Inspirar - Estado de Escuta
Inspirar - Estado de Escuta
Inspirar - Estado de Escuta
Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira
Linha:Educação, Currículo e Ensino
Eixo: Ensino de Música
FORTALEZA
2014
JULIANA RANGEL DE FREITAS PEREIRA
FORTALEZA
2014
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
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P492v Pereira, Juliana Rangel de Freitas
Voz em estado de escuta: por uma pedagogia em vocalidades poéticas no ambiente da cena [manuscrito] / Juliana
Rangel de Freitas Pereira. - 2014.
198 f: il.
1.Teatro. 2. Fonoaudiologia – preparação vocal. 3. Voz - experiência 4. Cena – processo de criação. 5. Pedagogia. I.
Título.
CDD: 792
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Para Nina e Héctor, constelação de
amor em minha vida.
AGRADECIMENTOS
Ao meu querido orientador, professor Dr. Elvis Matos, pela sua refinada escuta ao longo de
todo este percurso de pesquisa, anjo que me guia nesta empreitada acadêmica-artística. Muito
obrigada, professor!
Aos meus pais, Graça e Trajano, por estarem sempre perto, me apoiando quando preciso e por
proporcionarem caminhos inventivos e prazerosos nesta trajetória-formação de vida para mim
e meus irmãos desde a nossa infância.
Aos estudantes e artistas que tive o prazer de compartilhar experiências vocais, com quem
aprendo a cada aula, a cada processo de criação. Amigos de Salvador e agora também amplio
a rede de amizade aqui em Fortaleza.
Agradeço imensamente aos professores da banca pela escuta atenta para a minha pesquisa de
doutorado desde a qualificação. Professor Luiz Botelho e Professora Ana Iório, professores de
uma sabedoria e vivência ímpar que tive a honra de ser aluna durante o doutorado, ensinando,
instigando o ofício de ser professor e valorizando trajetórias formativas distintas. Agradeço aos
dois por estarem acompanhando a minha pesquisa deste a entrevista para entrada no PPGEB.
Agradeço também a professora Fran Texeira, pelas indicações cuidadosas e muito atentas aos
rastros da pesquisa e aos seus lugares de potência vibrátil e a professora Meran Vargens, por
toda a sua generosidade de ensino, pessoa com quem aprendo muito desde que a conheci na
Universidade Federal da Bahia. Agradeço também ao professor José Albio pela prontidão com
que aceitou participar da banca de defesa.
A Héctor Briones, companheiro sem igual nessa trajetória de vida. Agradeço por estar ao meu
lado em tantos momentos especiais e por ser esta pessoa pulsante, contagiante, que transborda
paixão pela arte e pelas possiblidades de abertura do conhecimento. Nossas conversas são
sempre muito instigantes!
Agradeço a minha menina, minha guerreirinha Nina Juana, pela sua paciência e doçura! Ao
longo desses quatro anos, acompanhando de perto a minha pesquisa desde o tempo em que
estava na minha barriga. Obrigada, Ninoca!
Aos colegas da voz na UFC Consiglia Latorre pela sua delicadeza de amizade e pelas
aprendizagens compartilhadas em ‘Sonoridades Múltiplas” e a Erwin Schrader por participar
da minha primeira qualificação e por me convidar, logo quando cheguei aqui em 2010 para
participar do processo de criação do Coral da UFC, me acolhendo também na história do coral.
A Carol Veras e família! Obrigada, Carolzinha pelas fotos e por todo carinho.
3. RASTRO 3 –
A VOZ NA HISTÓRIA DE UM LUGAR NO TEMPO PRESENTE 56
9. REFERÊNCIAS 191
PARA CONHECER
ÁGUA, FLORES E ANJINHOS
Essas são marcas sonoras que me habitam e suas forças físicas, nos interstícios do
tempo, me fazem lembrar: estados vividos de encontros sonoros com outros corpos, diferença
que nos arranca de nós mesmos. Jamais permanecemos os mesmos depois de viver esse
13
acontecimento sonoro presente na festividade religiosa, acredito eu, de qualquer canto rural e,
neste caso, do nordeste brasileiro. São marcas de vozes que continuam vivas em mim,
pedindo proliferação, pedindo novas linhas no tempo, como exigências de criação. Violenta
urgência.
Desta pergunta, iniciei a minha pesquisa de mestrado sobre voz do ator, derivando na
dissertação intitulada Canção do Mar de Salema: um processo de criação articulado pela
voz do ator (PEREIRA, 2007), que contemplou um laboratório prático de pesquisa e partiu
das didascálias sonoras que representavam o mar do texto ‘O capataz de Salema’ do
dramaturgo pernambucano Joaquim Cardozo. Este laboratório contou com a participação de
alunos-atores e atores-bailarinos que eram estudantes da Escola de Teatro da Universidade
Federal da Bahia e também três atores do grupo Rapsódia de Teatro, grupo do qual eu fazia
parte quando morava em Salvador e também de duas atrizes profissionais interessadas na
pesquisa, ao todo eram dez participantes. Portanto, tínhamos um grupo de trabalho de
formação híbrida, abrindo possibilidades de cruzamentos, tanto para mim, enquanto
pesquisadora, quanto para o grupo, que se deixava contaminar pelos acasos sonoros que
surgiam no processo por esses distintos corpos-sonoros.
1
Esta tese foi concebida com uma série de páginas com texturas diferenciadas, no intuito de trazer ao leitor
rastros sensórios do processo de criação. A tese impressa se encontra na biblioteca do DOC-Teatro da
Universidade Federal do Ceará, localizado nos anexos do Teatro Universitário desta Instituição.
14
Quando ingressei no doutorado, logo percebi que este seria um desdobramento de
inquietações surgidas no mestrado, questões estas que ficaram abertas e ainda pulsando,
insistindo pelo exercício do conhecer a partir da experimentação, tais como: as relações de
escuta necessárias para o desenvolvimento da voz do artista da cena– escuta do outro, escuta
do mundo sonoro que nos envolve, escuta das vozes –, memórias que atravessam o nosso
corpo compondo uma vocalidade cênica; lapidar o processo de criação da sonoridade da cena
na interface voz, palavra falada, canto, objetos sonoros que pudessem ser utilizados pelos
atores no intuito de aguçar um sentido de musicalidade do mesmo e a percepção de que em
tudo que eles fazem sonoramente em cena há uma potência de musicalidade, combinações de
sons que podem despertar sensações, sentidos, em uma linguagem pré-verbal para a cena.
Tudo isso pensando na ideia de propiciar uma criação de vocalidade poética, matéria sonora
que se torna um ‘acontecimento’ corpóreo naqueles que emitem e escutam o som, a voz
sonorizada com esse teor de escuta sinestésica. Como podemos entender o termo “vocalidade
poética” nesta pesquisa? O que seria um acontecimento vocal?
15
No termo movência, encontrado nos estudos de Zumthor, o mesmo percebe o aspecto
nômade da voz que percorre espaços sensoriais. No deslocamento da voz, o corpo encontra
imagens, gostos...uma sinestesia também encontrada nas palavras de um texto, bem como em
toda a sensorialidade que acontece no ato do encontro. Portanto, a vocalidade poética é uma
presença que nunca se fixa e no qual se enriquece a presença instável da voz, nunca a mesma,
apresentando-se como ecos de uma história de oralidades, que nos estudos de Zumthor
entendemos como vocalidades, ou melhor, vocalidades poéticas quando trazem desejo de
poesia, transmissão de energia que sempre leva a voz, o sopro da vida à escuta do outro. Para
Zumthor a voz é a própria alteridade.
É na sua espessura concreta, na tactilidade do sopro, na urgência do respiro que a voz
“se diz enquanto diz” (ZUMTHOR, 2010, p.12). Cada sílaba é sopro, ritmo cardíaco, fluxo
sanguíneo, é vibração óssea, é erotismo, é corporal. A vocalidade poética é aquela que produz
desejo, ao mesmo tempo em que é produzida pelo desejo. O som vocal, que podemos
entender como pré-nome, divaga em ressonâncias infinitas, quando não é uma falsa oralidade,
que apenas verbaliza uma escrita.
A voz não faz mais, não pode fazer mais do que pré-nomear as coisas,
e -nós sabemos hoje melhor do que antes – é esta a operação poética
por excelência. Um prenome não significa nada senão uma presença:
uma ori-gine (“saída da boca”, se nos reportamos ao latim), fora das
afiliações e das genealogias. O pre-nome tende a revirar a deriva que,
nas águas da linguagem, empurra os nomes para o sentido, o concreto
para a abstração escolhida (ZUMTHOR, 2010, p.321).
Zumthor identifica o correr da voz no corpo com o correr da água. Ou como no útero
materno, a vocalidade poética se dá no íntimo do encontro, na escuta, no intenso contato dos
corpos, no calor comum, sensações musculares que apaziguam. E segundo Zumthor (2010)
assim se esboçam os ritmos da palavra futura, num encontro de afetividade, de “uma música
uterina” (2010, p.16).
16
Palavra que nasce de uma sinestesia. É isto que chamamos nesta pesquisa de
vocalidade poética, a partir dos estudos do teórico sobre performance vocal Paul Zumthor.
Seus textos realçam o desejo por escutar, presenciar vocalidades poéticas na vida e nas artes
da cena, o que é muito relevante nos dias de hoje, no qual vivemos um mundo com grande
desequilíbrio entre o apelo visual e o estímulo auditivo.
Essa escuta arcaica de uma força sonora viva pode ser percebida nas festividades
religiosas do nordeste do Brasil, que ativaram as primeiras inspirações2 desta pesquisa. E,
destas experiências, surgiram as seguintes perguntas: Como mobilizar essa potência sonora
viva no atuante e na cena teatral? Como podemos estabelecer uma escuta aberta à voz do
outro, favorecendo um conhecimento vocal a partir da escuta? Como seria possível criar a
vocalidade poética nas Artes Cênicas? Como as referências populares podem ser
transfiguradas no corpo-vocal do atuante? De que modo podemos fazer-conhecer um processo
de criação de vocalidade poética que permita um corpo-vocal em estado de movência?
Estes questionamentos foram a chave para esta pesquisa de doutorado, fluxos que
transitam no campo da performance da voz (no teatro, na música, na performance art, na
dança), nos processos de criação de linguagem, na vocalidade poética das tradições populares.
Aqui tento perceber e conhecer como isto se materializa na criação vocal do atuante. Contudo,
não se trata de indagar, a partir de um olhar sobre a vocalidade poética, num folclorismo
tradicional fixo. Nesta pesquisa, como se poderá perceber no decorrer deste texto, temos
como base as noções de tradição e memória apresentadas pelo medievalista Paul Zumthor.
Segundo o referido autor, esta não é fixa, senão móvel, em fluxo, permeando de forma
abrangente o atual, o nosso presente. Assim, aqui entendo a manifestação popular como algo
ligado à tradição e à contemporaneidade simultaneamente, conforme será colocado
posteriormente no corpo do escrito.
2
Falo inspirar no sentido fisiológico da respiração que remete a palavra nutrir, encher para poder trocar, entrada
do ar para depois expirar.
3
Termo utilizado pelo Método Espaço-Direcional Beuttenmüller.
17
respirações. Este pensamento traz o desejo de investigar a sonoridade, indagações sobre
processos de criação e aprendizagem vocal nas artes cênicas, levando-se em conta também, o
jogo de voz e de escuta de outras sonoridades da ambiência sonora da cena.
Nesta pesquisa, para cada palavra, se faz necessário encontrar a sua respiração,
intensidade, força articulatória, timbre, curva melódica e ritmo nas relações concretas
estabelecidas no ambiente de criação e sonorizadas pelo fluxo de imagens associadas aos
gestos vocais e corpóreos, manifestando assim, a sua potencialidade audiovisual em relação
tanto de dissonância quanto de consonância sonoras. Por meio da criação de uma linguagem
sonora, conhecimentos se cruzam gerando outras percepções de si e do mundo, outras
recriações. E o que interessa para este trabalho de pesquisa, são essas recriações no âmbito da
(trans)formação vocal daquele que vocaliza, uma criação sonora sempre em processo. Mas o
que é processo de criação?
O que quer dizer processo de criação na cena atual? E a partir daqui, como se opera
esta noção nesta pesquisa, de cunho teórico-prático na qual no seu percurso houve a
necessidade de realizar um processo laboratorial de criação cênica? Laboratório este que foi
realizado com alunas-atrizes na indagação de suas potências corpóreo-vocais, com atenção
para a riqueza prosódica, rítmica, timbrística das palavras e dos sons, no intuito de
desenvolver e explorar a força sinestésica da voz em cena. Voz, processo, sinestesia e cena se
conjugam nesta pesquisa para disparar processos pedagógico-artísticos que permitam pensar a
voz no âmbito das artes da cena com os seus atores (atrizes, performers, dançarinos, entre
outros), na sua força sensória, vibratória, corpórea. Com efeito, esta ligação está sendo
pensada na perspectiva de uma formação vocal ao longo desta pesquisa. No momento,
apresento o aspecto processual deste laboratório (o detalhamento do mesmo será dado mais
adiante), para delinear o contexto poético, no sentido de poiesis, de criação, no qual esta
pesquisa está inserida.
Dizer que se teve que planejar e realizar um laboratório de criação de vocalidade
poética nos leva a pensar em uma ordem linear que não condiz com o experienciado, pela
18
intermitência constante de etapas, ora com a realização de exercícios técnicos ora com
proposições de jogos de criação.
Seria mais coerente dizer que houve na experiência do laboratório um constante
planejar-realizar, em que o limite entre um e outro se constituiu enquanto limiar, pois era
difícil se perceber uma divisão fixa entre tais momentos. Na medida em que se realizavam as
experimentações, descobríamos e inventávamos uma própria dinâmica de formatação do
laboratório. Também o fato de formatar, ou seja, esboçar, projetar, preparar exercícios que
iriam ser realizados como impulsos para a criação, já constituía um ‘realizar’ das
possibilidades vocais e sonoras que seriam experimentadas, das possíveis vocalidades
poéticas. O que se percebeu durante a parte prática desta pesquisa foi um constante co-
engendramento da cena, nos laboratórios realizados com as alunas-atrizes, nas
experimentações corpóreas-vocais, nas descobertas sonoras com objetos, no trabalho vocal
com fragmentos de textos (escolhidos principalmente pela sua potência fonético-vibratória,
como desafio para o trabalho de voz no processo de criação). Estes elementos foram muitas
vezes concomitantes a proposta de laboratório de criação à composição de uma ambiência
sonora da cena. Esta nunca se fechou, pois ainda que tenha sido criado um roteiro de ações,4
durante o processo para uma apresentação pública, esta estava aberta a variações. As atrizes
necessitavam estar atentas, com uma escuta ativada a cada dia de apresentação, para perceber
o ambiente da cena e com ela, dialogar com seus ritmos e texturas, das palavras, dos jogos
estabelecidos entre elas mesmas. Uma constante conexão entre o corpo das atrizes e o
ambiente poético ali inventado. As aberturas na composição sonora da cena permitiram,
sobretudo, estimular um trabalho de vocalidade poética e de escuta das alunas-atrizes, no qual
as mesmas pudessem ativar constantemente um jogo relacional, de encontros.
O que ocorre é que em um procedimento aparentemente linear – 1) formatação dos
laboratórios de criação 2) experimentação de exercícios com as alunas-atrizes, 3) finalização
com uma composição cênica – quando visto do ponto de vista do limiar, seus movimentos
deixam de ser etapas fixas e consecutivas e se entrecruzam, se contaminam. O que se percebe
é que a linearidade do processo de criação é uma abstração que a rigor não existe, já que não é
possível aplicar-lhe uma lógica sequencial de causa e efeito, objetiva e eficaz como na ciência
racionalista/cartesiana. Ainda que se possa dizer que houve um início (quando começamos as
experimentações, ou mesmo quando se começou a esboçar o laboratório, durante este
processo de pesquisa) e um fim (no momento das apresentações públicas), o processo de
4
Este roteiro de ações foi gerado durante o processo, não existia previamente. Desta forma este processo de
criação não partiu de um texto fechado, com todas as suas indicações cênicas já delimitadas.
19
criação enquanto produção artística nos apresenta outras temporalidades, justamente as do
limiar, no qual o início nunca é o início e o fim nunca é o fim. Limiar que evidencia
intensamente a noção de processo, enquanto movimento, experimentação, desvio, retomada,
entre outros termos que apontam para um “complexo percurso de transformações múltiplas
[...] sustentado pela lógica da incerteza [...] que envolve seleções, apropriações e
combinações, gerando transformações e traduções” (SALLES, 2004, p. 27) na criação
artística.
Uma decisão de composição, durante o processo de criação no laboratório vocalidades
poéticas, gerava ideias para um próximo exercício de voz a ser experimentado, ou o próprio
propósito experimentado no laboratório permitia delinear algumas composições e jogos no
ambiente da cena, que nunca se fixou inteiramente, para deixar abertura às novas propostas
geradas pelas alunas-atrizes no próprio exercício do processo. E mesmo as primeiras
experimentações, quando esboçadas, já partiram de instigantes poéticas provenientes de algo
anterior, de outros referentes, como Zumthor, por exemplo, de desejos, de intuições, até de
ideias vagas sem força de projetar o que viria a ser o processo de criação com alunas-atrizes
da pesquisa, menos o que viriam a ser as sonoridades da cena às quais chegamos. A crítica de
arte Cecilia Almeida Salles (2004), que reflete a partir da crítica genética sobre processo de
criação artística, fala sobre uma espécie de ‘rumo vago’, ‘intuição amorfa’, ‘conceito’,
‘miragem’ (noções que ela toma dos próprios artistas) que direciona o processo de criação em
arte. Contudo, este não está necessariamente no início, pois como a mesma aponta acerca do
início de um processo de criação em arte:
20
complexidade de um processo de criação. Pode-se pensar com Salles, já que não evidencia a
‘recursividade’ e a ‘simultaneidade’ que caracteriza o processo, com seus encontros e
desencontros, seus desvios, perdas e retomadas, gerando uma “rede de tendências que se
inter-relacionam” (2004, p. 36). O que se destaca aqui é um movimento constante e muitas
vezes inusitado, ao ponto que esta mesma autora o nomeia de uma “estética da continuidade”
(2004, p. 26). Também, a teórica da dança Christine Greiner, ao pensar no que pode ser um
processo, nos diz:
Para começar, pode ser um bom exercício deixar de lado a noção de “etapas",
ou seja, daquilo que acontece sequencialmente, seguindo a lógica do progresso
ou da história tradicionalmente definida como uma coisa depois da outra.
Processos de pesquisa não são, afinal, radicalmente distintos dos modos de ser
de outros fenômenos vivos. São Complexos e imprevisíveis (GREINER, 2010,
p. 81).
Para esta autora esta noção de processo não é exclusiva da arte, mas também da
ciência, de qualquer atividade cultural, enfim, da vida: “Todos os fenômenos culturais, assim
como todas as organizações do vivo, são fluxos e móveis” (2010, p. 81). Precisamos atentar
que não se trata de qualquer arte, qualquer ciência, mas de toda uma visão que a partir da
modernidade vem pondo em questão os pressupostos transcendentais, metafísicos e absolutos
que buscavam fundamentar um ideal ocidental, um mundo estável, objetivável. Como se fosse
possível uma visão de mundo neutra e objetiva, separando analiticamente sujeito e objeto,
teoria e prática, corpo e mente, estabelecendo modelos de entendimento do real – modelos
que de alguma ou outra maneira ainda cruzam nosso tempo –, sendo que a modernidade, pelo
seu efeito de constante questionamento de tudo, seja na arte, na ciência ou na filosofia,
permitiu perceber este ideal de objetividade como um mito a mais no mundo. Segundo o
investigador teatral espanhol Oscar Cornago,
Isto se vincula com o que outros dois cientistas, Humberto Maturana e Francisco
Varela, citados também por Cornago, e de interesse para esta pesquisa, chamam de
autopoiese, sendo isso algo característico dos sistemas vivos, no qual se está produzindo a si
próprio continuamente. Em uma série de entrevistas dadas durante 2001, Maturana reflete
sobre este conceito, com o qual contribui com o pensamento contemporâneo a partir do
campo da biologia:
22
Se o sistema produz a si mesmo, de uma maneira autónoma, assim diz Maturana,
precisamos entender esta autonomia, pois não está desvinculada do meio, mas sim é a
condição para que se forje essa organização autopoiética. Esta organização é fechada,
circular, no sentido de gerar uma diferenciação em relação ao meio, é isso o que os define
como sistemas vivos, neste contexto quando se diz ‘fechado’, pode se entender ‘diferenciado’.
Visto isso, “O que caracteriza o ser vivo é sua organização autopoiética. Seres vivos
diferentes se distinguem porque têm estruturas distintas, mas são iguais na organização”
(MATURANA e VARELA, 2011, p. 55). Assim, também esta organização é aberta, já que se
deixa modificar na medida em que se modificam também o meio, como duas ou mais
circularidades postas simultaneamente à deriva (MATURANA e PÖRKSEN, 2004), já que o
contato com o meio é também o contato com outros sistemas vivos. A proposta destes
pensadores é que justamente os seres vivos se caracterizam pelo fato de “– literalmente –
produzirem de modo contínuo a si próprios [...] donde se conclui que não há separação entre
produtor e produto. O ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis, e isso
constitui seu modo específico de organização” (MATURANA e VARELA, 2011, p. 52 e 57).
Deste modo, este pensamento também se constitui como uma crítica à representação.
O conhecimento não é uma reflexão acerca do mundo e sim a construção do próprio mundo. É
este ponto que queremos ressaltar, no qual conhecer é fazer, e mais ainda, com a atenção para
o fato de que tudo o que é falado e pensado é realizado por alguém em um determinado tempo
e lugar. Este pensamento se dá como um combate às certezas estabelecidas, evitando cair na
representação (pretensão de objetividade) e no solipsismo (idealismo), “sem nenhum ponto de
referência independente de nós mesmos, que nos garanta a estabilidade absoluta que
gostaríamos de atribuir às nossas descrições” (MATURANA e VARELA, 2011, p. 263). O
que fica claro é que o mundo que produzimos com os outros, ou seja, o conhecimento, não
possui ponto estável, e sim móvel, como em um quadro de Escher (os autores citam a figura
do rapaz da obra Galeria dos Quadros/ver pág. seguinte), nessa reversibilidade entre galeria e
cidade, entre pensamento e mundo, entre pensar e fazer, entre sujeito e objeto o mundo se
torna movimento, instabilidade.
Neste contexto percebe-se a vertigem do que é processual, e se continua aqui o
questionamento que isso abre no fenômeno da representação, de crucial importância para
pensar as contribuições da arte no panorama contemporâneo de pensamento e das pedagogias
nela implicadas. Não é por acaso que Maturana e Varela, ambos cientistas, exemplifiquem sua
teoria com um artista como Escher, permitindo fazer a relação com uma visão da arte –
23
sobretudo no caso do teatro, lugar emblemático da representação, agora longe de qualquer
idealismo (belo), realismo (a objetiva realidade) ou tese (a verdade) – que vem a questionar
seus próprios procedimentos de criação, de modo auto-reflexivo. É como se na noção de
processo de criação a balança começasse a pesar para o lado obliterado do termo processo
(movimento, indagação, inacabamento), abandonando o termo criação, no sentido de uma
obra acabada. Muda-se radicalmente o estatuto da obra de arte, seja em um resultado artístico
delineado, em formato de livro, quadro, música, entre outros; ou em um resultado artístico
24
que se negue enquanto resultado, que se assume como processo, configurando o que hoje se
conhece como work in progress5.
Greiner também aborda este caráter processual da arte, a partir de seus estudos entre
dança, corpo e cultura:
5
Work in progress pode ser traduzido como trabalho em curso, em andamento.
25
dono exclusivo da obra, já que como mostra a pesquisadora sobre processo Cecília Salles, o
artista não cumpre sozinho o ato de criação, “o próprio processo carrega esse futuro diálogo
entre o artista e o receptor” (SALLES, 2006, p. 47). A obra está ligada a uma recepção, a um
outro implicado. Quais são as possibilidades que se tem dessa relação com o outro? Será que
é a da representação? Será válido aqui refletir acerca da representação para além do campo
teatral, nos seus alcances no campo do conhecimento, do como conhecemos, no sentido de
não seguir um modelo prévio já formatado dogmaticamente (de maneira representativa).
Ainda assim, é nesta arte onde se pode encontrar uma maneira de entender o que está em jogo
na ordem da representação, sobretudo na distinção que nesta área se faz entre teatralidade e
representação.
Cornago faz uma distinção, no campo de estudos da arte teatral, entre teatralidade e
representação, argumentando que tal distinção é importante pois sempre se confunde esses
termos como se fossem análogos. Esta distinção será importante, pois nela se percebe e se
exemplifica toda a crítica à representação. A arte na lógica da representação, do realismo por
exemplo, leva o espectador a uma ilusão figurativa ou cênica, permitindo ao mesmo uma
decodificação altamente referencial do que se está presenciando. Cornago dá o exemplo do
travestimento, na medida em que este esteja muito acabado, irreconhecível como travesti,
perfeito (poderíamos dizer), se acaba o jogo da teatralidade, ficando portanto, no plano da
representação. Este oculta seus procedimentos materiais de criação, não os evidencia em
função de estabelecer um sentido de verdade (realismo), de acabamento, para o espectador.
Já a teatralidade expõe o jogo, como um dobramento da representação, evidenciando
escancaradamente o significante, seus procedimentos materiais. Expõe o que a representação
nega, seu caráter de construção, havendo assim “uma ênfase na exterioridade material, a
ostentação da superfície da representação [...] o código chama a atenção para si mesmo, se
fazendo mais visível” (CORNAGO, 2009, p. 10). O que há é a necessidade de atrair o olhar
do outro, retirá-lo da ilusão de acabamento da obra envolvê-lo no caráter processual deste
fenômeno, “seu funcionamento interno, e é ali onde há que se encontrar o sentido”
(CORNAGO, 2009, p. 10).
