoterapia: aproximações e
distanciamentos. Contextos Clínic, São Leopoldo. 2014;7(1):2-14.
7. SCORSOLINI-COMIN F. Aconselhamento psicológico: Práticas e pesquisas nos contextos
nacional e internacional. Revista Subjetividades. 2015;15(1).
8. SCORSOLINI-COMIN F. Aconselhamento psicológico e psicologia positiva na saúde pública:
escuta como produção de saúde. Revista do Departamento de Ciências Humanas,
Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2017. Disponível em:
https://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/view/4991/7307. Acesso em: 16 maio
2021.
9. TRINDADE I, TEIXEIRA JAC. Aconselhamento psicológico em contextos de saúde e doença –
Intervenção privilegiada em psicologia da saúde. In: Análise Psicológica, 2000.
publicações.ispa.pt. Disponível em: http://publicacoes.ispa.pt/index.php/ap/article/view/418
Acesso em: 08 de maio de 2021.
14
Comunicando notícias difíceis
“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja
apenas outra alma humana.”
Carl Jung
INTRODUÇÃO
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
O peso que cada pessoa e cada família dá para a notícia está diretamente ligado a suas
crenças, valores e vivências. Por exemplo: duas pessoas recebem o diagnóstico de diabetes. O
paciente A tem um histórico familiar dessa doença de muito sofrimento; o paciente B não tem
histórico de diabetes na família. A forma como cada um vai reagir será diferente. O paciente A
possivelmente irá considerar esse diagnóstico uma notícia difícil e a mesma doença não
representará a mesma coisa para o paciente B. Cada pessoa tem uma experiência sobre o
adoecer, por isso conheça a história do paciente e da família antes de dar a notícia, de forma a
dimensionar o impacto que ela terá.
Comunicar uma notícia difícil, minimizando os impactos negativos no receptor, é uma
competência necessária para o dia a dia do profissional de saúde, já que a ausência dessa
habilidade pode gerar danos aos pacientes e familiares.
Antes de dar a notícia, permita-se reconhecer seus medos e ansiedades, de forma que se
sinta mais confortável para lidar com as reações dos pacientes. Ter clareza de como essa notícia
afeta a si mesmo irá ajudar a pensar em estratégias para manejar essa questão e a lidar com as
possíveis perdas.
São muitos os desafios que o profissional de saúde tem ao dar uma notícia difícil para
paciente ou família, tais como:
Falar a notícia de forma acolhedora, o que pode causar ansiedade e levar o profissional a
adiar esse momento.
Temer a reação das pessoas envolvidas diante da notícia e recear não saber como lidar.
Não saber como dar a notícia sem tirar a esperança das pessoas e sem afetar a relação
com o paciente.
Muitas vezes, os pacientes e suas famílias estão entrando em uma seara completamente
desconhecida. Para quem trabalha na área da saúde, o que vem após a doença, os próximos
sintomas, as próximas fases, já são entendidos e esperados de forma linear, mas para o paciente
e sua família tudo é novo e cada notícia difícil que o profissional dá é um momento de dor e
sofrimento. Assim, a tendência é que façam muitas perguntas.
Para Borges et al. (2012 p. 113), “a comunicação de más notícias é uma realidade constante
no cotidiano dos profissionais de saúde, constituindo-se uma das áreas mais difíceis e
complexas no contexto das relações interpessoais.”
É natural que o profissional fique com medo de não saber responder a tudo, e isso, de fato,
pode acontecer. Porém, não é motivo para desespero. Concentre-se em compreender de forma
adequada e completa a dúvida do paciente, seja franco quanto a não saber (sem se desculpar ou
justificar) e refira que buscará a informação de forma a dar a resposta de modo consistente.
Ao repassar uma informação para o paciente ou familiar, sua intenção é que a pessoa
entenda, mas, para isso, não é preciso dar uma aula. Fale de modo simples e objetivo para que
as pessoas possam entender, mas não se perca em detalhes. Quando se escuta pela primeira vez
algo que altera a realidade, com frequência é necessário um período de adaptação à mudança e,
neste, dificilmente o receptor da mensagem está pronto para receber todas as informações.
Coloque-se à disposição para explicar mais ou de outras maneiras. Se o paciente não percebe
abertura por parte do profissional de saúde, o mais comum é que finja que entendeu e ignore o
que foi dito ou que procure outra pessoa mais acessível.
A comunicação não verbal também é uma peça-chave desse processo. Sua fisionomia, o
tom de voz, o ritmo da fala, os gestos, tudo isso passa uma informação ao paciente/família.
Afonso e Mitre (2012, p. 2611) destacam que “a comunicação é composta por diversos
aspectos que vão além da verbalização e que as opiniões dos profissionais, assim como a forma
como elas são transmitidas têm um peso que afeta o ânimo dos familiares”. Sua postura pode
indicar que é algo mais ou menos sério, que você considera aquele momento mais ou menos
importante, se você está mais ou menos apressado, entre tantas outras coisas.
Para se colocar de modo adequado o primeiro passo é: você. A autopercepção é o que vai te
dizer sobre a sua possibilidade de ter aquela conversa. Observe como você está antes de a
conversa começar. Reconheça seu estado emocional. É esperado que você esteja ansioso, ou
preocupado, mas não que você sinta risco de desequilíbrio. Como profissional, você precisa
estar pronto para oferecer segurança, acolhimento e suporte.
Se não estiver preparado, esse não é o melhor momento de falar com o paciente, mas não é
motivo para ignorar o seu sentimento sobre o assunto e postergar a conversa indefinidamente.
Há várias maneiras de superar esse momento: pedir para um colega te acompanhar ou
substituir, solicitar supervisão, trabalhar o tema em terapia, discutir o caso com a equipe, entre
outros. Não fique com a situação somente para você.
No que toca à conversa em si, existem várias formas de fazê-la e você terá de encontrar a
sua, a partir da sua experiência e características pessoais. Há diversos protocolos que
funcionam como um guia na hora para esse momento, mas não são rígidos, uma vez que
precisam ser modulados pela realidade de cada situação.
Um dos protocolos mais conhecidos e usados se chama SPIKES, um acróstico formado
pelas seguintes palavras e expressões:
Setting (cenário).
Perception (percepção).
Invitation (convite).
Knowledge (conhecimento).
Explore emotions and emphatize (explore as emoções e empatize).
Strategy and summary (estratégia e síntese).
Esse protocolo incentiva o uso da empatia e estimula que o profissional tenha ciência das
expectativas do seu ouvinte antes de dar as notícias necessárias. Em contextos de tensão é
natural que você se esqueça do protocolo em si, por isso vamos passar por todos os itens para
que você entenda a importância de cada um, mais do que “decorar um passo a passo” de como
dar a notícia.
Cenário: antes de dar a notícia, você precisa pensar no lugar que vai fazer isso: o
ambiente é um dos pilares da sensação de segurança em uma conversa. Encontre um
espaço reservado – mesmo que seja em uma enfermaria, por exemplo; tente fechar as
cortinas e dar o máximo de privacidade para o paciente e/ou a família. No contato
remoto, principalmente por telefone, inicie perguntando se a pessoa pode falar naquele
momento e se ela está sozinha (ou com quem ela quer que esteja), em um local que
assegure sua privacidade.
Perception (percepção): antes de contar a notícia é importante que o profissional faça
perguntas para conhecer a percepção que o paciente tem da doença: “O que já lhe foi
dito?”; “O que você entendeu do seu quadro clínico?”. Esse momento é para que você
tenha a real noção sobre o quanto o paciente ou sua família sabe sobre o assunto, corrigir
alguns equívocos que possam existir e organizar a forma como dará a notícia.
Invitation (convite): já de posse das informações, o profissional faz um convite para que
paciente e/ou família conversem de forma aberta sobre o problema. Muitas vezes as
pessoas não vão estar prontas ou não querem saber mais detalhes em um primeiro
momento. Portanto, lembre-se de perguntar o que a pessoa quer saber e até onde você
pode ir com as informações.
Knowledge (conhecimento): respeitando os limites estabelecidos pelo paciente e/ou sua
família, esse é o momento de compartilhar informações concretas sobre o problema, por
exemplo, sobre a doença, tratamentos, sequelas e reações emocionais esperadas. Nessa
etapa, busque se comunicar com uma linguagem simples, adequada e de forma gradual.
Não adianta dar todas as informações e não dar tempo de a pessoa absorver e entender.
Explore emotions and emphatize (explore as emoções e empatize): esse momento é
bastante delicado para muitos profissionais que entendem que não podem se emocionar
com as notícias que irão dar. Você é um ser humano, e é possível que se sensibilize ao
dar a notícia. Não significa que você vai sentir a mesma coisa que a outra pessoa, mas
pode se conectar com a emoção do outro, sem se misturar com ela e, assim, validá-la de
forma genuína. A empatia é uma habilidade necessária nesse momento para que você
crie conexão com o sentimento da outra pessoa.
Strategy and sumary (estratégia e síntese): pode ser que o paciente e/ou a família ouça
tudo e, ao sair da consulta, se esqueça de muitas coisas que foram faladas. Como esse é
um momento de muita emoção, recomendamos que antes de encerrar a conversa você
faça uma espécie de resumo de tudo o que falou e cheque o entendimento do seu
interlocutor. Caso tenha sido compreendido, você se coloca à disposição para responder
mais dúvidas que surjam no futuro.
Como visto, mais do que o protocolo em si, é necessário focar na essência do que eles
transmitem: se preparar; entender sobre a doença; aproximar-se do paciente; reconhecer;
empatizar e falar sobre emoções; encaminhar a situação com a participação do paciente e da
família.
Como forma de consolidar os conceitos a partir de outra perspectiva, listamos mais alguns
cuidados que o profissional deve ter ao abordar a questão conforme o momento da conversa. O
objetivo é fornecer estratégias a fim de melhorar sua comunicação com pacientes e familiares
no momento da transmissão de uma notícia difícil.
Antes:
Revise o histórico do paciente: estude possíveis tratamentos; outras doenças que ele
tenha.
Se houver uma equipe multidisciplinar atendendo o paciente, consulte-a e priorize a
presença dessa equipe no momento de dar notícias.
Desligue o seu celular ou coloque-o no silencioso, se possível. Esse momento deve ser
de atenção integral com o paciente e a sua família.
Separe um tempo para que essa conversa aconteça da forma mais calma possível.
Mesmo que o tempo seja escasso, foque no momento em que estiver com as pessoas.
Escolha um momento adequado, tanto para o paciente quanto para você. Talvez se você
estiver com pressa ou fome não se dedique totalmente à escuta.
Caso o paciente esteja sozinho, peça autorização antes de incluir a família na conversa.
Durante:
Chame as pessoas presentes pelo nome. Se for preciso, anote em um papel. Se forem
várias pessoas, anote na ordem.
Se for um paciente novo, se apresente.
Se possível, convide as pessoas a se sentarem e sente-se também. O mero ato de sentar
indica que você tem tempo para elas. Isso confere importância ao outro.
Atente-se para a sua expressão corporal; a sua, pois pode passar a mensagem de tensão, e
a do paciente, que pode indicar se ele está prestando atenção e compreendendo.
Comece a conversa preparando a pessoa. Exemplo: “Você sabe que seu pai não vinha
bem. Eu tenho uma notícia difícil para dar…”. Além da situação em si, traga os
encaminhamentos possíveis.
Deixe claro para a família e/ou paciente que, em se tratando de uma doença, você vai
estar junto pelo percurso que virá.
Se você não conhece a história de vida do seu interlocutor, faça perguntas que permitam
entender um pouco mais do mundo dessa pessoa, suas crenças e expectativas.
Se você já conhece, resgate algo da vida dessa pessoa para criar ou reforçar os vínculos e
demonstrar interesse na pessoa. Exemplo: “Oi, Pedro, o João não veio contigo hoje?”.
Além disso, pense em momentos da vida dessa pessoa em que ela superou uma
dificuldade, por exemplo, e traga isso à memória, fazendo um reforço positivo e
validando as emoções.
Fale de maneira clara e, de preferência, uma informação relevante por vez. Você está
acostumado a essas informações no seu dia a dia, mas a pessoa precisa construir toda a
linha de raciocínio, por isso seja específico e linear.
Abra um espaço para que as pessoas façam perguntas de tempos em tempos, não é
necessário deixar somente para o final. Se o assunto requer o entendimento de conceitos,
pode ser útil consolidá-los antes de continuar.
Respeite o silêncio. Após dar a notícia, pode ser que as pessoas fiquem caladas. O
silêncio permite o processamento das informações pela outra pessoa.
Depois:
Para finalizar, faça um resumo de tudo o que foi trazido e se coloque à disposição para
dirimir eventuais dúvidas nesse momento ou em uma outra oportunidade.
Pergunte se existe algo que você possa fazer para tornar esse momento um pouco mais
fácil (ou menos difícil).
Mostre que você não abandonará o paciente ou a família durante a fase de tratamento. As
pessoas criam um vínculo de confiança com o profissional que está atendendo e a
percepção de apoio a faz gerir melhor a situação.
Se você se propuser a buscá-los no futuro, faça-o; se não puder fazê-lo, peça que o façam
quando sentirem necessidade ou já deixe um encontro marcado.
A técnica de comunicar as más notícias pode ser impecável, a comunicação efetiva pode ser perfeita, mas
os pacientes querem mais que isso. Por essa razão não fomos substituídos pelo Google ou por robôs. Os
pacientes desejam contato humano. Além de conhecimento técnico, eles necessitam de calor e
proximidade, ou seja, do saber humanístico, da presença que reflita compreensão e apoio.
Esse momento não é de tensão somente para um dos lados, ele é um verdadeiro encontro de
medos. Enquanto de um lado você enfrenta sua insegurança profissional e pessoal, o paciente
enfrenta o medo do desconhecido, de não ser capaz de lidar com o que vier e da dor que pode
ser gerada.
Para se preparar, ponha-se no lugar do paciente e da família antes da conversa e perceba
que mudanças pode fazer na sua fala para que não se sintam frágeis. A reação deles não
necessariamente tem a ver com quem você é como pessoa ou como profissional. O descontrole
emocional pode ser encarado com respeito e compaixão.
Com o passar dos anos você, provavelmente, se sentirá mais seguro ao dar notícias difíceis.
Muito dessa habilidade exige autoconhecimento e prática. Lembre-se de que a pedra
fundamental da capacidade de dar notícias difíceis reside em se conectar com a outra pessoa,
acima de tudo ela precisa que você se mostre uma pessoa como ela também.
Figura 1 Comunicação de notícias difíceis.
O ideal é que você consiga dar uma notícia difícil pessoalmente para o paciente ou familiar,
porém, sabemos que nem sempre isso é possível. Quando ocorre a necessidade de a
comunicação se dar de forma remota, os cuidados com a sensibilidade e a empatia são ainda
mais necessários.
Além disso, sempre cheque com a pessoa se ela pode falar naquele momento, se não está
dirigindo ou mesmo fazendo alguma atividade que a coloque em risco se ficar abalada ao saber
da notícia.
Se a comunicação for por escrito, antes de enviar leia atentamente para ver se a mensagem
está clara e se transmite todas as informações necessárias. A qualidade da sua comunicação
(seja de forma presencial ou remota) faz muita diferença no impacto causado ao paciente e sua
família.
REFERÊNCIAS
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com fibrose cística; 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v18n9/v18n9a15.pdf.
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saúde e cidadãos. Texto Contexto Enferm. 2005;14(1):33-7. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/tce/v14n1/a04v14n1.pdf.
15
O início da família
“A paternidade quer do pai ou da mãe é a mais difícil tarefa que os seres humanos tem para
executar. Pois pessoas, diferentemente dos animais, não nascem ,sabendo como serem
pais. Muitos de nós lutam do princípio ao fim.”
Apud: Karl Menninge. (MC GOLDRICK, 1995)
INTRODUÇÃO
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Casal
O termo tende a estar associado à união de duas pessoas com laços sentimentais, que se
unem por vínculo amoroso, e não pelo estado jurídico da relação.
O formato da relação é construído por meio de modelos e expectativas das pessoas,
sociedade e cultura em que estão inseridos. A vida do casal sofre influência de diversas
variáveis, como: características de personalidade, valores, atitudes, necessidades, sexo,
momento do ciclo da vida familiar, presença de filhos, nível de escolaridade, nível
socioeconômico, nível cultural, trabalho remunerado e experiência sexual anterior ao
casamento.
Família
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
As motivações que levam as pessoas a desejarem ter filhos são diversas. Existem motivos
individuais, do casal, das famílias de origem e do meio onde estão inseridos, podendo estes ser
conscientes ou inconscientes. Em casais com bom funcionamento conjugal os motivos são
pactuados e trabalhados explicitamente.
Segundo Carminatti (2009), o casal deve ter ajustes constantes até que consiga elaborar um
consenso de ideias, negociação de tarefas, modificação de papéis e responsabilidade em novos
compromissos como deixar de ser filho e passar à condição de pai, acrescentando a paternidade
à conjugalidade.
