Gelamo RP DR Ia
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Gelamo RP DR Ia
Tese
Narrar a voz: trajetórias de uma voz-experiência em busca da voz própria
SÃO PAULO
2018
Renata Pelloso Gelamo
SÃO PAULO
2018
Renata Pelloso Gelamo
Banca examinadora:
_____________________________________________________
Orientadora: Profa. Dra. Luiza Helena Christov
voluntária – Instituto de Artes da Unesp
_____________________________________________________
Profa. Dra. Margarete Arroyo
programa de Pós-graduação em Música – Instituto de Artes da Unesp
_____________________________________________________
Profa. Dra. Ecleide Cunico Furlanetto
programa de Pós-graduação em Educação da UNICID
_____________________________________________________
Profa. Dra. Joana Mariz de Sousa – Faculdade Santa Marcelina
_____________________________________________________
Professor Dr. Anderson Zanetti – Faculdade SESI-SP de Educação
Este texto é um convite à leitura e à escuta dos processos vividos por mim
em busca de uma voz própria e que me levaram à criação do Ateliê de Voz, um
projeto constituído a partir das minhas experiências e dos percursos por mim
trilhados em diferentes áreas do conhecimento que têm a voz como interesse. Como
o leitor-escutador poderá constatar, a estrutura deste texto segue a mesma estrutura
do Ateliê de Voz que poderá ser conhecido em detalhes no capítulo 3 deste trabalho.
Quem lê ou escuta este texto está, portanto, de alguma maneira, participando do
Ateliê de Voz por meio da leitura da palavra escrita e da escuta das vozes presentes
(em forma de arquivos de áudio).
A estrutura textual que propus para esta tese mostra a criação e a sustentação
de um espaço onde pude nomear, em primeira pessoa, de um modo muito subjetivo,
os processos que vivi durante a minha história com a voz, passando por momentos
em que tive a minha voz silenciada, submetida ao que os outros tinham a dizer sobre
a minha voz ou ao que as áreas consagradas da ciência tinham a dizer à respeito da
voz (vide capítulo 1), assim como o contato com as vozes dos cantos de trabalho
das Destaladeiras de Fumo de Arapiraca, momento em que vivo uma experiência
de tombamento (LARROSA, 2014) e coloco em suspensão todas as verdades sobre
a voz até então conhecidas por mim (vide capítulo 2). Por fim, descrevo como
acontece o Ateliê de Voz, um espaço para a voz-experiência e para a voz própria, e
narro algumas experiências do encontro com as pessoas que dele participaram (vide
capítulo 3).
À medida em que fui narrando minha própria história com a voz para a
escrita desta tese, fui me dando conta de que me desloquei por várias cidades e vilas,
principalmente nos estados de São Paulo e Alagoas, e que esses deslocamentos se
constituíam em um mapa com traçados muito pessoais. Ao mesmo tempo em que
decalquei em mapas, bordados em tecido, os meus deslocamentos entre as cidades
de Osvaldo Cruz, Marília, Assis, São José do Rio Preto e São Paulo, construí as
narrativas de minhas experiências pessoais, profissionais e acadêmicas com a voz.
10
Mas há uma quebra nessa sequência de mapas quando tento decalcar o percurso
entre São Paulo e a Vila Fernandes, zona rural de Arapiraca (a Vila Fernandes não
está no mapa do Google, não se chega com GPS, nem com Waze, lá “não tem
endereço”).
Quando chego neste ponto do percurso em que não é mais possível seguir
consultando ou copiando mapas, me vejo criando outros recursos. Começo a
inventar. Ao mesmo tempo, começo a vislumbrar outros modos de compreender a
voz. É o início de minha própria cartografia (DELEUZE e GUATTARI, 1995) para
o trabalho com a voz.