Obviamente o sentido aqui deixa de ser único, se abre ao encontro com o espectador,
sendo ele que vai determiná-lo ou não a partir do encontro com a obra, de seu envolvimento
perceptivo com esse processo poético. Neste sentido não existe uma negação da
representação, mas sua suspensão, uma aposta no jogo uma vez que se torna evidente seu
caráter de construção, seus procedimentos de composição. A obra fica aberta a uma
26
pluralidade de possíveis sentidos, já que o mais importante se torna não o que se diz, mas
como se diz, na sua relação processual com o receptor. É isso que está em jogo no processo de
criação na atualidade, delineando o contexto no qual se dá esta pesquisa, nesta rede poética
cujos alcances são vastos no campo do conhecimento. Deste modo, o que se pretende
pesquisar aqui quando se diz vocalidade poética do artista cênico?
Este panorama processual aberto no campo da arte, tem sido levado ao extremo por
alguns artistas a ponto de converter o processo em obra. Neste sentido, nos dias de hoje, o
inacabamento já referido, se torna a própria feitura da arte, de forma explicita, exposta,
exteriorizada, como ocorre nas obras de arte denominadas também de work in progress. É
neste contexto que a presente pesquisa quer investigar a força cênica da vocalidade poética.
Ainda que no universo artístico esta noção tenha surgido nas artes plásticas,6 a mesma
tem se expandido enormemente dentro deste campo gerando uma série de deslocamentos
poéticos. O que não significa necessariamente que cada arte vai se apropriar deste termo para
introduzi-lo nos seus procedimentos sem mexer nas suas fronteiras, ao contrário, vai provocar
o cruzamento entre elas. Assim, hoje se tem um intenso trânsito e hibridização entre teatro,
dança, performance, cinema, música, dentre outras artes. O fator processual implica esta ação
de contaminação, expandindo as diversas artes, pondo a delimitação de suas fronteiras em
movimento. Neste cenário, Renato Cohen, um dos principais pensadores no Brasil desta arte
em processo, denominado por ele de work in process7, para reforçar seu caráter processual –
comenta sobre a mudança de paradigma aqui implicado. O autor diz o seguinte:
6
“em práticas como a instantaneidade da action painting, as construções transitórias das assemblages, collages e
environments de certos artistas, as experiências conceituais-limite de performers como Joseph Beuys, Vito
Acconci e Gina Page, que exacerbam o cambiamento de materiais e suportes – a alternância de contexto e de
formas – e, sobretudo, o conceito de obra não acabada” (COHEN, 1998,p. 18).
7
Renato Cohen (1998) nos seus estudos, utiliza a expressão “work in process” como trabalho em processo,
termo associado também a uma noção de obra inacabada. Ainda que Cohen apresente pontos de encontro entre
os termos “Work in process” e “ Work in progress” nos mostra também possibilidades de diferença entre eles,
podendo este último criar um campo conotativo de progressão “porém, uma ambiguidade se estabelece se esta
ambiguidade é valorativa, ascensional, teleológica ou, simplesmente, uma progressão na linha do tempo[...].” (
COHEN, 1998, p.21). Nesta pesquisa, trabalharemos com a noção de “ Work in process”, pela própria noção
processual do termo, de variação de percurso dinâmico entre criação e processo.
27
Como processo a arte se abre ao acaso, constituindo-se enquanto percurso,
possibilitando a utilização de narrativas e movimentos superpostos e simultâneos,
incorporando textos, imagens, vídeos, sonoridades, entre outros, sem uma lógica figurativa,
representativa, e sim no choque entre estes elementos, cujo impacto é percebido pelo receptor,
quem poderá ou não dar sentido a este movimento. No caso do teatro, o teatrólogo alemão
Hans-Thies Lehmann (2007), para tentar explicar todas estas mudanças nesta arte, forja o
termo teatro pós-dramático. Suas indagações, que serão aproveitadas nesta pesquisa, partem
de um questionamento do que no teatro ficou conhecido como textocentrismo, cuja força
poética estava centrada no drama, no texto. Segundo este autor, na prática cênica
contemporânea, isso se vê deslocado do centro do fazer teatral. Sendo assim, o texto se torna
um elemento a mais no processo de criação cênica, junto aos outros elementos (luz, cenário,
figurino etc). E o que interessa para esta pesquisa, é justamente a mudança na relação
hierárquica em relação ao texto, não o negando e sim potencializando sua força não só
literária mas sobretudo cênica, abrindo possibilidades de contaminações, desencadeando
processos autopoiéticos nos sujeitos ali imersos, ponto importante a ser desenvolvido desta
pesquisa. O que isso implica?
O que é gerado em cena é um ‘princípio de exposição’ (LEHMANN, 2007, p. 249)
que liga os elementos da cena, desde o texto, aos corpos, os gestos, as vozes, os sons, as
imagens, entre outras, contrapondo-se à função representativa da linguagem teatral. Lehmann
(2007) aborda a negação do sentido neste tipo de teatro, e afirma que este não é comunicável
diretamente, já que o que se torna direto é o impacto sinestésico que a cena provoca. Por isso,
podemos pensar o “princípio de exposição”, similar à “exterioridade material” da cena
comentada acima com Cornago. Para Lehmann “Em vez de representação de conteúdos
linguísticos orientados pelo texto, prevalece uma ‘disposição’ de sons, palavras, frases e
ressonâncias conduzidas pela composição cênica e por uma dramaturgia visual que pouco se
pauta pelo ‘sentido” (2007, p.249). Mas como se pode entender esta ausência de sentido na
cena teatral? No teatro pós-dramático isso tem relação com o texto, chave nesta pesquisa, pois
permitirá delinear como se processou o trabalho com palavras do texto, durante a parte
praticada do laboratório, permitindo também pensar, ao longo desta investigação,
possibilidades de experimentação de vocalidades poéticas do artista da cena, seja ator,
dançarino, músico, mas bem neste entrecruzamento.
28
Para Lehmann, a virada do teatro dramático ao pós-dramático se dá principalmente na
atenção dada à dimensão corpórea da cena (podemos pensar em corpo do ator, corpo da cena,
corpo da voz, entre outros). Para ele, na cena,
29
audiovisual” (2007, p. 256). Também Cornago vai fornecer pistas para que possamos entender
os desdobramentos do pós-dramático nas práticas cênicas contemporâneas, ressaltando,
sobretudo seu aspecto processual:
Deste modo, o que se tem é uma cena em constante movimento, evidenciando uma
força processual desta arte, que no sentido textual, vocal, também se mostra como ‘objeto de
exposição’ “por meio de técnicas de variação repetitiva, de desagregação de conexões
semânticas imediatamente evidentes, de arranjos formais segundo princípios sintáticos ou
musicais (similitude sonora, aliteração, analogias rítmicas)” (LEHAMNN, 2007, p. 249). É
neste contexto poético-cênico que esta pesquisa se dá, na percepção de que a vocalidade
poética é processo, é sensorial. Aqui as palavras não respondem a um logocentrismo,
subjugadas ao entendimento racional, objetivo, acabado, estas mesmas são evidenciadas em
sua força corpórea, fonética, vibratória, lidando com o movimento, se tornando
acontecimento, portanto. Isto foi decisivo para a construção do laboratório prático desta
pesquisa.
Cohen aponta que uma das principais características de um trabalho cênico work in
proces é o fato deste configurar durante o seu processo um roteiro: “partindo-se de um fluxo
de associações, uma rede de interesses/sensações/sincronicidades para confluir, através do
processo, em um roteiro/storyboard” (1998, p. 18). Ou seja, não se parte de um texto pronto
(texto/autoria/mapa de personagens, diz Cohen), nem se dá seguimento literal a suas
indicações cênicas. Durante o laboratório prático “Vocalidades Poéticas” foi elaborado um
roteiro, a partir do material textual contido em Flores D’América, do dramaturgo e teórico
teatral potiguar João Denys, autor valioso para esta pesquisa.
Ainda que se tenha partido deste texto, o que interessou a pesquisa foi sobretudo a
qualidade corpórea que apresenta Flores D’América de Denys, para indagar na potencialidade
vocal que o mesmo possibilitava, para provocar o encontro das palavras com os corpos-vocais
de alunas-atrizes no processo. Desta maneira, a abordagem que este texto possibilitou (sem
entrar nos aspectos culturais populares do nordeste brasileiro, nas referências da dramaturgia
contemporânea, na dimensão política, entre outros que atravessam o texto, que serão
abordados nos textos seguintes) foi justamente o processual.
30
Outro aspecto dramatúrgico da obra de Denys que apela a esta força processual é sua
divisão radical em dois momentos, no qual, primeiramente, se conta uma história de uma mãe
(América) com suas filhas, e no outro se reconta, em várias versões (marcado cada momento
pela entrada de uma menina vestida de branco), a morte dessa mãe. Denys cria na sua
dramaturgia algo fragmentário, sem acabamento linear, lançando mão inclusive na segunda
parte de um efeito em looping (pela repetição da morte da mãe, em diversas versões). Esta
última parte gera questionamentos, provocações, diante das várias versões propostas que
evidenciam os próprios recursos de composição elaborados por Denys. A feitura dramatúrgica
desta obra está exposta, faz parte de seu impacto poético, e é levado ao extremo em momentos
que lidam com efeitos assumidamente sonoros, fonéticos, musicais, sensoriais, na sua escrita.
Seja isso percebido em algumas falas das personagens, ou em alguns coros que cruzam a obra.
Isso foi o que mais nos chamou a atenção para experimentação no laboratório “Vocalidades
Poéticas” desta pesquisa. De fato, foi esta outra dramaturgia, entremeada também no texto,
que serviu de valioso material para o nosso processo de criação. Desta maneira, por exemplo,
dentro do texto, passagens como estas que se seguem foram de especial interesse:
América:
(quase fora de cena, chamando pelos filhos)
Martírio, Mansinho, ô Nevoeiro! As formigas estão criando asa! Pra
dentro! Pode chover! Andorinha! Açucena! Juriti! Vão dormir!
Cadê Sabiá, Barra Nova, Azulão? Foge, passa, corre, esconde
esconde...
[...]
Líder do Coro:
Foge, foge, passa passa, esconde esconde uruçu, mandaçaia,
Tubiba, mosquito, papa-terra voa. Voa, voa, voa exu, miduri,
Capuxu doce. Doce, foge, voa, passa, esconde, voa.
Coro:
Ofício de trevas, ponto cheio de Dadá, agulhas de Enedina,
arremate de rosinha, dedal de Cristina, retrós de Inacinha,
tesourinha de Lili, meadas de Cila, amostras de Durvalina, rococó
de Moça, nó cego de Neném, ponto atrás de Mariquinha, as feridas
de Lídia, as lágrimas de Verónica, a criança de Dulce, a coroa de
Maria... Rainhas desterradas, baronesas errantes, duquesas
Degradadas, princesas navegantes.
(DENYS, 2005, p. 74)
O que desperta a atenção aqui é uma força sensorial, corpórea, do texto, com a qual se
pode experimentar talvez aquilo que nesta dinâmica processual estamos chamando de
‘acontecimento’. Este impacto sensorial tornou-se basilar para a consecução da pesquisa, pela
31
dimensão vocal que pode eclodir destas palavras, da sua musicalidade, sonoridade, ruídos,
ritmos, timbres, fonemas, entres outros.
Como pode ser pensado aqui o corpo-vocal? Como pensar, a partir do laboratório
prático realizado, essa “vibração da voz” sobre a qual fala José Gil, essa “tactilidade do
sopro” que pensa Zumthor, essa sensorialidade do som implicada neste work in process?
“Trans-bordando pelos labirintos da imanência mais transcendente ou das transcendências
mais performativas. Em seus inesperados e inesgotáveis jogos de linguagem, metalinguagem,
interações semióticas. Onde vai parar este rapaz?” (in:DENYS, 2005, p. 121), se pergunta o
cineasta pernambucano Jommard Muniz de Britto, acerca desta obra de João Denys. Que
percursos percorrer, podemos questionar aqui, uma vez desenhado o contexto poético no qual
se dá esta pesquisa, nesta arte processual, instável, movediça – para pensar o laboratório
prático realizado com alunas-atrizes nesta pesquisa? Como potencializar a dimensão corpórea,
material e até mesmo erótica da voz em cena? Como experimentar e gerar práticas sonoro-
vocais que deixem perceber isso que Gil (2013), ao pensar o corpo em dança, diz que oferece
imediatamente o sentido, desenhando uma ‘gramática semântica’ própria? Isso, menos na
intenção de querer preestabelecer uma gramática corporal-vocal e mais de experimentar a sua
potência relacional, de ligação com o corpo dos espectadores, dentro do campo das artes
cênicas. São estas questões sobre o que é processo que instigam esta pesquisa e que servem de
uma ou outra maneira de estímulo à escrita dos capítulos que seguem, dando aqui, ouvidos,
vozes, bocas, mãos, ventre – corpo – nos pomos a vasculhar um ‘acontecimento’, na tentativa
de registrar seus traçados provisórios, sempre em movimento, em processo, lidando com o
inacabado de um pesquisar. Contudo, como lembra Greiner:
A possibilidade que aqui se percebe para poder indagar a voz, mais precisamente, o
acontecimento-voz, está no cartografar a experiência, o que implica em produzir
conhecimentos com o aspecto processual da pesquisa poética, com uma escuta atenta às
coisas que ressoam. Assim, como evitar a fixação de regras para a vocalidade poética? De
fato, trata-se de um mundo imenso e complexo, que não cabe em um manual. Como dar conta
32
da não separação entre sujeito e objeto, quando se fala em corpo e voz, corpo e cena, voz e
espaço? Como materializar então, uma série de fenômenos dotados de multiplicidades, que
nos encontros proporcionados pela pesquisa, revelaram múltiplas articulações entre corpo,
voz, cena, imaginário e cultura? Vocalidade poética nesta pesquisa é o constante exercício de
entender os processos de criação-aprendizagem da voz como pertencentes às múltiplas
ordens, não só da cena, mas da vida, sempre inconclusa, imprevisível. Se fala de processo de
criação, então como não iniciar esta pesquisa em um início, nem em fim, mas no meio, entre
pulsações, na densidade e espessura do presente? Esta pergunta é possível a partir de um
método que lhe dê espaço, este é o método cartográfico (BARROS, KASTRUP, 2009).
Para as pesquisadoras Barros e Kastrup, “cartografar é acompanhar processos” (2009,
p. 52), no sentido de processualidade já referido neste texto, e que a torna algo precioso para
esta pesquisa. Este método aposta em uma reversão do que é, justamente, a noção de método.
Se este termo etimologicamente significa caminho (hodós) já determinado pelas suas metas
(metá), como um apriori a ser alcançado para obter o êxito da pesquisa, a cartografia reverte
isto: em vez de operar com ‘metá-hodos’ se dispõe a operar com ‘hodos-metá’. Deste modo,
se muda todo o panorama metodológico da pesquisa, da mesma maneira como a noção de
processo mudou todo o panorama epistemológico para entender o mundo, o real e a vida
mesma. O que aqui se obtém é um método não para ser aplicado, para verificar variantes,
demonstrar eficiente e objetivamente hipóteses, mas um método para ser experimentado,
posto à prova. Isto não nega tentativa de obter “precisão” nos sinuosos caminhos da pesquisa,
de fato “O rigor do caminho, sua precisão, está mais próximo dos movimentos da vida ou da
normatividade do vivo [... nesta...] a precisão não é tomada como exatidão, mas como
compromisso e interesse, como implicação na realidade, como intervenção” (PASSOS,
KASTRUP e ESCÓSSIA, 2009, p. 10).
Ou seja, se abandona a tradicional pretensão de objetividade e neutralidade científica,
liberta dos afetos, da história, dos vaivéns sociais da época. E mais ainda, como comenta a
pensadora brasileira Suely Rolnik “do cartógrafo se espera que ele mergulhe nas intensidades
do presente para ‘dar língua para afetos que pedem passagem’” (apud. BARROS, KASTRUP,
2009, p. 57). Abre-se a possibilidade para dar passagem então ao vertiginoso e rico mundo
afetivo implicado nesta pesquisa, na relação com minha própria trajetória como pesquisadora
e professora de voz, na sensível relação com as alunas-atrizes, com os elementos escolhidos
para a cena. Lidar com minha própria cultura, atravessada de fluxos globalizados, também de
fluxos da cultura e religiosidade popular, da academia. Como escrever respeitando todos estes
33
movimentos e seus entrecruzamentos afetivos? A cartografia outorga outra de suas pistas, na
qual em uma atenção flutuante (KASTRUP, p. 32) possa talvez não atropelar este rico
processo do qual não sou proprietária e sim agenciadora junto a todo um grupo de alunas-
atrizes, colegas, o próprio espaço, chão do teatro no qual trabalhamos.
Esta atenção pode ser “entendida como um músculo que se exercita e sua abertura
precisa ser reativada, sem jamais estar garantida” (KASTRUP, p. 48), perguntando o que faz
“problema” aqui, o que “insiste”, o que persiste, e ao invés de deduzir “leis abstratas o que
realmente importa são as cores, odores, sabores, caprichos, texturas, velocidades e outras
veleidades mundanas” (COSTA, ANGELI e FONSECA, 2012, p. 46). E isso não para me ver
afirmada como pesquisadora, como tendo a palavra de ordem, mas para tentar permear
sensorialmente o processo – esse movimento de corpos, vozes, objetos, jogos espaciais,
sonoridades, fantasmas, temores, mortes, abismos, amores, carinhos, filhas, mães – ativando
talvez uma “dissolução do ponto de vista do observador” (PASSOS e EIRADO, 2009, p.
109). Dando assim efetiva atenção ao processo, não como proprietária e sim como alguém
implicada sensivelmente no mesmo. Neste sentido, conhecer é cuidar e não dogmatizar,
ensina a cartografia, é o que se pretende aqui aprender, conhecer ao falar do processo de
criação desta pesquisa.
34
brasileiras e vocalidade na cena contemporânea; investigar as possíveis contribuições para a
aprendizagem e para o ensino das associações técnicas da voz falada e voz cantada na cena;
pesquisar as relações da expressão vocal da palavra falada/cantada com a ativação de estados
corpóreos-vocais.
Após a primeira qualificação, quando também o laboratório “Vocalidades Poéticas”
estava se constituindo, os professores da banca levantaram a questão da real necessidade de ir
em busca destas manifestações, uma vez no ato de falar sobre a pesquisa, as ideias que mais
apareciam eram: corpo-vocal, processo de criação, ambiente sensível de criação, sentidos
sinestésicos e a própria relação com o texto Flores D’América alimentado pelo imaginário
popular do nordeste. Outro ponto relevante deste laboratório foi a análise das possíveis
aprendizagens que o mesmo permitiria a partir das sonoridades oriundas de corpos-vocais-
culturais objetivando assim trazer para os processos de ensino e aprendizagem de práticas
vocais outros encontros sonoros, contextualizados, imersos em criação, em sentidos que
fazem parte da nossa formação miscigenada, aflorando matéria viva a ser transfigurada no
processo de criação da vocalidade da cena.
35
Fábio Oliveira que também participou da instalação sonora que fizemos ao final do processo
de pesquisa.
O laboratório “Vocalidades Poéticas” aconteceu durante os meses de maio a setembro
do ano de 2013, sendo dois encontros semanais com duração de três horas. Em algumas
semanas, no final do laboratório conseguimos realizar três encontros semanais, tendo como
total de horas trabalhadas um número aproximado de 160 horas de pesquisa que entraram
como atividade complementar curricular dos estudantes participantes. Nossos encontros
ocorreram nas dependências do Teatro Universitário Pascoal Carlos Magno da UFC, local que
propiciou experiências sonoras em espaços diversificados em termos sensoriais (lá ouvíamos,
passarinhos, risadas, misturadas a outros sons das salas com claridade de luz natural, espaços
grandes e pequenos, ao ar livre e também o espaço do palco). Fizemos também quatro
apresentações públicas, convidando alguns estudantes, professores do ICA, amigos e
comunidade geral interessada na pesquisa. A apresentação pública foi organizada a partir de
um roteiro composto pelos ambientes sonoros que mais trouxeram marcas para o processo e
foram organizados a partir de uma lógica de texturas sonoras por contrastes, compondo com
melodias vocais, objetos sonoros, palavras do texto, ritmos de pés, em um jogo intercalado de
textura sonora e momentos de narrativas vocais. Demos o nome de “água, flores e anjinhos”
para a instalação sonora que resultou do nosso laboratório “Vocalidades Poéticas”.
Iniciamos o laboratório a partir de registros audiovisuais de festividades religiosas
trazidas pelas alunas atrizes. Este material foi muito rico como motivador de discussão no
grupo sobre o que seria vocalidade poética e o que isso nos trazia enquanto uma vocalidade
corpórea, mas tanto por dificuldade de tempo para pesquisa de campo, quanto por escassez de
recursos financeiros, optamos por manter a nossa investigação somente em Fortaleza,
pesquisando, inventando a vocalidade poética de um nordeste, de um sertão nosso, a partir das
vaporações de Flores D’América, parafraseando João Denys.
Neste sentido, um material textual de palavras de grandiosa potência para o laboratório
prático desta investigação foi a dramaturgia e referências teóricas do potiguar João Denys,
principalmente o seu texto teatral Flores D’América. Neste texto – mas também em boa parte
da sua dramaturgia – Denys tece um reprocessamento poético da cultura, operando um elo
entre tradição oral nordestina e atualidade para realizar uma obra no contexto da dramaturgia
contemporânea. Sua obra é atravessada por um imaginário popular que contém relações entre
o campo e a cidade, a região e o mundo, o real e o imaginário em uma série de ambigüidades
presentes no texto narradas, reveladas, vividas, contadas por mulheres que aparecem em coro
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ou nas personagens da peça (América, Soledade e Das Dores) em um território vazio, seco,
cinzento e, não obstante, ardente. A poética presente no texto Flores D’América possui
grande potência sinestésica, não importando neste texto somente o que diz a sua narrativa,
mas sobretudo, isto foi o que mais me chamou atenção no texto, pelo jogo sonoro de suas
palavras, pela musicalidade rítmica da sua cadência fonética, pela dimensão corpórea lançada
na sua vocalidade.
Neste sentido, o texto Flores D’América apresentou para a pesquisa um material muito
sugestivo de investigação, pelos variados coros que apresenta, imersos no imaginário
nordestino. Coros compostos por sequência de aliterações, palavras com grande carga
imagética e sensações físicas, muitos textos escritos com pedaços de rezas. Isso foi o que de
mais potente percebi no texto para trabalha-lo no laboratório, mais do que toda a história que
é contada também no texto. Outro ponto, no qual esta tese agora se diferencia da pesquisa
iniciada no mestrado, contudo complementando-o, é o encontro que esta prática vocal cênica
possibilita com teorias da arte, estudos do corpo, ciências humanas, processo de criação e
formação humana, possibilitando pensar a interface memória, cultura, educação e corpo-
cênico-vocal, abolindo a dicotomia tradição e contemporaneidade. Este é o território no qual
se quer pesar as potências poéticas de uma vocalidade cênica.
O que se quer dizer é que, dado um ambiente diversificado, cada sujeito chega a um
acordo, a uma configuração de uma vocalidade poética a seu próprio modo. Sendo assim,
como cada sujeito articula a sua rede de associações? Quais as relações estabelecidas com o
ambiente que atravessam o corpo-voz do atuante para a criação da vocalidade poética da
cena? Quais os sentidos sonoros que perpassam as contaminações sinestésicas de um corpo-
37
voz, corpo-memória corpo- história, corpo-imaginário, corpo-vocal vibrátil? Talvez seja esta
uma das maneiras de pensar-fazer-nos como singularidades, embebidas de coletividades,
como habitar, como comunidade, como seres vivos. Saber advindo de um conhecimento vivo,
advindo do ritmo, da cadência do vivido.
Nesta pesquisa, falar de vocalidade poética é dar voz às forças que moram no nosso
corpo, que existem além de uma contemplação de formas pré-estabelecidas, mas de processos
de devir-outro vocal, a partir das marcas da experiência proprioceptiva, do modo que cada um
de nós está em um constante fazer-conhecer o mundo e a nós mesmos. É ouvir as vozes que
estão em constante processualidade em nós, na nossa ancestralidade contemporânea, que
mexem com o corpo, com forças vivas de memória recriadas pelo presente e que vislumbram
um futuro melhor (ARTAUD, 1999; ROLNIK 2002).
8
Vale esclarecer que em vários momentos no corpo da tese, serão utilizados conceitos formados por duas
palavras. Esse estilo tornou-se necessário para ideias que necessitei mostrar que aparecem na pesquisa de
maneira cruzadas. Dou seguimento com isto, o exemplo da psicanalista Suely Rolnik (2002) que utiliza a
expressão corpo-bicho.
39
de diário de bordo transformados em figura são entendidos nesta pesquisa cartográfica como
imagem - texto. Investiu-se nelas como lugar de possibilidades do leitor com outros afetos,
outro modo de perceber, imaginar, inventar a vocalidade poética, capturando rastros do
processo impressos na imagem. É o leitor também interrogando sobre o sentido daquilo que
vê e imaginando uma escuta, numa abertura para o seu imaginário a partir da foto
(SOULANGES 2010).
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questionamentos e escritas múltiplas. Tais autores potencializaram a complexidade do corpo-
vocal em criação na rede de relações que atravessam sensorialmente o corpo que percebe o
ato de conhecer no próprio fazer. Murray Schafer, por exemplo, reflete sobre as pedagogias da
música de acordo com a mudança do paradigma da educação do ponto de vista do “como se
ensina” para o “como se aprende”. Suas pesquisas, além de repensarem a noção de música, de
aprendizagem musical que não se restringem a mero virtuosismo ou imitações de um
“eruditismo” colonizado, entendem a música enquanto linguagem, enquanto processo de
conhecimento e transformação de mundo. Os encenadores teatrais Antonin Artaud e Jerzy
Grotowski rompem com a visão textocêntrica do teatro, tendo o corpo do ator como mola
propulsora da cena. Artaud brada por uma vocalidade concreta ativada pela musculatura
afetiva do corpo, Grotowski investiga a cena a partir da noção de ator que se desnuda diante
de si mesmo e diante dos outros, para olhar-se sinceramente e eliminar os obstáculos que
limitam a sua expressão, para que o mesmo se perceba e dê ação aos seus impulsos mais
íntimos. Já os estudiosos do corpo Rudolf Laban e seus discípulos, cada um dentro das suas
vertentes de pesquisa, investigam as qualidades de movimento do corpo em relação aos
parâmetros fluxo, tempo, peso e espaço. Esses autores citados, oriundos de diferentes
linguagens da prática artística contribuiram para a criação de propósitos investigativos no
laboratório prático de criação vocal. Os mesmos rompem com formas normatizadas e
esteriotipadas do corpo-vocal e abrem possibilidade para a contaminação, hibridização de
aprendizagens corpóreas, teatrais e musicais favorecendo assim, que outras inventividades
sonoras aconteçam no corpo, no ambiente sensível da cena, gerando outras percepções, outras
poéticas.
