Inspirar - Estado de Escuta

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 201

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira
Linha:Educação, Currículo e Ensino
Eixo: Ensino de Música

JULIANA RANGEL DE FREITAS PEREIRA

VOZ EM ESTADO DE ESCUTA:


POR UMA PEDAGOGIA EM VOCALIDADES POÉTICAS NO AMBIENTE DA CENA

FORTALEZA
2014
JULIANA RANGEL DE FREITAS PEREIRA

VOZ EM ESTADO DE ESCUTA:


POR UMA PEDAGOGIA EM VOCALIDADES POÉTICAS NO AMBIENTE DA CENA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Educação Brasileira - Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Ceará, como requisito
parcial para obtenção do título de Doutora em
Educação. Área de concentração- Educação,
Currículo e Ensino. Eixo: Ensino de Música

Orientador: Prof. Dr. Elvis de Azevedo Matos

FORTALEZA
2014
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará

___________________________________________________________________________________________________________
P492v Pereira, Juliana Rangel de Freitas

Voz em estado de escuta: por uma pedagogia em vocalidades poéticas no ambiente da cena [manuscrito] / Juliana
Rangel de Freitas Pereira. - 2014.
198 f: il.

Cópia de computador (printout (s)).


Tese (doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-
Graduação em Educação Brasileira, Fortaleza, 2014.
Área de concentração: Ensino de Música – Estudo da Voz.
Orientador: Professor Dr. Elvis de Azevedo Matos.

1.Teatro. 2. Fonoaudiologia – preparação vocal. 3. Voz - experiência 4. Cena – processo de criação. 5. Pedagogia. I.
Título.
CDD: 792
___________________________________________________________________________________________________________
Para Nina e Héctor, constelação de
amor em minha vida.
AGRADECIMENTOS

Ao meu querido orientador, professor Dr. Elvis Matos, pela sua refinada escuta ao longo de
todo este percurso de pesquisa, anjo que me guia nesta empreitada acadêmica-artística. Muito
obrigada, professor!

Agradeço imensamente às alunas-atrizes Angela Deyva, Roberta Bernardo, Raquel Capelo,


Hylnara Anny, Gabriela Araruna por toda a entrega e compromisso com o nosso laboratório de
“Vocalidades Poéticas”, verdadeiras parceiras de trabalho, obrigada pela oportunidade que me
deram de conhecer mais um pouco cada uma de vocês e poder admirar, aprender, encontrar
uma vocalidade vibrante em cada uma: Ângela, voz de um cariri reinventado; Roberta, voz que
abraça e acolhe; Hylnara voz que se move na fluidez da entrega; Gabi de uma vocalidade
apaixonada; Raquelzinha de uma vocalidade guerreira. Tarcísio, verdadeiro parceiro de
trabalho de uma escuta inventiva nas texturas da voz no audiovisual. Fábio José, obrigada pelo
seu olhar sensível ao filmar o nosso processo de criação de vocalidades poéticas.

Aos meus pais, Graça e Trajano, por estarem sempre perto, me apoiando quando preciso e por
proporcionarem caminhos inventivos e prazerosos nesta trajetória-formação de vida para mim
e meus irmãos desde a nossa infância.

Aos estudantes e artistas que tive o prazer de compartilhar experiências vocais, com quem
aprendo a cada aula, a cada processo de criação. Amigos de Salvador e agora também amplio
a rede de amizade aqui em Fortaleza.

Agradeço imensamente aos professores da banca pela escuta atenta para a minha pesquisa de
doutorado desde a qualificação. Professor Luiz Botelho e Professora Ana Iório, professores de
uma sabedoria e vivência ímpar que tive a honra de ser aluna durante o doutorado, ensinando,
instigando o ofício de ser professor e valorizando trajetórias formativas distintas. Agradeço aos
dois por estarem acompanhando a minha pesquisa deste a entrevista para entrada no PPGEB.

Agradeço também a professora Fran Texeira, pelas indicações cuidadosas e muito atentas aos
rastros da pesquisa e aos seus lugares de potência vibrátil e a professora Meran Vargens, por
toda a sua generosidade de ensino, pessoa com quem aprendo muito desde que a conheci na
Universidade Federal da Bahia. Agradeço também ao professor José Albio pela prontidão com
que aceitou participar da banca de defesa.

A Héctor Briones, companheiro sem igual nessa trajetória de vida. Agradeço por estar ao meu
lado em tantos momentos especiais e por ser esta pessoa pulsante, contagiante, que transborda
paixão pela arte e pelas possiblidades de abertura do conhecimento. Nossas conversas são
sempre muito instigantes!

Agradeço a minha menina, minha guerreirinha Nina Juana, pela sua paciência e doçura! Ao
longo desses quatro anos, acompanhando de perto a minha pesquisa desde o tempo em que
estava na minha barriga. Obrigada, Ninoca!

Agradeço a minha tia e madrinha Teca, pelo cuidadoso apoio sempre!

Aos colegas da voz na UFC Consiglia Latorre pela sua delicadeza de amizade e pelas
aprendizagens compartilhadas em ‘Sonoridades Múltiplas” e a Erwin Schrader por participar
da minha primeira qualificação e por me convidar, logo quando cheguei aqui em 2010 para
participar do processo de criação do Coral da UFC, me acolhendo também na história do coral.

A Carol Veras e família! Obrigada, Carolzinha pelas fotos e por todo carinho.

Agradeço a Marialice pela contribuição na revisão da tese.

Agradeço aos estudantes, professores e funcionários do curso de Teatro-Licenciatura da UFC


por todo apoio.

Agradeço aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira-PPGEB da


Universidade Federal do Ceará, aos professores e colegas que conheci e que muito aprendi.

Agradeço também a toda a aprendizagem, mudanças, deslocamentos de percepção em mim,


proporcionadas pelos encontros que ocorreram a partir desta pesquisa: pessoas que conheci,
autores que tive o prazer de ler e encontrar ecos que ressoam nas pulsações de minha pesquisa.
Muito Obrigada!
As emoções mais intensas suscitam o som da voz, raramente a
linguagem: além ou aquém desta, murmúrio e grito,
imediatamente implantados nos dinamismos elementares. Grito
natal, grito de crianças em seus jogos ou aquele provocado por
uma perda irreparável, uma felicidade indizível, um grito de
guerra que, em toda a sua força, aspira a fazer-se canto: voz plena,
negação de toda redundância, explosão do ser em direção à
origem perdida - ao tempo da voz sem palavra (ZUMTHOR,
2010, p. 11).
RESUMO

O presente estudo, de característica teórico-prático, é uma cartografia da voz em


processo de criação e aprendizagem nas Artes Cênicas. O conceito de movência do medievalista
e estudioso sobre voz: Paul Zumthor, a noção artística de Work in process (Cohen) e de corpo-
vibrátil (Rolnik) foram noções que impulsionaram o pensamento desenvolvido nesta tese, na
qual a aprendizagem de vocalidades poéticas ocorre no corpo-vocal em estado de experiência,
constante movimento, em conexões de escuta com o ambiente da cena, assim como na vida.
Tendo em vista o caráter prático deste estudo, uma pesquisa de campo foi realizada por meio
da criação do laboratório “Vocalidades Poéticas” contando com a participação de estudantes
dos cursos de Teatro-Licenciatura e Cinema e Audiovisual do Instituto de Cultura e Arte da
Universidade Federal do Ceará. Este laboratório partiu das seguintes indagações: Como
podemos estabelecer uma escuta aberta à voz do outro, favorecendo um conhecimento vocal a
partir dessa escuta? De que modo podemos fazer-conhecer um processo de criação de
vocalidade poética que permita um corpo-vocal em estado de movência e com presença viva,
vibrátil, na cena? Nesta pesquisa, foi constante o exercício de entender no corpo da escrita os
processos de criação-aprendizagem da voz como pertencentes a múltiplos conhecimentos,
apontando para um ambiente de trans(formação) próprio à processualidade da criação e do ato
de conhecer fazendo, no qual outras vozes, outros corpos, outros sujeitos puseram-se em
existência e diálogo. Para tanto, nos rastros que ficam nesta tese, encontramos autores oriundos
de diferentes áreas do conhecimento que teceram relações nesta pesquisa a medida que o
próprio caminhar da pesquisa encontrava ecos nos mesmos, nisto consistindo seu teor
cartográfico. São eles: Do teatro (Artaud, Grotowski, Lehmamm, Cohen), da música (Murray
Schafer, Borges Caznok, John Cage), da psicanálise (Suely Rolnik), estudos do corpo e da
dança (José Gil e Christine Greiner), da ciência (Maturana e Varela), da educação (Bondía),
entre outros. Voz, processo, sinestesia e ambiente da cena se conjugam neste estudo para
disparar processos pedagógicos-artísticos que permitam pensar a vocalidade poética no âmbito
das artes da cena, a partir de uma noção de voz não apenas como condutora de um sentido único
verbal, mas como força tátil-sinestésica, corpórea, vibrátil, erótica no encontro entre corpos-
vocais, na escuta do outro, num constante jogo relacional de encontros sonoros.

Palavras-Chave: Pedagogias da Voz; Experiência; Processo de criação; Vocalidade Poética;


Escuta.
RESUMEN

El presente estudio, de característica teórico-práctica, es una cartografía de la voz en el


proceso de creación y de aprendizaje en las Artes Escénicas. El concepto de ‘mudanza’ del
medievalista y estudioso de la voz: Paul Zumthor, la noción artística de Work in Process de
Renato Cohen y de cuerpo-vibrátil de Suely Rolnik, son nociones que impulsan el pensamiento
desarrollado en esta tesis, en esta el aprendizaje de vocalidades poéticas se da en el cuerpo-
vocal en estado de experiencia, en constante movimiento, en conexiones de escucha con el
ambiente de la escena, así como en la vida. Considerando el carácter práctico de este estudio,
una investigación a campo fue realizada por medio de la creación del laboratorio “Vocalidades
poéticas” que contó con la participación de estudiantes de los cursos de Teatro-Pedagogía y
Cine y Audiovisual del Instituto de Cultura y Arte de la Universidad Federal del Ceará. Este
laboratorio se inició a partir de algunas interrogantes: ¿Cómo podemos establecer una escucha
abierta a la voz del otro, favoreciendo un conocimiento vocal a partir de esa escucha? ¿De qué
manera podemos hacer-pensar un proceso de creación de vocalidad poética que permita un
cuerpo-vocal en estado de ‘mudanza’ y con presencia viva, vibrátil, en escena? En esta
investigación fue una constante el ejercicio de entender en el cuerpo de la escrita los procesos
de creación-aprendizaje de la voz como pertenecientes a múltiples áreas de conocimientos,
apuntando para un ambiente de trans(fomación) propio de la procesualidad de la creación y del
acto de conocer-haciendo, en el cual otras voces, otros cuerpos, otros sujetos se ponen en
existencia y diálogo. De esta forma, en los rastros que aparecen en esta tesis, encontramos ecos,
resonancias en las ideas de autores oriundos de diferentes áreas del conocimiento, cuyas
conexiones se fueron dando durante el propio caminar de esta pesquisa, en esto consistiendo su
modo cartográfico. Son ellos: Del teatro (Artaud, Grotowski, Lehmann, Cohen), de la música
(Murray Schafer, Borges Caznok, John Cage), del Psicoanálisis (Suely Rolnik), Estudios del
Cuerpo y de la danza (José Gil y Christine Greiner), de la ciencia (Maturana y Varela), de la
educación (Bondía), entre otros. Voz, proceso, sinestesia y ambiente de la escena se conjugan
en este estudio para disparar procesos pedagógico-artísticos que permitan pensar en la vocalidad
poética dentro de las artes de la escena, a partir de una noción de la voz no apenas como
conductora de un sentido único verbal, mas como fuerza táctil-sinestésica, corpórea, vibrátil,
erótica en el encuentro entre cuerpos-vocales, en la escucha del otro, en un constante juego
relacional de encuentros sonoros.

Palabras-Clave: Pedagogías da Voz; Experiencia; Proceso de creación; Vocalidad Poética;


Escucha.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1- Galeria dos Quadros 24


Figura 2- Voz e Sinestesia 47
Figura 3- Fechei os olhos e fui 54
Figura 4- Instalação água, flores e anjinhos 55
Figura 5- Mãe 58
Figura 6- Um corpo coletivo- Um corpo só 59
Figura 7- Paisagem Sonora 73
Figura 8- Ambiente- Corpo 75
Figura 9- Cavidade Primal 77
Figura 10- Saudade 79
Figura 11- O outro 81
Figura 12- Diferente eu 90
Figura 13- Diferente eu 90
Figura 14- Corpo-Bicho 91
Figura 15- Palavra selvagem 98
Figura 16- Vaca 104 e 105
Figura 17- Vocalidade- Bicho 107
Figura 18- Desacostumar 108
Figura 19- O som do outro 115
Figura 20- Viver aquele lugar/ Ser água 119
Figura 21- Água 120
Figura 22- Vazio 121
Figura 23- Mala de Sonoridades 123
Figura 24- Meninas 126
Figura 25- Estado de Música 127
Figura 26- Passa Exu 129
Figura 27- Presságio de cangaceira 132
Figura 28- Marcas 133
Figura 29- Um corpo coletivo 137
Figura 30- Pele 140
Figura 31- Rascunhos do que fica 142
Figura 32- Escuta 144 e 145
Figura 33- Afetos 147
Figura 34- Corpo que se abre e se fecha 155
Figura 35- Eu 161
Figura 36- Vocalidade Vibrátil 162
Figura 37- Embriagues 164
Figura 38- Corpo inteiro que resiste 167
Figura 39- Sangue e pó 168
Figura 40- Abismo 169
Figura 41- Farinha 170
Figura 42- Palavra Carne 173
Figura 43- Voz/sabor 175
Figura 44- Beijando o mundo 176
Figura 45- Lírio formoso 178
Figura 46- Balanço 179
Figura 47- Cheiro respira 180
Figura 48- Anjinhos 181
Figura 49- Mãos que acolhem 183
Figura 50- Esperança 184
SUMÁRIO

1. RASTRO 1 – PARA CONHECER ÁGUA, FLORES E ANJINHOS 13

1.1 Histórico da pesquisa 14


1.2 Processo de criação 18
1.3 O laboratório de criação 34

2. RASTRO 2 – POR UMA VOCALIDADE POÉTICA:


INSPIRAÇÕES PRIMEIRAS 45

2.1 Zumthor e a voz em performance 48


2.2 Artaud e a palavra encantada 49

3. RASTRO 3 –
A VOZ NA HISTÓRIA DE UM LUGAR NO TEMPO PRESENTE 56

3.1 Voz e movência 56


3.2 Flores D’América: vozes quebradas do cangaço 64
3.3 Memórias sonoras que atravessam o corpo-vocal 70

4. RASTRO 4 – VOCALIDADE BICHO OU DEVIR-OUTRO SONORO 81

4.1 Por uma vocalidade vibrátil 87


4.2 O texto como material de contato da vocalidade-vibrátil 92
4.3 A presença do ritual 96
4.4 Expirações sonorizadas 99
4.5 Música que cria atmosfera 102

5. RASTRO 5 – ESTADO DE ESCUTA:


VOZ E SONORIDADES COMO PELE DA CENA 108

5.1 Sonoridade da cena: breve percurso histórico 109


5.2 Contribuições musicais para a escuta da cena 112
5.3 Quem vai botar água nas flores dos anjinhos? ______116
5.4 A mala guardada de coisinhas sonoras 122
5.5 Coro de cangaceiras 128
6. RASTRO 6 – AMBIENTE DE CRIAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS VOCAIS 134

6.1 As marcas da experiência 134


6.2 Corpo-voz em conexão com o ambiente de criação 136
6.3 Processo de criação-aprendizagem vocal 138
6.4 Voz na rede do conhecimento 142

7. RASTRO 7 – UM LABORATÓRIO DE RASTROS 150

7.1 Escuta de si / Ambiente 152


7.2 Vocalidade – Vibrátil 158
7.3 Vocalidade sensorial/ voz enquanto textura 163
7.4 Materialidade da palavra 171
7.5 Ecos de tecidos afetivos 177

8. RASTRO 8 - ABERTURAS POSSÍVEIS 185

9. REFERÊNCIAS 191

10. ANEXOS 199


RASTRO 1

PARA CONHECER
ÁGUA, FLORES E ANJINHOS

Noite de Maio. Mês de Maria. Vozes femininas, ressoando numa


capela de fazenda do interior da Bahia. Rostos alumiados pela
luz do candeeiro pedindo por pessoas queridas. Algumas poucas
velas também clareiam as flores e os santinhos. Vozes fortes,
presentes, cheias de vida, que ganham uma ressonância infinita
na junção de um pouco mais que meia dúzia de mulheres com
seus cantos de louvor. Fecho os meus olhos. À medida que
lembro, a sensação do som das vozes ganha corpo em mim,
fazem vibrar algo vivo, pulsante. Vibração sem tamanho em um
espaço ilimitado de vozes. Atualizo uma memória sonora no
corpo, de uma voz que não é senão presença, sem marca de
conhecimento cronológico. Passado o mês de maio, chega o mês
de junho e com ele as vozes misturadas aos fogos de artifício da
trezena de Santo Antônio entoada por essas mesmas mulheres
durante treze dias. Vozes rasgadas, entoadas numa desgastada
e intensa vibração e de um ressoar infinito que faz cantar todo o
meu corpo. Juntas, elas pedem pelos seus e pelos outros, numa
polifonia de encontros de vozes que cantam há muitos anos,
memórias vivas de um passado longínquo que se reatualiza nas
vozes dessas mulheres. São vozes em um corpo só, em um
coletivo que vibra em nós, nos dizendo que não estamos sós.
Jamais permanecemos os mesmos após esse encontro de afetos
sonoros, sensíveis que arrebatam o corpo. Seguindo o mês de
junho, neste mesmo ambiente rural, cantamos e dançamos
também com São João e São Pedro, viva! Regados pelo licor de
jenipapo, aos sabores do milho, do bolo de aipim, da canjica....
Também pulsam a zabumba, o triângulo, o fole da sanfona nas
noites lindas de São João! E no outro dia vem o arrastão, o
povo todo de novo cantando xote, xaxado e baião e pedindo a
dona da casa o que comer e o que beber para não ir embora... E
a folhinha passa, passa, passa São Cosme e Damião, Santa
Luzia, Nossa Senhora das Graças, Senhor do Bonfim... festejos
que misturam vozes do sagrado a outros sons do profano. Vozes
se juntam para agradecer, pedir com fé e devoção.

Essas são marcas sonoras que me habitam e suas forças físicas, nos interstícios do
tempo, me fazem lembrar: estados vividos de encontros sonoros com outros corpos, diferença
que nos arranca de nós mesmos. Jamais permanecemos os mesmos depois de viver esse
13
acontecimento sonoro presente na festividade religiosa, acredito eu, de qualquer canto rural e,
neste caso, do nordeste brasileiro. São marcas de vozes que continuam vivas em mim,
pedindo proliferação, pedindo novas linhas no tempo, como exigências de criação. Violenta
urgência.

1.1 Histórico da pesquisa.

Esta pesquisa de doutorado em Educação Brasileira, linha de Educação, Currículo e


Ensino, eixo de ensino de Música, nasce de inquietações, oriundas da minha experiência
como professora e pesquisadora da área de voz nas artes cênicas, graduada em
Fonoaudiologia, com mestrado em Artes Cênicas, somadas à minha experiência de corpo
oriunda da dança e do teatro.1 Tendo a voz como inquietação de pesquisa e desdobramento de
uma prática nas artes cênicas, ao longo da minha trajetória artística e acadêmica surgiram
questões sobre esta temática, inicialmente ainda no mestrado, no que se refere a
especificidade da voz nas artes cênicas. A minha pergunta inicial, ainda no mestrado, girava
em torno da aquisição e desenvolvimento técnico para a criação vocal do ator: como ocorrem
seus processos de aprendizagem mobilizados pela imersão em um processo de criação que
envolve, e não separa, o corpo-voz?

Desta pergunta, iniciei a minha pesquisa de mestrado sobre voz do ator, derivando na
dissertação intitulada Canção do Mar de Salema: um processo de criação articulado pela
voz do ator (PEREIRA, 2007), que contemplou um laboratório prático de pesquisa e partiu
das didascálias sonoras que representavam o mar do texto ‘O capataz de Salema’ do
dramaturgo pernambucano Joaquim Cardozo. Este laboratório contou com a participação de
alunos-atores e atores-bailarinos que eram estudantes da Escola de Teatro da Universidade
Federal da Bahia e também três atores do grupo Rapsódia de Teatro, grupo do qual eu fazia
parte quando morava em Salvador e também de duas atrizes profissionais interessadas na
pesquisa, ao todo eram dez participantes. Portanto, tínhamos um grupo de trabalho de
formação híbrida, abrindo possibilidades de cruzamentos, tanto para mim, enquanto
pesquisadora, quanto para o grupo, que se deixava contaminar pelos acasos sonoros que
surgiam no processo por esses distintos corpos-sonoros.

1
Esta tese foi concebida com uma série de páginas com texturas diferenciadas, no intuito de trazer ao leitor
rastros sensórios do processo de criação. A tese impressa se encontra na biblioteca do DOC-Teatro da
Universidade Federal do Ceará, localizado nos anexos do Teatro Universitário desta Instituição.
14
Quando ingressei no doutorado, logo percebi que este seria um desdobramento de
inquietações surgidas no mestrado, questões estas que ficaram abertas e ainda pulsando,
insistindo pelo exercício do conhecer a partir da experimentação, tais como: as relações de
escuta necessárias para o desenvolvimento da voz do artista da cena– escuta do outro, escuta
do mundo sonoro que nos envolve, escuta das vozes –, memórias que atravessam o nosso
corpo compondo uma vocalidade cênica; lapidar o processo de criação da sonoridade da cena
na interface voz, palavra falada, canto, objetos sonoros que pudessem ser utilizados pelos
atores no intuito de aguçar um sentido de musicalidade do mesmo e a percepção de que em
tudo que eles fazem sonoramente em cena há uma potência de musicalidade, combinações de
sons que podem despertar sensações, sentidos, em uma linguagem pré-verbal para a cena.
Tudo isso pensando na ideia de propiciar uma criação de vocalidade poética, matéria sonora
que se torna um ‘acontecimento’ corpóreo naqueles que emitem e escutam o som, a voz
sonorizada com esse teor de escuta sinestésica. Como podemos entender o termo “vocalidade
poética” nesta pesquisa? O que seria um acontecimento vocal?

Deixo-me estranhar pelas marcas vocais da minha memória e contaminar-me com


outros fluxos, outros encontros, como a leitura dos estudos do medievalista Paul Zumthor, na
busca de que outras sensações de experiência de acontecimento vocal inundem o meu corpo,
potencializando assim, o desejo de pesquisar, criar, aprender, inventar uma vocalidade –
acontecimento, arrebatadora para tecer novas redes de experiências vivas que alimentem o
meu ofício de professora, pesquisadora de voz nas artes da cena.
O pesquisador suíço Paul Zumthor, que inicia os seus estudos analisando as marcas
vocais registradas na poesia medieval, logo lança-se também ao estudo das manifestações
contemporâneas, desde os grandes festivais de rock, das cantorias do nordeste brasileiro, aos
rituais dos griôs na África. Nessas viagens por localidades diversas e laboratórios vivos de
culturas com tanta expressão de oralidade, o autor percebe a força viva da voz em situação de
performance, no sentido definido como texto em presença. Zumthor, inquieto nos seus
estudos sobre voz, foi incapaz de permanecer em uma única direção. Ele apontava para uma
dinâmica viva interna da vocalidade poética na sua energia movente, através da qual entendia
a voz como uma emanação de ecos das nossas memórias, em uma ruptura de lógicas, que não
obedecia a fórmulas. A vocalidade poética está antes de qualquer imposição semântica, “é
querer dizer e vontade de existência, lugar de uma ausência que, nela, se transforma em
presença” (ZUMTHOR, 2010, p.9).

15
No termo movência, encontrado nos estudos de Zumthor, o mesmo percebe o aspecto
nômade da voz que percorre espaços sensoriais. No deslocamento da voz, o corpo encontra
imagens, gostos...uma sinestesia também encontrada nas palavras de um texto, bem como em
toda a sensorialidade que acontece no ato do encontro. Portanto, a vocalidade poética é uma
presença que nunca se fixa e no qual se enriquece a presença instável da voz, nunca a mesma,
apresentando-se como ecos de uma história de oralidades, que nos estudos de Zumthor
entendemos como vocalidades, ou melhor, vocalidades poéticas quando trazem desejo de
poesia, transmissão de energia que sempre leva a voz, o sopro da vida à escuta do outro. Para
Zumthor a voz é a própria alteridade.
É na sua espessura concreta, na tactilidade do sopro, na urgência do respiro que a voz
“se diz enquanto diz” (ZUMTHOR, 2010, p.12). Cada sílaba é sopro, ritmo cardíaco, fluxo
sanguíneo, é vibração óssea, é erotismo, é corporal. A vocalidade poética é aquela que produz
desejo, ao mesmo tempo em que é produzida pelo desejo. O som vocal, que podemos
entender como pré-nome, divaga em ressonâncias infinitas, quando não é uma falsa oralidade,
que apenas verbaliza uma escrita.

A voz não faz mais, não pode fazer mais do que pré-nomear as coisas,
e -nós sabemos hoje melhor do que antes – é esta a operação poética
por excelência. Um prenome não significa nada senão uma presença:
uma ori-gine (“saída da boca”, se nos reportamos ao latim), fora das
afiliações e das genealogias. O pre-nome tende a revirar a deriva que,
nas águas da linguagem, empurra os nomes para o sentido, o concreto
para a abstração escolhida (ZUMTHOR, 2010, p.321).

Zumthor identifica o correr da voz no corpo com o correr da água. Ou como no útero
materno, a vocalidade poética se dá no íntimo do encontro, na escuta, no intenso contato dos
corpos, no calor comum, sensações musculares que apaziguam. E segundo Zumthor (2010)
assim se esboçam os ritmos da palavra futura, num encontro de afetividade, de “uma música
uterina” (2010, p.16).

As emoções mais intensas suscitam o som da voz, raramente a


linguagem: além ou aquém desta, murmúrio e grito, imediatamente
implantados nos dinamismos elementares. Grito natal, grito de
crianças em seus jogos ou aquele provocado por uma perda
irreparável, uma felicidade indizível, um grito de guerra que, em toda
a sua força, aspira a fazer-se canto: voz plena, negação de toda
redundância, explosão do ser em direção à origem perdida - ao tempo
da voz sem palavra (ZUMTHOR, 2010, p. 11).

16
Palavra que nasce de uma sinestesia. É isto que chamamos nesta pesquisa de
vocalidade poética, a partir dos estudos do teórico sobre performance vocal Paul Zumthor.
Seus textos realçam o desejo por escutar, presenciar vocalidades poéticas na vida e nas artes
da cena, o que é muito relevante nos dias de hoje, no qual vivemos um mundo com grande
desequilíbrio entre o apelo visual e o estímulo auditivo.

Essa escuta arcaica de uma força sonora viva pode ser percebida nas festividades
religiosas do nordeste do Brasil, que ativaram as primeiras inspirações2 desta pesquisa. E,
destas experiências, surgiram as seguintes perguntas: Como mobilizar essa potência sonora
viva no atuante e na cena teatral? Como podemos estabelecer uma escuta aberta à voz do
outro, favorecendo um conhecimento vocal a partir da escuta? Como seria possível criar a
vocalidade poética nas Artes Cênicas? Como as referências populares podem ser
transfiguradas no corpo-vocal do atuante? De que modo podemos fazer-conhecer um processo
de criação de vocalidade poética que permita um corpo-vocal em estado de movência?

Estes questionamentos foram a chave para esta pesquisa de doutorado, fluxos que
transitam no campo da performance da voz (no teatro, na música, na performance art, na
dança), nos processos de criação de linguagem, na vocalidade poética das tradições populares.
Aqui tento perceber e conhecer como isto se materializa na criação vocal do atuante. Contudo,
não se trata de indagar, a partir de um olhar sobre a vocalidade poética, num folclorismo
tradicional fixo. Nesta pesquisa, como se poderá perceber no decorrer deste texto, temos
como base as noções de tradição e memória apresentadas pelo medievalista Paul Zumthor.
Segundo o referido autor, esta não é fixa, senão móvel, em fluxo, permeando de forma
abrangente o atual, o nosso presente. Assim, aqui entendo a manifestação popular como algo
ligado à tradição e à contemporaneidade simultaneamente, conforme será colocado
posteriormente no corpo do escrito.

A especificidade da voz em cena, dentro da perspectiva desta pesquisa exige uma


presença na qual o entendimento somente da mensagem verbal apresenta-se deficitária para o
teatro contemporâneo. Torna-se necessário trazer à cena a força sonora da palavra, o seu som,
ação vocal, preenchendo o ambiente de criação. É necessário que haja um abraço sonoro,3 um
envolvimento sonoro que afete o corpo. Nesta perspectiva, a vocalidade poética transpõe os
limites da cena, da fala articulada, se esparramando no inarticulado, nos gemidos, sussurros,

2
Falo inspirar no sentido fisiológico da respiração que remete a palavra nutrir, encher para poder trocar, entrada
do ar para depois expirar.
3
Termo utilizado pelo Método Espaço-Direcional Beuttenmüller.
17
respirações. Este pensamento traz o desejo de investigar a sonoridade, indagações sobre
processos de criação e aprendizagem vocal nas artes cênicas, levando-se em conta também, o
jogo de voz e de escuta de outras sonoridades da ambiência sonora da cena.

Nesta pesquisa, para cada palavra, se faz necessário encontrar a sua respiração,
intensidade, força articulatória, timbre, curva melódica e ritmo nas relações concretas
estabelecidas no ambiente de criação e sonorizadas pelo fluxo de imagens associadas aos
gestos vocais e corpóreos, manifestando assim, a sua potencialidade audiovisual em relação
tanto de dissonância quanto de consonância sonoras. Por meio da criação de uma linguagem
sonora, conhecimentos se cruzam gerando outras percepções de si e do mundo, outras
recriações. E o que interessa para este trabalho de pesquisa, são essas recriações no âmbito da
(trans)formação vocal daquele que vocaliza, uma criação sonora sempre em processo. Mas o
que é processo de criação?

1.2 Processo de criação.

O que quer dizer processo de criação na cena atual? E a partir daqui, como se opera
esta noção nesta pesquisa, de cunho teórico-prático na qual no seu percurso houve a
necessidade de realizar um processo laboratorial de criação cênica? Laboratório este que foi
realizado com alunas-atrizes na indagação de suas potências corpóreo-vocais, com atenção
para a riqueza prosódica, rítmica, timbrística das palavras e dos sons, no intuito de
desenvolver e explorar a força sinestésica da voz em cena. Voz, processo, sinestesia e cena se
conjugam nesta pesquisa para disparar processos pedagógico-artísticos que permitam pensar a
voz no âmbito das artes da cena com os seus atores (atrizes, performers, dançarinos, entre
outros), na sua força sensória, vibratória, corpórea. Com efeito, esta ligação está sendo
pensada na perspectiva de uma formação vocal ao longo desta pesquisa. No momento,
apresento o aspecto processual deste laboratório (o detalhamento do mesmo será dado mais
adiante), para delinear o contexto poético, no sentido de poiesis, de criação, no qual esta
pesquisa está inserida.
Dizer que se teve que planejar e realizar um laboratório de criação de vocalidade
poética nos leva a pensar em uma ordem linear que não condiz com o experienciado, pela

18
intermitência constante de etapas, ora com a realização de exercícios técnicos ora com
proposições de jogos de criação.
Seria mais coerente dizer que houve na experiência do laboratório um constante
planejar-realizar, em que o limite entre um e outro se constituiu enquanto limiar, pois era
difícil se perceber uma divisão fixa entre tais momentos. Na medida em que se realizavam as
experimentações, descobríamos e inventávamos uma própria dinâmica de formatação do
laboratório. Também o fato de formatar, ou seja, esboçar, projetar, preparar exercícios que
iriam ser realizados como impulsos para a criação, já constituía um ‘realizar’ das
possibilidades vocais e sonoras que seriam experimentadas, das possíveis vocalidades
poéticas. O que se percebeu durante a parte prática desta pesquisa foi um constante co-
engendramento da cena, nos laboratórios realizados com as alunas-atrizes, nas
experimentações corpóreas-vocais, nas descobertas sonoras com objetos, no trabalho vocal
com fragmentos de textos (escolhidos principalmente pela sua potência fonético-vibratória,
como desafio para o trabalho de voz no processo de criação). Estes elementos foram muitas
vezes concomitantes a proposta de laboratório de criação à composição de uma ambiência
sonora da cena. Esta nunca se fechou, pois ainda que tenha sido criado um roteiro de ações,4
durante o processo para uma apresentação pública, esta estava aberta a variações. As atrizes
necessitavam estar atentas, com uma escuta ativada a cada dia de apresentação, para perceber
o ambiente da cena e com ela, dialogar com seus ritmos e texturas, das palavras, dos jogos
estabelecidos entre elas mesmas. Uma constante conexão entre o corpo das atrizes e o
ambiente poético ali inventado. As aberturas na composição sonora da cena permitiram,
sobretudo, estimular um trabalho de vocalidade poética e de escuta das alunas-atrizes, no qual
as mesmas pudessem ativar constantemente um jogo relacional, de encontros.
O que ocorre é que em um procedimento aparentemente linear – 1) formatação dos
laboratórios de criação 2) experimentação de exercícios com as alunas-atrizes, 3) finalização
com uma composição cênica – quando visto do ponto de vista do limiar, seus movimentos
deixam de ser etapas fixas e consecutivas e se entrecruzam, se contaminam. O que se percebe
é que a linearidade do processo de criação é uma abstração que a rigor não existe, já que não é
possível aplicar-lhe uma lógica sequencial de causa e efeito, objetiva e eficaz como na ciência
racionalista/cartesiana. Ainda que se possa dizer que houve um início (quando começamos as
experimentações, ou mesmo quando se começou a esboçar o laboratório, durante este
processo de pesquisa) e um fim (no momento das apresentações públicas), o processo de
4
Este roteiro de ações foi gerado durante o processo, não existia previamente. Desta forma este processo de
criação não partiu de um texto fechado, com todas as suas indicações cênicas já delimitadas.
19
criação enquanto produção artística nos apresenta outras temporalidades, justamente as do
limiar, no qual o início nunca é o início e o fim nunca é o fim. Limiar que evidencia
intensamente a noção de processo, enquanto movimento, experimentação, desvio, retomada,
entre outros termos que apontam para um “complexo percurso de transformações múltiplas
[...] sustentado pela lógica da incerteza [...] que envolve seleções, apropriações e
combinações, gerando transformações e traduções” (SALLES, 2004, p. 27) na criação
artística.
Uma decisão de composição, durante o processo de criação no laboratório vocalidades
poéticas, gerava ideias para um próximo exercício de voz a ser experimentado, ou o próprio
propósito experimentado no laboratório permitia delinear algumas composições e jogos no
ambiente da cena, que nunca se fixou inteiramente, para deixar abertura às novas propostas
geradas pelas alunas-atrizes no próprio exercício do processo. E mesmo as primeiras
experimentações, quando esboçadas, já partiram de instigantes poéticas provenientes de algo
anterior, de outros referentes, como Zumthor, por exemplo, de desejos, de intuições, até de
ideias vagas sem força de projetar o que viria a ser o processo de criação com alunas-atrizes
da pesquisa, menos o que viriam a ser as sonoridades da cena às quais chegamos. A crítica de
arte Cecilia Almeida Salles (2004), que reflete a partir da crítica genética sobre processo de
criação artística, fala sobre uma espécie de ‘rumo vago’, ‘intuição amorfa’, ‘conceito’,
‘miragem’ (noções que ela toma dos próprios artistas) que direciona o processo de criação em
arte. Contudo, este não está necessariamente no início, pois como a mesma aponta acerca do
início de um processo de criação em arte:

Admite-se a impossibilidade de se determinar com nitidez o instante primeiro


que desencadeou o processo [de criação artística] e o momento de seu ponto
final. É um processo contínuo, em que regressão e progressão infinitas são
inegáveis. Essa visão foge da busca ingênua pela origem da obra e relativiza a
noção de conclusão (2004, p. 26).

Portanto, a potência da poiesis não se encontra em uma visão linear do processo de


criação. Essa linearidade deixa de considerar sua carga eminentemente processual, que
possibilita o entrecruzamento e a reversibilidade das supostas etapas de construção do
processo criativo. É de um romantismo mal entendido conceber a criação artística como tendo
origem apenas em um ‘insight arrebatador’, com a sua consequente finalização na culminação
da obra, sua perfeição; como se a passagem do caos à ordem fosse a metáfora emblemática da
criação em arte (SALLES, 2004). Isso é insuficiente para percebermos a riqueza e

20
complexidade de um processo de criação. Pode-se pensar com Salles, já que não evidencia a
‘recursividade’ e a ‘simultaneidade’ que caracteriza o processo, com seus encontros e
desencontros, seus desvios, perdas e retomadas, gerando uma “rede de tendências que se
inter-relacionam” (2004, p. 36). O que se destaca aqui é um movimento constante e muitas
vezes inusitado, ao ponto que esta mesma autora o nomeia de uma “estética da continuidade”
(2004, p. 26). Também, a teórica da dança Christine Greiner, ao pensar no que pode ser um
processo, nos diz:

Para começar, pode ser um bom exercício deixar de lado a noção de “etapas",
ou seja, daquilo que acontece sequencialmente, seguindo a lógica do progresso
ou da história tradicionalmente definida como uma coisa depois da outra.
Processos de pesquisa não são, afinal, radicalmente distintos dos modos de ser
de outros fenômenos vivos. São Complexos e imprevisíveis (GREINER, 2010,
p. 81).