É no encontro com as vozes “desobedientes” dos cantos de trabalho e com
as narrativas das Destaladeiras de Fumo de Arapiraca que perco o chão, o lugar
da estabilidade, das verdades sobre a voz, perco o rumo: os territórios até então
estáveis e conhecidos por mim (a Fonoaudiologia, a Linguística, a Técnica Vocal)
se desterritorializam (DELEUZE e GUATTARI, 1997). Sofro uma experiência de
tombamento (LARROSA, 2014)
Ao construir um espaço para enunciar com a minha voz durante a escrita
deste trabalho e mapear os lugares onde estive, decalcando ou inventado cartografias
de deslocamentos pelas cidades e pelas áreas do conhecimento com as quais tive
contato, fui construindo também uma proposta de trabalho chamada Ateliê de Voz,
inspirada justamente nos trânsitos que vivi, com suas contradições, tropeços, perdas
de rumo, caminhadas à pé, viagens de ônibus, de avião, esperas, encontros com
pessoas conhecidas e desconhecidas e suas vozes, seus silêncios e seus modos de
dizer.
No espaço do Ateliê de Voz, outras pessoas também puderam contar suas
histórias com a voz de uma maneira muito pessoal, subjetiva, construindo suas
próprias cartografias e seus próprios percursos, percebendo o quanto as nossas
histórias são atravessadas por outras histórias e o quanto a nossa voz está repleta
das vozes dos outros (BAKHTIN, 1992). E assim como no Ateliê de Voz, onde
as pessoas são convidadas a habitar o próprio corpo, a se apropriarem da voz, a
contarem suas histórias com a voz e perceberem o quanto somos atravessados pela
11
relação com o outro, eu também conto a minha ao leitor-escutador deste texto-
ateliê: do silenciamento onde é o outro “quem me diz, me nomeia”, à voz própria,
onde posso assumir a minha história, nomear a mim mesma e reconhecer que a voz
só se dá na relação com o outro.
Contar a própria história é inventar a própria cartografia. Ao invés de ter a
história contada por outros, com percursos decalcados, copiados, com palavras já
ditas, contar a própria história é uma possibilidade de se enunciar com voz própria,
a partir da narrativa da própria experiência. Do silenciamento, onde os outros
diziam a voz que eu deveria ter, à constituição de uma voz própria e um lugar para
o trabalho com a voz; do decalque à cartografia. Assim se fez este texto-ateliê.
Conforme será possível acompanhar durante a leitura deste texto, me
pergunto: seria possível ter uma voz própria? E, caso afirmativo, quais seriam os
caminhos para encontrar essa voz? Seria a voz-experiência um caminho possível?
Essas perguntas permeiam todo o texto desta tese.
A partir da escuta das narrativas das pessoas que participaram do Ateliê de
Voz durante o período de dois anos, entremeadas pela minha própria experiência
na atuação profissional, acadêmica e pessoal, levantei a hipótese de que os
silenciamentos da voz podem acontecer em diferentes âmbitos e estão ligados à
história de vida de cada pessoa (na família, no trabalho ou outras situações), mas
também à institucionalização ou formalização da educação vocal1 (aulas de voz –
canto, teatro, etc,) e clínica da voz2 (avaliação, diagnóstico e tratamento).
Minha hipótese é a de que as áreas da educação e da clínica da voz podem
funcionar, para algumas pessoas, como mecanismos de silenciamento, a depender
do modo como são realizadas, ao invés de promover espaços de construção de
1
O termo pedagogia vocal é comumente usado para uma área do conhecimento que se propõe à
pesquisa e ao ensino de canto, partindo de conhecimentos técnicos historicamente construídos e,
mais recentemente, das chamadas ciências da voz, tais como os estudos anatomo-fisiológicos e
acústicos, principalmente aqueles em que a voz pode ser de algum modo mensurável por testes ou
avaliações quantitativas.
2
A Fonoaudiologia é a área do conhecimento responsável pela terapia da voz considerada patológica
e também daquela que necessitaria de condicionamento para evitar possíveis problemas vocais. A
forma privilegiada de atuação do profissional desta área é a clínica, com atendimentos individuais e
personalizados, pensados de acordo com cada caso.