Esta tese se constitui a partir dos registros escritos de alguns rastros do processo,
aqueles em que mais encontrei intensidades, marcas nos materiais do laboratório e no vai-e-
vem de conversas, referências, leituras encontradas no caminho. Como na montagem de um
mapa, tomei as peças e fui articulando as suas possibilidades de encaixe. Portanto, os rastros
apresentam-se não de maneira linear, contando a sequência dos fatos de uma maneira
cronológica, pois no processo de criação não temos como prever isso, não há uma realidade
dada, não há uma relação de causa e efeito pré-estabelecidos nas propostas práticas do
exercício da vocalidade poética, mas um processo de criação em constituição permanente. Ela
não é fixa, precisa de uma constante movência para perceber-se e expressar-se sonoramente
como um ‘acontecimento’. Cada rastro também opera neste lugar. Percebo que mesmo já
escritos, não param de mover-se e expandir-se em suas possibilidades.
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Para compor a rede de ideias e cruzamentos teóricos que alimentam esta pesquisa,
foram escritos mais seis textos, que entendemos como os rastros do processo, no qual foi feito
o exercício de fazer inteligível uma série de fenômenos que permeiam a “Vocalidade poética”
na sua multiplicidade movente, não se trata de constatar semelhanças no pensamento de
autores que fazem parte desta tese, mas de produzir encontros entre eles na própria operação
do conhecer “vocalidade poética”. Cada rastro vai sendo construído com suas possibilidades
móveis de articulação, organizando um mapa relacional e transitório de conhecer-pensar-fazer
vocalidades poéticas. De uma singularidade para outra singularidade apresentada no corpo de
cada texto, fomos tecendo uma colcha de rastros.
Foi importante se debruçar acerca de uma vocalidade poética (rastro 1), tendo como
referências primeiras as sociedades arcaicas, e mais especificamente, a sua tradição oral
caracterizada por palavras em um misto de poesia e canto, cheias de musicalidade, com suas
vozes vivas, como as vozes apaixonadas dos trovadores ou pelo envolvimento sinestésico do
bebê ao escutar a voz da mãe, os estudos do poeta e medievalista Paul Zumthor contribuem
para o levantamento de noções para o que chamamos nesta pesquisa de Vocalidade Poética da
Cena, enriquecidas com as indagações do encenador, poeta, ator Antonin Artaud. Este, no que
tange a vocalidade, luta por uma linguagem sonora da cena, que afeta os sentidos. Como uma
música, é a partir da força de combinações perceptivas do som quanto à sua intensidade,
altura, timbre, melodia, ritmo e harmonia que a vocalidade poética da cena cria uma
ambiência sonora e se configura como linguagem sonora: musical.
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rede de percepções e conceitos sobre memória, corpo-vocal, tradição e contemporaneidade a
partir da dramaturgia de João Denys, do crítico de arte francês Didi-Huberman, do filósofo
italiano Giorgio Agamben, do já citado medievalista Paul Zumthor e finalmente, do músico e
pesquisador de paisagens sonoras Murray Schafer.
Rastro quinto: Estado de escuta: voz e sonoridades como pele da cena; neste texto, são
descritos dois laboratórios nos quais foram utilizados objetos sonoros e experimentados como
extensão do corpo-vocal das alunas-atrizes, articulando sons e vozes na ambiência da cena.
Nesta pesquisa o sentido de escuta foi entendido não só como uma percepção dos ouvidos,
mas como uma abertura do corpo como uma pele membranosa, se deixando contaminar pela
sonoridade da cena. Para a realização do laboratório prático, dialogamos com a teoria musical,
com a noção de paisagem sonora e os exercícios de escuta do compositor Murray Schafer.
43
movimentando o corpo-vocal em constantes interferências culturais, mobilizando
intervocalidades. Neste momento, salienta-se também o ambiente de criação como um
ambiente de aprendizagem, no qual o processo de criação é uma mola propulsora para outras
descobertas sonoras, outras leituras de mundo, mobilizadas por afetos. Também neste rastro,
partindo do princípio de que há uma ruptura das fronteiras fixas entre as artes na
contemporaneidade e que também podemos constatar quando abrimos os bastidores, o antes
da obra acabada de diversos processos de criação, independente da especificidade da sua
linguagem, recorremos ao pensamento complexo de Edgar Morin e as suas noções de
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade para dialogar com a rede de conhecimentos
incorporados no fazer do laboratório prático desta pesquisa, pertinentes a um pensamento
contemporâneo e a própria inventividade inerente a uma vida viva, na qual as coisas se dão
em uma constante movência. Este rastro também levanta reflexões sobre as relações de ensino
e aprendizagem, aberturas de fronteiras entre professor e aluno, aprendizagem como processo
de criação.
44
Rastro 2
Existe na voz humana um enraizamento pouco discernível de nossas memórias que nos
toca em um romper das lógicas da história, animadas pelas forças do desejo. As emoções mais
intensas precisam do som da voz, raramente das palavras; murmúrios, o choro do nascimento,
o grito por uma perda irreparável, uma felicidade indizível são forças da vida que se fazem
presentes na existência de um corpo-vocal. As vozes apaixonadas das sociedades arcaicas, de
um tempo no qual ainda não existia a escrita, presentes também em comunidades africanas
atuais e também em manifestações populares do nordeste brasileiro trazem consigo o desejo de
vozes vivas com palavras num misto de poesia e canto, cheias de musicalidade. É esta
vocalidade poética que precisa vir à tona no ambiente da cena e que impulsiona esta pesquisa.
A vocalidade toca de modo concreto, como gestos precisos que causam comoções
físicas. É o deslocamento de ar que a sua reverberação provoca. É uma linguagem sonora
concreta destinada aos sentidos. Isto pode ser explorado principalmente, a partir do corpo-vocal
do atuante, com suas cavidades de ressonâncias, seus diferentes ajustes posturais e dos órgãos
da fala gerando sonoridades no ambiente da cena, esmiuçando cada palavra para tentar
descobrir aquele sentido além do semântico-imediato, encontrar outros sentidos, que nascem
pelo sentido também sinestésico que cada palavra possui e também, pelas justaposições sonoras
nelas contidas.
45
vocal, da sonoridade da palavra experimentada, de quem ouve e de quem vocaliza. O que está
aqui implicado é um entendimento corpóreo da palavra, sinestésico, inclusive possível e
potencializado pelo trabalho corporal do ator, permitindo um fluxo de associações, uma
imaginação presente, aguçando suas memórias e fantasias, criando combinações variadas de
movimentos corporais-vocais às imagens a elas conectadas. É o atuante pensando por imagens
ao apresentar os seus gestos e ações-físicas corporais-vocais.
Como uma música, é a partir da força das combinações perceptivas do som quanto à sua
intensidade, altura, timbre, melodia, ritmo e harmonia que a vocalidade poética da cena gera
uma ‘Ambiência Sonora’ e se configura como linguagem sonora. No caso da voz do ator, por
exemplo, articulada aos outros sons do jogo cênico, torna-se linguagem e possibilidade de afetar
o outro pelo que possui de sinestesia. Neste sentido, pensar a vocalidade poética é trazer para o
corpo-vocal coletivo o que a música tem de materialidade perceptível. Apesar de não ser
estritamente visível e nem tátil, a música chega no corpo de uma outra maneira, ela é visível
sendo invisível e tátil quando percebida pelos sentidos que se misturam. A vocalidade em sua
qualidade vibratória de ondas sonoras é tátil-sinestésica, ou seja, suas ondas sonoras tocam os
sentidos provocando ações no corpo.
Além das propriedades físicas referidas ao som, há um sentido gerado pela música que
é feito por meio das vibrações sonoras perceptíveis em um determinado contexto histórico-
cultural, impulsionando sensações e imagens não codificáveis como os signos verbais, porém
traduzível com nitidez para a percepção corpórea, envolvendo o corpo com reações de afetos.
É esta noção de musicalidade que mobiliza e cria a ambiência sonora da cena. A sonoridade
toca os corpos, desencadeando sensações, associações de imagens e reações, despertando
metáforas sonoras a serem encarnadas pelos atores, permitindo a construção da vocalidade por
meio do jogo de vozes compostas pelos atores.
A junção das vozes dos atores, de diferentes formações técnicas, culturais, psíquicas e
idades geram gestos sonoros, constroem relações, dão existência a ações harmônicas ou
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conflitantes no ambiente da cena. Como em uma obra musical, cada voz mantém a sua
qualidade, possuindo sua singularidade sonora no amálgama da nova voz formada. É do corpo
dos atores que nasce a vocalidade poética da cena e, por sua vez, é da cena que nasce a
vocalidade poética do ator. Do sonoro também surge o sentido visual, uma vez que os sons
vocalizados pelos atores suscitam imagens. A vocalidade é ao mesmo tempo, som e cenário.
Na medida em que se espalham palavras, murmúrios, canções, ruídos, coros, silêncios, surgem
imagens, um outro lugar, construindo uma ambiência sonora, na qual os atores criam enquanto
percebem o ambiente. Pode-se perceber, assim, como a vocalidade de uma cena pode permitir
a criação, um híbrido de teatro, música, dança e literatura, em que as palavras de um texto teatral
mostram sua força sinestésica podendo tornar-se música e dança no corpo do ator.
Fig 2 – Voz e sinestesia. Manuscrito da aluna-atriz Gabriela Araruna durante o laboratório Vocalidades Poéticas.
Teatro Universitário da Universidade Federal do Ceará 2013.
47
2.1 Zumthor e a Voz em Performance
48
Embora uma língua como o latim ligue etimologicamente à boca (os, oris) a
idéia de “origem”, este “orifício” significa tanto entrada como saída: tudo
provém da voz, saída da boca, seja ela concebida como o oposto do exílio ou
como o lugar de retorno. Porém a boca não concerne à vocalidade, por ela
penetra no corpo a nutrição. Imagem inicial dos lábios mamando no seio,
eroticamente reiterada: boca, lugar de alimentação e amor, órgão sexual na
ambivalência da palavra. Daí, a amplitude do campo simbólico em que se reflete
o ato de manducação. Campo duplo, por sua vez, valorizado para o bem o para
o mal: come-se, mas também vomita-se ou defeca-se; e pela “boca do inferno”
do teatro medieval, o mundo demoníaco se derramaria sobre o nosso. À
devoração se opõe uma gulodice tranqüilizadora e galharda: do ogro à
Gargantua; da goela trituradora do dragão, aberta sobre um estômago-abismo,
até as bocas felizmente abençoadas do país de Cocanha: mulher de vagina
dentada dos contos ameríndios do Labrador; contradições que culminam na
figura exotérica do uróboro, a serpente que, circulante, engole a si própria. Ora,
na tradição bíblica, a voz da serpente foi a causa primeira do pecado “original”.
A palavra se apóia no instinto de conservação; conservar-se é nutrir-se; uma
pulsão de linguagem repete na articulação da voz aquilo que se confirma
alhures, entre conservação e erotismo. (ZUMTHOR, p.14, 2010).
E aquilo que o teatro ainda pode extrair da palavra são suas possibilidades de
expansão fora das palavras, de desenvolvimento no espaço, de ação
dissociadora e vibratória sobre a sensibilidade.
AntoninArtaud
1
“Teatro da Crueldade”, é desta forma que Artaud nomeia a sua poética da cena, inclusive lança em 1938 um livro
chamado O Teatro e seu Duplo no qual publica dois manifestos, ambos chamados de “O Teatro da Crueldade”.
49
Segundo Artaud, a tradição ocidental, no intuito de colocar o teatro submetido à
representação do texto, teria se distanciado do sentido da cena, colocando-a unicamente a
serviço do texto como se este fosse um deus. É nesse sentido que pensa Jacques Derrida (1971)
referindo-se ao Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, tomando este enquanto ato e estrutura
que cria um espaço não-teológico, no qual o texto perde a sua prioridade como centro. Artaud
solicita uma linguagem teatral que se distancie de imitações e do teatro centrado na palavra,
ditada pelo autor do texto literário:
Artaud reclama das limitações impostas pela palavra e advoga uma linguagem teatral
que represente o próprio teatro e não o texto, através dos elementos que ocupam a cena: música,
dança, artes plásticas, pantomima, mímica, gesticulação, entonações, arquitetura, iluminação e
cenário. Os elementos da cena, uma vez organizados entre si, se deslocam do seu sentido
imediato, transformando-se em metáforas, em criação de imagens e se dirigem, antes de trazer
qualquer referência intelectual, aos sentidos. É por meio da linguagem física e concreta dos
elementos que ocupam o espaço do palco que a cena se constitui, o sentido se faz na cena:
“Digo que a cena é um lugar físico e concreto que pede para ser preenchido e que se faça com
que ela fale sua linguagem concreta” (ARTAUD, 1999, p. 36).
Artaud exige o uso da própria concretude que a cena possui, quando pensa na linguagem
teatral, permeada pelo espaço, gestos, movimentos, gritos, sonoridades. O Teatro da crueldade
resgata a linguagem despertada pelas sensações primeiras, como nas nossas percepções iniciais
da vida. Ao pensar nessa linguagem do teatro que tem suas próprias leis e seus meios de escrita
baseadas na percepção sensorial, Artaud toca na base de toda forma de aquisição de linguagem,
em que o mundo nos toca pela realidade das formas, cores, gestos, gostos e vozes, e pertence a
presença dos sentidos do corpo. Há aqui os princípios de uma pedagogia estética da cena e que
pode ser chamada, como se verá mais adiante de ‘pedagogia das afecções’ (FARINA, 2008, p.
96). Artaud comenta que é o
50
Aspecto físico, ativo, exterior, que se traduz por gestos, sonoridades, imagens,
harmonias preciosas. Este lado físico é endereçado diretamente à sensibilidade
do espectador, isto é, a seus nervos (ARTAUD, 2004, p.82).
Artaud não quer entender as palavras de uma maneira descritiva, como tradutoras de
idéias, fatos e coisas; ele quer sentir a palavra. Sentir as palavras em seu estado concreto, físico,
como ressonância do corpo, das sensações e emoções que o atravessam. Sendo assim, não se
deve pensar que Artaud queria eliminar as palavras do seu teatro, mas sim perceber a sua
reivindicação por uma outra maneira de relação com as mesmas. A concretude da palavra é
devolvida ou encontra o seu sentido encantatório quando nasce na cena, tanto daquele que ouve,
quanto daquele que emite a palavra. É deixar a própria sonoridade da palavra falar por ela,
abrindo espaços além das expectativas semânticas embutidas nas mesmas. É dar voz à poesia,
à imaginação e encontrar a singularidade de cada palavra.
Não apenas no teatro de Artaud, mas também na vocalidade do ser humano, o sentido
‘encantatório’ das palavras está presente. Os estudos das linguagens primitivas demonstram
seus sons mágicos, de sentidos desconhecidos, com grande poder de encantamento. O
compositor canadense Schafer (1991, p.235), em ‘Quando as palavras cantam’ reflete, com base
nos estudos lingüísticos, sobre as mudanças sonoras da língua ao longo da história da
civilização, supondo que as línguas vêm perdendo as suas expressões sob a forma da fala
inarticulada, diminuindo a quantidade de interjeições, gemidos, sussurros, sopros, rugidos e
inflexões da voz de uma maneira geral:
O que pode se pensar, então, ao propósito de tomar como impulso as reflexões de Artaud
para pensar a vocalidade poética da cena? Como isso pode derivar em modos de aprender que
provenham do próprio processo de criação? Que implicações culturais e políticas podem ter
esta aposta pela vocalidade e/ou sinestesia da cena em propostas educacionais?
O que importa, neste contexto, é que a linguagem verbal seja valorizada por meio dos
sons que são emitidos pelo ator, ou qualquer sujeito imerso em um ambiente de criação vocal,
como algo que toca aos sentidos do corpo do outro, tornando a relação sonora uma canção que
51
faz uma festa ou derrama lágrimas pelas sensações provocadas por sua musicalidade. Como diz
Schafer:
À medida que o som ganha vida, o sentido definha e morre; é o eterno princípio
Yin e Yang. Se você anestesiar uma palavra, por exemplo, o som de seu próprio
nome, repetindo-o muitas e muitas vezes até que seu sentido adormeça, chegará
ao objeto sonoro, um pingente musical que vive em si e por si mesmo,
completamente independente da personalidade que ele uma vez designou (1991,
p. 240).
Mas que vozes, que “pingentes musicais" tocam os sentidos do corpo? Para onde o meu
nome me leva? Que sentidos nascem do corpo da palavra? Que marcas culturais atravessam o
processo de criação?
52
53
Materialidade da palavra na fissura da memória
terailiad
54
Fig 3 – Fechei os olhos e fui. Manuscrito de Roberta Bernardo durante o laboratório Água, Flores e Anjinhos, no Teatro Universitário – UFC, 2013.
55
Fig 4 – Fotografia Instalação Água, Flores e Anjinhos. Foto de Fábio Souza, no Teatro Universitário da UFC, 2013
Rastro 3
Será valioso aqui compreender que o desenvolvimento do ser humano está imerso em
um processo bioantropológico, no qual o seu corpo matéria se movimenta, se desenvolve, se
transforma nessa constante interação do ser com o ambiente, desde os nossos mais longínquos
ancestrais. Esse processo antropomórfico só é possível ocorrer em um fluxo temporal e espacial
na atualidade porque temos uma história. É a história da humanidade, do país, da cidade e a do
indivíduo, entre outras possibilidades de combinação, que interferem na sua situação presente.
Quando uma criança nasce, ela é inserida em uma comunidade, geralmente em uma família que
possui características que se entende como próprias, e que denominamos de cultura e valores.
E o que importa frisar aqui é que a situação desta comunidade é marcada por toda a história
vivida por seus antepassados, afetando de modo intenso seus presentes, tenham estes indivíduos
conhecimento ou não destes percursos histórico-culturais. Se não fosse assim, o ser humano
estaria criando suas primeiras palavras a cada geração e sua forma de pensar estaria sempre na
falsa ideia de começar do início como se este fosse um marco zero da cultura, talvez semelhante
ao que imaginamos, também de maneira improvável, sobre os seres humanos primitivos.
56
com o meio. É ouvir as vozes que estão dentro de nós, na nossa ancestralidade, que mexe com
nossos corpos, com forças vivas de memória recriadas pelo presente e que vislumbram
possibilidades de futuro.
Mas que não haja equívocos nesta íntima relação com a ancestralidade, porque ouvir as
vozes que estão dentro de nós é, do mesmo modo, ouvir uma alteridade. A ancestralidade nos
é valiosa não por ser determinista e sim por ser potência de possibilidades e de deslocamentos
do próprio presente como presente. Dentro e fora aqui não se contrapõem, ambos delineiam
espaços de passagens que configuram, um tempo “presente reminiscente” (DIDI-
HUBERMAN, 2010, p. 176). O que está dentro do tempo presente, como um vórtice que rompe
com sua linearidade cronológica, é um fora do tempo que impede sua fixação, este fora são as
vozes do passado. Neste sentido, o presente é anacrônico, e este anacronismo é produzido pelas
forças da ancestralidade, as quais na realidade, pode-se pensar concordando com o filósofo
italiano Giorgio Agamben (2009), constituem uma fratura arcaica no tempo.
Para Agamben, arcaico indica algo próximo da arké, da origem. Contudo, esta origem
“não está situada apenas num passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico e
não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro,
como a criança na vida psíquica do adulto” (AGAMBEN, 2009, p. 69). Sendo assim, a
ancestralidade pode tocar nossos corpos, porque ela é contemporânea, com efeito, para
Agamben, é o que constitui o contemporâneo, o nosso devir existencial, nos afetando, nos
transformando e nos permitindo criar laços de afetos sociais. Há aqui um jogo constante com a
memória, mas de maneira paradoxal, pois se trata de uma memória imemorial. Dito de outra
maneira, trata-se de uma forma de “Pensar nossas mitologias, pensar nossos arcaísmos [...]
sobre os signos de seu esquecimento [...] Maneira estritamente memorativa, portanto, de
trabalhar sobre vestígios, sobre signos de dissolução” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 190).
Como é possível falar neste limiar entre a criação de laços sócio-afetivos, ou seja, comunitários,
e estes signos memorativos, a ancestralidade, que é entendida aqui também como a tradição,
em dissolução? De que modo um processo de criação vocal permite vir à tona cruzamentos de
história, memória em um estado de movência?
57
Fig 5 –Mãe. Manuscrito da aluna-atriz Roberta Bernardo durante o
laboratório “Vocalidades Poéticas. Fotografia Instalação Água, Flores
e Anjinhos – por Fábio Souza.
O medievalista, poeta e estudioso das poéticas da voz, Paul Zumthor (2001), nos entrega
algumas pistas valiosas para refletir sobre este entrelaçamento entre tradição (sob o signo do
esquecimento) e comunidade. O locus emblemático que lhe permite realizar esta conexão, algo
crucial para esta pesquisa, é a voz, sobretudo a vocalidade poética. Ainda que suas reflexões
girem em torno da tradição oral e suas derivações em uma tradição textual na época medieval,
este autor se torna interessante para pensar o objeto desta pesquisa aqui nos dias de hoje. Chama
a atenção o fato de Zumthor citar, por exemplo, o repertório dos poetas populares do Nordeste
brasileiro como continuidade oral da epopeia carolíngia europeia (2001, p. 153). O que se quer
dizer é que ainda pensando no medievo, Zumthor fala, na realidade, de um movimento
contemporâneo ao presente, da maneira acima referida com Agamben, e encontrando
ressonância também no nosso contexto sociocultural nordestino.
Para Zumthor, é a voz poética que permite operar uma coesão e estabilidade sem a qual
o grupo social não poderia sobreviver, mas o que interessa aqui é que esta coesão se dá de
maneira paradoxal. Ele diz:
58
Paradoxo: graças ao vagar de seus intérpretes – no espaço, no tempo, na
consciência de si –, a voz poética está presente em toda parte, conhecida de cada
um, integrada nos discursos comuns, e é para eles referência permanente e
segura. Ela lhes confere figuradamente alguma extratemporalidade: através
dela, permanecem e se justificam. oferece-lhes o espelho mágico do qual a
imagem não se apaga, mesmo que eles tenham passado (ZUMTHOR, 2001, p.
139).
59
O que aqui começa a ficar claro, a partir dos estudos de Zumthor, é um modo de pensar
operado por junção de contrários, de estabilidade e mobilidade. Parte-se de uma relação entre
o coletivo e o individual, onde o primeiro, que seria o lugar de estabilidade da memória, é
formado por um ‘armazenamento de lembranças individuais’ que, se poderia dizer, são móveis.
Esta é uma contradição que Zumthor percebe no pensamento medieval, no qual a memória ou
era tida como uma verdade imutável, ou como algo capaz de gerar variações infinitas (2001, p.
139-140). Mas este autor, ao considerar a vocalidade poética como o locus memorativo por
excelência, e que atravessa os tempos, não vai dar seguimento a esta dicotomia e sim partir
dela. Isto vale também para a relação pensada por ele entre voz e texto, entre performance e
escrita1 – dando a entender que a tradição somente é possível graças a uma série de constantes
variações. Isto, inclusive, vai denotar o que é que está realmente em jogo na noção de
comunidade.
Sendo assim, percebemos a voz poética como locus memorativo e Zumthor diz isso
diretamente, “a voz poética é memória” (2001, p. 139) assim como, do mesmo modo, “traz o
testemunho indubitável da unidade comum” (2001, p. 142), permitindo assim a criação de um
laço afetivo comunitário. Este laço comum é evidenciado pela voz poética, que cruza os tempos,
como algo extremamente delicado, já que o que pode se entender por comum (e por
comunidade), talvez, “seja menos o que temos em comum, nós, seus ouvintes, do que isto que
nos é comum a todos e, do mesmo modo, impossível: para além de nossas fronteiras, o rosto
1
Zumthor comenta que “o ‘texto’ existe de modo latente; a voz do recitante o atualiza por um momento; depois
ele retorna a seu estado, até que outro recitante dele se apropria” (2001, p. 144). Em outro momento ele diz: “A
fixação pela e na escritura de uma tradição oral não põe necessariamente fim a esta, nem a marginaliza de uma
vez. Uma simbiose pode instaurar-se, ao menos certa harmonia: o oral se escreve, o escrito se quer imagem do
oral” (2001, p. 154).
60
daquilo que a nós, indivíduos, seria a morte” (ZUMTHOR, 2001, p. 142). Assim esta noção do
comum se dá nos vestígios, nos murmúrios, nas vozes quebradas que nós herdamos da tradição,
sendo esta a ‘perfeita’ voz da memória, a qual “– forme-se na garganta, na boca, no sopro de
um poeta ou de um padre – tem como fim último, sem dúvida, evitar rupturas irremissíveis, o
despedaçamento de uma unidade tão frágil” (ZUMTHOR, 2001, p. 142).
Aqui o tempo, a temporalidade da voz, é vista na sua transitoriedade, como algo que vai
se tornando constantemente em murmúrio, em ecos fragmentados, marcados por uma finitude.
Este movimento não pode ser descrito necessariamente como clausura, nem fim, nem vazio, e
sim passagem, para um tempo outro, no qual a vocalidade poética adquire a potência de vagar
pelos tempos, aqui está a chave ‘da ação contínua das variantes’, ou seja, da sua infinitude. Se
Zumthor trata sobre a fala cotidiana como uma dispersão de palavras que esmigalham o real,
talvez se possa dizer a tradição da vocalidade poética como algo que se esmigalha para poder
dialogar com a fragilidade do real, sua transitoriedade, na qual o presente se desloca sempre de
si mesmo pelo trabalho da memória. Há no presente uma vertigem de tempos. Aqui temos o
paradoxo de uma tradição sob o signo do esquecimento, na qual esta é vista como vestígios,
sendo desta maneira como “a obra de memória constitui a tradição. [E aqui] nenhuma frase é a
primeira. Toda frase, talvez toda palavra, é aí virtualmente, e muitas vezes efetivamente,
citação” (ZUMTHOR, 2001, p. 143).