Para esta autora esta noção de processo não é exclusiva da arte, mas também da
ciência, de qualquer atividade cultural, enfim, da vida: “Todos os fenômenos culturais, assim
como todas as organizações do vivo, são fluxos e móveis” (2010, p. 81). Precisamos atentar
que não se trata de qualquer arte, qualquer ciência, mas de toda uma visão que a partir da
modernidade vem pondo em questão os pressupostos transcendentais, metafísicos e absolutos
que buscavam fundamentar um ideal ocidental, um mundo estável, objetivável. Como se fosse
possível uma visão de mundo neutra e objetiva, separando analiticamente sujeito e objeto,
teoria e prática, corpo e mente, estabelecendo modelos de entendimento do real – modelos
que de alguma ou outra maneira ainda cruzam nosso tempo –, sendo que a modernidade, pelo
seu efeito de constante questionamento de tudo, seja na arte, na ciência ou na filosofia,
permitiu perceber este ideal de objetividade como um mito a mais no mundo. Segundo o
investigador teatral espanhol Oscar Cornago,

A partir de uma perspectiva estética da Modernidade, a própria ciência pôde


ser entendida como um mito a mais, a construção de um discurso em função
de alguns interesses, perdendo sua pretendida objetividade, a inocente
neutralidade da qual não poderá mais gozar nenhum sistema de representação.
(2004, p. 40, “tradução nossa”)

O que há, em termos culturais mais amplos, é um questionamento de como se constitui


o mundo, como ele é representado. O autor questiona o próprio ato de representar, pois
implica um mundo dado a ser refletido. Aqui podemos pensar no contexto da arte, no sentido
que se pode perguntar: ela representa a realidade ou a inventa? Mas o que é a realidade? Algo
a ser descoberto ou a ser construído? Algo da ordem do acabado ou do inacabado?
21
A própria ciência gera toda uma problematização, a partir desta crise da representação
científica, de sua pretensa objetividade, dando passagem a um ‘Construtivismo Radical’.
Cornago (2004) cita alguns cientistas que provocam este deslocamento, tais como o
matemático vienense Kurt Gödel e sua teoria do indecidível ou da incompletude, na qual os
teoremas demonstram sua consistência apenas na incompletude, negando qualquer
possibilidade de uma teoria total da matemática. Cita também o físico alemão Werner
Heisenberg e seu princípio da incerteza, do qual se pode inferir que para obter qualquer
resultado, ou medida (como a posição de um elétron, por exemplo) devem utilizar materiais
de medidas que certamente interferem no resultado. O que podemos pensar com esses
estudos, é a impossibilidade de conhecer diretamente o mundo, como algo previamente
estabelecido, construído, pois as únicas ideias e/ou representações da realidade que podemos
alcançar, é este mundo submetido às perguntas e possibilidades de conhecimento de nós,
humanos. Não conhecemos, neste sentido, a natureza e seus fundamentos, conhecemos o que
humanamente podemos perceber no e com o mundo, este se torna instável, relativo. O
teatrólogo e filólogo Cornago comenta algo chave para entender esta noção de processual:

Perante uma física de leis, constantes e fundamentos, se ilumina um mundo de


relações carentes de essências e centros, sistemas nos quais tudo está em
interação com tudo, até o ponto de impedir a concepção de uma realidade
estável, desalojada a favor de um universo de incertezas, aproximações e
probabilidades. (CORNAGO, 2004, p. 41 “tradução nossa”)

Isto se vincula com o que outros dois cientistas, Humberto Maturana e Francisco
Varela, citados também por Cornago, e de interesse para esta pesquisa, chamam de
autopoiese, sendo isso algo característico dos sistemas vivos, no qual se está produzindo a si
próprio continuamente. Em uma série de entrevistas dadas durante 2001, Maturana reflete
sobre este conceito, com o qual contribui com o pensamento contemporâneo a partir do
campo da biologia:

Quando examinamos um sistema vivo, encontramos uma rede de produção de


moléculas, as quais interatuam de tal maneira que por sua vez produzem
moléculas que mediante sua interação geram justamente esta rede de produção
de moléculas e fixam suas beiras. Uma rede assim a chamo de autopoiética.
Então, quando a nível molecular nos encontramos com uma rede deste tipo,
cujas operações tem como resultado produzir a si mesmas, temos um sistema
autopiético e por conseguinte um sistema vivo. Se produz a si mesmo. Este
sistema é aberto no que tange ao intercambio de matéria, mas fechado no que
se refere à dinâmica das relações que produz” (MATURANA e PÖRKSEN,
2004, p. 54 “tradução nossa”)

22
Se o sistema produz a si mesmo, de uma maneira autónoma, assim diz Maturana,
precisamos entender esta autonomia, pois não está desvinculada do meio, mas sim é a
condição para que se forje essa organização autopoiética. Esta organização é fechada,
circular, no sentido de gerar uma diferenciação em relação ao meio, é isso o que os define
como sistemas vivos, neste contexto quando se diz ‘fechado’, pode se entender ‘diferenciado’.
Visto isso, “O que caracteriza o ser vivo é sua organização autopoiética. Seres vivos
diferentes se distinguem porque têm estruturas distintas, mas são iguais na organização”
(MATURANA e VARELA, 2011, p. 55). Assim, também esta organização é aberta, já que se
deixa modificar na medida em que se modificam também o meio, como duas ou mais
circularidades postas simultaneamente à deriva (MATURANA e PÖRKSEN, 2004), já que o
contato com o meio é também o contato com outros sistemas vivos. A proposta destes
pensadores é que justamente os seres vivos se caracterizam pelo fato de “– literalmente –
produzirem de modo contínuo a si próprios [...] donde se conclui que não há separação entre
produtor e produto. O ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis, e isso
constitui seu modo específico de organização” (MATURANA e VARELA, 2011, p. 52 e 57).
Deste modo, este pensamento também se constitui como uma crítica à representação.
O conhecimento não é uma reflexão acerca do mundo e sim a construção do próprio mundo. É
este ponto que queremos ressaltar, no qual conhecer é fazer, e mais ainda, com a atenção para
o fato de que tudo o que é falado e pensado é realizado por alguém em um determinado tempo
e lugar. Este pensamento se dá como um combate às certezas estabelecidas, evitando cair na
representação (pretensão de objetividade) e no solipsismo (idealismo), “sem nenhum ponto de
referência independente de nós mesmos, que nos garanta a estabilidade absoluta que
gostaríamos de atribuir às nossas descrições” (MATURANA e VARELA, 2011, p. 263). O
que fica claro é que o mundo que produzimos com os outros, ou seja, o conhecimento, não
possui ponto estável, e sim móvel, como em um quadro de Escher (os autores citam a figura
do rapaz da obra Galeria dos Quadros/ver pág. seguinte), nessa reversibilidade entre galeria e
cidade, entre pensamento e mundo, entre pensar e fazer, entre sujeito e objeto o mundo se
torna movimento, instabilidade.
Neste contexto percebe-se a vertigem do que é processual, e se continua aqui o
questionamento que isso abre no fenômeno da representação, de crucial importância para
pensar as contribuições da arte no panorama contemporâneo de pensamento e das pedagogias
nela implicadas. Não é por acaso que Maturana e Varela, ambos cientistas, exemplifiquem sua
teoria com um artista como Escher, permitindo fazer a relação com uma visão da arte –

23
sobretudo no caso do teatro, lugar emblemático da representação, agora longe de qualquer
idealismo (belo), realismo (a objetiva realidade) ou tese (a verdade) – que vem a questionar
seus próprios procedimentos de criação, de modo auto-reflexivo. É como se na noção de
processo de criação a balança começasse a pesar para o lado obliterado do termo processo
(movimento, indagação, inacabamento), abandonando o termo criação, no sentido de uma
obra acabada. Muda-se radicalmente o estatuto da obra de arte, seja em um resultado artístico
delineado, em formato de livro, quadro, música, entre outros; ou em um resultado artístico

24
que se negue enquanto resultado, que se assume como processo, configurando o que hoje se
conhece como work in progress5.
Greiner também aborda este caráter processual da arte, a partir de seus estudos entre
dança, corpo e cultura:

Em um nível muito básico (do micro), tudo é processo: no corpo, na vida, na


arte. A natureza processual pode ser reconhecida, nesse sentido, mesmo
quando o sistema está temporariamente estabilizado (como espetáculo, por
exemplo). Isso porque, mesmo nessas circunstâncias do supostamente
“pronto”, há sempre uma taxa de inacabamento e descontinuidade. (2010, p.
81)

Para Cecilia Salles, no processo de criação se dá uma estética de continuidade em


conexão com uma estética do objeto estático (2006), o que gera um caminho de tensão, uma
vez que uma obra acabada nunca é uma obra acabada. Além disso, Salles comenta que se a
obra está acabada é porque se tratou de um processo inacabado. Há, na realidade, uma riqueza
criativa do inacabamento, já que “o combate do artista com a matéria nessa perseguição que
escapa à expressão é uma procura pela exatidão e precisão em um processo de contínuo
crescimento. O artista lida com a obra em um estado de contínuo inacabamento” (2006, p.
78). Esta proposta da arte como lugar de movimento, de instabilidade, no imprevisível, vai
impedir a possibilidade de modelos normativos que venham a dominar ou a propor soluções
mecânicas para a criação. O processual é anti-normativo, para isso precisará ser também,
como dito acima, auto-reflexivo, questionando seus próprios meios materiais e de
composição. Neste sentido, não se tem mais a obra como verdade (seja o Belo, o real, ou uma
tese verificável) e sim uma possibilidade e um acontecimento.
Vale dizer que quando dizemos processo não fazemos referência à ideia de
processamento, conceito este advindo de conhecimento proveniente da teoria da informação,
como entrada de dados que devem ser processados com lógicas pré-estabelecidas. Gerando
resultados, em uma lógica computacional que se desvincula, se pretende limpa, de planos
extra-informáticos, ou melhor, de planos supostamente “extra-cognitivos”, como o social, o
histórico, o plano dos afetos (BARROS e KASTRUP, p. 58, 2009). É justamente o contrário,
o processual deseja conexão com todos estes planos e de maneira intensa, vibrátil, corpórea.
Esta atenção ao processual no campo da arte desloca vários dos seus parâmetros tidos como
fixos, como por exemplo, a linearidade da origem e a conclusão da obra, como referido acima.
O que cai aqui por terra é também uma noção de originalidade da arte, no qual o autor é o

5
Work in progress pode ser traduzido como trabalho em curso, em andamento.
25
dono exclusivo da obra, já que como mostra a pesquisadora sobre processo Cecília Salles, o
artista não cumpre sozinho o ato de criação, “o próprio processo carrega esse futuro diálogo
entre o artista e o receptor” (SALLES, 2006, p. 47). A obra está ligada a uma recepção, a um
outro implicado. Quais são as possibilidades que se tem dessa relação com o outro? Será que
é a da representação? Será válido aqui refletir acerca da representação para além do campo
teatral, nos seus alcances no campo do conhecimento, do como conhecemos, no sentido de
não seguir um modelo prévio já formatado dogmaticamente (de maneira representativa).
Ainda assim, é nesta arte onde se pode encontrar uma maneira de entender o que está em jogo
na ordem da representação, sobretudo na distinção que nesta área se faz entre teatralidade e
representação.
Cornago faz uma distinção, no campo de estudos da arte teatral, entre teatralidade e
representação, argumentando que tal distinção é importante pois sempre se confunde esses
termos como se fossem análogos. Esta distinção será importante, pois nela se percebe e se
exemplifica toda a crítica à representação. A arte na lógica da representação, do realismo por
exemplo, leva o espectador a uma ilusão figurativa ou cênica, permitindo ao mesmo uma
decodificação altamente referencial do que se está presenciando. Cornago dá o exemplo do
travestimento, na medida em que este esteja muito acabado, irreconhecível como travesti,
perfeito (poderíamos dizer), se acaba o jogo da teatralidade, ficando portanto, no plano da
representação. Este oculta seus procedimentos materiais de criação, não os evidencia em
função de estabelecer um sentido de verdade (realismo), de acabamento, para o espectador.
Já a teatralidade expõe o jogo, como um dobramento da representação, evidenciando
escancaradamente o significante, seus procedimentos materiais. Expõe o que a representação
nega, seu caráter de construção, havendo assim “uma ênfase na exterioridade material, a
ostentação da superfície da representação [...] o código chama a atenção para si mesmo, se
fazendo mais visível” (CORNAGO, 2009, p. 10). O que há é a necessidade de atrair o olhar
do outro, retirá-lo da ilusão de acabamento da obra envolvê-lo no caráter processual deste
fenômeno, “seu funcionamento interno, e é ali onde há que se encontrar o sentido”
(CORNAGO, 2009, p. 10).
Obviamente o sentido aqui deixa de ser único, se abre ao encontro com o espectador,
sendo ele que vai determiná-lo ou não a partir do encontro com a obra, de seu envolvimento
perceptivo com esse processo poético. Neste sentido não existe uma negação da
representação, mas sua suspensão, uma aposta no jogo uma vez que se torna evidente seu
caráter de construção, seus procedimentos de composição. A obra fica aberta a uma

26
pluralidade de possíveis sentidos, já que o mais importante se torna não o que se diz, mas
como se diz, na sua relação processual com o receptor. É isso que está em jogo no processo de
criação na atualidade, delineando o contexto no qual se dá esta pesquisa, nesta rede poética
cujos alcances são vastos no campo do conhecimento. Deste modo, o que se pretende
pesquisar aqui quando se diz vocalidade poética do artista cênico?
Este panorama processual aberto no campo da arte, tem sido levado ao extremo por
alguns artistas a ponto de converter o processo em obra. Neste sentido, nos dias de hoje, o
inacabamento já referido, se torna a própria feitura da arte, de forma explicita, exposta,
exteriorizada, como ocorre nas obras de arte denominadas também de work in progress. É
neste contexto que a presente pesquisa quer investigar a força cênica da vocalidade poética.
Ainda que no universo artístico esta noção tenha surgido nas artes plásticas,6 a mesma
tem se expandido enormemente dentro deste campo gerando uma série de deslocamentos
poéticos. O que não significa necessariamente que cada arte vai se apropriar deste termo para
introduzi-lo nos seus procedimentos sem mexer nas suas fronteiras, ao contrário, vai provocar
o cruzamento entre elas. Assim, hoje se tem um intenso trânsito e hibridização entre teatro,
dança, performance, cinema, música, dentre outras artes. O fator processual implica esta ação
de contaminação, expandindo as diversas artes, pondo a delimitação de suas fronteiras em
movimento. Neste cenário, Renato Cohen, um dos principais pensadores no Brasil desta arte
em processo, denominado por ele de work in process7, para reforçar seu caráter processual –
comenta sobre a mudança de paradigma aqui implicado. O autor diz o seguinte:

O procedimento work in process está associado a paradigmas emergentes da


ciência e do campo da linguagem, e se, por um lado, desconstrói sistemas
clássicos de narrativa (construção aristotélica, uso de trama, dramaturgia,
personagens, desenlace, causalidades) [características do modelo
representativo], está, de outro modo, norteado por estruturas de organização
(use de leitmotive, sincronicidades, aleatoriedade, linguagens ‘irracionais’ e
outros procedimentos nomeáveis). (COHEN, 1998, p. 20)

6
“em práticas como a instantaneidade da action painting, as construções transitórias das assemblages, collages e
environments de certos artistas, as experiências conceituais-limite de performers como Joseph Beuys, Vito
Acconci e Gina Page, que exacerbam o cambiamento de materiais e suportes – a alternância de contexto e de
formas – e, sobretudo, o conceito de obra não acabada” (COHEN, 1998,p. 18).
7
Renato Cohen (1998) nos seus estudos, utiliza a expressão “work in process” como trabalho em processo,
termo associado também a uma noção de obra inacabada. Ainda que Cohen apresente pontos de encontro entre
os termos “Work in process” e “ Work in progress” nos mostra também possibilidades de diferença entre eles,
podendo este último criar um campo conotativo de progressão “porém, uma ambiguidade se estabelece se esta
ambiguidade é valorativa, ascensional, teleológica ou, simplesmente, uma progressão na linha do tempo[...].” (
COHEN, 1998, p.21). Nesta pesquisa, trabalharemos com a noção de “ Work in process”, pela própria noção
processual do termo, de variação de percurso dinâmico entre criação e processo.
27
Como processo a arte se abre ao acaso, constituindo-se enquanto percurso,
possibilitando a utilização de narrativas e movimentos superpostos e simultâneos,
incorporando textos, imagens, vídeos, sonoridades, entre outros, sem uma lógica figurativa,
representativa, e sim no choque entre estes elementos, cujo impacto é percebido pelo receptor,
quem poderá ou não dar sentido a este movimento. No caso do teatro, o teatrólogo alemão
Hans-Thies Lehmann (2007), para tentar explicar todas estas mudanças nesta arte, forja o
termo teatro pós-dramático. Suas indagações, que serão aproveitadas nesta pesquisa, partem
de um questionamento do que no teatro ficou conhecido como textocentrismo, cuja força
poética estava centrada no drama, no texto. Segundo este autor, na prática cênica
contemporânea, isso se vê deslocado do centro do fazer teatral. Sendo assim, o texto se torna
um elemento a mais no processo de criação cênica, junto aos outros elementos (luz, cenário,
figurino etc). E o que interessa para esta pesquisa, é justamente a mudança na relação
hierárquica em relação ao texto, não o negando e sim potencializando sua força não só
literária mas sobretudo cênica, abrindo possibilidades de contaminações, desencadeando
processos autopoiéticos nos sujeitos ali imersos, ponto importante a ser desenvolvido desta
pesquisa. O que isso implica?
O que é gerado em cena é um ‘princípio de exposição’ (LEHMANN, 2007, p. 249)
que liga os elementos da cena, desde o texto, aos corpos, os gestos, as vozes, os sons, as
imagens, entre outras, contrapondo-se à função representativa da linguagem teatral. Lehmann
(2007) aborda a negação do sentido neste tipo de teatro, e afirma que este não é comunicável
diretamente, já que o que se torna direto é o impacto sinestésico que a cena provoca. Por isso,
podemos pensar o “princípio de exposição”, similar à “exterioridade material” da cena
comentada acima com Cornago. Para Lehmann “Em vez de representação de conteúdos
linguísticos orientados pelo texto, prevalece uma ‘disposição’ de sons, palavras, frases e
ressonâncias conduzidas pela composição cênica e por uma dramaturgia visual que pouco se
pauta pelo ‘sentido” (2007, p.249). Mas como se pode entender esta ausência de sentido na
cena teatral? No teatro pós-dramático isso tem relação com o texto, chave nesta pesquisa, pois
permitirá delinear como se processou o trabalho com palavras do texto, durante a parte
praticada do laboratório, permitindo também pensar, ao longo desta investigação,
possibilidades de experimentação de vocalidades poéticas do artista da cena, seja ator,
dançarino, músico, mas bem neste entrecruzamento.

28
Para Lehmann, a virada do teatro dramático ao pós-dramático se dá principalmente na
atenção dada à dimensão corpórea da cena (podemos pensar em corpo do ator, corpo da cena,
corpo da voz, entre outros). Para ele, na cena,

a presença física sempre mina todo ordenamento (verbal, não-verbal) e toda


significação. A realidade corporal gera um déficit de sentido: o que quer que
apareça no palco em termos de significado é sempre redimensionado em sua
consistência pela corporeidade; o sentido é arrancado no turbilhão pré-
conceitual da ‘certeza sensível’ que a partir de cada disposição estável (tese)
de um texto destaca o lado performativo (2007, p. 256).

Algo parecido, no campo da dança contemporânea, reflete o pensador português José


Gil (2013), também de interesse para esta pesquisa, quando compara esta arte com o teatro,
em desfavor deste último (Gil não considera as reflexões de Lehmann acerca do pós-
dramático). Para José Gil, se no teatro o que há é um acontecimento representado, na dança,
seja ela narrativa ou abstrata, este acontecimento se dá em um ‘regime de escoamento de
energia’ marcando a passagem para um outro nível de sentido. Aqui o acontecimento é
sobretudo corporal, produzindo uma “circulação fluente de intensidades” (2013, p.59), no
qual o corpo é visto não mais como “concreto, visível, evoluindo no espaço cartesiano
objetivo [...e sim como um...] feixe de forças e transformador de espaço e de tempo” (2013, p.
53). Não se trata mais, na dança, de um corpo se movimentando no espaço e sim de um corpo
constituindo o espaço, o corpo possui um “exterior intensivo” (2013, p. 49). Para Gil, o
sentido da dança está nela própria, em seus movimentos, gestos, deslizamentos, onde não se
opera mais com “significar”, “simbolizar” ou “indicar” temas ou coisas, “mas traçar
movimentos graças aos quais todos estes sentidos nascem” (2013, p.73). Desta maneira, para
Gil, até mesmo um gesto muito codificado, como apontar com o indicador, nunca se deligará
do resto do corpo, ou seja, nunca deixará de lado esta força corpórea, assim como não existe
qualquer “sentido verbal (fala) que não tenha origem em vibrações da voz” (GIL, 2013, p.
75).
É precisamente esta força vibratória da voz, a sua potência de acontecimento, seu traço
performativo que interessa abordar. No deslocamento do representativo para o processual está
implicado, no contexto teatral, o deslocamento do sentido para o sensório, pode-se pensar
com Lehmann. E neste “é o fenômeno das vozes vivas que manifestam mais diretamente a
presença e o possível predomínio do sensório no próprio sentido, bem como o cerne da
situação teatral: a co-presença de atores vivos” (2007, p. 256). A obra aqui se constitui
enquanto ‘acontecimento’, diz o autor alemão, “multidimensional, espaço-temporal,

29
audiovisual” (2007, p. 256). Também Cornago vai fornecer pistas para que possamos entender
os desdobramentos do pós-dramático nas práticas cênicas contemporâneas, ressaltando,
sobretudo seu aspecto processual:

Através do trabalho dos componentes materiais e físicos se procura a


aproximação da cena ao espectador, torná-la mais imediata sensorialmente até
(re)presentá-la como um espaço de acontecimentos ao longo dessa espécie de
superfície plana, como uma fita de Moëbius, na qual se converte a cena (2006,
p.10, “tradução nossa”)

Deste modo, o que se tem é uma cena em constante movimento, evidenciando uma
força processual desta arte, que no sentido textual, vocal, também se mostra como ‘objeto de
exposição’ “por meio de técnicas de variação repetitiva, de desagregação de conexões
semânticas imediatamente evidentes, de arranjos formais segundo princípios sintáticos ou
musicais (similitude sonora, aliteração, analogias rítmicas)” (LEHAMNN, 2007, p. 249). É
neste contexto poético-cênico que esta pesquisa se dá, na percepção de que a vocalidade
poética é processo, é sensorial. Aqui as palavras não respondem a um logocentrismo,
subjugadas ao entendimento racional, objetivo, acabado, estas mesmas são evidenciadas em
sua força corpórea, fonética, vibratória, lidando com o movimento, se tornando
acontecimento, portanto. Isto foi decisivo para a construção do laboratório prático desta
pesquisa.
Cohen aponta que uma das principais características de um trabalho cênico work in
proces é o fato deste configurar durante o seu processo um roteiro: “partindo-se de um fluxo
de associações, uma rede de interesses/sensações/sincronicidades para confluir, através do
processo, em um roteiro/storyboard” (1998, p. 18). Ou seja, não se parte de um texto pronto
(texto/autoria/mapa de personagens, diz Cohen), nem se dá seguimento literal a suas
indicações cênicas. Durante o laboratório prático “Vocalidades Poéticas” foi elaborado um
roteiro, a partir do material textual contido em Flores D’América, do dramaturgo e teórico
teatral potiguar João Denys, autor valioso para esta pesquisa.
Ainda que se tenha partido deste texto, o que interessou a pesquisa foi sobretudo a
qualidade corpórea que apresenta Flores D’América de Denys, para indagar na potencialidade
vocal que o mesmo possibilitava, para provocar o encontro das palavras com os corpos-vocais
de alunas-atrizes no processo. Desta maneira, a abordagem que este texto possibilitou (sem
entrar nos aspectos culturais populares do nordeste brasileiro, nas referências da dramaturgia
contemporânea, na dimensão política, entre outros que atravessam o texto, que serão
abordados nos textos seguintes) foi justamente o processual.
30
Outro aspecto dramatúrgico da obra de Denys que apela a esta força processual é sua
divisão radical em dois momentos, no qual, primeiramente, se conta uma história de uma mãe
(América) com suas filhas, e no outro se reconta, em várias versões (marcado cada momento
pela entrada de uma menina vestida de branco), a morte dessa mãe. Denys cria na sua
dramaturgia algo fragmentário, sem acabamento linear, lançando mão inclusive na segunda
parte de um efeito em looping (pela repetição da morte da mãe, em diversas versões). Esta
última parte gera questionamentos, provocações, diante das várias versões propostas que
evidenciam os próprios recursos de composição elaborados por Denys. A feitura dramatúrgica
desta obra está exposta, faz parte de seu impacto poético, e é levado ao extremo em momentos
que lidam com efeitos assumidamente sonoros, fonéticos, musicais, sensoriais, na sua escrita.
Seja isso percebido em algumas falas das personagens, ou em alguns coros que cruzam a obra.
Isso foi o que mais nos chamou a atenção para experimentação no laboratório “Vocalidades
Poéticas” desta pesquisa. De fato, foi esta outra dramaturgia, entremeada também no texto,
que serviu de valioso material para o nosso processo de criação. Desta maneira, por exemplo,
dentro do texto, passagens como estas que se seguem foram de especial interesse:

América:
(quase fora de cena, chamando pelos filhos)
Martírio, Mansinho, ô Nevoeiro! As formigas estão criando asa! Pra
dentro! Pode chover! Andorinha! Açucena! Juriti! Vão dormir!
Cadê Sabiá, Barra Nova, Azulão? Foge, passa, corre, esconde
esconde...

[...]

Líder do Coro:
Foge, foge, passa passa, esconde esconde uruçu, mandaçaia,
Tubiba, mosquito, papa-terra voa. Voa, voa, voa exu, miduri,
Capuxu doce. Doce, foge, voa, passa, esconde, voa.

Coro:
Ofício de trevas, ponto cheio de Dadá, agulhas de Enedina,
arremate de rosinha, dedal de Cristina, retrós de Inacinha,
tesourinha de Lili, meadas de Cila, amostras de Durvalina, rococó
de Moça, nó cego de Neném, ponto atrás de Mariquinha, as feridas
de Lídia, as lágrimas de Verónica, a criança de Dulce, a coroa de
Maria... Rainhas desterradas, baronesas errantes, duquesas
Degradadas, princesas navegantes.
(DENYS, 2005, p. 74)

O que desperta a atenção aqui é uma força sensorial, corpórea, do texto, com a qual se
pode experimentar talvez aquilo que nesta dinâmica processual estamos chamando de
‘acontecimento’. Este impacto sensorial tornou-se basilar para a consecução da pesquisa, pela

31
dimensão vocal que pode eclodir destas palavras, da sua musicalidade, sonoridade, ruídos,
ritmos, timbres, fonemas, entres outros.
Como pode ser pensado aqui o corpo-vocal? Como pensar, a partir do laboratório
prático realizado, essa “vibração da voz” sobre a qual fala José Gil, essa “tactilidade do
sopro” que pensa Zumthor, essa sensorialidade do som implicada neste work in process?
“Trans-bordando pelos labirintos da imanência mais transcendente ou das transcendências
mais performativas. Em seus inesperados e inesgotáveis jogos de linguagem, metalinguagem,
interações semióticas. Onde vai parar este rapaz?” (in:DENYS, 2005, p. 121), se pergunta o
cineasta pernambucano Jommard Muniz de Britto, acerca desta obra de João Denys. Que
percursos percorrer, podemos questionar aqui, uma vez desenhado o contexto poético no qual
se dá esta pesquisa, nesta arte processual, instável, movediça – para pensar o laboratório
prático realizado com alunas-atrizes nesta pesquisa? Como potencializar a dimensão corpórea,
material e até mesmo erótica da voz em cena? Como experimentar e gerar práticas sonoro-
vocais que deixem perceber isso que Gil (2013), ao pensar o corpo em dança, diz que oferece
imediatamente o sentido, desenhando uma ‘gramática semântica’ própria? Isso, menos na
intenção de querer preestabelecer uma gramática corporal-vocal e mais de experimentar a sua
potência relacional, de ligação com o corpo dos espectadores, dentro do campo das artes
cênicas. São estas questões sobre o que é processo que instigam esta pesquisa e que servem de
uma ou outra maneira de estímulo à escrita dos capítulos que seguem, dando aqui, ouvidos,
vozes, bocas, mãos, ventre – corpo – nos pomos a vasculhar um ‘acontecimento’, na tentativa
de registrar seus traçados provisórios, sempre em movimento, em processo, lidando com o
inacabado de um pesquisar. Contudo, como lembra Greiner:

“As fórmulas acadêmicas tradicionais que ensinam como fazer um projeto


[...ou uma pesquisa...] pedem uma revisão urgente quando colocadas lado a
lado com as definições propostas por outras áreas de conhecimento e por
experiências que resistem em se encaixar nos modelos conhecidos. Não se
trata apenas de criar novas regras e vocabulários, mas de uma mudança mais
profunda para desestabilizar algumas dualidades assentadas no tempo: teoria e
prática, sujeito e corpo, arte e ciência, natureza e cultura” (2010, p. 82).

A possibilidade que aqui se percebe para poder indagar a voz, mais precisamente, o
acontecimento-voz, está no cartografar a experiência, o que implica em produzir
conhecimentos com o aspecto processual da pesquisa poética, com uma escuta atenta às
coisas que ressoam. Assim, como evitar a fixação de regras para a vocalidade poética? De
fato, trata-se de um mundo imenso e complexo, que não cabe em um manual. Como dar conta

32
da não separação entre sujeito e objeto, quando se fala em corpo e voz, corpo e cena, voz e
espaço? Como materializar então, uma série de fenômenos dotados de multiplicidades, que
nos encontros proporcionados pela pesquisa, revelaram múltiplas articulações entre corpo,
voz, cena, imaginário e cultura? Vocalidade poética nesta pesquisa é o constante exercício de
entender os processos de criação-aprendizagem da voz como pertencentes às múltiplas
ordens, não só da cena, mas da vida, sempre inconclusa, imprevisível. Se fala de processo de
criação, então como não iniciar esta pesquisa em um início, nem em fim, mas no meio, entre
pulsações, na densidade e espessura do presente? Esta pergunta é possível a partir de um
método que lhe dê espaço, este é o método cartográfico (BARROS, KASTRUP, 2009).
Para as pesquisadoras Barros e Kastrup, “cartografar é acompanhar processos” (2009,
p. 52), no sentido de processualidade já referido neste texto, e que a torna algo precioso para
esta pesquisa. Este método aposta em uma reversão do que é, justamente, a noção de método.
Se este termo etimologicamente significa caminho (hodós) já determinado pelas suas metas
(metá), como um apriori a ser alcançado para obter o êxito da pesquisa, a cartografia reverte
isto: em vez de operar com ‘metá-hodos’ se dispõe a operar com ‘hodos-metá’. Deste modo,
se muda todo o panorama metodológico da pesquisa, da mesma maneira como a noção de
processo mudou todo o panorama epistemológico para entender o mundo, o real e a vida
mesma. O que aqui se obtém é um método não para ser aplicado, para verificar variantes,
demonstrar eficiente e objetivamente hipóteses, mas um método para ser experimentado,
posto à prova. Isto não nega tentativa de obter “precisão” nos sinuosos caminhos da pesquisa,
de fato “O rigor do caminho, sua precisão, está mais próximo dos movimentos da vida ou da
normatividade do vivo [... nesta...] a precisão não é tomada como exatidão, mas como
compromisso e interesse, como implicação na realidade, como intervenção” (PASSOS,
KASTRUP e ESCÓSSIA, 2009, p. 10).
Ou seja, se abandona a tradicional pretensão de objetividade e neutralidade científica,
liberta dos afetos, da história, dos vaivéns sociais da época. E mais ainda, como comenta a
pensadora brasileira Suely Rolnik “do cartógrafo se espera que ele mergulhe nas intensidades
do presente para ‘dar língua para afetos que pedem passagem’” (apud. BARROS, KASTRUP,
2009, p. 57). Abre-se a possibilidade para dar passagem então ao vertiginoso e rico mundo
afetivo implicado nesta pesquisa, na relação com minha própria trajetória como pesquisadora
e professora de voz, na sensível relação com as alunas-atrizes, com os elementos escolhidos
para a cena. Lidar com minha própria cultura, atravessada de fluxos globalizados, também de
fluxos da cultura e religiosidade popular, da academia. Como escrever respeitando todos estes

33
movimentos e seus entrecruzamentos afetivos? A cartografia outorga outra de suas pistas, na
qual em uma atenção flutuante (KASTRUP, p. 32) possa talvez não atropelar este rico
processo do qual não sou proprietária e sim agenciadora junto a todo um grupo de alunas-
atrizes, colegas, o próprio espaço, chão do teatro no qual trabalhamos.
Esta atenção pode ser “entendida como um músculo que se exercita e sua abertura
precisa ser reativada, sem jamais estar garantida” (KASTRUP, p. 48), perguntando o que faz
“problema” aqui, o que “insiste”, o que persiste, e ao invés de deduzir “leis abstratas o que
realmente importa são as cores, odores, sabores, caprichos, texturas, velocidades e outras
veleidades mundanas” (COSTA, ANGELI e FONSECA, 2012, p. 46). E isso não para me ver
afirmada como pesquisadora, como tendo a palavra de ordem, mas para tentar permear
sensorialmente o processo – esse movimento de corpos, vozes, objetos, jogos espaciais,
sonoridades, fantasmas, temores, mortes, abismos, amores, carinhos, filhas, mães – ativando
talvez uma “dissolução do ponto de vista do observador” (PASSOS e EIRADO, 2009, p.
109). Dando assim efetiva atenção ao processo, não como proprietária e sim como alguém
implicada sensivelmente no mesmo. Neste sentido, conhecer é cuidar e não dogmatizar,
ensina a cartografia, é o que se pretende aqui aprender, conhecer ao falar do processo de
criação desta pesquisa.

1.3 O laboratório de criação.

A proposta do laboratório prático de pesquisa chamado “Vocalidades Poéticas” foi


criar um grupo formado por estudantes do curso de Teatro- Licenciatura do Instituto de
Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, para investigação-criação de uma prática
pedagógica da vocalidade cênica. No início da pesquisa, pensei em partir dos princípios
técnicos e expressivos da voz a partir do estudo de campo de tradições de manifestações
populares localizadas no Ceará, para que as mesmas fossem matrizes geradoras de estímulos
sonoros, que ao longo do trabalho prático seriam transfigurados pelo processo de criação, pelo
reprocessar do imaginário das alunas-atrizes, a partir da percepção dos seus parâmetros
prosódicos, timbrísticos, rítmicos, enfim, uma riqueza de elementos para desenvolver a
teatralidade da voz em cena a partir destas matrizes. Desta maneira, buscávamos
potencializar a voz do atuante como linguagem em sua função eminentemente cênica,
embebidas por esta escuta em locus de vocalidades com uma potência espetacular viva numa
pesquisa etnográfica. Uma investigação artística que transitasse entre imaginário, tradições

34
brasileiras e vocalidade na cena contemporânea; investigar as possíveis contribuições para a
aprendizagem e para o ensino das associações técnicas da voz falada e voz cantada na cena;
pesquisar as relações da expressão vocal da palavra falada/cantada com a ativação de estados
corpóreos-vocais.
Após a primeira qualificação, quando também o laboratório “Vocalidades Poéticas”
estava se constituindo, os professores da banca levantaram a questão da real necessidade de ir
em busca destas manifestações, uma vez no ato de falar sobre a pesquisa, as ideias que mais
apareciam eram: corpo-vocal, processo de criação, ambiente sensível de criação, sentidos
sinestésicos e a própria relação com o texto Flores D’América alimentado pelo imaginário
popular do nordeste. Outro ponto relevante deste laboratório foi a análise das possíveis
aprendizagens que o mesmo permitiria a partir das sonoridades oriundas de corpos-vocais-
culturais objetivando assim trazer para os processos de ensino e aprendizagem de práticas
vocais outros encontros sonoros, contextualizados, imersos em criação, em sentidos que
fazem parte da nossa formação miscigenada, aflorando matéria viva a ser transfigurada no
processo de criação da vocalidade da cena.

Uma vez constituído o grupo do laboratório de pesquisa, tendo como critérios de


seleção: a disponibilidade de tempo e interesse em participar desta atividade extraclasse que
necessitaria de uma participação assídua e ativa na pesquisa, na qual também o estudante
precisaria conciliar as atividades do laboratório com as suas outras atividades curriculares
obrigatórias do curso de Teatro; ser do sexo feminino, uma vez que a poética do texto “Flores
D’América” emerge de um universo feminino. O Laboratório “Vocalidades Poéticas” contou
com a participação de seis estudantes do Instituto de Cultura e Arte (ICA), sendo eles:
Roberta Bernardo, Angela Deyva, Gabriela Araruna, Raquel Capelo ( estudantes do terceiro
semestre do curso de Licenciatura em Teatro) mais Hylnara Vidal ( estudante do sétimo
semestre do curso de Licenciatura em Teatro) e também Tarcísio Filho, estudante do curso de
Cinema e AudioVisual do ICA, também integrante do grupo desde o seu início, responsável
por fazer o registro audiovisual da pesquisa, mas de uma maneira que não intimidasse o
processo de experimentação das atrizes. A Câmera foi introduzida desde o início, com
Tarcísio experimentando aproximações, distanciamentos, sem que a câmera fosse um
elemento estranho ao processo de investigar, no qual a lente da objetiva também fosse uma
pele corpórea de relação com a sonoridade da cena. Um outro estudante do curso de cinema e
Audiovisual que muito contribuiu na captação de imagens com o seu olhar de fotografia foi

35
Fábio Oliveira que também participou da instalação sonora que fizemos ao final do processo
de pesquisa.
O laboratório “Vocalidades Poéticas” aconteceu durante os meses de maio a setembro
do ano de 2013, sendo dois encontros semanais com duração de três horas. Em algumas
semanas, no final do laboratório conseguimos realizar três encontros semanais, tendo como
total de horas trabalhadas um número aproximado de 160 horas de pesquisa que entraram
como atividade complementar curricular dos estudantes participantes. Nossos encontros
ocorreram nas dependências do Teatro Universitário Pascoal Carlos Magno da UFC, local que
propiciou experiências sonoras em espaços diversificados em termos sensoriais (lá ouvíamos,
passarinhos, risadas, misturadas a outros sons das salas com claridade de luz natural, espaços
grandes e pequenos, ao ar livre e também o espaço do palco). Fizemos também quatro
apresentações públicas, convidando alguns estudantes, professores do ICA, amigos e
comunidade geral interessada na pesquisa. A apresentação pública foi organizada a partir de
um roteiro composto pelos ambientes sonoros que mais trouxeram marcas para o processo e
foram organizados a partir de uma lógica de texturas sonoras por contrastes, compondo com
melodias vocais, objetos sonoros, palavras do texto, ritmos de pés, em um jogo intercalado de
textura sonora e momentos de narrativas vocais. Demos o nome de “água, flores e anjinhos”
para a instalação sonora que resultou do nosso laboratório “Vocalidades Poéticas”.
Iniciamos o laboratório a partir de registros audiovisuais de festividades religiosas
trazidas pelas alunas atrizes. Este material foi muito rico como motivador de discussão no
grupo sobre o que seria vocalidade poética e o que isso nos trazia enquanto uma vocalidade
corpórea, mas tanto por dificuldade de tempo para pesquisa de campo, quanto por escassez de
recursos financeiros, optamos por manter a nossa investigação somente em Fortaleza,
pesquisando, inventando a vocalidade poética de um nordeste, de um sertão nosso, a partir das
vaporações de Flores D’América, parafraseando João Denys.
Neste sentido, um material textual de palavras de grandiosa potência para o laboratório
prático desta investigação foi a dramaturgia e referências teóricas do potiguar João Denys,
principalmente o seu texto teatral Flores D’América. Neste texto – mas também em boa parte
da sua dramaturgia – Denys tece um reprocessamento poético da cultura, operando um elo
entre tradição oral nordestina e atualidade para realizar uma obra no contexto da dramaturgia
contemporânea. Sua obra é atravessada por um imaginário popular que contém relações entre
o campo e a cidade, a região e o mundo, o real e o imaginário em uma série de ambigüidades
presentes no texto narradas, reveladas, vividas, contadas por mulheres que aparecem em coro

36
ou nas personagens da peça (América, Soledade e Das Dores) em um território vazio, seco,
cinzento e, não obstante, ardente. A poética presente no texto Flores D’América possui
grande potência sinestésica, não importando neste texto somente o que diz a sua narrativa,
mas sobretudo, isto foi o que mais me chamou atenção no texto, pelo jogo sonoro de suas
palavras, pela musicalidade rítmica da sua cadência fonética, pela dimensão corpórea lançada
na sua vocalidade.

Por isso, o interesse em trabalhar esse texto no laboratório prático de criação


vinculado a esta pesquisa. O ambiente sonoro presente em Flores D’América favoreceu um
efeito catalizador para as alunas-atrizes que participaram da parte prática do laboratório, e,
parafraseando o encenador Jerzy Grotowski, ‘o texto pode ser como uma espécie de bisturi,
no qual portas são abertas para nós, realizando o ato de encontrar os outros, outras vozes’.

Neste sentido, o texto Flores D’América apresentou para a pesquisa um material muito
sugestivo de investigação, pelos variados coros que apresenta, imersos no imaginário
nordestino. Coros compostos por sequência de aliterações, palavras com grande carga
imagética e sensações físicas, muitos textos escritos com pedaços de rezas. Isso foi o que de
mais potente percebi no texto para trabalha-lo no laboratório, mais do que toda a história que
é contada também no texto. Outro ponto, no qual esta tese agora se diferencia da pesquisa
iniciada no mestrado, contudo complementando-o, é o encontro que esta prática vocal cênica
possibilita com teorias da arte, estudos do corpo, ciências humanas, processo de criação e
formação humana, possibilitando pensar a interface memória, cultura, educação e corpo-
cênico-vocal, abolindo a dicotomia tradição e contemporaneidade. Este é o território no qual
se quer pesar as potências poéticas de uma vocalidade cênica.

Que Vocalidade Poética podemos encontrar, como chave de ignição da linguagem


cênica, com toda a sua singularidade e traços de coletividade? Como os rastros de histórias,
culturas, subjetividades se engendram no fluxo da memória corpórea criando vocalidades a
partir da rede de relações tramadas no ambiente de criação? Como podemos pensar em um
ambiente de aprendizagem vocal que potencialize a voz enquanto lugar de singularidades?

O que se quer dizer é que, dado um ambiente diversificado, cada sujeito chega a um
acordo, a uma configuração de uma vocalidade poética a seu próprio modo. Sendo assim,
como cada sujeito articula a sua rede de associações? Quais as relações estabelecidas com o
ambiente que atravessam o corpo-voz do atuante para a criação da vocalidade poética da
cena? Quais os sentidos sonoros que perpassam as contaminações sinestésicas de um corpo-

37
voz, corpo-memória corpo- história, corpo-imaginário, corpo-vocal vibrátil? Talvez seja esta
uma das maneiras de pensar-fazer-nos como singularidades, embebidas de coletividades,
como habitar, como comunidade, como seres vivos. Saber advindo de um conhecimento vivo,
advindo do ritmo, da cadência do vivido.

Nesta pesquisa, falar de vocalidade poética é dar voz às forças que moram no nosso
corpo, que existem além de uma contemplação de formas pré-estabelecidas, mas de processos
de devir-outro vocal, a partir das marcas da experiência proprioceptiva, do modo que cada um
de nós está em um constante fazer-conhecer o mundo e a nós mesmos. É ouvir as vozes que
estão em constante processualidade em nós, na nossa ancestralidade contemporânea, que
mexem com o corpo, com forças vivas de memória recriadas pelo presente e que vislumbram
um futuro melhor (ARTAUD, 1999; ROLNIK 2002).

No laboratório, vivenciamos e aprofundamos a prática vocal-cênica a partir de


elementos das manifestações populares do nordeste presentes no texto, porém sem o intuito de
representação do mesmo e nem de manifestações populares, mas inventando uma vocalidade
singular, nascida da rede de relações feitas no corpo de cada aluna-atriz envolvida na criação.
Foram encontros entre imaginários, que transitaram na forma de múltiplas linguagens
misturadas de referências do teatro, da música, da dança das manifestações populares, para
proporcionar associações sonoras atentas, com abertura para contaminações com os estímulos
do ambiente de criação, em um exercício de escuta e composição com outros sons,
movimentos, ações que transitavam no ambiente cênico de criação.

Durante o laboratório, também tínhamos como material de trabalho para investigação,


como proposta para expansão das possibilidades sonoras desempenhadas pelas alunas- atrizes,
materiais sonoros para a criação e execução da sonoridade da cena. Além da experimentação
dos sons produzidos pelas suas próprias vozes em situação de jogo, a manipulação de
materiais sonoros também participou da interação sonora do ambiente, ampliando assim,
novos recursos de criação sonora da cena.

O Laboratório “Vocalidades Poéticas” teve o seu percurso desenhado a partir de três


vertentes de estudo que se apresentam como molas propulsoras e que estimularam o início de
cada laboratório, para que a partir disso, as alunas-atrizes encontrassem estados de
vocalidades poéticas no corpo, reverberado no ambiente da cena. Tais vertentes são
38
estendidas como: O corpo da voz – percepção dos impulsos internos geradores da respiração,
sonorização, ressonância e articulação, associações de imagens, sensações e emoções ativadas
pelas sensações de vibração da sonoridade no corpo; O corpo em estado de musicalidade –
percepção dos parâmetros da voz e do som a partir de variações melódicas, rítmicas, de
timbre, intensidade, alturas, espacialidades; Estado de Escuta – desenvolvimento da
consciência sonora a partir da escuta dos sons que nos envolvem a partir de exercícios,
entendendo também a ampliação do sentido de escuta para um estado de percepção do corpo
em total movimento de escuta do ambiente sensorial que habita.

Ao longo do laboratório, os participantes escreviam em diários, cada encontro,


partindo do que mais significativamente pulsava enquanto conhecimento vocal, as imagens e
sensações que encontraram no processo e emergiram em vocalidade poética, que questões
poderiam ser levantadas sobre o processo do aprender voz, sobre conhecer-fazer 8o ambiente
sonoro da cena. Nesta pesquisa, mais do que um registro, a escrita nos diários coloca em
exercício o conhecer a si mesmo, as subjetividades do corpo, ou seja, torna-se uma escrita de
si, mas também um abrir-se para o outro, “no exercício que um aluno lê para os demais suas
próprias anotações e os penetra em seus corpos com isto, a escuta também atua de forma ativa
na subjetivação do outro” (RESENDE, p.9, 2006).

É válido ressaltar que as alunas-atrizes do laboratório são partes cruciais desta


pesquisa, uma vez que foram elas que vivenciaram nos seus corpos-vocais o laboratório.
Deste modo, o diário das suas subjetividades sonoras impressas no papel, marcas das
experiências do processo, relatos orais do processo de criação, análise de fotos e vídeos
gravados de exercícios e também durante a apresentação de “água, flores e anjinhos,
tornaram-se parte do corpo do texto da tese. Ao longo do texto, serão incluídas fotos, no
intuito de imprimir ou suscitar no leitor um desejo de ‘acontecimento’, além de gerar outra via
de acesso ao laboratório. A composição da imagem no corpo do texto é autônoma e tem o
propósito de sugerir uma vocalidade, assim como os fragmentos de texto retirados do diário
de bordo das alunas-atrizes que participaram do laboratório, tendo como processo de escolha
de tais fragmentos, a força que cada pedaço de texto tinha pulsação, de ecos encontrados, que
ressoavam em algum ponto a medida que este texto era escrito. As imagens e os fragmentos

8
Vale esclarecer que em vários momentos no corpo da tese, serão utilizados conceitos formados por duas
palavras. Esse estilo tornou-se necessário para ideias que necessitei mostrar que aparecem na pesquisa de
maneira cruzadas. Dou seguimento com isto, o exemplo da psicanalista Suely Rolnik (2002) que utiliza a
expressão corpo-bicho.
39
de diário de bordo transformados em figura são entendidos nesta pesquisa cartográfica como
imagem - texto. Investiu-se nelas como lugar de possibilidades do leitor com outros afetos,
outro modo de perceber, imaginar, inventar a vocalidade poética, capturando rastros do
processo impressos na imagem. É o leitor também interrogando sobre o sentido daquilo que
vê e imaginando uma escuta, numa abertura para o seu imaginário a partir da foto
(SOULANGES 2010).