12
saberes. Se na atuação com a voz do outro, seja na educação ou na clínica, o que se
busca é a tentativa de formatar ou homogeneizar as vozes das pessoas, obedecendo
a padrões pré-estabelecidos por escolas de técnica vocal ou a uma formalização
ligada a padrões idealizados de saúde vocal (como se pode ver no capítulo 2), o
sujeito pode ficar desvinculado de sua própria voz, o sujeito pode ter sua experiência
empobrecida.
No clássico texto “O Narrador”, Walter Benjamin tematiza a respeito
do empobrecimento da experiência no pós-guerra, de onde as pessoas voltavam
emudecidas. No horror da guerra, a experiência de narrar é destruída, o sujeito é
silenciado, deixa de enunciar, deixa de poder narrar a si próprio, como podemos
ver nesse trecho: “No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam
mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência
comunicável.” (BENJAMIN, 1987, p. 198).
Apesar de não termos vivido o horror da guerra, nós, “homens
contemporâneos”, como nos diz Agamben (2005), também tivemos a nossa
experiência destruída, fomos privados de nossa biografia. A pobreza da experiência
e o silenciamento diante da impossibilidade de narrar os sentidos para a própria
existência é o horror a que estamos expostos. Para Agamben (2005),
13
voz que não pode desafinar, não pode errar, não pode tremer nem gaguejar. A voz
ideal, muitas vezes “vendida” para nós como uma forma a ser alcançada e que ainda
não temos, nos coloca na posição de devedores, de despossuídos, nos aliena e nos
tira a própria biografia, esconde nossa história, nos silencia. Entregues à lógica
do mercado e ao julgamento alheio, passamos a ver nossa voz como um objeto,
separada de nós mesmos, passamos a viver o horror da perda da experiência de
enunciar aquilo que nos faz sentido, com voz própria.
14
2014, p. 10), a voz-experiência poderá emergir, pode vir a ser voz própria.
A voz-experiência seria uma voz que escuta, pode ser escutada e pode narrar
a própria história, por isso é uma voz em relação com o outro; é uma voz que habita
o próprio corpo e que se expõe; que cuida de si, presta atenção, se percebe. Por
esse caminho da voz-experiência podemos chegar à voz própria: uma voz que pode
enunciar a si próprio, inventar a si próprio, num espaço que é público.
Passemos à escrita da voz e suas problemáticas, num exercício de explicitação
de processos, narrando minha própria experiência e os encontros com outras vozes.
15
Escrever a voz
Olhar e não encontrar, observar e esperar... me traz a voz que busco, me traz
o cuidado de si, a busca por si, observar a dor, saber da dor, sentir o ar entrando no
16
corpo, silenciar um pouco, demorar um pouco mais, dormir um pouco mais, adiar
para sentir mais e entender um pouco mais, expandir, ficar maior que do que eu era
antes, alongar, des-espremer. Cantar mais, ter espaços. Ter tempo.
Afinal, o que deve ser escrito? O que deve ser registrado em texto sobre a
voz própria?
A primeira pergunta que me fiz abriu brechas (e um problema) para um
pensamento em busca de um sentido para o ato de escrever sobre voz. Assim se fez
uma possibilidade de registrar em letra alguns de seus aspectos.
Experiência de escrever. Foram muitas as maneiras que usei para escrever
na tentativa de estar junto do/no texto e de encontrar um modo mais fluente para
registrar a voz. O que se fez registro em letra neste texto foi constituído de:
falar a tese: gravar a minha voz enquanto contava para algumas pessoas
sobre esta pesquisa e posteriormente transcrever o que foi falado;
17
Falo e escuto minha voz. Discordo do que escuto e corrijo minha fala. Escuto e
concordo. Transcrevo parte do que falei, complemento uma vez mais.
Escrever é para mim um ato de caminhar tropeçando, com angústias e
pesadelos. Sombra. Caos atordoante. Ausência de linearidade. Depois, ato de
estar presente, prazer pelo movimento e deslocamento que a escrita causa. Luz.