Os sentimentos para a tomada de decisão são ambivalentes, contextualizados e com
motivações psicológicas, emocionais, financeiras e sociais, como:
A inserção social tem um papel relevante na decisão de ter filhos. Na classe média e alta,
parece haver uma maior flexibilidade dessa decisão, pois existem formas alternativas de
atender às necessidades de valorização pessoal e da condição feminina.
IDENTIFICAR O PROBLEMA
Depressão.
Dificuldades no desempenho do cuidado e no autocuidado.
Familiares com presença excessiva na casa e diretivas sobre como cuidar da criança.
Implantação de rotinas, independentemente da anuência dos pais.
Queixas em relação às rotinas do bebê como sono, alimentação e choro.
A criança fica muito no colo ou pouco com os pais.
Consultas excessivas e necessidade de certificação das condutas.
Somatizações, irritabilidade, intolerância e pequenos acidentes domésticos.
Afastamento voluntário ou induzido por terceiros da relação pai-bebê.
Falta ou excesso de sono dos pais.
Queixas de “falta” de relação sexual, carinho e atenção.
Conduta com uso de álcool e drogas ou mudança do padrão de consumo.
CASO CLÍNICO
Um casal jovem – Cristina, 30 anos, e João, 33 anos – vem à consulta porque o bebê
(Caio), que está com 40 dias, não quer mais mamar no peito. A avó materna (muito próxima)
sugeriu a consulta, porque ele não está ganhando peso e necessita de complementação com
mamadeira. A avó refere que no dia anterior deu uma mamadeira de leite de caixinha com água
de arroz e que, por esse motivo, ele até dormiu melhor. Relata que não entende por que os pais
não aceitam o uso de chupeta.
Quando questionada, a mãe refere que seu peito está cheio e dói muito. João, o pai,
comunica que não se mete porque isso é coisa de mãe e filho. Diz que para ele nada mudou,
trabalha muito, joga futebol na sexta à noite e, às vezes, vai à casa de amigos para comer
churrasco ou ver jogos de futebol.
Cristina refere que não tem se sentido bem, tem cefaleia constante, não dorme e não sabe
por que tem engordado muito desde o parto.
DICA
Reconheça que esse é um momento vulnerável e muito produtivo para intervenções, seja
receptivo, acolhedor e nunca ofereça conselhos. Priorize o atendimento com ambos os pais.
Sempre que você for procurado, tente entender o problema. Se necessário, encaminhe para
outro profissional para atendimento individual e siga com o atendimento do casal.
REFERÊNCIAS
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filhos. Pensando Fam. [online]. 2015;19(1):32-45.
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Atualização de Medicina de Família e Comunidade (PROMEF). Porto Alegre: Artes Médicas;
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9. GROISMAN M. A arte de perdoar - Terapia sistêmica breve no casamento e na infidelidade.
Rio de Janeiro: Núcleo Pesquisas; 2013.
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21. WALSH F. Fortalecendo a resiliência familiar. São Paulo: Roca; 2005.
16
Abordagem da família em crise
“Uma crise pode ser considerada simplesmente como o momento de maior mudança na
vida de uma pessoa...”
(STUART e LIEBERBAN, 2019, p.33)
INTRODUÇÃO
Uma das riquezas da atenção primária à saúde (APS) é a diversidade de situações que se
apresentam e espera-se que sejam resolvidas nesse nível de atendimento. Os problemas
emocionais geralmente se manifestam como problemas físicos, e estes geralmente têm
consequências emocionais. Portanto, é fundamental aprender a lidar com ambos de forma
integrada e conhecer maneiras de enfrentar situações de estresse, mesmo na ausência de
condições psiquiátricas, já que os profissionais da APS são, muitas vezes, os únicos recursos de
saúde mental e reconhecidos como terapeutas naturais (STUART e LIEBERMAN, 2008, p.1).
Muitas pessoas chegam para a consulta referindo apenas que não se sentem bem. Se as
queixas são investigadas e resolvidas, o profissional sente-se tranquilo e o paciente, feliz com o
resultado. Entretanto, parte da demanda se apresenta de forma inespecífica e, mesmo que sofra
extensa investigação biomédica, não gera resposta aos sintomas apresentados. Se apenas os
aspectos biológicos forem abordados, problemas reais do paciente não serão vistos e uma
espécie de “agenda oculta” fará parte do complexo quadro que torna o motivo da consulta algo
que parece que nunca será resolvido. Como a procura pelos serviços de saúde não é
exclusivamente por quadros orgânicos, forte parcela vai se apresentar por estresse, dificuldades
de adaptação, transtornos, solidão e crises no ciclo da vida.
Cabe aos profissionais de saúde desenvolver habilidades de comunicação para diagnosticar
e cuidar das pessoas, ao invés das doenças. Por isso, este capítulo vai focar atenção em
situações de crise familiar, nas quais as características de relacionamento são agentes
fundamentais propulsores de saúde mental.
Compreender o desenvolvimento das famílias por meio da lógica do seu ciclo de vida
facilita o processo de abordagem, de promoção de saúde e prevenção de crises.
Segundo Nichols e Schwartz (2007), “o real valor do conceito de ciclo de vida não é tanto
aprender o que é normal ou esperado em determinados estágios, e sim reconhecer que as
famílias muitas vezes desenvolvem problemas nas transições do ciclo de vida.”
PERGUNTAS-CHAVE
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
A ideia de compreender as crises das famílias por meio do modelo de ciclo de vida é
decorrente do impacto que gera.
McGoldrick e Shibusawa (2016, p.376) definem famílias da seguinte forma: “As famílias
são compostas por aqueles que possuem uma história e futuro compartilhados. Elas abrangem
todo o sistema emocional de três a cinco gerações, unidas por laços de sangue, legais e/ou
histórico.” Embora as famílias tenham papéis e funções a cumprir em seu desenvolvimento, o
que gera valor a elas são as características únicas e insubstituíveis que formam as suas relações.
Ao longo do tempo, dentro de uma mesma cultura, todas as famílias passam por etapas
semelhantes de processos de vida para conseguirem se desenvolver, à medida que
biologicamente ocorre o crescimento/envelhecimento dos indivíduos. Este é o conceito de ciclo
de vida familiar, independentemente de ser uma família tradicional, normativa, ou não.
Os estágios do ciclo de vida familiar descritos por Carter e McGoldrick (1995, p.17) são
muito utilizados na APS, conforme mostrado na Tabela 1 (resumida e modificada).
Famílias com filhos Aceitar os novos membros Ajustar o sistema conjugal para criar
pequenos no sistema espaço para o(s) filho(s)
Unir-se nas tarefas de educar filhos,
financeiras e domésticas
Realinhar relacionamentos para incluir
papéis de pais e avós.
As famílias passam por um movimento constante de transformações nas suas relações. Para
Asen et al. (2012, p.130), “toda família passa por diferentes fases na sua vida, e cada nova fase
apresenta um desafio à organização e ao equilíbrio.”
Andolfi (2003, p. 47) refere que “os momentos críticos na vida da família podem ser
considerados fisiológicos porque pertencem ao seu desenvolvimento e evolução e são
previsíveis.”
Os processos emocionais das fases do ciclo de vida podem gerar algum grau de
desorganização e angústia. Quando eles são esperados para o momento de vida, denominamos
crise previsível do ciclo de vida familiar. Em geral, estão marcados por eventos significativos,
referentes às mudanças estruturais da família, como os nascimentos e as mortes, as separações
e as uniões, as inclusões e as exclusões (ANDOLFI, 2003, p. 47).
As crises também podem ocorrer de forma inesperada, acidental, mas multiplicando as
transformações do sistema familiar, como: rupturas, divórcio, morte imprevista e enfermidade
em um dos membros da família (ANDOLFI, 2003, p. 48).
Quando estão em crise, as famílias perdem o movimento, deixam de realizar as mudanças e
ficam presas ao período do problema. As intervenções na crise servem para que o processo de
desenvolvimento possa evoluir.
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
Evitar consequências terríveis. Uma boa intervenção é sugerir que nenhuma decisão seja
tomada sem que seja cuidadosamente discutida.
Voltar ao funcionamento pré-mórbido. Mostrar apoio e fornecer suporte para que o
paciente se sinta competente.
Aumentar a autoestima.
Refletir sobre como negociar relacionamentos pessoais.
Pensar em possibilidades e criar um plano de ação em conjunto com a família, assim como
estar disponível para manter o acompanhamento, são algumas das condições que mais agregam
valor e bem-estar nos momentos de vulnerabilidade.
CONSIDERAÇÕES
Muitos profissionais que não sabem que são qualificados (ou que podem se qualificar) e
que têm habilidades para serem terapêuticos, às vezes, perdem oportunidades de realizarem
intervenções simples e que podem ser altamente eficazes. Os momentos de crise no ciclo da
vida familiar são reconhecidos como sendo de grande sofrimento e desorganização. A dica é
utilizar consultas de pré-natal, puericultura e tantos outros momentos para estimular, reforçar
atitudes preventivas e funcionais para situações que já sabemos que irão acontecer e que
podemos refletir sobre elas antes de ocorrerem, além de estimular atitudes saudáveis e rever
papéis e funções.
Se foi detectada uma situação de crise, o contato por telefone pode ser mais uma ferramenta
à disposição da família. Entretanto, o máximo de cuidado em ouvir deve ser a regra. O
acolhimento em momento de crise deve ser reforçado e a construção de qualquer plano
terapêutico é um passo posterior que responde às necessidades da família.
REFERÊNCIAS
“Mais do que uma técnica, a Mediação é uma arte do encontro, ocasião em que todos põem
mãos à obra para o cultivo do jardim comum. Nesse momento, retoma-se a medida do
conflito, toma-se distanciamento, permite-se a apropriação das possibilidades criadoras
pessoais. É uma cultura social e política, uma arte de ser com o outro.”
Jean François Six
INTRODUÇÃO
Relações humanas são a base do trabalho do profissional que atende na atenção primária à
saúde (APS) e o surgimento de novos conflitos nas famílias, cada vez mais complexos,
evidencia a necessidade de o profissional conhecer os diferentes métodos de resolução de
conflitos.
Ter domínio de diferentes metodologias é fundamental tanto como forma de levar
ferramentas específicas dessa área para a APS quanto para poder encaminhar adequadamente
as situações. A repetição de encaminhamentos é um dos motivos de insatisfação dos usuários
do sistema de saúde, assim como a percepção de não serem escutados.
Não é esperado que o profissional de saúde resolva situações de outras áreas ou que
conheça a fundo o sistema jurídico. No entanto, esse argumento não pode ser utilizado para
eximi-lo da tarefa de conhecer os aspectos gerais desses sistemas que tantas vezes se
entrelaçam. A mediação de conflitos entendida, tanto como a habilidade de auxiliar pessoas a
resolverem um conflito de forma positiva quanto como método de solução de conflitos formal,
tem muito a oferecer ao profissional de APS, independentemente da sua formação.
Às vezes, os conflitos chegam ao sistema de saúde antes mesmo de serem expressos na
própria família, dado o vínculo e a confidencialidade que os pacientes têm com os profissionais
que os acompanham. Outras tantas vezes, os conflitos aparecem na forma de queixas físicas e,
além de lidar com elas objetivamente, o profissional deve permitir que o paciente consiga
expressar e endereçar suas “dores subjetivas”.
Executar essas tarefas requer o desenvolvimento de competências para identificar e
distinguir situações geradoras de conflitos e violências naquela família e naquela comunidade,
bem como o entendimento dos marcos teóricos que acompanham a resolução consensual de
conflitos, especialmente a mediação.
Em uma época na qual a dinâmica das relações é diretamente afetada pelas mudanças
sociais e tecnológicas trazidas pela era da informação, falar sobre os métodos para profissionais
de saúde mental é fundamental para contribuir com a disseminação da cultura de pacificação
social e a preservação das relações interpessoais.
A perspectiva de que existem outras formas de garantir justiça passa pelo reconhecimento
de que os conflitos são fenômenos complexos, frequentes e, como tais, precisam ser
trabalhados sob diversas óticas, dentre elas, a saúde mental.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Mediação é uma palavra polissêmica – tem duas acepções: uma que reflete o sentido de
estar no centro, de trabalhar para uma situação intermediária; e outra que reflete uma atividade
feita por um mediador de conflitos, de forma procedimental e estruturada.
Ambos os casos interessam à APS, o primeiro porque o profissional de saúde, quando
atende mais de uma pessoa, pode se ver em uma situação na qual os pacientes entram em
divergência e, se isso ocorrer, necessitará de ferramentas para auxiliá-los a encontrarem uma
“base comum”.
O segundo porque a mediação de conflitos como procedimento formal de solução de
conflitos compõe o sistema amplo de acesso à justiça e conhecê-lo é fundamental para integrá-
lo à rede de apoio de pessoas e famílias.
A construção de relações humanas saudáveis tem, no diálogo, um pilar para o
estabelecimento de vínculos interpessoais mais efetivos e autênticos.
Os contextos familiares são dinâmicos e permeados pela subjetividade. Muitos dos
conflitos são, para além da parte objetiva, preenchidos com diversas questões emocionais.
Assim, o atendimento e a escuta do paciente deverão ser pautados por acolhimento e empatia,
para que a intensidade do conflito possa ser reduzida e se abra espaço para uma resolução
consensual.
Os conflitos, eventos multifatoriais, necessitam de um olhar igualmente complexo, que o
cuide em todos os seus aspectos, para que se encontre uma solução real. No caso das relações
continuadas, essa característica ganha maior destaque ainda, uma vez que os impactos do
conflito também podem afetar a pessoa em diversos níveis. Emoções difíceis podem atrapalhar
o processo de solução do problema e é papel do profissional de saúde auxiliar que seu paciente
seja capaz de enfrentar a situação gerenciando suas emoções. Nesse caso, faz-se ainda mais
relevante a oportunidade de se resolver o conflito por meio da escuta empática e da
comunicação respeitosa e igualitária.
O papel de quem atende o paciente em consulta não é o mesmo de quem o atende em
mediação. Quem o recebe em mediação (formal) mantém-se a todo o momento imparcial.
Busca ouvir os demais envolvidos na situação e com eles trabalha da mesma forma. Isso não se
confunde com o papel de um profissional de saúde que, muitas vezes, é parcial, pois mantém
relação prévia e de confiança com seu paciente.
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
IDENTIFICAR O PROBLEMA
O conflito nasce quando as pessoas têm interesses ou ideias divergentes e passam de uma
relação estabilizada a uma polarizada. O primeiro passo para a resolução é que seu paciente
reconheça a existência do conflito, ou seja, reconheça que existe uma discrepância de interesses
e que esse desentendimento está impactando sua vida e seu relacionamento familiar.
A existência do conflito, por si só, não é considerada como algo negativo ou positivo. A
forma como cada ser humano (um ser próprio, com suas características, sua individualidade e
interesses distintos) vai lidar com ele, quanto tempo irá durar e como será resolvido são o que
contribui para que ele seja definido como algo bom ou ruim.
Para Serpa (2017, p.18), “em todos os níveis, psicológico, sociológico ou judicial, o
conflito é apontado e tratado como algo indesejável e comumente afastado da seara pessoal ou
grupal a qualquer preço”.
A mediação no contexto da APS deve acontecer dentro dos limites administrativos, legais e
institucionais. Por isso, ao se deparar com uma situação difícil, analise se você pode, naquele
caso, propor o encontro com o objetivo de trabalhar o problema e buscar um acordo. É
importante também que as pessoas presentes tenham a possibilidade de tomar decisões.
Você precisa se preocupar com outra pessoa: você. Conflitos podem ser extremamente
mobilizadores do ponto de vista emocional, portanto é de suma importância que você analise a
sua capacidade pessoal de lidar com a situação trazida pelo paciente de forma profissional.
Lembre-se, não é seu papel agir em nome do seu paciente, mas informá-lo e apoiá-lo para que
ele possa tomar suas decisões e garantir seus direitos.
POSSIBILIDADES
Mesmo que não seja um mediador profissional, ao auxiliar o paciente na busca pela
resolução de um conflito, você pode lançar mão de algumas ferramentas do método. Um dos
recursos mais importantes para essa atuação é a escuta ativa.
Ao atender o paciente, você deve expressar uma escuta atenta, que demonstre interesse pelo
que está sendo dito e que estimula, por meio das linguagens verbal e não verbal, que o
interlocutor amplie sua narrativa. A seguir, mostramos algumas preocupações e ferramentas
que podem auxiliar nessa tarefa.
O resumo é uma oportunidade de checar com o paciente se o seu entendimento sobre o que
ele falou está correto. Quando você estiver atendendo mais de uma pessoa ao mesmo tempo, é
importante que o seu resumo seja mutualizador, ou seja, que una as diferentes perspectivas
apresentadas. Esse é também um momento em que as pessoas em conflito poderão escutar, de
uma forma diferente, os interesses e necessidades do outro e descobrir o que existe em comum.