A escrita desta tese de doutorado, foi realizada durante momentos distintos da


pesquisa, sendo iniciada com leituras sobre o que seria Vocalidade Poética. A partir de então,
um livro remetia a uma conexão com outro livro, com outros autores, outras ideias, fazendo
do ato de pesquisar um lançar-se no abismo do não saber, no encontro a invenções sonoras no
corpo, transbordadas também no corpo da cena. Nesta pesquisa, foram mapeadas invenções
encarnadas em vocalidades organizadas por um viés sensorial no mergulho-intervenção nosso,
meu e das alunas-atrizes, no processo de criação.
Tanto os laboratórios práticos que fizemos, as apresentações públicas, quanto o
formato desta tese põem a vista um processo de pesquisar, conhecer, inventar que revelam as
fissuras do pensamento, ou da memória, na qual um cheiro, um som, uma palavra, um sabor,
um toque estão a todo tempo abrindo janelas para que sonoridades entrem no tear do fazer-
pensar uma ideia e esta vai se trans(formando) a partir da rede de relações encontradas. Foi
esta movência da vocalidade poética que se revelou no processo de criação de “água, flores e
anjinhos” e que, no fluxo do conhecer fazendo o objeto desta pesquisa, também proporcionou
um percurso metodológico para a escrita da tese. Por exemplo, diante das infinitas
possibilidades de articulações teóricas que poderiam cruzar esta pesquisa, optou-se por dar
voz aos desejos de encontros que foram emergindo do laboratório prático e também, aqueles
cruzamentos que ecoavam, insistiam na minha trajetória acadêmica por conhecer mais, e
outros, surgiram numa passagem pulsante, como por exemplo, os escritos de Suely Rolnik,
que me afetaram, pedindo voz na pesquisa, que apesar de surgir nos últimos momentos do
laboratório, tiveram intensa ressonância e força de criação para o exercício de pensamento
desta tese.
Percebemos neste texto a interlocução entre autores oriundos do teatro (Artaud,
Grotowski, Lehmamm), da música (Schafer), da psicanálise (Rolnik), de estudos da
performance da voz (Zumthor) , do corpo e da dança (Gil e Greiner), da ciência (Maturana e
Varela) que potencializaram a atividade criativa do pensamento, abrindo caminhos para

40
questionamentos e escritas múltiplas. Tais autores potencializaram a complexidade do corpo-
vocal em criação na rede de relações que atravessam sensorialmente o corpo que percebe o
ato de conhecer no próprio fazer. Murray Schafer, por exemplo, reflete sobre as pedagogias da
música de acordo com a mudança do paradigma da educação do ponto de vista do “como se
ensina” para o “como se aprende”. Suas pesquisas, além de repensarem a noção de música, de
aprendizagem musical que não se restringem a mero virtuosismo ou imitações de um
“eruditismo” colonizado, entendem a música enquanto linguagem, enquanto processo de
conhecimento e transformação de mundo. Os encenadores teatrais Antonin Artaud e Jerzy
Grotowski rompem com a visão textocêntrica do teatro, tendo o corpo do ator como mola
propulsora da cena. Artaud brada por uma vocalidade concreta ativada pela musculatura
afetiva do corpo, Grotowski investiga a cena a partir da noção de ator que se desnuda diante
de si mesmo e diante dos outros, para olhar-se sinceramente e eliminar os obstáculos que
limitam a sua expressão, para que o mesmo se perceba e dê ação aos seus impulsos mais
íntimos. Já os estudiosos do corpo Rudolf Laban e seus discípulos, cada um dentro das suas
vertentes de pesquisa, investigam as qualidades de movimento do corpo em relação aos
parâmetros fluxo, tempo, peso e espaço. Esses autores citados, oriundos de diferentes
linguagens da prática artística contribuiram para a criação de propósitos investigativos no
laboratório prático de criação vocal. Os mesmos rompem com formas normatizadas e
esteriotipadas do corpo-vocal e abrem possibilidade para a contaminação, hibridização de
aprendizagens corpóreas, teatrais e musicais favorecendo assim, que outras inventividades
sonoras aconteçam no corpo, no ambiente sensível da cena, gerando outras percepções, outras
poéticas.
Esta tese se constitui a partir dos registros escritos de alguns rastros do processo,
aqueles em que mais encontrei intensidades, marcas nos materiais do laboratório e no vai-e-
vem de conversas, referências, leituras encontradas no caminho. Como na montagem de um
mapa, tomei as peças e fui articulando as suas possibilidades de encaixe. Portanto, os rastros
apresentam-se não de maneira linear, contando a sequência dos fatos de uma maneira
cronológica, pois no processo de criação não temos como prever isso, não há uma realidade
dada, não há uma relação de causa e efeito pré-estabelecidos nas propostas práticas do
exercício da vocalidade poética, mas um processo de criação em constituição permanente. Ela
não é fixa, precisa de uma constante movência para perceber-se e expressar-se sonoramente
como um ‘acontecimento’. Cada rastro também opera neste lugar. Percebo que mesmo já
escritos, não param de mover-se e expandir-se em suas possibilidades.

41
Para compor a rede de ideias e cruzamentos teóricos que alimentam esta pesquisa,
foram escritos mais seis textos, que entendemos como os rastros do processo, no qual foi feito
o exercício de fazer inteligível uma série de fenômenos que permeiam a “Vocalidade poética”
na sua multiplicidade movente, não se trata de constatar semelhanças no pensamento de
autores que fazem parte desta tese, mas de produzir encontros entre eles na própria operação
do conhecer “vocalidade poética”. Cada rastro vai sendo construído com suas possibilidades
móveis de articulação, organizando um mapa relacional e transitório de conhecer-pensar-fazer
vocalidades poéticas. De uma singularidade para outra singularidade apresentada no corpo de
cada texto, fomos tecendo uma colcha de rastros.

Foi importante se debruçar acerca de uma vocalidade poética (rastro 1), tendo como
referências primeiras as sociedades arcaicas, e mais especificamente, a sua tradição oral
caracterizada por palavras em um misto de poesia e canto, cheias de musicalidade, com suas
vozes vivas, como as vozes apaixonadas dos trovadores ou pelo envolvimento sinestésico do
bebê ao escutar a voz da mãe, os estudos do poeta e medievalista Paul Zumthor contribuem
para o levantamento de noções para o que chamamos nesta pesquisa de Vocalidade Poética da
Cena, enriquecidas com as indagações do encenador, poeta, ator Antonin Artaud. Este, no que
tange a vocalidade, luta por uma linguagem sonora da cena, que afeta os sentidos. Como uma
música, é a partir da força de combinações perceptivas do som quanto à sua intensidade,
altura, timbre, melodia, ritmo e harmonia que a vocalidade poética da cena cria uma
ambiência sonora e se configura como linguagem sonora: musical.

Como podemos entender a voz na história de um lugar no tempo presente? Esta é a


ideia que movimenta o rastro terceiro, apresentando as constantes relações do ser humano
com o ambiente, desde os nossos mais longínquos ancestrais que têm seus rastros
atravessados pelo fluxo da história permeada por imagens, vozes, narrativas que nos
circundam, vinculando-nos a uma tradição oral, tendo nós conhecimento ou não desses
percursos histórico-culturais. E é a força viva da memória, recriada pelo presente e que
vislumbra um futuro, o que possibilita a ancestralidade, como possibilidade de deslocamento
do próprio presente pelo presente, em um fluxo que opera por descontinuidade entre as vozes
do passado e as vozes da contemporaneidade, e é neste entrelaçamento que se encontra em
potência a vocalidade poética. Neste contexto é também feita uma análise dos traços
singulares presentes na dramaturgia de Flores D’América que a tornam relevantes para
experimentação no laboratório prático desta pesquisa. Sendo assim, neste rastro é tecido uma

42
rede de percepções e conceitos sobre memória, corpo-vocal, tradição e contemporaneidade a
partir da dramaturgia de João Denys, do crítico de arte francês Didi-Huberman, do filósofo
italiano Giorgio Agamben, do já citado medievalista Paul Zumthor e finalmente, do músico e
pesquisador de paisagens sonoras Murray Schafer.

No rastro quarto, Vocalidade-bicho ou devir outro-sonoro, a partir da noção de corpo-


vibrátil e corpo-bicho da teórica e psicanalista brasileira Suely Rolnik é desenvolvida a noção
de vocalidade-bicho, entendendo a voz como corpo, sensorialidade que brota uma voz
experimentada, que grasna por existência. Uma vocalidade outra, nunca experimentada,
movida pelo encontro com outros fluxos, outras intensidades que rompem com os jargões do
pré-estabelecido, do massificado, do psicológico, diferente de um eu como entidade fechada.
Os estudos de Rolnik partem da obra da artista plástica Lygia Clark. Neste rastro, é feita a
descrição de um laboratório de “Vocalidades Poéticas”, no qual a vocalidade-bicho encontrou
íntima conexão com os escritos de Rolnik.

Rastro quinto: Estado de escuta: voz e sonoridades como pele da cena; neste texto, são
descritos dois laboratórios nos quais foram utilizados objetos sonoros e experimentados como
extensão do corpo-vocal das alunas-atrizes, articulando sons e vozes na ambiência da cena.
Nesta pesquisa o sentido de escuta foi entendido não só como uma percepção dos ouvidos,
mas como uma abertura do corpo como uma pele membranosa, se deixando contaminar pela
sonoridade da cena. Para a realização do laboratório prático, dialogamos com a teoria musical,
com a noção de paisagem sonora e os exercícios de escuta do compositor Murray Schafer.

No rastro sexto: O ambiente de criação de experiência vocais, a partir do conceito de


experiência apresentada por Bondía, na qual experiência ‘é aquilo que nos passa, nos toca, nos
acontece e não aquilo que passa, que toca, que acontece,’ é pensado o processo de criação
como um ambiente propositivo de experiências que nos transformam e nos formam em uma
constante troca de sensibilidades com o mundo (ambiente) que nos rodeia, que nos marca com
o que atravessa o corpo no tempo presente. Também, em diálogo com os estudos sobre
processo de criação de obras de arte das mais diversas linguagens da crítica genética Cecília
Salles, pensamos sobre a rede de associações estabelecidas no corpo-vocal do atuante imerso
em um emaranhado de ações sonoras, melodias, respirações, ressonâncias que são re-
combinadas, re-configuradas para gerar outras vocalidades poéticas no corpo,
desestabilizando assim, padrões vocais cotidianos, elastecendo-os para outros percursos
poéticos da voz. Isto se dá pelos múltiplos encontros que ocorrem no processo de criação,

43
movimentando o corpo-vocal em constantes interferências culturais, mobilizando
intervocalidades. Neste momento, salienta-se também o ambiente de criação como um
ambiente de aprendizagem, no qual o processo de criação é uma mola propulsora para outras
descobertas sonoras, outras leituras de mundo, mobilizadas por afetos. Também neste rastro,
partindo do princípio de que há uma ruptura das fronteiras fixas entre as artes na
contemporaneidade e que também podemos constatar quando abrimos os bastidores, o antes
da obra acabada de diversos processos de criação, independente da especificidade da sua
linguagem, recorremos ao pensamento complexo de Edgar Morin e as suas noções de
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade para dialogar com a rede de conhecimentos
incorporados no fazer do laboratório prático desta pesquisa, pertinentes a um pensamento
contemporâneo e a própria inventividade inerente a uma vida viva, na qual as coisas se dão
em uma constante movência. Este rastro também levanta reflexões sobre as relações de ensino
e aprendizagem, aberturas de fronteiras entre professor e aluno, aprendizagem como processo
de criação.

Seguindo o fluxo da tese, um laboratório de rastros se faz presente no corpo do texto.


Este apresenta uma escuta de marcas pulsantes do laboratório de criação “Vocalidades
Poéticas” e também da instalação performática ‘água, flores e anjinhos’, que insistem em ecos
ao longo desta pesquisa: escuta de si/ambiente, vocalidade-vibrátil, vocalidade sensorial, voz
enquanto textura, materialidade da palavra, ecos de tecidos afetivos. Como vestígios deixados
no caminho, este rastro apresenta-se como um testemunho do processo de criação, nos rastros
de uma vocalidade poética materializada no corpo do texto como uma condensação de
imagens, conceitos, sonoridades, texturas... na sua força vibrátil, movente. Por fim, no rastro
oitavo (aberturas possíveis) a partir das noções de movência e de processo, percebemos as
frestas de aberturas para os muitos caminhos possíveis para o estudo prático da vocalidade
poética, não existem limites e fronteiras, ou melhor, o limite é o próprio caminho que
trilhamos. Esse foi o limite e a abertura de aprendizagem e ensino em vocalidade poética
nesta pesquisa. Aqui, voz, processo de criação, sinestesia e ambiente da cena se conjugam
para disparar processos pedagógico-artísticos que permitam a existência da voz na sua força
sensória, vibratória, erótica, corpórea; um encontro de vozes.

44
Rastro 2

POR UMA VOCALIDADE POÉTICA: INSPIRAÇÕES PRIMEIRAS

Desta espessura concreta da voz, da tactilidade do sopro, da


urgência do respiro. [... é valioso aqui...] esta capacidade da
palavra de, sem cessar, relançar o jogo do desejo por um objeto
ausente, e presente no entanto no som das palavras
(ZUMTHOR 2010, p.11).

Existe na voz humana um enraizamento pouco discernível de nossas memórias que nos
toca em um romper das lógicas da história, animadas pelas forças do desejo. As emoções mais
intensas precisam do som da voz, raramente das palavras; murmúrios, o choro do nascimento,
o grito por uma perda irreparável, uma felicidade indizível são forças da vida que se fazem
presentes na existência de um corpo-vocal. As vozes apaixonadas das sociedades arcaicas, de
um tempo no qual ainda não existia a escrita, presentes também em comunidades africanas
atuais e também em manifestações populares do nordeste brasileiro trazem consigo o desejo de
vozes vivas com palavras num misto de poesia e canto, cheias de musicalidade. É esta
vocalidade poética que precisa vir à tona no ambiente da cena e que impulsiona esta pesquisa.

A vocalidade toca de modo concreto, como gestos precisos que causam comoções
físicas. É o deslocamento de ar que a sua reverberação provoca. É uma linguagem sonora
concreta destinada aos sentidos. Isto pode ser explorado principalmente, a partir do corpo-vocal
do atuante, com suas cavidades de ressonâncias, seus diferentes ajustes posturais e dos órgãos
da fala gerando sonoridades no ambiente da cena, esmiuçando cada palavra para tentar
descobrir aquele sentido além do semântico-imediato, encontrar outros sentidos, que nascem
pelo sentido também sinestésico que cada palavra possui e também, pelas justaposições sonoras
nelas contidas.

É o atuante trabalhando com o significado relacionado ao significante da palavra no


momento da relação de jogo criativo-vocal, ou seja, dos significados que nascem da
musicalidade dos fonemas, do ritmo, da curva melódica, da percepção da respiração, do timbre

45
vocal, da sonoridade da palavra experimentada, de quem ouve e de quem vocaliza. O que está
aqui implicado é um entendimento corpóreo da palavra, sinestésico, inclusive possível e
potencializado pelo trabalho corporal do ator, permitindo um fluxo de associações, uma
imaginação presente, aguçando suas memórias e fantasias, criando combinações variadas de
movimentos corporais-vocais às imagens a elas conectadas. É o atuante pensando por imagens
ao apresentar os seus gestos e ações-físicas corporais-vocais.

Como uma música, é a partir da força das combinações perceptivas do som quanto à sua
intensidade, altura, timbre, melodia, ritmo e harmonia que a vocalidade poética da cena gera
uma ‘Ambiência Sonora’ e se configura como linguagem sonora. No caso da voz do ator, por
exemplo, articulada aos outros sons do jogo cênico, torna-se linguagem e possibilidade de afetar
o outro pelo que possui de sinestesia. Neste sentido, pensar a vocalidade poética é trazer para o
corpo-vocal coletivo o que a música tem de materialidade perceptível. Apesar de não ser
estritamente visível e nem tátil, a música chega no corpo de uma outra maneira, ela é visível
sendo invisível e tátil quando percebida pelos sentidos que se misturam. A vocalidade em sua
qualidade vibratória de ondas sonoras é tátil-sinestésica, ou seja, suas ondas sonoras tocam os
sentidos provocando ações no corpo.

Em casos extremos, o sentido das palavras deixa de ter importância, é a voz em


si mesma que nos cativa, devido ao autodomínio que manifesta...Assim nos
ensinaram os antigos com o mito das sereias.
As sereias em sua ilha atraíam os navegantes pelo encantamento de suas
vozes. Ulisses conseguiu escapar pedindo que o amarrassem ao mastro de seu
navio e tapando com cera os ouvidos da tripulação. Na antigüidade, as sereias
costumavam ser representadas como figuras míticas, semipássaros,
semimulheres (ZUMTHOR, 1993, p.4).

Além das propriedades físicas referidas ao som, há um sentido gerado pela música que
é feito por meio das vibrações sonoras perceptíveis em um determinado contexto histórico-
cultural, impulsionando sensações e imagens não codificáveis como os signos verbais, porém
traduzível com nitidez para a percepção corpórea, envolvendo o corpo com reações de afetos.
É esta noção de musicalidade que mobiliza e cria a ambiência sonora da cena. A sonoridade
toca os corpos, desencadeando sensações, associações de imagens e reações, despertando
metáforas sonoras a serem encarnadas pelos atores, permitindo a construção da vocalidade por
meio do jogo de vozes compostas pelos atores.

A junção das vozes dos atores, de diferentes formações técnicas, culturais, psíquicas e
idades geram gestos sonoros, constroem relações, dão existência a ações harmônicas ou
46
conflitantes no ambiente da cena. Como em uma obra musical, cada voz mantém a sua
qualidade, possuindo sua singularidade sonora no amálgama da nova voz formada. É do corpo
dos atores que nasce a vocalidade poética da cena e, por sua vez, é da cena que nasce a
vocalidade poética do ator. Do sonoro também surge o sentido visual, uma vez que os sons
vocalizados pelos atores suscitam imagens. A vocalidade é ao mesmo tempo, som e cenário.
Na medida em que se espalham palavras, murmúrios, canções, ruídos, coros, silêncios, surgem
imagens, um outro lugar, construindo uma ambiência sonora, na qual os atores criam enquanto
percebem o ambiente. Pode-se perceber, assim, como a vocalidade de uma cena pode permitir
a criação, um híbrido de teatro, música, dança e literatura, em que as palavras de um texto teatral
mostram sua força sinestésica podendo tornar-se música e dança no corpo do ator.

Fig 2 – Voz e sinestesia. Manuscrito da aluna-atriz Gabriela Araruna durante o laboratório Vocalidades Poéticas.
Teatro Universitário da Universidade Federal do Ceará 2013.

No laboratório “Vocalidades Poéticas”, o encontro de vozes permitiu uma mistura do


corpo-voz coletivo no corpo-voz singular, assim como a vocalidade singular possibilitou a
criação da vocalidade poética da cena. Um encontro de vozes no que elas possuem de corpóreo,
de sinestésico.

47
2.1 Zumthor e a Voz em Performance

Os estudos da performance vocal em diferentes contextos referidos por Paul Zumthor


permitem a seguinte reflexão:

[...] enquanto vocal, a performance põe em destaque tudo o que, da


linguagem, não serve diretamente à informação- esses 80%, segundo alguns,
dos elementos da mensagem, destinados a definir e a redefinir a situação de
comunicação. Decorre daí uma tendência de a voz transpor os limites da
linguagem, para se espalhar no inarticulado (ZUMTHOR, 2001, p.166).

As características vocais da performance, ou seja, o significado particular dado a um


enunciado, através dos meios corporais e físicos da comunicação valorizados por Zumthor,
implicam em uma libertação das palavras às imposições lingüísticas, ressaltando o sentido vocal
que nasce da relação concreta interpessoal. É a voz e o gesto que propiciam o impacto corporal
no espectador, são eles que vão persuadi-lo. Os elementos variáveis da linguagem vocal
correspondem a 80% do que define o que é percebido e sentido em uma fala, e neste sentido,
são as qualidades vocais conectadas a uma palavra que permitem pertencer a um campo infinito
de possibilidades semânticas, possibilitadas pela performance vocal.
O significado oriundo da performance vocal foi também investigado por Paul Zumthor,
em viagem à África, quando travou contato com cantores e contadores africanos. Zumthor, na
posição de ouvinte cuja língua desconhecia, não podia compreender o que estava sendo dito,
somente podia perceber o corpo dos artistas desempenhando funções e certos dados
sociológicos expressos nas relações estabelecidas. Nesta experiência, pode inferir que os
elementos vocais e corporais desempenhavam um papel considerável durante a performance,
percebendo assim, que a significação acontecia por outra via que não era a da decodificação da
palavra (FORTUNA, 2000).
A vibração da voz mobiliza o dentro e fora do corpo, no contato entre os sujeitos
corporalmente presentes na performance: aquele que vocaliza e quem recebe o som alterando
interiores, intimidades que se nutrem mutuamente, como no amor. Voz que acalanta e sacia,
devora e vomita pulsando vontades de existência. Em um apelo indizível de desejos, a voz ao
mesmo tempo é jorrada no espaço e engolida pelo outro para ser bebida novamente neste
constante processo de incorporação, um entrar e sair de sentidos que ocorre a todo instante.
Aspecto erótico da vocalidade poética, poderíamos pensar com Zumthor. Comer e vomitar a
força para o bem ou para o mal. A voz desde o nascimento é abertura e saída.

48
Embora uma língua como o latim ligue etimologicamente à boca (os, oris) a
idéia de “origem”, este “orifício” significa tanto entrada como saída: tudo
provém da voz, saída da boca, seja ela concebida como o oposto do exílio ou
como o lugar de retorno. Porém a boca não concerne à vocalidade, por ela
penetra no corpo a nutrição. Imagem inicial dos lábios mamando no seio,
eroticamente reiterada: boca, lugar de alimentação e amor, órgão sexual na
ambivalência da palavra. Daí, a amplitude do campo simbólico em que se reflete
o ato de manducação. Campo duplo, por sua vez, valorizado para o bem o para
o mal: come-se, mas também vomita-se ou defeca-se; e pela “boca do inferno”
do teatro medieval, o mundo demoníaco se derramaria sobre o nosso. À
devoração se opõe uma gulodice tranqüilizadora e galharda: do ogro à
Gargantua; da goela trituradora do dragão, aberta sobre um estômago-abismo,
até as bocas felizmente abençoadas do país de Cocanha: mulher de vagina
dentada dos contos ameríndios do Labrador; contradições que culminam na
figura exotérica do uróboro, a serpente que, circulante, engole a si própria. Ora,
na tradição bíblica, a voz da serpente foi a causa primeira do pecado “original”.
A palavra se apóia no instinto de conservação; conservar-se é nutrir-se; uma
pulsão de linguagem repete na articulação da voz aquilo que se confirma
alhures, entre conservação e erotismo. (ZUMTHOR, p.14, 2010).

2.2 Artaud e a Palavra Encantada.

E aquilo que o teatro ainda pode extrair da palavra são suas possibilidades de
expansão fora das palavras, de desenvolvimento no espaço, de ação
dissociadora e vibratória sobre a sensibilidade.
AntoninArtaud

Podemos também entender a vocalidade poética a partir do elemento sonoro no contexto


cênico do Teatro da Crueldade1 pensado por Artaud, é preciso destacar os pontos relevantes
sobre a linguagem teatral buscada neste teatro. Artaud propõe uma transformação da linguagem
e da função do seu teatro em contraponto ao teatro psicológico vigente na Europa Ocidental no
início do século XX, critica o teatro centrado na representação do texto literário e evidencia a
importância de outros elementos da encenação para a semiologia do espetáculo: o ator com seu
corpo e sua voz, o figurino, o espaço, os efeitos da iluminação, as sonoridades da música e da
palavra. Esta, por sua vez, não se limita ao significado, ela deve encarnar-se no corpo através
do seu significante. No teatro da crueldade a palavra se instala enquanto sensação sonora.

1
“Teatro da Crueldade”, é desta forma que Artaud nomeia a sua poética da cena, inclusive lança em 1938 um livro
chamado O Teatro e seu Duplo no qual publica dois manifestos, ambos chamados de “O Teatro da Crueldade”.

49
Segundo Artaud, a tradição ocidental, no intuito de colocar o teatro submetido à
representação do texto, teria se distanciado do sentido da cena, colocando-a unicamente a
serviço do texto como se este fosse um deus. É nesse sentido que pensa Jacques Derrida (1971)
referindo-se ao Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, tomando este enquanto ato e estrutura
que cria um espaço não-teológico, no qual o texto perde a sua prioridade como centro. Artaud
solicita uma linguagem teatral que se distancie de imitações e do teatro centrado na palavra,
ditada pelo autor do texto literário:

O palco é teológico enquanto a sua estrutura comportar, segundo toda a tradição, os


seguintes elementos: um autor-criador que, ausente e distante, armado de um texto,
vigia, reúne e comanda o tempo ou o sentido da representação, deixando esta representá-
lo no que se chama o conteúdo dos seus pensamentos, das suas intenções, das suas
idéias. Representar por representantes, diretores ou atores, intérpretes subjugados que
representam personagens que, em primeiro lugar pelo que dizem, representam mais ou
menos diretamente o pensamento do “criador”. Escravos interpretando, executando
fielmente os desígnios providenciais do “senhor”. Que aliás – e é a regra irônica da
estrutura representativa que organiza todas estas relações – nada cria, apenas se dá a
ilusão da criação, pois unicamente transcreve e dá a ler um texto cuja natureza é
necessariamente representativa, mantendo com o que se chama o “real”[...], uma relação
imitativa e reprodutiva (DERRIDA, 1971, p.154, grifo do autor).

Artaud reclama das limitações impostas pela palavra e advoga uma linguagem teatral
que represente o próprio teatro e não o texto, através dos elementos que ocupam a cena: música,
dança, artes plásticas, pantomima, mímica, gesticulação, entonações, arquitetura, iluminação e
cenário. Os elementos da cena, uma vez organizados entre si, se deslocam do seu sentido
imediato, transformando-se em metáforas, em criação de imagens e se dirigem, antes de trazer
qualquer referência intelectual, aos sentidos. É por meio da linguagem física e concreta dos
elementos que ocupam o espaço do palco que a cena se constitui, o sentido se faz na cena:
“Digo que a cena é um lugar físico e concreto que pede para ser preenchido e que se faça com
que ela fale sua linguagem concreta” (ARTAUD, 1999, p. 36).

Artaud exige o uso da própria concretude que a cena possui, quando pensa na linguagem
teatral, permeada pelo espaço, gestos, movimentos, gritos, sonoridades. O Teatro da crueldade
resgata a linguagem despertada pelas sensações primeiras, como nas nossas percepções iniciais
da vida. Ao pensar nessa linguagem do teatro que tem suas próprias leis e seus meios de escrita
baseadas na percepção sensorial, Artaud toca na base de toda forma de aquisição de linguagem,
em que o mundo nos toca pela realidade das formas, cores, gestos, gostos e vozes, e pertence a
presença dos sentidos do corpo. Há aqui os princípios de uma pedagogia estética da cena e que
pode ser chamada, como se verá mais adiante de ‘pedagogia das afecções’ (FARINA, 2008, p.
96). Artaud comenta que é o
50
Aspecto físico, ativo, exterior, que se traduz por gestos, sonoridades, imagens,
harmonias preciosas. Este lado físico é endereçado diretamente à sensibilidade
do espectador, isto é, a seus nervos (ARTAUD, 2004, p.82).

Artaud não quer entender as palavras de uma maneira descritiva, como tradutoras de
idéias, fatos e coisas; ele quer sentir a palavra. Sentir as palavras em seu estado concreto, físico,
como ressonância do corpo, das sensações e emoções que o atravessam. Sendo assim, não se
deve pensar que Artaud queria eliminar as palavras do seu teatro, mas sim perceber a sua
reivindicação por uma outra maneira de relação com as mesmas. A concretude da palavra é
devolvida ou encontra o seu sentido encantatório quando nasce na cena, tanto daquele que ouve,
quanto daquele que emite a palavra. É deixar a própria sonoridade da palavra falar por ela,
abrindo espaços além das expectativas semânticas embutidas nas mesmas. É dar voz à poesia,
à imaginação e encontrar a singularidade de cada palavra.

Não apenas no teatro de Artaud, mas também na vocalidade do ser humano, o sentido
‘encantatório’ das palavras está presente. Os estudos das linguagens primitivas demonstram
seus sons mágicos, de sentidos desconhecidos, com grande poder de encantamento. O
compositor canadense Schafer (1991, p.235), em ‘Quando as palavras cantam’ reflete, com base
nos estudos lingüísticos, sobre as mudanças sonoras da língua ao longo da história da
civilização, supondo que as línguas vêm perdendo as suas expressões sob a forma da fala
inarticulada, diminuindo a quantidade de interjeições, gemidos, sussurros, sopros, rugidos e
inflexões da voz de uma maneira geral:

Agora, é uma conseqüência do avanço da civilização que a paixão, ou, ao menos, a


expressão da paixão seja moderada, e, desse modo, podemos concluir que a fala dos
homens não civilizados e primitivos era mais apaixonadamente agitada que a nossa,
mais parecida com o canto (SCHAFER, 1991, p.235).

O que pode se pensar, então, ao propósito de tomar como impulso as reflexões de Artaud
para pensar a vocalidade poética da cena? Como isso pode derivar em modos de aprender que
provenham do próprio processo de criação? Que implicações culturais e políticas podem ter
esta aposta pela vocalidade e/ou sinestesia da cena em propostas educacionais?

O que importa, neste contexto, é que a linguagem verbal seja valorizada por meio dos
sons que são emitidos pelo ator, ou qualquer sujeito imerso em um ambiente de criação vocal,
como algo que toca aos sentidos do corpo do outro, tornando a relação sonora uma canção que

51
faz uma festa ou derrama lágrimas pelas sensações provocadas por sua musicalidade. Como diz
Schafer:

À medida que o som ganha vida, o sentido definha e morre; é o eterno princípio
Yin e Yang. Se você anestesiar uma palavra, por exemplo, o som de seu próprio
nome, repetindo-o muitas e muitas vezes até que seu sentido adormeça, chegará
ao objeto sonoro, um pingente musical que vive em si e por si mesmo,
completamente independente da personalidade que ele uma vez designou (1991,
p. 240).

Mas que vozes, que “pingentes musicais" tocam os sentidos do corpo? Para onde o meu
nome me leva? Que sentidos nascem do corpo da palavra? Que marcas culturais atravessam o
processo de criação?

52
53
Materialidade da palavra na fissura da memória
terailiad

54
Fig 3 – Fechei os olhos e fui. Manuscrito de Roberta Bernardo durante o laboratório Água, Flores e Anjinhos, no Teatro Universitário – UFC, 2013.
55
Fig 4 – Fotografia Instalação Água, Flores e Anjinhos. Foto de Fábio Souza, no Teatro Universitário da UFC, 2013
Rastro 3

A VOZ NA HISTÓRIA DE UM LUGAR NO TEMPO PRESENTE

Será valioso aqui compreender que o desenvolvimento do ser humano está imerso em
um processo bioantropológico, no qual o seu corpo matéria se movimenta, se desenvolve, se
transforma nessa constante interação do ser com o ambiente, desde os nossos mais longínquos
ancestrais. Esse processo antropomórfico só é possível ocorrer em um fluxo temporal e espacial
na atualidade porque temos uma história. É a história da humanidade, do país, da cidade e a do
indivíduo, entre outras possibilidades de combinação, que interferem na sua situação presente.
Quando uma criança nasce, ela é inserida em uma comunidade, geralmente em uma família que
possui características que se entende como próprias, e que denominamos de cultura e valores.
E o que importa frisar aqui é que a situação desta comunidade é marcada por toda a história
vivida por seus antepassados, afetando de modo intenso seus presentes, tenham estes indivíduos
conhecimento ou não destes percursos histórico-culturais. Se não fosse assim, o ser humano
estaria criando suas primeiras palavras a cada geração e sua forma de pensar estaria sempre na
falsa ideia de começar do início como se este fosse um marco zero da cultura, talvez semelhante
ao que imaginamos, também de maneira improvável, sobre os seres humanos primitivos.

3.1 Voz e movência

Quando nascemos, já há uma infinidade de imagens, vozes, narrativas, que nos


circundam, assim, estamos vinculados a uma tradição, mas também, neste mesmo contexto,
aqui talvez se opere o acaso mais do que o destino, recebemos o nosso nome. A criança, a cada
geração, recebe estímulos diferentes, o que gera novos pensamentos, novas visões de mundo,
sendo este um fluxo que influi na(s) história(s) dos indivíduos. Portanto, não há um
determinismo da história em relação aos sujeitos e sim um coexistir de referências,
interferências, incitações com as quais o sujeito tem que lidar. Deste modo, carregam-se as
influências dos primeiros estímulos ou a falta deles durante a vida, e não obstante toda a
vertiginosidade na relação do indivíduo com a tradição, a sua maneira de falar, andar e agir
denota sua ligação com uma história. É a história de cada pessoa, da sua família, do ambiente
onde vive, suas características próprias, culturais e valores, que se mostram quando esta dialoga

56
com o meio. É ouvir as vozes que estão dentro de nós, na nossa ancestralidade, que mexe com
nossos corpos, com forças vivas de memória recriadas pelo presente e que vislumbram
possibilidades de futuro.

Mas que não haja equívocos nesta íntima relação com a ancestralidade, porque ouvir as
vozes que estão dentro de nós é, do mesmo modo, ouvir uma alteridade. A ancestralidade nos
é valiosa não por ser determinista e sim por ser potência de possibilidades e de deslocamentos
do próprio presente como presente. Dentro e fora aqui não se contrapõem, ambos delineiam
espaços de passagens que configuram, um tempo “presente reminiscente” (DIDI-
HUBERMAN, 2010, p. 176). O que está dentro do tempo presente, como um vórtice que rompe
com sua linearidade cronológica, é um fora do tempo que impede sua fixação, este fora são as
vozes do passado. Neste sentido, o presente é anacrônico, e este anacronismo é produzido pelas
forças da ancestralidade, as quais na realidade, pode-se pensar concordando com o filósofo
italiano Giorgio Agamben (2009), constituem uma fratura arcaica no tempo.

Para Agamben, arcaico indica algo próximo da arké, da origem. Contudo, esta origem
“não está situada apenas num passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico e
não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro,
como a criança na vida psíquica do adulto” (AGAMBEN, 2009, p. 69). Sendo assim, a
ancestralidade pode tocar nossos corpos, porque ela é contemporânea, com efeito, para
Agamben, é o que constitui o contemporâneo, o nosso devir existencial, nos afetando, nos
transformando e nos permitindo criar laços de afetos sociais. Há aqui um jogo constante com a
memória, mas de maneira paradoxal, pois se trata de uma memória imemorial. Dito de outra
maneira, trata-se de uma forma de “Pensar nossas mitologias, pensar nossos arcaísmos [...]
sobre os signos de seu esquecimento [...] Maneira estritamente memorativa, portanto, de
trabalhar sobre vestígios, sobre signos de dissolução” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 190).
Como é possível falar neste limiar entre a criação de laços sócio-afetivos, ou seja, comunitários,
e estes signos memorativos, a ancestralidade, que é entendida aqui também como a tradição,
em dissolução? De que modo um processo de criação vocal permite vir à tona cruzamentos de
história, memória em um estado de movência?

57
Fig 5 –Mãe. Manuscrito da aluna-atriz Roberta Bernardo durante o
laboratório “Vocalidades Poéticas. Fotografia Instalação Água, Flores
e Anjinhos – por Fábio Souza.

O medievalista, poeta e estudioso das poéticas da voz, Paul Zumthor (2001), nos entrega
algumas pistas valiosas para refletir sobre este entrelaçamento entre tradição (sob o signo do
esquecimento) e comunidade. O locus emblemático que lhe permite realizar esta conexão, algo
crucial para esta pesquisa, é a voz, sobretudo a vocalidade poética. Ainda que suas reflexões
girem em torno da tradição oral e suas derivações em uma tradição textual na época medieval,
este autor se torna interessante para pensar o objeto desta pesquisa aqui nos dias de hoje. Chama
a atenção o fato de Zumthor citar, por exemplo, o repertório dos poetas populares do Nordeste
brasileiro como continuidade oral da epopeia carolíngia europeia (2001, p. 153). O que se quer
dizer é que ainda pensando no medievo, Zumthor fala, na realidade, de um movimento
contemporâneo ao presente, da maneira acima referida com Agamben, e encontrando
ressonância também no nosso contexto sociocultural nordestino.

Para Zumthor, é a voz poética que permite operar uma coesão e estabilidade sem a qual
o grupo social não poderia sobreviver, mas o que interessa aqui é que esta coesão se dá de
maneira paradoxal. Ele diz:

58
Paradoxo: graças ao vagar de seus intérpretes – no espaço, no tempo, na
consciência de si –, a voz poética está presente em toda parte, conhecida de cada
um, integrada nos discursos comuns, e é para eles referência permanente e
segura. Ela lhes confere figuradamente alguma extratemporalidade: através
dela, permanecem e se justificam. oferece-lhes o espelho mágico do qual a
imagem não se apaga, mesmo que eles tenham passado (ZUMTHOR, 2001, p.
139).

Zumthor reforça o sentido de comunidade possibilitado pela vocalidade poética


declarando que esta é diferente da voz cotidiana, a qual dispersa o real. Contudo, e isso é aqui
significativo, essa coesão comunitária não deixa de estar cruzada por uma fugacidade. Nas
palavras do autor: “As vozes cotidianas dispersam as palavras no leito do tempo, ali esmigalham
o real; a voz poética os reúne num instante único – o da performance –, tão cedo desvanecido
que se cala; ao menos produz-se essa maravilha de uma presença fugidia mas total” (2001, p.
139). Segundo ele, esta é a principal função da poesia oral e que a escritura, pelo seu ‘excesso
de fixidez’, mal consegue levar a cabo. Isto conecta diretamente a poesia oral à memória, que
– e aqui Zumthor descreve uma noção de memória a partir de pensadores medievais – “envolve
toda a existência, penetra o vivido e mantém o presente na continuidade dos discursos
humanos” (2001, p. 140). Da mesma maneira, continua este pensador, esta “continuidade é
assegurada a preço de uma multiplicidade de afastamentos parciais” (2001, p. 140).

Fig 6 – Um corpo coletivo-Um corpo só. Captura de imagem da gravação do laboratório


“Vocalidades poéticas”– Gravado por Tarcísio Rocha

59
O que aqui começa a ficar claro, a partir dos estudos de Zumthor, é um modo de pensar
operado por junção de contrários, de estabilidade e mobilidade. Parte-se de uma relação entre
o coletivo e o individual, onde o primeiro, que seria o lugar de estabilidade da memória, é
formado por um ‘armazenamento de lembranças individuais’ que, se poderia dizer, são móveis.
Esta é uma contradição que Zumthor percebe no pensamento medieval, no qual a memória ou
era tida como uma verdade imutável, ou como algo capaz de gerar variações infinitas (2001, p.
139-140). Mas este autor, ao considerar a vocalidade poética como o locus memorativo por
excelência, e que atravessa os tempos, não vai dar seguimento a esta dicotomia e sim partir
dela. Isto vale também para a relação pensada por ele entre voz e texto, entre performance e
escrita1 – dando a entender que a tradição somente é possível graças a uma série de constantes
variações. Isto, inclusive, vai denotar o que é que está realmente em jogo na noção de
comunidade.

Zumthor parte da noção de ‘tradicionalismo’, do filólogo e medievalista espanhol


Menéndez Pidal, para quem a “‘assimilação do mesmo’, procede da ‘ação contínua e
ininterrupta das variantes’” (apud. ZUMTHOR, 2001, p. 145). Isto define a posição de Zumthor
acerca da tradição oral:

A tradição, quando a voz é seu instrumento, é também, por natureza, o domínio


da variante; daquilo que, em muitas obras, denominei movência dos textos.
Menciono-a aqui mais uma vez, ‘ouvindo-a’ como uma rede vocal imensamente
extensa e coesa; como, à distância, literalmente o murmúrio desses séculos –
quando não, por vezes, isoladamente, como a própria voz de um intérprete.
(2001, p. 144)

Sendo assim, percebemos a voz poética como locus memorativo e Zumthor diz isso
diretamente, “a voz poética é memória” (2001, p. 139) assim como, do mesmo modo, “traz o
testemunho indubitável da unidade comum” (2001, p. 142), permitindo assim a criação de um
laço afetivo comunitário. Este laço comum é evidenciado pela voz poética, que cruza os tempos,
como algo extremamente delicado, já que o que pode se entender por comum (e por
comunidade), talvez, “seja menos o que temos em comum, nós, seus ouvintes, do que isto que
nos é comum a todos e, do mesmo modo, impossível: para além de nossas fronteiras, o rosto

1
Zumthor comenta que “o ‘texto’ existe de modo latente; a voz do recitante o atualiza por um momento; depois
ele retorna a seu estado, até que outro recitante dele se apropria” (2001, p. 144). Em outro momento ele diz: “A
fixação pela e na escritura de uma tradição oral não põe necessariamente fim a esta, nem a marginaliza de uma
vez. Uma simbiose pode instaurar-se, ao menos certa harmonia: o oral se escreve, o escrito se quer imagem do
oral” (2001, p. 154).
60
daquilo que a nós, indivíduos, seria a morte” (ZUMTHOR, 2001, p. 142). Assim esta noção do
comum se dá nos vestígios, nos murmúrios, nas vozes quebradas que nós herdamos da tradição,
sendo esta a ‘perfeita’ voz da memória, a qual “– forme-se na garganta, na boca, no sopro de
um poeta ou de um padre – tem como fim último, sem dúvida, evitar rupturas irremissíveis, o
despedaçamento de uma unidade tão frágil” (ZUMTHOR, 2001, p. 142).

Aqui o tempo, a temporalidade da voz, é vista na sua transitoriedade, como algo que vai
se tornando constantemente em murmúrio, em ecos fragmentados, marcados por uma finitude.
Este movimento não pode ser descrito necessariamente como clausura, nem fim, nem vazio, e
sim passagem, para um tempo outro, no qual a vocalidade poética adquire a potência de vagar
pelos tempos, aqui está a chave ‘da ação contínua das variantes’, ou seja, da sua infinitude. Se
Zumthor trata sobre a fala cotidiana como uma dispersão de palavras que esmigalham o real,
talvez se possa dizer a tradição da vocalidade poética como algo que se esmigalha para poder
dialogar com a fragilidade do real, sua transitoriedade, na qual o presente se desloca sempre de
si mesmo pelo trabalho da memória. Há no presente uma vertigem de tempos. Aqui temos o
paradoxo de uma tradição sob o signo do esquecimento, na qual esta é vista como vestígios,
sendo desta maneira como “a obra de memória constitui a tradição. [E aqui] nenhuma frase é a
primeira. Toda frase, talvez toda palavra, é aí virtualmente, e muitas vezes efetivamente,
citação” (ZUMTHOR, 2001, p. 143).

Neste sentido, a memória, a tradição, a vocalidade poética na história do mundo, não


está carregada de uma origem da qual se repetem normativamente as vozes do presente, estas
são sempre citações, reinvenções. De fato, para o mesmo Zumthor, a memória da vocalidade
poética, a tradição oral dos poetas, trovadores, “descansa sobre uma espécie de ‘memória
popular’ que não se refere a uma coleção de lembranças folclóricas, mas que, sem cessar, ajusta,
transforma e recria” (2001, p. 142). Deste modo a ‘citação’ abole a repetição obediente, trata-
se de um encontro, de vozes, de ecos, que são recriados, citados (vale a redundância) nas vozes
e textos do presente, afirmando a comunidade, nosso frágil e transitório sentido de unidade.
Neste sentido,

a tradição é uma série aberta, indefinidamente estendida, no tempo e no espaço


[... onde...] Num caos de aparentes incoerências de que nenhuma tradição escrita
da conta, vozes falam, cantam, os textos retém ecos fragmentados, sem fixá-los
jamais, impelidos como se ao acaso pelos turbilhões da intervocalidade
(ZUMTHOR, 2001, p. 146).

61
62
Dar passagem a um vertiginoso mundo afetivo
Se a voz é para Zumthor (2001) o domínio da variante, é ela que vai permitir nos textos
(este é outro de seus termos chave) a movência. Deste modo, os textos possuem aberturas a
partir das quais se dá a intertextualidade, como também acontece com a tradição oral, que vai
possibilitar a intervocalidade. Tanto uma quanto a outra (Zumthor se refere mais a
intervocalidade) podem ser vistas como lugares de transformação, como uma “polifonia
percebida pelos destinatários de uma poesia que lhes é comunicada” (2001, p. 144). E o mais
significativo para esta pesquisa é que ambos podem ser concebidos como ‘lugares de
transformação’. Ainda que algumas tradições (sejam textuais ou orais) possam ser regradas de
uma maneira mais ou menos formalizada, serão sempre de alguma maneira, como diz Zumthor,
incompletas e entreabertas ao imprevisível. A ancestralidade, a tradição, a memória, pode-se
dizer aqui então, carregam em si mesmas a sua força de movência, de citação, ou seja, de
reinvenção.

É esta movência que nos abre a possibilidade de ver o imaginário popular nordestino
não mais centrado em um folclorismo publicitário banal, que o enrijece fixando-o para fins
turísticos e comerciais e sim em sua potência de reinvenção, afetando o presente. Neste
contexto, se torna impulsionador o texto teatral de João Denys, Flores D’América. Nele reside,
de fato, potência poética, possibilitando um processo de criação no qual pessoas (sejam atores,
músicos, performers, dançarinos) podem dialogar com o imaginário nordestino, sertanejo, que
perpassa o texto, de uma maneira contemporânea, da maneira discutida anteriormente com
Agamben. A cultura nordestina popular abordada por João Denys neste texto (e em boa parte
de sua dramaturgia) corresponde a um reprocessamento poético dessa cultura, entremeada de
referências tanto da tradição oral nordestina como da dramaturgia contemporânea.

A importância disso é poética e política, como pensado pela pesquisadora da crítica


cultural latino-americana Nelly Richard. A respeito da cultura popular no nosso continente, ela
diz:

São vários os restos e excedentes latino-americanos que se encontram


marginalizados da recontagem prática-utilitária da integração e reciclagem
capitalista, privados de um idioma que faça vibrar a disparidade fora da
homogeneização do massivo. Um desses restos é o popular. Graças às novas
orientações da teoria cultural latino-americana, o popular tem rompido com a
versão folclorizada que o assimilava substancialmente ao autóctone e ao mito
de uma pureza de origem que devia permanecer inalterada, para se lançar a
aventura de novos cruzamentos híbridos- entre o hegemônico e o subalterno, o
global e o local, o oral e o telecomunicativo - que o redefinem impuramente.
(2001, p 16, tradução nossa).