Caminhada que areja os pensamentos e me instiga a imaginar a escrita do mesmo
modo que tenho pensado a voz: escrita própria = voz própria. A letra marcada no
papel; a voz marcada no corpo do outro. Materialidades distintas; ambas numa
instigante potência de constituir subjetividades.
É a escrita e a voz como alteridade: escrita própria oferecida ao olho do
outro. Voz própria oferecida ao ouvido do outro. O registro de si no encontro com o
outro, seja ele a partir do contato do olho que lê as palavras grafadas pelo gesto de
escrever, seja pela vibração que as ondas sonoras que os gestos vocais provocam na
membrana timpânica de quem escuta. Uma alteridade que
nos faz diferir, [que] é desafio para a criação de uma escrita ética,
criação de uma escrita de si, desafio que nos convida a transformarmo-
nos em meio à própria escrita. Não se trata de um compromisso com
“o belo”, mas de um compromisso com a vida, com uma potência
de solidariedade que nos força a abandonar os ressentimentos.
(MACHADO, 2004, p. 147-148, grifos meus)
18
Narrar a voz, ensaiar a voz: pesquisa da experiência
O compromisso desta tese é dar a ler, a ver e a ouvir algumas das muitas
vozes que ocupam nossas cidades, vilas rurais, nossas vidas. Dar a ler, a ver e a
ouvir caminhos possíveis para a voz-experiência em busca de uma voz própria.
Ao modo comovido Roda Língua4 de estar na pesquisa acadêmica, e
enraizada que sou neste grupo interessado em pesquisar experiências de formação de
educadores, faço uma investigação narrativa e alguns ensaios a partir dos processos
que vivi e me fizeram tombar na busca por diferentes modos de atuar com a voz,
tanto com a minha própria quanto com a voz dos outros.
No grupo Roda Língua aprendi, no encontro com as pessoas que fazem
parte dele (pessoas que vieram de diferentes formações acadêmicas), um modo
muito apaixonado de fazer pesquisa. Orientado por três principais fundamentos (a)
transformar experiência em palavra; (b) falar de educação a partir de diferentes áreas
do conhecimento; (c) pensar o potencial das linguagens artísticas para a formação
do educador, o grupo tem por compromisso ampliar modos de pensar e expressar
o pensamento elaborado em processos de ensino e aprendizagem (CHRISTOV,
2012).
O fato de ter na experiência a base para todas as pesquisas do Roda Língua,
faz com que as pessoas do grupo estejam muito fortemente implicadas em seus
processos investigativos, uma vez que, invariavelmente, pesquisar a experiência
significa pesquisar a partir da própria experiência.
Mas, por que pesquisar a experiência?
No campo da Educação, o filósofo Jorge Larrosa, posiciona-se na defesa do
par experiência/sentido em oposição aos pares ciência/tecnologia ou teoria/prática,
provocando uma abertura para um outro modo de pensar, dizer e fazer educação.
Inspirado em Larrosa, o grupo se propõe, como já dito anteriormente, a ampliar os
modos de pensar e expressar, ou seja, renovar os modos de dizer a partir da própria
4
Apelido do grupo de pesquisa Arte e Formação de Educadores do Instituto de Artes da Unesp
(cadastrado no CNPq), coordenado por Luiza Helena da Silva Christov.
19
experiência e não a partir da reprodução de discursos muitas vezes já consagrados,
repetidos e das palavras esgotadas de sentido. Como Larrosa nos alerta,
20
e a partir do qual se experimenta o mundo. E o tipo de saber pedagógico
a que nos referimos aqui, mais que um saber subjetivo é um saber com
sujeito, um saber com ponto de vista, um saber que busca manter a
relação, o vínculo com a experiência, com a realidade das coisas tal
e qual são vividas e sentidas. Não visa, pois, a um saber universal e
abstrato. Não significa, porém, que não mostre a complexidade, a
estrutura dessas mesmas coisas. A perspectiva da experiência consiste
em adotar um ponto de vista a partir do olhar da educação, que se move
entre o subjetivo e o objetivo, isto é, entre o interior e o exterior, que
necessita olhar para dentro e para fora, que vai e vem entre o micro (o
próximo e imediato da experiência) e o macro (aspectos estruturais,
institucionais, ideológicos, etc, mas que tem valor na medida em que
podem ser validados pela experiência, isto é, reconhecidos na forma
em que se fazem presentes ou afetam o que se vive e como é vivido).
