Aula 20-06 - Juventude Globalizada
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Sarai Schmidt2
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Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Recepção, Usos e Consumo Midiáticos” do XVI
Encontro da Compós, na UTP, em Curitiba, PR, em junho de 2007.
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Centro Universitário FEEVALE. [email protected].
fim, a juventude líquida que irrompe deste espaço que interessa-me, igualmente,
investigar3.
A pesquisa contemplou discussões com acadêmicos de Comunicação
Social sobre o que significa “ter atitude” para eles e análise da Revista MTV.
Foram criados dois grupos de discussão, formados por alunos com idade em sua
maioria entre 18 e 30 anos. Ao apresentar a proposta de trabalho, busquei
discutir coletivamente o que significa “ter atitude” para estes jovens, que são
interpelados diariamente pela mídia de diferentes formas.
Na primeira sessão realizada com cada grupo foi apresentada uma síntese
do projeto de pesquisa e a proposta para a participação dos acadêmicos. Nestas
duas primeiras sessões com o Grupo 1 e Grupo 2, os acadêmicos demonstraram
interesse em defender suas posições sobre o que a expressão “ter atitude”
significava e curiosidade sobre a visão dos colegas em relação à mesma
expressão. Nas palavras de um jovem acadêmico, ao referir-se a Revista MTV
:“esta revista traz cultura, os caras da MTV têm atitude mesmo e é disto que
precisamos.”4
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As discussões apresentadas neste artigo foram desenvolvidas na pesquisa Ter Atitude: Escolhas
da Juventude Líquida. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, PPGEDU, 2006. Tese de
Doutorado.
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Os depoimentos dos alunos do grupo de discussão da pesquisa serão colocados em itálico e
entre aspas.
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os colegas os possíveis significados de sua produção. Depois da manifestação
inicial dos autores (texto, fragmento, colagem, desenho), foi aberta a discussão
para o grupo. Foram duas sessões que oportunizaram um “caloroso” debate
sobre o que significa “ter atitude” para os jovens acadêmicos. As discussões de
cada encontro foram gravadas em fitas-cassete e depois transcritas.
Para Bauman (1999), o processo pelo qual grupos culturais passam a ser
designados como “ambivalentes” envolve, de início, um complexo sistema de
“assimilação”. Para a discussão que interessa aqui em relação ao sistema de
assimilação, privilegiarei três de seus elementos constituidores: a assimilação
como apagamento de um estigma coletivo; a assimilação como processo cujo
objetivo é “tornar semelhante”; e, por fim, a assimilação como fator que supõe (e
que impõe), para seu efetivo funcionamento, a superioridade de uma forma de
vida. No caso deste estudo, esses três elementos, inseparáveis entre si, serão
tratados de forma a entender como, na ânsia de afastar e mesmo apagar um
estigma coletivo (marcado, sobretudo, pela evidência de sua não conformidade
com os padrões universais preconizados pela modernidade), a “assimilação”
procede de modo a fazer com que o jovem (o estranho, o outro) se torne
semelhante, senão igual, a mim. Entende-se que aquilo que importa destacar
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neste momento é a maneira pela qual as características de um grupo são
reconduzidas e reinterpretadas, ou seja, como tais características ganham uma
nova roupagem em tempos de neoliberalismo – vale lembrar que essa questão
será analisada a partir da expressão “ter atitude”, ampla e polissimicamente
enunciada tanto pelas revistas, como pelos próprios jovens, em relação a si
mesmos.
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A postura de um Estado jardineiro (Bauman, 1999, p. 29) é aquela que deslegitima uma certa
condição original da população (que, como tal, seria selvagem, indócil e inculta) e enfraquece os
mecanismos de auto-equilíbrio da mesma. Em função disso, aposta na Razão como um valor
inquestionável para promover a distinção da população entre plantas úteis (que merecem ser
cultivadas, tratadas e multiplicadas) e as ervas daninhas (que devem ser extirpadas e extintas). A
questão principal desta lógica é tornar tanto uma categoria quanto a outra “objetos de ação” e
destituir de ambas o “direito de agente com autodeterminação” (ibidem, grifos do autor).
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Talvez seja possível dizer que, atualmente, e numa sistemática de
“privatização da ambivalência”, cabe ao indivíduo a escolha, a disposição e
mesmo a opção em relação às posturas individuais a serem seguidas entre o
vasto leque de alternativas que culturalmente lhe são dadas. Ou seja,
paralelamente aos processos que fazem do indivíduo sujeito pelo modo do “ser”
(o que, de certa forma, o alia a outros por sentimentos de pertença) – ou seja, sou
branco, sou homem, sou índio –, ele agora passar a ser objetivado também por
características, muitas vezes inigualáveis, derivadas do “ter”, ou seja, tenho
iniciativa, tenho força de vontade, tenho ousadia, tenho um diferencial, tenho,
finalmente, atitude.