O resumo cria uma conexão entre os relatos das pessoas em conflito que, ao compartilharem
experiências e valores, podem entender o ponto de vista do outro.
É importante, ainda, que o resumo seja definido com conotação positiva, de forma que o
paciente redefina sua percepção sobre os fatos que narrou. Focar nos pontos negativos irá
contribuir para a espiral do conflito.
Quando as pessoas estão em situações conflituosas, frequentemente pensam que não existe
qualquer conexão entre o que desejam e o que a outra pessoa deseja. Ao mediar a situação, é
importante que você identifique os valores comuns entre eles, de forma que possam criar uma
aproximação, apesar das perspectivas diferentes.
A mediação tem se difundido como método de solução de conflitos e, assim, a busca pelo
serviço se torna mais fácil. Atualmente, você encontra a mediação nos seguintes formatos:
ACOMPANHAR A EXECUÇÃO
Em uma época em que as habilidades humanas se destacam cada vez mais como
diferencial, mostra-se extremamente significativo que o profissional da saúde mental no
atendimento realizado na APS, além de atuar em uma situação de conflito, fomente na
comunidade as mais diversas formas de se relacionarem, de modo a valorizar o diálogo e a
autonomia na resolução dos conflitos. Não basta ajudar na solução dos conflitos pontuais, é
preciso incentivar que as relações familiares sejam pautadas pela cultura de diálogo.
Quando encerrar uma consulta na qual houve um conflito aberto, é importante que haja
seguimento com as pessoas. Nesse caso, marque uma nova reunião (ou consulta), individual ou
conjunta, a depender de como se encerrou o momento.
Usar as ferramentas ou o procedimento de mediação tem o propósito de manter a
comunicação e os vínculos afetivos entre os familiares, sendo utilizadas principalmente onde
há forte carga emocional. Usar o diálogo como forma de solucionar um conflito mostra a
capacidade de vê-lo como uma oportunidade de crescimento pessoal e relacional para os
envolvidos.
DICAS
DICAS
Veja o capítulo “Comunicação eficiente nos cuidados da atenção primária” para mais dicas
de como se comunicar de forma assertiva com o paciente.
Sempre que identificar que o conflito está demasiadamente acentuado, faça uma pausa na
reunião, evitando que as pessoas sejam agressivas umas com as outras.
Fazer algumas combinações iniciais pode ajudar a minimizar o clima hostil das reuniões.
Portanto, quando já souber que será assim, comece o atendimento estabelecendo algumas
regras de funcionamento desse ambiente.
REFERÊNCIAS
“O que parece o auge do absurdo numa geração, muitas vezes torna-se o auge da sensatez
na seguinte”.
Adlai Stevenson
INTRODUÇÃO
Se você ainda não atendeu uma pessoa que apresente a queixa de não ser entendida por (ou
não entender) alguém de uma idade diferente, esse dia com certeza chegará.
A relação com diferentes gerações começa na família, com o convívio entre pais, filhos e
avós. Os conflitos intergeracionais acontecem entre pessoas que pertencem a gerações
diferentes e, por isso, possuem diferenças de cultura, de pensamento, de hábitos, entre outras.
No ciclo natural, o esperado é que uma geração dê lugar a outra em sequência e, conforme
Kanaane (2017, p.149) ressalta, isso vem acontecendo cada vez mais cedo:
“Antigamente, uma geração era definida a cada 25 anos, porém, nos dias atuais, já não se espera mais um
quarto de século para se instaurar uma nova classe genealógica. Atualmente, os especialistas apontam que
uma nova geração surge a cada 10 anos apenas.”
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
São as crianças nascidas entre 1945 e 1964, pós-Segunda Guerra Mundial. É uma geração
que valoriza a família, a busca por estabilidade financeira e por adquirir propriedades. Uma
característica importante dessa geração, para Kanaane (2017, p.155), é ter sido “educada para
ser competente na vida, cordial e respeitar hierarquias e os outros, principalmente a família.
Essa postura autoritária, adotada pelos seus pais, culminaria em rebeldia mais tarde”. Muitos
jovens se engajaram em movimentos sociais e buscavam a igualdade.
Geração X
As pessoas que fazem parte dessa geração são aquelas nascidas entre 1965 e 1978. Seus
membros são os “filhos dos baby-boomers”, buscam atingir seus objetivos pessoais e
organizacionais e se adaptam bem às mudanças, sendo capazes de trabalhar tanto em grupo
como de forma individual. Se relacionarmos essa geração com a história do Brasil, podemos
perceber que ela vivenciou um grave período econômico – juros e inflação altíssimos –, o que
explica em parte o foco em aumentar a sua capacidade econômica. Durante essa geração houve
a concretização da possibilidade de divórcio e, em razão disso, se ampliou a possibilidade de
dinâmicas familiares.
Geração Y
Essa geração, que é dos nascidos na década de 1980, se caracteriza pelo avanço da
tecnologia e da globalização. Isso impacta também na sua capacidade de trabalho, “são
conhecidos por serem multitarefas, isto é, conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo,
como falar no telefone, entrar em sites de relacionamento, enviar mensagens e até mesmo ouvir
músicas” (KANAANE, 2017, p.163). Não gostam de tarefas repetitivas, são mais imediatistas e
comunicativos.
Geração Z
Essa geração tem uma delimitação mais imprecisa que as demais. Normalmente
considerada a partir de 1990 e indo até meados de 2010. Foram profundamente influenciados
pela internet. O pensamento complexo e ágil que caracteriza a tecnologia se reproduz também
nas pessoas. Da mesma forma, tendem a afastar-se fisicamente das pessoas, sendo muitas vezes
considerados “silenciosos”, por estarem sempre de fones de ouvido. São críticos e dinâmicos,
buscando sempre flexibilidade.
Geração Alpha
A geração Alpha é a mais recente e ainda há poucos estudos profundamente realizados
sobre ela. Acredita-se que essa seja a geração mais influenciada pela tecnologia, redes sociais e
digitalização.
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
Cada vez mais podemos observar as gerações separadas. O universo infantil é separado do
adolescente, que se separa do adulto, que se separa do idoso e isso gera um distanciamento
cada vez maior entre essas pessoas, que poderiam estar compartilhando afeto, experiências,
espaços.
Se antes os avós ficavam com os netos para os pais trabalharem, hoje eles ainda estão no
mercado de trabalho, por exemplo. Ingressar na escola/creche cedo faz com que as crianças
convivam cada vez mais com seus pares e cada vez menos com outras gerações.
Ferrigno (2006, p.67) destaca que:
“A compartimentalização de espaços sociais para as diversas gerações no mundo moderno é real, mas
dificilmente nos chama a atenção, já que frequentemente somos tentados a considerar tal fenômeno como
algo esperado, natural, inevitável e até, por diversas razões morais e pedagógicas, adequado.”
Essa falta de convivência tem várias consequências, dentre elas a intolerância com o
diferente e a falta de compreensão dos processos de envelhecimento. A convivência faz parte
do processo de aprendizagem e precisa ser valorizada como tal.
As trocas afetivas na família constroem relações que serão a base do treinamento social que
orientará a individuação, o pertencimento, a autonomia e a independência.
IDENTIFICAR O PROBLEMA
“No contexto contemporâneo, os grandes avanços tecnológicos vêm favorecendo uma maior integração
entre as culturas, o que acarreta uma intensa troca de influências, que acaba por se repercutir na vida social,
tornando-a mais diversificada e levando-a a transformar seus padrões de sociabilidade”.
A oportunidade de diversificação não é, porém, certeza de uma vida mais diversa. Observa-
se, muitas vezes, que apesar da possibilidade desse convívio a partir dos meios digitais, as
pessoas se isolam. Vê-se o fenômeno da solidão compartilhada. É necessário esforço ativo para
que esse espaço de convivência seja transformado em um espaço de aprendizado. E os
benefícios são inúmeros, como aponta Celebrone (2020, p.25):
“Configura-se um contraste intergeracional profundo quando avós e netos trocam experiência e estilos de
vida, e tal contraste, se manejado dentro dos vínculos, pode ser bastante positivo. São exemplos disso:
estilos musicais, roupas, piercings, tatuagens, modelos de relacionamento afetivos (“ficar, “pegar”), entre
outros. A diminuição de preconceitos é algo que ocorre em encontros intergeracionais. Ao estarem
próximos um ao outro, jovens ressignificam os conceitos que tinham sobre o envelhecimento e os idosos se
tornam mais flexíveis em relação aos valores e costumes de uma época.
Encontros intergeracionais aproximam as gerações e estreitam os vínculos emocionais e afetivos. A
transmissão intergeracional oportuniza o resgate de memórias, a valorização de histórias, o diálogo e a
cooperação entre as gerações e os erros e acertos da vida do Idoso são preenchidos de significados, quando
ensinam as gerações que sucedem”.
A Sra. Mônica, 62 anos, casada, mãe de Clarice e Rossana, moradora do beco da paz é
participante do grupo de mulheres. Em uma das reuniões, solicitou que o grupo discutisse
relações familiares.
A conversa começou com o questionamento de Mônica sobre como as outras mulheres do
grupo lidam com a liberdade das filhas adultas e com a presença dos genros na casa nos finais
de semana. Refere que suas filhas são muito obedientes, estudiosas e não lhe dão trabalho, mas
ambas tem namorado. Clarice tem 22 anos, namora o Pedro há 1 ano, e Rossana tem 19 anos e
namora Beto há 5 meses. As meninas terminaram o ensino médio (cursaram à noite) e
trabalham no shopping de dia.
Clarice e Rossana levaram os namorados para dormirem em casa e o pai (Paulo) nunca se
opôs. A família começou a ter conflitos quando recebeu D. Sônia (avó paterna), que criticou
tanto o filho quanto a nora por não terem “pulso” com as meninas, e disse que se o avô fosse
vivo morreria de vergonha dessa situação. Lembrou o filho de que ele não foi criado assim e
que na igreja ninguém poderia saber que elas estavam tendo esse tipo de vida.
As netas ficaram muito chateadas e Clarice a enfrentou perguntando se esse era o único
valor que esperavam delas. Mônica pediu que parassem com aquela briga, lembrou que a casa
era dela e de Paulo e que quem decidia eram eles. D. Sônia chamou Paulo para uma conversa:
“o que está acontecendo? Tu tá perdendo o pulso na tua casa, as meninas fazem o que querem e
a Mônica não diz não. Acho que tá na hora de ir embora, eu não posso concordar com esse tipo
de coisa!”.
Quando a avó foi embora, o casal teve uma discussão sobre as filhas e combinaram que a
Mônica falaria com elas.
POSSIBILIDADES
É difícil traçar um perfil único dos conflitos intergeracionais. Eles podem ser com a família,
com chefes e funcionários, com amigos, com desconhecidos, por isso, a sua forma de atuação
tem de levar em conta o contexto em que as pessoas estão inseridas.
Partindo do princípio de que os conflitos entre diferentes gerações são multifacetados,
podemos pensar nas seguintes possibilidades de intervenções para o caso relatado:
Abordagem: discutir com o casal o que consideram adequado para as filhas, como farão
e se vão combinar como proceder em algumas situações.
Psicoterapia: colocar os pais em atendimento para aprenderem a lidar com os
sentimentos e a lidar com a avó.
Terapia de família: trabalhar com o casal as decisões, a cultura familiar, os limites com a
avó. Marcar consulta com o casal e as filhas para conversarem sobre a situação com a
avó.
Mediação de conflitos: fazer uma reunião das filhas com a avó e os pais para
conversarem sobre como podem achar uma situação que contemple as necessidades de
todos
Abordada em um capítulo próprio neste livro, a mediação tem como objetivo restaurar o
canal de comunicação entre as pessoas. Nesse método, os envolvidos são auxiliados a
entenderem as perspectivas do outro e, juntos, constroem soluções para o problema que
estão vivendo. Nesse caso, você pode usar as ferramentas da mediação indicadas no
capítulo ou encaminhar seu(s) paciente(s) para mediadores profissionais.
REFERÊNCIAS
1. BORGES CC, ROCHA-COUTINHO ML. Família e relações intergeracionais no brasil hoje: novas
configurações, crises, conflitos e ambiguidades. In: GOMES IC. Família: Diagnóstico e
abordagens terapêuticas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2008.
2. CELEBRONE RC. Psicogerontologia. Curitiba: Contentus; 2020.
3. CÔRTE B, FERRIGNO JC. Programas intergeracionais: estímulo à integração do idoso às
demais gerações. In: FREITAS EV. Tratado de geriatria e gerontologia. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan; 2018.
4. FERRIGNO JC. A co-educação entre gerações; 2006. Disponível em:
http://citrus.uspnet.usp.br/eef/uploads/arquivo/19_Anais_p67.pdf. Acesso em: 22 jul.2021.
5. FRANÇA LHFP, SILVA AMTB, BARRETO MSL. Programas intergeracionais: quão relevantes eles
podem ser para a sociedade brasileira? 2010. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/rbgg/a/55DRHDsYnS4CQ3SNKrLkYvQ/?format=pdf&lang=pt. Acesso
em: 22 jul. 2021.
6. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). PNAD Contínua - Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?=&t=o-que-
e. Acesso em: 16 jul. 2021.
7. KANAANE R. Comportamento humano nas organizações: o desafio dos líderes no
relacionamento intergeracional. São Paulo: Atlas; 2017.
19
A família no processo de divórcio
Fala-se muito sobre o processo de divórcio como um fato cada vez mais comum. Mesmo
assim, ele está repleto de preconceitos, mitos e informações equivocadas. Quais você ainda
reproduz?
INTRODUÇÃO
O casamento mudou muito ao longo dos anos e a história do divórcio no Brasil, que
começou a ser escrita legalmente em 1977, também reflete essas mudanças.
Apesar de ser um fenômeno bastante comum atualmente, antes da lei, esse era um assunto
velado e evitado na sociedade. O divórcio é o término da sociedade conjugal e coloca fim ao
casamento válido, não modificando os deveres em relação aos filhos, caso existam. As
modificações legislativas dispensam a necessidade de que o casal espere um tempo mínimo de
união para dissolvê-la, ou seja, qualquer dos cônjuges pode dar início ao pedido de divórcio no
minuto seguinte ao casamento.
Quando se fala em divórcio, trata-se essencialmente de relações humanas em toda a sua
complexidade, pois relaciona-se com o processo de fim do amor e de uma relação
inevitavelmente cheia de projeções de futuros que não se realizarão. Esse não é um evento
simples e tampouco acontece por um único elemento. Normalmente ele compreende um longo
caminho de atitudes, sentimentos e escolhas. É preciso que o profissional de saúde o entenda
como um evento multifatorial que pode acontecer no ciclo vital da família, tranquilizando o
paciente de que suas reações são naturais.
Na literatura, frequentemente o divórcio é considerado uma das transições mais difíceis da
vida, sendo comparado, inclusive, ao luto por morte, na medida em que o divórcio se traduziria
como a morte do relacionamento. O número crescente de divórcios não os despe do sofrimento
dos envolvidos. Nas palavras de Rufo (2007, p.85):
“Para os adultos, o divórcio se tornou algo trivial. Não quer dizer que ele não seja doloroso, mas que
passou a estar integrado como uma eventualidade da vida de casal. Ainda que se sonhe com um amor para
todo o sempre, na realidade sabemos que o casamento não é mais uma garantia de eternidade
compartilhada.”
Muitas vezes, essas dores aparecem em primeiro lugar para os profissionais da atenção
primária, sob a forma de queixas físicas. Ao examinar o paciente e analisar o contexto, muitas
vezes ele relata a intenção de divorciar-se, até mesmo antes de compartilhar com o outro
cônjuge. Por isso, ao longo deste capítulo vamos analisar esse instituto (o divórcio) com novos
olhares, inclusive sob a ótica jurídica, para que você tenha informações mínimas e necessárias
para passar ao seu paciente.
Por ser um fenômeno multifatorial, sempre que for possível, o ideal é incentivar o paciente
a ter um atendimento multidisciplinar e, preferencialmente, não adversarial. Se o casal não
consegue conversar sobre o divórcio, não raras vezes, ele vai parar no judiciário, causando
mais sofrimento para o casal que decide não mais seguir a vida juntos. Ver o outro como
inimigo não ajudará a dor a passar.
Muitas crenças existentes sobre o divórcio não são reais, muitas coisas mudaram ao longo
dos anos e informações equivocadas geram mais frustração e dificuldades de lidar com esse
momento já tão tortuoso.
Observar o momento do ciclo de vida que a família está vivendo é um pressuposto para
antecipar possíveis reações e aumentar o nível de empatia com o paciente. O número de
divórcios aumenta no primeiro ano de casamento, na chegada do primeiro filho e na saída dos
filhos de casa. Sendo esse momento tão sensível, a realização de um acolhimento adequado do
paciente que está mais fragilizado é fundamental para minimizar seu sofrimento. Se uma
pessoa sente culpa ou medo do divórcio, isso vai impactar nos outros familiares também. O
atendimento de saúde deve colocar a família no centro do processo.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
O divórcio rompe com o vínculo conjugal reconhecido por lei. Juridicamente tem diversas
consequências, tais como o fim do regime de bens e dos deveres de coabitação, fidelidade e
assistência mútua estabelecidos pela lei.