(CONTRERAS e PÉREZ de LARA, 2010, p. 46)
entre o que acontece e o que suscita como pergunta (...), entre o que esse
acontecimento e esse suscitar o conduzem a perguntar-se. A pergunta (...),
como inquietude, acompanha toda a viagem. Nesse sentido, pesquisar
é uma experiência, ou melhor dizendo, abrir-se à possibilidade de ter
uma experiência. E como toda experiência, nos implica subjetivamente;
e como toda experiência, é alguém que a vive. Não há modo de dar
conta da experiência sem um sujeito, sem um protagonista, sem alguém
que a sustente. E isso é assim também na experiência do investigador.
(CONTRERAS e PÉREZ de LARA, 2010, p. 46)
21
tradições, as contradições, lógicas e paradoxos. A experiência de trânsito pelas
diferentes realidades me suscitou perguntas, me trouxe aprendizados e outras tantas
coisas ainda sem nome.
Dentro da perspectiva de investigação da experiência, que “busca aquele
lugar em que podemos significar subjetivamente as ideias, e busca aquele saber
que podemos sentir próximo, como algo que tem a ver com o que vivemos, com
como vivemos, ou porque vivemos” (CONTRERAS e PÉREZ de LARA, 2010, p.
47), trago os meus aprendizados com a voz e os caminhos percorridos por mim em
busca de uma voz-experiência e de uma voz própria, na tentativa de não dissociar o
que sou do que sei, na tentativa de me posicionar nessa pesquisa como quem
22
Identifico-me com as predileções do grupo, pelo modo “esquisito” das
pessoas falarem, pelos silêncios que emergem, pela conversa que parece caótica,
mas que faz produzir encontros, pela coragem de se colocar a escutar. Na voz da
Luiza Christov5, o grupo
sente especial predileção pelo ensino inferior, dos mestres não arrogantes
que hão sempre de estar curiosos, das crianças que não aprendem e
sinalizam com isso que não somos robôs e que professor não faz a
cabeça de estudante. Sentimos especial predileção pelo erro, pelo torto,
pelo avesso, pelo escuro, enfim, por tudo o que gera perguntas e que
intriga. (CHRISTOV, 2016, p. 10)
5
Você pode escutar esta citação com a voz da própria autora na faixa 1 do CD que acompanha este
trabalho (versão impressa) ou no link para a versão digital: https://goo.gl/1W87o4
23
da experiência e não correr o risco de me submeter a um discurso intelectualizado
e desconectado das minhas experiências. Como Macedo e Dimenstein nos dizem,
Narro e ensaio a voz assim como nomeia Larrosa (2004), como um “modo
experimental do pensamento, o modo experimental de uma escrita que ainda
pretende ser uma escrita pensante, pensativa, que ainda se produz como uma escrita
que dá o que pensar” (p. 32), como um “modo experimental (...) da vida, de uma
forma de vida que não renuncia a uma constante reflexão sobre si mesma, a uma
permanente metamorfose” (p. 32) e como “o que nos acontece agora, quem somos
agora, o que podemos pensar e o que podemos dizer e o que podemos experimentar
agora, nesse exato momento da história.” (p. 34)
Junto da escrita, trago mapas por mim elaborados dos territórios em que me
desloquei, cartografias inventadas e as gravações de algumas vozes de pessoas com
as quais me encontrei nos percursos e que foram fundamentais para a elaboração
desta investigação.