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O que se torna cada vez mais claro e explícito é a forma mesma de como
se dá a construção de uma “identidade” jovem. Paradoxal por excelência, o
conceito de identidade, tal como tratado por Bauman (2006, s/p), opera sobre a
cisão entre a – impossível – emancipação individual (individualidade absoluta) e
a integração a um grupo (a entrega absoluta). Neste sentido, “ter atitude” acaba
por expor, de forma inequívoca, os perigos que sofrem, em nosso tempo, os
conceitos de individualidade e de coletividade. O caminho seguido para a
definição da identidade se dá por trilhas nas quais a presença de “batalhas
intermináveis entre o desejo de liberdade e o desejo de segurança” é irrefutável.
Por essa razão, a “guerra pela identidade” é sempre inconclusa e, mais do que
isso é também provavelmente “uma guerra sem vencedores” (ibidem).
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Trata-se aqui de um fenômeno de ambivalência na medida em que
observo o quanto a expressão “ter atitude” torna-se emblemática para tornar
visível a negação daquilo que a ordem se esforça em ser, ou seja, tornar visível o
“outro da ordem”. A partir de seu emprego, de seus usos e atribuições no
universo jovem, a expressão “ter atitude” percorre os mais variados espaços no
afã de afastar o que é da ordem do indeterminado e do imprevisível. Mais do que
reconstruir um “outro mundo” possível por aqueles que “têm atitude”, cabe
construir, repetidamente, “o outro”, o avesso, desse mesmo mundo (Bauman,
1999). E é justamente isso que acaba por caracterizar o fenômeno da
ambivalência.
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O processo de assimilação tratado por Bauman, e que retorno agora, é
baseado em algo mais (muito mais) do que na mera mudança, ironicamente, de
atitude. Ela vai além de uma alteração de códigos, sejam eles lingüísticos,
comportamentais e de relacionamento cotidiano, na medida em que são
definidos “padrões aparentemente unívocos do que é próprio ou impró prio”
(Bauman, 1999, p. 163). No caso da juventude hoje, plenamente identificável
com a expressão “ter atitude”, o movimento não é centrado no pleno apagamento
de características até hoje entendidas como “essenciais” dos jovens (afinal, seria
plenamente equivocado afirmar que a identidade jovem não é desejável, ainda
mais quando fenômenos como o da “adultescência6” se mostram cada vez mais
intensos). De fato, a questão é de administrar tais características, controlá-las e,
acima de tudo, assimilá-las. O processo de assimilação se dá, então, de forma
não a ignorar ou desprezar um conjunto de características que, por muito tempo,
vêm sendo identificadas como pertencentes ao universo jovem. Antes disso, a
questão proposta é a da re-utilização das mesmas, de sua re-condução. Da
mesma forma, assimilar as marcas que historicamente foram reconhecidas como
“dos jovens” tem a ver, por exemplo, com o fato de a “vontade de mudar o
mundo”, ser dissolvida e remodelada, já que matéria-prima para a “inovação”.
Inovação, no “glossário” neoliberal, é plenamente identificada com a capacidade
(ou não) de ter “iniciativa”.
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Em relação a esse fenômeno da adultescência, cabe apontar a pergunta que faz Bauman,
citando T. H. Marshall: “quando muitas pessoas correm na mesma direção, é preciso perguntar
duas coisas: atrás de quê e do quê estão correndo?” (Bauman, 2001, p. 95, grifos do autor).
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Nesse processo, na medida em que implicam condições convenientes e
subtraem outras, inconvenientes, os usos da expressão “ter atitude” acabam
constituindo o jovem como pertencente, de certa forma, ao grupo dos
“indefiníveis” (Bauman, 1999, p. 65). Ora, no momento em que qualidades e
características historicamente construídas para esse grupo acabam sendo
administradas de outra forma (e, algumas delas, até apagadas), eles acabam não
sendo mais nem uma coisa, nem outra. Não são nem “adultos” (responsáveis,
administradores de decisões), nem “jovens” (displicentes, rebeldes). Antes disso,
o próprio universo jovem acaba por nos “expor o fracasso da própria oposição”
(Bauman, 1999, p. 69). Pela expressão “ter atitude” é possível observamos nas
manifestações dos jovens ditos como: “ter atitude” é ser “um cidadão consciente,
(...), que cumpre com direitos e deveres, que conhece o que pode e o que não
pode fazer”; “ter atitude” significa, ainda, “ser educado, gentil e mostrar o
verdadeiro caráter”. Ou, que uma pessoa “de atitude” é “bem vista pela família,
pelos amigos e pela sociedade”. “Ter atitude” pode ser também “saber curtir e
ser feliz com coisas simples. (...) É não fazer o que se tem vontade ou o que se
quer, mas saber aproveitar e aprender com tudo o que fazemos”.
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entre o natural e o não-natural, entre o “espontâneo” e o “produzido”. E aquilo
que é artificialmente formado, acaba sendo precário, e, portanto, objeto de
minuciosa atenção (Bauman, 1999).