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
Ausência de culpa
Antigamente a culpa pelo fim do casamento era um tema que precisava ser abordado
durante o processo de divórcio, já que o cônjuge, que era culpado, tinha uma série de
consequências para si. Atualmente não se discute a culpa de forma jurídica, mas ainda é
frequente que o cônjuge que recebeu a notícia do divórcio perceba o outro como o único
culpado do fim.
A natureza beligerante de um processo favorece esse pensamento, mas o cônjuge que
quiser colocar fim à união não precisa de consentimento para fazê-lo e nem mesmo terá
qualquer penalidade por dar início ao pedido de dissolução. Nem mesmo a traição é um fator
que influencia no trâmite judicial ou extrajudicial de um divórcio.
Abandono do lar
Outro conceito recorrente e temido, principalmente pelas mulheres que sofrem abusos, é o
abandono do lar. Qualquer dos cônjuges pode sair de casa sem que isso afete os seus direitos.
Mesmo saindo de casa a pessoa tem direito ao patrimônio, à guarda dos filhos e a qualquer
outro direito e dever decorrente do casamento. Existe no ordenamento jurídico uma
possibilidade de o cônjuge que ficar na casa comum requerer o usucapião, mas, para que isso
aconteça, alguns requisitos são necessários: (1) não haver qualquer pedido de divórcio e/ou
partilha do bem no período de 2 anos após a saída; (2) o imóvel urbano precisa ter até 250 m²
(duzentos e cinquenta metros quadrados) e ser usado para sua moradia ou da família; (3) não
pode ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Fases do divórcio
Sendo um importante rito de passagem na vida das pessoas e por ter múltiplos aspectos, o
divórcio pode ser mais bem compreendido quando o percebemos como um processo que ocorre
em etapas. Cada divórcio é único e, por isso, muitas vezes essas etapas não acontecem,
necessariamente, uma após a outra de uma forma tão linear e sequencial, mas é importante que
você conheça e ajude seu paciente a entender o que deve esperar desse momento de vida.
Por questões didáticas, separamos em quatro etapas: afetiva, econômica/financeira, legal e
social.
Fase afetiva
Essa fase, em geral, é unilateral. Uma das pessoas percebe que algo mudou, que não sente
mais o que sentia antes e, para colocar fim à insatisfação, começa a cogitar o divórcio. É aquele
momento em que fica mais distante, pode começar a se afastar das atividades comuns e ter um
misto de sentimentos.
O casamento é um momento de decisões conjuntas que envolvem a construção de sonhos
em comum. O divórcio, porém, é uma decisão solitária e que coloca fim aos planos de
felicidade compartilhada. Tomada a decisão, chega o momento de contar para o outro. Às vezes
a outra pessoa já sentiu que o relacionamento não está bom e a conversa já era esperada, mas
em outras vezes a pessoa é pega de surpresa com a decisão.
Quem toma a decisão começa o seu processo pessoal antes do outro e, por isso, pode estar
mais à frente na elaboração emocional. O tempo de luto pelo fim do casamento varia de pessoa
para pessoa, mas estima-se um período médio de 2 anos. O primeiro ano é, em geral, o pior
deles por ser uma montanha russa emocional e, muitas vezes, um momento financeiro bastante
conturbado. Cameron (2019, p.105) reforça que “o primeiro ano após a separação geralmente é
uma época de altos e baixos para o casal – de questionamento, solidão, raiva e depressão, culpa
e responsabilização, tropeços no escuro e novas formas de ver o mundo”.
São muitas mudanças e, se a pessoa sabe o que esperar dessa fase, tende a passar por ela
com mais tranquilidade. Se você sabe que uma tempestade se aproxima, quando ela chega você
se sente mais preparado.
O divórcio não pode ser considerado como responsabilidade de só um dos cônjuges. Se o
início do relacionamento só acontece por uma construção de ambos, o fim dele ocorre da
mesma forma. Todos são corresponsáveis nesse processo. Mesmo em casos de traição, em que
o traído sente que só o traidor tem culpa, é fundamental trabalhar a responsabilização conjunta
do casal, não pelo fato em si, mas pelo contexto do relacionamento. Quando só um dos
cônjuges se sente responsável pelo fim, é bastante comum que esse sentimento influencie na
tomada de decisão quanto às consequências do término, como, por exemplo, deixando todos os
bens para quem foi traído ou aceitando tudo que o outro exige.
Contar da decisão para a família estendida e os amigos é um momento também muito
doloroso e o relato pode vir permeado de sentimentos como raiva e tristeza.
Quando perdemos o convívio com alguém em razão da morte, é natural nos permitimos
filtrar a história, mantendo em nossa memória lembranças majoritariamente positivas ou menos
evocativas de sentimentos que nos trazem sofrimento (são memórias “despidas de hoje”). No
divórcio, porém, ocorre o contrário, nos fixamos nos sentimentos ruins como se eles fossem
capazes de nos servir de muleta para os efeitos da saudade, da tristeza e do carinho do que foi
vivido. Há que se ter um especial cuidado com esses sentimentos ao contar para os filhos, de
forma a deixar claro que o que está terminando é a relação conjugal e não a relação parental.
Até o fim dessa fase, provavelmente, seu paciente ainda não procurou orientação jurídica
de um profissional, haja vista que ainda é uma questão emocional a ser resolvida.
Fase econômica/financeira
O divórcio econômico de um casal pode gerar muita angústia em razão da diminuição de
recursos dos envolvidos. Muitas vezes, somente um dos cônjuges cuida da questão financeira e
no momento do divórcio é que o outro tem ciência da sua real situação econômica.
É natural que haja uma queda do padrão de vida com o divórcio, já que no casamento as
contas se juntam e, por mais que só um dos cônjuges trabalhe fora, o casal só tem uma conta de
luz, um aluguel, um condomínio a ser pago. Com o divórcio, essas contas dobram e o
orçamento diminui.
Por melhor situação que se tenha, o divórcio sempre impacta a situação econômica de um
casal. Transformar uma casa em duas sempre aumenta os custos e o padrão de vida pode mudar
drasticamente, necessitando de revisão de despesas, receitas e investimentos da família. Essa
reestruturação da vida financeira, absolutamente necessária para a tomada de melhores
decisões, pode ser bastante desgastante. Isso pode se agravar quando existem filhos, já que será
preciso relacionar os custos existentes e elaborar a forma como serão compartilhados entre os
pais.
O fim do casamento coloca fim também no regime de bens e a divisão patrimonial irá
considerar essa escolha feita no momento do casamento. Atualmente existem quatro regimes
possíveis para o casal escolher:
Essa análise quanto ao regime será importante na próxima etapa, já que ela é a
formalização legal do divórcio.
Fase legal
Quando se trata de colocar um fim legal ao casamento, os cônjuges têm duas abordagens
possíveis:
Por vezes, o casal não tem consenso sobre as questões que precisam decidir, mas sabem que
não desejam enfrentar um processo judicial para resolvê-las. Nesse caso, é possível usar um
terceiro imparcial, um mediador de conflitos, que facilitará a comunicação e auxiliará na
construção de um acordo entre o casal. Caso tenham filhos, o plano de parentalidade também
será construído em conjunto pelos pais, visando o bem-estar dos filhos.
Quando as pessoas estão mergulhadas em conflito, optar pelo diálogo nem sempre é fácil,
mas um terceiro devidamente capacitado para auxiliá-los na comunicação (como um mediador
de conflitos) nesse momento pode ser um divisor de águas. Esse profissional atua de forma
pontual, auxiliando os envolvidos naquela situação a colocarem seu foco na solução e a
encontrarem pontos de convergência nas suas narrativas, ao invés de fazerem o caminho
natural que fariam em casa, que é o de se afastarem a partir das suas diferenças.
Sendo possível a realização de um acordo, os trâmites que se seguem são os mesmos, ou
seja, em caso de não haver gravidez, filhos menores ou incapazes, podem ir diretamente ao
tabelionato de notas e, na existência destes, será levado à homologação judicial, mas ainda
assim de forma mais célere e respeitando às necessidades individuais de cada família.
Enquanto o divórcio coloca fim ao par conjugal, nada coloca fim ao par parental e, nesse
momento, é importante auxiliar os pais a estabelecerem um plano de parentalidade. O
profissional de saúde pode ajudar nesse momento de construção das novas fronteiras. Já que a
casa que era comum se transformará em duas, é necessário que os pais pensem sobre as rotinas
e a construção das novas regras que serão estabelecidas em cada casa. Essa combinação de
novos limites pode ser feita pelos pais, sem necessidade da interferência de um juiz, já que são
eles que melhor conhecem os filhos. Vale lembrar também que ela não é imutável, já que a vida
é bastante dinâmica e as combinações tendem a ir mudando conforme o crescimento e a
necessidade das crianças ao longo dos anos.
O divórcio exige a configuração dos novos papéis parentais. Quem levará no médico, quem
constará como responsável na escola, como será a comunicação entre os pais? O momento de
tomar essas decisões pode ainda ser permeado de muitos sentimentos conjugais de raiva,
mágoa ou tristeza. É preciso focar a comunicação e as decisões no interesse dos filhos,
sobretudo para que eles não se sintam culpados pelo fim.
Fase social
Essa fase é o momento de reorganizar a rede social individual de cada um. Aqui estão os
amigos, a rede de apoio, o sistema de saúde, vizinhos, familiares e, por ser um evento
sistêmico, todos serão afetados.
Se durante o casamento a convivência com a família do outro era acordada por ambos, o
divórcio traz a necessidade de novos pactos. Os filhos integram os sistemas de ambos e tudo o
que passa a existir após o divórcio, incluindo os novos amigos e as novas relações amorosas.
Muitas vezes, o fim não é bem administrado e as brigas do casal reverberam na família como
um todo. A reorganização dos novos sistemas frequentemente exige a regulamentação da
visitação da família extensa, como avós e tios, por exemplo.
Essas mudanças podem ser especialmente difíceis para as crianças, que percebem o
sofrimento dos pais. Para os adultos, o divórcio é uma forma de lidar com uma insatisfação
conjugal, mas para as crianças pode ser um momento de grande angústia, de medo de perder
alguém ou de não serem mais amadas.
As decisões que precisam ser tomadas nesse período são de responsabilidade dos adultos,
mas não podemos desconsiderar a forma como elas irão impactar na vida dos filhos. É de
extrema importância que o casal separe o papel conjugal do papel parental.
Estima-se que 20 a 25% das crianças que passam pelo divórcio dos pais têm problemas
emocionais ou psicológicos. Esse número sobe para 28% quando são vários divórcios. Em
razão disso, é extremamente importante que o conflito, quando existir, se limite à esfera
conjugal e jamais atinja a esfera parental.
Para ajudar nessa que pode ser uma difícil transição, os profissionais de saúde devem
estimular que os pais cuidem de sua saúde mental e isolem os filhos do conflito. O exercício de
uma parentalidade segura e o contato consistente e de qualidade com ambos os pais é uma
forma de preservar os filhos nesse momento e passar para eles a certeza de que a família não
acabou, ela está reestruturada.
O divórcio não interfere na autoridade parental, ambos os pais seguem tendo direitos e
deveres com relação aos filhos. É preciso estabelecer novas configurações para que eles sejam
exercidos de forma corresponsável.
CONSIDERAÇÕES
O divórcio impõe uma reconstrução pessoal de cada um dos envolvidos, seja perante os
filhos, a família e a si mesmo. O atendimento primário precisa ter foco e compromisso com o
sistema familiar, sendo imprescindível o preparo do profissional e a construção de intervenções
condizentes com esse delicado momento. Ao compartilhar o seu divórcio, o paciente estreita a
relação com o profissional, buscando, muitas vezes, apoio, escuta e orientação. A criação de
um ambiente empático traz segurança para que o paciente fale sobre o que está pensando e
sentindo.
Esse momento traz muitos desafios para o paciente e a compreensão, por parte do
profissional, dos impactos psicológicos e sociais gerados nos membros envolvidos é
fundamental para que o atendimento os auxilie no processo de ajuste da nova fase.
DICAS
A união estável é um fato social que faz parte da realidade brasileira. Em alguns pontos ela
se parece muito com o casamento civil, mas é importante lembrar que sua dissolução não se
dá pelo divórcio. Para dissolver uma união estável reconhecida em cartório os passos são
parecidos com o divórcio e, caso ela não seja reconhecida, será preciso primeiro reconhecer
a existência para depois dissolvê-la.
Ao atender uma pessoa (ou uma família) passando pelo divórcio, tenha empatia, escuta ativa
e demonstre interesse em entender a subjetividade que envolve esse momento.
Quando os pais forem falar com os filhos sobre o divórcio, estimule que seja de um modo
que as crianças entendam e não falem mal do outro. A relação parental continuará existindo
e ambos os pais devem estar comprometidos com o bem-estar dos filhos e evitar desgastes
quanto ao futuro.
Faça uso do genograma. Essa ferramenta mostra informações da família, como padrões de
repetição e a sua estrutura, auxiliando os envolvidos e o profissional a identificarem as
dinâmicas que estão acontecendo naquele momento. Ele pode ser útil também como forma
de auxiliar os pais a verem que, ainda que o vínculo conjugal se encerre, o parental
permanece.
Cada pessoa vivencia o divórcio de uma maneira diferente. Lembre-se de que você só tem
um ponto de vista e não deixe que suas crenças pessoais sobre o divórcio interfiram no seu
atendimento.
REFERÊNCIAS
“Frases ditas com afeto têm o poder de ecoar dentro de nós pela eternidade”
(Lau Patrón)
INTRODUÇÃO
Muitos pacientes que chegam ao atendimento de saúde mental na atenção primária à saúde
são pais e/ou mães com o desafio de exercer uma parentalidade conjunta.
Os pais – que vivem juntos ou não – são os responsáveis por seus filhos, mas nem sempre é
fácil manter uma relação harmônica e cooperativa quando se fala do bem-estar deles.
Quando esses pais com dificuldades na comunicação do par parental chegam ao seu
consultório é preciso entender de forma sistêmica como isso impacta na saúde dos membros da
família.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Partindo do pressuposto de que as famílias podem se concretizar a partir dos mais diversos
formatos e cada um pode amar e se relacionar com a pessoa que desejar, independentemente do
sexo ou gênero, bem como da possibilidade de dissolverem-se as relações afetivas quando o
amor tiver seu fim, abordaremos alguns modelos de guarda existentes na legislação atual.
A guarda é um instituto jurídico, que regula quem ficará responsável pelos cuidados com os
filhos, sejam estes crianças ou adolescentes. Essa responsabilidade pode ser atribuída a um ou a
ambos os pais, conforme exposto a seguir:
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
Quando dois adultos decidem manter entre si uma união, muitas concessões e acordos são
realizados, explícita ou tacitamente. Quando um filho passa a integrar a família, a dupla vira
um trio e os rearranjos, para além das questões conjugais, precisam envolver as questões
parentais.
Os conflitos entre os pais acontecem quando eles estão unidos e, mais ainda, quando estão
separados. Ainda que as brigas diretas entre eles possam se reduzir em razão da escassez de
convivência, os desacordos em relação aos filhos tendem a se agravar. Isso porque, primeiro, os
pais tendem a enfrentar dificuldades no fato de não saberem o que acontece e o que é
autorizado (ou não) na sua ausência. Segundo, porque frequentemente os filhos são a forma de
relacionarem-se, ainda que de forma hostil. Assim, muitas vezes ocorre a confusão dos papéis
parentais e conjugais.
É comum, nos serviços de saúde, a queixa frequente de um dos pais acerca do
comportamento do outro, em relação aos cuidados e decisões parentais, seja no decorrer de
uma relação ou após o rompimento.
Grzybowski (2011, p.115), ao falar sobre a confusão dos papéis, destaca que:
“Casais com forte carga emocional conflitiva, provavelmente não conseguirão definir fronteiras nítidas
entre a parentalidade e a conjugalidade. Nesses casos, é difícil que tenham êxito em manter a estabilidade
necessária para garantir o bem-estar dos seus filhos”.
Boa parte das vezes, os conflitos conjugais nascem da falha ou da falta de comunicação
entre o casal. O exercício conjunto da parentalidade pressupõe uma separação dos papéis
conjugais e parentais. É natural que existam divergências na criação dos filhos, mas a
construção de uma parentalidade compartilhada habilita os pais a dialogarem a respeito dessas
controvérsias.
IDENTIFICAR O PROBLEMA
Uso dos filhos para a manutenção do vínculo. Muitas vezes, pensar em seguir a vida
sem o par conjugal é algo inimaginável para as pessoas. O caminho, diante de um fim
para o qual não se tem ingerência, pode ser usar os filhos como forma de manter o
contato, mesmo quando ele é conflituoso ou desnecessário. Observe se o seu paciente
está tendo esse comportamento e o auxilie a elaborar o fim da relação, dando lugar aos
sentimentos e ao luto que pode envolver esse momento.