61
62
Dar passagem a um vertiginoso mundo afetivo
Se a voz é para Zumthor (2001) o domínio da variante, é ela que vai permitir nos textos
(este é outro de seus termos chave) a movência. Deste modo, os textos possuem aberturas a
partir das quais se dá a intertextualidade, como também acontece com a tradição oral, que vai
possibilitar a intervocalidade. Tanto uma quanto a outra (Zumthor se refere mais a
intervocalidade) podem ser vistas como lugares de transformação, como uma “polifonia
percebida pelos destinatários de uma poesia que lhes é comunicada” (2001, p. 144). E o mais
significativo para esta pesquisa é que ambos podem ser concebidos como ‘lugares de
transformação’. Ainda que algumas tradições (sejam textuais ou orais) possam ser regradas de
uma maneira mais ou menos formalizada, serão sempre de alguma maneira, como diz Zumthor,
incompletas e entreabertas ao imprevisível. A ancestralidade, a tradição, a memória, pode-se
dizer aqui então, carregam em si mesmas a sua força de movência, de citação, ou seja, de
reinvenção.
É esta movência que nos abre a possibilidade de ver o imaginário popular nordestino
não mais centrado em um folclorismo publicitário banal, que o enrijece fixando-o para fins
turísticos e comerciais e sim em sua potência de reinvenção, afetando o presente. Neste
contexto, se torna impulsionador o texto teatral de João Denys, Flores D’América. Nele reside,
de fato, potência poética, possibilitando um processo de criação no qual pessoas (sejam atores,
músicos, performers, dançarinos) podem dialogar com o imaginário nordestino, sertanejo, que
perpassa o texto, de uma maneira contemporânea, da maneira discutida anteriormente com
Agamben. A cultura nordestina popular abordada por João Denys neste texto (e em boa parte
de sua dramaturgia) corresponde a um reprocessamento poético dessa cultura, entremeada de
referências tanto da tradição oral nordestina como da dramaturgia contemporânea.
63
Esta hibridização é operada no texto de João Denys, elaborando um discurso
dramatúrgico alternativo e resistente em relação aos discursos dominantes do consumo popular
massivo. Como ele mesmo comenta sobre o seu texto, trata-se das
surpreendentes relações entre campo e cidade, entre região e mundo, entre real e
imaginário, mediadas pelo corpo e o trabalho de mulheres que tecem uma América
sempre de veias expostas: uma América dependente, sempre sepultando seu futuro e
imediatamente engravidando um universo feminino de outras possibilidades, de um vir
a ser gente mais e melhor; um universo re-elaborado, um devir de poesia (DENYS,
2005, p. 11)
É esse devir de poesia presente nas vaporações de palavras da escrita de Denys, juntamente
com a sua opção dramatúrgica de ter personagens apenas mulheres, o que inspira uma
sonoridade de vozes de mulheres grávidas de um futuro outro, tornando este texto um instigante
material para fazer brotar, na maturação do laboratório de pesquisa, a presença de vocalidades
poéticas.
A personagem principal desse texto teatral chama-se América, tem duas filhas, Das
Dores e Soledade, e moram em uma casa de sítio nas proximidades de uma cidadezinha
chamada de Europa. Ainda que existam nestes dados da peça, vistos nos agradecimentos que
aparecem na publicação, aspectos biográficos do autor, no qual este comenta cada personagem
como se fosse alguém que ele conheceu e de Europa, não como o continente e sim como o nome
de um sítio no sertão pernambucano, fica evidente que estes nomes são referências que ele quer
cruzar dramaturgicamente. Entretanto, se à primeira vista pode-se pensar que se trata de mais
um texto político, daqueles que brotaram aqui e acolá no continente latino-americano, sobretudo
nas décadas de 1960 e 1970, discutindo a tensão colonialista entre Europa e América, sendo
esta última visualizada tragicamente como um lugar de solidão (Soledade) e dor (Das Dores),
não é necessariamente isso que se configura na força poética do texto. Certamente, e isso é
muito importante nesta pesquisa, não se trata de um típico teatro social de protesto, que em uma
pobre didática quer clarificar, a partir de um dualismo maniqueísta, as opressões sociais,
culpabilizando alguns e redimindo outros, gerando uma voz-autoridade para entender as
problemáticas socioculturais nele postas. Estas problemáticas de marginalidade, solidão,
violência existem fortemente no texto, entretanto, em um tratamento poético no qual não se
64
levanta nenhuma voz clarificadora, objetiva e condutora (voz-autoridade) do discurso, este se
mostra na sua própria rede de contradições e perplexidades.
Flores D’América está composta em oito quadros, que o autor João Denys chama de
mistérios,2 já delineando uma intensa religiosidade do imaginário nordestino ali traçado. Assim,
em uma grande sala de visitas de uma casa rural, nas proximidades de uma cidade chamada
Europa, vive uma família de três mulheres: América, uma mãe viúva e cega de um olho, junto
a suas duas filhas, Soledade e Das Dores. Estas três mulheres são costureiras, e o cenário
indicado no texto, que é onde se passa toda a peça, é esta sala onde estão distribuídas três
máquinas de costurar. Também, nas paredes, estão pendurados retratos dos donos da casa, assim
como, do Coração de Jesus e Coração de Maria, Nossa Senhora das Dores e Padre Cícero
Romão Batista. É uma história de mulheres, todas as personagens são femininas, a presença
masculina é espectral, durante o decorrer da peça, sabemos que o pai foi morto, assim como os
vinte filhos de América, pelos quais ela sempre chama. América se apresenta como uma mãe
autoritária que quer manter as filhas consagradas ao divino, assim as deseja sempre virgens,
castas e santas. Ocorre que elas foram as que sobreviveram na vida do sertão, seca, sem vida, e
ainda mais, vivendo agora oprimidas entre o cangaço e a polícia mancomunada. Em torno da
casa, sempre passam grupos de mulheres, muitas vezes rezadeiras, que lhes advertem sobre o
perigo de serem invadidas por homens que lhes roubarão tanto a casa como a virgindade de
suas filhas. Estas, no entanto, sonham no desejo de sair daquele lugar fechado no qual a mãe as
mantém à força, querendo se aventurar naquele mundo de perigos, fora de casa, fora do seu
mundo.
Estas mulheres, na realidade, são prisioneiras dos seus imaginários, não vivem, mas sim
sobrevivem às margens das lembranças, da fé, da saudade da mãe pelo pai, do trabalho que é
costurar roupas, mas sem saber para quem, mortalhas e mantos da virgem. O que nos mostra
este texto é um mundo vazio no qual “Por mais que América sonhe com uma boiada, vaqueiros,
cantigas, cheiro de gado, na realidade ‘não há nada, tudo em torno é seco, cinzento, ardendo,
nada ali se mexe’” (KÜHNER, 2005, p. 14). Estas são mulheres sem maridos, mulheres
valentes, que se defendem como podem, com faca, facão e rifle. No decorrer da obra, passam
coros de mulheres de coronéis, de mulheres cegas sanfoneiras, de mulheres devotas do Padre
2
Certamente a referência aqui é o teatro medieval, com suas obras sagradas e ao mesmo tempo populares,
realizadas nas ruas, com seus variados palcos distribuídos nos espaços das praças para, em estações dramatúrgicas,
contar sempiternamente os mistérios da igreja, de Cristo. Contudo, o que interessa nesta pesquisa é como o teatro
contemporâneo reprocessa esses procedimentos do teatro medieval para elaborar uma cena multifacetada, que
afete o espectador pela sua força sinestésica, ao modo como João Denys opera poeticamente em sua dramaturgia.
65
Cícero Romão... E no final, só resta um coro de mulheres passando pela cena, mulheres grávidas
de futuro, de esperança de um mundo melhor.
A peça opera por ambiguidades, de fato, essa promessa de mundo melhor, que pode ser
simbolizado no coro que aparece no final da peça, de mulheres grávidas, vestidas com longas
túnicas brancas, é contraposta com a imagem final da mãe América, que depois de morta,
aparece costurando. A intensidade do ambíguo vai sendo construída ao longo do texto, e vai
romper com uma visão folclórica das tradições nordestinas, entretanto, lançando mão de toda
sua força poética, na qual rezas e procissões dos coros (estes textos aparecem em versos;
referência da literatura de cordel) se dão em um mundo seco, vazio. Como diz uma das
personagens: “A seca tá pior que nos outros tempos. Depois da morte do Santo Padrinho Cícero
o mundo tá se acabando” (DENYS, 2005, p. 47). América, durante a peça, morre e aparece em
cena para explicar sua morte (morte sobre a qual o texto nos defronta com quatro versões
contadas por uma personagem chamada de Menina de Branco. Esta é outra camada da
ambiguidade). Assim, na peça, América costura, talvez, sua própria história e sua própria
mortalha, como um patchwork, já que a Menina de Branco conta que América foi assassinada,
decepada, por dez homens da polícia; depois conta que na realidade foi assassinada pelos
cangaceiros, comandados por Lampião; depois que foi assassinada pelas próprias filhas e
finalmente que esta mãe suicidou-se. América aparece constantemente na sala, sempre
66
desmentindo a Menina de Branco para finalmente contar que foi ela quem costurou no pescoço
a sua própria cabeça, que havia sido cortada, e diz: “Queriam que eu estivesse morta? Eu não
morro nunca, porque eu não estou aqui. Eu estou na cabeça de vocês, na cabeça do mundo. Eu
sou uma fêmea! Nossa senhora não é mãe do mundo todo, e até dos bandidos e dos santos?”
(DENYS, 2005, p. 108). E no final, dizem as indicações do texto, “América costura com ardor.
O barulho da máquina é amplificado até a máxima saturação: mais parece uma infinita rajada
de metralhadora” (DENYS, 2005, p. 118).
O que se percebe na dramaturgia de Denys é uma visão crítica para com as leituras
acostumadas e institucionalizadas que existem acerca do Nordeste. E esta foi, de fato, uma
chave de leitura com a qual ele abordou a obra de outro dramaturgo pernambucano, Joaquim
Cardozo, em um estudo denominado “Um Teatro da Morte” (2003), o qual certamente lhe serve
como referencial poético. Denys critica uma invenção institucionalizada e elitizada do
Nordeste, realizada, sobretudo, por intelectuais e artistas brasileiros da primeira década do
século XX. Estes construíram a visão de um Nordeste purista, saudosista de suas idílicas origens
míticas, para reagir desta forma à barbárie capitalista. Levantaram assim, uma visão redentora
do rural, em detrimento do moderno, do industrial e do urbano (DENYS, 2003, p. 109 – 120).
Neste contexto, para Denys é importante explorar, como citado acima as surpreendentes
relações entre campo e cidade, entre região e mundo, entre real e imaginário.
Denys entra na secura desse mundo, no vazio. América está no abismo da desilusão e
do pessimismo, dialogando com os mortos, considerada pela população como bruxa, mas com
tudo isso ela não se nega a dar abrigo: “Se vierem me cobrar imposto eu também mato. Tenho
horror a quem cobra e a quem paga imposto. [...] Se vier resto de gente desiludida, fugida do
governo, com fome, medo e vontade de trabalhar, eu dou guarida sim” (DENYS, 2005, p. 115).
Sem negar a ruína, entrando nela, Denys quer pensar em uma possibilidade de futuro, talvez
por isso, a necessidade de operar por ambiguidades, o que está relacionado com uma poética
que não quer fechar os sentidos da obra, mas sim abri-los.
67
Tudo na base do mais generoso e autocrítico dialogismo: de Pasolini a Nelson
Rodrigues, de Antonio Fagundes a Samuel Beckett, de Shakespeare a Marcus
Siqueira e Luiz Maurício Carvalheira. Hamlet em Glauber. Cardozo em Artaud.
Brecht por Leda Alves em Hermilo Borba Filho. Grotowsky em Marcondes
Lima. Denys por Denys (2005, p. 125).
Esta peça se afasta de um teatro didatizante, cujo discurso poético quer persuadir o
leitor-espectador de alguma ideia (teatro de tese), e, em uma ambiguidade constante,s nunca
deixa que o significado se estabilize, abolindo toda possibilidade de tese fechada. “Em síntese
[esta obra se encontra] aquém e além dos discursos da linear persuasão. Pela irrupção desejante
de contradições e contra-DICÇÕES, cabeças cortadas rolando, sujeitos fraturados, dissonâncias
cognitivas, deuses à margem de pastos e rebentos” (BRITTO, 2005, p. 123). Neste sentido, este
autor pode ser inscrito dentro de toda uma geração de artistas e autores latino-americanos que
levantaram com suas obras um ponto de vista crítico com uma arte decididamente política, a
que ficou conhecida como ‘de esquerda’.3 Estes artistas chegaram inclusive a hierarquizar a
força política de suas obras por sobre a força poética, a primeira era certamente para eles mais
importante e urgente. A obra de Denys corresponde a um fluxo em que não se hierarquiza estas
duas forças, estas são simbióticas, o poético e o político. Aqui entramos no que a investigadora
cubana de teatro latino-americano Magaly Muguercia, chamou, já na década de 1980, de
Viagem à Subjetividade do teatro deste continente, rompendo com uma noção de teatro, de
apelação política direta, produzindo para isso um procedimento poético dramatúrgico (e cênico)
que “…brota naturalmente fraturado, eclético, plurilíngüe, e desborda os marcos de uma
narrativa excessivamente reguladora do discurso” (MUGUERCIA, 1991, p. 98, tradução
nossa).
3
No Brasil podem ser considerados neste o dramaturgo e diretor Augusto Boal, o dramaturgo Giafrancesco
Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho (a exceção, talvez, de Rasga Coração), entre outros.
68
(estas cenas já foram referidas anteriormente). Isto dá ao texto não somente uma circularidade,
de voltar sempre a um mesmo ponto na narrativa, mas, principalmente uma dinâmica rítmica,
que denota também uma dinâmica sonora, tratando-se efetivamente de uma opção de
composição sonora na dramaturgia, operando no corpo da escrita, ou melhor, na escrita como
corpo-vocal.
“Líder do Coro:
Foge, foge, passa, passa, esconde esconde uruçu, mandaçaia, tubiba, mosquito,
papa-terra voa. Voa, voa, voa exu, miduri, capuxu doce. Doce, foge, voa, passa,
esconde, voa. [...] Foge dada, foge cila, foge moça. Olha a faca rosinha, olhas a
sede Lili, olha a bala veroniquinha. Puxe linha dona Otília, geme geme inacinha.
Coro:
Passa xexéu, passa baraúna, passa socó, passa nabu, passa passa gavião, passa
umbu, passa tatu, passa boi, passa boiada, passa Bandeira, passa umburana,
passa sol, passa angico, passa e fica, passa passa, passa pó, passa poeira, passa
pau, nuvem passa, passa vento, passa passa, corre corre, fogo fogo, corta corta,
puxa, puxa, esconde a linha, sai da linha, vá pra linha, arroucha afrouxa. São
pontos, são galhos, são linhas, são flores, são traços, são folhas, corta estica. É
rosa, é vinho, é azul real, é verde, é amarelo ouro. Será sangue sangue, corre
corre será” (DENYS, 2005, p. 74).
Pode-se inferir que como uma das maneiras de não fechar o significado da obra, Denys
opta por um trabalho minucioso no âmbito do significante, o que põe em evidência e
potencializa neste texto a força sinestésica das palavras (como foi discutido a partir das
contribuições de Artaud no rastro segundo). Denota-se uma força corpórea do texto e que é
basilar a esta pesquisa, a qual se dá principalmente, neste contexto, pela dimensão vocal
implicada nessas palavras, o que nos permite perceber na sua sonoridade ou, mais precisamente
ainda, na sua musicalidade. Trata-se da emergência, neste caso, de um texto-vocal, o qual
carrega inevitavelmente uma força material-cênica, corpórea-vocal, sendo esta a que afeta o
espectador, permitindo-lhe perceber a obra, e levantar sobre ela outras leituras, originadas do
impacto sensorial provocada no seu corpo. A partir desse choque corporal no espectador, este
69
fica aberto para interpretar a obra a partir de sua singular relação corpórea com a mesma,
estimulando nele a ativação da memória, que aqui encontra seu vínculo coletivo, já que a
memória está prenha de outras vozes (ZUMTHOR, 2001). Trata-se, desta maneira, da
sonoridade de um corpo-vocal. Com efeito, Flores D’América pode ser tomada como um corpo-
vocal falando de vozes esquecidas, dentro do seu próprio corpo, encarnando, contando,
cantando figuras, fatos históricos, coisas que marcam o imaginário popular transfigurados (pelo
menos em potência) no ambiente de uma arte cênica. Neste contexto, como pode ser pensado
este corpo-voz? Como nos relacionamos, como percebemos os sons que nos envolvem? Para
esta reflexão, falaremos novamente do tecido das memórias, especificamente agora, de
memórias sonoras.
Estamos imersos em mundo sonoro desde a nossa vida intra-uterina. No útero aquoso
da mãe o feto ouve as primeiras ressonâncias, vai formando e afinando o seu ouvido, reconhece
a musicalidade da voz do pai e da mãe. Com o nascimento, temos acesso a outros sons que
fazem parte da paisagem sonora na qual também estamos imersos. O pesquisador musical da
ecologia acústica, Murray Schafer, chama a atenção para as mudanças sonoras ocorridas ao
longo da história e como estas afetam as nossas vidas. Seus estudos fazem uma alerta sobre os
perigos da difusão indiscriminada e imperialista dos sons em variados contextos da vida
humana. Vários sons da natureza, por exemplo, temos dificuldade de ouvir e discriminar nos
dias de hoje e estão ameaçados de extinção. O canto de um pássaro, por exemplo, é identificado
como “som de passarinho”,de uma maneira genérica, são poucos os que conseguem dizer qual
passarinho emite tal canto. Percebemos uma massa sonora, pouco diferenciando os sons que
nos rodeiam e compõem uma paisagem sonora que trazem sensações de prazer ou de incômodo
para as nossas corporeidades.
70
Pode-se dizer que em todo o mundo a paisagem sonora
atingiu o ápice da vulgaridade em nosso tempo, e
muitos especialistas têm predito a surdez universal
como a última consequência desse fenômeno, a menos
que o problema venha a ser rapidamente controlado.
(SCHAFER, 2001)
Schafer afirma que no decorrer da história ocidental, o ouvido foi cedendo lugar para o
olho, tendo como marco o desenvolvimento da imprensa e da pintura em perspectiva:
Antes da era da escrita, a história e estórias eram transmitidas pelas tradições orais. A
audição era vital. Em ambientes mais rurais, vilarejos de pescadores ou em comunidades
menores, podemos, ainda hoje, ter outras percepções sonoras, diferenciar os sons da natureza,
nos deliciarmos com as curvas melódicas e rítmicas do contar uma estória. Por acaso não é isso
o que Denys reprocessa dramaturgicamente em seu texto, inscrevendo-o dentro de toda uma
dinâmica do teatro contemporâneo, quebrando historicamente com o realismo-burguês e
bebendo na cultura popular? O nosso ouvido de hoje precisa de um tempo, ou de uma intenção
de escuta apurada para perceber as nuances sonoras: “A mente precisa tornar-se mais lenta para
captar os milhões de transformações da água na areia, na argila... Cada gota tilinta numa altura
diferente.”(Schafer, 2001, p. 34-35).
Qual a relação entre os seres humanos e os sons do seu ambiente? Como esse mundo
sonoro afeta o nosso corpo? Como esses sons nos formam e nos transformam? Que sons
marcam o nosso corpo, a nossa voz, a nossa memória? Como esses sons se transfiguram em
uma vocalidade poética?
71
livro “Nada de novo no front”, de Erich Maria Remarque, dando o exemplo dos sons produzidos
pelos cadáveres:
É necessária uma parada no tempo, como diz Schaffer, para uma escuta atenta dos sons
do mundo, que podem ser também ouvidos como testemunhos do mundo e que nos alcançam
receptivamente. “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o
que se passa, não o que acontece, não o que toca” (BONDÍA, 2002, p.21). O saber da
experiência mexe com uma sensibilidade corporal nossa, uma forma humana singular de estar
no mundo. Deste modo, se torna possível perguntar: Que experiência sonora nos chega? Que
experiência sonora no processo criação gera um saber vocal?
72
73
Fig 7 – Paisagem sonora. Desenho da aluna-atriz Angela deyva
Os sons da terra, das águas, do vento, da chuva, dos bichos (marítimos, terrestres e
aéreos), as crenças, os acontecimentos históricos, as pessoas que habitam determinado espaço
configuram constantemente a ambiência sonora de um lugar, enriquecendo a sua língua,
inventando expressões, criando e reinventando vocábulos, crendices. A vocalidade poética
precisa dançar, ou voltar a dançar com a ambiência sonora, reavivando suas memórias sonoras
de tempos passados, na qual a fala era apaixonada, mais semelhante à música ou a canção.
Deste modo, a vocalidade da cena teatral precisa tecer uma relação dialógica entre os sons da
sua paisagem sonora e fora dela, entre o som e o silêncio, entre os sons do presente e da
memória, entre o dia e a noite, entre os sons que habitam o corpo e o outro, em um fluxo
constante de encontros. Encontros nos quais estão implicados sobretudo corpo e ambiente.
sem dúvida alguma o lamento que meu corpo construiu nesse espaço ritual foi
uma projeção psíquica organizada pelos meus sentidos corporais, mas foi a
partir de uma densidade sensorial que objetivamente já estava ali, própria
daquele contexto. Cada fotografia materializava uma memória, uma penitência,
uma viagem até o horto, um gesto. Se meu corpo criou fantasmas, ele não o fez
de modo aleatório, mas justamente no encontro com a memória material do
contexto onde ele circulava. (ASSUMPÇÃO, 2010, p.20).
75
A vocalidade permeia o cerne desta pesquisa, sobretudo pela sua força sensorial, material,
perceptível na ‘espessura concreta da voz’, na ‘tactilidade do sopro’, se poderia pensar com
Zumthor (2001). Greiner e Katz, ao pensar na relação corpo e ambiente, percebem na
etimologia deste último termo a movência (parafraseamos aqui a Zumthor) existente entre
ambos. Elas se perguntam: “Como pensar em corpo sem ambiente se ambos são desenvolvidos
em co-dependência?” (2001, p. 70). Ocorre que, explicam as autoras, ambiente surge da junção
dos termos amphi, de origem grega, significando ‘em torno de’ e ente, advindo de um antigo
idioma pré-histórico indo-europeu, significa ‘sopro’. Ambiente como ‘sopro em torno de’
(2001, p. 70). Assim também acontece com a palavra cultura, continuam as autoras, que vem
do indo-europeu Kwol, significando ‘andar em torno de’, similar ao termo amphi. Cultura é
conceituado pelas autoras como “um sistema aberto, apto a contaminar o corpo e a ser por ele
contaminado, e não a influenciá-lo e ser causa de mudanças visualmente perceptíveis nele” (
2001, p. 73).
76
Parte destas reflexões, principalmente, a do sopro como força da palavra, Zumthor a
deriva de uma importante singularidade da arte arcaica para a arte nos dias de hoje. Esta arte
antiga não diferenciava poesia, dança e música, pensemos por exemplo, no teatro grego, que
envolvia em suas apresentações atuação, poesia, música, dança, entre outros aspectos que eram
cênicos. De alguma forma, esta força sinestésica da cena, existente na dança, na música, na
poesia oral, entre outros, que expõem a força física das palavras, dos movimentos corpóreos,
dos gestos, e das vocalidades, é a que pretende rearticular o teatro contemporâneo. Isto explica
o seu afastamento cada vez mais intenso do teatro realista e do textocentrismo, concebendo os
elementos da cena em igual valor composicional que o texto, que antes comandava de maneira
logocêntrica e hierárquica a cena, se instaura como seu centro poético.
77
Com efeito, foi esta posição central do texto que implicou na desvalorização da
materialidade cênica, da sua força corpórea, para priorizar a aura do poeta-dramaturgo, como
voz ideal e incorpórea do palco. Mas este anti-logocentrismo da cena, com a qual opera o teatro
contemporâneo,4 não levou a uma anulação do texto no teatro, e sim a um reprocessamento das
poéticas dramatúrgicas que começam dar atenção a sua força sinestésica, a se permitir perceber
a dobradura do sopro. Podemos pensar que é isso o que realiza João Denys em Flores
D’América, e daí sua pertinência nesta pesquisa, que pretende indagar sobre um processo de
criação da cena focalizado na criação da ambiência sonora da cena. Como já referido
anteriormente, importa neste texto não somente o que diz sua narrativa, mas sobretudo como
ela está composta em termos dramatúrgicos, sua musicalidade, que aponta justamente para uma
dimensão sensória da palavra do texto. O fato, por exemplo, de que todas as personagens sejam
mulheres, já nos sugere uma possibilidade de textura sonora, ligadas aos timbres sonoros
femininos, sem poder cair em um lugar comum, pelo fato, de que estas mulheres são filhas do
cangaço, que se defendem com rifle e facão. Contradição esta que declara a força poética do
texto nos seus alcances cênicos. Do mesmo modo, há textos cheios de aliterações poéticas,
como aparecem muitas vezes na fala de alguns personagens, como esta de Soledade, em um
momento de tensão da peça, quando as filhas assassinam a mãe autoritária:
Em outro texto, em que a mãe América lembra, triste e carinhosamente, dos seus filhos
mortos, ela os chama com nomes de ervas e flores. Aqui, mais do que aliteração, há uma
ininterrupta listagem de flores e ervas que vão adquirindo, de forma análoga ao texto anterior,
uma dinâmica sonora a partir dos fonemas que vão sendo enunciados.
América: (embriagada) São ervas e flores, o perfume dos meus amores. Hortelã
de Conselheiro; bonina de juriti e manjericão de pensamento... Alecrim de
4
São diversos os livros que abordam esta questão do textocentrismo na história do teatro moderno, e sobretudo, no
teatro contemporâneo. Entre eles: “A Linguagem da Encenação Teatral” do francês Jean Jaques Roubine (1980);
“Dramaturgias de la Imagem” do espanhol José A. Sánchez (1994); “A análise dos espetáculos”, do francês Patrice
Pavis (1996); “Teatro Pós-Dramático” do alemão Hans-ThiesLehmann (1999); entre outros.