● Juventude líquida ●
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ambivalente, mas porque ela se constitui como efeito-superfície da modernidade
líquida. Contudo, como veremos a seguir, as discussões entre juventude líquida e
grupo ambivalente não se separam, mas, antes, remetem-se umas às outras. Em
poucas palavras, o trabalho aqui, ao falarmos de “juventude líquida”, é o de
promover uma aproximação com idéias difundidas por pesquisadores como
Abramo (1997), que nos indicam o quanto a juventude pode ser entendida como
uma espécie de síntese da cultura; ou, talvez, em outras palavras, trata-se de
idéias que nos indicam o modo como os jovens representam, de certa forma,
“uma espécie de lente de aumento” sobre as profundas mudanças culturais que
caracterizam o mundo contemporâneo.
Bauman afirma que “a sociedade que entra no século XXI não é menos
´moderna´ que a que entrou no século XX” (Bauman, 2001, p. 36). O que se
pode dizer, talvez, é que a sociedade “é moderna de um modo diferente”
(ibidem). E o que diferencia uma da outra é que a primeira seria sólida, e a
segunda líquida.
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disso. Sugerir algo além do momentâneo e do imediato, nos leva,
invarialvemente, ao que é da ordem do obsoleto.
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A noção de liberdade, tão cara à de juventude, foi “conquistada” a partir
da dissolução de outras noções (talvez se possa dizer, por exemplo, que na
década de 1970, a noção de liberdade teve que ocupar espaços antes preenchidos
por fortes valores ligados à família, religião e “bons costumes”). Uma vez que se
tornaram “sólidas” (já reconduzidas por algo mais próximo de uma “liberdade de
expressão”, “liberdade sexual”), precisam ser novamente dissolvidas,
reformuladas, remoldadas: “numa sociedade de consumo, compartilhar a
dependência de consumidor – a dependência universal das compras – é a
condição sine qua non de toda liberdade individual; acima de tudo da liberdade
de ser diferente, de “ter identidade’ ” (Bauman, 2001, p. 98, grifos do autor).
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Por algum tempo, a sólida “necessidade” abriu novos espaços para o
fluido “desejo”. A necessidade, uma vez definida e delimitada, torna-se fixa,
inquestionável e irrefutável, em contradição ao desejo, algo mais propenso à
dilatação e à variação. Contudo, mesmo o desejo tende, em tempos de
modernidade líquida, a ceder espaço para o “querer”, que se constitui como algo
ainda mais imediato, instantâneo e fugaz. Se o desejo apela para uma expansão
que a necessidade não tem, o querer dissolve o planejamento e a contigüidade do
desejo e joga ainda com artifícios improváveis tanto por parte da “necessidade”
como por parte do “desejo”: ele “aparece sob o disfarce do livre-arbítrio, em vez
de revelar-se como força externa” (Bauman, 2001, p. 101).
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deveriam, as artes da auto-expressão e da impressão que
causam (Bauman, 2001, p. 43).
Num mundo em que o tempo perde seu espaço para a duração, onde as
oportunidades e escolhas avançam umas sobre as outras, “poucas coisas são
irrevogáveis”. A noção de progresso torna-se individualizada e, como tal,
irregular. Entendido como uma “medida temporária”, o progresso passa a ser
transitório e não mais um fim a que se chega, um estado de perfeição a ser
buscado: trata-se de progressos, e, como tal, constantes, múltiplos e variáveis e
não mais “do” progresso. À medida que privatizado, o progresso emerge:
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e mulheres individuais que a suas próprias custas deverão
usar, individualmente, seu próprio juízo, recursos e
indústria para elevar-se a uma condição mais
satisfatória” (Bauman, 2001, p. 155).
Assim, posso dizer que o que me interessou discutir neste artigo foi,
primeiramente, o modo como os murmúrios da modernidade (sólida) produzem
este grupo ambivalente e, em seguida, a forma como a juventude se configura
em tempos de modernidade líquida. Longe de buscar uma mera “aplicação”
entre modernidade líquida e juventude líquida, procurei, por um lado, analisar os
efeitos das novas roupagens trazidas pelo processo de ambivalência que a
juventude sofreu (ou sofre); por outro, ao fazer isso, utilizei-me de uma
abordagem mais ampla, que diz respeito à análise dos processos culturais,
sociais e históricos que vivemos nos últimos tempos. Destaco que as discussões
relativas à noção de tempo (e, com ela, à de progresso, longo/curto prazo, futuro
e planejamento), bem como à de individualidade foram meus focos centrais –
justamente porque acredito que são essas categorias que, de modo mais
contundente, operam na modernidade líquida. Buscando, a todo o momento, não
sugerir uma visão nostálgica da juventude, interessa-me os efeitos das alterações
de um tempo em que mesmo “os medos, ansiedades e angústias contemporâneos
são feitos para serem sofridos em solidão. Não se somam, não se acumulam
numa ‘causa comum’, não têm endereço específico, e muito menos óbvio”
(Bauman, 2001, p. 170).
Referências Bibliográficas:
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BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As conseqüências humanas. Trad. Marcus
Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999a.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual. Trad.
Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005.
BAUMAN, Zygmunt. Europa. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2006.
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