Uso dos filhos como barganha para “conseguir o que quer”. Essa é uma prática
bastante comum em separações conturbadas. Um dos pais ameaça o outro dizendo que
“não vai deixar visitar” ou “não vai pagar a pensão” se não conseguir o que quer, por
exemplo.
Caso identifique que seu paciente está tendo esse comportamento, é importante orientá-lo
no sentido de interromper a prática. Os direitos e deveres que envolvem a paternidade e a
maternidade não podem ser barganhados pelo ex-casal. Essa orientação tem especial sentido
porque, apesar do que seu paciente imagina, ele não está prejudicando somente o ex-cônjuge,
mas também causando grandes prejuízos para o filho.
Seu papel de trazer luz às atitudes que o paciente está tendo é fundamental, uma vez que há
grande redução da capacidade geral das pessoas envolvidas em um conflito, especialmente
quanto às habilidades de ouvir e transmitir uma ideia, pois estão absortas naquela realidade que
lhes é tão custosa (FERNANDES e HAIMENIS, 2016, p.179).
Sua abordagem não deve ser direcionada para que você ou o paciente encontre um vilão ou
uma causa para os conflitos, mas sim para que promova a mudança de comportamento e
permita o entendimento de um outro ponto de vista. Lembre-se, o seu foco é o bem-estar de
toda a família.
POSSIBILIDADES
Sabendo que a separação vai acontecer, como seria a separação dos seus sonhos?
O que te deixaria orgulhoso nesse processo?
Como você acha que seus filhos gostariam que esse momento fosse?
Que tipo de relacionamento com o pai/mãe do seu filho você gostaria de ter daqui a três
anos?
Incentive que seu paciente tenha um caderno ou bloco de notas para registrar o que acredita
que precisa ser conversado com o outro cônjuge. Dessa forma, o pensamento se organiza e as
combinações são baseadas em situações reais. Os problemas que precisam ser resolvidos são de
comportamentos específicos ao invés de relatos vagos.
Por mais que os pais possam estar em conflito no que diz respeito aos laços conjugais, é
preciso desmembrar as funções parentais e, assim, construir conjuntamente um plano parental.
Um plano de parentalidade bem estabelecido evita conflitos e desgastes emocionais entre
os pais, já que estabelece as diretrizes importantes para momentos turbulentos. Como o
relacionamento que os pais têm entre si é um modelo para as relações futuras dos filhos, ter um
padrão de comportamento pode direcionar os pais para uma comunicação adequada e
construtiva.
A colaboração entre os pais é muito mais do que uma palavra bonita ou politicamente
correta, ela é uma necessidade para o exercício da parentalidade.
O plano de parentalidade é dinâmico e deve ser alterado quando os pais identificarem que
as combinações precisam ser revistas ou que as necessidades dos filhos mudaram. O
desenvolvimento das crianças e adolescentes é dinâmico e em cada fase as necessidades deles
podem (e vão) mudar e o plano parental precisa acompanhar essas mudanças.
Oriente seu paciente para que busque ajuda caso existam problemas futuros com relação às
combinações. Você pode acompanhar os pais (ou somente um deles) na execução do plano para
saber como está o funcionamento.
DICAS
DICAS
Distância não é motivo para não estar “próximo” aos filhos: o profissional pode mostrar várias
opções de interação a distância: apresentar aplicativos, cartas à mão, vídeos etc. Busque
ultrapassar o óbvio e expanda a comunicação para além dos aplicativos de troca de mensagens
instantâneas.
Filmes são uma boa opção para que seus pacientes assistam e reflitam sobre a situação que estão
vivendo. Separamos duas indicações:
Uma babá quase perfeita (direção: Chris Columbus; 1993) apresenta a história de Daniel e
sua esposa, que pede o divórcio. Ela resolve pedir o divórcio por causa do comportamento
dele e, consequentemente, ele fica sem a guarda das crianças. A forma que ele encontra
para ficar próximo dos filhos é se disfarçando de mulher e trabalhando como babá da casa
deles. O filme mostra o esforço que esse pai faz para conviver com os filhos e o quanto pode
ser complexo para os pais separarem os seus papéis.
A lula e a baleia (direção: Noah Baumbach; 2006) retrata os desafios dos pais em processo
de separação para distinguir as questões parentais das conjugais e o sofrimento que isso
causa nos filhos.
Split (https://splitfilm.org/) é um documentário que traz o relato de crianças sobre o divórcio
dos pais.
REFERÊNCIAS
“Se eu pudesse voltar atrás eu diria pai, liga sempre, fica mais presente, não desiste, não
desiste…”
Depoimento do documentário: A morte inventada
INTRODUÇÃO
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Muitos pacientes podem chegar à consulta com a antiga crença de que quem deveria ser
responsável pela prole é a mãe. A base disso vem de que tradicionalmente no ordenamento
jurídico brasileiro era isso que ocorria. Existia previsão somente em relação à guarda unilateral
e isso, aliado a outros fatores sociais, fazia com que os filhos quase sempre ficassem com a
mãe em detrimento do pai.
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
Em razão de a guarda antigamente ser majoritariamente da mãe, existe uma crença de que
somente mães são alienadoras e pais são alienados. Isso não reflete a realidade.
A alienação parental apresenta uma diversidade de atores que se encontram envolvidos. Da
redação do próprio artigo que conceitua a alienação, art. 2º da Lei n. 12.318, já mencionado, se
pode inferir que pode cometer alienação “um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a
criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância”. Na prática, o alienador
(sujeito ativo) é, em geral, o genitor que tem a guarda unilateral do filho ou, em casos de
guarda compartilhada, é aquele com quem a criança ou adolescente tem residência base.
Apesar de mais infrequentes, existem casos em que o alienador é o genitor que não tem a
guarda. Uma outra situação que precisa ser levada em conta é a presença cada vez mais
frequente de outros familiares residindo na mesma casa de um dos genitores, o que torna mais
possível a prática da alienação por um familiar bastante próximo, como avós, tios etc. O que
caracteriza uma pessoa como agente alienador é o comportamento que tem a intenção de
provocar o afastamento da criança do genitor.
Quem é o alienado?
O alienado (sujeito passivo) é o genitor (ou outro parente) que sofre os efeitos da alienação,
de quem a criança é afastada. É importante destacarmos que a alienação parental pode envolver
todos da família. A criança em primeiro plano, seus genitores e a família mais extensa, como
avós, tios, madrinhas e padrinhos. Além disso, está presente em todas as classes sociais, e por
diferentes motivos, como uma separação mal resolvida, ciúmes, dinheiro e poder.
Os efeitos da insistência constante do agente alienador em destruir a imagem do outro
resultam em uma criança ou adolescente que tem a sensação de ter sido rejeitado, o que o faz
rejeitar de volta o alienado, como se este fosse o verdadeiro culpado pela atitude.
IDENTIFICAR O PROBLEMA
PENSAR EM POSSIBILIDADES
É preciso intervenção precoce para prevenir os efeitos que a alienação parental produz nas
crianças e nos pais. A atuação dos profissionais da saúde mental poderá evitar os desgastes de
um processo judicial que, frequentemente, deteriora ainda mais a relação entre os genitores,
revitimizando os filhos já abalados pela separação conflituosa dos pais.
O artigo 2º da Lei n. 12.318/2010 traz algumas condutas comuns por parte do alienador,
mas vale destacar que as estratégias para alienar a criança são variadas e não taxativas, já que
cada alienador pode agir de uma forma, a depender do seu contexto.
Conhecer a alienação parental é fundamental para proteger a criança do comportamento
destrutivo do alienador. A alienação acontece, principalmente, dentro de casa, dificultando a
sua identificação por uma pessoa externa ao convívio. Como descreve Mendonça (2014,
p.111), “é no dia a dia, numa refeição, numa volta da escola ou antes do beijo de boa-noite que
a campanha difamatória do pai ou da mãe ausente acontece – e num discurso que quase sempre
inclui uma boa chantagem emocional”. Por isso, o momento da consulta, no qual você tem
oportunidade de escutar o paciente, é uma oportunidade importante para que você identifique
que a alienação está acontecendo.
Lembre-se de que a atitude do agente alienador pode ser não intencional. Por mais ativa
que seja essa conduta, por estar interpretando equivocadamente seus sentimentos, ele pode
fazer isso sem perceber. Pode ser que haja um direcionamento equivocado dos afetos, então
tente não julgá-lo como “mau”, ou há risco de envolvimento pessoal na dinâmica bom/mau que
se impõe na alienação. A preocupação do profissional devem ser as emoções, a convivência e o
bem-estar das crianças e adolescentes e não a culpabilização de uma das pessoas envolvidas.
Dificultar as visitas.
Não compartilhar informações sobre a escola, comemorações, saúde etc.
Mudar de cidade sem avisar o outro.
Falar mal do genitor para a criança, culpando-o pela separação ou por qualquer outra
coisa que tenha acontecido.
Proibir a criança de brincar ou usar coisas que ganhou do outro.
Ansiedade.
Medo de ir para as visitas.
Choro sem motivo.
Mentir de forma compulsiva.
Agressividade.
Apatia.
Dificuldades na escola.
Uso de drogas/álcool.
É natural que o alienador tenha tanta determinação para atacar e destruir o outro que ele
mesmo acredite que o afastamento é favorável à criança. Além disso, pode ser que a pessoa
tenha aprendido, ao longo da vida, que esse é um tipo de comportamento normal e não entenda
isso como negativo.
Quando uma relação se encerra, o sofrimento pode durar por anos. Nesse momento, pode
ser difícil para o alienante perceber o que está fazendo. Como profissional da rede, você deve
sinalizar o que está acontecendo e falar sobre o problema.
Faça o seu paciente refletir sobre a forma como está conduzindo essa situação e esclareça
sobre os prejuízos sofridos pela criança ou pelo adolescente. Caso seja possível, é importante
conscientizar também a família e a rede de apoio do alienador, para que ajudem a combater a
prática e, assim, evitar danos à formação da criança e do adolescente.
A sua escuta qualificada, paciente e empática é ferramenta essencial para que o alienador
elabore a separação conjugal e ressignifique seu papel parental.
Recomendar acompanhamento psicológico, tanto para os adultos quanto para os filhos, é de
suma importância, seja para entender o fenômeno que está acontecendo ou para a superação
dos fatos e minimizar as consequências.
Outro caminho possível é indicar que busquem a mediação de conflitos. Com a facilitação
do diálogo é possível restabelecer a comunicação entre os pais (mesmo quando não há qualquer
diálogo entre eles) e mudar o foco das conversas, que passarão a ser centradas nos filhos e na
relação parental.
Caso perceba que não houve qualquer mudança por parte do alienador, é importante acionar
Conselho Tutelar e Ministério Público. Outros órgãos que compõem o amplo sistema de saúde
e assistência social, como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) ou o Centro de
Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), podem ser solicitados a trabalhar no
caso conjuntamente com o profissional da APS.
Caso um dos familiares identifique que há uma campanha sendo feita contra ele, pode ser
encaminhado, também, à Defensoria Pública. Nesse órgão, ele poderá buscar a identificação da
situação e, a depender do caso, medidas para aumentar a convivência com a criança e, em
situações mais graves, a inversão de guarda.
DICAS
Filmes são excelentes estratégias para que seu paciente perceba o comportamento nocivo.
Separamos duas indicações:
A morte inventada: alienação parental (direção: Alan Minas; 2009): traz o relato dos filhos e
pais que viveram a alienação.
Tranças (direção: Lívia Sampaio; 2019): traz o relato de uma avó vítima da alienação.
REFERÊNCIAS
1. BRASIL. Lei n. 12.318 de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera o
art. 236 da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm. Acesso em: 20 jun.
2021.
2. FIORELLI JO, MANGINI RCR. Psicologia jurídica. São Paulo: Atlas; 2021. p. 247.
3. MENDONÇA M. Filhos: amar é compartilhar. In: SILVA AMR, BORBA DV. A morte inventada:
alienação parental em ensaio e vozes. São Paulo: Saraiva; 2014. p.111.
4. PAULINO DA ROSA C. A guarda compartilhada como forma de cogestão parental: avanços,
desafios e contradições. Tese de doutorado; 2017. Disponível em:
http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/7787/2/Tese%20-
%20Conrado%20Paulino%20da%20Rosa.pdf. Acesso em: 24 jun. 2021.
5. PEREIRA RC. Dicionário de direito de família e sucessões: ilustrado. São Paulo: Saraiva, 2015,
p. 279.
6. PINHEIRO C. Manual de psicologia jurídica. São Paulo: Saraiva; 2019. p.106.
7. ROCHA MJ. Alienação parental: a forma mais grave de abuso emocional. In: PAULO BM.
Psicologia na prática jurídica. São Paulo: Saraiva; 2012. p.60.
8. TRINDADE J. Síndrome de alienação parental. In: Manual de psicologia jurídica para
operadores do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado; 2004. p.154-81.
22
Violência doméstica
INTRODUÇÃO
A definição utilizada pelo senso comum sobre o entendimento de violência envolve um ato
físico de agressão que uma pessoa dirige contra a outra. Entretanto, a Organização Mundial da
Saúde (OMS) define violência como uso proposital de força física ou poder, efetivamente ou
em forma de ameaça, que resulta ou tenha grandes chances de resultar em ferimento, morte,
dano psicológico, mau desenvolvimento ou privação, contra si mesmo, outra pessoa ou um
grupo ou comunidade (DAHLBERG e KRUG, 2006).
Dessa forma, violência não se limita ao nível interpessoal, ela também é infringida ao nível
social mais amplo. Portanto, a guerra, o genocídio, a escravidão e todas as manifestações de
opressão sociocultural – seja o racismo, o sexismo, a homofobia ou a pobreza – são atos de
violência. Cada um desses atos envolve, invariavelmente, alguma forma de dominação
associada a desigualdades baseadas no acesso diferenciado ao poder, influência e recursos.
Quando essas condições coexistem nas relações humanas, independentemente do nível, a
violência é inevitável. A violência também pode ser perpetrada de forma passiva por meio de
atos de omissão (HARDY e LASZLOFFY, 2005).
Segundo Mendonça et al. (2020), “entende-se que todos os grupos populacionais são
vulneráveis à violência, ainda que a exposição se diferencie segundo gênero, faixa etária,
condições socioeconômicas e tipos de violência a que cada grupo está mais ou menos exposto”.
A violência contra outra pessoa, também chamada interpessoal, é a que ocorre entre
membros de uma família, parceiros íntimos, amigos, conhecidos e, também, entre estranhos.
Quando restrita à família, chama-se intrafamiliar, e restrita ao ambiente do lar, denomina-se
doméstica (DAHLBERG e KRUG, 2006; TJRS, 2021).
As formas mais comuns de violência no contexto familiar, no mesmo ambiente ou não,
incluem maus-tratos à criança e ao idoso, violência juvenil, violência praticada por parceiro
íntimo, violência sexual e abuso de idosos.
As estatísticas revelam que os homens jovens estão mais expostos à violência por arma de
fogo; as mulheres, à violência baseada no gênero, que permeia as relações sociais e a violência
sexual, física, emocional e psicológica perpetradas pelos parceiros íntimos; as crianças estão
mais sujeitas à negligência, abuso sexual e físico; e os idosos e deficientes, à violência física,
emocional, psicológica e patrimonial perpetrada, na grande maioria, por seus cuidadores
(MENDONÇA et al., 2020).
Cenário geral
Situações de alerta que aumentam o risco para violência no âmbito familiar (GAWINSKI, e
RUDDY, 2005, p.377-78):
Cenários específicos
Violência na infância
O que mais mata crianças e jovens, segundo a Abrasco (2019):
“As violências e os acidentes são as maiores causas das mortes de crianças, adolescentes e jovens de 1 a 19
anos, no Brasil. Entre essas chamadas causas externas, as agressões são as que mais matam crianças e
adolescentes, a partir dos 10 anos. O suicídio (a violência contra si mesmo) tornou-se a terceira maior
causa das mortes de nossos adolescentes e jovens, entre 15 e 25 anos. A violência é ainda mais letal
contra o sexo masculino, os homicídios são a causa da metade dos óbitos de rapazes de 15 a 19 anos. E
ao se fazer o recorte de raça da taxa de homicídios, verificamos o extermínio da juventude negra. Não é à
toa aparecemos como a quinta nação mais violenta do mundo, com taxa de homicídio maior do que a de
países em guerra.” (grifo dos autores)
Tradução livre de Lêda Chaves Dias com base no texto original de Gawinski e Ruddy, 2005, p.379.
CONDUTA
Um membro da família cometeu um ato de abuso sexual ou físico. Na maioria dos casos,
o profissional informa primeiro aos pais e, enquanto ainda estiverem no consultório,
deve ligar para os Serviços de Proteção à Criança. Como a segurança da criança vem em
primeiro lugar e um dos pais pode estar envolvido, o profissional deve primeiro ter apoio
do familiar não envolvido. A criança não deve voltar para casa até que um órgão de
proteção tenha sido envolvido no caso.