63
Esta hibridização é operada no texto de João Denys, elaborando um discurso
dramatúrgico alternativo e resistente em relação aos discursos dominantes do consumo popular
massivo. Como ele mesmo comenta sobre o seu texto, trata-se das

surpreendentes relações entre campo e cidade, entre região e mundo, entre real e
imaginário, mediadas pelo corpo e o trabalho de mulheres que tecem uma América
sempre de veias expostas: uma América dependente, sempre sepultando seu futuro e
imediatamente engravidando um universo feminino de outras possibilidades, de um vir
a ser gente mais e melhor; um universo re-elaborado, um devir de poesia (DENYS,
2005, p. 11)

É esse devir de poesia presente nas vaporações de palavras da escrita de Denys, juntamente
com a sua opção dramatúrgica de ter personagens apenas mulheres, o que inspira uma
sonoridade de vozes de mulheres grávidas de um futuro outro, tornando este texto um instigante
material para fazer brotar, na maturação do laboratório de pesquisa, a presença de vocalidades
poéticas.

3.2 Flores D’América: vozes quebradas do cangaço

A personagem principal desse texto teatral chama-se América, tem duas filhas, Das
Dores e Soledade, e moram em uma casa de sítio nas proximidades de uma cidadezinha
chamada de Europa. Ainda que existam nestes dados da peça, vistos nos agradecimentos que
aparecem na publicação, aspectos biográficos do autor, no qual este comenta cada personagem
como se fosse alguém que ele conheceu e de Europa, não como o continente e sim como o nome
de um sítio no sertão pernambucano, fica evidente que estes nomes são referências que ele quer
cruzar dramaturgicamente. Entretanto, se à primeira vista pode-se pensar que se trata de mais
um texto político, daqueles que brotaram aqui e acolá no continente latino-americano, sobretudo
nas décadas de 1960 e 1970, discutindo a tensão colonialista entre Europa e América, sendo
esta última visualizada tragicamente como um lugar de solidão (Soledade) e dor (Das Dores),
não é necessariamente isso que se configura na força poética do texto. Certamente, e isso é
muito importante nesta pesquisa, não se trata de um típico teatro social de protesto, que em uma
pobre didática quer clarificar, a partir de um dualismo maniqueísta, as opressões sociais,
culpabilizando alguns e redimindo outros, gerando uma voz-autoridade para entender as
problemáticas socioculturais nele postas. Estas problemáticas de marginalidade, solidão,
violência existem fortemente no texto, entretanto, em um tratamento poético no qual não se
64
levanta nenhuma voz clarificadora, objetiva e condutora (voz-autoridade) do discurso, este se
mostra na sua própria rede de contradições e perplexidades.

Flores D’América está composta em oito quadros, que o autor João Denys chama de
mistérios,2 já delineando uma intensa religiosidade do imaginário nordestino ali traçado. Assim,
em uma grande sala de visitas de uma casa rural, nas proximidades de uma cidade chamada
Europa, vive uma família de três mulheres: América, uma mãe viúva e cega de um olho, junto
a suas duas filhas, Soledade e Das Dores. Estas três mulheres são costureiras, e o cenário
indicado no texto, que é onde se passa toda a peça, é esta sala onde estão distribuídas três
máquinas de costurar. Também, nas paredes, estão pendurados retratos dos donos da casa, assim
como, do Coração de Jesus e Coração de Maria, Nossa Senhora das Dores e Padre Cícero
Romão Batista. É uma história de mulheres, todas as personagens são femininas, a presença
masculina é espectral, durante o decorrer da peça, sabemos que o pai foi morto, assim como os
vinte filhos de América, pelos quais ela sempre chama. América se apresenta como uma mãe
autoritária que quer manter as filhas consagradas ao divino, assim as deseja sempre virgens,
castas e santas. Ocorre que elas foram as que sobreviveram na vida do sertão, seca, sem vida, e
ainda mais, vivendo agora oprimidas entre o cangaço e a polícia mancomunada. Em torno da
casa, sempre passam grupos de mulheres, muitas vezes rezadeiras, que lhes advertem sobre o
perigo de serem invadidas por homens que lhes roubarão tanto a casa como a virgindade de
suas filhas. Estas, no entanto, sonham no desejo de sair daquele lugar fechado no qual a mãe as
mantém à força, querendo se aventurar naquele mundo de perigos, fora de casa, fora do seu
mundo.

Estas mulheres, na realidade, são prisioneiras dos seus imaginários, não vivem, mas sim
sobrevivem às margens das lembranças, da fé, da saudade da mãe pelo pai, do trabalho que é
costurar roupas, mas sem saber para quem, mortalhas e mantos da virgem. O que nos mostra
este texto é um mundo vazio no qual “Por mais que América sonhe com uma boiada, vaqueiros,
cantigas, cheiro de gado, na realidade ‘não há nada, tudo em torno é seco, cinzento, ardendo,
nada ali se mexe’” (KÜHNER, 2005, p. 14). Estas são mulheres sem maridos, mulheres
valentes, que se defendem como podem, com faca, facão e rifle. No decorrer da obra, passam
coros de mulheres de coronéis, de mulheres cegas sanfoneiras, de mulheres devotas do Padre

2
Certamente a referência aqui é o teatro medieval, com suas obras sagradas e ao mesmo tempo populares,
realizadas nas ruas, com seus variados palcos distribuídos nos espaços das praças para, em estações dramatúrgicas,
contar sempiternamente os mistérios da igreja, de Cristo. Contudo, o que interessa nesta pesquisa é como o teatro
contemporâneo reprocessa esses procedimentos do teatro medieval para elaborar uma cena multifacetada, que
afete o espectador pela sua força sinestésica, ao modo como João Denys opera poeticamente em sua dramaturgia.
65
Cícero Romão... E no final, só resta um coro de mulheres passando pela cena, mulheres grávidas
de futuro, de esperança de um mundo melhor.

Flores D’América, como comenta a estudiosa teatral brasileira, e também dramaturga,


Maria Helena Kühner, corresponde a uma dramaturgia na qual, mais do que dicotomizar, podem
ser “descritas as contradições e ambiguidades que expressam a diversidade social [... havendo
um...] transbordamento do significado, transbordamento daquilo que ele mesmo [o texto]
designa” (2005, p. 19). Fala-se assim de outros modos de teatro, que sem negar as interfaces
existentes entre o poético e o político, abandonam um precário ranço iluminista de querer
clarificar um mundo, suas problemáticas sócio-culturais, e as aborda no cerne de suas
contradições. E se o mesmo Denys define esta obra como um “texto teatral estribado numa
poética do imaginário cangaceiro” (2005, p. 4), o que interessa aqui é que este autor, como
comenta o cineasta pernambucano Jomard Muniz de Britto, marca sua diferença frente aos já
consagrados dramaturgos nacionais que abordam esta temática. Como este mesmo diz:

ao contrário dos consagrados autores nordestinos, que se orgulham exultando


seus sobrenomes, a marca da diferença em João Denys poderia (re)começar por
aí: pelo avesso de tradições tão brasileiramente nordestinadas. Diferença das
diferenças. Avessos agrestes. Sertões desrealizados. Perversos nordestes (2005,
p. 119).

A peça opera por ambiguidades, de fato, essa promessa de mundo melhor, que pode ser
simbolizado no coro que aparece no final da peça, de mulheres grávidas, vestidas com longas
túnicas brancas, é contraposta com a imagem final da mãe América, que depois de morta,
aparece costurando. A intensidade do ambíguo vai sendo construída ao longo do texto, e vai
romper com uma visão folclórica das tradições nordestinas, entretanto, lançando mão de toda
sua força poética, na qual rezas e procissões dos coros (estes textos aparecem em versos;
referência da literatura de cordel) se dão em um mundo seco, vazio. Como diz uma das
personagens: “A seca tá pior que nos outros tempos. Depois da morte do Santo Padrinho Cícero
o mundo tá se acabando” (DENYS, 2005, p. 47). América, durante a peça, morre e aparece em
cena para explicar sua morte (morte sobre a qual o texto nos defronta com quatro versões
contadas por uma personagem chamada de Menina de Branco. Esta é outra camada da
ambiguidade). Assim, na peça, América costura, talvez, sua própria história e sua própria
mortalha, como um patchwork, já que a Menina de Branco conta que América foi assassinada,
decepada, por dez homens da polícia; depois conta que na realidade foi assassinada pelos
cangaceiros, comandados por Lampião; depois que foi assassinada pelas próprias filhas e
finalmente que esta mãe suicidou-se. América aparece constantemente na sala, sempre
66
desmentindo a Menina de Branco para finalmente contar que foi ela quem costurou no pescoço
a sua própria cabeça, que havia sido cortada, e diz: “Queriam que eu estivesse morta? Eu não
morro nunca, porque eu não estou aqui. Eu estou na cabeça de vocês, na cabeça do mundo. Eu
sou uma fêmea! Nossa senhora não é mãe do mundo todo, e até dos bandidos e dos santos?”
(DENYS, 2005, p. 108). E no final, dizem as indicações do texto, “América costura com ardor.
O barulho da máquina é amplificado até a máxima saturação: mais parece uma infinita rajada
de metralhadora” (DENYS, 2005, p. 118).

O que se percebe na dramaturgia de Denys é uma visão crítica para com as leituras
acostumadas e institucionalizadas que existem acerca do Nordeste. E esta foi, de fato, uma
chave de leitura com a qual ele abordou a obra de outro dramaturgo pernambucano, Joaquim
Cardozo, em um estudo denominado “Um Teatro da Morte” (2003), o qual certamente lhe serve
como referencial poético. Denys critica uma invenção institucionalizada e elitizada do
Nordeste, realizada, sobretudo, por intelectuais e artistas brasileiros da primeira década do
século XX. Estes construíram a visão de um Nordeste purista, saudosista de suas idílicas origens
míticas, para reagir desta forma à barbárie capitalista. Levantaram assim, uma visão redentora
do rural, em detrimento do moderno, do industrial e do urbano (DENYS, 2003, p. 109 – 120).
Neste contexto, para Denys é importante explorar, como citado acima as surpreendentes
relações entre campo e cidade, entre região e mundo, entre real e imaginário.

Denys entra na secura desse mundo, no vazio. América está no abismo da desilusão e
do pessimismo, dialogando com os mortos, considerada pela população como bruxa, mas com
tudo isso ela não se nega a dar abrigo: “Se vierem me cobrar imposto eu também mato. Tenho
horror a quem cobra e a quem paga imposto. [...] Se vier resto de gente desiludida, fugida do
governo, com fome, medo e vontade de trabalhar, eu dou guarida sim” (DENYS, 2005, p. 115).
Sem negar a ruína, entrando nela, Denys quer pensar em uma possibilidade de futuro, talvez
por isso, a necessidade de operar por ambiguidades, o que está relacionado com uma poética
que não quer fechar os sentidos da obra, mas sim abri-los.

Há em Flores D’América todo um jogo de hibridizações, na qual referências da tradição


do nordeste estão intrincadas com inúmeras referências da dramaturgia contemporânea. O
mesmo Jomard Muniz de Britto vai mapear, de forma poética, a maneira e os diversos autores
e artistas com os quais Denys dialoga em suas obras:

67
Tudo na base do mais generoso e autocrítico dialogismo: de Pasolini a Nelson
Rodrigues, de Antonio Fagundes a Samuel Beckett, de Shakespeare a Marcus
Siqueira e Luiz Maurício Carvalheira. Hamlet em Glauber. Cardozo em Artaud.
Brecht por Leda Alves em Hermilo Borba Filho. Grotowsky em Marcondes
Lima. Denys por Denys (2005, p. 125).

Esta peça se afasta de um teatro didatizante, cujo discurso poético quer persuadir o
leitor-espectador de alguma ideia (teatro de tese), e, em uma ambiguidade constante,s nunca
deixa que o significado se estabilize, abolindo toda possibilidade de tese fechada. “Em síntese
[esta obra se encontra] aquém e além dos discursos da linear persuasão. Pela irrupção desejante
de contradições e contra-DICÇÕES, cabeças cortadas rolando, sujeitos fraturados, dissonâncias
cognitivas, deuses à margem de pastos e rebentos” (BRITTO, 2005, p. 123). Neste sentido, este
autor pode ser inscrito dentro de toda uma geração de artistas e autores latino-americanos que
levantaram com suas obras um ponto de vista crítico com uma arte decididamente política, a
que ficou conhecida como ‘de esquerda’.3 Estes artistas chegaram inclusive a hierarquizar a
força política de suas obras por sobre a força poética, a primeira era certamente para eles mais
importante e urgente. A obra de Denys corresponde a um fluxo em que não se hierarquiza estas
duas forças, estas são simbióticas, o poético e o político. Aqui entramos no que a investigadora
cubana de teatro latino-americano Magaly Muguercia, chamou, já na década de 1980, de
Viagem à Subjetividade do teatro deste continente, rompendo com uma noção de teatro, de
apelação política direta, produzindo para isso um procedimento poético dramatúrgico (e cênico)
que “…brota naturalmente fraturado, eclético, plurilíngüe, e desborda os marcos de uma
narrativa excessivamente reguladora do discurso” (MUGUERCIA, 1991, p. 98, tradução
nossa).

A ambigüidade em Flores D’América não se restringe somente à contradição em sua


narrativa, como por exemplo, no final da peça, quando mulheres grávidas aparecem anunciando
um futuro melhor, quase ao mesmo tempo em que América costura em uma máquina com som
de metralhadora. A mesma narrativa desta peça, composta em oito mistérios, no qual América
se vê zelosa e autoritariamente cuidando das filhas, para que estas sejam castas e santas, em
conflito com as suas juventudes das filhas que querem conhecer o mundo, é quebrada na
metade. No quarto mistério, as filhas decepam a mãe, se apropriam de suas pertenças e saem
pelo mundo, mas logo no quinto mistério entra a Menina de Branco contando outra versão da
morte de América, e não somente conta uma versão, mas quatro muito diferentes entre elas

3
No Brasil podem ser considerados neste o dramaturgo e diretor Augusto Boal, o dramaturgo Giafrancesco
Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho (a exceção, talvez, de Rasga Coração), entre outros.
68
(estas cenas já foram referidas anteriormente). Isto dá ao texto não somente uma circularidade,
de voltar sempre a um mesmo ponto na narrativa, mas, principalmente uma dinâmica rítmica,
que denota também uma dinâmica sonora, tratando-se efetivamente de uma opção de
composição sonora na dramaturgia, operando no corpo da escrita, ou melhor, na escrita como
corpo-vocal.

O mesmo acontece, de maneira mais enfática ainda, com o reprocessamento da tradição


nordestina, de rezas, cantos, coros, com os quais Denys configura diversos jogos sonoros em
sua obra, os quais possibilitam intervocalidades. Ele não recria realisticamente estes coros, mas
sim os estiliza em uma dinâmica eminentemente fonética-rítmica-sonora, já que muitas vezes
dá especial atenção ao jogo de sílabas/fonemas que podem compor esta dinâmica. Por exemplo,
quando passa pela janela da casa de América um grupo de mulheres de cangaceiros, elas falam
em coro, alternando com a Líder:

“Líder do Coro:
Foge, foge, passa, passa, esconde esconde uruçu, mandaçaia, tubiba, mosquito,
papa-terra voa. Voa, voa, voa exu, miduri, capuxu doce. Doce, foge, voa, passa,
esconde, voa. [...] Foge dada, foge cila, foge moça. Olha a faca rosinha, olhas a
sede Lili, olha a bala veroniquinha. Puxe linha dona Otília, geme geme inacinha.

Coro:
Passa xexéu, passa baraúna, passa socó, passa nabu, passa passa gavião, passa
umbu, passa tatu, passa boi, passa boiada, passa Bandeira, passa umburana,
passa sol, passa angico, passa e fica, passa passa, passa pó, passa poeira, passa
pau, nuvem passa, passa vento, passa passa, corre corre, fogo fogo, corta corta,
puxa, puxa, esconde a linha, sai da linha, vá pra linha, arroucha afrouxa. São
pontos, são galhos, são linhas, são flores, são traços, são folhas, corta estica. É
rosa, é vinho, é azul real, é verde, é amarelo ouro. Será sangue sangue, corre
corre será” (DENYS, 2005, p. 74).

Pode-se inferir que como uma das maneiras de não fechar o significado da obra, Denys
opta por um trabalho minucioso no âmbito do significante, o que põe em evidência e
potencializa neste texto a força sinestésica das palavras (como foi discutido a partir das
contribuições de Artaud no rastro segundo). Denota-se uma força corpórea do texto e que é
basilar a esta pesquisa, a qual se dá principalmente, neste contexto, pela dimensão vocal
implicada nessas palavras, o que nos permite perceber na sua sonoridade ou, mais precisamente
ainda, na sua musicalidade. Trata-se da emergência, neste caso, de um texto-vocal, o qual
carrega inevitavelmente uma força material-cênica, corpórea-vocal, sendo esta a que afeta o
espectador, permitindo-lhe perceber a obra, e levantar sobre ela outras leituras, originadas do
impacto sensorial provocada no seu corpo. A partir desse choque corporal no espectador, este

69
fica aberto para interpretar a obra a partir de sua singular relação corpórea com a mesma,
estimulando nele a ativação da memória, que aqui encontra seu vínculo coletivo, já que a
memória está prenha de outras vozes (ZUMTHOR, 2001). Trata-se, desta maneira, da
sonoridade de um corpo-vocal. Com efeito, Flores D’América pode ser tomada como um corpo-
vocal falando de vozes esquecidas, dentro do seu próprio corpo, encarnando, contando,
cantando figuras, fatos históricos, coisas que marcam o imaginário popular transfigurados (pelo
menos em potência) no ambiente de uma arte cênica. Neste contexto, como pode ser pensado
este corpo-voz? Como nos relacionamos, como percebemos os sons que nos envolvem? Para
esta reflexão, falaremos novamente do tecido das memórias, especificamente agora, de
memórias sonoras.

3.3 Memórias sonoras que atravessam o corpo-vocal

Agora nada faço além de ouvir...


Ouço todos os sons que correm juntos, combinados,
que se fundem ou se sucedem,
Sons da cidade e de fora da cidade, sons
do dia e da noite...
Walt Whitman

Estamos imersos em mundo sonoro desde a nossa vida intra-uterina. No útero aquoso
da mãe o feto ouve as primeiras ressonâncias, vai formando e afinando o seu ouvido, reconhece
a musicalidade da voz do pai e da mãe. Com o nascimento, temos acesso a outros sons que
fazem parte da paisagem sonora na qual também estamos imersos. O pesquisador musical da
ecologia acústica, Murray Schafer, chama a atenção para as mudanças sonoras ocorridas ao
longo da história e como estas afetam as nossas vidas. Seus estudos fazem uma alerta sobre os
perigos da difusão indiscriminada e imperialista dos sons em variados contextos da vida
humana. Vários sons da natureza, por exemplo, temos dificuldade de ouvir e discriminar nos
dias de hoje e estão ameaçados de extinção. O canto de um pássaro, por exemplo, é identificado
como “som de passarinho”,de uma maneira genérica, são poucos os que conseguem dizer qual
passarinho emite tal canto. Percebemos uma massa sonora, pouco diferenciando os sons que
nos rodeiam e compõem uma paisagem sonora que trazem sensações de prazer ou de incômodo
para as nossas corporeidades.

70
Pode-se dizer que em todo o mundo a paisagem sonora
atingiu o ápice da vulgaridade em nosso tempo, e
muitos especialistas têm predito a surdez universal
como a última consequência desse fenômeno, a menos
que o problema venha a ser rapidamente controlado.
(SCHAFER, 2001)

Schafer afirma que no decorrer da história ocidental, o ouvido foi cedendo lugar para o
olho, tendo como marco o desenvolvimento da imprensa e da pintura em perspectiva:

Um dos mais evidentes testemunhos dessa mudança é


o modo como imaginamos Deus. Não foi senão na
Renascença que esse Deus tornou-se retratável.
Anteriormente ele era conhecido como som e vibração.
Na religião de Zoroastro, o sacerdote Srosh (que
representa o gênio da audição) se posta entre o homem
e o panteão dos deuses e ouve as mensagens divinas
que ele transmite à humanidade. (SCHAFER, 2001,
p.27)

Antes da era da escrita, a história e estórias eram transmitidas pelas tradições orais. A
audição era vital. Em ambientes mais rurais, vilarejos de pescadores ou em comunidades
menores, podemos, ainda hoje, ter outras percepções sonoras, diferenciar os sons da natureza,
nos deliciarmos com as curvas melódicas e rítmicas do contar uma estória. Por acaso não é isso
o que Denys reprocessa dramaturgicamente em seu texto, inscrevendo-o dentro de toda uma
dinâmica do teatro contemporâneo, quebrando historicamente com o realismo-burguês e
bebendo na cultura popular? O nosso ouvido de hoje precisa de um tempo, ou de uma intenção
de escuta apurada para perceber as nuances sonoras: “A mente precisa tornar-se mais lenta para
captar os milhões de transformações da água na areia, na argila... Cada gota tilinta numa altura
diferente.”(Schafer, 2001, p. 34-35).

Qual a relação entre os seres humanos e os sons do seu ambiente? Como esse mundo
sonoro afeta o nosso corpo? Como esses sons nos formam e nos transformam? Que sons
marcam o nosso corpo, a nossa voz, a nossa memória? Como esses sons se transfiguram em
uma vocalidade poética?

Experienciamos e capturamos no corpo paisagens sonoras de nossos lugares e épocas e


quando estas deixam marcas, podemos reconstruir até paisagens sonoras do passado. Schafer
(2001) nos fala de alguns testemunhos auditivos presentes na literatura, uma vez que seus
autores relatam um fato sonoro experienciado. Sobre este assunto, o autor cita a passagem do

71
livro “Nada de novo no front”, de Erich Maria Remarque, dando o exemplo dos sons produzidos
pelos cadáveres:

Os dias são quentes e os mortos jazem desenterrados. Não podemos


ir buscar todos, não saberíamos o que fazer com eles. Não precisamos,
porém, nos preocuparmos: são enterrados pelas granadas. Alguns têm
as barrigas inchadas como balões, assobiam, arrotam e mexem-se. São
os gases que se agitam neles. (REMARQUE, 1981 apud SCHAFFER,
2001, p. 25)

Segundo Schaffer, a experiência é o que dá a autenticidade testemunhal ao relato,


importante para poder realmente pensar nas relações do som com o ambiente. Trata-se, segundo
ele, de testemunhos auditivos. Isso nos lembra a noção de experiência pensada pelo filósofo
alemão Walter Benjamin (1993), o qual parte do sentido etimológico desta palavra, percebendo
um parentesco linguístico entre o termo alemão Erfahrung (experiência) com o termo Gefahr
(perigo). Algo similar ocorre na origem latina da palavra experiência, Experientia (Ex – fora/
Peri – arriscar/ entia– agente), na qual também o radical Peri é próximo a Periculum (perigo).
Sendo assim, experiência é o que nos marcou corporalmente, e que interrompe a linearidade de
nosso presente, nos mostrando que este não é contínuo e sim descontínuo, sendo estas marcas-
testemunhas de um tempo outro.

É necessária uma parada no tempo, como diz Schaffer, para uma escuta atenta dos sons
do mundo, que podem ser também ouvidos como testemunhos do mundo e que nos alcançam
receptivamente. “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o
que se passa, não o que acontece, não o que toca” (BONDÍA, 2002, p.21). O saber da
experiência mexe com uma sensibilidade corporal nossa, uma forma humana singular de estar
no mundo. Deste modo, se torna possível perguntar: Que experiência sonora nos chega? Que
experiência sonora no processo criação gera um saber vocal?

72
73
Fig 7 – Paisagem sonora. Desenho da aluna-atriz Angela deyva
Os sons da terra, das águas, do vento, da chuva, dos bichos (marítimos, terrestres e
aéreos), as crenças, os acontecimentos históricos, as pessoas que habitam determinado espaço
configuram constantemente a ambiência sonora de um lugar, enriquecendo a sua língua,
inventando expressões, criando e reinventando vocábulos, crendices. A vocalidade poética
precisa dançar, ou voltar a dançar com a ambiência sonora, reavivando suas memórias sonoras
de tempos passados, na qual a fala era apaixonada, mais semelhante à música ou a canção.
Deste modo, a vocalidade da cena teatral precisa tecer uma relação dialógica entre os sons da
sua paisagem sonora e fora dela, entre o som e o silêncio, entre os sons do presente e da
memória, entre o dia e a noite, entre os sons que habitam o corpo e o outro, em um fluxo
constante de encontros. Encontros nos quais estão implicados sobretudo corpo e ambiente.

Efetivamente, o mundo nos chega pelos sentidos, mais precisamente trata-se de um


“encontro entre o corpo sensível e o mundo sensível” (ASSUMPÇÃO, 2010, p.21). O performer
cearense Pablo Assumpção, ao relatar sua experiência numa sala de ex-votos, anexa à estátua
de Padre Cícero, na cidade de Juazeiro do Norte, espaço este “completamente forrado de
retratos votivos: dezenas de milhares de fotografias coloridas a reproduzir os corpos em
carência e piedade dos fieis” (2010, p. 20), comenta como isso afeta intensamente seu corpo,
produzindo-lhe um estado de luto, “um lamento que não se exterioriza sem ambivalência”
(2010, p. 20). Este estado, diz ele, em vez de paralisá-lo é, ao contrário, produtor de
conhecimento que o leva a tentar levantar uma opinião, mas o afeto ambíguo no qual está imerso
lhe impede de fixá-la em uma ideia única. O que este performer delineia é um pensamento do
trânsito, no qual este saber se dá principalmente a partir de uma sensorialidade material, não
somente do corpo, mas também do lugar, do ambiente. Ele comenta:

sem dúvida alguma o lamento que meu corpo construiu nesse espaço ritual foi
uma projeção psíquica organizada pelos meus sentidos corporais, mas foi a
partir de uma densidade sensorial que objetivamente já estava ali, própria
daquele contexto. Cada fotografia materializava uma memória, uma penitência,
uma viagem até o horto, um gesto. Se meu corpo criou fantasmas, ele não o fez
de modo aleatório, mas justamente no encontro com a memória material do
contexto onde ele circulava. (ASSUMPÇÃO, 2010, p.20).

Há memórias implicadas na sensorialidade do corpo e do mundo, ou seja, há histórias,


há cultura, ou se poderia também dizer, cultura sensorial. Rompe-se a dicotomia corpo e mundo,
opera-se um pensamento que venha justamente a desenhar possíveis relações, seus fluxos
74
sensoriais. Duas pesquisadoras dos estudos do corpo, Helena Katz e Christine Greiner (2001),
afirmam também o corpo como uma contínua negociação com o ambiente, produzindo
transformações tanto em um quanto em outro. Não há, pelo que refletem seus estudos, uma
dicotomia sujeito e objeto e sim inter-relações: “Meio e corpo se ajustam permanentemente
num fluxo inestancável de transformações e mudanças” (2001, p. 71). Para elas o corpo é na
realidade um ‘corpomídia’, e nessa condição negocia com o mundo, adquirindo assim, por
exemplo, um saber-se movimento em um mundo também em movimento. Corpomídia, deste
modo, é uma estratégia tanto para cancelar a possibilidade de ver o mundo como um objeto
neutro – sem memória – que aguarda um sujeito que lhe dê significado, como para cancelar a
ideia do corpo como recipiente, que vazio é preenchido por informações do mundo. Nem o
corpo, nem o mundo, são meios por onde a informação simplesmente passa, eles entram em
contatos, choques, rupturas, continuidades, dobraduras, contaminações com outras
informações, e o corpo é esta encruzilhada. Trata-se do corpo como mídia de si mesmo, não
como meio de transmissão (GREINER, 2005, p. 131). No processo de criação de “água, flores
e anjinhos”, a ambiência da cena foi criada pela composição de vozes, de sons, de silêncios em
movimento. Como também, composições de corpos-vocais aconteceram a partir da
transformação, do transitar da voz de modo afetivo na ambiência sonora da cena. Vocalidade
poética como uma extensão da pele tanto do ambiente como da voz, numa contaminação, em
um constante tecer um no outro, numa relação de convivência íntima.

75
A vocalidade permeia o cerne desta pesquisa, sobretudo pela sua força sensorial, material,
perceptível na ‘espessura concreta da voz’, na ‘tactilidade do sopro’, se poderia pensar com
Zumthor (2001). Greiner e Katz, ao pensar na relação corpo e ambiente, percebem na
etimologia deste último termo a movência (parafraseamos aqui a Zumthor) existente entre
ambos. Elas se perguntam: “Como pensar em corpo sem ambiente se ambos são desenvolvidos
em co-dependência?” (2001, p. 70). Ocorre que, explicam as autoras, ambiente surge da junção
dos termos amphi, de origem grega, significando ‘em torno de’ e ente, advindo de um antigo
idioma pré-histórico indo-europeu, significa ‘sopro’. Ambiente como ‘sopro em torno de’
(2001, p. 70). Assim também acontece com a palavra cultura, continuam as autoras, que vem
do indo-europeu Kwol, significando ‘andar em torno de’, similar ao termo amphi. Cultura é
conceituado pelas autoras como “um sistema aberto, apto a contaminar o corpo e a ser por ele
contaminado, e não a influenciá-lo e ser causa de mudanças visualmente perceptíveis nele” (
2001, p. 73).

A partir do parágrafo anterior, pode-se inferir que não há um determinismo cultural


sobre o corpo dos indivíduos, e sim um andar (em torno de), um trânsito entre ambos,
contaminações, como já referido pelas autoras acima. Da mesma maneira, o ambiente é algo da
ordem do tátil (sopro em torno de), que afeta os corpos que estão nele inserido, envolvendo-os,
penetrando-os e deixando-se transformar, ao mesmo tempo, por eles. Isto é crucial para pensar
na vocalidade, principalmente na voz poética, porque se podemos aqui pensar que a força
primária do ambiente é o sopro, o mesmo se pode pensar da poesia oral. De fato, a força da
palavra poética é o sopro, como sugere Zumthor (2010, p. 221), sendo este uma força física,
uma potência sinestésica. Ele diz que “A voz é uma coisa. Ela possui plena materialidade. [...]
A voz repousa no silêncio do corpo. Ela emana dele” (2007, p.85). Pode-se entender o sopro
como a força primária da palavra: “Nesse lugar em que a voz se dobra nela mesma, identifica-
se com o sopro, de onde tantos outros simbolismos, recolhidos pelas religiões: o sopro criador,
animus (ZUMTHOR, 2007, p. 85). O sopro impulsiona potencialmente fonemas, palavras,
indicando seu alcance corpóreo criador, opera com ar que se movimenta a partir da boca, essa
‘cavidade primal’ (ZUMTHOR, 2007), por isso sua aproximação divina à criação, ou a uma
força que movimenta o mundo. O som que sai desta cavidade primal “é ambíguo, visando ao
mesmo tempo a sensação, comprometendo o sensível muscular, glandular, visceral e a
representação pela linguagem” (ZUMTHOR, 2007, p. 86). É neste contexto que falamos, nesta
pesquisa de corpo-vocal.

76
Parte destas reflexões, principalmente, a do sopro como força da palavra, Zumthor a
deriva de uma importante singularidade da arte arcaica para a arte nos dias de hoje. Esta arte
antiga não diferenciava poesia, dança e música, pensemos por exemplo, no teatro grego, que
envolvia em suas apresentações atuação, poesia, música, dança, entre outros aspectos que eram
cênicos. De alguma forma, esta força sinestésica da cena, existente na dança, na música, na
poesia oral, entre outros, que expõem a força física das palavras, dos movimentos corpóreos,
dos gestos, e das vocalidades, é a que pretende rearticular o teatro contemporâneo. Isto explica
o seu afastamento cada vez mais intenso do teatro realista e do textocentrismo, concebendo os
elementos da cena em igual valor composicional que o texto, que antes comandava de maneira
logocêntrica e hierárquica a cena, se instaura como seu centro poético.

77
Com efeito, foi esta posição central do texto que implicou na desvalorização da
materialidade cênica, da sua força corpórea, para priorizar a aura do poeta-dramaturgo, como
voz ideal e incorpórea do palco. Mas este anti-logocentrismo da cena, com a qual opera o teatro
contemporâneo,4 não levou a uma anulação do texto no teatro, e sim a um reprocessamento das
poéticas dramatúrgicas que começam dar atenção a sua força sinestésica, a se permitir perceber
a dobradura do sopro. Podemos pensar que é isso o que realiza João Denys em Flores
D’América, e daí sua pertinência nesta pesquisa, que pretende indagar sobre um processo de
criação da cena focalizado na criação da ambiência sonora da cena. Como já referido
anteriormente, importa neste texto não somente o que diz sua narrativa, mas sobretudo como
ela está composta em termos dramatúrgicos, sua musicalidade, que aponta justamente para uma
dimensão sensória da palavra do texto. O fato, por exemplo, de que todas as personagens sejam
mulheres, já nos sugere uma possibilidade de textura sonora, ligadas aos timbres sonoros
femininos, sem poder cair em um lugar comum, pelo fato, de que estas mulheres são filhas do
cangaço, que se defendem com rifle e facão. Contradição esta que declara a força poética do
texto nos seus alcances cênicos. Do mesmo modo, há textos cheios de aliterações poéticas,
como aparecem muitas vezes na fala de alguns personagens, como esta de Soledade, em um
momento de tensão da peça, quando as filhas assassinam a mãe autoritária:

Soledade: (perversa, entre dentes) Maledita! Sangue, sangue, cascavel, porca,


porcalha, (urra) coisa suja, porcaria, veia, veia, cangote, estouro, (relincha) cruz
credo, fogo do inferno, arde, arde, arde, lama de sangue, (relincha) arranca,
arranca, esfola, tripa, cangote, arranca. Arre! Arranca olho, corta orelha, arranca
língua, tira o couro, quebra venta! Podre, temba, careca, azougada! (tira as mãos
da cabeça e manipula as chaves grandes e velhas) Errante, errante, setenta
vezes sete, Irad, sete, sete, sete. Sela, sela, Ada, Ada, ferida, pereba, ira, nó,
tirana, nó, vagabunda, pedra fugitiva, horas abertas, terra perdida, palmatória,
marreca, cara macambira, carão, urtiga, cunanam, caçote, capuxu, socó, toitiço,
quixaba, cachaço. (numa longa dor) Maledita! (DENYS, 2005, p. 75).

Em outro texto, em que a mãe América lembra, triste e carinhosamente, dos seus filhos
mortos, ela os chama com nomes de ervas e flores. Aqui, mais do que aliteração, há uma
ininterrupta listagem de flores e ervas que vão adquirindo, de forma análoga ao texto anterior,
uma dinâmica sonora a partir dos fonemas que vão sendo enunciados.

América: (embriagada) São ervas e flores, o perfume dos meus amores. Hortelã
de Conselheiro; bonina de juriti e manjericão de pensamento... Alecrim de

4
São diversos os livros que abordam esta questão do textocentrismo na história do teatro moderno, e sobretudo, no
teatro contemporâneo. Entre eles: “A Linguagem da Encenação Teatral” do francês Jean Jaques Roubine (1980);
“Dramaturgias de la Imagem” do espanhol José A. Sánchez (1994); “A análise dos espetáculos”, do francês Patrice
Pavis (1996); “Teatro Pós-Dramático” do alemão Hans-ThiesLehmann (1999); entre outros.
78
Andorinha, Benedita de Mansinho, capim santo de chumbinho, cajado de São
José de Bem-te-vi. Açucena de nevoeiro e espirradeira de Diferente e mastruz
de relâmpago... Angélica de Moreno, Jasmin de Azulão, bom dia de Barra Nova
e saudade de Sabiá. Dália de Meia-Noite, margarida de Brilhante, rosa menina
de Cajarana, bogari de açucena, rosa prata de beija flor e sorriso de Maria de
Martírio...

79
Em nenhum destes dois trechos, e isso acontece praticamente durante toda a obra, há
uma representação realista do fato que está sendo narrado. O que há é uma ênfase, um
transbordamento no significante, adquirindo, as palavras, um hiperbólico grau de exposição, de
corporeidade. É como se o autor nos entregasse a história de maneira extremamente
fragmentada, e no meio dos fragmentos jogasse com as palavras, referências múltiplas
relacionadas com aquele mundo seco. Certamente há algo neste mundo-sertão de descontínuo,
vozes quebradas, que ganham forma e força sinestésica na composição dramatúrgica deste autor
potiguar. Talvez, o que se procure dar a perceber no texto sejam estados, estados físicos;
podemos perceber, por exemplo, as rubricas5 do trecho de Soledade, acima citado, denotando
uma animalidade e visceralidade sombria e descontrolada; do mesmo modo, a rubrica do texto
de América, indicação esta que dá o tom sensitivo da cena junto a outra camada poética (e de
significação) como um collage de nomes de flores. Enfim, todos estes aspectos vão entregando
possibilidades de texturas sonoras-cênicas, e é neste sentido que podem ser percebidos também
os coros, as rezas, os cantos tradicionais, os versos de literatura de cordel, enfim, todo o
reprocessamento da tradição nordestina que é realizado nesta obra.

Neste contexto, a própria peça pode ser vista como um ambiente, como um mundo
sensível com o qual se buscou e/ou provocou contaminações entre os corpos-vocais, corpos-
palavras e os corpos-atuantes no laboratório de criação desta tese. Mas de que maneira? Não
obstante todo o corpo de referências com o qual Denys constrói seu texto, entendendo sua obra
como citação da citação da citação, ele não se filia (e isto é uma das características mais
marcantes da dramaturgia contemporânea) a nenhum modelo poético pré-estabelecido. Não se
pode dizer que esta obra é realista, ou expressionista, ou surrealista etc. E mais ainda, se poderia
dizer que Denys no ato de sua obra constrói sua própria e singular poética, a qual se esgota
neste mesmo texto. O que se quer expor com isto é que não há modelos, portanto, para levar a
mesma à cena; não há regras, postulados, caminhos prontos e é por isso que ela pode ser
percebida como um ambiente. Isto leva a perguntar acerca do que constitui então um processo
de criação com este tipo de obra, já que não há modelos a seguir. Certamente será valioso
considerar a sua própria materialidade texto-poética, seu jogo de vozes, de fonemas, de
palavras, de frases, de coros, de rezas... para conectá-la com os corpos-vocais de sujeitos
atuantes. Mas dito isso, o que está implicado artisticamente em um processo de criação vocal?

5
Indicações de cena ou de intenção de fala dadas pelo autor do texto.
80
Rastro 4

VOCALIDADE-BICHO OU DEVIR OUTRO-SONORO

Quantos seres sou eu para buscar sempre do


outro ser que me habita as realidades das
contradições? Quantas alegrias e dores meu
corpo se abrindo como uma gigantesca couve-
flor ofereceu ao outro ser que está secreto
dentro de meu eu? Dentro de minha barriga
mora um pássaro, dentro do meu peito, um
leão. Este passeia pra lá e pra cá
incessantemente. A ave grasna, esperneia e é
sacrificada. O ovo continua a envolvê-la, como
mortalha, mas já é o começo do outro pássaro
que nasce imediatamente após a morte. Nem
chega a haver intervalo. É o festim da vida e
da morte entrelaçadas.
Lygia Clark

81
Fig. 11 – O outro. Fotografia de Roberta Bernardo do
processo de criação de água, flores e anjinhos – por Fábio
José
Há algo que grasna no corpo ao vocalizar, vozes de pássaros e leões que nos habitam,
que anseiam por existência, por serem postas no mundo, como um bicho. Esse é o corpo-bicho,
essa é a vocalidade-bicho. Uma agonia, um nó na garganta que pulsa para o nascimento de uma
vocalidade, uma falta de palavra que experienciamos quando algo nos arrebata, que não
sabemos como dizer. No arrebatamento, todo o corpo se altera, todo o corpo se torna sensível
ao movimento dos fluxos de variadas naturezas que o atravessam, alterando respiração,
batimentos cardíacos, fluxo sanguíneo, imagens, sensações, imaginações que necessitam
ganhar vida no corpo da voz.
O ar inspirado percorre as cavidades ósseas, atravessa espaços, toca mucosas, dilata e
retrai membranas numa velocidade outra, ainda não vivida, chegando a corrente sanguínea.
Outra parte desse ar se mistura com outros fluxos que atravessam as cavidades do corpo, se
contamina com eles movido pela necessidade de vocalizar uma voz-outra, nunca
experimentada, movida pelo desassossego provocado pelo encontro com outros fluxos, com
outras inspirações de ar. Voz que grasna por existir, que necessita ser expressa. Esse é o corpo-
ovo do qual a psicanalista brasileira Suely Rolnik nos fala a partir do seu diálogo com a obra
da artista plástica Lygia Clark. Nas palavras de Rolnik:

Corpo-ovo, no qual germinam estados intensivos


desconhecidos provocados pelas novas composições que os
fluxos, passeando para cá e para lá, vão fazendo e desfazendo.
De tempos em tempos, avoluma-se a tal ponto a germinação
que o corpo não consegue mais expressar-se em sua atual
figura. É o desasossego: o bicho grasna, esperneia e acaba
sendo sacrificado; sua forma tornou-se mortalha. Se nos
deixarmos tomar, é o começo de outro corpo que nasce
imediatamente após a morte. (ROLNIK, p.1, 1993)

Este rastro propõe uma reflexão sobre o processo de criação em voz, vinculado a
presente pesquisa de doutorado, a partir das noções de corpo-bicho e corpo-vibrátil encontradas
na teoria da psicanalista brasileira Suely Rolnik na parte dos seus estudos que se baseiam na
análise crítica de obras da artista plástica Lygia Clark (1920-1988) e dos escritos deixados pela
mesma.
No processamento dos insigths despertados pela leitura de Rolnik, surgiram questões
que impulsionaram a reflexão sobre o laboratório prático desta pesquisa intitulado “Vocalidade-
Bicho”, tais como: de que modo, em que contexto podemos pensar em um corpo da voz? Quais
as relações estabelecidas entre a matéria sonora e os estímulos diversos atravessados no/pelo

82
corpo? Como uma vocalidade-bicho se faz encarnada na voz? De que modo podemos acessar
a vocalidade-bicho no âmbito das artes cênicas?
Algumas possíveis respostas ou impulsos para a criação de uma vocalidade-bicho
emergem inspiradas em Rolnik (2002) a partir do trabalho de Lygia Clark quando apontam para
o constante processo de devir-outro presente na criação do artista. No âmbito da voz nas artes
cênicas, se faz necessário deixar nascer e morrer vozes no movimento da criação, enfrentar o
bicho para nascer outras vozes, experienciar o trágico ao vivenciar estados intensivos de um
corpo-vocal, corpo este embebido de sentidos sonoros, encarnado de outras vozes, outras
vocalidades-bicho. Neste processo, um estado de arte-invenção é convocado a dar existência ao
movimento criador de vocalidades poéticas nas artes da cena.
A vocalidade-bicho é sempre um pedido, um grito por um corpo-vocal outro, que a força
do hábito, muitas vezes não deixa por-se em existência. Essa tensão necessita da experiência de
dores e alegrias que podem surgir ao habitar outros lugares da voz, vibrações em outros espaços
de ressonâncias, outros ajustes musculares, respirações outras que trazem encontros com
imagens e sensações outras que borram ou desfazem registros já habitados.
Tais qualidades vocais, muitas vezes estão cristalizadas, fixadas por serem socialmente
ou artisticamente aceitas como padrão do correto, do fora do erro, que, muitas vezes, possuem
uma estruturação que não é nossa e que tornam rígidas as possibilidades de invenção e
conhecimento de nós mesmos por meio do encontro com a nossa própria vocalidade. Portanto,
o processo de criação da vocalidade poética da cena, necessita dar ouvidos à vibração do grasnar
do bicho, escutar as diferenças intensivas que vibram no esperneio do corpo-bicho que
“entrega-se ao festim do sacrifício. Então, como uma gigantesca couve-flor, abre-se seu corpo-
ovo, de onde nascerá junto com sua obra, um outro eu, até então larvar.” (ROLNIK, 1996, p.2).
A vocalidade-bicho brota de forças intensivas que operam no corpo a partir do choque,
do contato, da fricção com outro corpo ( humano ou não-humano), encarnando um estado
inédito no corpo-vocal. Esse é o corpo-vibrátil citado por Suely Rolnik (2000), cujo contato
com o outro mobiliza afetos tão mutáveis quanto as múltiplas variedades que constituem a
alteridade. No plano do corpo vibrátil, que é, segundo Rolnik (1996), esta outra dimensão dos
processos subjetivos diferente de um “eu” como entidade fechada em si mesma e imune aos
seus efeitos de movência da alteridade:

83
84
Na relação entre a subjetividade e o mundo, intervém algo mais
do que a dimensão psicológica que nos é familiar. Estou chamando de
psicológico, o eu com sua memória, inteligência, percepções,
sentimentos, etc. – nosso operador pragmático, que permite nos
situarmos no mapa dos significados vigentes, funcionarmos nesse
universo e nos movermos por suas paisagens. Esse “algo mais” que
acontece em nossa relação com o mundo, se passa numa outra dimensão
da subjetividade, bastante desativada no tipo de sociedade em que
vivemos, dimensão que proponho chamar de “corpo vibrátil”. É um
algo mais que captamos para além da percepção (pois essa só alcança o
visível) e o captamos porque somos por ele tocados, um algo mais que
nos afeta para além dos sentimentos (pois esses só dizem respeito ao
eu) (ROLNIK, 2002, p.270-271).