78
Andorinha, Benedita de Mansinho, capim santo de chumbinho, cajado de São
José de Bem-te-vi. Açucena de nevoeiro e espirradeira de Diferente e mastruz
de relâmpago... Angélica de Moreno, Jasmin de Azulão, bom dia de Barra Nova
e saudade de Sabiá. Dália de Meia-Noite, margarida de Brilhante, rosa menina
de Cajarana, bogari de açucena, rosa prata de beija flor e sorriso de Maria de
Martírio...
79
Em nenhum destes dois trechos, e isso acontece praticamente durante toda a obra, há
uma representação realista do fato que está sendo narrado. O que há é uma ênfase, um
transbordamento no significante, adquirindo, as palavras, um hiperbólico grau de exposição, de
corporeidade. É como se o autor nos entregasse a história de maneira extremamente
fragmentada, e no meio dos fragmentos jogasse com as palavras, referências múltiplas
relacionadas com aquele mundo seco. Certamente há algo neste mundo-sertão de descontínuo,
vozes quebradas, que ganham forma e força sinestésica na composição dramatúrgica deste autor
potiguar. Talvez, o que se procure dar a perceber no texto sejam estados, estados físicos;
podemos perceber, por exemplo, as rubricas5 do trecho de Soledade, acima citado, denotando
uma animalidade e visceralidade sombria e descontrolada; do mesmo modo, a rubrica do texto
de América, indicação esta que dá o tom sensitivo da cena junto a outra camada poética (e de
significação) como um collage de nomes de flores. Enfim, todos estes aspectos vão entregando
possibilidades de texturas sonoras-cênicas, e é neste sentido que podem ser percebidos também
os coros, as rezas, os cantos tradicionais, os versos de literatura de cordel, enfim, todo o
reprocessamento da tradição nordestina que é realizado nesta obra.
Neste contexto, a própria peça pode ser vista como um ambiente, como um mundo
sensível com o qual se buscou e/ou provocou contaminações entre os corpos-vocais, corpos-
palavras e os corpos-atuantes no laboratório de criação desta tese. Mas de que maneira? Não
obstante todo o corpo de referências com o qual Denys constrói seu texto, entendendo sua obra
como citação da citação da citação, ele não se filia (e isto é uma das características mais
marcantes da dramaturgia contemporânea) a nenhum modelo poético pré-estabelecido. Não se
pode dizer que esta obra é realista, ou expressionista, ou surrealista etc. E mais ainda, se poderia
dizer que Denys no ato de sua obra constrói sua própria e singular poética, a qual se esgota
neste mesmo texto. O que se quer expor com isto é que não há modelos, portanto, para levar a
mesma à cena; não há regras, postulados, caminhos prontos e é por isso que ela pode ser
percebida como um ambiente. Isto leva a perguntar acerca do que constitui então um processo
de criação com este tipo de obra, já que não há modelos a seguir. Certamente será valioso
considerar a sua própria materialidade texto-poética, seu jogo de vozes, de fonemas, de
palavras, de frases, de coros, de rezas... para conectá-la com os corpos-vocais de sujeitos
atuantes. Mas dito isso, o que está implicado artisticamente em um processo de criação vocal?
5
Indicações de cena ou de intenção de fala dadas pelo autor do texto.
80
Rastro 4
81
Fig. 11 – O outro. Fotografia de Roberta Bernardo do
processo de criação de água, flores e anjinhos – por Fábio
José
Há algo que grasna no corpo ao vocalizar, vozes de pássaros e leões que nos habitam,
que anseiam por existência, por serem postas no mundo, como um bicho. Esse é o corpo-bicho,
essa é a vocalidade-bicho. Uma agonia, um nó na garganta que pulsa para o nascimento de uma
vocalidade, uma falta de palavra que experienciamos quando algo nos arrebata, que não
sabemos como dizer. No arrebatamento, todo o corpo se altera, todo o corpo se torna sensível
ao movimento dos fluxos de variadas naturezas que o atravessam, alterando respiração,
batimentos cardíacos, fluxo sanguíneo, imagens, sensações, imaginações que necessitam
ganhar vida no corpo da voz.
O ar inspirado percorre as cavidades ósseas, atravessa espaços, toca mucosas, dilata e
retrai membranas numa velocidade outra, ainda não vivida, chegando a corrente sanguínea.
Outra parte desse ar se mistura com outros fluxos que atravessam as cavidades do corpo, se
contamina com eles movido pela necessidade de vocalizar uma voz-outra, nunca
experimentada, movida pelo desassossego provocado pelo encontro com outros fluxos, com
outras inspirações de ar. Voz que grasna por existir, que necessita ser expressa. Esse é o corpo-
ovo do qual a psicanalista brasileira Suely Rolnik nos fala a partir do seu diálogo com a obra
da artista plástica Lygia Clark. Nas palavras de Rolnik:
Este rastro propõe uma reflexão sobre o processo de criação em voz, vinculado a
presente pesquisa de doutorado, a partir das noções de corpo-bicho e corpo-vibrátil encontradas
na teoria da psicanalista brasileira Suely Rolnik na parte dos seus estudos que se baseiam na
análise crítica de obras da artista plástica Lygia Clark (1920-1988) e dos escritos deixados pela
mesma.
No processamento dos insigths despertados pela leitura de Rolnik, surgiram questões
que impulsionaram a reflexão sobre o laboratório prático desta pesquisa intitulado “Vocalidade-
Bicho”, tais como: de que modo, em que contexto podemos pensar em um corpo da voz? Quais
as relações estabelecidas entre a matéria sonora e os estímulos diversos atravessados no/pelo
82
corpo? Como uma vocalidade-bicho se faz encarnada na voz? De que modo podemos acessar
a vocalidade-bicho no âmbito das artes cênicas?
Algumas possíveis respostas ou impulsos para a criação de uma vocalidade-bicho
emergem inspiradas em Rolnik (2002) a partir do trabalho de Lygia Clark quando apontam para
o constante processo de devir-outro presente na criação do artista. No âmbito da voz nas artes
cênicas, se faz necessário deixar nascer e morrer vozes no movimento da criação, enfrentar o
bicho para nascer outras vozes, experienciar o trágico ao vivenciar estados intensivos de um
corpo-vocal, corpo este embebido de sentidos sonoros, encarnado de outras vozes, outras
vocalidades-bicho. Neste processo, um estado de arte-invenção é convocado a dar existência ao
movimento criador de vocalidades poéticas nas artes da cena.
A vocalidade-bicho é sempre um pedido, um grito por um corpo-vocal outro, que a força
do hábito, muitas vezes não deixa por-se em existência. Essa tensão necessita da experiência de
dores e alegrias que podem surgir ao habitar outros lugares da voz, vibrações em outros espaços
de ressonâncias, outros ajustes musculares, respirações outras que trazem encontros com
imagens e sensações outras que borram ou desfazem registros já habitados.
Tais qualidades vocais, muitas vezes estão cristalizadas, fixadas por serem socialmente
ou artisticamente aceitas como padrão do correto, do fora do erro, que, muitas vezes, possuem
uma estruturação que não é nossa e que tornam rígidas as possibilidades de invenção e
conhecimento de nós mesmos por meio do encontro com a nossa própria vocalidade. Portanto,
o processo de criação da vocalidade poética da cena, necessita dar ouvidos à vibração do grasnar
do bicho, escutar as diferenças intensivas que vibram no esperneio do corpo-bicho que
“entrega-se ao festim do sacrifício. Então, como uma gigantesca couve-flor, abre-se seu corpo-
ovo, de onde nascerá junto com sua obra, um outro eu, até então larvar.” (ROLNIK, 1996, p.2).
A vocalidade-bicho brota de forças intensivas que operam no corpo a partir do choque,
do contato, da fricção com outro corpo ( humano ou não-humano), encarnando um estado
inédito no corpo-vocal. Esse é o corpo-vibrátil citado por Suely Rolnik (2000), cujo contato
com o outro mobiliza afetos tão mutáveis quanto as múltiplas variedades que constituem a
alteridade. No plano do corpo vibrátil, que é, segundo Rolnik (1996), esta outra dimensão dos
processos subjetivos diferente de um “eu” como entidade fechada em si mesma e imune aos
seus efeitos de movência da alteridade:
83
84
Na relação entre a subjetividade e o mundo, intervém algo mais
do que a dimensão psicológica que nos é familiar. Estou chamando de
psicológico, o eu com sua memória, inteligência, percepções,
sentimentos, etc. – nosso operador pragmático, que permite nos
situarmos no mapa dos significados vigentes, funcionarmos nesse
universo e nos movermos por suas paisagens. Esse “algo mais” que
acontece em nossa relação com o mundo, se passa numa outra dimensão
da subjetividade, bastante desativada no tipo de sociedade em que
vivemos, dimensão que proponho chamar de “corpo vibrátil”. É um
algo mais que captamos para além da percepção (pois essa só alcança o
visível) e o captamos porque somos por ele tocados, um algo mais que
nos afeta para além dos sentimentos (pois esses só dizem respeito ao
eu) (ROLNIK, 2002, p.270-271).
85
existência, ou, podemos dizer subjetivas composições que geram estados inéditos, estranhos
daquilo que identificávamos como nossa figura momentânea. Portanto, nosso contorno é
rompido e, no caso desta pesquisa, nossa forma habitual de vocalizar é rompida, ficando
desestabilizada a unidade do “eu” e nos colocando a exigência de criação de um novo corpo-
vocal (com diferente modo de agir, de se relacionar, de sonorizar etc...), encarnando este estado
inédito que atravessa o corpo, exigindo assim um devir outro-sonoro.
Há múltiplos modos de subjetividades possíveis. A dimensão psicológica do
“eu”pragmático enquanto território estável, que permite ao sujeito situar-se nos códigos sociais
vigentes, é apenas uma dimensão da subjetividade. Uma outra dimensão da subjetividade que
se faz encarnada, menos óbvia como citado anteriormente, e que Rolnik chama de corpo
vibrátil, opera a partir das relações intensivas conectadas com os diversos ambientes da vida,
gerando uma realidade sensível e corpórea invisível (podemos, na realidade, pensar que é supra-
visível, uma realidade que amplia o visível) e tão real quanto a realidade visível. Ora, a
dimensão do corpo-vibrátil tem relação com algo que captamos para além da percepção
(entendida por Rolnik como ‘mapa de sentidos de que dispomos’), como algo que estranha o
que já nos é conhecido. Mas este além tem a capacidade de nos tocar, um algo mais que nos
afeta para além dos sentimentos de que dispomos. Esse algo mais que captamos está no nível
das sensações corpóreas. São essas as infinitas possibilidades de sensações encontradas pelo
corpo-vocal que contaminarão as qualidades de emissões vocais geradas pelo corpo em
diferentes frequências de vibrações sonoras. Nas palavras da autora:
Atualmente, de acordo com Rolnik, nos deparamos com uma situação paradoxal. Com
as novas tecnologias de comunicação e informação, temos acesso a uma multiplicidade de
fluxos do planeta inteiro, provocando hibridizações, que vibram no corpo fazendo grasnar o
nosso corpo-bicho. No entanto, ao mesmo tempo, vivemos um esmaecimento do corpo-vibrátil,
86
uma vez que as nossas subjetividades são orientadas, impregnadas por apelos mercadológicos
e tomadas estas como principal dispositivo de reconhecimento social. A subjetividade
mercadológica é constituída por “imagens de formas de existência glamourizadas, que parecem
pairar inabaláveis sobre as turbulências do vivo. A sedução destas figuras mobiliza uma busca
frenética de identificação, sempre fracassada e recomeçada”(ROLNIK, p. 03)1. Portanto, no
atual sistema de fabricação de “subjetividades de mercado”, nos permitimos pouco
experimentar, inventar, sair nos cânones socialmente pré-estabelecidos, para poder deixar que
as intensificações da vida aconteçam no corpo-vibrátil, ficando essa possibilidade, muitas
vezes, limitada apenas ao campo da arte.
Acredito que tanto na arte como no nosso viver no dia a dia, como também em situações
de ensino e aprendizagem, muitas vezes, somos regidos por sistemas identitários que
uniformizam nossas subjetividades. Esses sistemas agem sob o regime exclusivo de um mundo
representativo, que esteriliza nosso poder transformador, não nos deixando entrar em choque
com a vida, com o ambiente, com ideias outras, com questões que atravessam um determinado
encontro de contextos. Acredito também numa potência poética da experiência artística, assim
como na potência da vida que pulsa na experiência, convocando corpos ao contágio do
encontro, a aberturas na percepção pelo contato.
1
Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. Disponível em: http://caosmose.net/suelyrolnik/
Acesso em: março de 2014.
2
O corpo vibrátil de Lygia Clark. In: Caderno Mais, Folha de São Paulo. São Paulo. Abril, 2000.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/indices/inde30042000.htm. Acesso em: março de
2014.
87
gerado a partir da própria experiência do mesmo com o material proposto pela artista para
acionar o corpo-vibrátil do espectador. No caso da presente pesquisa, a postura de Lygia Clark
traz provocações para a minha reflexão enquanto pesquisadora/professora/propositora do
laboratório prático desta pesquisa, no qual, diferente de estabelecer uma relação de certo ou
errado, a partir de padrões vocais, de qualidades sonoras, a inventividade vocal foi o lugar
propositivo para o trabalho em cada cena, a partir de motes de criação diferenciados.
No caso do laboratório referido neste capítulo, o mote para a criação foi a “vocalidade-
vaca”, no qual incitou-se nas alunas-atrizes a coragem de expor-se ao grasnar do bicho, não
em seus clichês figurativos, mas nas suas outras possibilidades expressivas, levando o corpo-
vocal a outras intensidades que, muitas vezes, elas ainda não tinham sido experimentadas em
suas vidas. Neste contexto, foi levar as atrizes, por meio de proposições de exercícios, às
condições para esse mergulho, deixando que outras sonoridades nascessem e que outras
morressem no ato de experimentar, acessar uma vocalidade outra, deixando um novo ovo-
sonoro brotar.
88
“para que tudo na realidade seja processo” (ROLNIK, 1996, p.7), no qual novas composições
de forças o corpo vibrátil vai vivendo ao longo do processo.
89
90
Fig 14 – Corpo –Bicho. Fotografia de Ângela Deyva – processo de ensaio de Água, flores e anjinhos – por Fábio
José de Souza
91
O que temos de bicho? O que temos de vaca? O que a mulher tem de vaca? O que o
texto “Flores D’América” tem de vaca? O que o laboratório de criação “Vocalidades Poéticas”
tem de bicho?
O que importou nesta etapa do processo criativo foi a relação estabelecida entre as
atrizes e o texto, o experimentar, o atualizar no corpo da palavra aquela sonoridade inventada
no ruminar dos fonemas da palavra e neste contato, acessar texturas no ato de cortar, molhar,
saborear, expulsar: um mosaico infinito de combinações sensoriais acessadas por cada atriz
para dar existência à palavra vocalizada na cena.
América: Aaaadasseelaaa!
A linguagem escrita passou a ser material sonoro para a aquisição de uma outra
linguagem, a linguagem da cena. Percebemos em alguns textos contemporâneos como o de
dramaturgo potiguar João Denys, ou do autor teatral francês Valère Novarina, citando apenas
93
alguns exemplos, um investimento na corporeidade da escrita, no qual as palavras estão
organizadas de uma maneira aberta para o lugar do sensível. Frases, palavras utilizadas como
material. Não se trata somente de jogos rítmicos sonoros no texto em um formalismo banal,
mas de texturas sonoras que interrogam os nossos sentidos e, a partir dessas forças sinestésicas,
sentidos são inventados.
Um corpo que se abre e se fecha, que se conecta sem cessar com outros
corpos e outros elementos, um corpo que pode ser desertado, esvaziado,
roubado da sua alma e pode ser atravessado pelos fluxos mais
exuberantes da vida. Um corpo humano porque pode devir animal,
devir mineral, vegetal, devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro
movimento (GIL, 2013, p.53).
95
4.3 A presença do ritual.
José Gil (2013) traz para o corpo do seu pensamento filosófico uma descrição
etnográfica do ritual terapêutico entre os Wolof do Senegal3. Segundo o filósofo, em múltiplos
povos, as danças terapêuticas visam à cura por meio do estado de transe. E, no ritual dos Wolof,
o transe é alcançado pela dança e por outros procedimentos e, também, o paciente só sobrevive
por meio da desestruturação do corpo-organismo:
3
Etnia do Senegal estudada pelo etnólogo Andràs Zempléni, no qual o transe é obtido também pela
dança (Gil, 2013, p.57).
96
sonora atualizada no corpo-vocal - um corpo de emoções ou de intensidades jorradas em som
que vibra na pele. É essa a vocalidade-bicho ou devir-outro sonoro, movido pelo desejo de
experienciar no corpo da palavra, no corpo da voz, no corpo desta pesquisa.
Uma viagem tão intensa a este além da representação que, por uma
questão de prudência, Lygia deixava uma pedrinha na mão do
receptor/paciente durante toda a sessão, para que pudesse, à exemplo de
Joãozinho e Maria, encontrar o caminho de volta. Volta para o familiar,
o conhecido, o doméstico; volta para a forma, a imagem, o humano - a
"prova da realidade", como se referia Lygia a este aspecto de seu ritual
(ROLNIK, 1996, p.4).
97
98
Fig 15- Palavra Selvagem. Manuscritos do diário de bordo de Roberta Bernardo (os dois primeiros) e de Raquel
Capelo (os três seguintes), escritos durante o laboratório “ Vocalidades Poéticas”. Teatro Universitário-UFC, 2013.
4.4 Expirações sonorizadas.
4
Neste texto, chamamos de base as diferentes posições a partir do contato estabelecido entre o corpo
com a superfície durante a movimentação tais como: base deitada, sentada, decúbito dorsal, decúbito
ventral, decúbito lateral, entre outros.
99
outro, de um deslizar da voz em glissandos5 ascendentes e descendentes. Neste momento,
buscou-se uma vocalidade plástica, maleável e sensível.
Uma vez no nível alto, todas as alunas- atrizes na posição “em pé”, passamos para outra
proposição, no intuito de ativar a experimentação no corpo de um fluxo expiratório com um
maior jato de ar. Mostrei para as alunas-atrizes uma sequência de ciclos de movimento
expiratório-inspiratório, no qual elas deveriam lançar jatos de ar no espaço em direções variadas
acompanhados de movimentos precisos de olhar e membros superiores para o ponto de direção
acionado. Este exercício foi realizado com uma base de pés enraizados e com flexão de joelhos.
É um exercício que gera uma intensificação do aquecimento do corpo como um todo no espaço
e uma ativação, uma necessidade do corpo de trabalhar uma maior quantidade de ar. A partir
desta ativação de energia corpórea, foi solicitado que as alunas-atrizes experimentassem deixar
vibrar nesse fluxo de energia expiratória o som de vogais (/a/,/e/,/i/,/o/,/u/) e que aproveitassem
todo o sopro expiratório para sonorizar cada som vocálico.
É importante ressaltar que neste nível da proposta de exercício, foi nítida uma qualidade
de presença sonora outra, a partir da ativação da respiração. Porém, acredito que o fato de
direcionar o ar, ter a presença do olhar no exercício, ter a necessidade de um corpo inteiro
lançando esse fluxo aéreo, transforma a proposta do lugar de um exercício mecânico, que olha
o exercitar da respiração em um isolamento do todo do corpo que respira, sem perceber a
especificidade contextualizada do ato de respirar do corpo que gera uma cadência de
reverberações de ativações no mesmo. Este processo trouxe diferentes possibilidades
expressivas, tornando o exercício do respirar, do lançar e receber ar do ambiente, um ato de
criação de estados outros no corpo que respira. Lembremos de Artaud (1984) quando fala que
o ator é como um atleta, mas que trabalha com a sua musculatura afetiva e esta pode ser ativada
pela respiração:
5
Glissando é uma passagem suave de uma altura sonora a outra. Um deslizar de tonalidades dos
graves para os agudos ou dos agudos para os graves.
100
musculatura da cintura pélvica e abdominal ser acionada no movimento de sonorização.
Algumas palavras utilizadas para o trabalho foram: maledita, sangue, lama e arranca. Abaixo
uma tentativa de expressar visualmente sonoridades vocalizadas pelas alunas-atrizes durante o
exercício:
-Inspira- MaaAAAA
Inspira – leeEEE-
Inspira –diiIII
–Inspira - taaAAA
SSSan à Ã
gueEEEE
laaaaãã
MMaaaÃAAA
Além de ativar respirações que impulsionassem afetos a partir da vibração no corpo sons
de vogais, sílabas e palavras do texto, este exercício com as palavras do texto buscou também
que as alunas-atrizes ganhassem intimidade com o mesmo, mas por uma via corpórea, pela ação
física da corrente aérea que lança, fricciona, corta, lambe cada fonema. É o sentido material
sonoro que gera possibilidades de sentidos outros, a vocalidade-bicho. Assim, o texto foi sendo
encarnado nos músculos, ossos, pele, fluidos do corpo-vocal, na materialidade fluídica da
imanência. Nesta pesquisa, o texto também é visto como um material fluido que vai ganhando
formas no encontro entre os corpos do processo, sem um psicologismo, a priori, ditando as
emoções a serem representadas.
Depois deste primeiro momento, voltamos para o chão de madeira do palco do Teatro
Universitário e, a partir de outros estímulos, nos lançamos na pesquisa de outros devires sonoros
impulsionados pela respiração. Neste momento, lançamos mão de ensinamentos a partir de
101
algumas técnicas somáticas desenvolvidas pela discípula de Laban6, a fisioterapeuta Irmard
Bartenieff (1900-1982), sua abordagem trata de “uma abordagem corporal que propõe uma
experiência senso-cinestésica e cognitiva, levando em conta a integração e a totalidade corporal,
assim como a conectividade dos movimentos” (CAETANO, 2012).
Foram feitos exercícios a partir dos padrões de desenvolvimento do movimento (etapas
de desenvolvimento e organização corporal a partir do sistema neuro-motor caminhando para
a complexidade do corpo), este processo foi por Bartenieff (FERNANDES, 2002) observado ,
sendo eles: exercício metade do corpo- em um rastejar como um réptil pelo chão; elas foram
estimuladas a desenvolver relações de olhar e deixar que sonoridades acontecessem a partir
desse estado, desse esforço de deslocamento. Este exercício ativou outras camadas de
vocalidades bicho, desta vez, inspiradas na experimentação do próprio animal (no qual cada
uma aluna trouxe para o seu imaginário encarnado o seu animal) em etapas diferentes do
desenvolvimento filogenético: um ser aquático, um réptil e, por fim os mamíferos, chegando na
vaca7, bicho sagrado que é referendado na dramaturgia de Flores D’América.
De pé, com o tronco curvado para frente, as alunas atrizes iniciaram uma pesquisa do
movimento da coluna, sentindo o peso da bacia, percepção de como se desloca, peso do corpo
e suas alterações de sensações, como olha como elas se olham a partir deste estado corpóreo.
Experimentação do tubo digestivo, boca, espinha neste estado de animalidade inventado em
cada corpo-vocal, deste modo, outra vocalidade por meio de um devir-bicho. Deixar a voz ir, a
partir da escuta do estado intensivo do corpo despertado por conexões, sensações. A partir do
devir-bicho vaca, um imaginário encarnado na voz se fez presente, isto difere de imagens
objetivas, representativas de sons de vaca ou do da referência direta da imagem visual da
mesma. Tratou-se de testemunhar vocalidades involuntárias que tinham urgência em reverberar
nos espaços do corpo-vocal, nos espaços da cena.
6
Rudolf Von Laban: dançarino, coreógrafo considerado como um dos maiores teóricos da dança do
século XX e como o “pai da dança-teatro”. Dedicou os seus estudos para a linguagem do movimento e
sistematização da mesma em aspectos relacionados a criação, notação e educação.
7
A vaca Benedita alimenta, amamenta as crias de América na peça “ Flores D’América” de João Denys.
102
processo chama-se “Salsa lateira”. Como o próprio nome já sugere, trata-se de uma música com
um ritmo frenético de salsa e unicamente percutida em objetos que sugerem sucatas de latas.
Esta música encontra-se no CD “Bahia Singular e Plural”. A música imprimia movimentos
telúricos no corpo das atrizes devido ao ritmo, melodia, intensidade e combinação de sons.
Sendo assim, a sua pulsação trazia um determinado tipo de movimento corporal, como um ritual
onde o corpo e o som estabeleciam uma relação de íntima consonância.
[...] essa música é voltada para a pulsação rítmica; nela, as alturas melódicas
estão quase sempre a serviço do ritmo, criando pulsações complexas e uma
experiência do tempo vivido como descontinuidade contínua, como repetição
permanente do diferente. (Por isso mesmo elas apresentam esse caráter
recorrente, que nos parece estático, mas é bem mais extático, hipnótico,
experiência de um tempo circular do qual é difícil sair, depois que se entra
nele, porque é sem fim.) A música modal participa de uma espécie de
respiração do universo, ou então da produção de um tempo coletivo, social,
que é um tempo virtual, uma espécie de suspensão do tempo, retornando
sobre si mesmo. São basicamente músicas do pulso, do ritmo, da produção
de uma outra ordem de duração, subordinada a prioridades rituais. Pois bem:
essas músicas não poderiam deixar de ter a presença muito forte das
percussões (tambores, guizos, gongos, pandeiros) [...] E é também um mundo
de timbres: instrumentos que são vozes e vozes que são instrumentos (vozes-
tambores, vozes-cítaras, vozes-flautas, vozes-guizos, vozes-gozo). Falsetes,
jodls (aquele ataque de garganta que caracteriza o canto tirolês e que está em
certas músicas africanas), vozeios, vocalises, sussurros, sotaques, timbres
(WISNIK, 1989, p.40, grifo do autor).
Neste laboratório, outros sons permeados mais pela energia do animal-vaca se fizeram
presentes, liberados por meio do movimento-sonoro na própria carne de cada uma das alunas-
atrizes. Deste modo, a partir do acoplamento matéria-sensação-imagem, um imaginário sonoro
ativo presentificou-se no corpo-sonoro. Houve também, neste laboratório, relação de jogo entre
103
elas, como em um ritual, todas juntas em um círculo embebidas pela música percussiva que
tocava, buscavam um corpo-bicho a partir da mistura, da troca de energia entre elas. Desta
maneira, outros sons não figurativos do corpo-bicho-vaca foram sendo inventados na
experiência do corpo coletivo, impulsionados pela experimentação de animais a partir da
respiração, do seu peso, suscitando a vibração da voz em outros lugares de ressonância no
corpo. Todos esses estímulos eram impulsionados a provocar a voz, o bicho da voz no corpo
das alunas- atrizes.