Os pais não previram a segurança e o bem-estar da criança em casos de abuso
extrafamiliar. Quando o agressor não é um membro da família, o profissional deve
imediatamente relatar sua suspeita a ambos os pais. E orientar os pais a agirem e
relatarem o incidente à polícia, bem como empoderá-los para que cuidem
responsavelmente da criança. O profissional deve incentivar os pais a apoiarem e
tranquilizarem a criança de que eles a protegerão. Nos casos de abuso sexual, os pais
devem enfatizar à criança de que ela não tem culpa.
Quando a situação de violência ocorreu na escola, os profissionais da APS podem se
reunir com os profissionais da educação e promover ações que visem a detecção precoce
da violência, realizar o acolhimento, o atendimento (diagnóstico, tratamento e cuidados),
oferecer atendimento psicológico quando necessário, notificar os casos e encaminhar
para a rede de cuidados e de proteção social (ABRASCO, 2019).
DICA
“O Disque 100 funciona diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados.
As ligações podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem gratuita, de qualquer
terminal telefônico fixo ou celular, bastando discar 100. O serviço pode ser considerado como
“pronto socorro” dos direitos humanos pois atende também graves situações de violações que
acabaram de ocorrer ou que ainda estão em curso, acionando os órgãos competentes,
possibilitando o flagrante. O Disque 100 recebe, analisa e encaminha denúncias de violações
de direitos humanos relacionadas aos seguintes grupos e/ou temas: Crianças e adolescentes;
Pessoas com deficiência; em restrição de liberdade; População LGBT; em situação de rua;
discriminação ética ou racial; tráfico de pessoas; trabalho escravo; moradia e conflitos urbanos;
violência contra ciganos, quilombolas, indígenas e outras comunidades tradicionais; violência
policial e de forças de segurança pública. O Disque 100 recebe denúncias anônimas.”
(ABRASCO, 2019)
VIOLÊNCIA ENTRE PARCEIROS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA
O Ministério da Saúde (BRASIL, 2002) refere que em uma “Pesquisa realizada pela FIBGE (Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 1989, 63% das vítimas de violência no espaço
doméstico são mulheres e que, destas, 43,6% têm entre 18 e 29 anos; e outros 38,4%, entre 30 e 49 anos.
Em 70% dos casos, os agressores são os próprios maridos ou companheiros. Com base nesses dados, pode-
se afirmar que a violência nas relações de casal é tão significativa que assume caráter endêmico.”
CONDUTA
Um bom plano de segurança deve conter três condições (GAWINSKI e RUDDY, 2005,
p.388):
Uma lista de recursos da comunidade para mulheres agredidas (por exemplo, abrigos,
polícia, centros de aconselhamento etc.).
Um local seguro (p. ex., abrigo, parente ou casa de amigos), um meio de chegar ao lugar
com segurança e, se possível, alguém que saiba o que está ocorrendo.
Um estoque de necessidades para levar a um local seguro: roupas, dinheiro, documentos
de identificação para a(o) paciente. Em casos com crianças, além dos itens citados,
também são importantes os objetos de conforto.
Conte-me sobre os O que acontece Estão seus amigos ou Você sente que tem
tipos de estresse no quando você e seu família cientes de que um lugar seguro para
seu relacionamento parceiro discordam? você tem sido ir em caso de
Você se sente seguro Você já teve brigas ameaçada ou ferida? emergência?
em seu com gritos? Se não, você pensa Se você sente que
relacionamento? Alguma vez ocorreu de que poderia contar- está em perigo agora,
Existem armas de fogo você ser empurrada? lhes, e eles seriam gostaria de ajuda para
em casa? Alguma vez seu capazes de lhe dar localizar um abrigo ou
parceiro ameaçou ou suporte? desenvolver um plano
feriu você? de emergência?
DICAS
Negligência.
História conflitante dos relatos entre cuidador e idoso.
Histórias que mudam ao longo do tempo ou não coincidem.
Ressentimento expresso com o idoso.
Apresentação de justificativas para seu próprio fracasso em fornecer os cuidados
adequados.
Alegações de que o idoso quer autonomia.
Dependência financeira do idoso.
Comportamento agressivo/defensivo, como mudança de humor e dificuldade para aceitar
uma visita domiciliar, humor deprimido e conduta regressiva.
CONDUTA
DICAS
“Os casos de suspeita ou confirmação de violência, praticados contra idosos, serão objeto de notificação
compulsória pelos serviços de saúde públicos ou privados à autoridade sanitária, bem como serão
obrigatoriamente comunicados por eles a quaisquer dos seguintes órgãos: autoridade policial; ministério
público; conselho municipal do idoso, conselho estadual do idoso; conselho nacional do idoso (art.19 do
Estatuto do Idoso).”
DICAS
REFERÊNCIAS
1. ABRASCO, Associação Brasileira de Saúde Coletiva. PSE pela Paz nas Escolas 25-03-2019. Rio
de Janeiro, 27 de março de 2019. Disponível em:
https://www.abrasco.org.br/site/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/sobre-a-
violencia-contra-criancas-adolescentes-e-jovens-brasileiros/40061/attachment/pse-pela-paz-
nas-escolas-25-03-2019. Acesso em: 16 fev. 2021.
2. ABRASCO, Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Sobre a violência contra crianças,
adolescentes e jovens brasileiros. Rio de Janeiro, 27 de março de 2019. Disponível em:
https://www.abrasco.org.br/site/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/sobre-a-
violencia-contra-criancas-adolescentes-e-jovens-brasileiros/40061/. Acesso em: 15 fev. 2021.
3. BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Governo Federal. Como
caracterizar a violência doméstica e familiar contra a mulher? 23/07/2020. Disponível em:
https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/denuncie-violencia-contra-a-mulher/violencia-
contra-a-mulher. Acesso em: 11 jan.2021.
4. BRASIL. Ministério da Saúde. 15/6 – Dia mundial de conscientização da violência contra a
pessoa idosa. 2020. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/ultimas-noticias/3209-15-6-
dia-mundial-de-conscientizacao-da-violencia-contra-a-pessoa-idosa-2. Acesso em: 07
mar.2021.
5. BRASIL. Ministério da Saúde. Violência Intrafamiliar: orientações para a prática em serviço.
Brasília: MS, 2002 (Cadernos de atenção básica – nº 8).
6. BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Manual de
enfrentamento à violência contra a pessoa idosa. É possível prevenir. É necessário superar.
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; Texto de Maria Cecília de Souza
Minayo. Brasília, DF: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; 2014.
Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/pessoa-idosa/manual-
de-enfrentamento-a-violencia-contra-a-pessoa-idosa Acesso em: 07 mar.2021.
7. DAHLBERG LL, KRUG EG. Violência: um problema global de saúde pública. Ciênc Saúde
Coletiva. 2006;11(supl.):1163-78.
8. FERNANDES CLC, MAZZONCINI LC, DIAS LC. Violência na atenção primária à saúde. In:
Augusto DK, Umpierre RN (orgs.). Programa de Atualização em Medicina de Família e
Comunidade (PROMEF), Ciclo 13, Volume 3. Porto Alegre: Artmed Panamericana; 2018.
9. GAWINSKI B, RUDDY N. Protecting the family: domestic violence and primary care clinician.
In: McDaniel SH, Campbell TL, Herpworth J, Lorenz A (orgs.). Family-oriented primary care,
2.ed. Springer: New York, 2005. p. 376-398.
10. GLOBAL REPORT. Ending violence in childhood. Disponível em:
http://globalreport.knowviolenceinchildhood.org/. Acesso em: 04 abr.2021.
11. HARDY KV, LASZLOFFY TA. Teens who hurt: clinical interventions to break the cycle of
adolescent violence. New York: The Guilford Press; 2005. p.13.
12. LENCIONI C. Observatório do terceiro setor. 57% dos casos de violência contra crianças
ocorrem dentro de casa. 02/07/2018. Disponível em:
https://observatorio3setor.org.br/carrossel/57-dos-casos-de-violencia-contra-criancas-
ocorrem-dentro-de-casa/. Acesso em: 15 fev.2021.
MENDONÇA CS, et al. Violência na atenção primária em saúde no Brasil: uma revisão
13. integrativa da literatura. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(6):2247-57.
14. MINAYO MCS. Eixo temático: violência contra idosos. Disponível em:
http://www.observatorionacionaldoidoso.fiocruz.br/biblioteca/_eixos/3.pdf. Acesso em: 07
mar.2021.
15. STARFIELD B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e
tecnologia. UNESCO e Ministério da Saúde, 2002, p.135. Disponível em:
https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/0253.pdf Acesso em: 06 fev. 2021.
16. TJRS. Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Tipos de violência doméstica e familiar. Porto
Alegre, RS. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/novo/violencia-
domestica/orientacoes/tipos-de-violencia-domestica-e-familiar/. Acesso em: 12 fev.2021.
23
Famílias reconstituídas
“Pesquisas mostram que o casamento é o fator familiar mais poderoso que influencia a
saúde.”
(McDANIEL et al., 2005, p.124)
INTRODUÇÃO
Existe uma crença social, particularmente ocidental, de que a união de duas pessoas gera a
formação de um corpo único. Dessa ideia derivam mais formulações como a de que a
felicidade familiar seja resultado da indiferenciação do casal, que a longitudinalidade da
relação seja decorrente da uniformidade do casal e que em uma família saudável ocorra a
inexistência de conflitos. Entretanto, como referem Gottman e Silver (2000, p.29), o fator
determinante de satisfação é a qualidade da amizade do casal. Já segundo Anton (2012, p.38):
“muitas infelizes relações não terminam nunca, justamente porque os indivíduos nelas
envolvidos sentem-se incapazes de estabelecer laços mais felizes com outras pessoas e
preferem estar mal acompanhados a ficarem sós...”.
A tipologia familiar contemporânea coloca em evidência uma série de elementos que
caracterizam uma relação feliz e que podem espelhar diversas famílias, como a capacidade de
compartilhar momentos, ideias e sentimentos, mostrar a habilidade em entender, honrar e
respeitar um ao outro; ter a sabedoria de compreender o outro, mesmo que discordando das
percepções individuais e promovendo o acolhimento; ter a qualidade de elaborar seus próprios
conflitos e de aproveitar a experiência passada nas vivências presentes, assim como saber
preservar um espaço individual sem implicar no isolamento ou exclusão do outro (ANTON,
2012, p.42; GOTTMAN e SILVER, 2000, p. 13-36). Estas são características comuns a
algumas famílias reconstituídas.
A família reconstituída se apresenta como um exemplo contemporâneo de construção
familiar. Suas características a direcionam para a busca da colaboração e respeito com base nas
experiências anteriores ou para a repetição de padrões que propiciam a ruptura. A presença
frequente dessa tipologia justifica a necessidade de melhor reflexão para a abordagem.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
IDENTIFICAR O PROBLEMA
A união entre duas pessoas é mais do que criar filhos, dividir contas, tarefas e ter relação
sexual, ela é recheada de expectativas e buscas de significados em comum. Em uma família
reconstituída, um dos anseios é vencer os medos de repetir padrões falidos da última
experiência. O primeiro acordo é a tarefa de criar um sistema equilibrado e coerente para a
formação da nova família. Cabe ao profissional de saúde estar atento aos objetivos em comum
e auxiliá-los a realizar os possíveis acordos.
A acomodação dos adultos aos novos papéis e funções passa por um processo de limites
imprecisos do ser e do fazer e por sentimentos de ambiguidade. Aquele que não é o pai ou mãe
biológico(a), sente-se, muitas vezes, perdido com as novas atribuições, as quais muitas vezes
sequer foram escolhidas por eles.
A adaptação dos filhos pode ter como base sentimentos de perda, como o sofrimento pelo
distanciamento com o genitor que ficou mais afastado e emoções de estranhamento com o novo
par formado.
Cabe ao profissional checar as possíveis angústias que a família está vivenciando e se estas
são referentes ao processo de adaptação, acolhendo-as e apoiando os envolvidos para que
possam se adequar à nova realidade sem ampliação do sofrimento.
Uma das formas de abordar a família e que facilita o entendimento da atual estrutura é a
construção do genograma da família atual, incluindo todas as pessoas que dela fazem parte.
O genograma é um desenho que pode ser construído com a família e utilizado para mostrar
aspectos diferentes da história familiar. É uma forma de registrar as informações sobre os
membros e suas relações em pelo menos três gerações. A visualização desse desenho ajuda
tanto o paciente quanto o profissional a identificar e compreender os padrões familiares
(McGOLDRICK et al., 2012, p. 21).
A seguir estão dispostos alguns símbolos utilizados para a realização do desenho do
genograma familiar.
Para melhor entendimento da ferramenta, propõe-se o desenho do genograma da Figura 5, a
partir do relato sobre a família Silveira:
Jorge, 32 anos, vendedor, vem à consulta inicialmente sozinho, pois tem tido muitas brigas
com sua nova companheira, Milena, de 34 anos e técnica de enfermagem.
Como na consulta Jorge referiu muitos conflitos com sua companheira, o profissional que o
atendia sugeriu que viessem juntos nas próximas consultas para dar início ao entendimento da
situação por meio do genograma.
Jorge teve um relacionamento anterior com Ana, de 27 anos, com quem teve Mateus, de 7
anos. As brigas eram muito frequentes e, na época, passou por uma avaliação psiquiátrica e
teve o diagnóstico de transtorno afetivo bipolar (TAB). Essa união durou 3 anos.
Moram na mesma casa: Jorge, Milena, Cauã e, por quatro dias na semana, Mateus. A maior
parte das brigas ocorre porque Jorge participa de campeonatos de futebol e pede para Milena
cuidar de Mateus. Quando está em casa e tem a lida com Mateus, acredita que cumpriu sua
parte e que Milena tem de assumir Cauã sozinha, já que ele fica sobrecarregado com as
atividades com o mais velho. A mãe de Jorge, D. Leonor, de 63 anos, para aliviar “a
sobrecarga” de Jorge, pede para ficar com o primeiro neto, o que causa revolta em Milena, por
achar que a sogra passa a mão sobre a cabeça de Jorge. A mãe de Milena, D. Lenir, por sua vez,
questiona a filha, porque Mateus fica mais na casa deles do que com a sua própria mãe. E isso
estimula Milena a posicionar-se contra Mateus e ampliar a briga com Jorge.
CONSIDERAÇÕES
Como descreve Anton (2012, p.14), “Viver bem está relacionado a conviver bem”. E como
Andolfi (2003, p.92) refere: “Os primeiros anos de vida de uma família reconstituída, requer
muito esforço por parte dos adultos para negociar e criar um sistema equilibrado e coerente de
múltiplas relações, dentro e fora do núcleo e dos núcleos envolvidos.”
O papel do profissional de saúde na Atenção Primária é considerar que as incongruências
dos ajustes do casal possam estar repercutindo na saúde da família. É importante determinar
qual o tipo de ajuda que a família precisa para desenvolver os padrões necessários para a nova
estrutura (CARTER e McGOLDRICK, 1995, p.356).
As consultas virtuais do casal também devem ser feitas com a presença da dupla. O contato
com apenas uma das partes pode ocorrer se tiver sido acertado previamente. O atendimento
com partes da família, se não combinado anteriormente, pode causar desconforto a quem está
ausente e sugerir cumplicidades não favoráveis ao casal.
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Resiliência
É a capacidade da pessoa de renascer da adversidade fortalecida e com mais recursos. É um
processo ativo de resistência, reestruturação e crescimento em resposta à crise e ao desafio. Ela
é construída no enfrentamento da adversidade pela abertura a novas possibilidades e na
interdependência com outras pessoas (Walsh 2005). Para um bom entendimento, é importante
salientar que a resiliência está em oposição à autossuficiência, invulnerabilidade, negação ou
desviar-se do enfrentamento.
Intervenção com o objetivo de fortalecer a família por meio de uma estrutura positiva e
pragmática para o enfrentamento exitoso dos desafios e crises ao longo da vida familiar.
Fatores de risco
Fatores de vulnerabilidade
São variáveis que elevam ou somam fatores de risco de forma a aumentar a chance de
desfecho negativo.
Famílias multiproblemáticas
Famílias vulneráveis com múltiplos riscos, muitos sintomas, muitas crises, mais de um
membro da família com sintomas, problemas na estrutura e na dinâmica familiar, problemas na
comunicação e no desempenho de papéis e funções na família. Os sintomas de violência,
adições, isolamento e exclusão social são comuns nesse tipo de família. Colapinto (1995) as
define como sendo as famílias nas quais a adversidade se tornou crônica, transgeracional e que,
frequentemente, necessitam de intervenções institucionais.
Elementos fundamentais
Elementos fundamentais para a resiliência familiar segundo Walsh (2005, p. 23) podem se
apresentar de maneiras diferentes, com intensidades adequadas aos valores, recursos e desafios
familiares. Estão identificados em três domínios:
A. Sistema de crenças
– Extrair significado da adversidade – a crise é um desafio compartilhado.