No corpo-vibrátil, na vocalidade-bicho, o que irá se estruturar é um modo de


subjetivação que nasce na experiência no corpo com a sua pele, com a sua escuta viva em devir,
“engendrando-se no engravidamento pelo mundo” (ROLNIK, 2000, p.1) e assim possibilitando
a reativação da potência poética da subjetividade do corpo e do mundo em nossos tempos. A
partir das relações estabelecidas com o mundo, somos convocados a vibrar em suas diferentes
intensidades, timbres formando, assim, uma realidade sensível e corpórea invisível, porém tão
audível/visível e real quanto a realidade audível/visível.
Rolnik afirma que a cada vez que nos deparamos com um determinado perfil de
subjetividade em nossa existência, na realidade nos contatamos com um certo modo de sentir,
de pensar, de amar, de agir, de existir, ou seja, de se relacionar. E a cada vez que isso acontece,
é uma violência vivida pelo corpo em sua forma momentânea, desestabilizando-o e exigindo a
criação de um novo corpo. E a cada vez que respondemos às exigências impostas pelo contato
nos diversos ambientes possíveis de conexão, não só humanos, mas minerais, vegetais,
tecnológicos etc..., nos tornamos outros. Sendo assim, a referida autora propõe que seja
considerado o que se passa em cada um desses ambientes e não apenas no plano visível, mas
também no invisível, igualmente real.
O que Rolnik (1993) chama de “realidade visível” é essa realidade constatável na qual
identificamos um “eu” enquanto unidade identitária e independente, já o plano invisível da
existência, é compreendido como um plano menos óbvio e que aponta para a existência de uma
“textura ontológica”. Esta está relacionada a um plano de composição no qual as dinâmicas de
fluxos criativos da vida (todas as qualidades de relações, encontros, desencontros, entre outras
possíveis contatos sensíveis estabelecidos) compõem uma multiplicidade de modos de

85
existência, ou, podemos dizer subjetivas composições que geram estados inéditos, estranhos
daquilo que identificávamos como nossa figura momentânea. Portanto, nosso contorno é
rompido e, no caso desta pesquisa, nossa forma habitual de vocalizar é rompida, ficando
desestabilizada a unidade do “eu” e nos colocando a exigência de criação de um novo corpo-
vocal (com diferente modo de agir, de se relacionar, de sonorizar etc...), encarnando este estado
inédito que atravessa o corpo, exigindo assim um devir outro-sonoro.
Há múltiplos modos de subjetividades possíveis. A dimensão psicológica do
“eu”pragmático enquanto território estável, que permite ao sujeito situar-se nos códigos sociais
vigentes, é apenas uma dimensão da subjetividade. Uma outra dimensão da subjetividade que
se faz encarnada, menos óbvia como citado anteriormente, e que Rolnik chama de corpo
vibrátil, opera a partir das relações intensivas conectadas com os diversos ambientes da vida,
gerando uma realidade sensível e corpórea invisível (podemos, na realidade, pensar que é supra-
visível, uma realidade que amplia o visível) e tão real quanto a realidade visível. Ora, a
dimensão do corpo-vibrátil tem relação com algo que captamos para além da percepção
(entendida por Rolnik como ‘mapa de sentidos de que dispomos’), como algo que estranha o
que já nos é conhecido. Mas este além tem a capacidade de nos tocar, um algo mais que nos
afeta para além dos sentimentos de que dispomos. Esse algo mais que captamos está no nível
das sensações corpóreas. São essas as infinitas possibilidades de sensações encontradas pelo
corpo-vocal que contaminarão as qualidades de emissões vocais geradas pelo corpo em
diferentes frequências de vibrações sonoras. Nas palavras da autora:

"Sensação" é precisamente isso que se engendra em nossa


relação com o mundo para além da percepção e do sentimento. Quando
uma sensação se produz, ela não é situável no mapa de sentidos de que
dispomos e, por isso, nos estranha. Para nos livrarmos do mal-estar
causado por esse estranhamento nos vemos forçados a “decifrar” a
sensação desconhecida, o que faz dela um signo. Ora a decifração que
tal signo exige não tem nada a ver com “explicar” ou “interpretar”, mas
com “inventar” um sentido que o torne visível e o integre ao mapa da
existência vigente, operando nele uma transmutação. Podemos dizer
que o trabalho do artista (a obra de arte) consiste exatamente nessa
decifração das sensações (ROLNIK, 2002, p.271).

Atualmente, de acordo com Rolnik, nos deparamos com uma situação paradoxal. Com
as novas tecnologias de comunicação e informação, temos acesso a uma multiplicidade de
fluxos do planeta inteiro, provocando hibridizações, que vibram no corpo fazendo grasnar o
nosso corpo-bicho. No entanto, ao mesmo tempo, vivemos um esmaecimento do corpo-vibrátil,

86
uma vez que as nossas subjetividades são orientadas, impregnadas por apelos mercadológicos
e tomadas estas como principal dispositivo de reconhecimento social. A subjetividade
mercadológica é constituída por “imagens de formas de existência glamourizadas, que parecem
pairar inabaláveis sobre as turbulências do vivo. A sedução destas figuras mobiliza uma busca
frenética de identificação, sempre fracassada e recomeçada”(ROLNIK, p. 03)1. Portanto, no
atual sistema de fabricação de “subjetividades de mercado”, nos permitimos pouco
experimentar, inventar, sair nos cânones socialmente pré-estabelecidos, para poder deixar que
as intensificações da vida aconteçam no corpo-vibrátil, ficando essa possibilidade, muitas
vezes, limitada apenas ao campo da arte.

O avesso desse processo de subjetivação do artista é a anestesia


do resto da vida social: o homem comum em todos os homens perde as
rédeas dessa atividade de criação de valor e sentido para as mudanças
que se operam em sua existência e passa a se orientar em razão de
cartografias gerais, estabelecidas a priori, passivamente consumidas (
ROLNIK, 2000)2.

Acredito que tanto na arte como no nosso viver no dia a dia, como também em situações
de ensino e aprendizagem, muitas vezes, somos regidos por sistemas identitários que
uniformizam nossas subjetividades. Esses sistemas agem sob o regime exclusivo de um mundo
representativo, que esteriliza nosso poder transformador, não nos deixando entrar em choque
com a vida, com o ambiente, com ideias outras, com questões que atravessam um determinado
encontro de contextos. Acredito também numa potência poética da experiência artística, assim
como na potência da vida que pulsa na experiência, convocando corpos ao contágio do
encontro, a aberturas na percepção pelo contato.

4.1 Por uma vocalidade- vibrátil.

Inspirada no trabalho de Lygia Clark, encontro uma potente provocação, a partir do


pensamento da artista sobre a relação do espectador com a sua obra de arte, cujo sentido é

1
Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. Disponível em: http://caosmose.net/suelyrolnik/
Acesso em: março de 2014.
2
O corpo vibrátil de Lygia Clark. In: Caderno Mais, Folha de São Paulo. São Paulo. Abril, 2000.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/indices/inde30042000.htm. Acesso em: março de
2014.
87
gerado a partir da própria experiência do mesmo com o material proposto pela artista para
acionar o corpo-vibrátil do espectador. No caso da presente pesquisa, a postura de Lygia Clark
traz provocações para a minha reflexão enquanto pesquisadora/professora/propositora do
laboratório prático desta pesquisa, no qual, diferente de estabelecer uma relação de certo ou
errado, a partir de padrões vocais, de qualidades sonoras, a inventividade vocal foi o lugar
propositivo para o trabalho em cada cena, a partir de motes de criação diferenciados.
No caso do laboratório referido neste capítulo, o mote para a criação foi a “vocalidade-
vaca”, no qual incitou-se nas alunas-atrizes a coragem de expor-se ao grasnar do bicho, não
em seus clichês figurativos, mas nas suas outras possibilidades expressivas, levando o corpo-
vocal a outras intensidades que, muitas vezes, elas ainda não tinham sido experimentadas em
suas vidas. Neste contexto, foi levar as atrizes, por meio de proposições de exercícios, às
condições para esse mergulho, deixando que outras sonoridades nascessem e que outras
morressem no ato de experimentar, acessar uma vocalidade outra, deixando um novo ovo-
sonoro brotar.

Receber as percepções em bruto, sem passar por qualquer


processo intermediário. [...] Espaço abismal, túnel, morte,
passagem condutora para a vida. A recolocação do real em
termos de vida [...]. Recomposição do meu eu, a procura de um
profundo sentido de vida no grande sentido social, o meu lugar
no mundo. (CLARK, 2006, p.355).

Para criação da vocalidade poética foi preciso desequilibrar-se, procurar as situações


instáveis no laboratório prático da pesquisa, como acontece no movimento da criança entre o
balbuciar e o articular algumas palavras. Foi como repetir a experimentação da infância, mas
agora a partir de outro lugar, no qual sonoridades conhecidas se desdobraram, se multiplicaram
em outras, desfazendo, deslocando as formas da realidade que predominam em nosso mundo.
É neste lugar, não habitual, que se encontra a possibilidade de criação, no qual “deixando de
adotar uma postura natural, o corpo dá-se um artifício, faz-se artificial: pode doravante tornar-
se imagem, quer dizer matéria de criação de formas” (GIL p.19-20, 2002). Sendo assim,
percebendo o corpo-voz como um material maleável, múltiplas forças podem desencadear o
nascimento de novas formas sonoras, a partir da vivência do desmanchamento de nosso
contorno, de nossa imagem corporal-vocal pré-estabelecida, na experiência de nos
aventurarmos pela processualidade fervilhante de nosso corpo-vibrátil, como diz Rolnik, ou,
enfrentando a nossa vocalidade-bicho para nos diferir de nós mesmos. Nas palavras de Clark,

88
“para que tudo na realidade seja processo” (ROLNIK, 1996, p.7), no qual novas composições
de forças o corpo vibrátil vai vivendo ao longo do processo.

Perder a identidade, ser diluida em um coletivo cósmico, ver-se através


de todas as pessoas, coisas, idades, independente de sexo e idade. Eu
sou o outro. Ser elástica e maleável, adaptável a toda sorte de contato,
de contato de pele com o ambiente imagético.... Viver toda sorte de
situações secretas e imaginárias. Estar possuída. Dar continuidade ao
acontecimento do momento (CLARK, 2006, p. 355).

Mesmo em ambientes de criação em artes, no caso do objeto específico desta pesquisa


-voz nas artes cênicas- , muitas vezes, nos deparamos com corpos-vocais rígidos, cheios de
vícios quanto ao que é certo, errado, exagerado ou pouco. No presente estudo, a vocalidade
poética da cena precisou “vestir a mortalha” para que “o festim da vida” enbriagasse a voz em
estado de múltiplas possibilidades de criação. Partindo das inquietações provocadas pela noção
de corpo-bicho, nasceu a seguinte questão: O quanto se consegue habitar essa tensão da
vocalidade-bicho, querendo vibrar, nascer, deixando a força do habitual morrer ou se hibridizar
na mesma?

89
90
Fig 14 – Corpo –Bicho. Fotografia de Ângela Deyva – processo de ensaio de Água, flores e anjinhos – por Fábio
José de Souza

91
O que temos de bicho? O que temos de vaca? O que a mulher tem de vaca? O que o
texto “Flores D’América” tem de vaca? O que o laboratório de criação “Vocalidades Poéticas”
tem de bicho?

Inspirada nas noções de corpo-bicho e corpo-vibrátil encontrei, durante a presente


pesquisa de doutorado, inquietações para criar no corpo deste texto, reflexões sobre uma etapa
de grande importância para o ato de experimentar voz no laboratório de criação “Vocalidades
Poéticas”. Farei a seguir a descrição e análise de parte do laboratório divididos em: O texto
como material de contato da vocalidade-vibrátil, a presença do ritual, expirações sonorizadas,
música que criava atmosfera.

4.2 O texto como material de contato da vocalidade-vibrátil.

O encenador polonês Jerzy Grotowski (1933-1999), quando fala sobre a relação do


teatro com a literatura, aponta para a potência da “relação de encontro” como base para a
mesma, aliás, entende o fazer teatral como diversas camadas de encontros: da pessoa consigo
mesma, do coletivo de pessoas em criação se revelando a partir das relações estabelecidas, de
artistas se defrontando com o texto. Grotowski (1971) coloca que este, se for um grande texto,
oferece mais do que apenas uma única possibilidade de interpretação, proporcionando efeito
catalítico no ator/atriz:

[...]abrem portas para nós, colocam em movimento a maquinaria da nossa


auto-suficiência [...]o texto é uma espécie de bisturi que nos possibilita uma
abertura, uma autotranscedência, ou seja, encontrar o que está escondido
dentro de nós e realizar o ato de encontrar os outros (GROTOWSKI, 1987,
p.49).
Dialogando com o que nos expõe Grotowiski, que entende o texto como catalisador de
misturas, contaminações e também o texto como um bisturi que proporciona aberturas em um
imaginário encarnado do artista cênico, o processo de criação desta pesquisa, fez o exercício de
acessar a vocalidade-bicho ou devir outro sonoro, a partir também de material textual e para
isso, contou com fragmentos do texto teatral Flores D’américa do dramaturgo potiguar João
Denys, no intuito de provocar nas alunas-atrizes o contato com este texto, que possui uma
visceralidade expresssa na materialidade fonética existente na cadência de suas palavras, não
de uma maneira representativa ou psicologizante, e sim abrindo o texto no ambiente de criação,
como possibilidade de contato ou como catalisador de afetos no corpo-vocal das alunas-atrizes,
a partir da relação singular de cada uma com o mesmo. Neste sentido, podemos pensar o texto
92
fazendo um paralelo com a arte de Lygia Clark na fase em que ela propõe a experiência estética
dos espectadores/clientes, a partir do contato corpóreo dos mesmos como os seus objetos
relacionais. Sendo assim, fazendo inferências da artista, a partir do que a mesma entende como
relação que traz sensações, sentidos, podemos pensar o texto como um corpo tátil-sinestésico,
no qual a pele do mesmo faz contato com a pele das atrizes, em um processo que engendra
outros modos de dizer, de movimentar o desejo de vocalizar e é desse contato, fricção de pele,
que sensações, imagens, sons, respirações emergem em vocalidades poéticas.

O que importou nesta etapa do processo criativo foi a relação estabelecida entre as
atrizes e o texto, o experimentar, o atualizar no corpo da palavra aquela sonoridade inventada
no ruminar dos fonemas da palavra e neste contato, acessar texturas no ato de cortar, molhar,
saborear, expulsar: um mosaico infinito de combinações sensoriais acessadas por cada atriz
para dar existência à palavra vocalizada na cena.

Abandonou-se então, em uma primeira instância, o sentido semântico das palavras


dentro do contexto frasal apresentado no texto, esmiuçando-se as mesmas no intuito de trazê-
las para uma respiração do presente, oferecendo e recebendo um sentido vivo na cena
impulsionado pelo movimento da criação. Neste contexto, o texto Flores D’América tornou-se
um potente material poético. Abaixo, alguns fragmentos do texto, trabalhados durante a etapa
do laboratório “Vocalidade-Vaca”:

Soledade: (perversa, entre dentes) Maledita! Sangue, sangue, cascavel,


porca, porcalha, (urra) coisa suja, porcaria, veia, veia, cangote, estouro,
(relincha) cruz credo, fogo do inferno, arde, arde, arde, lama de sangue,
(relincha) arranca, arranca, esfola, tripa, cangote, arranca. Arre! Arranca olho,
corta orelha, arranca língua, tira o couro, quebra venta! Podre, temba, careca,
azougada! (tira as mãos da cabeça e manipula as chaves grandes e velhas)
Errante, errante, setenta vezes sete, Irad, sete, sete, sete. Sela, sela, Ada, Ada,
ferida, pereba, ira, nó, tirana, nó, vagabunda, pedra fugitiva, horas abertas, terra
perdida, palmatória, marreca, cara macambira, carão, urtiga, cunanam, caçote,
capuxu, socó, toitiço, quixaba, cachaço. (numa longa dor) Maledita! (DENYS,
2005, p. 75).

América: Aaaadasseelaaa!

A linguagem escrita passou a ser material sonoro para a aquisição de uma outra
linguagem, a linguagem da cena. Percebemos em alguns textos contemporâneos como o de
dramaturgo potiguar João Denys, ou do autor teatral francês Valère Novarina, citando apenas

93
alguns exemplos, um investimento na corporeidade da escrita, no qual as palavras estão
organizadas de uma maneira aberta para o lugar do sensível. Frases, palavras utilizadas como
material. Não se trata somente de jogos rítmicos sonoros no texto em um formalismo banal,
mas de texturas sonoras que interrogam os nossos sentidos e, a partir dessas forças sinestésicas,
sentidos são inventados.

Segundo os teatrólogos Leonardelli e Ferracini (2013), no artigo que falam sobre a


relação do ator com o texto dramatúrgico na contemporaneidade, os referidos autores nos
convidam a pensar na palavra textual não mais como unidade que encerra o sentido, mas como
uma atualização que carrega potência e uma multiplicidade de possíveis significados. Portanto,
a partir desse pressuposto, o texto Flores D’América e suas palavras são pontos possíveis de
materialização de sentidos e suscitam movimentos variados na voz, no imaginário vivido na
carne das alunas-atrizes.

Toda palavra carrega em si uma espécie de conteúdo selvagem,


pré-pós- linguagem, que torna o texto tão mais rico quanto melhor
compreende essa instância como linha de fuga da molaridade “texto”.
Jogando com a selvageria dos sentidos, e tornando tais atravessamentos
não como desvios da linguagem, mas como parte fundamental da
natureza da palavra, o texto surge como território da crise, e não da
resolução, campo de debate das humanidades possíveis, múltiplas, por
inventar. (LEONARDELLI &FERRACINI, 2013, p.157)

Mergulhar na subjetividade deixando vir à tona o diferir de nós mesmos. Apelar ao


movimento sonoro que proporcionará maleabilidade à agitação interior da vocalidade-vibrátil
e, por meio do movimento sonoro se domará a própria vaca, a vocalidade-bicho de cada uma.
Sendo assim, a linguagem sonora nesta perspectiva, nasce do grasnar do bicho, incendiando o
corpo com suas faíscas de palavras lançadas no espaço, transbordando na cena a cadência de
palavras, a intensidade da textura fonética.
A vocalidade poética se exterioriza enquanto ressonância dos fluxos afetivos,
imagéticos, culturais, psíquicos que atravessam o corpo no momento da criação, no movimento
quando a percepção de estados corpóreos-vocais se atualiza em palavras cheias de imagens e
sensações atuantes e participantes do movimento vocal. Neste sentido, a voz é pensada como
instantâneo produto de um sistema instável, no qual qualquer impulso, qualquer transformação
microscópica de energia muscular, do fluxo sanguíneo, do influxo nervoso repercute em todo
o sistema de emissão vocal. “Basta que a consciência distenda uma tensão muscular em certo
lugar para que um novo equilíbrio procure estabelecer-se” (GIL, 2013, p.21). É o corpo de carne
vocalizado atualizando o virtual, encarnando-o e desmaterializando-o ao mesmo tempo e isso
94
graças ao efeito da captura desses impulsos pela respiração, sonorização, ressonância,
articulação de cada fonema da palavra dita, de todo um fluxo de sensações que atravessam o
corpo dentro de um sistema em equilíbrio instável.

A vocalidade-bicho necessita desarticular a fala, segmentar os seus parâmetros de


emissão, separar os instantes da respiração, silêncio, sonorizações, articulações e ressonâncias
a fim de poder reconstruir um sistema de um equilíbrio infinitamente delicado. Uma espécie de
caixa de ressonância ou de amplificador dos movimentos microscópicos do corpo: esses,
nomeadamente sinestésicos, sobre os quais a consciência não pode ter controle a não ser
concentrando-se neles. Então, o corpo solta-se e a consciência do corpo torna-se um espaço
interior percorrido por movimentos que refletem, à escala macroscópica, os movimentos sutis
que atravessam os órgãos. A língua, os lábios, as pregas vocais, os músculos, as cavidades
ósseas do corpo devem tornar-se vias para o escoamento desimpedido da energia que se
desdobra em vocalidade poética do ambiente da cena.

Um corpo que se abre e se fecha, que se conecta sem cessar com outros
corpos e outros elementos, um corpo que pode ser desertado, esvaziado,
roubado da sua alma e pode ser atravessado pelos fluxos mais
exuberantes da vida. Um corpo humano porque pode devir animal,
devir mineral, vegetal, devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro
movimento (GIL, 2013, p.53).

É a porosidade do corpo-vocal que se torna esponjosa para se deixar contaminar pelas


imagens e sensações internas e externas do corpo possibilitando infinitas qualidades de
ressonâncias. Para que a voz vibre as ressonâncias do seu contato com o ambiente, faz-se
necessário que os condicionamentos da voz, os jargões de fala pré-estabelecidos, ou tudo aquilo
que obstrua, que faça romper os fluxos, sejam varridos do corpo, mas pela própria intensidade
do fluxo. Este é o plano da imanência ou o corpo-sem-órgãos do qual o filósofo português José
Gil nos fala a partir dos estudos que Deleuze levanta sobre Artaud. Segundo Gil (2013, p.57),
o corpo habitual possui certas obstruções à livre circulação de energia, portanto é preciso
desembaraçar-se dele, constituir um outro corpo, no qual intensidades de fluxos energéticos
possam ser levadas aos seus mais altos graus, sendo esta a tarefa do artista. Mas como sair deste
corpo acostumado, habitual? Como constituir estados intensivos de criação vocal?

95
4.3 A presença do ritual.

José Gil (2013) traz para o corpo do seu pensamento filosófico uma descrição
etnográfica do ritual terapêutico entre os Wolof do Senegal3. Segundo o filósofo, em múltiplos
povos, as danças terapêuticas visam à cura por meio do estado de transe. E, no ritual dos Wolof,
o transe é alcançado pela dança e por outros procedimentos e, também, o paciente só sobrevive
por meio da desestruturação do corpo-organismo:

Eis como os Wolof procedem: tiram-se as vísceras do corpo animal


sacrificado e cobre-se com ela o corpo do doente. Por exemplo, após
um banho de sangue do animal sacrificado (um boi ou uma cabra),
esvaziam-se os intestinos do seu conteúdo; depois os intestinos “ são
cortados, e a seguir ligados, pedaço a pedaço, sobre o corpo de um
doente: no seu pulso esquerdo e no tornozelo direito (ou inversamente);
nas suas ancas à maneira de um cinto; no peito e nas costas, como um
soutien cruzado e atado por baixo dos seios. Enfim, uma parte da pança
do animal, esvaziada do quimo e virada do avesso, é fixada nos cabelos
como uma pequena boina. Manta de sangue coagulado a recobre. A
doente conservará estes adornos de vísceras e esta touca de pança até o
banho ritual que tomará no dia seguinte na água lustral dos seus novos
altares. (GIL, 2013, p. 57-58).

Todo este processo ritualístico ocorre durante o transe do paciente, acessando as


intensidades mais fortes que pode suportar. Neste ritual, que consiste em arrancar os órgãos do
organismo e esvaziar o seu espaço interno, podemos pensar, segundo José Gil, que, extraindo
os órgãos e dispersando-os no exterior, a organização habitual do corpo é desfeita, ou melhor,
é esvaziada e deste modo “libertam-se os afetos investidos e fixados nos órgãos [...] tudo isso
supõe, evidentemente, uma “identificação” com o animal- melhor seria chamarmos um “devir-
animal” (GIL, 2013, p.58). É esse esvaziar-se, é esse deixar-se desorganizar o organismo
fixo, é esse acessar outros percursos, outros lugares de sonorização no corpo com a pele aberta
para o processar da criação que necessita a vocalidade poética.
Portanto, como no ritual de cura dos Wolof do Senegal, a entrada no laboratório prático
desta pesquisa “Vocalidades Poéticas” foi concebida por um pensar-fazer ou por um fazer-
pensar embebido pela força do ritual, no qual o corpo é afetado pelo contato intensivo, por
correntes de afetos libertados que deixam exercer forças de atração, de quaisquer natureza, que
reverberam na voz, sejam elas pensamentos, emoção, madeira, antepassado ou uma memória

3
Etnia do Senegal estudada pelo etnólogo Andràs Zempléni, no qual o transe é obtido também pela
dança (Gil, 2013, p.57).
96
sonora atualizada no corpo-vocal - um corpo de emoções ou de intensidades jorradas em som
que vibra na pele. É essa a vocalidade-bicho ou devir-outro sonoro, movido pelo desejo de
experienciar no corpo da palavra, no corpo da voz, no corpo desta pesquisa.

Uma viagem tão intensa a este além da representação que, por uma
questão de prudência, Lygia deixava uma pedrinha na mão do
receptor/paciente durante toda a sessão, para que pudesse, à exemplo de
Joãozinho e Maria, encontrar o caminho de volta. Volta para o familiar,
o conhecido, o doméstico; volta para a forma, a imagem, o humano - a
"prova da realidade", como se referia Lygia a este aspecto de seu ritual
(ROLNIK, 1996, p.4).

No intuito de trazer para este texto um pouco do ambiente de criação do laboratório


prático “vocalidade-vaca”, passo a descrever alguns exercícios propositivos do mesmo e
também apresentarei alguns depoimentos de textos escritos livremente no diário de bordo das
alunas-atrizes após cada dia de laboratório. É válido ressaltar que, mesmo sabendo que agora,
voltando a todo o material de registro (diário de bordo, fotos, vídeos, plano de laboratório)
outros encontros e reflexões são implicados neste retorno ao material coletado ao longo da
pesquisa prática- meu corpo-sonoro no encontro com outros corpos-sonoros marcados no papel,
proporcionando a diferença que nos arranca de nós mesmos e nos torna outro. À medida que
escrevo este texto, encontro as marcas do processo de criação vivido, mediado por mim no
ofício de professora, criadora e aprendiz de vocalidades poéticas.
Seguem abaixo alguns momentos do nosso ritual-pesquisa vocal. Relato alguns dos
nossos estímulos. São vozes minhas e das meninas- alunas- atrizes: Roberta, Ângela, Raquel,
Hylnara e Gabriela para acessar a vocalidade-bicho:

97
98
Fig 15- Palavra Selvagem. Manuscritos do diário de bordo de Roberta Bernardo (os dois primeiros) e de Raquel
Capelo (os três seguintes), escritos durante o laboratório “ Vocalidades Poéticas”. Teatro Universitário-UFC, 2013.
4.4 Expirações sonorizadas.

Durante o laboratório, foi aguçada inicialmente a percepção da respiração, trazendo a


imagem de seres unicelulares do mar para as células do corpo como um todo, em suas
qualidades pulsantes e constantes nos líquidos tais como, no sangue, linfa, líquido intersticial
entre outros. Nesta perspectiva, buscou-se um corpo maleável, menos rígido, fluido e pulsante.
A voz foi experienciada a partir das sensações desses fluidos do corpo, liberta de automatismos
e de uma rigidez estratificada de uma imagem corpórea da voz em uma parte única do corpo.
Dando sequência, foram realizados movimentos corporais em fluxo livre, objetivando desfazer
tensões nas articulações e músculos antes de dar continuidade aos outros exercícios desse dia.
Começamos deitadas, buscando contato com a superfície do chão de madeira,
massageando a pele, músculos e ossos do corpo em movimento fluido e também a partir do
contato com o chão. Cada uma, na passagem de uma base 4para outra, foi buscando liberar as
tensões do corpo como um todo, visando tornar o movimento do corpo-vocal mais fluido. Esse
mover-se no chão massageando-o também incluiu um mover a voz massageando-a a partir de
sons suaves e prazerosos para cada uma das alunas-atrizes.
Com frequência, os sons vocalizados eram vibrações de língua e/ou de lábios, bocejos
sonorizados, sons contínuos nasais.
Durante todo esse início, chamado por mim de disponibilização do corpo como um todo
para início da atividade, foi incentivada a busca por sensações de ampliação dos espaços de
conexões ósseas do corpo desde a articulação temporo-mandibular, os espaços entre as
vértebras da coluna, cintura escapular, cintura pélvica, conexões ósseas de braços e pernas. A
partir de um corpo mais dilatado e presente, buscou-se também deixar que a sensação de
vibração sonora ressoasse nos espaços do corpo. Todo o corpo como possibilidade de
ressonância, mas criando percursos sonoros variados. A vibração sonora ampliando e
movimentando as cavidades internas do corpo, seus fluidos, vísceras, espaços entre as
articulações, poros ósseos.
Aos poucos, pesquisando outros níveis do corpo no espaço, fomos saindo do nível baixo
e ampliando a experimentação do movimento sonoro com o corpo nos níveis médio e alto,
sempre buscando aberturas na garganta, nos espaços entre as articulações, deixando a vibração
da voz percorrer os espaços internos do corpo, sentindo as passagens de um movimento para o

4
Neste texto, chamamos de base as diferentes posições a partir do contato estabelecido entre o corpo
com a superfície durante a movimentação tais como: base deitada, sentada, decúbito dorsal, decúbito
ventral, decúbito lateral, entre outros.
99
outro, de um deslizar da voz em glissandos5 ascendentes e descendentes. Neste momento,
buscou-se uma vocalidade plástica, maleável e sensível.
Uma vez no nível alto, todas as alunas- atrizes na posição “em pé”, passamos para outra
proposição, no intuito de ativar a experimentação no corpo de um fluxo expiratório com um
maior jato de ar. Mostrei para as alunas-atrizes uma sequência de ciclos de movimento
expiratório-inspiratório, no qual elas deveriam lançar jatos de ar no espaço em direções variadas
acompanhados de movimentos precisos de olhar e membros superiores para o ponto de direção
acionado. Este exercício foi realizado com uma base de pés enraizados e com flexão de joelhos.
É um exercício que gera uma intensificação do aquecimento do corpo como um todo no espaço
e uma ativação, uma necessidade do corpo de trabalhar uma maior quantidade de ar. A partir
desta ativação de energia corpórea, foi solicitado que as alunas-atrizes experimentassem deixar
vibrar nesse fluxo de energia expiratória o som de vogais (/a/,/e/,/i/,/o/,/u/) e que aproveitassem
todo o sopro expiratório para sonorizar cada som vocálico.
É importante ressaltar que neste nível da proposta de exercício, foi nítida uma qualidade
de presença sonora outra, a partir da ativação da respiração. Porém, acredito que o fato de
direcionar o ar, ter a presença do olhar no exercício, ter a necessidade de um corpo inteiro
lançando esse fluxo aéreo, transforma a proposta do lugar de um exercício mecânico, que olha
o exercitar da respiração em um isolamento do todo do corpo que respira, sem perceber a
especificidade contextualizada do ato de respirar do corpo que gera uma cadência de
reverberações de ativações no mesmo. Este processo trouxe diferentes possibilidades
expressivas, tornando o exercício do respirar, do lançar e receber ar do ambiente, um ato de
criação de estados outros no corpo que respira. Lembremos de Artaud (1984) quando fala que
o ator é como um atleta, mas que trabalha com a sua musculatura afetiva e esta pode ser ativada
pela respiração:

Não há dúvida de que a cada sentimento, a cada


movimento do espírito, a cada alteração da afetividade humana
corresponde uma respiração própria.[...] A respiração reacende
a vida, atiça-a em sua substância (ARTAUD, 1984,p.163-166).

Dando sequência ao exercício da respiração, foi experimentado vivenciar palavras do


texto “Flores D’América”, com a indicação de que cada sílaba fosse experimentada em um jato
expiratório, aproveitando todo o ar na sonorização agora da sílaba, percebendo toda a

5
Glissando é uma passagem suave de uma altura sonora a outra. Um deslizar de tonalidades dos
graves para os agudos ou dos agudos para os graves.
100
musculatura da cintura pélvica e abdominal ser acionada no movimento de sonorização.
Algumas palavras utilizadas para o trabalho foram: maledita, sangue, lama e arranca. Abaixo
uma tentativa de expressar visualmente sonoridades vocalizadas pelas alunas-atrizes durante o
exercício:

-Inspira- MaaAAAA
Inspira – leeEEE-
Inspira –diiIII
–Inspira - taaAAA

SSSan à Ã
gueEEEE

laaaaãã
MMaaaÃAAA

Aaaa RRRAÃA caaaaaa

Além de ativar respirações que impulsionassem afetos a partir da vibração no corpo sons
de vogais, sílabas e palavras do texto, este exercício com as palavras do texto buscou também
que as alunas-atrizes ganhassem intimidade com o mesmo, mas por uma via corpórea, pela ação
física da corrente aérea que lança, fricciona, corta, lambe cada fonema. É o sentido material
sonoro que gera possibilidades de sentidos outros, a vocalidade-bicho. Assim, o texto foi sendo
encarnado nos músculos, ossos, pele, fluidos do corpo-vocal, na materialidade fluídica da
imanência. Nesta pesquisa, o texto também é visto como um material fluido que vai ganhando
formas no encontro entre os corpos do processo, sem um psicologismo, a priori, ditando as
emoções a serem representadas.

Depois deste primeiro momento, voltamos para o chão de madeira do palco do Teatro
Universitário e, a partir de outros estímulos, nos lançamos na pesquisa de outros devires sonoros
impulsionados pela respiração. Neste momento, lançamos mão de ensinamentos a partir de

101
algumas técnicas somáticas desenvolvidas pela discípula de Laban6, a fisioterapeuta Irmard
Bartenieff (1900-1982), sua abordagem trata de “uma abordagem corporal que propõe uma
experiência senso-cinestésica e cognitiva, levando em conta a integração e a totalidade corporal,
assim como a conectividade dos movimentos” (CAETANO, 2012).
Foram feitos exercícios a partir dos padrões de desenvolvimento do movimento (etapas
de desenvolvimento e organização corporal a partir do sistema neuro-motor caminhando para
a complexidade do corpo), este processo foi por Bartenieff (FERNANDES, 2002) observado ,
sendo eles: exercício metade do corpo- em um rastejar como um réptil pelo chão; elas foram
estimuladas a desenvolver relações de olhar e deixar que sonoridades acontecessem a partir
desse estado, desse esforço de deslocamento. Este exercício ativou outras camadas de
vocalidades bicho, desta vez, inspiradas na experimentação do próprio animal (no qual cada
uma aluna trouxe para o seu imaginário encarnado o seu animal) em etapas diferentes do
desenvolvimento filogenético: um ser aquático, um réptil e, por fim os mamíferos, chegando na
vaca7, bicho sagrado que é referendado na dramaturgia de Flores D’América.
De pé, com o tronco curvado para frente, as alunas atrizes iniciaram uma pesquisa do
movimento da coluna, sentindo o peso da bacia, percepção de como se desloca, peso do corpo
e suas alterações de sensações, como olha como elas se olham a partir deste estado corpóreo.
Experimentação do tubo digestivo, boca, espinha neste estado de animalidade inventado em
cada corpo-vocal, deste modo, outra vocalidade por meio de um devir-bicho. Deixar a voz ir, a
partir da escuta do estado intensivo do corpo despertado por conexões, sensações. A partir do
devir-bicho vaca, um imaginário encarnado na voz se fez presente, isto difere de imagens
objetivas, representativas de sons de vaca ou do da referência direta da imagem visual da
mesma. Tratou-se de testemunhar vocalidades involuntárias que tinham urgência em reverberar
nos espaços do corpo-vocal, nos espaços da cena.

4.5 Música que cria atmosfera.

Durante o laboratório “Vocalidade-bicho”, houve também a presença de música com o


objetivo de instalar uma atmosfera sonora ritualística no laboratório. A música que fez parte do

6
Rudolf Von Laban: dançarino, coreógrafo considerado como um dos maiores teóricos da dança do
século XX e como o “pai da dança-teatro”. Dedicou os seus estudos para a linguagem do movimento e
sistematização da mesma em aspectos relacionados a criação, notação e educação.
7
A vaca Benedita alimenta, amamenta as crias de América na peça “ Flores D’América” de João Denys.
102
processo chama-se “Salsa lateira”. Como o próprio nome já sugere, trata-se de uma música com
um ritmo frenético de salsa e unicamente percutida em objetos que sugerem sucatas de latas.
Esta música encontra-se no CD “Bahia Singular e Plural”. A música imprimia movimentos
telúricos no corpo das atrizes devido ao ritmo, melodia, intensidade e combinação de sons.
Sendo assim, a sua pulsação trazia um determinado tipo de movimento corporal, como um ritual
onde o corpo e o som estabeleciam uma relação de íntima consonância.

Segundo o teórico da área musical Miguel Wisnik, a música é capaz de distender,


contrair, deslocar, gerando sensações psicofísicas, que levam o corpo para lembranças, e
associações novas de ideias. Existe na música “uma gesticulação fantasmática, que está como
que modelando objetos interiores” (WISNIK, 1989, p. 30). Buscou-se uma música de caráter
circular, que fosse e voltasse sempre para o mesmo ponto, mergulhando as alunas-atrizes em
um espaço-tempo no qual elas não se importassem em perceber onde era o começo ou o final
da música e até que ponto ela se fazia presente durante o processo de criação. Podemos traçar
semelhança entre a música utilizada no laboratório prático da pesquisa com características da
música modal, porque...

[...] essa música é voltada para a pulsação rítmica; nela, as alturas melódicas
estão quase sempre a serviço do ritmo, criando pulsações complexas e uma
experiência do tempo vivido como descontinuidade contínua, como repetição
permanente do diferente. (Por isso mesmo elas apresentam esse caráter
recorrente, que nos parece estático, mas é bem mais extático, hipnótico,
experiência de um tempo circular do qual é difícil sair, depois que se entra
nele, porque é sem fim.) A música modal participa de uma espécie de
respiração do universo, ou então da produção de um tempo coletivo, social,
que é um tempo virtual, uma espécie de suspensão do tempo, retornando
sobre si mesmo. São basicamente músicas do pulso, do ritmo, da produção
de uma outra ordem de duração, subordinada a prioridades rituais. Pois bem:
essas músicas não poderiam deixar de ter a presença muito forte das
percussões (tambores, guizos, gongos, pandeiros) [...] E é também um mundo
de timbres: instrumentos que são vozes e vozes que são instrumentos (vozes-
tambores, vozes-cítaras, vozes-flautas, vozes-guizos, vozes-gozo). Falsetes,
jodls (aquele ataque de garganta que caracteriza o canto tirolês e que está em
certas músicas africanas), vozeios, vocalises, sussurros, sotaques, timbres
(WISNIK, 1989, p.40, grifo do autor).

Neste laboratório, outros sons permeados mais pela energia do animal-vaca se fizeram
presentes, liberados por meio do movimento-sonoro na própria carne de cada uma das alunas-
atrizes. Deste modo, a partir do acoplamento matéria-sensação-imagem, um imaginário sonoro
ativo presentificou-se no corpo-sonoro. Houve também, neste laboratório, relação de jogo entre
103
elas, como em um ritual, todas juntas em um círculo embebidas pela música percussiva que
tocava, buscavam um corpo-bicho a partir da mistura, da troca de energia entre elas. Desta
maneira, outros sons não figurativos do corpo-bicho-vaca foram sendo inventados na
experiência do corpo coletivo, impulsionados pela experimentação de animais a partir da
respiração, do seu peso, suscitando a vibração da voz em outros lugares de ressonância no
corpo. Todos esses estímulos eram impulsionados a provocar a voz, o bicho da voz no corpo
das alunas- atrizes.
A vocalidade-bicho deixou correr afetos libertados, entrou em contato com matérias
outras que promoviam um vibrar da voz- pensamento, emoção, madeira, antepassado,
imaginação... estamos falando de um corpo-vocal de emoções ou de um corpo-vocal de
intensidades. Sons que fazem vibrar a pele.
Nos diários das participantes, podemos perceber a impressão do laboratório “
vocalidade-vaca” a partir da percepção das mesmas:

104
Fig 16- Vaca. Manuscritos do diário es de bordo Gabriela Araruna (os dois primeiros), seguidos pelos manuscritos de Raquel
Capelo e de Angela Deyva critos durante o laboratório “ Vocalidades Poéticas”. Teatro Universitário-UFC, 2013.

A partir do território desta pesquisa, que é a voz em processo de criação nas artes da
cena, e que chamo na presente tese de “vocalidade poética”, podemos perceber algumas
implicações desta noção de voz a partir do estudo do corpo-vibrátil, corpo-bicho da psicanalista
Suely Rolnik. No presente texto fizemos cruzamentos práticos-teóricos no conhecimento da
voz contaminados pelo corpo-bicho apresentado por Rolnik, para tanto, foi feito um recorte na
parte do laboratório prático desta pesquisa , no qual tais cruzamentos foram evidenciados e
tornaram mais clara a prática desenvolvida, como também ampliaram as possibilidades de
ressonância do conhecimento da voz em processo de criação para outras instâncias pedagógicas.
Nesta perspectiva, podemos pensar a vocalidade-bicho como estados intensivos de vibração
sonora na presentidade do corpo-vocal. Ressalto a palavra presentidade para dar ênfase à
necessidade, na vocalidade-bicho, de escuta dos estímulos que atravessam o corpo no instante
presente. Estímulos estes, muitas vezes, no nível das sensações, algo que afeta, mas não temos
que necessariamente codificá-los em um entendimento lógico-racional, mas na sua potência de
marcar, contaminar, a partir da composição dessas condições à expressão da voz no ambiente
da cena. Para tanto, vozes-outras precisam ganhar forma, são as vozes do grasnar do bicho, que
enfrenta a morte para deixar nascer a potência sonora que pulsa por existência.

105
Esta é a vocalidade-bicho, que por sua vez, se faz intensa enquanto possibilidade de
entendimento do termo “vocalidade poética” na movência do seu termo como nos provoca Paul
Zumthor (2010). Sendo assim, a vocalidade-bicho invoca o devir outro-sonoro, aquela voz que
não pode ser vocalizada nas amarras do senso comum, é a voz bradando por encontrar o outro
nas qualidades expressivas que estão materializadas no corpo.
Podemos pensar também a vocalidade poética a partir das palavras de Lygia Clark
quando ela nos fala do “rito sem mito. Não mito transferente, exterior ao homem, mas a potência
de criação permanente de si e do mundo”. Isto que Clark nos fala, todo ser humano tem
virtualmente e o convite da vocalidade-bicho é justamente potencializar esse estado de
arte/invenção por via da experiência sonora, possibilitando assim, a vocalidade poética,
conexões com a potência poética da vida.

106
107
Fig. 17: Vocalidade-Bicho. Captura de imagem de gravação da apresentação de
água, flores e anjinhos. Por Fábio José de Souza, no Teatro Universitário. 2013
Rastro 5

ESTADO DE ESCUTA: VOZ E SONORIDADES COMO PELE DA CENA

Fig. 18: Desacostumar. Manuscrito do estudante Tarcísio Filho durante o processo de criação de “água, flores e
anjinhos”. Teatro Universitário, 2013.