A vocalidade-bicho deixou correr afetos libertados, entrou em contato com matérias
outras que promoviam um vibrar da voz- pensamento, emoção, madeira, antepassado,
imaginação... estamos falando de um corpo-vocal de emoções ou de um corpo-vocal de
intensidades. Sons que fazem vibrar a pele.
Nos diários das participantes, podemos perceber a impressão do laboratório “
vocalidade-vaca” a partir da percepção das mesmas:
104
Fig 16- Vaca. Manuscritos do diário es de bordo Gabriela Araruna (os dois primeiros), seguidos pelos manuscritos de Raquel
Capelo e de Angela Deyva critos durante o laboratório “ Vocalidades Poéticas”. Teatro Universitário-UFC, 2013.
A partir do território desta pesquisa, que é a voz em processo de criação nas artes da
cena, e que chamo na presente tese de “vocalidade poética”, podemos perceber algumas
implicações desta noção de voz a partir do estudo do corpo-vibrátil, corpo-bicho da psicanalista
Suely Rolnik. No presente texto fizemos cruzamentos práticos-teóricos no conhecimento da
voz contaminados pelo corpo-bicho apresentado por Rolnik, para tanto, foi feito um recorte na
parte do laboratório prático desta pesquisa , no qual tais cruzamentos foram evidenciados e
tornaram mais clara a prática desenvolvida, como também ampliaram as possibilidades de
ressonância do conhecimento da voz em processo de criação para outras instâncias pedagógicas.
Nesta perspectiva, podemos pensar a vocalidade-bicho como estados intensivos de vibração
sonora na presentidade do corpo-vocal. Ressalto a palavra presentidade para dar ênfase à
necessidade, na vocalidade-bicho, de escuta dos estímulos que atravessam o corpo no instante
presente. Estímulos estes, muitas vezes, no nível das sensações, algo que afeta, mas não temos
que necessariamente codificá-los em um entendimento lógico-racional, mas na sua potência de
marcar, contaminar, a partir da composição dessas condições à expressão da voz no ambiente
da cena. Para tanto, vozes-outras precisam ganhar forma, são as vozes do grasnar do bicho, que
enfrenta a morte para deixar nascer a potência sonora que pulsa por existência.
105
Esta é a vocalidade-bicho, que por sua vez, se faz intensa enquanto possibilidade de
entendimento do termo “vocalidade poética” na movência do seu termo como nos provoca Paul
Zumthor (2010). Sendo assim, a vocalidade-bicho invoca o devir outro-sonoro, aquela voz que
não pode ser vocalizada nas amarras do senso comum, é a voz bradando por encontrar o outro
nas qualidades expressivas que estão materializadas no corpo.
Podemos pensar também a vocalidade poética a partir das palavras de Lygia Clark
quando ela nos fala do “rito sem mito. Não mito transferente, exterior ao homem, mas a potência
de criação permanente de si e do mundo”. Isto que Clark nos fala, todo ser humano tem
virtualmente e o convite da vocalidade-bicho é justamente potencializar esse estado de
arte/invenção por via da experiência sonora, possibilitando assim, a vocalidade poética,
conexões com a potência poética da vida.
106
107
Fig. 17: Vocalidade-Bicho. Captura de imagem de gravação da apresentação de
água, flores e anjinhos. Por Fábio José de Souza, no Teatro Universitário. 2013
Rastro 5
Fig. 18: Desacostumar. Manuscrito do estudante Tarcísio Filho durante o processo de criação de “água, flores e
anjinhos”. Teatro Universitário, 2013.
O que é escutar nesta pesquisa? Escutar é uma alegria, é se deixar contaminar pelos sons
do mundo que nos envolve, dos jardins, das praças do lugar onde moramos, dos compartimentos
da nossa casa, das vozes de pessoas que estão perto e distantes de nós. Escutar é isso, mas a
escuta também pode nos trazer outras imagens, outros fonemas, outras palavras, outros
“acordes”. Escutar proporciona uma abertura para combinações infinitas. Escutar também tem
a ver com um cuidar de si. Aguçar a escuta é entrar em contato consigo mesmo, é também
perceber que fazemos parte de um movimento. Ou seja, entender a si mesmo como movimento,
como trânsito, como mudança. Movimento este possível pelo estado de escuta do corpo-
ambiente, corpo-mundo, corpo-som, corpo-cena. Assim como é necessária uma aprendizagem
para falar em cena, é necessária uma experiência e habilidade para escutar, afinar com o outro,
compor sons, vozes, falas... para também serem escutadas na cena, na vida. E para escutar como
se deve, com o corpo aberto para acolher o som, em um primeiro momento, é preciso ouvir o
silêncio ativo, um certo recolhimento:
108
[...] pouco a pouco os músculos e a mente relaxam e o corpo se
desenvolve, tornando-se gradualmente um ouvido. Atingindo
um estado de liberação dos sentidos (SCHAFER, 2001, p. 362).
109
O historiador cultural francês Roger Chartier (2002) quando nos relata sobre as
mudanças ocorridas no texto teatral desde os seus aspectos relativos a performance oral até as
suas formas estéticas impressas, coloca que existe uma oposição na perspectiva do texto ao
longo da história, há momentos em que o mesmo é percebido como um ‘acontecimento’ e em
outros como um ‘monumento’.
Para desenvolver esta hipótese, o autor busca entender na antiguidade a maneira pela
qual os textos circulavam e eram produzidos. A noção de autor, por exemplo, nasce na Grécia
antiga, oriundo da transposição dos cantos dos rituais dionisíacos para a forma textual destes
como poesia. Esta transformação de um ‘acontecimento’ ritual em ‘monumento’ poético teve
consequências consideráveis, que, segundo Chartier, a mais importante delas foi o
aparecimento de “certa clivagem entre as circunstâncias da enunciação concreta da obra [...] e
a cena ficcional da enunciação subentendida no próprio poema e que aludia a um momento
perdido” (CHARTIER, 2002, p.20). Ou seja, sua expressão presencial ritualística “não evocaria
mais o symposión dionisíaco, mas um festim imaginário” (CHARTIER, p. 20). A partir deste
momento, percebe-se a necessidade de que esta poesia (lembrança do momento performático)
seja atribuída a um único autor, instituindo neste ato também a aplicação correta e a imitação
de regras literárias pré-estabelecidas, transformando o que era ritual em ficção literária. Os
gêneros da literatura grega e romana nos mostram os primórdios desta relação da palavra para
ser dita e da palavra para ser escrita, melhor, para ser idealmente escrita, na passagem de um
efêmero acontecimento a um eterno monumento. A ode é um bom exemplo, que uma vez que
adquire um autor – termo chave nesta empreitada idealista –, adquire identidade, classificação
(gêneros literários), e parâmetros cada vez mais fixos de perfeição, para alcançar o belo, e não
só isso, para alcançar uma gramática universal, como nos lembra este mesmo autor.
A sonoridade no teatro nasceu da própria cena, como também pode ser inferido por meio
dos estudos de Chartier, quando relata que nos séculos XVI e XVII “a identidade coletiva das
obras [eram] bens pertencentes à companhia de teatro e não ao autor” (CHARTIER, 2002,
p.12.). No teatro de Molière, por exemplo, o texto falado nascia das experimentações, das
curvas melódicas e entonações de seus atores e não o contrário. A percepção e a representação
do escritor como autor, surgiu lentamente, principalmente em resposta ao mercado livreiro, que
explorou o sucesso de alguns diretores-dramaturgos, muitas vezes, corrompendo os escritos dos
mesmos. Isso provocou uma sobrevalorização deste artista como autor, tornando mais
importante o texto do que o processo de criação da cena, hierarquizando o fazer teatral, sendo
portanto mais importante o sentido semântico do texto que a musicalidade das vozes
110
experimentadas e inventadas pelos atuantes. Este são os meandros do textocentrismo que
subjugará todo o jogo corpóreo, seja imagético ou sonoro da cena, à força intelectiva da palavra,
indicando muitas vezes, sobretudo uma pulsão moralista. São essas vozes, falas, sons
inventados e escutados no tear da cena pelos atuantes que interessam para esta pesquisa,
sobretudo na sua força de ambiência sonora, que ressalta intensamente a potência de
‘acontecimento’ (parafraseando Chartier) das artes da cena.
O Teatrólogo alemão Hans-Thies Lehmann precursor dos estudos sobre teatro pós-
dramático afirma que “o novo teatro aprofunda apenas o reconhecimento, nem tão novo assim,
de que entre o texto e a cena nunca predomina uma relação harmônica, mas um permanente
conflito.” (LEHMANN, 2007, p.245). Esta perspectiva teatral rompe com uma visão
textocêntrica do teatro modificando a relação hierárquica do texto como condutor da cena e
perfeição como obra e linguagem, a medida que proporciona uma abertura do texto, a fim de
reconquistar para o teatro a sua dimensão de acontecimento como eram nos rituais dionisíacos.
Na perspectiva do Teatro pós-dramático, a relação do processo de criação da cena com o texto
é inteiramente diferente, o mesmo apresenta-se mais como material do que como obra acabada
a ditar o que fazer na cena. É a respiração, o ritmo, o acontecimento vocal encarnado que toma
a frente do logos:
O autor pontua que neste processo de significação do logos, o que acontece não é a sua
destruição, mas sua desconstrução poética. Diferente de representação de um conteúdo
linguístico dito pelo texto, se apresenta uma disposição de sons, palavras, frases, ressonâncias
conduzidas pela escuta da cena em processo e pelo desejo de composição, de pôr junto materiais
sonoros por princípios de consonância, dissonância, rupturas, fricções encontradas no processo
de criação que, no caso desta pesquisa se deu na polifonia de vozes das atrizes, em diversos
níveis de diálogos e escuta. De fato, é neste sentido que Lehmann pensa e arrisca o termo pós-
dramático, no sentido de uma corrosão (pode-se pensar com Chartier) da força normativa do
monumento do drama – do texto como centro da cena (textocentrismo) – e uma desdobrada das
artes da cena como artes do acontecimento, na sua força vibrátil (ROLNIK) entre a cena e os
espectadores.
111
É significativo perceber também nos escritos de Lehmann o uso do termo Paisagem
sonora. Para o autor, a noção de paisagem sonora está relacionada ao local onde acontecem
misturas: de texto, voz, ruído... evidentemente em um sentido diferente daquele do realismo
cênico clássico, no qual temos o célebre exemplo da versão naturalista de paisagem sonora
composta por sons de fundo de grilos, sapos e passarinhos nas encenações do diretor
Stanislávski dos textos de Tchekhov1, na tentativa ilusionista de representação de uma realidade
externa na cena.
1
O diretor teatral Russo Constantin Stanislávski é considerado até os dias de hoje como um dos mais importantes
artistas teatrais do final do século XIX e início do século XX, sobretudo pela sua contribuição para a arte do ator,
gerando toda uma terminologia que acabou sendo, muitas vezes, considerada como um sistema de preparação para
o ator, sobretudo de estilo realista (realismo-psicológico), salvo sua última etapa, das ações físicas, que foi
retomada por diversos diretores do século XX, expandindo o estilo realista para o qual foi pensado inicialmente.
Stanislavski ficou famoso pelo estilo de cena e de interpretação realista que imprimiu aos textos do dramaturgo
russo Anton Tchekov.
112
O músico Murray Schafer, interessado no estudo das relações e mudanças da paisagem
sonora no decorrer da história e os modos como essas mudanças podem interferir nos nossos
comportamentos, nos mostra também como o mundo está cada vez mais povoado por sons,
mas, ao mesmo tempo, a variedade de alguns deles desaparece. Há muitos sons em extinção na
paisagem sonora atual e, a maioria deles são sons da natureza. Destes sons, cada vez mais, nos
tornamos alienados. “Sons manufaturados são uniformes e, quanto mais eles dominam a
paisagem sonora, mais homogênea ela se torna” (SCHAFER, 2001, p.12)”. Mas, segundo o
autor, o que é paisagem sonora?
2
Importante escola de arte do século XX, sob liderança do arquiteto Walter Gropius. Esta escola reuniu alguns
dos maiores pintores e arquitetos da época (Klee, Kandinsky, Moholy-Nagy, Mies van der Rohe) a artesãos de
reconhecida competência. “ A sinergia interdisciplinar das habilidades dos membros permitiu estabelecer um novo
campo de estudos graças a criação da disciplina chamada projeto industrial. A Bauhaus levou a estética à
maquinaria e à produção de massa (SCHAFER, 2001, p.19).
113
atuar na educação pública de uma maneira geral conscientizando a importância do ambiente
sonoro na vida do ser humano e como o mesmo também é compositor desta paisagem mundial.
As suas próprias composições apontam para esse lugar, que proporciona às pessoas a percepção
do quanto a paisagem sonora é dinâmica, mutante e, assim, possível de ser transformável. Sobre
a sua atuação na educação pública, aspecto importante no seu trabalho, Schafer nos provoca a
pensar que
Um outro princípio de trabalho trazido pelo autor é a noção de limpeza dos ouvidos que
é um programa sistemático de exercícios que visa o treinamento para uma escuta de maneira
mais discriminada dos sons. Tais exercícios objetivam fazer com que o outro note sons que
nunca havia percebido, ouvir intensamente sons do seu ambiente e também perceber os sons
que nós mesmos colocamos no ambiente, proporcionando a clariaudiência e não ouvidos
amortecidos. Abrir os ouvidos e estimular a clariaudiência significa literalmente o sentido de
audição clara. Schafer chama a atenção de que o modo com o qual ele emprega esse termo não
é nem um pouco místico, simplesmente se refere à excepcional habilidade auditiva, tendo em
vista particularmente o som ambiental. A capacidade auditiva pode ser treinada, para se chegar
ao estado de clariaudiência por meio de exercícios de limpeza de ouvidos.
114
Ao contrário dos outros órgãos dos sentidos, os ouvidos
são expostos e vulneráveis. Os olhos podem ser fechados, se
quisermos; os ouvidos não, estão sempre abertos. Os olhos
podem focalizar e apontar nossa vontade, enquanto os ouvidos
captam todos os sons do horizonte acústico, em todas as
direções (SCHAFER, 1991, p.67).
Fig. 19: O som do outro. Manuscrito da aluna Hylnara Vidal durante o laboratório “Vocalidades Poéticas”. Teatro Universitário, 2013.
115
5.3 Quem vai botar água nas flores dos anjinhos?
Silêncio.
Diz John Cage – o silêncio, não existe isso. (Pausa de trinta segundos e ouçam.) [...]Se
é assim, silêncio é ruído? (Pausa de trinta segundos) [...] Silêncio é uma caixa de possibilidades.
Tudo pode acontecer para quebrá-lo (SCHAFER, 1991, p.71).
3
Apresentação pública do laboratório prático desta pesquisa “vocalidades poéticas” como parte do processo de
criação, no qual foram realizadas quatro apresentações no mês de setembro de 2013 no Teatro Universitário (TU)
da Universidade Federal do Ceará.
116
Exercícios4 feitos buscando a procura de sons na paisagem sonora da qual fazíamos
parte durante os nossos laboratórios realizados no palco do Teatro Universitário e também em
suas áreas externas, ao ar livre apresentando partes com jardins e também parte próxima a rua5:
1. Escrever todos os sons que estavam ouvindo no momento. Depois trocar com o
grupo, lendo em voz alta os sons observando as diferenças de escuta. Para este
exercício, Schafer salienta que todos terão uma lista diferente, portanto a escuta é
pessoal. Percebemos que este é um bom exercício para cultivar o hábito da escuta,
não só na sala de ensaio, mas em outras instâncias do cotidiano.
2. Depois de feita uma lista com os sons escutados, categorizar os sons de acordo com
a sua origem: sons da natureza, sons tecnológicos, sons produzidos pelo ser humano.
Depois desta percepção, aguçar a percepção dos sons produzidos pela própria
pessoa, normalmente são sons muito sutis que são percebidos, tais como respiração,
batimento cardíaco.
3. Depois da discussão, foi sugerido que elas categorizassem os sons ouvidos em: sons
que continuaram a ser ouvidos incessantemente, ou seja sons contínuos (C), sons
que ocorreram mais de uma vez, ou seja, que se repetiram (R), e os sons que foram
ouvidos apenas uma única vez (U). Foi interessante perceber que, quando alguns
desses sons ouvidos foram experimentados nas vozes das alunas-atrizes, com a
divisão de quem faria o som contínuo, os sons que se repetem e os sons únicos, ficou
claro durante a experimentação sonora, que esta divisão sonora traz um ganho
quando pensamos em camadas de texturas sonoras em diálogo. A sonoridade
realizada antes desta indicação que parecia plana, começou a ganhar relevos a partir
deste propósito de improvisação que nos acompanhou em alguns laboratórios desta
pesquisa.
4
Esses exercícios foram retirados do livro: SCHAFER, Murray. Educação Sonora: 100 exercícios de escuta e
criação de sons. São Paulo: Melhoramentos, 2009.
5
O Teatro Universitário da Universidade Federal do Ceará fica localizado na Avenida da Universidade, bairro
do Benfica, Fortaleza- Ce.
117
círculo no centro da folha e colocar dentro do mesmo todos os sons produzidos pela
própria pessoa. Colocar todos os outros sons de acordo com a distância e a direção
de onde eles vieram até o local que escuta.
5. Passeio sonoro: foi proposto que cada grupo de três pessoas criasse um trajeto pelo
espaço da área externa do Teatro Universitário e, a medida que algum componente
do grupo achava um som interessante, esse som era apontado para que os demais o
percebesse no percurso. Esses sons poderiam ser desde os sons dos pisos de
diferentes superfícies (madeira, grama, concreto...) ao longo do percurso, a sons da
natureza, tecnológicos (carros, ar condicionado a sons humanos.
Um dos grupos percebeu e levou a proposta até o final do seu percurso a observação de
sons de água sonorizadas em diferentes materiais ao longo do percurso e a partir desta escuta,
os mesmos criaram uma sequência sonora para essa experimentação. Nada Melhor do que as
próprias palavras de um dos integrantes do grupo para falar sobre as marcas deixadas por essa
experiência de escuta:
118
119
Fig. 20: Viver aquele lugar-Ser Água. Manuscrito do estudante Tarcísio Rocha
Partimos deste corpo água encarnado a partir de estalidos perfurantes de gota d’água,
do jorrar nas torneiras, do escorregar da água no telhado... deixando que experiências acolhidas
na escuta da paisagem do ambiente no qual estávamos inseridos, fossem transfiguradas na cena
sonora criada. É conhecer o mundo pela experiência e ela própria (a experiência verdadeira)
transborda em imaginações. Neste sentido podemos escutar a música das pedras, a sonoridade
dos anjinhos. A percepção de sons da água, elemento trabalhado no processo de criação pela
sua dinâmica fluida foi de grande importância para trazer para o laboratório uma outra energia,
contrastando com a energia telúrica que atravessa boa parte do texto Flores D’América.
Fig. 21: Água. Fotografia de Gabriela Araruna durante a instalação de “água, flores e anjinhos”- por Fábio Souza.
Manuscrito de Hylnara Vidal durante o laboratório “Vocalidades Poéticas.
A textura sonora originada a partir da pesquisa da água durante o laboratório fez surgir
um desenho de cena-instalação que chamamos de “vozes da água”, cena esta que fez parte da
apresentação realizada e já citada anteriormente. A cena começava com uma provocação em
forma de pergunta “Quem vai botar água nas flores dos anjinhos”. Silêncio. Uma aluna-atriz
120
dirige-se ao vaso translúcido vazio, e começa a deixar cair um fio de água que aos poucos vai
ganhando mais intensidade. Esse é o único som no ambiente. Depois de um tempo, outros sons
vão entrando espaçadamente na ambiência sonora: sonoridade feita pelas alunas-atrizes a partir
do movimento de um baú pequeno de madeira com grãos de arroz, manuseio de um saco
plástico e também um pau de chuva. Uma aluna-atriz trabalhou a partir de sons vocais da água
pesquisados no laboratório do percurso sonoro. Aos poucos, palavras do texto Flores
D’América são acrescentadas à paisagem sonora tendo como indicação para a experimentação
dizer as palavras escutando, dialogando com os sons dos objetos já existentes na paisagem,
variando a duração e a intensidade da emissão e tendo como imagem cidades fantasmas
inundadas pelo mar. O material textual trabalhado foi: Santa Luzia, os muros de Alexandria,
Arizona, as beiras de Pajeú, Campos Verdejantes, Salamandra, Angicos, procurando Brejo
Santo. Em cima do Monte Horeb, nas pedras do Tororó, Catolé, Mortos de Exu, Mina Velha,
Novo Amparo e Bom Conselho. Olho d’água e Carnaúba. Solidão (DENYS, 2005).
Fig. 22: Vazio. Fotografia de Raquel Capelo durante a instalação de “água, flores e anjinhos”- por Fábio Souza.
Manuscrito de Raquel Capelo durante o laboratório “Vocalidades Poéticas. Teatro Universitário, 2013.
121
Outro ponto experimentado a partir da utilização de objetos foi a relação dos mesmos
com o corpo-vocal das alunas-atrizes. Não se tratava de apenas executar sons com os objetos;
traçando paralelo com o som vocal, cuja qualidade está em relação com o estado de escuta e
com a dinâmica de movimento do nosso corpo no momento da emissão. Foi solicitado às
alunas-atrizes que buscassem gerar sonoridades nos objetos, experimentando o manuseio destes
como uma extensão do seu próprio corpo.
A utilização dos objetos como extensão do corpo, permitiu que, em outros encontros,
fosse possível colocá-los em relação também com sons vocais produzidos, conjugando voz com
objetos sonoros como fonte sonora e criando ambiências, nas quais a relação entre o som vocal
e o som do objeto era dialógica, sendo quase imperceptível a noção de onde começava um e
terminava o outro.
A paisagem sonora “Vozes da água” foi ganhando intensidade e velocidade até que uma
caixa cheia de moedas foi esparramada na paisagem sonora da cena. Este foi o marco de
finalização da cena-instalação para dar seguimento à próxima ambiência sonora.
Se a ação exigir música, ela será produzida pelos únicos meios de que
o ator dispõe: sua voz, sua capacidade de tocar um instrumento; e as
imperícias ou imperfeições da sua execução instrumental ou do seu
canto tornar-se-ão elementos comoventes, expressivos da
vulnerabilidade humana que ele procura manifestar (ROUBINE, 1998,
p.164).
122
No intuito de pesquisar outros sons de qualidades específicas, foram coletados pelas
alunas objetos sonoros que despertassem curiosidade para as mesmas pelas suas qualidades
sonoras. Visto isso, foi válida a experimentação com estes materiais sonoros, visando a
ampliação da experiência tanto vocal [a partir da escuta do timbre e textura sonora de objetos],
como também a expansão da percepção das alunas em relação às possibilidades de interação
dos seguintes materiais: vozes, falas, cantos e sonoplastias durante a composição da paisagem
sonora na cena.
Cada aluna-atriz foi solicitada, nesta etapa da experimentação, a trazer objetos sonoros
pessoais guardados ou em alguma parte de suas casas ou mesmo encontrados na rua, que
fizessem alguma referência ao universo feminino familiar- algo que lembrasse as mães avós,
irmãs e que não necessariamente tivessem função sonora. Sendo assim, o encontro com os
materiais sonoros pesquisados no laboratório tinha uma delimitação de campo afetivo e
imaginário, o que possibilitou a busca de metáforas sonoras, ampliação e exploração das
possibilidades e potências de diálogo corpóreo com esses materiais sonoros que sugeriam
memórias.
Fig. 23: Mala de sonoridades. Fotografia da instalação de “água, flores e anjinhos” - por Fábio Souza. Teatro Universitário, 2013.
123
O laboratório de pesquisa prática vinculado a este doutorado buscou também o diálogo
com outros professores-pesquisadores da área de voz, corpo e música, no intuito de promover
a troca e intensificação dos saberes em processo de maturação nesta pesquisa. Por conta da
necessidade e interesse do laboratório de experimentar também um encontro com a plateia a
partir de uma dramaturgia cênica que se põe em processo e também disponibilidade de tempo
dos professores, foi necessário que no laboratório existisse mais tempo para que eu com as
alunas-atrizes trabalhássemos a partir de algumas imersões em ambientes sonoros das cenas-
instalações que mais percebíamos como intensas. Portanto, tivemos dois momentos de troca
com os professores- pesquisadores Consiglia Latorre e Erwin Schrader6 que participaram do
nosso laboratório contribuindo de maneira apurada com noções musicais a partir do que
estávamos trabalhando no momento em cena.
A professora Consiglia foi convidada para trazer contribuições sonoras a partir da sua
vivência com os estudos das práticas de improvisação sonora tendo como base Murray Schafer,
teórico que a mesma vem pesquisando. A partir do material sonoro descrito acima e que
estávamos trabalhando, já naquele momento, inseridos em um percurso cênico no qual as
meninas brincavam e descobriam uma mala velha cheia de coisinhas, lembranças sonoras, a
professora Consiglia propôs os seguintes exercícios de escuta de Schafer: escolher um dos
objetos sonoros da mala, colocá-lo em um canto do espaço e de olhos fechados deveriam
reconhecê-lo. Os próprios objetos da cena foram sonorizados e cada uma da alunas-atrizes tinha
que reconhecer o objeto que havia escolhido. Consiglia salientou a importância de uma apurada
consciência da qualidade sonora dos objetos que estavam trabalhando para que elas os
diferenciassem e ao mesmo tempo com mais propriedade dos materiais sonoros com os quais
estavam trabalhando nas improvisações.
Um outro exercício feito por nós foi a espacialização sonora dos objetos em movimento.
Para desenvolver a noção de espacialização do sons e reconhecimento do mesmo, um dos
exercícios propostos por Schafer é: de olhos fechados, uma pessoa faz soar um objeto sonoro
e, ao mesmo tempo movimenta o mesmo pelo espaço (perto, longe, diagonal alta, baixa) e a
pessoa deitada, de olhos fechados vai acompanhando apontando para a direção do som,
visualizando e percebendo percursos sonoros. Acrescentamos em etapa posterior deste
6
Primeiramente será relatada a intervenção da professora Consiglia Latorre e no laboratório ‘coro de
cangaceiras’ falaremos sobre a intervenção do professor Erwin Schrader.