– Perspectiva positiva – focar nas fortalezas e dominar o possível.
– Transcendência e espiritualidade – aprender e crescer.
B. Padrões organizacionais
– Flexibilidade – recuperação, reorganização.
– Conexão – apoio mútuo, respeito, reconciliação.
– Recursos sociais e econômicos – mobilizar rede e ganhar segurança econômica.
C. Processos de comunicação
– Clareza – buscar coerência entre palavras e ações.
– Expressão emocional aberta – evitar acusações e compartilhar experiências.
– Resolução cooperativa dos problemas – medidas concretas, aos poucos, e prevenção.
Existem vários questionários e modelos, mas o mais comumente usado é o FAAR Model
(Family Adjustment and Adaptation Response) (Patterson, 1988).
O modelo FAAR de resiliência utiliza cinco parâmetros para avaliar o processo de
equilíbrio entre demandas, capacidades e o significado na família para um adequado
funcionamento dela.
Aumentar as capacidades
Amplie e certifique as competências, fatores de proteção e de recuperação.
Busque recursos pessoais, familiares e da rede de apoio.
Trabalhar os significados
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
A residente Brenda vem à supervisão porque atendeu uma paciente de nome Gabriela, de
36 anos, parda, boa aparência. Veio à consulta para revisão após ter tido um abortamento
espontâneo de uma gestação muito desejada.
Na consulta, referiu estar muito deprimida, desanimada e chorando muito apesar do uso de
fluoxetina 20 mg. Refere estar sem dormir e preocupada com o marido, que está
desempregado. Relata cansaço desde que cuidou de João, seu segundo marido, por 4 anos de
tratamento para um câncer.
A paciente relata que tem faltado ao trabalho e que ficou afastada dele na semana anterior
por estar com cefaleia intensa e paresia do lado esquerdo do corpo. Consultou-se e foi
constatado que sua TA (Tensão Arterial) estava elevada, com 160/95 mmHg, e foi orientada a
procurar a UBS para tratamento.
Identificar o problema
Brenda ficou muito sensibilizada com a condição de Gabriela e convidou-a a vir a uma
consulta para que pudessem conversar, que ela queria conhecê-la melhor e também o momento
de vida e à sua família. Combinaram a consulta e a residente comentou que iriam fazer um
genograma da família. Perguntou se ela queria trazer alguém na consulta e ela disse que não,
talvez depois em outro dia.
Na segunda consulta, fizeram o genograma e Gabriela pode falar um pouco de sua vida, da
vida familiar e do seu contexto no momento da consulta.
Brenda pode falar que eles estavam consolidando a relação de casal, mas o ciclo da família
atual já apresentava necessidades de adaptação à adolescência da enteada.
Figura 1 Genograma da família.
Gabriela é filha biológica de Ana e não conheceu o pai. Foi criada por Lourdes, falecida em
2017 por um câncer de mama, e pelo Marcos, falecido recentemente (6 meses), por cirrose
alcoólica. Ambos eram conhecidos de sua mãe biológica. Marcos era a pessoa com quem
Gabriela tinha mais vínculo, ela cuidou dele até o fim da vida. Possui três irmãos adotivos,
sendo que com o Alberto e o Jorge tem uma relação conflituosa, sofreu violência sexual deles
na idade de 9 anos. O irmão, Luís, é o mais próximo e ela se sente responsável por ele, que tem
sofrimento mental e necessita de cuidados.
A paciente tem um histórico de adição à cocaína e está abstinente há 2 anos. Ela teve três
companheiros, sendo que o primeiro faleceu por afogamento há 10 anos. João, o segundo
companheiro, faleceu há 2 anos por mieloma múltiplo. Atualmente ela vive com Rafael há 1,5
ano, com quem planejava ter um filho. Ele é 7 anos mais jovem que ela e possui uma filha,
Beatriz, de 9 anos. No momento, seu companheiro está fazendo “bicos“ e, por esse motivo, ela
se obriga a trabalhar e fazer extras. Desde que ele foi demitido é ela quem sustenta a casa e
auxilia a enteada, com quem tem uma boa relação. Beatriz veio morar com o casal faz 3 meses.
A mãe biológica (Viviane) da menina tem uma boa relação com a paciente.
Possibilidades
Vulnerabilidades
Perda recente do pai.
Guardar segredo do uso de droga.
Abuso de substância pessoal e familiar.
Doença mental na família.
Relação frágil com o companheiro.
Abuso na adolescência.
Mãe biológica distante.
Enteada vem morar de forma não planejada.
Aborto espontâneo de uma gestação desejada.
Situação financeira frágil.
DICAS
Famílias difíceis geralmente são difíceis para todos. Construa sua rede de apoio para o
enfrentamento da situação.
Em situações de risco/vulnerabilidades, chame outros membros da equipe para auxiliar na
avaliação da família. Faça uma intervenção por vez, aguarde o movimento da família e
refaça sua avaliação e o plano de ação.
As intervenções familiares na APS devem ser presenciais sempre que possível, e quanto
maior ou com mais demandas tiverem as famílias, maior a necessidade de participação de todos
na busca de soluções para o enfrentamento da crise.
Lembre-se de revisitar o capítulo “Abordagem da família em crise”.
REFERÊNCIAS
“Uma pessoa com uma doença crônica frequentemente luta durante um tempo prolongado
para se adaptar ao seu ambiente.”
(FREEMAN, 2018, p.4)
INTRODUÇÃO
As tarefas centrais dos profissionais da atenção primária à saúde (APS) são entender a
experiência com a doença e compreender a pessoa com o problema, dentro do seu contexto.
Essas tarefas são inseparáveis e tornam-se um desafio maior quando é necessário lidar com
doenças crônicas (FREEMAN, 2018, p.146).
As doenças crônicas exigem conhecimento técnico e parceria com a pessoa e a família que
enfrentam o problema, pois afetam todos os aspectos da vida das pessoas.
Por definição, doença crônica é um mal que não tem cura. Dessa situação, surgem as outras
características do problema, um verdadeiro processo de crise individual e familiar para
promover a adaptação, aliviar o sofrimento, causar estabilidades, diminuir incertezas e
desenvolver formas de enfrentamento.
Os sentimentos que envolvem a capacidade de lidar com novos funcionamentos, papéis e
responsabilidades devem ser apreendidos pelo indivíduo, pela família e pelo sistema de saúde
(McDANIEL et al., 1994, p.179).
Ter cronicidade está relacionado com o tempo, com a continuidade e o estilo de
atendimento também crônico, daí a importância das parcerias. Nesse sentido, vários desafios
irão se apresentar, alguns relacionados com o impacto do surgimento da doença em si; pelo
processo de adaptação e perdas; e pelo curso do problema e das incapacidades geradas. Um
desafio frequente é de o profissional de saúde manter-se sensível ao sofrimento com o passar
do tempo, reconhecendo a experiência humana com a dor, apesar do empobrecimento de afetos
que a doença possa gerar na vida das pessoas.
E é justamente nessa relação empática que se baseia o atendimento ao paciente com doença
crônica. O tratamento é auxiliado por uma abordagem compreensiva dos efeitos complexos que
a doença tem sobre o indivíduo e seu contexto (STEPHENSON, 2004, p.161).
PERGUNTAS-CHAVE
Como surgiu o problema?
Quais impactos gerou no ciclo de vida da pessoa e da sua família?
Quais crenças de vida estão correlacionadas à situação?
Como está o processo de adaptação?
Que outros estresses estão associados?
Quais situações positivas de suporte estão vinculadas?
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
A percepção como algo agudo e passageiro, que se resolve e deixa o trânsito da vida seguir
em frente, é parte do que é esperado pelas pessoas quando se deparam com uma doença. A
compreensão e o desejo de uma situação com limites precisos norteiam os pensamentos e as
auxiliam a passar por esse momento.
Segundo Stephenson (2004, p.162), “...a compreensão de que a doença pode estar aqui para
começar, pode ir e vir, é um dos primeiros obstáculos a serem enfrentados para chegar a um
acordo com a doença crônica.” Ter conhecimento sobre a doença em si pode ajudar a evitar ou
a diminuir a possibilidade de negar e rejeitar a situação.
Os primeiros obstáculos a serem enfrentados pelo paciente com doença crônica são as
novas perspectivas indicadas por uma situação que parece não ter fim.
Uma situação decorrente da mudança de perspectiva, de passar de algo agudo para crônico,
é avaliar se isto gerou alguma crise. Portanto, investigar se ocorreu uma nova direção no ciclo
de vida familiar faz parte do contexto técnico do profissional de saúde.
Outro conceito fundamental para a abordagem da doença crônica é o de crenças familiares;
lembrando que não há vantagens em fornecer informações sobre a doença se existirem
preconceitos em aceitá-la. Crença familiar é o conjunto de significados e normas criados pela
cultura única de cada família, que facilita o senso de controle e competência dela, relativo à
experiência que está em questão (WALSH, 2016, p.471).
Reconhecer e identificar as crenças individuais e familiares facilitará a abordagem centrada
na pessoa com o problema, pois a decisão de aceitar ou não a condição e o tratamento se alinha
com a maneira que as crenças familiares foram desenvolvidas.
Para compreender a experiência da pessoa com a doença também será importante aprender
a lidar com mecanismos de defesa do paciente e da família. Estes são processos psicológicos
inconscientes para a compreensão das relações entre a emocionalidade e a doença. Segundo
Geada (1996):
“A função de tais mecanismos de defesa seria a de proteger o indivíduo da vivência de estados afectivos
negativos intensos e crónicos susceptíveis de interagir nos sistemas biológicos, dessa forma desencadeando
a doença ou influenciando a sua progressão.”
POSSIBILIDADES
A construção da relação pode ser compreendida por ser a doença crônica facilitadora da
continuidade do atendimento ao longo dos anos, e pela capacidade dos profissionais de se
manterem sensíveis às condições. Essa situação, apesar de ser um grande desafio, é também
uma oportunidade de rever o caminho do cuidado.
CONSIDERAÇÕES
Ao pensar nos obstáculos que as doenças crônicas desencadeiam, McDaniel et al. (1994,
p.194) sugerem algumas estratégias:
A oferta de cuidados psicológicos, via remota, pode ser compreendida tanto como uma
crítica aos cuidados da família com o paciente como um processo para manter a distância da
equipe, que não conhece suficientemente os envolvidos. Portanto, sugere-se que esse formato
seja utilizado com famílias que previamente já tenham uma boa aproximação, sendo mais um
recurso disponível.
REFERÊNCIAS
“Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós
ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre.”
(Paulo Freire)
INTRODUÇÃO
A casa é o lugar onde podemos avaliar como vivem as pessoas, como circulam, como é o
espaço em que interagem e de que forma se dão os limites com o mundo externo. Mais do que
um lugar concreto, é o espaço da dimensão afetiva de seus membros. Ela é um ambiente de
conhecimento e de diagnóstico de como o paciente e sua família se relacionam.
O cuidado domiciliar remete ao final do século XIX, início do século XX, iniciando com a
figura do médico, que atendia no domicílio e era um frequentador da casa. Ele compartilhava
momentos significativos do ciclo da vida familiar, não sendo então uma relação restrita ao
cuidado médico. Recentemente, a atenção domiciliar passou a ter um caráter mais abrangente,
extrapolando a figura do médico e do enfermeiro e assumindo um caráter multidisciplinar, de
integralização do cuidado. Esse cuidado é, portanto, dividido com uma equipe
multiprofissional que participa como recurso para a escuta e apoio à família.
Existem diferentes tipos de atenção domiciliar descritos pela Organização Mundial da
Saúde, conforme o grau de complexidade da atenção a ser desenvolvida nesse ambiente. O
atendimento é sempre multiprofissional, com equipes que vão ser construídas conforme a
necessidade da pessoa atendida.
A partir dos anos 1930 e 1940, com o aumento da expectativa de vida e com a necessidade
de oferta diferenciada de serviços, uma série de atendimentos migrou dos serviços
especializados para o atendimento no domicílio e na comunidade. Essas atividades
frequentemente estão ligadas à promoção da saúde, à prevenção de doenças, à avaliação e
monitoramento de vulnerabilidades e à inclusão de populações marginalizadas ao serviço de
saúde. Inicialmente, esse tipo de atenção estava restrito à atividade privada e em grandes
centros urbanos. Hoje, encontra-se disponível em todos os tipos de comunidade, desde a
implantação da estratégia de saúde da família, em 1994.
Quando nos referimos especificamente ao acompanhamento domiciliar por questões de
saúde mental, alguns aspectos já comentados se tornam ainda mais relevantes, como a
observação da interação entre as pessoas da casa; sua disposição no ambiente; seus papéis, suas
funções e limites, sua comunicação e a forma como estabelecem alianças distribuem o poder e
demonstram afeto. Isso nos permite compreender a saúde do paciente, tendo uma dimensão
infinitamente maior e mais ampla do que em outras formas de atendimento feitas em ambientes
onde esses dados não são conhecidos e, portanto, não contemplados no plano de ação.
O processo de adoecimento exige adaptação, enfrentamento de situações difíceis e
mudanças no funcionamento familiar, fazendo então que o sistema como um todo se modifique
e que pessoas com doenças crônicas ou múltiplas comorbidades apresentem também uma
maior incidência de problemas relacionados à saúde mental.
Com a cronificação do problema e o desgaste da saúde mental, adoecem o paciente e o
cuidador – com o aumento do estresse, a comunicação fica dificultada e a interação se torna
mais ríspida, havendo uma vulnerabilidade para questões de violência e um isolamento social
que, em muitos casos, inclui um afastamento da equipe de saúde.
É importante destacar que também é necessário manter avaliação clínica e psicológica
durante todo o cuidado e que com o aparecimento de sintomas diferentes do esperado também
devem ser considerados os diagnósticos diferenciais de causas orgânicas para os transtornos de
saúde mental e estar atento aos sinais de complicações físicas ou psicossociais, com
intervenções da equipe sempre que necessário.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
“A assistência domiciliar 1 (AD1) é de responsabilidade das equipes de atenção básica, incluindo equipes
de Saúde da Família e Núcleos de Apoio à Saúde da Família, por meio de visitas regulares em domicílio,
no mínimo, uma vez por mês. As modalidades AD2 e AD3 é de responsabilidade da Equipe
Multiprofissional de Atenção Domiciliar (EMAD) e da Equipe Multiprofissional de Apoio (EMAP), ambas
designadas para esta finalidade, por meio de visitas regulares em domicílio, no mínimo, uma vez por
semana.” (HILZENDEGER et al., 2014)
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
A equipe de saúde recebeu uma solicitação de dona Zilda, vizinha do Sr. Manuel. Ele tem
74 anos, é casado com dona Ana e está restrito ao domicílio há cerca de 5 anos. Zilda relata que
o Sr. Manuel tem quedas frequentes no domicílio, que durante o dia fica sozinho em casa e que
tem dificuldade para as atividades diárias, como alimentar-se e mover-se. Relata ainda que a
esposa dele é cuidadora de pacientes das 8h às 18h, de segunda a sábado. O casal não tem
filhos, não recebe visitas e a vizinha, frequentemente, ouve discussões e fica preocupada com a
possibilidade de que algo aconteça e o Sr. Manuel fique sem atendimento. A equipe conversa e
define que a agente de saúde e a técnica de enfermagem farão a visita para trazer informações
para a discussão na microequipe.
A equipe avalia que o Sr. Manuel permanece muito tempo sozinho em uma casa escura e
úmida, sem ventilação adequada. No dia da visita feita pela agente de saúde ele refere não
conseguir abrir a porta, que está com cadeado, mas conta que tem tossido muito, que
emagreceu e que não vai ao médico ou faz exames há muito tempo. Quando perguntado o
motivo de não consultar, refere que sua esposa trabalha muito durante toda a semana e não tem
tempo para levá-lo ao serviço de saúde.
Identificar o problema
A equipe (médico, enfermeiro, técnico e agente de saúde) faz uma primeira avaliação em
horário marcado com a cuidadora. Conversando com ela, descobrem que Sr. Manuel fica em
casa sozinho, trancado, pois ela tem medo de que alguém possa invadir o domicílio. Costuma
deixar alimentos e água na mesa ao lado da cama, para que ele possa comer durante o dia.
À noite, quando chega, ajuda na higienização e faz janta, que também servirá de alimento
no dia seguinte. Relata que os dois não contam com ninguém para auxiliá-los, nem na rotina
diária nem financeiramente.
O Sr. Manuel tem alguns hematomas, aparentemente decorrentes das quedas. Ele relata que
sua rotina diária é ficar na cama ouvindo rádio. Ele tem déficit visual, que o impede de ler, o
que sempre foi seu maior prazer. Dona Ana demonstra cansaço e intolerância às solicitações de
mudança de rotina feitas pelo Sr. Manuel. Sente-se esgotada e incapaz de obter um rendimento
financeiro suficiente para ambos.
Atribui essa condição ao fato de o Sr. Manuel sempre ter sido muito “frouxo” com a
questão financeira, emprestando valores a conhecidos sem pensar na necessidade que teriam.