O que é escutar nesta pesquisa? Escutar é uma alegria, é se deixar contaminar pelos sons
do mundo que nos envolve, dos jardins, das praças do lugar onde moramos, dos compartimentos
da nossa casa, das vozes de pessoas que estão perto e distantes de nós. Escutar é isso, mas a
escuta também pode nos trazer outras imagens, outros fonemas, outras palavras, outros
“acordes”. Escutar proporciona uma abertura para combinações infinitas. Escutar também tem
a ver com um cuidar de si. Aguçar a escuta é entrar em contato consigo mesmo, é também
perceber que fazemos parte de um movimento. Ou seja, entender a si mesmo como movimento,
como trânsito, como mudança. Movimento este possível pelo estado de escuta do corpo-
ambiente, corpo-mundo, corpo-som, corpo-cena. Assim como é necessária uma aprendizagem
para falar em cena, é necessária uma experiência e habilidade para escutar, afinar com o outro,
compor sons, vozes, falas... para também serem escutadas na cena, na vida. E para escutar como
se deve, com o corpo aberto para acolher o som, em um primeiro momento, é preciso ouvir o
silêncio ativo, um certo recolhimento:

108
[...] pouco a pouco os músculos e a mente relaxam e o corpo se
desenvolve, tornando-se gradualmente um ouvido. Atingindo
um estado de liberação dos sentidos (SCHAFER, 2001, p. 362).

Não se habita o mundo da mesma forma quando nos pomos a


escutar o silêncio da noite, o farfalhar do vento nas folhagens,
as ondas do mar quebrando nas praias ou a gaivota revolvendo
a areia, ao final do dia, para dali catar algum resto esquecido e
depois, em voo preciso, se afastar lentamente, como quem tem
preguiça ou apenas não tem pressa para acompanhar o pescador
em seu barco mar adentro (ARANTES, 2012, p.93).

A pesquisa do educador musical e compositor canadense Murray Schafer (2001) com


as suas contribuições sobre “paisagem sonora” tornam-se potentes proposições para o exercício
de escutar da cena, quando falamos em experiências vocais nas artes da cena. O referido autor
será a fonte teórica basilar para as reflexões tecidas neste rastro do processo sobre a experiência
da escuta no laboratório “Vocalidades Poéticas”. Podemos entender a escuta da cena de
maneiras múltiplas; desde o diálogo do atuante com as proposições sonoras oriundas da sua
própria voz, dos sons emitidos pelo outro, os sons da música ouvida que compõem a cena, os
sons gerados pelo seu corpo. É abrir a escuta da membrana do tímpano, mas também da pele
do corpo como uma membrana que escuta, afeta e é afetada por sons que, uma vez que penetra
no corpo, se mistura dando cadência a outros sentidos, outras sensações, imagens, imaginações.
Mas como o sentido da escuta nos atravessa no nosso cotidiano? Como a escuta atravessa,
contamina os processos de criação das Artes da Cena? O próprio Schafer nos diz que antes da
era da escrita, o sentido da escuta era vital para as sociedades em relação ao sentido da visão,
“a palavra de Deus, a história das tribos e todas as outras informações importantes eram
ouvidas, e não vistas” (SCHAFER, 2001, p.28).

5.1 Sonoridade da cena: breve percurso histórico.

A audição é um modo de tocar a distância, e a intimidade do


primeiro sentido funde-se à sociabilidade cada vez que as
pessoas se reúnem para ouvir algo especial (SCHAFER, 2001,
p.29).

109
O historiador cultural francês Roger Chartier (2002) quando nos relata sobre as
mudanças ocorridas no texto teatral desde os seus aspectos relativos a performance oral até as
suas formas estéticas impressas, coloca que existe uma oposição na perspectiva do texto ao
longo da história, há momentos em que o mesmo é percebido como um ‘acontecimento’ e em
outros como um ‘monumento’.
Para desenvolver esta hipótese, o autor busca entender na antiguidade a maneira pela
qual os textos circulavam e eram produzidos. A noção de autor, por exemplo, nasce na Grécia
antiga, oriundo da transposição dos cantos dos rituais dionisíacos para a forma textual destes
como poesia. Esta transformação de um ‘acontecimento’ ritual em ‘monumento’ poético teve
consequências consideráveis, que, segundo Chartier, a mais importante delas foi o
aparecimento de “certa clivagem entre as circunstâncias da enunciação concreta da obra [...] e
a cena ficcional da enunciação subentendida no próprio poema e que aludia a um momento
perdido” (CHARTIER, 2002, p.20). Ou seja, sua expressão presencial ritualística “não evocaria
mais o symposión dionisíaco, mas um festim imaginário” (CHARTIER, p. 20). A partir deste
momento, percebe-se a necessidade de que esta poesia (lembrança do momento performático)
seja atribuída a um único autor, instituindo neste ato também a aplicação correta e a imitação
de regras literárias pré-estabelecidas, transformando o que era ritual em ficção literária. Os
gêneros da literatura grega e romana nos mostram os primórdios desta relação da palavra para
ser dita e da palavra para ser escrita, melhor, para ser idealmente escrita, na passagem de um
efêmero acontecimento a um eterno monumento. A ode é um bom exemplo, que uma vez que
adquire um autor – termo chave nesta empreitada idealista –, adquire identidade, classificação
(gêneros literários), e parâmetros cada vez mais fixos de perfeição, para alcançar o belo, e não
só isso, para alcançar uma gramática universal, como nos lembra este mesmo autor.
A sonoridade no teatro nasceu da própria cena, como também pode ser inferido por meio
dos estudos de Chartier, quando relata que nos séculos XVI e XVII “a identidade coletiva das
obras [eram] bens pertencentes à companhia de teatro e não ao autor” (CHARTIER, 2002,
p.12.). No teatro de Molière, por exemplo, o texto falado nascia das experimentações, das
curvas melódicas e entonações de seus atores e não o contrário. A percepção e a representação
do escritor como autor, surgiu lentamente, principalmente em resposta ao mercado livreiro, que
explorou o sucesso de alguns diretores-dramaturgos, muitas vezes, corrompendo os escritos dos
mesmos. Isso provocou uma sobrevalorização deste artista como autor, tornando mais
importante o texto do que o processo de criação da cena, hierarquizando o fazer teatral, sendo
portanto mais importante o sentido semântico do texto que a musicalidade das vozes

110
experimentadas e inventadas pelos atuantes. Este são os meandros do textocentrismo que
subjugará todo o jogo corpóreo, seja imagético ou sonoro da cena, à força intelectiva da palavra,
indicando muitas vezes, sobretudo uma pulsão moralista. São essas vozes, falas, sons
inventados e escutados no tear da cena pelos atuantes que interessam para esta pesquisa,
sobretudo na sua força de ambiência sonora, que ressalta intensamente a potência de
‘acontecimento’ (parafraseando Chartier) das artes da cena.
O Teatrólogo alemão Hans-Thies Lehmann precursor dos estudos sobre teatro pós-
dramático afirma que “o novo teatro aprofunda apenas o reconhecimento, nem tão novo assim,
de que entre o texto e a cena nunca predomina uma relação harmônica, mas um permanente
conflito.” (LEHMANN, 2007, p.245). Esta perspectiva teatral rompe com uma visão
textocêntrica do teatro modificando a relação hierárquica do texto como condutor da cena e
perfeição como obra e linguagem, a medida que proporciona uma abertura do texto, a fim de
reconquistar para o teatro a sua dimensão de acontecimento como eram nos rituais dionisíacos.
Na perspectiva do Teatro pós-dramático, a relação do processo de criação da cena com o texto
é inteiramente diferente, o mesmo apresenta-se mais como material do que como obra acabada
a ditar o que fazer na cena. É a respiração, o ritmo, o acontecimento vocal encarnado que toma
a frente do logos:

Chega-se a uma abertura e a uma dispersão do logos de tal maneira que


não mais necessariamente se comunica um significado de A (palco)
para B (espectador), mas dá-se por meio da linguagem uma transmissão
e uma ligação “mágicas”, especificamente teatrais (LEHMANN, 2007,
p.246).

O autor pontua que neste processo de significação do logos, o que acontece não é a sua
destruição, mas sua desconstrução poética. Diferente de representação de um conteúdo
linguístico dito pelo texto, se apresenta uma disposição de sons, palavras, frases, ressonâncias
conduzidas pela escuta da cena em processo e pelo desejo de composição, de pôr junto materiais
sonoros por princípios de consonância, dissonância, rupturas, fricções encontradas no processo
de criação que, no caso desta pesquisa se deu na polifonia de vozes das atrizes, em diversos
níveis de diálogos e escuta. De fato, é neste sentido que Lehmann pensa e arrisca o termo pós-
dramático, no sentido de uma corrosão (pode-se pensar com Chartier) da força normativa do
monumento do drama – do texto como centro da cena (textocentrismo) – e uma desdobrada das
artes da cena como artes do acontecimento, na sua força vibrátil (ROLNIK) entre a cena e os
espectadores.

111
É significativo perceber também nos escritos de Lehmann o uso do termo Paisagem
sonora. Para o autor, a noção de paisagem sonora está relacionada ao local onde acontecem
misturas: de texto, voz, ruído... evidentemente em um sentido diferente daquele do realismo
cênico clássico, no qual temos o célebre exemplo da versão naturalista de paisagem sonora
composta por sons de fundo de grilos, sapos e passarinhos nas encenações do diretor
Stanislávski dos textos de Tchekhov1, na tentativa ilusionista de representação de uma realidade
externa na cena.

O teatro do drama e da mise-em-scène do significado do texto não


permite que a semiótica auditiva se afirme como elemento autônomo:
reduzida ao transporte do sentido, a palavra é despojada de sua
possibilidade de circunscrever um horizonte sonoro que só pode ser
construído no teatro (LEHMANN, 2007, p.258).

A noção de paisagem sonora a partir do entendimento do teatro pós-dramático, não visa


constituir realismo algum (podemos citar as encenações de Robert Wilson como exemplo), mas
a produção de um espaço de associações no ator e também no espectador a partir da escuta.
Neste sentido, “a cena auditiva em torno da imagem teatral abre referências “intertextuais” em
todas as direções ou complementa o material cênico com temas sonoros musicais ou ruídos
concretos” (LEHMANN, 2007, p. 255). Assim, a paisagem sonora da cena, nesta perspectiva,
abre o espaço da imaginação, suprimindo a contraposição de plateia e cena em favor de um
espaço de associações que envolve ambas, fazendo um apelo a uma resposta/responsabilidade
(LEHMANN, 2007) também por parte do espectador na composição de sentidos sonoros para
a cena.

5.2 Contribuições musicais para a escuta da cena.

Seria precipitado insistir em que a fala originou-se exclusivamente da


imitação onomatopaica da paisagem sonora natural. Mas não pode
haver dúvida de que a língua dançou e ainda continua a dançar com a
paisagem sonora. Os poetas e os músicos têm mantido viva a memória,
ainda que o homem moderno se tenha convertido em um “espectador
de óculos”( SCHAFER, 2001, p. 68).

1
O diretor teatral Russo Constantin Stanislávski é considerado até os dias de hoje como um dos mais importantes
artistas teatrais do final do século XIX e início do século XX, sobretudo pela sua contribuição para a arte do ator,
gerando toda uma terminologia que acabou sendo, muitas vezes, considerada como um sistema de preparação para
o ator, sobretudo de estilo realista (realismo-psicológico), salvo sua última etapa, das ações físicas, que foi
retomada por diversos diretores do século XX, expandindo o estilo realista para o qual foi pensado inicialmente.
Stanislavski ficou famoso pelo estilo de cena e de interpretação realista que imprimiu aos textos do dramaturgo
russo Anton Tchekov.
112
O músico Murray Schafer, interessado no estudo das relações e mudanças da paisagem
sonora no decorrer da história e os modos como essas mudanças podem interferir nos nossos
comportamentos, nos mostra também como o mundo está cada vez mais povoado por sons,
mas, ao mesmo tempo, a variedade de alguns deles desaparece. Há muitos sons em extinção na
paisagem sonora atual e, a maioria deles são sons da natureza. Destes sons, cada vez mais, nos
tornamos alienados. “Sons manufaturados são uniformes e, quanto mais eles dominam a
paisagem sonora, mais homogênea ela se torna” (SCHAFER, 2001, p.12)”. Mas, segundo o
autor, o que é paisagem sonora?

A paisagem sonora é qualquer campo de estudo acústico. Podemos


referir-nos a uma composição musical, a um programa de rádio ou
mesmo a um ambiente acústico como paisagens sonoras. [...] O
ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro
vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes
reais ou a construções abstratas, como composições musicais e
montagens de fitas, em particular quando consideradas como um
ambiente (SCHAFER, 2001, p.23 e 366).

O compositor canadense tem investido em pesquisas e práticas estéticas – educativas


para desenvolver a acuidade da escuta de crianças, jovens, adultos, músicos, professores entre
outros profissionais envolvidos e interessados no estudo da paisagem sonora. Nos últimos anos,
as contribuições de Schafer têm despertado o interesse de artistas da performance, do teatro, do
cinema e audio-visual. De fato, a maneira de entender a sua arte e também a sua forma de
expressão musical está completamente imbricada a um contexto social e a uma
interdisciplinaridade de saberes na feitura da composição sonora. Schafer (2001) desenvolve
um projeto interdisciplinar inspirado na célebre escola de arte alemã Bauhaus2, chamado
“projeto acústico” no intuito de reunir profissionais de várias áreas tais como músicos,
psicólogos, sociólogos, físicos acústicos reunidos para estudar em conjunto a paisagem sonora
mundial, tendo como objetivo documentar aspectos importantes dos sons, observar suas
diferenças, tendências, semelhanças , analisar os sons em extinção, estudar as relações
simbólicas entre som e comportamento e, a partir desses cruzamentos, criar proposições para

2
Importante escola de arte do século XX, sob liderança do arquiteto Walter Gropius. Esta escola reuniu alguns
dos maiores pintores e arquitetos da época (Klee, Kandinsky, Moholy-Nagy, Mies van der Rohe) a artesãos de
reconhecida competência. “ A sinergia interdisciplinar das habilidades dos membros permitiu estabelecer um novo
campo de estudos graças a criação da disciplina chamada projeto industrial. A Bauhaus levou a estética à
maquinaria e à produção de massa (SCHAFER, 2001, p.19).
113
atuar na educação pública de uma maneira geral conscientizando a importância do ambiente
sonoro na vida do ser humano e como o mesmo também é compositor desta paisagem mundial.
As suas próprias composições apontam para esse lugar, que proporciona às pessoas a percepção
do quanto a paisagem sonora é dinâmica, mutante e, assim, possível de ser transformável. Sobre
a sua atuação na educação pública, aspecto importante no seu trabalho, Schafer nos provoca a
pensar que

Precisamos ensinar às pessoas como ouvir mais cuidadosa e


criticamente a paisagem sonora; depois, precisamos solicitar sua ajuda para
replanejá-la. Em uma sociedade verdadeiramente democrática, a paisagem
sonora será planejada por aqueles que nela vivem, e não por forças imperialistas
vindas de fora (SCHAFER, 2001, p.12).

Schafer (2001), ao longo do seu livro intitulado “A afinação do mundo” levanta a


seguinte questão: a paisagem sonora do mundo é algo indeterminado, sobre a qual não temos
controle, ou somos nós integrantes desta composição e executores das suas sonoridades?
O autor percebe o mundo como uma composição musical macroscópica e é essa a ideia
que percorre todo o seu estudo, suas composições musicais, instalações sonoras e atuação como
educador musical, ou seja, sua prática como artista e pedagogo estão intensamente integrados
aos aspectos sociais e estéticos do seu tempo. A noção de música de Schafer é influenciada
pelas mudanças de paradigma impulsionadas desde John Cage a todas as experimentações que
nos dias de hoje ocorrem no âmbito da música contemporânea. Para Cage “música é som, sons
à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora das salas de concertos (SCHAFER, 2001, p.19).

Um outro princípio de trabalho trazido pelo autor é a noção de limpeza dos ouvidos que
é um programa sistemático de exercícios que visa o treinamento para uma escuta de maneira
mais discriminada dos sons. Tais exercícios objetivam fazer com que o outro note sons que
nunca havia percebido, ouvir intensamente sons do seu ambiente e também perceber os sons
que nós mesmos colocamos no ambiente, proporcionando a clariaudiência e não ouvidos
amortecidos. Abrir os ouvidos e estimular a clariaudiência significa literalmente o sentido de
audição clara. Schafer chama a atenção de que o modo com o qual ele emprega esse termo não
é nem um pouco místico, simplesmente se refere à excepcional habilidade auditiva, tendo em
vista particularmente o som ambiental. A capacidade auditiva pode ser treinada, para se chegar
ao estado de clariaudiência por meio de exercícios de limpeza de ouvidos.

114
Ao contrário dos outros órgãos dos sentidos, os ouvidos
são expostos e vulneráveis. Os olhos podem ser fechados, se
quisermos; os ouvidos não, estão sempre abertos. Os olhos
podem focalizar e apontar nossa vontade, enquanto os ouvidos
captam todos os sons do horizonte acústico, em todas as
direções (SCHAFER, 1991, p.67).

Para tanto, buscou-se aprender a analisar, a classificar o som no intuito de descobrir


similaridades, contrastes e modelos. Mas como diz o próprio Schafer “toda técnica de análise
só pode ser justificada se nos conduzir à melhoria da percepção, do julgamento e da invenção”
(SCHAFER, 2001, p.189). Para isso, Schafer cria uma série de exercícios de treinamento
auditivo que, muitas vezes, abrem possibilidades para além da percepção dos sons de ambientes
diversos, ativando uma imaginação e percepção de um estado de escuta do corpo.

Fig. 19: O som do outro. Manuscrito da aluna Hylnara Vidal durante o laboratório “Vocalidades Poéticas”. Teatro Universitário, 2013.

As inquietações provocadas por Schafer inspiram a presente pesquisa a investigar


aspectos da nossa própria paisagem, digo nossa, pois falarei das paisagens sonoras inscritas,
inventadas, apuradas, lapidadas ao longo do processo de criação vinculado ao laboratório
prático desta pesquisa. Que sons queremos encorajar, preservar, multiplicar uma vez que
surgem no processo?

115
5.3 Quem vai botar água nas flores dos anjinhos?

Silêncio.

Diz John Cage – o silêncio, não existe isso. (Pausa de trinta segundos e ouçam.) [...]Se
é assim, silêncio é ruído? (Pausa de trinta segundos) [...] Silêncio é uma caixa de possibilidades.
Tudo pode acontecer para quebrá-lo (SCHAFER, 1991, p.71).

O silêncio é algo cheio de possibilidades na música e também no Teatro. Muitas vezes


aquele som, palavra que antecede o silêncio ou suspensão de ideia antes do silêncio, continua
reverberando ou encontra outras palavras, cadências sonoras no trajeto da memória até que
outro som seja iniciado, “Logo, mesmo indistintamente, o silêncio soa” (SCHAFER, 1991,
p.71).

A pergunta presente em um momento do texto “Flores D’América” de João Denys


“Quem vai botar água nas flores dos anjinhos?” trouxe para a instalação performática chamada
“água, flores e anjinhos”3 um momento de silêncio, estado de suspensão da cena com esta fala-
pergunta que por si só já convoca as alunas-atrizes e o espectador a querer encontrar respostas.
A própria frase já possui três substantivos de grande potência imagética. Foi a partir da abertura
provocada pelo silêncio desta pergunta, que surgiu o nome da nossa performance-instalação
cênica “água, flores e anjinhos”. E, como resposta a esta indagação, foram costurados e
cadenciados na cena alguns exercícios-laboratório que fizemos em um momento inicial do
processo a partir de exercícios de escuta propostos por Schafer: a primeira tarefa foi aprender a
ouvir, muitos exercícios foram feitos para isto, mas o mais importante foi o respeito e percepção
do silêncio. Exercícios de relaxamento e concentração foram feitos como preparação ou uma
abertura para outras camadas de escuta, para uma escuta de maneira clariaudiente.

Silenciar o barulho da mente: tal é a primeira tarefa- depois, tudo o mais


virá a seu tempo [...] pouco a pouco os músculos e a mente relaxam e o
corpo se desenvolve, tornando-se gradualmente um ouvido.” Atingindo
um estado de liberação dos sentidos ( SCHAFER, 2001, p. 358 e 362).

3
Apresentação pública do laboratório prático desta pesquisa “vocalidades poéticas” como parte do processo de
criação, no qual foram realizadas quatro apresentações no mês de setembro de 2013 no Teatro Universitário (TU)
da Universidade Federal do Ceará.
116
Exercícios4 feitos buscando a procura de sons na paisagem sonora da qual fazíamos
parte durante os nossos laboratórios realizados no palco do Teatro Universitário e também em
suas áreas externas, ao ar livre apresentando partes com jardins e também parte próxima a rua5:

1. Escrever todos os sons que estavam ouvindo no momento. Depois trocar com o
grupo, lendo em voz alta os sons observando as diferenças de escuta. Para este
exercício, Schafer salienta que todos terão uma lista diferente, portanto a escuta é
pessoal. Percebemos que este é um bom exercício para cultivar o hábito da escuta,
não só na sala de ensaio, mas em outras instâncias do cotidiano.

2. Depois de feita uma lista com os sons escutados, categorizar os sons de acordo com
a sua origem: sons da natureza, sons tecnológicos, sons produzidos pelo ser humano.
Depois desta percepção, aguçar a percepção dos sons produzidos pela própria
pessoa, normalmente são sons muito sutis que são percebidos, tais como respiração,
batimento cardíaco.

3. Depois da discussão, foi sugerido que elas categorizassem os sons ouvidos em: sons
que continuaram a ser ouvidos incessantemente, ou seja sons contínuos (C), sons
que ocorreram mais de uma vez, ou seja, que se repetiram (R), e os sons que foram
ouvidos apenas uma única vez (U). Foi interessante perceber que, quando alguns
desses sons ouvidos foram experimentados nas vozes das alunas-atrizes, com a
divisão de quem faria o som contínuo, os sons que se repetem e os sons únicos, ficou
claro durante a experimentação sonora, que esta divisão sonora traz um ganho
quando pensamos em camadas de texturas sonoras em diálogo. A sonoridade
realizada antes desta indicação que parecia plana, começou a ganhar relevos a partir
deste propósito de improvisação que nos acompanhou em alguns laboratórios desta
pesquisa.

4. Exercício de espacialização sonora: em uma folha de papel, deixar o topo da página


para os sons fortes, o pé da página para os sons suaves. Do outro lado, desenhar um

4
Esses exercícios foram retirados do livro: SCHAFER, Murray. Educação Sonora: 100 exercícios de escuta e
criação de sons. São Paulo: Melhoramentos, 2009.
5
O Teatro Universitário da Universidade Federal do Ceará fica localizado na Avenida da Universidade, bairro
do Benfica, Fortaleza- Ce.
117
círculo no centro da folha e colocar dentro do mesmo todos os sons produzidos pela
própria pessoa. Colocar todos os outros sons de acordo com a distância e a direção
de onde eles vieram até o local que escuta.

5. Passeio sonoro: foi proposto que cada grupo de três pessoas criasse um trajeto pelo
espaço da área externa do Teatro Universitário e, a medida que algum componente
do grupo achava um som interessante, esse som era apontado para que os demais o
percebesse no percurso. Esses sons poderiam ser desde os sons dos pisos de
diferentes superfícies (madeira, grama, concreto...) ao longo do percurso, a sons da
natureza, tecnológicos (carros, ar condicionado a sons humanos.

Um dos grupos percebeu e levou a proposta até o final do seu percurso a observação de
sons de água sonorizadas em diferentes materiais ao longo do percurso e a partir desta escuta,
os mesmos criaram uma sequência sonora para essa experimentação. Nada Melhor do que as
próprias palavras de um dos integrantes do grupo para falar sobre as marcas deixadas por essa
experiência de escuta:

118
119

Fig. 20: Viver aquele lugar-Ser Água. Manuscrito do estudante Tarcísio Rocha
Partimos deste corpo água encarnado a partir de estalidos perfurantes de gota d’água,
do jorrar nas torneiras, do escorregar da água no telhado... deixando que experiências acolhidas
na escuta da paisagem do ambiente no qual estávamos inseridos, fossem transfiguradas na cena
sonora criada. É conhecer o mundo pela experiência e ela própria (a experiência verdadeira)
transborda em imaginações. Neste sentido podemos escutar a música das pedras, a sonoridade
dos anjinhos. A percepção de sons da água, elemento trabalhado no processo de criação pela
sua dinâmica fluida foi de grande importância para trazer para o laboratório uma outra energia,
contrastando com a energia telúrica que atravessa boa parte do texto Flores D’América.

De todos os sons, a água, o elemento original da vida, tem o


mais esplêndido simbolismo [...]. A chuva, um riacho, uma fonte, um
rio, uma cachoeira, o mar, cada qual produz seu som único, mas todos
compartilham um rico simbolismo. Eles falam de limpeza, de
purificação, refrigério e renovação (SCHAFER, p. 240, 2001).

Fig. 21: Água. Fotografia de Gabriela Araruna durante a instalação de “água, flores e anjinhos”- por Fábio Souza.
Manuscrito de Hylnara Vidal durante o laboratório “Vocalidades Poéticas.

A textura sonora originada a partir da pesquisa da água durante o laboratório fez surgir
um desenho de cena-instalação que chamamos de “vozes da água”, cena esta que fez parte da
apresentação realizada e já citada anteriormente. A cena começava com uma provocação em
forma de pergunta “Quem vai botar água nas flores dos anjinhos”. Silêncio. Uma aluna-atriz

120
dirige-se ao vaso translúcido vazio, e começa a deixar cair um fio de água que aos poucos vai
ganhando mais intensidade. Esse é o único som no ambiente. Depois de um tempo, outros sons
vão entrando espaçadamente na ambiência sonora: sonoridade feita pelas alunas-atrizes a partir
do movimento de um baú pequeno de madeira com grãos de arroz, manuseio de um saco
plástico e também um pau de chuva. Uma aluna-atriz trabalhou a partir de sons vocais da água
pesquisados no laboratório do percurso sonoro. Aos poucos, palavras do texto Flores
D’América são acrescentadas à paisagem sonora tendo como indicação para a experimentação
dizer as palavras escutando, dialogando com os sons dos objetos já existentes na paisagem,
variando a duração e a intensidade da emissão e tendo como imagem cidades fantasmas
inundadas pelo mar. O material textual trabalhado foi: Santa Luzia, os muros de Alexandria,
Arizona, as beiras de Pajeú, Campos Verdejantes, Salamandra, Angicos, procurando Brejo
Santo. Em cima do Monte Horeb, nas pedras do Tororó, Catolé, Mortos de Exu, Mina Velha,
Novo Amparo e Bom Conselho. Olho d’água e Carnaúba. Solidão (DENYS, 2005).

Fig. 22: Vazio. Fotografia de Raquel Capelo durante a instalação de “água, flores e anjinhos”- por Fábio Souza.
Manuscrito de Raquel Capelo durante o laboratório “Vocalidades Poéticas. Teatro Universitário, 2013.

121
Outro ponto experimentado a partir da utilização de objetos foi a relação dos mesmos
com o corpo-vocal das alunas-atrizes. Não se tratava de apenas executar sons com os objetos;
traçando paralelo com o som vocal, cuja qualidade está em relação com o estado de escuta e
com a dinâmica de movimento do nosso corpo no momento da emissão. Foi solicitado às
alunas-atrizes que buscassem gerar sonoridades nos objetos, experimentando o manuseio destes
como uma extensão do seu próprio corpo.

A utilização dos objetos como extensão do corpo, permitiu que, em outros encontros,
fosse possível colocá-los em relação também com sons vocais produzidos, conjugando voz com
objetos sonoros como fonte sonora e criando ambiências, nas quais a relação entre o som vocal
e o som do objeto era dialógica, sendo quase imperceptível a noção de onde começava um e
terminava o outro.

A paisagem sonora “Vozes da água” foi ganhando intensidade e velocidade até que uma
caixa cheia de moedas foi esparramada na paisagem sonora da cena. Este foi o marco de
finalização da cena-instalação para dar seguimento à próxima ambiência sonora.

5.4 A mala guardada de coisinhas sonoras.

Se a ação exigir música, ela será produzida pelos únicos meios de que
o ator dispõe: sua voz, sua capacidade de tocar um instrumento; e as
imperícias ou imperfeições da sua execução instrumental ou do seu
canto tornar-se-ão elementos comoventes, expressivos da
vulnerabilidade humana que ele procura manifestar (ROUBINE, 1998,
p.164).

Dialogando também com os propósitos de criação de sonoridade do ator no Teatro-


Laboratório, do diretor polonês Jerzy Grotowski (1933-1999), aguçou-se expandir durante a
pesquisa prática do laboratório de criação as possibilidades sonoras desempenhadas pelas
alunas-atrizes por meio do uso de materiais sonoros para a criação e execução da sonoridade da
cena. Além da experimentação dos sons produzidos pelas suas próprias vozes em situação de
jogo, a pesquisa de materiais sonoros também participou do jogo sonoro no ambiente da cena,
ampliando assim para as alunas-atrizes novos recursos de criação sonora da cena.

122
No intuito de pesquisar outros sons de qualidades específicas, foram coletados pelas
alunas objetos sonoros que despertassem curiosidade para as mesmas pelas suas qualidades
sonoras. Visto isso, foi válida a experimentação com estes materiais sonoros, visando a
ampliação da experiência tanto vocal [a partir da escuta do timbre e textura sonora de objetos],
como também a expansão da percepção das alunas em relação às possibilidades de interação
dos seguintes materiais: vozes, falas, cantos e sonoplastias durante a composição da paisagem
sonora na cena.

Cada aluna-atriz foi solicitada, nesta etapa da experimentação, a trazer objetos sonoros
pessoais guardados ou em alguma parte de suas casas ou mesmo encontrados na rua, que
fizessem alguma referência ao universo feminino familiar- algo que lembrasse as mães avós,
irmãs e que não necessariamente tivessem função sonora. Sendo assim, o encontro com os
materiais sonoros pesquisados no laboratório tinha uma delimitação de campo afetivo e
imaginário, o que possibilitou a busca de metáforas sonoras, ampliação e exploração das
possibilidades e potências de diálogo corpóreo com esses materiais sonoros que sugeriam
memórias.

As meninas- atrizes do laboratório trouxeram objetos constituídos de materiais com


sonoridades diversas: terços de madeira e de contas de material de plástico, colares com
pedrinhas variadas, folhas secas desidratadas, folhetos de cordel, pulseiras metálicas, caixinhas
de madeira e de papelão, botões de plástico, roupas, caixinhas de música, perfumes. No
primeiro momento deste encontro, como sugere o próprio Schafer na condução dos exercícios,
começamos fazendo uma roda na qual cada uma apresentou os objetos trazidos, comentando
porque achou aquele som interessante e quais as metáforas trazidas pelo mesmo. Em um
segundo momento, foi solicitado que elas pesquisassem livremente as possibilidades sonoras
dos objetos espalhados pelo espaço, buscando conhecer as suas qualidades sonoras, o timbre
dos objetos explorando as suas diversas possibilidades de sonorização.

Fig. 23: Mala de sonoridades. Fotografia da instalação de “água, flores e anjinhos” - por Fábio Souza. Teatro Universitário, 2013.

123
O laboratório de pesquisa prática vinculado a este doutorado buscou também o diálogo
com outros professores-pesquisadores da área de voz, corpo e música, no intuito de promover
a troca e intensificação dos saberes em processo de maturação nesta pesquisa. Por conta da
necessidade e interesse do laboratório de experimentar também um encontro com a plateia a
partir de uma dramaturgia cênica que se põe em processo e também disponibilidade de tempo
dos professores, foi necessário que no laboratório existisse mais tempo para que eu com as
alunas-atrizes trabalhássemos a partir de algumas imersões em ambientes sonoros das cenas-
instalações que mais percebíamos como intensas. Portanto, tivemos dois momentos de troca
com os professores- pesquisadores Consiglia Latorre e Erwin Schrader6 que participaram do
nosso laboratório contribuindo de maneira apurada com noções musicais a partir do que
estávamos trabalhando no momento em cena.

A professora Consiglia foi convidada para trazer contribuições sonoras a partir da sua
vivência com os estudos das práticas de improvisação sonora tendo como base Murray Schafer,
teórico que a mesma vem pesquisando. A partir do material sonoro descrito acima e que
estávamos trabalhando, já naquele momento, inseridos em um percurso cênico no qual as
meninas brincavam e descobriam uma mala velha cheia de coisinhas, lembranças sonoras, a
professora Consiglia propôs os seguintes exercícios de escuta de Schafer: escolher um dos
objetos sonoros da mala, colocá-lo em um canto do espaço e de olhos fechados deveriam
reconhecê-lo. Os próprios objetos da cena foram sonorizados e cada uma da alunas-atrizes tinha
que reconhecer o objeto que havia escolhido. Consiglia salientou a importância de uma apurada
consciência da qualidade sonora dos objetos que estavam trabalhando para que elas os
diferenciassem e ao mesmo tempo com mais propriedade dos materiais sonoros com os quais
estavam trabalhando nas improvisações.

Um outro exercício feito por nós foi a espacialização sonora dos objetos em movimento.
Para desenvolver a noção de espacialização do sons e reconhecimento do mesmo, um dos
exercícios propostos por Schafer é: de olhos fechados, uma pessoa faz soar um objeto sonoro
e, ao mesmo tempo movimenta o mesmo pelo espaço (perto, longe, diagonal alta, baixa) e a
pessoa deitada, de olhos fechados vai acompanhando apontando para a direção do som,
visualizando e percebendo percursos sonoros. Acrescentamos em etapa posterior deste

6
Primeiramente será relatada a intervenção da professora Consiglia Latorre e no laboratório ‘coro de
cangaceiras’ falaremos sobre a intervenção do professor Erwin Schrader.
124
exercício o deixar-se levar do corpo no espaço a partir da escuta sonora da direção, velocidade,
timbre, intensidade do som percebido.

A cena-instalação “A mala guardada de coisinhas sonoras” era pura textura de sons com o
brilho dos metais predominantes oriundos dos anéis, pulseiras, argolas e colares, dos papéis dos
livrinhos de cordéis guardados lançados no ar e caindo no chão, os sons mais secos dos
materiais sonoros de plástico, do terço de madeira deslizado no palco.

Há épocas em que um som é ouvido; há épocas em que muitas coisas


são ouvidas. Gesto é o nome que podemos dar ao evento único, o solo,
o específico, o noticiável; textura é, então, o agregado generalizado, o
efeito matizado, a anarquia imprecisa de ações conflitantes [...] O som
agregado de uma textura não é uma simples soma de muitos sons
individuais- é algo diferente. Por que elaboradas combinações de
eventos sonoros não se tornam “somas”, mas “diferenças”, eis uma das
mais intrigantes ilusões auditivas (SCHAFER, 2001, p.224).

E, bebendo na tradição dos sons que acompanham o corpo, como por exemplo, os sons dos
sapatos, das pisadas dos pés, os sininhos de tornozelos das mulheres persas e árabes....
colocamos para essa cena, miçangas no xale trazido em outro momento do processo, fazendo
assim uma indumentária sonora que, entrava na paisagem sonora com o movimento de
sobressalto de um das meninas que dançava com o xale e compondo também a ambiência da
cena. E no final, só restavam pedaços sonoros saindo das caixinhas de música que iam
silenciando cada uma no seu tempo enquanto as meninas da cena giravam, dançando com os
seus cabelos feitos de vestidos longos esvoaçantes no ar, um sonho de “deixar crescer até
morrer” (DENYS, 2005, p.83). No embalo da sonoridade das caixinhas de música quatro das
meninas alunas atrizes experimentavam como dizer partes do texto a quatro vozes:

Soledade: Queria tanto passar o pente nos meus cabelos...


Das Dores: Vou deixar crescer até morrer...
Soledade: Passar a mão...Cabelo...
Das Dores: Fazer trança...
Soledade: Enfeitar...
Das Dores: Macio...
Soledade: A gente vai ficar com essa cara de bezerro desmamado,
pro resto da vida?
Das Dores: Eu, não! Vamos rezar pra gente ficar diferente.
(DENYS, p.83, 2005).
125
126
Fig. 24: Meninas. Fotografia da instalação de “água, flores e anjinhos”- por Fábio Souza. Manuscrito
de Gabriela Araruna durante o laboratório “Vocalidades Poéticas. Teatro Universitário, 2013.
A partir da pesquisa das variações de intensidade e duração dos sons, foram criadas
sonoridades que originaram uma paisagem sonora chamada “a mala guardada de coisinhas
sonoras”. Sua textura caminhou com a seguinte variação: sons rarefeitos/ sons menos rarefeitos/
aumento de intensidade/ densidade decrescendo até sobrar os sons das quatro caixinhas de
música.

Paisagens sonoras foram criadas dentro do propósito de uma mala cheia de curiosidades
sonoras femininas. Elas brincavam com gana de encontrar sons, lembranças: ora a textura criada
era mais caótica por meio da interação dos variados objetos sonoros tocados em forte
intensidade, que caminhavam para uma sonoridade decrescente para suave. Era uma criação
que dependia de uma escuta coletiva que gerava também uma textura sonora. Sentidos sonoros
em objetos do cotidiano que usualmente não traziam referências sonoras foram criados pela
imaginação das alunas-atrizes. Adquirindo comportamento semelhante ao da criança, elas
criaram um outro mundo, pela transposição de objetos, para uma nova ordem simbólica.

Mundos são criados com objetos comuns, como nas brincadeiras das crianças
e nos jogos improvisados. Estamos lidando com um teatro em um estágio
embrionário, em meio a um processo criativo no qual o instinto desperto
escolhe espontaneamente os instrumentos de sua mágica transformação. Um
homem vivo, o ator, é a força criativa de todas as coisas (GROTOWSKI,
1987, p.59).

Como a citação de Grotowski permite refletir, o processo de criação da cena necessita


de pessoas vivas, atentas às possibilidades que o jogo oferece para ser transformado. As alunas-
atrizes deste processo de criação, como crianças, precisaram alterar o real para atender às
necessidades do contexto de improvisação da cena, criando sonoridades com objetos comuns,
outros signos foram encontrados durante o processo.

Fig. 25: Estado de Música. Fotografia de Gabriela Araruna e Hylnara Vidal durante
a instalação de “água, flores e anjinhos”- por Fábio Souza. Manuscrito de Hylnara
Vidal durante o laboratório “Vocalidades Poéticas”. Teatro Universitário, 2013.

127
5.5 Coro de Cangaceiras.

Coro: Ofício de trevas, ponto cheio de Dadá, agulhas de


Enedina, arremate de Rosinha, dedal de Cristina, retrós de
Inacinha [...] nó cego de Neném, ponto atrás de Mariquinha, as
feridas de Lídia, as lágrimas de Verônica, a criança de Dulce, a
coroa de Maria...Rainhas desterradas, baronesas errantes,
duquesas degradadas, princesas navegantes.
Líder do Coro: Foge Dadá, foge Cila, foge Moça, Olha a faca
Rosinha, olha a sede Lili, olha a bala Veronquinha. Puxe a linha
dona Otília, geme gema Inacinha.

No laboratório das cangaceiras, primeiramente, foi pesquisado a força sinestésica dos


fonemas que compõem as palavras do texto Flores D’América, na parte relativa ao coro que,
no laboratório nomeamos como “o coro de cangaceiras”. Segundo SCHAFER “cada som evoca
um encantamento. Uma palavra é um bracelete de encantamentos vocais [...] As vogais são a
alma das palavras, e as consoantes, seu esqueleto” (216 e 224, 1991). E foi na busca por esses
encantamentos no ato de dizer fonemas que experimentamos as palavras do texto, arrancando
os invólucros da sua linha impressa. Para aguçar a pesquisa da sonoridade dos fonemas, alguns
conhecimentos da fonética e experimentação prática de diferentes fonemas, contribuíram para
a investigação, tais como:
Distinções entre sons vocálicos e consonantais: as vogais- Não apresentam obstrução à
saída de ar; são todas sonoras; variam em relação ao grau de abertura da boca, possuem
variações de timbre, e, de acordo com Oliveira (1997, p.69), “as vogais[...] representam, por si
só, uma das manifestações sonoras mais ricas e ressonantes do ser humano. A acústica, bem
como a articulação de cada uma das vogais, permite uma percepção sonora e rica de conteúdo
emocional” daquele que vocaliza. Importante observar que toda expressão sonora de dor ou de
prazer é vocalizada com vogal oral e/ou nasal. Já as consoantes- Quanto ao modo de
articulação, as consoantes podem ser plosivas /p/,/b/,/t/,/d/,/k/ e /g/, caracterizando-se pela
aproximação dos articuladores seguida de um estouro repentino da corrente aérea. Já as
fricativas /f/,/v/,/s/,/z/,/∫/ e /ʒ/ têm aproximação incompleta dos órgãos da boca e possuem um
som constante, como um sibilo e fricção, sendo mais alongadas e flexíveis. Mesmo dentro
dessas duas categorias de modo de articulação, sem mencionar a terceira categoria na qual
estariam as líquidas, pode-se ainda dividir os fonemas consonantais em surdos e sonoros, nasais
e orais7.

7Uma classificação mais detalhada e completa pode ser adquirida em livros de fonética como: RUSSO, Ieda;
BEHLAU, Mara. Percepção da Fala: Análise Acústica do Português Brasileiro. São Paulo: LOVISE, 1993.
128
Murray Schafer (1991), no seu texto chamado “Quando as palavras cantam” propõe um
exercício em que cada uma escreve uma biografia do alfabeto a partir dos fonemas do seu
próprio nome. O próprio autor sugere algumas imagens para cada fonema, como sugestões de
como podemos descobrir camadas de sentidos para os sons da palavra:

B. Tem corte. Combustível. Agressivo. Os lábios o


golpeiam. C. (Pron K). Abafado. Explosão subterrânea
das cordas vocais. D. Afinado, agressivo, golpe de língua
(SCHAFER, 1991).

As alunas-atrizes experimentaram algumas palavras do coro das cangaceiras, buscaram


levar ao extremo as sensações e imagens que surgiram da experimentação no ato de deixar o
fonema vibrar, crepitar, explodir, friccionar, produzir saliva na boca e reverberando no espaço.
Em seguida, experimentaram também colocar no papel o desenho e textura sonora da cadência
fonética das palavras trabalhadas, surgindo assim, uma partitura vocal do texto sonoro criado
por cada uma. Isto gerou uma outra forma de registrar para revisitar as sonoridades fonéticas
criadas, gerando uma outra forma de acessar imagens e sensações, na qual a dinâmica do
desenho com suas formas, tamanhos, curvas... sugeriam uma maneira de dizer.

Fig. 26: Passa Exu. Manuscrito de Hylnara Vidal durante o laboratório “Vocalidades Poéticas. Teatro Universitário, 2013.

129
O outro professor convidado que participou do Laboratório foi Erwin Schrader.
Tivemos dois encontros com o mesmo no qual ele partiu da teoria da música explicando
parâmetros do som: intensidade, altura, timbre, duração, direção, ritmo. Quando o professor
chegou, estávamos fazendo aquecimento vocal com sons de humming, buscando variação de
altura e intensidade. Em seguida, pedi para que elas trouxessem uma canção que lembrasse
alguma referência feminina da infância de cada uma (avó, mãe, irmã mais velha...) e
primeiramente experimentassem cantar a melodia lembrada com Bocca Chiusa8 (ou humming)
e depois apenas com as vogais da própria letra da canção em um tempo mais dilatado enquanto
realizavam também movimentos corporais de expansão e retração da kinesfera9 com percepção
do movimento respiratório também de retração e expansão.

Terminado o aquecimento inicial, sentamos com o professor Erwin que foi


didaticamente explicando e exemplificando cada parâmetro do som para o grupo, aproveitando
também os sons feitos pelas meninas durante o aquecimento. É válido salientar que, apesar dos
parâmetros sonoros já estarem presentes no laboratório, foi muito rico pararmos para esmiuçar
cada um em uma roda de conversa musical. Para efeitos desta tese, descrevo noções de teoria
musical a partir da bibliografia de Murray Schafer.