124
exercício o deixar-se levar do corpo no espaço a partir da escuta sonora da direção, velocidade,
timbre, intensidade do som percebido.
A cena-instalação “A mala guardada de coisinhas sonoras” era pura textura de sons com o
brilho dos metais predominantes oriundos dos anéis, pulseiras, argolas e colares, dos papéis dos
livrinhos de cordéis guardados lançados no ar e caindo no chão, os sons mais secos dos
materiais sonoros de plástico, do terço de madeira deslizado no palco.
E, bebendo na tradição dos sons que acompanham o corpo, como por exemplo, os sons dos
sapatos, das pisadas dos pés, os sininhos de tornozelos das mulheres persas e árabes....
colocamos para essa cena, miçangas no xale trazido em outro momento do processo, fazendo
assim uma indumentária sonora que, entrava na paisagem sonora com o movimento de
sobressalto de um das meninas que dançava com o xale e compondo também a ambiência da
cena. E no final, só restavam pedaços sonoros saindo das caixinhas de música que iam
silenciando cada uma no seu tempo enquanto as meninas da cena giravam, dançando com os
seus cabelos feitos de vestidos longos esvoaçantes no ar, um sonho de “deixar crescer até
morrer” (DENYS, 2005, p.83). No embalo da sonoridade das caixinhas de música quatro das
meninas alunas atrizes experimentavam como dizer partes do texto a quatro vozes:
Paisagens sonoras foram criadas dentro do propósito de uma mala cheia de curiosidades
sonoras femininas. Elas brincavam com gana de encontrar sons, lembranças: ora a textura criada
era mais caótica por meio da interação dos variados objetos sonoros tocados em forte
intensidade, que caminhavam para uma sonoridade decrescente para suave. Era uma criação
que dependia de uma escuta coletiva que gerava também uma textura sonora. Sentidos sonoros
em objetos do cotidiano que usualmente não traziam referências sonoras foram criados pela
imaginação das alunas-atrizes. Adquirindo comportamento semelhante ao da criança, elas
criaram um outro mundo, pela transposição de objetos, para uma nova ordem simbólica.
Mundos são criados com objetos comuns, como nas brincadeiras das crianças
e nos jogos improvisados. Estamos lidando com um teatro em um estágio
embrionário, em meio a um processo criativo no qual o instinto desperto
escolhe espontaneamente os instrumentos de sua mágica transformação. Um
homem vivo, o ator, é a força criativa de todas as coisas (GROTOWSKI,
1987, p.59).
Fig. 25: Estado de Música. Fotografia de Gabriela Araruna e Hylnara Vidal durante
a instalação de “água, flores e anjinhos”- por Fábio Souza. Manuscrito de Hylnara
Vidal durante o laboratório “Vocalidades Poéticas”. Teatro Universitário, 2013.
127
5.5 Coro de Cangaceiras.
7Uma classificação mais detalhada e completa pode ser adquirida em livros de fonética como: RUSSO, Ieda;
BEHLAU, Mara. Percepção da Fala: Análise Acústica do Português Brasileiro. São Paulo: LOVISE, 1993.
128
Murray Schafer (1991), no seu texto chamado “Quando as palavras cantam” propõe um
exercício em que cada uma escreve uma biografia do alfabeto a partir dos fonemas do seu
próprio nome. O próprio autor sugere algumas imagens para cada fonema, como sugestões de
como podemos descobrir camadas de sentidos para os sons da palavra:
Fig. 26: Passa Exu. Manuscrito de Hylnara Vidal durante o laboratório “Vocalidades Poéticas. Teatro Universitário, 2013.
129
O outro professor convidado que participou do Laboratório foi Erwin Schrader.
Tivemos dois encontros com o mesmo no qual ele partiu da teoria da música explicando
parâmetros do som: intensidade, altura, timbre, duração, direção, ritmo. Quando o professor
chegou, estávamos fazendo aquecimento vocal com sons de humming, buscando variação de
altura e intensidade. Em seguida, pedi para que elas trouxessem uma canção que lembrasse
alguma referência feminina da infância de cada uma (avó, mãe, irmã mais velha...) e
primeiramente experimentassem cantar a melodia lembrada com Bocca Chiusa8 (ou humming)
e depois apenas com as vogais da própria letra da canção em um tempo mais dilatado enquanto
realizavam também movimentos corporais de expansão e retração da kinesfera9 com percepção
do movimento respiratório também de retração e expansão.
Segundo Schafer (1991), som é algo que corta o silêncio com a sua vida vibrante.
Timbre está relacionado a cor do som. Ex: se um violão, um saxofone, uma clarineta tocarem
uma mesma nota, é o timbre que vai diferenciar o som de cada instrumento. Outras explicações
podem ser encontradas em livros de teoria da música mas as conceituações propostas por
Schafer contribuem para pensar esses conceitos de maneira imagética e pictórica, neste sentido
podemos entender o timbre como aquele parâmetro sonoro que traz a cor do som, sem essa
variação os sons se tornariam todos da mesma cor, talvez cinza. Amplitude: é o parâmetro
acústico relativo a qualidade do som forte e som fraco. Este parâmetro se refere a diferentes
qualidades de dinâmicas desejadas tais como: forte, fraco, crescendo ou decrescendo, mudanças
bruscas de intensidade, entre outros. Melodia: é o movimento do som em diferentes altitudes
(frequências), isto é fazer mudanças de altura. Na fala, por exemplo, emitimos o som em um
deslizar contínuo e quanto maior a variação da amplitude da curva melódica, maior a inflexão
8
É um termo italiano do canto, utilizado em aquecimentos vocais, que significa cantar com a boca fechada. A
produção do seu som assemelha-se com: hummmm.
9
Também chamada de Cinesfera. Termo pertencente aos estudos do teórico da dança Rudolf Laban. A Kinesfera
é definida como o espaço pessoal, a esfera dentro da qual o movimento acontece. O espaço em torno do corpo do
ser movente no qual e com o qual a pessoa se move.
130
vocal do fraseado emitido. Ritmo: “Originalmente, “ritmo” e “rio” estavam etimologicamente
relacionados, sugerindo mais o movimento de um trecho do que sua divisão em articulações.
Podem haver ritmos regulares e irregulares. Um ritmo regular, por exemplo, sugere divisões
cronométricas do tempo real- tempo do relógio (tic-tac). Um ritmo irregular espicha ou
comprime o tempo real, dando-nos o que podemos chamar de tempo virtual ou psicológico, o
que pode ser amétrico. Composições ritmicamente interessantes nos deixam em suspensão.”
(1991, p.87-88).
Na última experimentação, escolhemos momentos do fraseado criado por cada uma das
alunas-atrizes e desenhamos uma inflexão sonora para ser dita em coro, uníssono, com alguns
momentos de vocalidade solo e outros momentos de improvisação a partir da vocalidade guia.
A cena começava com batidas rítmicas de pés que pulsavam e arrastavam. Vozes em coro que
fogem, passam, escondem, voam, dão voltas no espaço, ora perto, bem perto da escuta do outro,
ora distante, correm, correm em movimento circular e de repente uma pausa brusca que instaura
repentino silêncio. Uma voz de mulher, tosca e bravia, entoa o coro com uma qualidade de voz
cochichada enquanto as outras quatro mulheres escutam no corpo. Todo o ambiente da cena ao
frenético ritmo dessa fala-ação de mulheres cangaceiras fugidas, acompanhadas de pisadas e
131
rajadas de ventos pelos movimentos de seus corpos. E por fim, bocas gigantes, duplo dessas
mulheres, predizem sangue da morte do bicho santo (ver trecho do texto na imagem abaixo).
Uma imagem audiovisual que sugere sonoridades.
[...]passa,
passa
vento,
passa
passa,
corre
corre,
fogo fogo,
corta
corta
[...]São
pontos,
são
galhos,
são
linhas,
são
flores,
são
traços,
são
folhas,
corta
estica
[...]Será
sangue
sangue,
corre
corre
será
(DENYS,
p.74,
2005).
132
Fig. 27: Presságio de cangaceira. Fotografia de Hylnara Vidal durante a instalação
de “água, flores e anjinhos”- por Fábio Souza. Teatro Universitário-UFC, 2013.
Fig. 28: marcas. Fotografia e manuscrito de Roberta Bernardo. Fotografia
do processo de água, flores e anjinhos, por Fábio José de Souza. 2013.
133
Rastro 6
O corpo muda de estado cada vez que percebe a vida a partir das experiências que o
atravessam. É essa biblioteca de experiências que nos forma e nos transforma no processo de
troca de sensibilidades com o mundo que nos rodeia. Mas essa potencialidade corpórea mexida
e remexida pela experiência é, muitas vezes, sucumbida pela rapidez e superficialidade na qual
somos induzidos a seguir no movimento da vida. Como comenta o pesquisador espanhol da
área da filosofia da educação Jorge Larrosa Bondía (2002) “A velocidade com que nos são
dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo
moderno, impedem a conexão significativa entre acontecimentos.” Corremos em busca
quantitativa por informações, por ter uma opinião, por sermos pessoas informadas e
informantes, muitas vezes, as informações que lemos e dizemos em nada nos afeta. Nos falta
silêncio.
Bondía (2002) reflete sobre as relações entre experiência e sentido para a educação, traz
a seguinte noção para experiência a partir da própria etmologia da palavra em diferentes línguas:
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que
se passa, não o que acontece, não o que toca. A cada dia se passam muitas
coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o
que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em
um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso
134
mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais
rara (BONDÍA, 2002, p.21).
A falta de experiência é inimiga da memória, já que não deixa marcas, pior, é inimiga
das marcas, é a sua negação. Bondía distingue aqui entre sujeito da experiência e sujeito da
informação, onde este último é que está inundado de informações, porém nada disso o marca,
o põe em risco frente ao presente – lembrando a relação íntima que o autor faz entre o termo
experiência e sua etimologia no radical Peri, como perigo, como arriscar. O tempo deste sujeito
da informação é linear e contínuo, como se o passado não o afetasse, em suma, é a negação
radical da tradição, é a pretensão de um saber desconectado de sua história. De alguma maneira,
este sujeito da informação recalcou o fato de que as vozes do passado o podem desestabilizar,
o colocar frente as incertezas do tempo, e deste modo naturaliza arrogantemente seu presente,
como se este fosse uma verdade, neste caso, uma verdade informada. Bondía critica assim um
sistema social inundado de informações, que podem ser pensadas como as informações
vertiginosas que nos chegam hoje, sejam estas jornalísticas, turísticas, publicitárias, entre
outras. Bondía propõe frente a isso, um gesto de interrupção do tempo:
135
6.2 Corpo-Voz em conexão com o ambiente de criação.
O corpo registra/marca o que lhe é funcional e está inserido em um contexto que faz
sentido para aquele corpo-vocal. Do ponto de vista do trabalho técnico e criativo da voz é
necessário existir ambientes de criação no qual o corpo- voz possa experimentar melodias,
ressonâncias, intensidades e sonoridades vivas, impulsionadas pelo fluxo do presente, como na
vida. Em situações espontâneas do cotidiano, a pessoa age e reage intuitiva e espontaneamente,
ativando o seu corpo-vocal em relação ao contexto vivenciado em tempo presente. O corpo
muda o seu estado físico, ou seja, sofre modificações tônico-posturais a depender da interação
que estabelece com o ambiente. O funcionamento anatomo-fisiológico da voz dialoga com os
sinais percebidos pelo corpo, provenientes do ambiente, estabelecendo modificações no nível
de energia que determina o modo de projeção vocal no espaço. O estudo de anatomia funcional
de LE HUCHE e ALLALI (1999) traz exemplo prático relacionado às mudanças de estado
ocorridas no corpo, em situação espontânea do cotidiano:
Se for pedido para essa pessoa do ponto de ônibus que reproduza novamente a ação
corporal-vocal que realizou, ela responderá que não pode fazê-lo sem motivo e que precisará
de uma outra oportunidade para reconstruir a ação.
O ambiente de criação da vocalidade cênica, dentro de uma perspectiva que valoriza a
experiência, a potência poética de cada sujeito, precisa emergir de um corpo-vocal propositivo,
indo além dos clichês e automatismos; formando mecanismos de registros, de marcas, de
memórias vocais que deem suporte técnico e expressivo ao corpo, servindo como ferramentas
a serem adaptadas e reorganizadas a cada nova relação estabelecida com o ambiente. A noção
de corpo organismo, diferindo da noção de corpo mecânico (enquanto uma realização funcional
autônoma dos órgãos), traz contribuições para pensar na relação do corpo-voz com o ambiente
de criação como “[...] uma possibilidade de estruturação não apenas dos órgãos do corpo, mas
136
da relação mente-corpo, corpo-mundo etc. O todo orgânico é sempre uma estrutura nascida de
uma função [...]” (GREINER, 2005, p.121-122). É o corpo-vocal imerso em um emaranhado
de ações, fazendo combinações singulares de intensidades, melodias e ressonâncias. É a partir
de conexões sonoras, do tato da voz, da reverberação das ondas sonoras no corpo físico do outro
por meio de diferentes qualidades vocais proporcionados através dos parâmetros da voz, que
ações sonoras engendram novas possibilidades vocais, desestabilizando padrões vocais
cotidianos, elastecendo-os para a criação de dinâmicas de percursos poéticos da voz.
Outras conexões imagéticas são ativadas em um processo de criação, cada atuante tece
a sua rede de conexões visuais, auditivas, táteis, associadas a emoções, a história de vida do
corpo contaminado com o ambiente de criação- é a memória corporal de cada pessoa, a
possibilidade dela estar em constante re-significação a partir da relação com o meio que, por
sua vez, também muda com a interação. O ambiente de criação deve ser um lugar permissivo e
provocativo para uma polifonia, restaurando o sentido do corpo-vocal em constantes
interferências culturais formando diversas ambiências sonoras influenciadas pela diversidade
cultural pertinente a um determinado grupo.
137
6.3 Processo de criação-aprendizagem vocal.
Da voz pode surgir um transbordamento de sentidos cênicos. Uma voz que pode ressoar
hibridizada de imaginários de matrizes múltiplas durante um processo de criação imbricado, no
caso desta pesquisa, de rastros poéticos da cultura popular. Aqui, salienta-se a potência do
processo de criação também como um ambiente de investigação do processo de aprendizagem
vocal para a cena. Ou seja, o processo de criação é um ambiente de aprendizagem, uma vez que
proporciona uma série de relações, de encontros sonoros, de jogos sonoros, levando a uma
aquisição de linguagem a partir destes encontros, proporcionando uma realidade nova.
A crítica genética Cecilia Sales, que investiga o processo de criação da obras de artes,
os rastros e vestígios de criação das mais diversas linguagens, coloca que um artefato artístico
surge no jogo de estabilidade e instabilidade que forma e transforma, em um movimento
altamente tensivo que envolve seleções e apropriações. “A transformação se dá, portanto, por
meio de re-significações e deformações de formas apreendidas” (SALLES, 2004, p.113). Visto
isso, podemos associar o processo de criação ao processo de aprendizagem em uma rede de
associações de memórias psicofísicas, geradoras de transformações sonoras múltiplas que
fazem algo existir no corpo-vocal e na cena, na busca de uma formação, de uma formatação
vocal para aquele instante da cena.
138
contemporaneidade consiste em que esta começa a entender-se como corpo, e não mais como
uma utopia do belo clássico. Isto desloca, segundo a pesquisadora, um entendimento da
experiência do sujeito tradicional, no qual a partir de uma pedagogia que ela chama de
institucional se queria instruí-lo e regulamentar sua experiência em cânones fixos de
legitimação. Ela comenta que
É isso o que acontece, de uma forma ou outra, ao refletir sobre a experiência vocal no
processo de criação da vocalidade da cena. O que está em jogo é a abertura a outros modos de
139
nos perceber, como também entender e agir no nosso contexto sócio-político e cultural. As
emissões vocais sonorizadas, transformam e transbordam os limites expressivos de cada um, a
voz contagiada e contagiando a vocalidade do ambiente, fazendo nascer a ambiência sonora do
corpo da cena. Para tanto, faz-se necessário um corpo-vocal com canais de percepção abertos,
não apenas para perceber os seus impulsos sonoros internos, como para deixá-los transitar no
ambiente do processo de criação da ambiência sonora da cena, permitindo também
contaminações, misturas, mudanças de estados a partir das imagens e sensações surgidas a partir
dos encontros: do corpo-voz com os seus espaços internos, com o outro e com o ambiente: “ É
a excitação causada pela sensibilidade da percepção que permite a continuidade do processo.
Esses efeitos têm, portanto, poder gerativo[...]” (SALLES, 2004, p. 96). Nessa inter-relação,
uma ambiência sonora se faz presente, ganhando forma por meio do dialogismo de sons
estabelecido pelo corpo ao mesmo tempo singular e coletivo, em um fluxo instável, mas que
vai permitir o delinear da experiência dos sujeitos, captando sua(s) imagem(ns), sua(s)
identidade(s) no movimento da vida.
140
Importa também pensar o contexto sócio-histórico, no qual se dá a criação vocal,
ativando uma força artística e uma força pedagógica, mobilizando outras reconfigurações nos
corpos-vocais em formação. Entra-se assim na principal problemática discutida atualmente
entre arte e educação, na qual pode-se pensar em uma prática artística e pedagógica que
potencialize ambos os campos do saber, sem estar um a serviço do outro. Na proposta desta
pesquisa, experienciar o processo de criação vocal da cena com propósito pedagógico a partir
de um texto nordestino e ao mesmo tempo lê-lo sob o ponto de vista de sua potência cênico-
sonora, desloca o eixo de referência tanto do teatro (que não toma mais o texto como centro),
como da cultura, que não será tomada mais como algo fixo, abrindo um instigante fluxo
pedagógico através do qual o sujeito possa ‘entender-se’, entender o outro e ‘se fazer entender’.
A sonoridade da cena permite um mergulho, então, em uma vocalidade coletiva contaminada
pelo imaginário nordestino, em um percurso que vai se delineando a partir de inquietações
estéticas e artísticas. É a partir da hibridização dessas referências que começa a se delinear uma
pedagogia aberta pela arte contemporânea, sendo a sonoridade da cena um campo fértil para
fazer pensar o processo formativo que aponta para uma ‘pedagogia das afecções’.
141
Fig. 31: Rascunhos do que fica. Manuscrito da estudante Hylnara Vidal (recorte amarelo) e da estudante Roberta Bernardo.
Visto isso, é preciso que os processos formativos institucionais dos cursos artísticos (
sejam eles de bacharelado ou licenciatura) estejam atentos para o contexto histórico, social e
artístico contemporâneo, na qual a prática da inter/transdisciplinaridade está pulsando. Sendo
assim, faz-se necessária a existência de propostas pedagógicas para a prática que habilitem o
artista, o ator, o professor, o artista-docente a inter-relacionar os inúmeros estímulos da vida,
como podemos pensar também na percepção corpórea de linguagens artísticas distintas: A
sonoridade da música, a visualidade das artes visuais, a corporeidade da dança, as ações cênicas,
possibilitando-lhe a incorporação de múltiplos discursos, que, na proposta desta tese, tem como
objetivo investigar processos de criação e suas possíveis pedagogias da voz para a cena
contemporânea, cena esta que rompe com as barreiras disciplinares em busca de um encontro
vivo, poético. Nesta perspectiva, o que importa é a rede de associações, o processo do apreender
que cada aluno-criador encontra para materializar a sua vocalidade poética.
As dimensões pluri, inter e transdisciplinar não negam a existência da disciplina, mas vão além
dela, fazendo inter-relações, estendendo fronteiras, explorando faixas intermediárias. Mais
ainda, tendo em vista a ampliação do entendimento da cena numa perspectiva contemporânea,
no qual o saber não se restringe somente ao textocentrismo, abrindo outras vias a partir do corpo
como conhecimento sensorial. Neste sentido, a formação vocal do artista da cena necessita tecer
cruzamentos teatrais-musicais-corpóreos- culturais-subjetivos entre outros.
143
O verdadeiro espírito interdisciplinar consiste nessa atitude de
vigilância epistemológica capaz de levar cada especialista a
abrir-se às outras especialidades diferentes da sua, a estar atento
a tudo o que nas outras disciplinas possa trazer um
enriquecimento ao seu domínio de investigação e a tudo o que,
em sua especialidade, poderá desembocar em novos problemas
e, por conseguinte, em outras disciplinas. O espírito
interdisciplinar não exige que sejamos competentes em vários
campos do saber, mas que nos interessemos, de fato, pelo que
fazem nossos vizinhos em outras disciplinas (JAPIASSU,1976,
p.138).
Será valioso relacionar esta fala de Japiassu como um dos escritos do diário de bordo da
aluna-atriz Raquel Capelo:
144
Fig. 32: Escuta. Manuscrito do processo de criação da estudante Raquel Capelo.
Que pedagogias da voz podem ser criadas a partir deste pensamento que aposta numa
abertura entre as disciplinas? A partir daqui, não podemos pensar numa abertura de fronteiras
entre professor e aluno? O que separa um do outro? Acaso lidar com a interdisciplinaridade não
implica um pensamento processual?
Rolnik nos convoca a pensar, nesta perspectiva, que o professor não se coloca enquanto
um modelo com ideias fixas a ser seguido, uma vez que o mesmo também se (trans) forma,
aprende a partir das marcas que o convocam, que, nesta pesquisa, foram provocadas pelo
processo de criação. Talvez, o que experienciamos nesta pesquisa, mas do que eu como
professora transmitindo o exercício de um repertorio de técnicas vocais-corporais, foi transmitir
via corpo o percurso pelo qual estou pensando, criando o trabalho de voz nas artes da cena.
145
Deste modo, acredito que a afirmação de perspectivas pedagógicas neste pensamento “funciona
como uma espécie de suporte que autoriza o aluno a afirmá-la em seu próprio trabalho. Em
outras palavras, o que o professor transmite é o modo como se faz sua prática enquanto
pensador.” (ROLNIK, 1993, p. 12)
Desta maneira, acreditamos que um professor ‘aprendiz/criador’ tem como objetivo com
o ensino suscitar no aluno um aprendiz/criador, diferente da sua pessoa, uma vez que o que
estamos produzindo neste tipo de proposta é necessariamente singular. Singularidades que
surgem pelo viés das marcas da experiência de cada corpo-vocal que vêm à tona encarnadas no
corpo da palavra, no impulso respiratório, na textura sonora emitida, na qualidade de escuta do
outro, da cena, de afirmação da vida.
No laboratório “vocalidades poéticas”, cada uma das alunas-atrizes teceu a sua rede de
relações de aprendizagem a partir de cada singularidade perceptiva, da maneira como cada uma
acolheu, se deixou ser tocada por este processo de criação. Podemos perceber no diário de
bordo da aluna-atriz Hylnara Vidal, rastros de como ela se deixa contaminar, hibridizar suas
experiências físicas, corpóreas, vibráteis, ósseas, musculares do laboratório de criação com a
vida, percebendo ambas, vida e arte, como algo processual, um fusão de criação. Um olhar para
a vida também como processo de criação, que precisa de uma escuta aberta, “de poros abertos”
para o ambiente, entre-lugar de cruzamento de afetos, de mistura, de trânsitos sensoriais entre
corpo e ambiente. Talvez neste ponto, resida a potência da experiência estética na educação;
uma recolocação da percepção a partir do exercício da própria mudança de perspectiva da
percepção de si, possibiltando aberturas, remodelagens, outras percepções da vida através da
experiência, no caso desta pesquisa, da materialidade da voz em movimento. Quando falamos
de uma recolocação da percepção, tocamos em um ponto que atravessa pensamentos
necessários tanto na pedagogia da arte, como sobre o próprio processo de criação artístico, como
também a arte na educação. Necessidade esta de descolocar percepções massificadas ,
neurotizadas (Rolnik) de um sujeito centrado em si, normatizado, autosuficiente. Acaso quando
pensamos na relação arte e vida, suas transformações de percepção, de outos olhares, tatos,
perspectivas, não estamos ativando potências tanto na educação, quanto na arte?
146
Fig. 33: Afetos. Captura de imagem da apresentação e manuscrito do processo de ensaio de
“água, flores e anjinhos”, da estudante Hylnara Vidal. Gravação de Fábio José de Souza.
147
No laboratório “Vocalidades Poéticas” vivemos a processualidade da criação. Nesta,
acreditamos que podem ser encontradas potências do aprender voz, mas um aprender sem os
engessamentos dos manuais fixos. Uma aprendizagem tecida no caminho que vai sendo
construído/inventado pelo ato de caminhar e neste percurso, encontramos técnicas, referências
teóricas, propósitos de criação, pistas a partir do ajuste poético do corpo no espaço, pistas a
partir da sonoridade que era esboçada. Foi no fazer-conhecer no corpo de alunas-atrizes que a
vocalidade poética se fez presente nesta pesquisa. A mesma foi ganhando corpo também no ato
de escrever, na palavra escrita no diário de bordo de cada uma das alunas, mostrando como a
vocalidade poética é singular e ao mesmo tempo múltipla, inacabada, movente.
1
Propriocepção é o conhecimento que temos dos movimentos de nosso próprio corpo no contexto. [...]
Sentimento de si. (Godard,2004, p.77)
148
Uma voz em estado de escuta com os seus sentidos abertos para o outro, uma voz que
recebe o outro, que é tocada pelo outro e, a partir deste calor, pode-se sentir a vibração vocal
no osso, ou seja, suspender a interpretação, a escuta da condução aérea do som através dos
ouvidos, deixando vibrar os meus ossos a partir da vibração da sua voz. Uma escuta recíproca
que deixou marcas em mim, sinais que ecoam no exercício da ambiência sonora da cena; escuta
de si/ambiente, vocalidade-vibrátil, vocalidade sensorial, voz enquanto textura, materialidade
da palavra, ecos de tecidos afetivos.
Como vestígios deixados no caminho por um bicho, apresento a seguir, um testemunho
deste processo de criação, nos rastros de uma vocalidade poética que ainda ecoam no meu
corpo-pesquisa. Uma condensação de imagens, conceitos, sonoridades, texturas... na sua força
vibrátil, movente, tentando me dese-
qui-
librar na folha,
no espaço, como sugere Godard,
a partir das vivencias laboratoriais vivenciadas com as alunas-artistas-pesquisadoras no
processo de água, flores e anjinhos,
como um rastro.