Ele relata que trabalhava como professor e isto lhe rendeu a aposentadoria, que reconhece ser
insuficiente para as demandas hoje. Quando fala disso, Sr. Manuel chora e diz que acreditava
que as pessoas entendessem a necessidade de pagá-lo e, por isso, nunca se sentiu à vontade de
cobrar. Relata que a esposa também nunca aceitou favores e dificultou o acesso dos amigos à
casa.
Possibilidades
Acolher a queixa da dona Zilda e avaliar a possibilidade de visita domiciliar para o Sr.
Manuel.
Conversar com a agente de saúde e avaliar o seu conhecimento sobre a família em
questão.
Avaliar com a agente de saúde as informações sobre o domicílio, o acesso e os contatos
com o cuidador.
Verificar com o Sr. Manuel sua percepção sobre a situação.
Conversar com a Dona Ana para avaliar a situação e marcar uma visita domiciliar.
DICAS
DICAS
REFERÊNCIAS
1. BOFF L. Saber cuidar, ética do humano: compaixão pela terra. 9.ed. Petrópolis: Vozes; 2003.
2. BRASIL. Ministério da Saúde. Grupo Hospitalar Conceição. Manual de assistência domiciliar
na atenção primária à saúde. Lopes JMC. Porto Alegre: Serviço de Saúde Comunitária do
Grupo Hospitalar Conceição, 2003.
3. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 825/GM/MS de 25 de abril de 2016. Redefine a
atenção domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e atualiza as equipes
habilitadas [Internet] Brasília: MS, 2016.
4. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção
Básica. Manual de uso do sistema com prontuário eletrônico do cidadão PEC v3.2. Brasília,
DF: MS; 2019.
5. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção
Básica. Caderno de atenção domiciliar / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde,
Departamento de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.
6. FONSECA C. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos
populares. Porto Alegre: UFRGS; 2000.
7. GUSSO G, LOPES JMC, DIAS LC (orgs.). Tratado de medicina de família e comunidade:
princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 2019.
8. HILZENDEGER AL, ZANCHIN R, RICK ER, FELTRIN JO, SORATTO MT. A atuação da equipe
multiprofissional do Serviço de Atendimento Domiciliar (SAD). Caçador. 2014;3(2):79-94.
9. LOPES JM, OLIVEIRA MB. Assistência domiciliar: uma proposta de organização. Rev Técnico-
Científica do Grupo Hospitalar Conceição. 1998.
10. LOPES JMC (org.). Grupo Hospitalar Conceição: manual de assistência domiciliar na atenção
primária à saúde. Porto Alegre: GHC; 2003.
11. MCWHINNEY IR. Manual da medicina de família e comunidade. 3.ed. Porto Alegre: Artmed;
2010.
27
Perdas e luto
INTRODUÇÃO
As perdas nos trazem lembranças muito intensas e têm o seu auge com a percepção delas
como o fim, geralmente associado a crenças e experiências relacionadas à morte vivenciadas
previamente. As perdas são, sem dúvida, processos vivenciados e ritualizados de acordo com a
religiosidade, as influências familiares, a cultura e a etnia. O entendimento desses fatores é
essencial para uma adequada avaliação dos sentimentos presentes no momento e permitem que
a intervenção do profissional de saúde seja adequada à pessoa que está recebendo cuidados
pessoais, familiares ou de um grupo.
Em 2020, e muito provavelmente nos próximos anos, o impacto da pandemia causada pelo
coronavírus (Covid-19) apresenta perdas imensuráveis a indivíduos, famílias e à sociedade. As
perdas e o medo destas constituem hoje uma demanda extremamente relevante de sofrimento
mental.
A demanda nos serviços de atendimento por problemas de saúde mental vem crescendo de
forma exponencial nos últimos anos em todo o mundo. Antes da pandemia já era reconhecida
como presente essa realidade em uma em cada cinco pessoas, segundo o estudo The Impact of
COVID-19 on Mental, Neurological and Substance Use Services: Results of a Rapid
Assessment (WHO, 2020). Esse estudo apresenta como fatores de risco para o aumento do
sofrimento mental cinco pontos essenciais:
A adversidade é um fator de risco em curto e longo prazos para problemas de saúde
mental.
Luto, isolamento, perda de renda, desencadeamento do medo e o agravamento de
transtorno mental já existentes.
Distúrbios mentais, neurológicos e uso de substâncias (mental, neurological and
substance – MNS) preexistentes aumentam o risco de morte, doença grave ou
complicações de longo prazo.
A própria Covid-19 está associada a doenças neurológicas, mentais e suas complicações.
Aumento da demanda por serviços de saúde mental, neurológica e de abuso de
substâncias em razão de sintomas decorrentes de situações de perda (pessoal, financeira,
laboral e social) causa busca aos serviços (social e saúde) baseados na comunidade, que
se encontram de forma muito limitada em comunidades mais carentes.
“uma das principais razões pelas quais muitos de nós evitam qualquer conversa sobre a morte é a sensação
terrível e insuportável de não haver qualquer coisa que possamos dizer ou fazer para confortar o paciente.
Tive um problema similar ao trabalhar com muitos pacientes idosos e enfermos no passado. Sempre senti
que a velhice e a doença eram tão devastadoras que embora eu desejasse comunicar esperança a essas
pessoas, apenas comunicava-lhes a falta de esperanças. Parecia-me que o problema da doença e morte era
insolúvel e que, portanto, essas pessoas não podiam ser ajudadas”.
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
O luto e o processo de elaboração das perdas são semelhantes, porque ambos refletem a dor
pela perda, mas a relação com o “objeto” (pessoa, sentimento, bem material ou não) ainda vai
permanecer até que o processo de resolução termine. O tempo de elaboração de uma perda é
individual e vai durar o período necessário ao cumprimento de uma série de tarefas afetivas em
relação a ela.
IDENTIFICAR O PROBLEMA
Algumas das características do luto agudo ou recente são comuns e devem ser reconhecidas
como normais em um período inicial:
Estresse somático ou físico.
Preocupação com a imagem da pessoa que perdeu.
Culpa em relação à pessoa ou a circunstância da sua morte.
Reações hostis com o entorno decorrente da inconformidade com o ocorrido.
Incapacidade para funcionar como antes da perda e uma diminuição da capacidade de
reagir.
Desenvolver traços de identificação comportamental com a pessoa que perdeu.
Lembre-se:
Sentimentos
Tristeza, raiva
Culpa e autorrecriminação
Ansiedade, solidão
Fadiga, desamparo
Choque, anseio
Emancipação, alívio
Estarrecimento
Sensações físicas
Vazio no estômago
Sensação de despersonalização
Cognições
Descrença, confusão
Comportamentos
A elaboração do luto ou de uma perda significativa passa por cinco estágios, da notícia (ou
percepção) até a resolução. Isso é particularmente importante para o profissional de saúde
mental, porque conhecer o processo permite intervenções que auxiliam na adequação deste.
O luto pode ser ainda entendido como um processo evolutivo, segundo Kübler-Ross (2107).
Esta afirma que o enlutado pode não passar por todas as fases, mas apresentará pelo menos
duas e estas não têm uma ordem para serem vividas. Podem passar por mais de uma fase ao
mesmo tempo.
Esses estágios, em lutos considerados normais, podem ser apresentados a partir de cinco
etapas:
DICA
Pergunte o que o paciente sabe, como soube, busque aproximação da realidade com o fato
ocorrido aos poucos. Por exemplo: Estava doente? O que você achava que estava acontecendo?
Um acidente? Como? Ele corria? Ele costumava fazer coisas desse tipo?
DICA
Nesta fase, você pode ajudar sendo empático com o momento e trazendo dados de realidade para
o ocorrido, corrigindo percepções inadequadas e mostrando o quanto buscar um culpado não vai
mudar o desfecho. Facilite a expressão dos sentimentos, mas lembre-se: catarse não ajuda!
3º estágio: negociação/barganha. O momento é de negociação entre aceitar a realidade,
pensar na perda e como fica depois desta, com projetos de reconstrução da vida e um
reinvestimento pessoal. Aparece a necessidade de se ver sem o “objeto” da perda. Há
tristeza, mas já existe movimento de recomeço da vida. O final do processo de luto pode
ser entendido como o momento em que a pessoa consegue reorganizar a sua vida,
desenvolve relações interpessoais e investe em um novo projeto pessoal. É comum,
nessa fase, a aproximação com o “divino”, representada por uma leitura religiosa, além
de “encontrar, falar, buscar” contatos para se sentir autorizado a seguir vivendo.
DICA
Acolha, aceite o ir e vir do processo, ouça, auxilie na expressão dos sentimentos e seja suporte
para a ansiedade do paciente.
4º estágio: depressão. É o momento em que o paciente percebe que perdeu, sente a falta
e tenta o consolo. Começa a ficar mais introspectivo em um primeiro momento e, após,
faz conexões da perda com o seu contexto pessoal e a repercussão daquela perda na sua
vida.
DICA
DICA
Avalie se o luto do paciente acabou. Para que isso aconteça, as fases precisam ter sido
cumpridas e o paciente precisa ser capaz de:
O luto e a depressão são estados que modulam o afeto para baixo, manifestam-se por meio
de uma série de sentimentos e sensações que apresentam diferenças entre si, e quando
percebidas podem mudar substancialmente a avaliação e a conduta do profissional.
A depressão apresenta perda da autoestima e uma sensação de esvaziamento e
empobrecimento pessoal. No luto não há perda da autoestima, existe uma sensação de vazio.
A intensidade e a capacidade de resolução do luto estão diretamente associadas a uma série
de determinantes. São eles:
Rede de apoio não responsiva ou homogênea (todos fornecem o mesmo tipo de apoio).
Situações traumáticas e com uma rede de apoio inadequada.
Crise vital pessoal e/ou familiar concomitante.
Relação ambivalente, necessidades inadequadas e desfecho traumático.
Para podermos auxiliar a resolução do processo de luto, o primeiro passo é ter claro os seus
objetivos:
Aumentar a realidade da perda.
Ajudar a pessoa a lidar com os afetos expressos e latentes.
Ajudar a pessoa a superar os obstáculos para se reajustar depois da perda.
Encorajar a pessoa a dizer adeus e a se sentir confortável para reinvestir na sua vida.
Lembre-se de que foi difícil pedir ajuda e seja acolhedor. Faça perguntas para avaliar a
possibilidade de riscos e de crise: solidão, aniversário de morte ou da perda, falta de apoio, uso
de substâncias psicoativas e álcool.
Caso sua avaliação não lhe deixe seguro, chame o paciente para uma consulta presencial,
faça uma visita domiciliar ou solicite a outro membro da equipe que oriente sobre o que deve
ser avaliado.
REFERÊNCIAS
“Cuidar não tem nada a ver com categorias; mostra, isto sim, à pessoa que sua vida é
valorizada, pois reconhece o que faz sua vivência ser única.”
(Arthur Frank, 1991)
INTRODUÇÃO
A vivência do cuidado no final da vida e a morte são grandes desafios a serem enfrentados
pelo profissional de atenção primária. Frequentemente, nessa fase da vida, o conhecimento
acumulado ao longo do tempo e o cuidado contextualizado nos permitem auxiliar para uma
terminalidade mais tranquila, acompanhada de pessoas significativas para quem está sob nosso
cuidado.
O aumento significativo da longevidade e um melhor acompanhamento para os múltiplos
problemas crônicos em saúde possibilitam o acompanhamento de pessoas e famílias,
favorecendo intervenções que facilitem a resolução de problemas emocionais e relacionais
decorrentes do cuidado prolongado. O profissional de atenção primária exerce a função de
“advogado de defesa” e mediador entre cuidadores, família, múltiplos especialistas e o serviço
de saúde como um todo.
A prática de atenção primária à saúde frequentemente é o primeiro e o último cuidado a
pessoas que se encontram com diagnósticos graves, sem perspectivas de cura e/ou sintomas
intratáveis. Essas pessoas apresentam medo de serem abandonadas se tiverem muitas queixas
ou se forem recorrentes nos mesmos problemas.
Esse sentimento faz com que, frequentemente, os pacientes minimizem suas queixas ou até
deixem de fazê-las, motivo de uma assistência insuficiente. Acredita-se que uma forma de
melhorar o tratamento desses pacientes seja com acompanhamento regular, e não por demanda
pessoal ou familiar. É impossível dissociar o adoecimento do sofrimento, por isso o
profissional de saúde tem um papel importante nesse momento, uma vez que mesmo que o
sofrimento seja uma questão individual, ele pode ser aliviado pela validação, pelo
conhecimento, pelo esclarecimento sobre a doença e pelo planejamento para diminuir a dor e o
sofrimento decorrentes dela.
Os pacientes, quando em estágio de terminalidade, podem apresentar uma série de
dificuldades no autocuidado e, por esse motivo, devem ser ouvidos e acolhidos. Os
profissionais de saúde, em conjunto com a família, devem buscar os elementos significativos
para a manutenção da qualidade da sua vida. A família precisa, ainda, ser incluída no plano de
acompanhamento e estar apta a assumir a responsabilidade pelas decisões junto ao serviço de
saúde, quando necessário.
Perguntas-chave
Perguntas que orientarão os passos seguintes são fundamentais para que o profissional
entenda os desejos, angústias e necessidades de seu paciente. Alguns exemplos do que deve ser
questionado:
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
CENÁRIO DE INTERVENÇÃO
A equipe foi chamada para acompanhar o Sr. Manoel, 74 anos, casado, 2 filhos adultos,
engenheiro aposentado, que apresentou dores intensas, impedindo-o de deambular. Relata que
as dores começaram após ter ficado longo período fazendo ressonância magnética da sua
coluna. Teve episódios de dor anteriormente, quando foi investigado, e há 4 anos apresentava
lesões que não sabe o motivo. Refere que na época foi fazer exames em razão de problemas de
intestino. Na avaliação, o paciente diz que não sabe o que está acontecendo, mas que sua
família deve saber. Imagina que pode ter relação com os exames feitos anos atrás.
IDENTIFICAR O PROBLEMA
Converse diretamente com o paciente sobre o que deseja saber sobre o diagnóstico,
prognóstico e os recursos para o acompanhamento. É importante que você olhe o paciente e/ou
sua família nos olhos e fale calmamente – repita a informação central muitas vezes, se
necessário. Seja honesto, diga o que sabe e o que desconhece sobre o tema. Espere o paciente e
a família absorverem a informação, pois, frequentemente, no primeiro momento, as pessoas
não conseguem entender más notícias (ver capítulo sobre más notícias). Evite discussões
diagnósticas e outras distrações, mas deixe claro que fará o acompanhamento necessário.
Avalie crenças, cultura e espiritualidade do paciente, isso deve ser considerado e o ajudará na
criação e manutenção do vínculo.
POSSIBILIDADES
Questionar o paciente sobre suas intenções, dúvidas e pessoas que devam ser envolvidas
no seu cuidado.
Iniciar a analgesia necessária.
Criar uma rede de apoio (familiares, amigos, religião – quando houver).
Otimizar a equipe para os cuidados (quais profissionais deverão ser envolvidos, com que
frequência e para atender a quais demandas).
Avaliar o preparo do cuidador (Está apto emocionalmente? Qual o nível de estresse a que
está sendo submetido? Há alguma habilidade técnica envolvida que precise ser
avaliada?).
Agendar consultas regulares para o acompanhamento e coordenação do cuidado.
DICAS
Convoque a família quando tiver certeza de que é a hora. Esteja seguro disso, após discutir
com o seu paciente essa necessidade.
Prepare-se para ser acolhedor com os sentimentos, inseguranças e, muitas vezes, com o
despreparo familiar diante da situação.
Entenda que algumas atitudes são transferenciais e dizem respeito ao momento e à relação
com o paciente.
Organize para que o local da reunião seja tranquilo e continente. Não faça uma entrevista em
pé, pois isso transmite uma impressão de pressa, vontade de sair.
Quando for dar más notícias, inicie a conversa dizendo que precisa ter uma conversa sobre
as suas preocupações com a doença.
Seja claro, use uma linguagem simples e compreensível, evite medicalização ou
intelectualização da informação, bem como otimismo e pessimismo excessivo. Não faça
previsões e demonstre a sua vontade de que fosse diferente.
Avalie como a família se adaptou em outros momentos em que necessitou fazer mudanças e
se ela aceita ajuda de provedores de cuidado, externos à família.
Avalie a espiritualidade e a necessidade de envolver algum representante significativo para a
pessoa na construção dos rituais de terminalidade (adaptado de Mc DANIEL, 2005, P. 262).
Lembre-se de que ter um familiar com um problema terminal é causa de ansiedade, fazendo
com que a família demande com frequência atendimento – por questões clínicas ou não. Seja
acolhedor, mas evite fornecer informações importantes a vários membros da família. Para
evitar problemas de comunicação, procure junto com a família estabelecer um interlocutor que
se responsabilizará pelas demandas remotas.
REFERÊNCIAS