Segundo Schafer (1991), som é algo que corta o silêncio com a sua vida vibrante.
Timbre está relacionado a cor do som. Ex: se um violão, um saxofone, uma clarineta tocarem
uma mesma nota, é o timbre que vai diferenciar o som de cada instrumento. Outras explicações
podem ser encontradas em livros de teoria da música mas as conceituações propostas por
Schafer contribuem para pensar esses conceitos de maneira imagética e pictórica, neste sentido
podemos entender o timbre como aquele parâmetro sonoro que traz a cor do som, sem essa
variação os sons se tornariam todos da mesma cor, talvez cinza. Amplitude: é o parâmetro
acústico relativo a qualidade do som forte e som fraco. Este parâmetro se refere a diferentes
qualidades de dinâmicas desejadas tais como: forte, fraco, crescendo ou decrescendo, mudanças
bruscas de intensidade, entre outros. Melodia: é o movimento do som em diferentes altitudes
(frequências), isto é fazer mudanças de altura. Na fala, por exemplo, emitimos o som em um
deslizar contínuo e quanto maior a variação da amplitude da curva melódica, maior a inflexão

8
É um termo italiano do canto, utilizado em aquecimentos vocais, que significa cantar com a boca fechada. A
produção do seu som assemelha-se com: hummmm.
9
Também chamada de Cinesfera. Termo pertencente aos estudos do teórico da dança Rudolf Laban. A Kinesfera
é definida como o espaço pessoal, a esfera dentro da qual o movimento acontece. O espaço em torno do corpo do
ser movente no qual e com o qual a pessoa se move.
130
vocal do fraseado emitido. Ritmo: “Originalmente, “ritmo” e “rio” estavam etimologicamente
relacionados, sugerindo mais o movimento de um trecho do que sua divisão em articulações.
Podem haver ritmos regulares e irregulares. Um ritmo regular, por exemplo, sugere divisões
cronométricas do tempo real- tempo do relógio (tic-tac). Um ritmo irregular espicha ou
comprime o tempo real, dando-nos o que podemos chamar de tempo virtual ou psicológico, o
que pode ser amétrico. Composições ritmicamente interessantes nos deixam em suspensão.”
(1991, p.87-88).

Em um segundo momento o professor Erwin observou o que estávamos fazendo de


exercício como preparação da energia para o trabalho do coro das cangaceiras no qual
desenvolvemos uma partitura rítmica, de caráter métrico, utilizando bastões com movimentos
de ataque e recuo e rastejar dos pés no chão. Ele nos chamou a atenção que naquele movimento
corporal intenso, estávamos também sugerindo uma célula rítmica e pediu para que
trabalhássemos a sua precisão e também para a escuta do corpo coletivo daqueles pés em coro.
Era preciso, de fato, que todas escutassem juntas fazendo em uma marcação de pés muito
precisa. Dando seguimento ao laboratório, a partir do que cada uma estava trabalhando no texto
das Cangaceiras, foi experimentado individualmente, a partir dos parâmetros do som estudados,
desenvolver uma composição sonora escrita no papel e depois experimentada no corpo vocal.
Em seguida, trabalhamos com os corpos juntos e, o movimento do coro era conduzido por uma
delas posicionada na frente e a sua vocalidade criada era a voz guia para que as outras atrizes,
a partir de palavras, ritmos, melodias, intensidades escutadas pudessem compor, na ideia da
própria palavra “pôr junto” gerando uma outra vocalidade, uma vocalidade coletiva sonorizada
a partir de uma escuta ativa e propositiva da textura sonora que se fazia presente no ambiente.

Na última experimentação, escolhemos momentos do fraseado criado por cada uma das
alunas-atrizes e desenhamos uma inflexão sonora para ser dita em coro, uníssono, com alguns
momentos de vocalidade solo e outros momentos de improvisação a partir da vocalidade guia.
A cena começava com batidas rítmicas de pés que pulsavam e arrastavam. Vozes em coro que
fogem, passam, escondem, voam, dão voltas no espaço, ora perto, bem perto da escuta do outro,
ora distante, correm, correm em movimento circular e de repente uma pausa brusca que instaura
repentino silêncio. Uma voz de mulher, tosca e bravia, entoa o coro com uma qualidade de voz
cochichada enquanto as outras quatro mulheres escutam no corpo. Todo o ambiente da cena ao
frenético ritmo dessa fala-ação de mulheres cangaceiras fugidas, acompanhadas de pisadas e

131
rajadas de ventos pelos movimentos de seus corpos. E por fim, bocas gigantes, duplo dessas
mulheres, predizem sangue da morte do bicho santo (ver trecho do texto na imagem abaixo).
Uma imagem audiovisual que sugere sonoridades.

[...]passa,
passa
vento,
passa
passa,
corre
corre,
fogo fogo,
corta
corta
[...]São
pontos,
são
galhos,
são
linhas,
são
flores,
são
traços,
são
folhas,
corta
estica
[...]Será
sangue
sangue,
corre
corre
será
(DENYS,
p.74,
2005).

132
Fig. 27: Presságio de cangaceira. Fotografia de Hylnara Vidal durante a instalação
de “água, flores e anjinhos”- por Fábio Souza. Teatro Universitário-UFC, 2013.
Fig. 28: marcas. Fotografia e manuscrito de Roberta Bernardo. Fotografia
do processo de água, flores e anjinhos, por Fábio José de Souza. 2013.

133
Rastro 6

O AMBIENTE DE CRIAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS VOCAIS

Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma


combinatória de experiências, “Cada vida é uma enciclopédia,
uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de
estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e
reordenado de todas as maneiras possíveis.
(CALVINO,1990)

O ser sensível é como um espelho d’água, encrespado ao


mais ligeiro vento.
( FAYGA OSTROWER)

O corpo muda de estado cada vez que percebe a vida a partir das experiências que o
atravessam. É essa biblioteca de experiências que nos forma e nos transforma no processo de
troca de sensibilidades com o mundo que nos rodeia. Mas essa potencialidade corpórea mexida
e remexida pela experiência é, muitas vezes, sucumbida pela rapidez e superficialidade na qual
somos induzidos a seguir no movimento da vida. Como comenta o pesquisador espanhol da
área da filosofia da educação Jorge Larrosa Bondía (2002) “A velocidade com que nos são
dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo
moderno, impedem a conexão significativa entre acontecimentos.” Corremos em busca
quantitativa por informações, por ter uma opinião, por sermos pessoas informadas e
informantes, muitas vezes, as informações que lemos e dizemos em nada nos afeta. Nos falta
silêncio.

6.1 As marcas da experiência.

Bondía (2002) reflete sobre as relações entre experiência e sentido para a educação, traz
a seguinte noção para experiência a partir da própria etmologia da palavra em diferentes línguas:

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que
se passa, não o que acontece, não o que toca. A cada dia se passam muitas
coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o
que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em
um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso
134
mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais
rara (BONDÍA, 2002, p.21).

A falta de experiência é inimiga da memória, já que não deixa marcas, pior, é inimiga
das marcas, é a sua negação. Bondía distingue aqui entre sujeito da experiência e sujeito da
informação, onde este último é que está inundado de informações, porém nada disso o marca,
o põe em risco frente ao presente – lembrando a relação íntima que o autor faz entre o termo
experiência e sua etimologia no radical Peri, como perigo, como arriscar. O tempo deste sujeito
da informação é linear e contínuo, como se o passado não o afetasse, em suma, é a negação
radical da tradição, é a pretensão de um saber desconectado de sua história. De alguma maneira,
este sujeito da informação recalcou o fato de que as vozes do passado o podem desestabilizar,
o colocar frente as incertezas do tempo, e deste modo naturaliza arrogantemente seu presente,
como se este fosse uma verdade, neste caso, uma verdade informada. Bondía critica assim um
sistema social inundado de informações, que podem ser pensadas como as informações
vertiginosas que nos chegam hoje, sejam estas jornalísticas, turísticas, publicitárias, entre
outras. Bondía propõe frente a isso, um gesto de interrupção do tempo:

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer


um gesto de interrupção[... do presente...]requer parar para pensar, parar para
olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar
mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes,
suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o
automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os
ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros,
cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço
(BONDÍA, 2002, p.24).

Experiência é um território de passagem que deixa marcas, como uma paixão, ou


melhor, a experiência é uma paixão, que leva o corpo a um saber próprio, subjetivo e pulsante.
A experiência mexe com o corpo singular, com a sensibilidade de um indivíduo, com uma
forma única de estar e existir no mundo, produzindo diferenças, heterogeneidades e polifonia
em um convívio. A experiência nos leva a outros saberes, que só são possíveis se o corpo estiver
aberto para experimentar o que ainda é incerto, desconhecido, ao que não pode ser antecipado,
ao acontecimento que atravessa o corpo no tempo presente. No caso do recorte temático desta
pesquisa surgem as seguintes questões: Que experiências sonoras marcam o nosso corpo?
Como pensar/fazer/potencializar uma experiência formativa vocal que germine em um saber?

135
6.2 Corpo-Voz em conexão com o ambiente de criação.

O corpo registra/marca o que lhe é funcional e está inserido em um contexto que faz
sentido para aquele corpo-vocal. Do ponto de vista do trabalho técnico e criativo da voz é
necessário existir ambientes de criação no qual o corpo- voz possa experimentar melodias,
ressonâncias, intensidades e sonoridades vivas, impulsionadas pelo fluxo do presente, como na
vida. Em situações espontâneas do cotidiano, a pessoa age e reage intuitiva e espontaneamente,
ativando o seu corpo-vocal em relação ao contexto vivenciado em tempo presente. O corpo
muda o seu estado físico, ou seja, sofre modificações tônico-posturais a depender da interação
que estabelece com o ambiente. O funcionamento anatomo-fisiológico da voz dialoga com os
sinais percebidos pelo corpo, provenientes do ambiente, estabelecendo modificações no nível
de energia que determina o modo de projeção vocal no espaço. O estudo de anatomia funcional
de LE HUCHE e ALLALI (1999) traz exemplo prático relacionado às mudanças de estado
ocorridas no corpo, em situação espontânea do cotidiano:

Alguém espera o ônibus em pé, mas numa postura relaxada de


descanso, passando de tempos em tempos o peso do corpo de um para
outro pé, ou talvez encostando-se em um poste. De repente, essa pessoa
avista na calçada do outro lado da rua alguém que ele precisa chamar
de qualquer maneira. Antes de lançar o chamado, sua postura muda:
ela orienta intensamente o olhar na direção da pessoa e endireita-se,
abandonando qualquer apoio acessório para firmar-se sobre ambos os
pés (LÊ HUCHE e ALLALI, 1999, p.257).

Se for pedido para essa pessoa do ponto de ônibus que reproduza novamente a ação
corporal-vocal que realizou, ela responderá que não pode fazê-lo sem motivo e que precisará
de uma outra oportunidade para reconstruir a ação.
O ambiente de criação da vocalidade cênica, dentro de uma perspectiva que valoriza a
experiência, a potência poética de cada sujeito, precisa emergir de um corpo-vocal propositivo,
indo além dos clichês e automatismos; formando mecanismos de registros, de marcas, de
memórias vocais que deem suporte técnico e expressivo ao corpo, servindo como ferramentas
a serem adaptadas e reorganizadas a cada nova relação estabelecida com o ambiente. A noção
de corpo organismo, diferindo da noção de corpo mecânico (enquanto uma realização funcional
autônoma dos órgãos), traz contribuições para pensar na relação do corpo-voz com o ambiente
de criação como “[...] uma possibilidade de estruturação não apenas dos órgãos do corpo, mas

136
da relação mente-corpo, corpo-mundo etc. O todo orgânico é sempre uma estrutura nascida de
uma função [...]” (GREINER, 2005, p.121-122). É o corpo-vocal imerso em um emaranhado
de ações, fazendo combinações singulares de intensidades, melodias e ressonâncias. É a partir
de conexões sonoras, do tato da voz, da reverberação das ondas sonoras no corpo físico do outro
por meio de diferentes qualidades vocais proporcionados através dos parâmetros da voz, que
ações sonoras engendram novas possibilidades vocais, desestabilizando padrões vocais
cotidianos, elastecendo-os para a criação de dinâmicas de percursos poéticos da voz.
Outras conexões imagéticas são ativadas em um processo de criação, cada atuante tece
a sua rede de conexões visuais, auditivas, táteis, associadas a emoções, a história de vida do
corpo contaminado com o ambiente de criação- é a memória corporal de cada pessoa, a
possibilidade dela estar em constante re-significação a partir da relação com o meio que, por
sua vez, também muda com a interação. O ambiente de criação deve ser um lugar permissivo e
provocativo para uma polifonia, restaurando o sentido do corpo-vocal em constantes
interferências culturais formando diversas ambiências sonoras influenciadas pela diversidade
cultural pertinente a um determinado grupo.

137
6.3 Processo de criação-aprendizagem vocal.

Da voz pode surgir um transbordamento de sentidos cênicos. Uma voz que pode ressoar
hibridizada de imaginários de matrizes múltiplas durante um processo de criação imbricado, no
caso desta pesquisa, de rastros poéticos da cultura popular. Aqui, salienta-se a potência do
processo de criação também como um ambiente de investigação do processo de aprendizagem
vocal para a cena. Ou seja, o processo de criação é um ambiente de aprendizagem, uma vez que
proporciona uma série de relações, de encontros sonoros, de jogos sonoros, levando a uma
aquisição de linguagem a partir destes encontros, proporcionando uma realidade nova.

Durante o movimento de criação de uma poética cênica é permanentemente


experienciado pelo corpo-vocal em estado de criação, um corpo em transformação, em estado
de percepção do mundo, corpo este que também está em processo de criação e aprendizagem.
São transformações sonoras múltiplas acontecendo no corpo e também fazendo algo existir no
ambiente da cena.

A crítica genética Cecilia Sales, que investiga o processo de criação da obras de artes,
os rastros e vestígios de criação das mais diversas linguagens, coloca que um artefato artístico
surge no jogo de estabilidade e instabilidade que forma e transforma, em um movimento
altamente tensivo que envolve seleções e apropriações. “A transformação se dá, portanto, por
meio de re-significações e deformações de formas apreendidas” (SALLES, 2004, p.113). Visto
isso, podemos associar o processo de criação ao processo de aprendizagem em uma rede de
associações de memórias psicofísicas, geradoras de transformações sonoras múltiplas que
fazem algo existir no corpo-vocal e na cena, na busca de uma formação, de uma formatação
vocal para aquele instante da cena.

A investigadora brasileira Cynthia Farina, ao pensar sobre a experiência na dança


contemporânea, tendo os corpos dançantes afetados de formas múltiplas, constantemente em
estado de contato sensorial consigo mesmo e com o ambiente que o envolve, elabora reflexões
sobre essa experiência a partir também da perspectiva pedagógica de uma maneira geral,
cunhando o termo ‘pedagogia das afecções’. Esta é pertinente, com o que aqui vem se
indagando no cruzamento entre processo de aprendizagem e processo de criação da vocalidade
da cena. Para Farina (2008), assim como já tinha sido previsto por Artaud, a força da arte na

138
contemporaneidade consiste em que esta começa a entender-se como corpo, e não mais como
uma utopia do belo clássico. Isto desloca, segundo a pesquisadora, um entendimento da
experiência do sujeito tradicional, no qual a partir de uma pedagogia que ela chama de
institucional se queria instruí-lo e regulamentar sua experiência em cânones fixos de
legitimação. Ela comenta que

Há uma dimensão pedagógica que vive na arte. A capacidade de afetar e mudar, de


algum modo, a nós que nos colocamos em relação a ela denuncia isso. A dimensão
pedagógica das práticas estéticas atuais interfere em nossa percepção, em nosso corpo
e em nossa forma de entender o que nos acontece. [... mas...] como conciliar a fluidez e
a instabilidade que a experiência [estética] desata com o desejo da pedagogia de orientar
e custodiar? (2008, p. 103 e 104)

Na contemporaneidade, a arte e seus percursos híbridos, podem mobilizar uma faceta


da pedagogia que saiba lidar e problematizar os fatores sociais e da vida cotidiana que nos
desestabilizam. A pedagogia, assim, poderá operar com esses fatores – pense-se no fluxo
instável produzido pela vocalidade da cena ao tratar o imaginário nordestino no texto de Denys
– mas não para estabilizá-los e sim para poder gerar a “produção de novas imagens e novos
discursos na formação do sujeito” (FARINA, 2008, p. 105), neste caso, de sujeitos que habitam
o nordeste. Abre-se aqui um espaço possível para pensar o imaginário nordestino em um mundo
globalizado, por meio de uma pedagogia que lhe faça justiça, sem cair em etnocentrismo nem
se submetendo a modelos de legitimação estrangeiros. A vocalidade da cena, a arte
contemporânea, possibilita então um modo pedagógico formador de um sujeito contemporâneo
que se sabe em movimento.

A ‘pedagogia das afecções’ Farina a deriva de dois termos chave: a do ‘afeto’ do


pensador francês Gilles Deleuze e do termo ‘afecção’. A noção de Deleuze de afeto relacionada
a novas maneiras de sentir, somada a palavra afecção que, segundo o dicionário, “significa
tanto ‘irregularidade que irrompe no curso regular de um corpo são’, como ‘a impressão que
faz algo sobre outra coisa e que lhe causa alteração ou mudança’” (FARINA, 2008, p. 105).
Farina está interessada em delinear uma pedagogia, a partir da arte contemporânea, que assuma
e atue com “essas ‘irregularidades’ que irrompem no curso atual de nossas formas de vida,
cuidando delas, para favorecer a produção de ‘novas formas de sentir’ e entendê-las.

É isso o que acontece, de uma forma ou outra, ao refletir sobre a experiência vocal no
processo de criação da vocalidade da cena. O que está em jogo é a abertura a outros modos de
139
nos perceber, como também entender e agir no nosso contexto sócio-político e cultural. As
emissões vocais sonorizadas, transformam e transbordam os limites expressivos de cada um, a
voz contagiada e contagiando a vocalidade do ambiente, fazendo nascer a ambiência sonora do
corpo da cena. Para tanto, faz-se necessário um corpo-vocal com canais de percepção abertos,
não apenas para perceber os seus impulsos sonoros internos, como para deixá-los transitar no
ambiente do processo de criação da ambiência sonora da cena, permitindo também
contaminações, misturas, mudanças de estados a partir das imagens e sensações surgidas a partir
dos encontros: do corpo-voz com os seus espaços internos, com o outro e com o ambiente: “ É
a excitação causada pela sensibilidade da percepção que permite a continuidade do processo.
Esses efeitos têm, portanto, poder gerativo[...]” (SALLES, 2004, p. 96). Nessa inter-relação,
uma ambiência sonora se faz presente, ganhando forma por meio do dialogismo de sons
estabelecido pelo corpo ao mesmo tempo singular e coletivo, em um fluxo instável, mas que
vai permitir o delinear da experiência dos sujeitos, captando sua(s) imagem(ns), sua(s)
identidade(s) no movimento da vida.

[...] movimento criador, como uma complexa rede de


inferências, contrapõe-se à criação como uma inexplicável
revelação sem história, ou seja, uma descoberta espontânea
(como uma geração espontânea), sem passado e futuro
(SALLES, 2004, p. 88).

Fig. 30: Pele. Captura de imagem de gravação de um dos ensaios de “água,


flores e anjinhos”, por Tarcísio Rocha e Fábio José de Souza. 2013

140
Importa também pensar o contexto sócio-histórico, no qual se dá a criação vocal,
ativando uma força artística e uma força pedagógica, mobilizando outras reconfigurações nos
corpos-vocais em formação. Entra-se assim na principal problemática discutida atualmente
entre arte e educação, na qual pode-se pensar em uma prática artística e pedagógica que
potencialize ambos os campos do saber, sem estar um a serviço do outro. Na proposta desta
pesquisa, experienciar o processo de criação vocal da cena com propósito pedagógico a partir
de um texto nordestino e ao mesmo tempo lê-lo sob o ponto de vista de sua potência cênico-
sonora, desloca o eixo de referência tanto do teatro (que não toma mais o texto como centro),
como da cultura, que não será tomada mais como algo fixo, abrindo um instigante fluxo
pedagógico através do qual o sujeito possa ‘entender-se’, entender o outro e ‘se fazer entender’.
A sonoridade da cena permite um mergulho, então, em uma vocalidade coletiva contaminada
pelo imaginário nordestino, em um percurso que vai se delineando a partir de inquietações
estéticas e artísticas. É a partir da hibridização dessas referências que começa a se delinear uma
pedagogia aberta pela arte contemporânea, sendo a sonoridade da cena um campo fértil para
fazer pensar o processo formativo que aponta para uma ‘pedagogia das afecções’.

O processo de criação vocal pode proporcionar o encontro de pluralidades de sons


compostos a partir das pessoas, estabelecendo-se uma relação de intimidade entre os
participantes que experienciam, fazem e estão imersos no ambiente de criação vocal. Além da
superfície, do usual, do óbvio e visível no processo de construção e re-configuração da
linguagem sonora da cena, com vigor e rigor para receber e fazer nascer um gesto sonoro novo,
possibilitando que nesse contexto de intimidade, de sensibilidade à existência de frestas de
diálogos inter-corpóreos propícias ao aprendizado. É cada sujeito aguçando a sua capacidade
de experienciar, penetrando no meio organicamente em vários níveis, quais sejam: sensível,
intelectual, físico e intuitivo, transcendendo os limites daquilo que é habitual, sem as roupagens
de automatismos do cotidiano, penetrando assim no desconhecido, em outras combinações,
outras possibilidades, outros modos de fazer estar e ser no mundo, no ato de remexer e reordenar
constantemente referências sonoras múltiplas que perpassam o corpo-vocal no instante presente
do processo de criação.

141
Fig. 31: Rascunhos do que fica. Manuscrito da estudante Hylnara Vidal (recorte amarelo) e da estudante Roberta Bernardo.

6.4 Voz na rede do conhecimento.

O estado de criação mantém a sensibilidade suspensa, à espera


e à procura de sensações que, na medida em que ativam
sensivelmente o artista, são criadoras. [...] Cores transformadas
em sons, cotidiano em fatos ficcionais, poemas em coreografias
ou imagens plásticas (SALLES, 2004, p.54, 27).

É inegável considerar que a contemporaneidade leva às últimas conseqüências as inter-


relações entre os diversos campos do conhecimento. A ruptura de fronteiras entre as artes, a
interpenetração dos saberes são algumas das principais características do mundo
contemporâneo, onde cada artista pode tecer a sua rede criativa, ou seja, não existe um caminho
único a ser seguido na formação do ator, pelo contrário, é preciso que cada artista seja um
pesquisador, pensador do seu ofício. A vocalidade da cena se torna, neste contexto, um campo
fértil para pensar o processo de criação na atualidade e suas possíveis relações de aprendizagem
que podem se entrever e derivar a partir da interação entre os sujeitos que agem e vivenciam
este campo do saber nas diversas linguagens na qual a voz se faz presente por meio de uma
142
coreografia de palavras, sons que traduzem cores, imagens sonoras desenhando a dramaturgia
sonora da cena.

Visto isso, é preciso que os processos formativos institucionais dos cursos artísticos (
sejam eles de bacharelado ou licenciatura) estejam atentos para o contexto histórico, social e
artístico contemporâneo, na qual a prática da inter/transdisciplinaridade está pulsando. Sendo
assim, faz-se necessária a existência de propostas pedagógicas para a prática que habilitem o
artista, o ator, o professor, o artista-docente a inter-relacionar os inúmeros estímulos da vida,
como podemos pensar também na percepção corpórea de linguagens artísticas distintas: A
sonoridade da música, a visualidade das artes visuais, a corporeidade da dança, as ações cênicas,
possibilitando-lhe a incorporação de múltiplos discursos, que, na proposta desta tese, tem como
objetivo investigar processos de criação e suas possíveis pedagogias da voz para a cena
contemporânea, cena esta que rompe com as barreiras disciplinares em busca de um encontro
vivo, poético. Nesta perspectiva, o que importa é a rede de associações, o processo do apreender
que cada aluno-criador encontra para materializar a sua vocalidade poética.

Apesar da dificuldade que caracteriza a tarefa de definir os conceitos de


disciplinaridade, multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade e
transdisciplinaridade, pelas características polissêmicas e imprecisas desses termos, MORIN
(2004) discute essas noções em seu livro A cabeça bem-feita: repensar a reforma/reformar o
pensamento(2004) e, naturalmente, por trás de todos eles está o conceito de disciplina:

A disciplina é uma categoria organizadora dentro do conhecimento


científico; ela institui a divisão e a especialização do trabalho e
responde à diversidade de áreas que as ciências abrangem. Embora
inserida em um conjunto mais amplo, uma disciplina tende
naturalmente à autonomia pela delimitação das fronteiras, da linguagem
em que ela se constitui, das técnicas que é levada a elaborar e a utilizar
e, eventualmente, pelas teorias que lhe são próprias (MORIN, 2004,
p.105).

As dimensões pluri, inter e transdisciplinar não negam a existência da disciplina, mas vão além
dela, fazendo inter-relações, estendendo fronteiras, explorando faixas intermediárias. Mais
ainda, tendo em vista a ampliação do entendimento da cena numa perspectiva contemporânea,
no qual o saber não se restringe somente ao textocentrismo, abrindo outras vias a partir do corpo
como conhecimento sensorial. Neste sentido, a formação vocal do artista da cena necessita tecer
cruzamentos teatrais-musicais-corpóreos- culturais-subjetivos entre outros.
143
O verdadeiro espírito interdisciplinar consiste nessa atitude de
vigilância epistemológica capaz de levar cada especialista a
abrir-se às outras especialidades diferentes da sua, a estar atento
a tudo o que nas outras disciplinas possa trazer um
enriquecimento ao seu domínio de investigação e a tudo o que,
em sua especialidade, poderá desembocar em novos problemas
e, por conseguinte, em outras disciplinas. O espírito
interdisciplinar não exige que sejamos competentes em vários
campos do saber, mas que nos interessemos, de fato, pelo que
fazem nossos vizinhos em outras disciplinas (JAPIASSU,1976,
p.138).

Será valioso relacionar esta fala de Japiassu como um dos escritos do diário de bordo da
aluna-atriz Raquel Capelo:

144
Fig. 32: Escuta. Manuscrito do processo de criação da estudante Raquel Capelo.

Que pedagogias da voz podem ser criadas a partir deste pensamento que aposta numa
abertura entre as disciplinas? A partir daqui, não podemos pensar numa abertura de fronteiras
entre professor e aluno? O que separa um do outro? Acaso lidar com a interdisciplinaridade não
implica um pensamento processual?

Na perspectiva que trabalhamos no laboratório “Vocalidades Poéticas”, o


conhecimento, o suporte técnico pedagógico para dar seguimento ao laboratório, era lançado a
partir das pistas observadas no próprio processo de criação, ou seja pelos desafios que
encontramos no ato de vocalizar no jogo da cena. Neste sentido, os manuais de padronização
tornam-se ineficientes quando pensamos em aprendizagem vocal. Não que não tenham as suas
funções, porém, talvez, quando a aprendizagem se dá numa relação processual, de jogo entre
aluno e professor, a aprendizagem se localiza no vai-e-vem do fazer conhecimento nos mesmos,
escutando a singularidade do outro. Essas pistas do que ensinar, do que fazer só podem ser
encontradas com o corpo-vocal em ação, um no encontro do outro. Com isto, podemos pensar
com Rolnik (1993) que “o que o professor transmite, então, não é um saber, mas um aprender,
um criar. É como aprendiz, isto é, como criador (e não como sábio ou mestre), que o professor
se transmite enquanto pensador” (ROLNIK, 1993, p.12).

Rolnik nos convoca a pensar, nesta perspectiva, que o professor não se coloca enquanto
um modelo com ideias fixas a ser seguido, uma vez que o mesmo também se (trans) forma,
aprende a partir das marcas que o convocam, que, nesta pesquisa, foram provocadas pelo
processo de criação. Talvez, o que experienciamos nesta pesquisa, mas do que eu como
professora transmitindo o exercício de um repertorio de técnicas vocais-corporais, foi transmitir
via corpo o percurso pelo qual estou pensando, criando o trabalho de voz nas artes da cena.
145
Deste modo, acredito que a afirmação de perspectivas pedagógicas neste pensamento “funciona
como uma espécie de suporte que autoriza o aluno a afirmá-la em seu próprio trabalho. Em
outras palavras, o que o professor transmite é o modo como se faz sua prática enquanto
pensador.” (ROLNIK, 1993, p. 12)
Desta maneira, acreditamos que um professor ‘aprendiz/criador’ tem como objetivo com
o ensino suscitar no aluno um aprendiz/criador, diferente da sua pessoa, uma vez que o que
estamos produzindo neste tipo de proposta é necessariamente singular. Singularidades que
surgem pelo viés das marcas da experiência de cada corpo-vocal que vêm à tona encarnadas no
corpo da palavra, no impulso respiratório, na textura sonora emitida, na qualidade de escuta do
outro, da cena, de afirmação da vida.

Neste tipo de prática pedagógica a relação entre professor e aluno é da ordem


da cumplicidade, feita de um crença amorosa na possibilidade que o aluno tem
de desenvolver desta forma seu trabalho no pensamento, crença não menos
amorosa na eficácia e no valor deste trabalho enquanto potencializador da
capacidade de afirmação da vida (ROLNIK, 1993, p.13).

No laboratório “vocalidades poéticas”, cada uma das alunas-atrizes teceu a sua rede de
relações de aprendizagem a partir de cada singularidade perceptiva, da maneira como cada uma
acolheu, se deixou ser tocada por este processo de criação. Podemos perceber no diário de
bordo da aluna-atriz Hylnara Vidal, rastros de como ela se deixa contaminar, hibridizar suas
experiências físicas, corpóreas, vibráteis, ósseas, musculares do laboratório de criação com a
vida, percebendo ambas, vida e arte, como algo processual, um fusão de criação. Um olhar para
a vida também como processo de criação, que precisa de uma escuta aberta, “de poros abertos”
para o ambiente, entre-lugar de cruzamento de afetos, de mistura, de trânsitos sensoriais entre
corpo e ambiente. Talvez neste ponto, resida a potência da experiência estética na educação;
uma recolocação da percepção a partir do exercício da própria mudança de perspectiva da
percepção de si, possibiltando aberturas, remodelagens, outras percepções da vida através da
experiência, no caso desta pesquisa, da materialidade da voz em movimento. Quando falamos
de uma recolocação da percepção, tocamos em um ponto que atravessa pensamentos
necessários tanto na pedagogia da arte, como sobre o próprio processo de criação artístico, como
também a arte na educação. Necessidade esta de descolocar percepções massificadas ,
neurotizadas (Rolnik) de um sujeito centrado em si, normatizado, autosuficiente. Acaso quando
pensamos na relação arte e vida, suas transformações de percepção, de outos olhares, tatos,
perspectivas, não estamos ativando potências tanto na educação, quanto na arte?

146
Fig. 33: Afetos. Captura de imagem da apresentação e manuscrito do processo de ensaio de
“água, flores e anjinhos”, da estudante Hylnara Vidal. Gravação de Fábio José de Souza.

147
No laboratório “Vocalidades Poéticas” vivemos a processualidade da criação. Nesta,
acreditamos que podem ser encontradas potências do aprender voz, mas um aprender sem os
engessamentos dos manuais fixos. Uma aprendizagem tecida no caminho que vai sendo
construído/inventado pelo ato de caminhar e neste percurso, encontramos técnicas, referências
teóricas, propósitos de criação, pistas a partir do ajuste poético do corpo no espaço, pistas a
partir da sonoridade que era esboçada. Foi no fazer-conhecer no corpo de alunas-atrizes que a
vocalidade poética se fez presente nesta pesquisa. A mesma foi ganhando corpo também no ato
de escrever, na palavra escrita no diário de bordo de cada uma das alunas, mostrando como a
vocalidade poética é singular e ao mesmo tempo múltipla, inacabada, movente.

O processo nos mostra um conhecimento vocal infinito. O processo de criação dá voz a


inventividade das vozes, das pessoas que compõem um grupo de trabalho, uma sala de aula, um
espaço de ensaio. O processo suscita o levantar perguntas no exercício do pesquisar, investigar
no seu próprio corpo propósitos que potencializem a existência de vidas sonoras. Em “água,
flores e anjinhos” inventamos, conhecemos, experimentamos uma sonoridade sertaneja
transfigurada no imaginário em movimento e materializada em cada corpo-vocal. Corpo este,
disposto a outras escutas, outros olhares, outras relações de contato, sem os ditames do já
autorizado, determinado, convulsionando outros encontros no corpo sensorial, uma outra
percepção de si mesmo.

A partir do momento em que a propriocepção1 que nos


orienta no espaço desequilibra-se completamente, o
imaginário que move os sentidos é solicitado
(GODARD, 2004, p.76).

No laboratório “vocalidades poéticas”, que se desdobrou na instalação performática


“água, flores e anjinhos” realizada no Teatro Universitário da UFC, instigamos a experiência
do desequilíbrio da nossa propriocepção em relação ao ambiente do qual fizemos parte, por
meio da abertura de camadas perceptivas do corpo-vocal. Uma imersão na plurissensorialidade
fluida do processo de criação, da ambiência sonora, fazendo surgir na cena diferentes texturas
sonoras: rugosas, líquidas, atravessas pela memória, pela vocalidade-bicho, tecendo encontros
afetivos.

1
Propriocepção é o conhecimento que temos dos movimentos de nosso próprio corpo no contexto. [...]
Sentimento de si. (Godard,2004, p.77)
148
Uma voz em estado de escuta com os seus sentidos abertos para o outro, uma voz que
recebe o outro, que é tocada pelo outro e, a partir deste calor, pode-se sentir a vibração vocal
no osso, ou seja, suspender a interpretação, a escuta da condução aérea do som através dos
ouvidos, deixando vibrar os meus ossos a partir da vibração da sua voz. Uma escuta recíproca
que deixou marcas em mim, sinais que ecoam no exercício da ambiência sonora da cena; escuta
de si/ambiente, vocalidade-vibrátil, vocalidade sensorial, voz enquanto textura, materialidade
da palavra, ecos de tecidos afetivos.
Como vestígios deixados no caminho por um bicho, apresento a seguir, um testemunho
deste processo de criação, nos rastros de uma vocalidade poética que ainda ecoam no meu
corpo-pesquisa. Uma condensação de imagens, conceitos, sonoridades, texturas... na sua força
vibrátil, movente, tentando me dese-
qui-
librar na folha,
no espaço, como sugere Godard,
a partir das vivencias laboratoriais vivenciadas com as alunas-artistas-pesquisadoras no
processo de água, flores e anjinhos,

como um rastro.

149
Rastro 7
Um laboratório de rastros
percursos sonoros de pulsações do processo que
ainda ressoa em mim, ressoa porque deixou mar-
cas, marcas que ficam como “o ovo” de Rolnik,
pronto para proliferar a qualquer momento, em
um querer continuar em laboratório, em desejo de
pesquisa, abrindo uma constelação de possibilida-
des de ligações na presença da vocalidade poética,
na sua força de acontecimento, vozes em experi-
mentação de lugares apalpados, mordidos, lambi-
dos, sentidos na (con)vivência com o mundo,
mundo que se mostra em movimento, vivo, em
devir, na sua potência de engravidamento, mudan-
ça que afeta o corpo, um corpo-vocal, pleno de
vozes, sons, palavras, as palavras são muito anti-
gas, já existiam muito antes do nosso nascimento,
elas vêm da emanação de ecos, ecos de Zumthor,
ecos vertiginosos de um passado que nos chega
em pó, como o pó de farinha que se espalha no
ar... em intensa e constante movência... deixando
rastros, rastros que permitem acessar, re-inventar,
memórias, lugares que ativam uma vocalidade-
vibrátil, vocalidade-bicho, voz que grasna por
uma existência, por abrir possibilidades vivas no
corpo-vocal de alunas-atrizes, pessoas, professora,
no corpo da ambiência sonora da cena, linhas que
fomos tecendo, apreendendo, no corpo das pala-
vras, na feitura do exercício, na escuta do encon-
tro por vocalidades poéticas
Rastros que ficam de um pulsar da voz na experiência

ESCUTA DO SI / AMBIENTE
Escuta do corpo pelo corpo.

Percepção de que somos ossos, músculos, espaços, cartila-


gens, vísceras, respiração, corrente sanguínea, linfa, corpo
-vocal se organizando de uma maneira menos rígida,

mais fluida.

Parar para escutar,

parar para sentir,

parar para perceber o como

O como o corpo se organiza para respirar, recorren-


do a um grupo determinado de apoio músculo-esquelético.

Abrir espaços

O Exercício da respiração.
Respiração no fluxo do entorno

Atentar para as coisas que ressoam em mim e no ambiente da cena.

Caminhar em círculo da direita para a esquerda. Perceber o contato de cada pé


com o chão,
Como interagem. Mesmo aparentemente sendo o mesmo caminho, cada passo é um
novo passo. Sinta o ambiente a sua volta: cores, textura, cheiros, cheiros. Perceba
como você está
sendo afetado por ele.

Pare

Feche os olhos...
Feche os olhos...

Perceba o ritmo da respiração nesse momento, sem induzir. Só perceba como o


corpo respira neste momento. Que parte do corpo entra em movimento. Como sente
a respiração: longa, curta, leve, densa....Como acontece esse movimento de entra-
da e saída de ar neste momento.

Perceba a vibração que está em seu corpo agora.


A qualidade dessa vibração

Traduza essa vibração em um som que você possa emitir com a sua voz
Deixe o som entoar primeiro internamente, permita-o percorrer pelos espaços in-
ternos do corpo e quando sentir vontade deixe-o que ele se manifeste no ambiente.
Experimente entoá-lo de variadas maneiras.
Perceba o gesto e o movimento que este som faz brotar em você.
Movimento sonoro que é puramente você.

Abra a escuta para os outros sons e movimentos que estão a sua volta e deixe que
os mesmos contaminem, se misturem a sua vocalidade.
Pare
Feche os olhos
Perceba como o seu corpo vibra agora.
Volte a atenção novamente para a respiração.
Quando eu expiro, as moléculas de ar em minha volta se movimentam. Quando eu
inspiro, o movimento de ar que está fora penetra em mim.

Conexão Corpo-ambiente
“Um corpo habitado por, e habitando outros corpos e outros espíritos, e existindo ao mesmo tempo na
abertura permanente ao mundo por intermédio da linguagem e do contato sensível, e no recolhimento da
sua singularidade, através do silêncio e da não-inscrição. Um corpo que se abre e se fecha, que se conec-
ta sem cessar com outros corpos e outros elementos, um corpo que pode ser desertado, esvaziado, rouba-
do da sua alma e pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida” (GIL, 2013, p.53).

Fig. 34: Corpo que se abre e se fecha. Captura de imagem da gravação do ensaio de água, flores e anjinhos. Gravado por Tarcísio Rocha.
Um corpo humano, um corpo em devir

[...]abre-se e fecha-se sem cessar ao espaço e aos outros corpos. Capacidade que se prende menos
com a existência dos orifícios que o marcam de forma visível do que com a natureza da pele. Por-
que é mais por toda a superfície da pele do que através da boca, do ânus ou da vagina que o corpo se
abre ao exterior. Esses orifícios estão a serviço de funções orgânicas de trocas entre o interior e o
exterior. Mas raramente operam a abertura global do espaço interno. (exceto no prazer sexual e na
fala). (GIL 2013, 54, grifo nosso)
Voz em estado de conexão
Corpo-voz singular e coletivo: descoberta de outros som a partir do outro.

Escuta
O corpo como uma grande membrana timpânica que escuta
Aprender a escutar, ampliar a audição, esmiuçar, singularizar o som
Desenhos sonoros

Ver a voz por formas


Corpo que desenha silhuetas no espaço
Salta
Voz que faz curvas, caminha pontiaguda,

desce de um tobogã
, gira a trezentos e sessenta graus no espaço

Desenhar no papel as formas sonoras no espaço do papel

Es P A Ci a l i ZA AAA A A A AA r

Sons que dialogam com o espaço.

Ambiente criado por sons.

Sensações acústicas que reverberam na pele do corpo.

Estado de vibração.

Corpo-voz expandido aberto para a criação ou já em estado de criação.

Ser o corpo todo água, sangue, linfa, líquido sinovial, cachoeira, ser um rio de correnteza sonora, que ora tem suas margens mais
estreitas, ora mais largas, ser mar com ondas......e qualquer outro imaginário encarnado que a fluidez do pensamento-corpo en-
contrar.
Rastros que pulsam de um ficar da voz na experiência

VOCALIDADE-VIBRÁTIL
Falar é fazer a experiência de entrar e sair da caverna do corpo humano a ca-
da respiração:

abrem-se galerias,

passagens não vistas,

atalhos esquecidos,

outros cruzamentos;

avança-se por esquartejamento;

é preciso atravessar caminhos incompatíveis, ultrapassá-los[...].


( NOVARINA, 2009, p.15)

Entrar em vocalidades desconhecidas,

Abrir galerias, passagens, fluxos ...


Cruzamentos outros,

Outras r e s p i r a ç õ e s,
timbres,

espaços de ressonância,

outras maneiras de si escutar no espaço,

deixar que sensações,

outras imagens no acontecimento da voz.


Intensificações da vida no acessar a vida presente na vibração da voz,
voz esta que enche o corpo, transbordando-o no ambiente.
língua,
lábios,
pregas vocais
músculos do corpo
órgãos
cavidades ósseas
vias para o escoamento desimpedido da energia que se desdobra em vocalidade poética
Para uma voz que transborde o corpo, o coração, os ouvidos, voz que
penetre no outro.

Voz que se abre a outras dimensões da subjetividade, atingindo estados


vibratórios outros que o corpo-vocal encontra na processualidade da ex-
periência. Estados vibratórios inéditos acionados pelos contatos sensí-
veis estabelecidos com o ambiente. Como nos sugere Rolnik (1993),
nosso contorno é rompido, ou seja, aquela voz conhecida pela força do
hábito se desfaz, nos colocando a exigência de criação de um novo cor-
po-vocal.

O exercício que coloca a exigência do devir outro-sonoro.


Voz acessada pelo exercício no campo das sensações, outras possibilida-
des de sair do aprisionamento da funcionalidade, da voz apenas no viés
informativo, conteudista.

É o dom de falar que se transmite; o dom de falar que re-


cebemos e que deve ser dado. O dom de abrir por nossa
boca uma passagem respirada de matéria. O dom de abrir
por nossa boca uma passagem na morte (NOVARINA,
2009, p.19)

A linguagem sonora nasce do grasnar do bicho incendiando o corpo com suas


facas de palavras lançadas no espaço, transbordando a vida na cadência de pa-
lavras.

Trabalho com a palavra sonorizada na cena - deslocamento do sentido semântico para o sentido sensó-
rio
Experimentar a palavra no fluxo de uma ação.
A palavra sonorizada vem no fluxo da ação, ou da sensação, ou da imagem, ou do cruzamento de todos estes estímulos.

Interagir com o outro, com o outro-eu, com o outro-corpo. Ganhar uma intimidade no entre-corpos
que permite o fluir de uma voz- outra, que faz vibrar a pele. Influências de propósitos do Body-
Mind Centering*. partir do fluxo de sistemas físicos do corpo. Como seriam os impulsos do sistema
nervoso? Experimentar no outros esses impulsos, impulsionar partes do corpo do outro com movi-
mentos curtos e precisos. Lentos e longos. (Deixar que a escuta e a imaginação dos corpos dialo-
guem). E o sistema sanguíneo? Linfático? Se o corpo desejar sonorizar, permita que este som
encontre a vibração da sua voz. Agora, mantendo os olhos fechados, deixe que sozinho, confiando
nos cuidados do outro, porém sem estímulo externo, o corpo-vocal se movimente no espaço aces-
sando sensações do toque as marcas mais intensas a partir do toque do outro, que agora age cui-
dando do outro. Após vocalizações, experimento com palavras do texto memorizadas, acessando um
percurso de vocalidades vibráteis.

* Body-Mind Centering é um processo experimental de re-educação e re-padronização do movimento


desenvolvido por Bonnie Cohen, normalmente experimentado por pessoas da área da dança ligadas à
Educação Somática. http://www.bodymindcentering.com
Rastros que ficam na experiência de uma voz que pulsa

VOCALIDADE SENSORIAL/VOZ ENQUANTO TEXTURA


“A partir do momento em que a propriocepção que nos orienta no espaço desequilibra-se completa-
mente, o imaginário que move os sentidos é solicitado” (GODARD, 2004, p.76)
A vocalidade poética pode ser acessada no ato de colocar em movimento sentidos do corpo organizados de uma outra maneira, que solicita o imaginário.
Falo de ativar um corpo sensorial, pelo viés do acessar os sentidos do corpo: gosto, tato, olhar, audição...e todas outras possibilidades de sentido através
de seus cruzamentos.
Godard fala da necessidade de escapar de um olhar objetivo.... É deixar a voz ser contaminada pelo contato com o espaço, com a textura de objetos, com
a escuta de outras vozes através da percepção. Encontrar a matéria sonora que é feita do cruzamento das interações sensoriais com a textura de elementos
variados integrados ao laboratório.
Corpo sinestésico.
Voz acessada por texturas.