149
Rastro 7
Um laboratório de rastros
percursos sonoros de pulsações do processo que
ainda ressoa em mim, ressoa porque deixou mar-
cas, marcas que ficam como “o ovo” de Rolnik,
pronto para proliferar a qualquer momento, em
um querer continuar em laboratório, em desejo de
pesquisa, abrindo uma constelação de possibilida-
des de ligações na presença da vocalidade poética,
na sua força de acontecimento, vozes em experi-
mentação de lugares apalpados, mordidos, lambi-
dos, sentidos na (con)vivência com o mundo,
mundo que se mostra em movimento, vivo, em
devir, na sua potência de engravidamento, mudan-
ça que afeta o corpo, um corpo-vocal, pleno de
vozes, sons, palavras, as palavras são muito anti-
gas, já existiam muito antes do nosso nascimento,
elas vêm da emanação de ecos, ecos de Zumthor,
ecos vertiginosos de um passado que nos chega
em pó, como o pó de farinha que se espalha no
ar... em intensa e constante movência... deixando
rastros, rastros que permitem acessar, re-inventar,
memórias, lugares que ativam uma vocalidade-
vibrátil, vocalidade-bicho, voz que grasna por
uma existência, por abrir possibilidades vivas no
corpo-vocal de alunas-atrizes, pessoas, professora,
no corpo da ambiência sonora da cena, linhas que
fomos tecendo, apreendendo, no corpo das pala-
vras, na feitura do exercício, na escuta do encon-
tro por vocalidades poéticas
Rastros que ficam de um pulsar da voz na experiência
ESCUTA DO SI / AMBIENTE
Escuta do corpo pelo corpo.
mais fluida.
Abrir espaços
O Exercício da respiração.
Respiração no fluxo do entorno
Pare
Feche os olhos...
Feche os olhos...
Traduza essa vibração em um som que você possa emitir com a sua voz
Deixe o som entoar primeiro internamente, permita-o percorrer pelos espaços in-
ternos do corpo e quando sentir vontade deixe-o que ele se manifeste no ambiente.
Experimente entoá-lo de variadas maneiras.
Perceba o gesto e o movimento que este som faz brotar em você.
Movimento sonoro que é puramente você.
Abra a escuta para os outros sons e movimentos que estão a sua volta e deixe que
os mesmos contaminem, se misturem a sua vocalidade.
Pare
Feche os olhos
Perceba como o seu corpo vibra agora.
Volte a atenção novamente para a respiração.
Quando eu expiro, as moléculas de ar em minha volta se movimentam. Quando eu
inspiro, o movimento de ar que está fora penetra em mim.
Conexão Corpo-ambiente
“Um corpo habitado por, e habitando outros corpos e outros espíritos, e existindo ao mesmo tempo na
abertura permanente ao mundo por intermédio da linguagem e do contato sensível, e no recolhimento da
sua singularidade, através do silêncio e da não-inscrição. Um corpo que se abre e se fecha, que se conec-
ta sem cessar com outros corpos e outros elementos, um corpo que pode ser desertado, esvaziado, rouba-
do da sua alma e pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida” (GIL, 2013, p.53).
Fig. 34: Corpo que se abre e se fecha. Captura de imagem da gravação do ensaio de água, flores e anjinhos. Gravado por Tarcísio Rocha.
Um corpo humano, um corpo em devir
[...]abre-se e fecha-se sem cessar ao espaço e aos outros corpos. Capacidade que se prende menos
com a existência dos orifícios que o marcam de forma visível do que com a natureza da pele. Por-
que é mais por toda a superfície da pele do que através da boca, do ânus ou da vagina que o corpo se
abre ao exterior. Esses orifícios estão a serviço de funções orgânicas de trocas entre o interior e o
exterior. Mas raramente operam a abertura global do espaço interno. (exceto no prazer sexual e na
fala). (GIL 2013, 54, grifo nosso)
Voz em estado de conexão
Corpo-voz singular e coletivo: descoberta de outros som a partir do outro.
Escuta
O corpo como uma grande membrana timpânica que escuta
Aprender a escutar, ampliar a audição, esmiuçar, singularizar o som
Desenhos sonoros
desce de um tobogã
, gira a trezentos e sessenta graus no espaço
Es P A Ci a l i ZA AAA A A A AA r
Estado de vibração.
Ser o corpo todo água, sangue, linfa, líquido sinovial, cachoeira, ser um rio de correnteza sonora, que ora tem suas margens mais
estreitas, ora mais largas, ser mar com ondas......e qualquer outro imaginário encarnado que a fluidez do pensamento-corpo en-
contrar.
Rastros que pulsam de um ficar da voz na experiência
VOCALIDADE-VIBRÁTIL
Falar é fazer a experiência de entrar e sair da caverna do corpo humano a ca-
da respiração:
abrem-se galerias,
atalhos esquecidos,
outros cruzamentos;
Outras r e s p i r a ç õ e s,
timbres,
espaços de ressonância,
Trabalho com a palavra sonorizada na cena - deslocamento do sentido semântico para o sentido sensó-
rio
Experimentar a palavra no fluxo de uma ação.
A palavra sonorizada vem no fluxo da ação, ou da sensação, ou da imagem, ou do cruzamento de todos estes estímulos.
Interagir com o outro, com o outro-eu, com o outro-corpo. Ganhar uma intimidade no entre-corpos
que permite o fluir de uma voz- outra, que faz vibrar a pele. Influências de propósitos do Body-
Mind Centering*. partir do fluxo de sistemas físicos do corpo. Como seriam os impulsos do sistema
nervoso? Experimentar no outros esses impulsos, impulsionar partes do corpo do outro com movi-
mentos curtos e precisos. Lentos e longos. (Deixar que a escuta e a imaginação dos corpos dialo-
guem). E o sistema sanguíneo? Linfático? Se o corpo desejar sonorizar, permita que este som
encontre a vibração da sua voz. Agora, mantendo os olhos fechados, deixe que sozinho, confiando
nos cuidados do outro, porém sem estímulo externo, o corpo-vocal se movimente no espaço aces-
sando sensações do toque as marcas mais intensas a partir do toque do outro, que agora age cui-
dando do outro. Após vocalizações, experimento com palavras do texto memorizadas, acessando um
percurso de vocalidades vibráteis.
Início-todas no chão – massagear o corpo no chão de madeira/ aos poucos ir abrindo espaço na flauta interna do corpo, deixando que sons aconteçam,
deslizando nos seus graves e agudos/ intensificar o movimento do corpo-vocal no espaço. Segundo momento- utilizamos o bastão (elemento bastante
utilizado nos laboratórios, para interagir com este elemento é necessário que o grupo esteja bastante familiarizado com este objeto, pois o mesmo sus-
cita estrega, destreza e confiança para o pleno desempenho no ato da ação). O mesmo era lançado vigorosamente em uma roda composta pelas alunas
-atrizes. Inspirado na fisiologia da voz, este exercício de aquecimento e ativação de uma energia cênica mais vigorosa, foi feito da seguinte maneira:
Ao lançar o bastão, elas lançavam também um jato de ar ao encontro da outra. Em seguida, ao lançar o bastão sons eram ativados em direção a
outra. Neste fluxo, palavras do texto já conhecidas e outras que eu ia dizendo no momento do exercício eram vocalizadas pelas alunas atrizes.
O exercício com o bastão ativou um corpo enraizado e uma vocalidade que nasceu de um impulso que veio da expiração.
Sangue Porcaria
Arranca
Veia
Maledita
Cangote
Arde
Corpo-voz Sensórial 1- Colocamos no chão com uma roda feita de farinha de mandioca. Uma de
cada vez experimenta dizer o texto a partir do contato com este elemento. Uma poeira, um pó de
farinha seca se enfarela com os pedaços de palavrar esfareladas no ambiente da cena.
Fig. 40: Abismo. Captura de imagem de gravação do laboratório Vocalidades poéticas. 2013.
Quando toco a farinha, a farinha também me toca e neste entre lugar...., e eu recebo
este toque, para isso, preciso estar com o corpo, com a escuta da pele aberta para esse
fluxo de estímulos que atravessam o ambiente . E nesse duplo agir intenso, pode sur-
gir um sentido via textura da materialidade sonora. São cruzamentos de interações
sensoriais, minha pele toca a farinha, a farinha toca a minha pele, se mistura com o
mel vermelho e encontra a vibração da minha voz. É deste ambiente sensorial que
surge a vocalidade das palavras de um sertão imaginário, ou do sertão encarnado por
cada uma delas. Um além da história ou um além do sentido logocêntrico da lingua-
gem. É também permitir ser tocado pelo som da voz, permitir ser tocado pelo outro da
voz.
Palavra que nasce de uma sinestesia. É isso que chamamos de vocalidade poética.
Fig. 41: Farinha. Captura de imagem de gravação do laboratório Vocalidades poéticas. 2013
Rastros de voz que pulsam e ficam na experiência
MATERIALIDADE DA PALAVRA
Eis que agora os homens trocam entre si palavras
como se fossem ídolos invisíveis, forjando nelas
apenas uma moeda: acabaremos um dia mudo de
tanto comunicar. [...] À imagem mecânica e instru-
mental da linguagem que nos propõe o grande siste-
ma de mercado que vem estender sua rede sobre
nosso Ocidente desorientado, à religião das coisas,
à hipnose do objeto, à idolatria, a esse tempo que
parece se ter condenado a ser apenas o tempo circu-
lar de uma venda perpétua, a esse tempo no qual o
materialismo dialético, desmoronado, dá passagem
ao materialismo absoluto oponho nossa descida em
linguagem muda na noite da matéria de nosso corpo
pelas palavras e a experiências singular que cada
falante faz, cada falador daqui, de
uma viagem na fala; opo-
nho o saber que nós te-
mos, que existe, bem no
fundo de nós, não algo do
qual seríamos proprietários
(nossa parcela individual,
nossa identidade, a prisão do
eu), mas uma abertura interi-
or, uma passagem falada
(NOVARINA, 2009, p. 13).
FFig. 42: Palavra carne. Captura de imagem do laboratório Vocalida-
des poéticas. 2013. Por Tarcísio Rocha, nas fotos, Hylnara Vidal.
Técnica necessária. Mastigar as palavras, abrir a voz, pesquisar a dinâmica de ação de cada /F/ /o/ /n/ /e/ /m/ /a/
E aquilo que o Teatro ainda pode extrair da palavra são suas possibilidades da
expansão fora das palavras, de desenvolvimento no espaço, de ação dissociadora e
vibratória sobre a sensibilidade. É aqui que intervêm as entonações, a pronúncia
particular de uma palavra (ARTAUD, 1884, p. 114-115)
Em tristes assuntos,
Para sufragar
Buscar o esva zi a m e n t o dessas palavras, tentativas de abrir espaços outros. R E - crrrri aarrrrrr
In- Corporar / Des-manchar-se nas palavras do que se é, deslizando o é RE IN VENTAR
Falar não é comunicar. Falar não é trocar nem fazer escambo-das ideias, dos objetos-, falar não é se exprimir, designar, esticar uma cabeça tagarela na direção das coi-
sas [...] falar é antes abrir a boca e atacar o mundo com ela, saber morder. O mundo é por nós furado, revirado, mudado ao falar. Tudo o que pretende estar aqui como
um real aparente pode ser por nós subtraído ao falar. As palavras não vêm mostrar coisas, dar-lhes lugar, agradecer-lhes educadamente por estarem aqui, mas antes par-
ti-las e derrubá-las. “A língua é o chicote do ar”[...] (NOVARINA, 2009, p. 14-15, grifo nosso)
Palavra linguagem-material
Palavra corpórea, que afeta, que age sobre a sensibilidade, sobre o meu corpo, sobre o teu corpo, simultaneamente.
A vocalidade poética necessita desarticular a fala. Mostrar a fala saindo da palavra, abrir as palavras “como fru-
tas” (NOVARINA, 2009, p.44) . Segmentar os seus parâmetros de emissão, separar os instantes de respiração, silêncio, so-
norizações, articulação, ressonâncias.
Fazer com que o sentido-pensamento literalmente atravesse a expiração, encha uma inspiração, amplificando, numa espé-
cie de caixa de ressonância, esses afetos materializados em vocalidades e amplificados por caixas de ressonâncias.
Tudo que é corpóreo, que afeta o corpo pela sua qualidade vibratória está no plano da materialidade da palavra
Fig. 44: Beijando o mundo. Captura de imagem de gravação da apresentação de agua, flores e anjinhos.
2013. Por Fábio José de Souza, com Angela Deyva e Hylnara Vidal na imagem.
Cena da palavra que não fecha, mas abre, permite movimento de vibração na vida, sensibilidade colocada em movimento, num estado de percepção mais inte-
rior, mais apurada. No rito do encontro de bocas que se abrem furando, mordendo, acariciando, beijando o mundo.
Da serpente a ira.
Fig. 45: Lírio formoso. Captura de imagem de gravação da apresentação de agua, flores e
anjinhos. 2013. Por Fábio José de Souza, com Angela Deyva na imagem.
Na processualidade de referências acessadas, uma mistura de sentimentos, sensações, lembranças...foi sendo tecida uma textura afetiva que acolhe pala-
vras a serem sonorizadas. Elas já nascem imersas em uma colcha afetiva que aquece a voz, embalando a palavra sonorizada por ela.
Mas também a voz, a palavra sonorizada por aquele que conduz uma aula, um laboratório, um ensaio... também cria um tecido afetivo. Palavra esta que tem
algo do gemido, do sussurrar. Voz destinada a tatilidade do outro. Palavra que vem ao nosso encontro. Vida da palavra que est á na voz, no hálito da voz da-
quele que fala.
Em algum lugar, em alguma referência da textura da voz que ressoa, aquele que ouve pode encontrar ecos, ecos... reverberações de sentidos na sua histó-
ria sonora. “Ao fundo das vozes que escutamos no presente ressoa, como por causa de uma memória fisiológica, o eco das vozes perdidas” (ZUMTHOR,
2005, p.83).
“[...] A memória nesse plano é memória das marcas, ovos sempre atuais,
sempre potencialmente geradores de novas linhas de tempo.” (ROLNIK,
p.4)
Ângela tem no corpo marcas de um Cariri religioso. Um dia, ela trouxe uma foto da casa da família. Hoje lá
só vive o seu pai. Na foto da sala havia um santuário com flores de bem-me-quer bonita, margaridas brancas
exalando suavidade. Padre Cícero, coração de Maria e Jesus, menino Jesus. Santuário antigo, que fica e reú-
ne pessoas em volta para entoar cantos religiosos, o ofício da imaculada Conceição... desde que aquela casa
era de seu avô paterno. Lembrança sonora que fica como uma marca, um ovo que agora se atualiza no en-
contro com fragmento do texto de Denys, com o acessar de uma referência sonora da infância.
Histórias que, da processualidade do fazer corpos-vocais, no coletivo, vêm à tona no desejo de compartilhar.
São pistas que surgem de encontros singulares do processo.
Nordeste sonoro que surge reinventado pelos ecos de uma história de vozes misturadas, integradas a uma textura de afetos tecidas no processo
de criação.
Mistura dos mais variados fluxos que compõem uma canção de saudade. Tendo essa saudade como evidência do eco, ou dos ecos dessa experi-
ência.
Fig. 50: Esperança. Captura de imagem de gravação do laboratório Vocalidades poéticas. Por Tarcísio Rocha. 2013
Rastro 8
ABERTURAS POSSÍVEIS
185
Exercício de construção de conhecimento, ela também, a tese, é um processo de criação,
mais do que mera contemplação, trata-se de um processo inventivo, de forma (ação) em uma
variação contínua em mim. Portanto, o processo de produção de conhecimento é um processo
inventivo, em constante movimento de (trans)formação que, no caso deste estudo, refaz
maneiras de vocalizar, criando, buscando na prática outros lugares de vibração, exigindo assim,
a criação de outros percursos para a vocalidade poética. Nesta voz, é a vida de cada um de nós
que se abre para a criação em cada toque, em cada escuta, em cada som, em cada gesto. Não
existem limites e fronteiras, ou seja, as fronteiras permitem aberturas para os muitos caminhos
possíveis para o estudo prático da vocalidade poética. Assim, o limite foi o caminho que
trilhamos, esse foi o limite e a abertura de aprendizagem e ensino em vocalidade poética, não
existiu uma base ideal, normas que prescreveram uma vocalidade a ser encontrada. Só sei que
nesta caminhada, percebi que o encanto contido na escuta do outro pode trazer uma abertura,
em que vozes são descobertas como matéria-prima de desdobramentos inventivos na cena.
Voz, processo de criação, sinestesia e ambiente da cena se conjugaram nesta pesquisa
para disparar processos pedagógico-artísticos que permitiram materializar a voz na sua força
sensória, vibratória, corpórea, em um encontro de vozes.
Entre-vozes. Por uma linguagem inteira, sem meio-termo, como uma poesia, na qual o
que está exposto é o corpo da palavra, sua carne sensível, palavras em liberdade, liberdade pelo
que as palavras têm de corpo, de materialidade. Sem uma relação utilitarista da palavra,
comunicativa, discursiva, em que não vemos nem ouvimos a palavra do outro, não percebemos
como vibram entre um corpo e outro, não saboreamos a palavra do outro, apenas temos a
palavra como instrumento de comunicação, compreensão de ideias, sentimentos, etc. Bondía
(2004) em diálogo com o filósofo Jacques Derrida, nos faz o convite a pensar no corpo da sua
escrita, em uma palavra-carne, no corpo a corpo do encontro, do con(tato), da fricção entre
nossos corpos de vozes, de palavras. Contato como o corpo das palavras não significa conhecê-
las, nem utilizá-las, mas senti-las no que têm de vocalidade-vibrátil, no que altera a norma do
186
que já é dado. Como podemos pensar em desdobramentos na relação de ensino e aprendizagem
a partir deste lugar do corpo a corpo, do entre-vozes? Como podemos destecer o funcionamento
hierárquico dos corpos, no qual uns detém um saber e outros aprendem um saber? Como fazer
com que a tatilidade do não verbal, do tom da voz, do corpóreo exploda nas relações não só
naquele que aprende, mas naquele que ensina?
A leitura do filósofo espanhol Jorge Larrosa Bondía (2004), em seus ensaios sobre
‘linguagem e educação depois da babel’, incitou durante esta pesquisa, algumas questões sobre
as relações estabelecidas no ato de aprender e o ensinar disciplinas de voz, no contexto do
ensino superior do curso de Teatro-Licenciatura. Os textos do referido autor, relacionados aos
seus ‘ensaios eróticos’, no qual dialoga com Derrida no entender as palavras como corpo, como
entre as línguas, “como um boca a boca, como um língua a língua, como um roçar de lábios,
como um movimento de língua e de lábios [...] Como se o movimento das línguas na fala não
pudesse distinguir-se do movimento das línguas no beijo” (BONDÍA, 2004, p.185). Como no
amor, lugar onde as palavras estimulam o beijo, como também o beijo estimula a palavra. É
nesta relação erótica, em que as palavras se fundem com o beijo, na qual os beijos se confundem
com as palavras, que podemos pensar na vocalidade poética da cena e também, a partir da
mesma mola propulsora que instiga o pensamento desta palavra poética vocalizada, podemos
pensar também nas relações de ensino e aprendizagem tecidas neste ambiente de criação.
Acredito que o professor, estou falando no contexto das pedagogias da voz, mas acredito
que estas relações se apresentam em qualquer relação de encontro docente afetivo, no colocar-
se em relação aooutro, na presença de um encontro, há um entre-lugar, um entre-vozes que se
chocam, se confundem, se escutam, embarcam juntas em direção a lugares sensíveis a serem
descobertos, a um devir criança, que fazem juntos um acontecimento de vocalidade poética
brotar na cena. São corpos-sonoros atravessados, que convivem e existem no encontro sensível,
corpóreo de um no outro.
187
Esse “te amo” que te digo não é meu, senão que és tu
quem me dás. Tu és quem o põe em minha boca. Tu és quem
faz com que não possa contê-lo. Por isso gosto tanto. Por isso
me soa a ti. E não tenho a menor dúvida de que só sinto minha
língua ao beijar-te. Por isso não te beijo com a língua que tenho,
mas com a que tu me dás. Com a que tu sensibilizas. Com a que
tu pões em movimento. Por isso minha língua tem sabor de ti.
Por isso gosto tanto (BONDÍA, 2004, p.192).
Como podemos criar uma relação de contaminação mútua, não hierárquica, horizontal
de descobertas de criação, na qual coloco-me em relação com você? A voz que sai da minha
boca, ou a voz que ensino nasce do tato da sua voz em mim, e neste trânsito, neste entre-vozes,
(con)vivemos, fazemos juntos um ambiente de encontros formativos com transformações,
deformações, formações que acredito serem mútuas. Vozes renovadas, palavras renovadas no
ambiente da cena, um falar como da paixão da primeira vez, fazê-la soar de um modo inaudito,
entrar pela primeira vez na frase, no que vai ser dito.
Não existem salva-vidas, os manuais não são eficientes quando falamos de uma vocalidade
movente, poética. Mas pistas, sinais podem ficar no percurso, abertas no ar, rastros de
conhecimento, percurso de uma experiência que só pode ser encontrada pela própria voz em
ação, em contato, como acontecimento, no corpo a corpo. Por pedagogias da voz que
proporcionem ambientes de convívio, de aberturas de marcas, por uma atitude artista de
refazimento de si, alimentando uma entrega que vai além de aparências e protocolos. Cultivo
de uma percepção sonora de si, de um canto de vida no alargamento de nossas próprias
fronteiras. Alargamento este não pelo viés de uma lógica do pensamento pré-estabelecido, mas
por um viés da experiência, de um pôr-se em risco, a sair da forma, a viver uma vida vivida,
aberta aos fluxos do seu próprio movimento.
Neste entre-vozes, acreditamos inventar novas possibilidades de existência, no corpo-
vocal da palavra, experimentação de novas formas de habitar o mundo, outras maneiras de
relação, de convivência com as pessoas e conosco mesmo. A busca de uma voz outra, de um
pensamento outro, a busca de uma experiência outra, de uma vida outra, de uma formação
entendida como um processo interminável. Uma aprendizagem que acontece no corpo, e se faz
em mim também no corpo desta pesquisa.
Portanto, nesta cartografia de pedagogias vocais, rastros foram ficando como lugares de
eróticas, lugares que encontramos vibração, na superposição de nossas respirações. O jogo de
movimento entre as nossas caixas torácicas entraram em diálogo. Foi o amor do outro que saiu
pelas palavras expiradas na minha boca, nas palavras registradas nesta escrita. O que é a
experiência, então, quando vista como uma erótica? Que pedagogias surgem deste lugar? Uma
pedagogia vocal que acontece no entre-vozes, no entre-escutas do corpo-vocal-professora com
o corpo-vocal-discente, numa relação sem domínio, sem dono. Nesta perspectiva, o ensino é
encontro, é descoberta mútua, ambos, professor e discente enfrentados no movimento do
conhecer.
189
O que seria em mim vocalidade poética antes de iniciar esta pesquisa? Eram
inquietações suscitadas pelas leituras do medievalista Paul Zumthor, era desejo de mudança, de
imersão na prática da criação, de encontros sonoros outros. Hoje, a vocalidade poética que
transita em mim tem os rumores, os ecos de uma Vocalidade-Ângela, Vocalidade-Roberta,
Vocalidade-Hylnara, Vocalidade-Raquel, Vocalidade-Tarcísio.... foram nos rastros sonoros
que estes discentes-pesquisadores deixaram no ambiente, nos pedaços de papel escritos por
eles que fui encontrando ressonâncias a medida que eu dava corpo às palavras escritas nesta
tese. Portanto, pergunto: o que é então formação? De quem é então a formação? Não seria a
palavra formação uma mistura de forma e ação? Uma movência, então? Um processo? Um
trânsito? Neste sentido, formação, mais do que ‘dar forma’, mais do que estabelecer um
conhecimento, é mover-se, no sentido Zumthoriano, é encontrar ecos que surgem na presença
de encontros vocais, encontros de vidas, daí vibrar, encontro de palavras, ou seja, de línguas,
de fluxos vocais, sonoros, expansivos, corpóreos... assim, a pedagogia carrega uma erótica, sem
a qual caímos na formação do estabelecer, fixar, autorizar, operando com uma pobre pedagogia
e banal sentido de formação.
Uma aprendizagem sonora que tem necessidade de dar-se ao outro. Necessidade que
transborda em direção ao outro. O que transborda, por si só, já rompe com a forma, transforma,
deixando rastros que encontram ressonâncias em algumas conexões que são nossas, do entre-
vozes. Caminho sonoro que foi sendo construído/inventado pelo próprio caminhar e, neste
percurso encontrávamos referências, pistas a partir de palavras-corpo, que encontravam ecos
na pesquisa, rastros que foram ganhando forma, se inventando no movimento de tornar vivo o
desejo de conhecimento via experiência. Conhecimento este que perpassa uma vida vivida
como professora, aquela que encontra no outro o seu gesto sonoro, a partir do encontro do outro
com a sua vocalidade e nesta convivência, o acessar de uma vocalidade movente.
190
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Textos das avós:
Menina
Dona América estava sentada aqui fazendo uma “estrada de ferro”; a renda mais complicada que eu já vi. Nunca vou aprender. Ela dominava
mais de oitenta bilros. Aí, de repente, as quatro janelas se abriram num estouro. Dona América saltou como uma jararaca! O rifle estava aqui
dona América agarrou o rifle. O tiro de um macaco veio primeiro e acertou o coração.( p. 88-89)
Menina
Aí, ele foi caindo e atirando. O tiro foi tão grande, que alumiou a casa toda. Parecia um relâmpago. Acertou o ombro de um. Os outros já
arrastavam as santinhas, tiraram os trajes de Nossa Senhora. Elas não resistiram a nada! Pareciam duas estátuas de santa.(p. 89)
Menina
Elas não estão mais aqui. Subiram a ladeira e pegaram a reta pra solidão (p. 111)
Texto dos 20 Anjinhos ( p. 36): América volta a costurar. À proporção que a máquina desembesta, a sala escurece....