Laboratório do sangue de vaca-

Início-todas no chão – massagear o corpo no chão de madeira/ aos poucos ir abrindo espaço na flauta interna do corpo, deixando que sons aconteçam,
deslizando nos seus graves e agudos/ intensificar o movimento do corpo-vocal no espaço. Segundo momento- utilizamos o bastão (elemento bastante
utilizado nos laboratórios, para interagir com este elemento é necessário que o grupo esteja bastante familiarizado com este objeto, pois o mesmo sus-
cita estrega, destreza e confiança para o pleno desempenho no ato da ação). O mesmo era lançado vigorosamente em uma roda composta pelas alunas
-atrizes. Inspirado na fisiologia da voz, este exercício de aquecimento e ativação de uma energia cênica mais vigorosa, foi feito da seguinte maneira:
Ao lançar o bastão, elas lançavam também um jato de ar ao encontro da outra. Em seguida, ao lançar o bastão sons eram ativados em direção a
outra. Neste fluxo, palavras do texto já conhecidas e outras que eu ia dizendo no momento do exercício eram vocalizadas pelas alunas atrizes.

Palavras verbalizadas no fluxo do lançar o bastão.

O exercício com o bastão ativou um corpo enraizado e uma vocalidade que nasceu de um impulso que veio da expiração.
Sangue Porcaria

Arranca

Veia

Maledita
Cangote

Arde
Corpo-voz Sensórial 1- Colocamos no chão com uma roda feita de farinha de mandioca. Uma de
cada vez experimenta dizer o texto a partir do contato com este elemento. Uma poeira, um pó de
farinha seca se enfarela com os pedaços de palavrar esfareladas no ambiente da cena.

Adaaaaaseeeelaaa! Sangue, sangue, cascavel, porca, porcalha,


(urra), coisa suja, porcaria, veia, veia, cangote, estouro, (relincha)
cruz credo, fogo do inferno, arde, arde, arde, lama de sangue, (relincha)
arranca, arranca, esfola, tripa, cangote, arranca. Arre! Arranca olho,
corta orelha, arranca língua, tira o couro, quebra venta! Podre, temba,
Lamec, careca, azougada!
Fig. 39: Sangue e pó. Captura de imagem de gravação do laboratório Vocalidades poé-
ticas. 2013. Por Tarcísio Rocha, nas fotos, Raquel cCapelo e Roberta Bernardo.
Trabalho sensorial que provoca uma vocalidade que encontra uma textura que a faz
vibrar, possibilita um mergulho de corpo inteiro, no qual um imaginário também é
colocado em movimento. Neste movimento, também percebo o emergir de uma voca-
lidade que tateia, vocalidade esta menos manchada por uma vocalidade viciada do
que seria uma voz em cena.

“Deixar o olhar subjetivo operar primeiro, deixar o


outro imprimir o esboço de um movimento em seu pró-
prio corpo para só depois eventualmente compreender o
movimento ou objetivá-lo. E nesse momento, abre-se de
repente um abismo de sentidos, um abismo de possibili-
dades, que me permite compreender.” (GODARD,
2004, p.3)

Fig. 40: Abismo. Captura de imagem de gravação do laboratório Vocalidades poéticas. 2013.

Quando toco a farinha, a farinha também me toca e neste entre lugar...., e eu recebo
este toque, para isso, preciso estar com o corpo, com a escuta da pele aberta para esse
fluxo de estímulos que atravessam o ambiente . E nesse duplo agir intenso, pode sur-
gir um sentido via textura da materialidade sonora. São cruzamentos de interações
sensoriais, minha pele toca a farinha, a farinha toca a minha pele, se mistura com o
mel vermelho e encontra a vibração da minha voz. É deste ambiente sensorial que
surge a vocalidade das palavras de um sertão imaginário, ou do sertão encarnado por
cada uma delas. Um além da história ou um além do sentido logocêntrico da lingua-
gem. É também permitir ser tocado pelo som da voz, permitir ser tocado pelo outro da
voz.

Palavra que nasce de uma sinestesia. É isso que chamamos de vocalidade poética.
Fig. 41: Farinha. Captura de imagem de gravação do laboratório Vocalidades poéticas. 2013
Rastros de voz que pulsam e ficam na experiência

MATERIALIDADE DA PALAVRA
Eis que agora os homens trocam entre si palavras
como se fossem ídolos invisíveis, forjando nelas
apenas uma moeda: acabaremos um dia mudo de
tanto comunicar. [...] À imagem mecânica e instru-
mental da linguagem que nos propõe o grande siste-
ma de mercado que vem estender sua rede sobre
nosso Ocidente desorientado, à religião das coisas,
à hipnose do objeto, à idolatria, a esse tempo que
parece se ter condenado a ser apenas o tempo circu-
lar de uma venda perpétua, a esse tempo no qual o
materialismo dialético, desmoronado, dá passagem
ao materialismo absoluto oponho nossa descida em
linguagem muda na noite da matéria de nosso corpo
pelas palavras e a experiências singular que cada
falante faz, cada falador daqui, de
uma viagem na fala; opo-
nho o saber que nós te-
mos, que existe, bem no
fundo de nós, não algo do
qual seríamos proprietários
(nossa parcela individual,
nossa identidade, a prisão do
eu), mas uma abertura interi-
or, uma passagem falada
(NOVARINA, 2009, p. 13).
FFig. 42: Palavra carne. Captura de imagem do laboratório Vocalida-
des poéticas. 2013. Por Tarcísio Rocha, nas fotos, Hylnara Vidal.
Técnica necessária. Mastigar as palavras, abrir a voz, pesquisar a dinâmica de ação de cada /F/ /o/ /n/ /e/ /m/ /a/
E aquilo que o Teatro ainda pode extrair da palavra são suas possibilidades da
expansão fora das palavras, de desenvolvimento no espaço, de ação dissociadora e
vibratória sobre a sensibilidade. É aqui que intervêm as entonações, a pronúncia
particular de uma palavra (ARTAUD, 1884, p. 114-115)

Texto como material- Trabalho a partir de fragmentos de Flores D’América

Abrirei meus lábios

Em tristes assuntos,

Para sufragar

Aos fiéis defuntos

(DENYS, 2005, p. 28).

Buscar o esva zi a m e n t o dessas palavras, tentativas de abrir espaços outros. R E - crrrri aarrrrrr
In- Corporar / Des-manchar-se nas palavras do que se é, deslizando o é RE IN VENTAR
Falar não é comunicar. Falar não é trocar nem fazer escambo-das ideias, dos objetos-, falar não é se exprimir, designar, esticar uma cabeça tagarela na direção das coi-
sas [...] falar é antes abrir a boca e atacar o mundo com ela, saber morder. O mundo é por nós furado, revirado, mudado ao falar. Tudo o que pretende estar aqui como
um real aparente pode ser por nós subtraído ao falar. As palavras não vêm mostrar coisas, dar-lhes lugar, agradecer-lhes educadamente por estarem aqui, mas antes par-
ti-las e derrubá-las. “A língua é o chicote do ar”[...] (NOVARINA, 2009, p. 14-15, grifo nosso)

Palavra linguagem-material
Palavra corpórea, que afeta, que age sobre a sensibilidade, sobre o meu corpo, sobre o teu corpo, simultaneamente.
A vocalidade poética necessita desarticular a fala. Mostrar a fala saindo da palavra, abrir as palavras “como fru-
tas” (NOVARINA, 2009, p.44) . Segmentar os seus parâmetros de emissão, separar os instantes de respiração, silêncio, so-
norizações, articulação, ressonâncias.
Fazer com que o sentido-pensamento literalmente atravesse a expiração, encha uma inspiração, amplificando, numa espé-
cie de caixa de ressonância, esses afetos materializados em vocalidades e amplificados por caixas de ressonâncias.
Tudo que é corpóreo, que afeta o corpo pela sua qualidade vibratória está no plano da materialidade da palavra

[...] criar uma metafisica da palavra, do gesto, da expressão,


com o objetivo de tirá-lo de sua estagnação psicológica e huma-
na. Mas nada disso pode servir se não houver por trás desse es-
forço uma espécie de tentação metafísica real, uma invocação
de certas ideias não comuns cujo destino é exatamente o de não
poderem ser limitadas, nem mesmo formalmente esboçadas.
Essas ideias, que roçam na Criação, no Devenir, no Caos e que
são todas de natureza cósmica, fornecem uma primeira noção
de um domínio em relação ao qual o teatro se desacostumou.
Elas podem criar uma espécie de equação apaixonante entre o
Homem, a Sociedade, a Natureza e os Objetos (ARTAUD,
1984, p. 115).

Fig. 44: Beijando o mundo. Captura de imagem de gravação da apresentação de agua, flores e anjinhos.
2013. Por Fábio José de Souza, com Angela Deyva e Hylnara Vidal na imagem.

Cena da palavra que não fecha, mas abre, permite movimento de vibração na vida, sensibilidade colocada em movimento, num estado de percepção mais inte-
rior, mais apurada. No rito do encontro de bocas que se abrem furando, mordendo, acariciando, beijando o mundo.

Palavra carícia Palavra víscera Palavra semsentido Palavra nojenta


Palavra chicote Palavra olho Palavra luz Palavra delícia
Palavra pensamento Palavra palavra Palavra teatro Palavra chiada
Palavra impulso Palavra língua Palavra cindida Palavra soco
Palavra oferenda Palavra prece Palavra ferida Palavra perdida
Palavra carne Palavra enigma Palavra beijo Palavra sombra
Palavra corpo Palavra sexo Palavra suave Palavra dissecada
Palavra noite Palavra sangue Palavra roce Palavra vibratória
Rastros da experiência que ficam na voz que pulsa

ECOS DE TECIDOS AFETIVOS


Sois lírio formoso,

Que cheiro respira


Entre os espinhos

Da serpente a ira.

(Denys, 20005, p.73)

Fig. 45: Lírio formoso. Captura de imagem de gravação da apresentação de agua, flores e
anjinhos. 2013. Por Fábio José de Souza, com Angela Deyva na imagem.
Na processualidade de referências acessadas, uma mistura de sentimentos, sensações, lembranças...foi sendo tecida uma textura afetiva que acolhe pala-
vras a serem sonorizadas. Elas já nascem imersas em uma colcha afetiva que aquece a voz, embalando a palavra sonorizada por ela.
Mas também a voz, a palavra sonorizada por aquele que conduz uma aula, um laboratório, um ensaio... também cria um tecido afetivo. Palavra esta que tem
algo do gemido, do sussurrar. Voz destinada a tatilidade do outro. Palavra que vem ao nosso encontro. Vida da palavra que est á na voz, no hálito da voz da-
quele que fala.

Palavra viva que pode proporcionar uma abertura.


Voz-Alimento para um imaginário encarnado.

Em algum lugar, em alguma referência da textura da voz que ressoa, aquele que ouve pode encontrar ecos, ecos... reverberações de sentidos na sua histó-
ria sonora. “Ao fundo das vozes que escutamos no presente ressoa, como por causa de uma memória fisiológica, o eco das vozes perdidas” (ZUMTHOR,
2005, p.83).

Neste dia foi assim:


depois do trabalho vivenciado pelo grupo todo, demos seguimento ao trabalho, apenas com a pre-
Fig. 46: Balanço. Fotografia do laboratório Vocalida-
des poéticas, por Fábio José de Souza. 2013 sença minha e da aluna-atriz Ângela Deyva. Após acionar via aquecimento, um corpo inteiro,
em estado de vibração, pedi para Ângela buscar movimentos de balanço, de balançar, balan-
çar, balançar, como uma cadeira de balanço, experimentando esses movimentos no nível alto,
variando velocidade, propondo instantes de suspensão do movimento e deixando que uma melodia
deslizasse na voz a partir das sensações suscitadas pelo balançar. Escutando
a voz sonorizada por ela e observando a inteireza do seu corpo, fui jogando
junto com ela, pensando como provocar uma voz mais deslocada das referên-
cias representativas, buscando assim uma voz outra, presente, inteira. Após
longa experimentação pedi para que fosse corporalmente para o nível baixo,
experimentando agora um corpo que pode se deslocar apenas utilizando os
membros superiores até chegar na cadeira de balanço. Coloquei no ambiente um fragmento do
texto perto dela e pedi para ela vocalizar aquelas palavras.
Trazer uma melodia para aquelas palavras.
Encher todo o espaço acústico com a voz que canta.
Exaltar a potência própria da voz.
Ser intensamente som da voz
Pensando em Zumthor quando diz que é este o lugar da performance vocal.
Fig. 48: Anjinhos. Captura de imagem de gravação do laboratório Vocalidades poéticas. Por
Tarcísio Rocha, nas fotos: Angela Deyva, Roberta Bernardo e Gabriela Araruna. 2013.
Voz que vibra nas marcas da experiência
Experiência que vibra nas marcas da voz
Voz que marca e vibra na experiência
Experiência que marca a voz que vibra
Marca que vibra na voz da experiência
Marca que vibra na experiência da voz
Fig. 49: Mãos que acolhem. Captura de imagem de gravação do laboratório
“[...]Uma vez posta em circuito, uma marca continua viva, quer dizer, ela
continua a existir como exigência de criação que pode eventualmente ser
reativada a qualquer momento. Como é isso? Cada marca tem a potenciali-
dade de voltar a reverberar quando atrai e é atraída por ambientes onde en-
contra ressonância (aliás muitas de nossas escolhas são determinadas por

Vocalidades poéticas. Por Tarcísio Rocha. 2013.


esta atração). Quando isto acontece a marca se reatualiza no contexto de
uma nova conexão [...]” ( ROLNIK, p.2)

O processo de criação ativa um fluxo de memórias sonoras.

“[...] A memória nesse plano é memória das marcas, ovos sempre atuais,
sempre potencialmente geradores de novas linhas de tempo.” (ROLNIK,
p.4)

Ângela tem no corpo marcas de um Cariri religioso. Um dia, ela trouxe uma foto da casa da família. Hoje lá
só vive o seu pai. Na foto da sala havia um santuário com flores de bem-me-quer bonita, margaridas brancas
exalando suavidade. Padre Cícero, coração de Maria e Jesus, menino Jesus. Santuário antigo, que fica e reú-
ne pessoas em volta para entoar cantos religiosos, o ofício da imaculada Conceição... desde que aquela casa
era de seu avô paterno. Lembrança sonora que fica como uma marca, um ovo que agora se atualiza no en-
contro com fragmento do texto de Denys, com o acessar de uma referência sonora da infância.

Histórias que, da processualidade do fazer corpos-vocais, no coletivo, vêm à tona no desejo de compartilhar.
São pistas que surgem de encontros singulares do processo.
Nordeste sonoro que surge reinventado pelos ecos de uma história de vozes misturadas, integradas a uma textura de afetos tecidas no processo
de criação.
Mistura dos mais variados fluxos que compõem uma canção de saudade. Tendo essa saudade como evidência do eco, ou dos ecos dessa experi-
ência.
Fig. 50: Esperança. Captura de imagem de gravação do laboratório Vocalidades poéticas. Por Tarcísio Rocha. 2013
Rastro 8
ABERTURAS POSSÍVEIS
185
Exercício de construção de conhecimento, ela também, a tese, é um processo de criação,
mais do que mera contemplação, trata-se de um processo inventivo, de forma (ação) em uma
variação contínua em mim. Portanto, o processo de produção de conhecimento é um processo
inventivo, em constante movimento de (trans)formação que, no caso deste estudo, refaz
maneiras de vocalizar, criando, buscando na prática outros lugares de vibração, exigindo assim,
a criação de outros percursos para a vocalidade poética. Nesta voz, é a vida de cada um de nós
que se abre para a criação em cada toque, em cada escuta, em cada som, em cada gesto. Não
existem limites e fronteiras, ou seja, as fronteiras permitem aberturas para os muitos caminhos
possíveis para o estudo prático da vocalidade poética. Assim, o limite foi o caminho que
trilhamos, esse foi o limite e a abertura de aprendizagem e ensino em vocalidade poética, não
existiu uma base ideal, normas que prescreveram uma vocalidade a ser encontrada. Só sei que
nesta caminhada, percebi que o encanto contido na escuta do outro pode trazer uma abertura,
em que vozes são descobertas como matéria-prima de desdobramentos inventivos na cena.
Voz, processo de criação, sinestesia e ambiente da cena se conjugaram nesta pesquisa
para disparar processos pedagógico-artísticos que permitiram materializar a voz na sua força
sensória, vibratória, corpórea, em um encontro de vozes.

Entre-vozes: por uma pedagogia do encontro

Por isso temos que seguir nos tocando com as palavras.


Não para unir-nos ou para separar-nos, mas para
estremecer nossas línguas (BONDÍA, 2004, p.193).

Entre-vozes. Por uma linguagem inteira, sem meio-termo, como uma poesia, na qual o
que está exposto é o corpo da palavra, sua carne sensível, palavras em liberdade, liberdade pelo
que as palavras têm de corpo, de materialidade. Sem uma relação utilitarista da palavra,
comunicativa, discursiva, em que não vemos nem ouvimos a palavra do outro, não percebemos
como vibram entre um corpo e outro, não saboreamos a palavra do outro, apenas temos a
palavra como instrumento de comunicação, compreensão de ideias, sentimentos, etc. Bondía
(2004) em diálogo com o filósofo Jacques Derrida, nos faz o convite a pensar no corpo da sua
escrita, em uma palavra-carne, no corpo a corpo do encontro, do con(tato), da fricção entre
nossos corpos de vozes, de palavras. Contato como o corpo das palavras não significa conhecê-
las, nem utilizá-las, mas senti-las no que têm de vocalidade-vibrátil, no que altera a norma do

186
que já é dado. Como podemos pensar em desdobramentos na relação de ensino e aprendizagem
a partir deste lugar do corpo a corpo, do entre-vozes? Como podemos destecer o funcionamento
hierárquico dos corpos, no qual uns detém um saber e outros aprendem um saber? Como fazer
com que a tatilidade do não verbal, do tom da voz, do corpóreo exploda nas relações não só
naquele que aprende, mas naquele que ensina?

[...] o corpo das palavras, como o corpo do amante, se


nos oferece plenamente e sem reservas e, ao mesmo tempo,
retira-se de nós escapando de qualquer apropriação, de qualquer
captação apropriadora. O que o corpo das palavras revela é
justamente a alteridade constitutiva da linguagem, sua distância
e sua ausência com respeito a si mesma. (BONDÍA, 2004,
p.183).

A leitura do filósofo espanhol Jorge Larrosa Bondía (2004), em seus ensaios sobre
‘linguagem e educação depois da babel’, incitou durante esta pesquisa, algumas questões sobre
as relações estabelecidas no ato de aprender e o ensinar disciplinas de voz, no contexto do
ensino superior do curso de Teatro-Licenciatura. Os textos do referido autor, relacionados aos
seus ‘ensaios eróticos’, no qual dialoga com Derrida no entender as palavras como corpo, como
entre as línguas, “como um boca a boca, como um língua a língua, como um roçar de lábios,
como um movimento de língua e de lábios [...] Como se o movimento das línguas na fala não
pudesse distinguir-se do movimento das línguas no beijo” (BONDÍA, 2004, p.185). Como no
amor, lugar onde as palavras estimulam o beijo, como também o beijo estimula a palavra. É
nesta relação erótica, em que as palavras se fundem com o beijo, na qual os beijos se confundem
com as palavras, que podemos pensar na vocalidade poética da cena e também, a partir da
mesma mola propulsora que instiga o pensamento desta palavra poética vocalizada, podemos
pensar também nas relações de ensino e aprendizagem tecidas neste ambiente de criação.
Acredito que o professor, estou falando no contexto das pedagogias da voz, mas acredito
que estas relações se apresentam em qualquer relação de encontro docente afetivo, no colocar-
se em relação aooutro, na presença de um encontro, há um entre-lugar, um entre-vozes que se
chocam, se confundem, se escutam, embarcam juntas em direção a lugares sensíveis a serem
descobertos, a um devir criança, que fazem juntos um acontecimento de vocalidade poética
brotar na cena. São corpos-sonoros atravessados, que convivem e existem no encontro sensível,
corpóreo de um no outro.

187
Esse “te amo” que te digo não é meu, senão que és tu
quem me dás. Tu és quem o põe em minha boca. Tu és quem
faz com que não possa contê-lo. Por isso gosto tanto. Por isso
me soa a ti. E não tenho a menor dúvida de que só sinto minha
língua ao beijar-te. Por isso não te beijo com a língua que tenho,
mas com a que tu me dás. Com a que tu sensibilizas. Com a que
tu pões em movimento. Por isso minha língua tem sabor de ti.
Por isso gosto tanto (BONDÍA, 2004, p.192).

Como podemos criar uma relação de contaminação mútua, não hierárquica, horizontal
de descobertas de criação, na qual coloco-me em relação com você? A voz que sai da minha
boca, ou a voz que ensino nasce do tato da sua voz em mim, e neste trânsito, neste entre-vozes,
(con)vivemos, fazemos juntos um ambiente de encontros formativos com transformações,
deformações, formações que acredito serem mútuas. Vozes renovadas, palavras renovadas no
ambiente da cena, um falar como da paixão da primeira vez, fazê-la soar de um modo inaudito,
entrar pela primeira vez na frase, no que vai ser dito.

Nietzsche nos convida a ser amigos-amantes-


enamorados das palavras, ou melhor, do corpo das
palavras, sem o seu dominante hierárquico, des-
erotizador, a rigor só se pode amar um corpo, sendo um
corpo, através de um corpo, corpo a corpo, entre os
corpos. (BONDÍA, 2004, p. 178).

Por uma pedagogia do encontro, de um ‘corpo a corpo’, de um entre-vozes. Para isso, é


necessário mergulhar nesse presente, em uma realidade de dentro, do entre, erótica, do trânsito
e não de cima. Com uma voz que não intimida, que conversa, que se relaciona pelo toque, pelo
tato da voz, pelo hálito. É também um expor a voz-corpo daquele que ensina e daquele que
aprende, um abrir-se à experiência (aquela que deixa marcas, por isso apreendemos no corpo,
no corpo da experiência) que o outro provoca em nós.
Uma escuta aberta, uma atenção, como uma tensão que não está normatizada pelo que
sabemos, pelo que já queremos, pelo que buscamos, mas uma escuta disponível ao outro.
Palavra que vem da fluidez contextual, de um encontro, e neste entre línguas, entre corpos,
entre-vozes é o lugar fecundo de vocalidades poéticas. Escuta da singularidade das vozes de um
coletivo, escuta aberta a surpresas, aos paradoxos, a experiência que pode estar em uma sala de
aula, em uma sala de ensaio ou em um laboratório de pesquisa. E nesta escuta, aprender com o
outro e do outro algo que percebemos no encontro dos sentidos, de vibração, vida em uma
vocalidade poética.
188
A voz, como a música, como o bater asas dos pássaros,
como a fuga entrevista dos animais ou como o assobio
de uma flecha, deixa em seu passar uma vibração, uma
marca sonora, um sulco apenas aberto no ar (BONDIA,
2004, p.43).

Não existem salva-vidas, os manuais não são eficientes quando falamos de uma vocalidade
movente, poética. Mas pistas, sinais podem ficar no percurso, abertas no ar, rastros de
conhecimento, percurso de uma experiência que só pode ser encontrada pela própria voz em
ação, em contato, como acontecimento, no corpo a corpo. Por pedagogias da voz que
proporcionem ambientes de convívio, de aberturas de marcas, por uma atitude artista de
refazimento de si, alimentando uma entrega que vai além de aparências e protocolos. Cultivo
de uma percepção sonora de si, de um canto de vida no alargamento de nossas próprias
fronteiras. Alargamento este não pelo viés de uma lógica do pensamento pré-estabelecido, mas
por um viés da experiência, de um pôr-se em risco, a sair da forma, a viver uma vida vivida,
aberta aos fluxos do seu próprio movimento.
Neste entre-vozes, acreditamos inventar novas possibilidades de existência, no corpo-
vocal da palavra, experimentação de novas formas de habitar o mundo, outras maneiras de
relação, de convivência com as pessoas e conosco mesmo. A busca de uma voz outra, de um
pensamento outro, a busca de uma experiência outra, de uma vida outra, de uma formação
entendida como um processo interminável. Uma aprendizagem que acontece no corpo, e se faz
em mim também no corpo desta pesquisa.
Portanto, nesta cartografia de pedagogias vocais, rastros foram ficando como lugares de
eróticas, lugares que encontramos vibração, na superposição de nossas respirações. O jogo de
movimento entre as nossas caixas torácicas entraram em diálogo. Foi o amor do outro que saiu
pelas palavras expiradas na minha boca, nas palavras registradas nesta escrita. O que é a
experiência, então, quando vista como uma erótica? Que pedagogias surgem deste lugar? Uma
pedagogia vocal que acontece no entre-vozes, no entre-escutas do corpo-vocal-professora com
o corpo-vocal-discente, numa relação sem domínio, sem dono. Nesta perspectiva, o ensino é
encontro, é descoberta mútua, ambos, professor e discente enfrentados no movimento do
conhecer.

189
O que seria em mim vocalidade poética antes de iniciar esta pesquisa? Eram
inquietações suscitadas pelas leituras do medievalista Paul Zumthor, era desejo de mudança, de
imersão na prática da criação, de encontros sonoros outros. Hoje, a vocalidade poética que
transita em mim tem os rumores, os ecos de uma Vocalidade-Ângela, Vocalidade-Roberta,
Vocalidade-Hylnara, Vocalidade-Raquel, Vocalidade-Tarcísio.... foram nos rastros sonoros
que estes discentes-pesquisadores deixaram no ambiente, nos pedaços de papel escritos por
eles que fui encontrando ressonâncias a medida que eu dava corpo às palavras escritas nesta
tese. Portanto, pergunto: o que é então formação? De quem é então a formação? Não seria a
palavra formação uma mistura de forma e ação? Uma movência, então? Um processo? Um
trânsito? Neste sentido, formação, mais do que ‘dar forma’, mais do que estabelecer um
conhecimento, é mover-se, no sentido Zumthoriano, é encontrar ecos que surgem na presença
de encontros vocais, encontros de vidas, daí vibrar, encontro de palavras, ou seja, de línguas,
de fluxos vocais, sonoros, expansivos, corpóreos... assim, a pedagogia carrega uma erótica, sem
a qual caímos na formação do estabelecer, fixar, autorizar, operando com uma pobre pedagogia
e banal sentido de formação.
Uma aprendizagem sonora que tem necessidade de dar-se ao outro. Necessidade que
transborda em direção ao outro. O que transborda, por si só, já rompe com a forma, transforma,
deixando rastros que encontram ressonâncias em algumas conexões que são nossas, do entre-
vozes. Caminho sonoro que foi sendo construído/inventado pelo próprio caminhar e, neste
percurso encontrávamos referências, pistas a partir de palavras-corpo, que encontravam ecos
na pesquisa, rastros que foram ganhando forma, se inventando no movimento de tornar vivo o
desejo de conhecimento via experiência. Conhecimento este que perpassa uma vida vivida
como professora, aquela que encontra no outro o seu gesto sonoro, a partir do encontro do outro
com a sua vocalidade e nesta convivência, o acessar de uma vocalidade movente.

190
REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

ALEIXO, Fernando. A Voz (do) Corpo: memória e sensibilidade. Urdimento – Revista de


Estudos de Pós-Graduados em Artes Cênicas/ Universidade do Estado de Santa Catarina.
Programa de Pós-Graduação em Teatro. – Vol.1, n° 6 (Dez. 2004) – Florianópolis:
UDESC/CEART, 2004. p. 149 – 163.

________________. Corporeidade da voz: voz do ator. Campinas: Komedi, 2007.

ALEXANDER, Gerda. Eutonia: um caminho para a percepção corporal. São Paulo:


Martins Fontes, 1983

ALBUQUERQUE, Luiz Botelho. Introdução ao Ensino Superior- A trajetória das


Universidades.

ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso. Introdução à filosofia da linguagem. São Paulo:
Parábola Editorial, 2004.

ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense. 1981.

ARANTES, Ester M. de M. Verbete Escutar. In: Pesquisar na diferença. Um abecedário.


FONSECA, Tânia M. G.,NASCIMENTO, Maria L. e MARACHIN, Cleci (Orgs). Porto
Alegre: Sulina, 2012.

ARAÚJO, Nelson. Pequenos Mundos: um panorama da cultura popular na Bahia.


Salvador: UFBA, Casa de Jorge Amado, 1988.

ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 2004.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo:Martins Fontes, 1999.

ASSUMPÇÃO, P. O mundo como organismo sensório. In: Tecido Afetivo: por uma
dramaturgia do encontro. Bardawil, Andrea (Org). Fortaleza: Cia da Arte Andanças, 2010.

BARBA, Eugenio. Além das Ilhas Flutuantes. São Paulo- Campinas: HUCITEC –
UNICAMP, 1991.

BARBA e SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: dicionário de AntropologiaTeatral.


Campinas: Hucitec, 1995.

BARBOSA, Ana Mae. Arte-educação: conflitos/acertos. São Paulo: Max Limonad, 1984.

BARBOSA, Ana Mae (org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez,
2002.

191
BARROS, L, KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, Eduardo,
KASTRUP, Virgínia e ESCÓSSIA, Liliana da (orgs). Pistas do Método da Cartografia:
Pesquisa-Intervenção e Produção de Subjetividade. Porto Alegre: Editora Sulina, 2009. P.
52 - 75

BEHLAU, Mara. Voz o Livro do Especialista. São Paulo: Revinter, 2001.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre
literatura e História da Cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1993.

BEUTTENMÜLLER, Maria da Glória & LAPORT, Nelly. Expressão vocal e


expressãocorporal.Rio de Janeiro: Enelivros, 1992.

BIÃO, A. Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Salvador: P&A Gráfica e Editora,
2009.

BIÃO, A.; PEREIRA, A.; CAJAIBA, L.C.; PITOMBO,R.(Orgs). Temas em


contemporaneidade, imaginário e teatralidade.São Paulo: Annablume, 2000.

BONDÍA, Jorge Larrosa. “Notas sobre Experiência e o saber de experiência”. In: Revista
Brasileira de Educação. N. 19. São Paulo, p.20-28, 2002.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Linguagem e Educação depois de Babel. Belo Horizonte:


Autêntica, 2004.

BROOK, Peter. Fios do tempo: memórias; tradução Carolina Araújo. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2000.

BURNIER, Luis Otávio. A Arte de ator: da técnica à representação. Campinas: Editora da


Unicamp, 1994;

CAETANO, P. O corpo intenso nas Artes Cênicas: procedimentos para o corpo sem órgãos
dos Bartenieff Fundamentals e Body Mindy Centering. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) –
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.

CHARTIER, Roger. Do palco à página: publicar teatro e ler romances na época moderna –
séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro, Ed. Casa da Palavra, 2002.

CAZNOK, Yara Borges. Música: entre o audível e o visível. São Paulo: UNESP, 2008.

CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia. São Paulo: Cortez, 2000.

CHENG, Stephen Chun-Tao. O tao da Voz. Tradução de Anna Nyström. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.

CLIFFORD, J. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de


Janeiro, 2002.
192
COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea: criação, encenação e recepção.
São Paulo: Perspectiva, 1998.

CORNAGO, Óscar. ¿Qué es la teatralidad?: paradigmas estéticos de la modernidad. Agenda


Cultural Universidad de Antioquía, set. 2009.

CORNAGO, Óscar. Nuevos enfoques sobre el Barroco y la (Pos)Modernidad: a propósito


de dos estudios de Fernando R. de la Flor). Dicienda, Cuadernos de filología hispánica.
Espanha, ed. Universidad Complutense de Madrid, 2004, p. 27 – 51.

CORNAGO, Óscar. Teatro postdramático: las resistencias de la representación. Disponível


em ARTEA (site de Investigación y Creación Escénica), 2006,
<http://artesescenicas.uclm.es/archivos_subidos/textos/290/teatropostdramatico_ocornago.pdf
>; acesso em: 07 abr 2014

COSTA, ANGELI e FONSECA. Verbete Cartografar. In: Pesquisar na diferença. Um


abecedário. FONSECA, Tânia M. G.,NASCIMENTO, Maria L. e MARACHIN, Cleci (Orgs).
Porto Alegre: Sulina, 2012.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva.
São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: ed. 34, 2010.

DINVILLE, Claire. A técnica da voz cantada. Rio de Janeiro: Enelivros, 1993.

FARINA, Cynthia. Formação Estética e Estética da Formação. In: FRITZEN, Janine


Moreira(orgs.). Educação e Arte: As linguagens artísticas na formação humana. Campinas:
Papirus, 2008. (p. 95 – 107).

FÉRAL, J. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Revista Sala Preta,
v. 8, Dep. Artes Cênicas da ECA-USP, 2008. P.197-210.

FERNANDES, Ciane. O Corpo em Movimento: o sistema Laban/Bartenieff na formação e


pesquisa em artes cênicas. São Paulo: Annablume, 2002.

FERREIRA, G. E COTRIM, C (org). Escritos de artistas. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

FRITZEN, Janine Moreira(orgs.). Educação e Arte: As linguagens artísticas na formação


humana. Campinas: Papirus, 2008.

FONSECA,T.; NASCIMENTO, M.L; MARASCHIN, C.(orgs).Pesquisar na Diferença. Porto


Alegre: Sulina, 2012.

FONTERRADA, Marisa T. de Oliveira. De tramas e fios: um ensaio sobre música e educação-


2.ed.- São Paulo: UNESP; Rio de Janeiro: Funarte, 2008.

FORTUNA, Marlene. A performance da oralidade teatral. São Paulo, Ed. Annablume, 2000.

193
GAYOTTO, L. H. Voz, partitura da ação. São Paulo: Summus, 1997.

GIL, José. Movimento Total: o Corpo e a Dança. São Paulo: Iluminuras, 2013.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:LTC, 1989.

GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos interdisciplinares. São Paulo:


Annablume, 2005.

GREINER, Christine. Indagações sobre o que pode (ser) um processo. In: GREINER,
Christine; SANTO, Cristina Espírito; SOBRAL, Sônia. (Orgs.). Cartografia Rumos Itaú
Cultural Dança: mapas e contextos. São Paulo: Itaú Cultural, 2010a. p.79-84.

GODARD, Humbert. Olhar Cego. In: Catálogo LYGIA CLARK. Da obra ao acontecimento.
Somos o molde. A você cabe o sopro. Organizado pelo Musée de Beaux-Arts de Nantes/e pela
Pinacoteca de São Paulo. Curadoria de Suely Rolnik e Corinne Desirens. 2006b.

_________________. Gesto e percepção. In: SOTER, Silvia. PEREIRA, Roberto. (Orgs.).


Lições de Dança 3.Rio de Janeiro: UniverCidade, 2001.

GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Trad. De Aldomar Conrado. Rio de


Janeiro: civilização Brasileira, 1971.

GROTOWSKI, Jerzy. A voz. In: O Teatro Laboratório de JerzyGrotowski 1959-


1969.Tradução para o português: Berenice Raulino. São Paulo: Perspectiva: SESC; Pontedera,
IT: FondazionePontedera Teatro, 2007.

GUBERFAIN, Jane Celeste(org.).Voz em Cena. Rio de Janeiro: Revinter, 2004.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zaar, 1987.

JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro, Imago


Editora, 1976.
KISHIMOTO, T. M. Jogo, Brinquedo, Brincadeira e a Educação. São Paulo: Cortez, 1999.

LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. 3.ed. São Paulo: Summus, 1978. (Coleção:
Comportamento, corpo, movimento)

LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana S. O que é imaginário.São Paulo: Brasiliense,


2003.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosacnaify, 2007

LE HUCHE, François; ALLALI, Andre. A voz. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

LEITE, João Denys Araújo, Um Teatro da Morte: transfiguração poética do Bumba-meu-Boi


e desvelamento sociocultural na dramaturgia de Joaquim Cardozo. Recife: Fundação de Cultura
Cidade do Recife, 2003.
194
LEITE, João Denys de Araújo. Flores D’América. Recife: UFPE, SESC Pernambuco, 2005.

LEMINSKI, P. Toda poesia: Paulo Leminski. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

LEONARDELLI, P. & FERRACINI, R. Dramaturgia do invisível, dramaturgia do possível,


dramaturgia da imanência: apontamento para uma potente dramaturgia microscópica.
Urdimento – Revista de Estudos de Pós-Graduados em Artes Cênicas/ Universidade do Estado
de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. – n° 20 (Set. 2013) – Florianópolis:
UDESC/CEART, 2013. p. 151 – 158.

LIGIÉRO Z.(Org). Performance e Antropologia de Richard Schechner. Rio de Janeiro: Mauad


X, 2012.

MARTINS, J.B. Dal Farra. A voz articulada pelo coração - Meran Vargens. Revista Sala
Preta, v. 14, Dep. Artes Cênicas da ECA-USP, 2014. P.132-134.

MARTINS L. M. Afrografias da Memória: O Reinado do Rosário no Jatobá. São


Paulo:Perspectiva, 1997.

MATOS, Elvis de Azevedo. Um Inventário Luminoso ou AlumiárioInventado: uma


Trajetória Humana de Musical Formação. Fortaleza: Diz Editor(a)ção, 2008.

MATURANA, H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

MATURANA, H. e PÖRKSEN, B. Del Ser al Hacer: los orígenes de la biología del conocer.
Santiago-Chile: Ed. J.C.SAEZ, 2004.

MATURANA, H. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Belo Horizonte: ED.


UFMG, 2009.

MATURANA & VARELA. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão


humana. São Paulo: Athena, 2011.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MIRANDA, Dilmar. Nós a música popular brasileira. Com participação especial de


ConsigliaLatorre. Fortaleza: Expressão gráfica Editora, 2009.

MOLIK, Z. e CAMPO, G. Trabalho de Voz e Corpo de Zygmunt Molik: O legado de Jerzy


Grotowski. São Paulo: Realizacoes Editora, 2012.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma/reformar o pensamento. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez;
Brasília, Df: Unesco, 2003.

MUGUERCIA, Magaly. Lo Antropológico en el discurso escénico latinoamericano. Revista


Apuntes de Teatro, nº 101, Santiago de Chile: Ed. PUC- Escuela de Teatro, primavera-verano
195
de 1990 - 91. p 88 – 100. Também disponível em [1990]:
<http://www.magarte.com/ensayos/lo_antropologico_en_el_discurso.html>. Acesso em: 22
nov 2003

NOVARINA, Valère. Diante da Palavra. Rio de Janeiro: 7Letras 2009.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.

PASSOS, Eduardo, KASTRUP, Virgínia e ESCÓSSIA, Liliana da (orgs). Pistas do Método


da Cartografia: Pesquisa-Intervenção e Produção de Subjetividade. Porto Alegre: Editora
Sulina, 2009.

PASSOS, E., BARROS, R. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In:


PASSOS, Eduardo, KASTRUP, Virgínia e ESCÓSSIA, Liliana da (orgs). Pistas do Método
da Cartografia: Pesquisa-Intervenção e Produção de Subjetividade. Porto Alegre: Editora
Sulina, 2009. P. 17 - 31

PASSOS, E. EIRADO, A. Cartografia como dissolução do ponto de vista do observador.


PASSOS, Eduardo, KASTRUP, Virgínia e ESCÓSSIA, Liliana da (orgs). Pistas do Método
da Cartografia: Pesquisa-Intervenção e Produção de Subjetividade. Porto Alegre: Editora
Sulina, 2009. 109 - 130

PAVIS, Patrice. A Análise dos Espetáculos: teatro, mímica, dança, dança-teatro, cinema. São
Paulo; Perspectiva, 2005.

PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. São Paulo: Perspectiva, 2008.

PEREIRA, Juliana Rangel de Freitas. Canção do Mar de Salema: um processo de criação de


ambiência sonora articulado pela voz do ator [Dissertação de Mestrado]. Salvador, UFBA,
2007

PERNIOLA, M. Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. São Paulo: Studio Nobel,
2000.

QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud: teatro e ritual. São Paulo: Annablume; Fapesp,
2004.

QUINTEIRO, Eudósia. Estética da Voz; uma voz para o ator. São Paulo: Summus, 1989.

RESENDE, Catarina. A Escrita de um Corpo Sem Órgãos. In: Anais do III Colóquio Franco
Brasileiro de Filosofia da Educação. UERJ, RJ, 2006.

RICHARD, Nelly. Residuos y Metáforas: Ensayos de crítica cultural sobre el Chile de la


Transición. Santiago-Chile, Ed. Cuarto Propio, 2001.

ROLNIK, Suely . Lygia Clark artista contemporânea. In: Nietzsche e Deleuze – Que pode o
corpo. RJ: Relume Dumará, 2002.

196
_______. O corpo vibrátil de Lygia Clark. In: Caderno Mais, Folha de São Paulo. São
Paulo.Abril, 2000.

_______.Pensamento, Corpo e Devir. Uma perspectiva Ético/Estético/Política no trabalho


acadêmico. In: Caderno de Subjetividade. V. 1. n. 2. Puc – São Paulo, 1993.

_______. Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. Diponível em http://caosmose.net/suelyrolnik/

ROUBINE, Jean Jacques. A arte do ator. Trd. Yan Michalski e Rosyane Trotta, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.1987.

______.______. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

RUSSO, Ieda; BEHLAU, Mara. Percepção da Fala: Análise Acústica do Português Brasileiro.
São Paulo: LOVISE, 1993.

SALLES, Cecília A. Gesto inacabado: processo de criação. São Paulo: Annablume,2004.

_______.________. Redes da Criação: Construção da obra de arte. São Paulo: Horizonte,


2006.

SANTOS, IdeletteMuzart-Fonseca dos. Memória das Vozes: cantoria, romanceiro & cordel.
Salvador: SECULT/FUNCEB, 2006.

SANTOS, IdeletteMuzart-Fonseca dos. Em Demanda da Poética Popular: Ariano Suassuna


e o movimento Armorial. Campinas: Editora da UNICAMP, 2009.

SCHAFER, Murray. A afinação do mundo. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

______.______. Educação Sonora: 100 exercícios de escuta e criação de sons. São Paulo:
Melhoramentos, 2009.

______.______. O ouvido pensante. São Paulo: UNESP, 1991.

SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador:


EDUFBA, 2008.

SOULAGES, François. Estética da fotografia: perda e permanência. São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2010.

TURNER, Victor W. O processo ritual. Petrópolis: Ed. Vozes, 1974.

VYGOTSKY, L.S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

WISNIK, José M. O som e o sentido: Uma outra história das músicas. São Paulo: Ed.
Companhia das Letras: 1989.

197
XAVIER, Jussara. Acontecimentos de dança: corporeidades e teatralidades
contemporâneas. Tese (Doutorado em Teatro) – Universidade do Estado de Santa Catarina,
Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2012.

ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

ZUMTHOR, P. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich.
São Paulo: Cosac &Näif, 2007.

ZUMTHOR, P. Introdução à Poesia Oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, M. L. Diniz Pochat, M.
I. de Almeida. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

ZUMTHOR, P. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. São Paulo: Ateliê editorial,


2005.

198
Textos das avós:

Menina

Dona América estava sentada aqui fazendo uma “estrada de ferro”; a renda mais complicada que eu já vi. Nunca vou aprender. Ela dominava
mais de oitenta bilros. Aí, de repente, as quatro janelas se abriram num estouro. Dona América saltou como uma jararaca! O rifle estava aqui
dona América agarrou o rifle. O tiro de um macaco veio primeiro e acertou o coração.( p. 88-89)

Menina

Aí, ele foi caindo e atirando. O tiro foi tão grande, que alumiou a casa toda. Parecia um relâmpago. Acertou o ombro de um. Os outros já
arrastavam as santinhas, tiraram os trajes de Nossa Senhora. Elas não resistiram a nada! Pareciam duas estátuas de santa.(p. 89)

Menina

Elas não estão mais aqui. Subiram a ladeira e pegaram a reta pra solidão (p. 111)

*Também a última rubrica do texto ( p. 118)

Texto para gravar voz em off ( Roberta, Raquel e Hylnara)

Texto dos 20 Anjinhos ( p. 36): América volta a costurar. À proporção que a máquina desembesta, a sala escurece....

Você também pode gostar