24
Na próxima seção, trago narrativas dos acontecimentos e deslocamentos,
reconstituídos pela memória, que estão ligados à minha voz, da infância à atuação
profissional, passando por várias cidades do interior do estado até a sua capital, São
Paulo. De São Paulo à Vila Fernandes, sigo com as narrativas e os aprendizados
sobre voz no contato com as Destaladeiras de Fumo de Arapiraca e os seus cantos
de trabalho. Por fim, sintetizo o quanto todos os deslocamentos que realizei entre as
cidades e as áreas do conhecimento me levaram a criação de um projeto chamado
Ateliê de Voz.
25
26
1 Narrativas, deslocamentos
1.1 Das memórias sem tempo e sem lugar: minha voz, minha história
com voz
Figura 1 Bordado livre do mapa do estado de São Paulo e da cidade de Osvaldo Cruz.
27
uma fazenda do interior do estado de São Paulo. Ela cantava trabalhando, cantava
para os filhos, cantava para a minha avó até o fim de sua vida.
A memória também me leva à escuta da voz da minha mãe cantando o
acalanto do boi para eu dormir. A lembrança é quase matéria, quase escuto ela cantar
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As cigarras cantavam no quintal de casa.
Os cães latiam durante as minhas noites em claro.
Minha vizinha tinha uma voz estridente e gritava muito.
Minha avó cantava junto com os cantores que ouvia no rádio de pilha.
O padre tinha uma voz mansa ao falar com as crianças na missa.
Os cantos das procissões mais pareciam com um choro coletivo.
A cantiga de roda era divertida, todo mundo cantava e dançava junto.
Rezar o terço era cansativo porque as vozes se repetiam.
De escuta em escuta, ter voz se tornou um desejo. Com 13 anos fiz minha
primeira aula de canto. Lembro-me como se fosse hoje: a primeira lição da aula
foi a respiração. A Juliana6, minha professora, me ensinou a sentir no corpo como
é que eu poderia movimentar conscientemente meu diafragma e deixar com que
o ar entrasse nos meus pulmões para não perder o fôlego ao cantar. Deitada no
chão, com um livro sobre o abdômen, eu podia sentir a movimentação da minha
musculatura abdominal, do meu diafragma.
Conheci também, pela primeira vez, exercícios de vibração de lábios e de
língua que eram usados como técnica de aquecimento da voz antes de cantarmos.
Depois fazíamos vocalizes enquanto mastigávamos um cravo para ajudar a cantar e
às vezes comíamos maçã para limpar a voz.
O ar que entrou nos meus pulmões, pela primeira vez de modo tão consciente,
abriu espaços, espaços do tipo buraco-no-corpo.
E uma vez esburacada, com espaços para fluxos de ar no meu corpo, eu
podia respirar melhor e até cantar. Passei então a fazer parte de uma banda na igreja
como cantora. Cantei por três anos e, com essa experiência, fui ficando instigada
cada vez mais pela voz. Eu queria dar nome à ela, eu queria estar com quem eu
achava que sabia da voz.
6
Nome fictício.
29
Figura 2 Bordado livre do mapa do estado de São Paulo e o deslocamento entre Osvaldo Cruz e
Marília.
produção vocal
o sistema fonador é composto de três partes: o sistema respiratório,
as pregas vocais e as cavidades de ressonância. Cada parte tem uma
finalidade específica (...). A finalidade do sistema respiratório é a da
comprimir o ar nos pulmões, gerando uma corrente de ar que pressionará
30
as pregas vocais e o espaço glótico, e por fim escoará pelo trato vocal.
(...) fonação significa, neste contexto, produção de som pela vibração
das pregas vocais. O fluxo de ar que atravessa a glote durante a fonação
e que provoca a vibração das pregas vocais produz um som, a fonte
glótica, que então se irradia pelo trato vocal. O trato vocal, por sua vez,
transforma as características acústicas da fonte glótica, enfatizando
diferenças entre seus parciais. Essa transformação é determinada
pela configuração do trato vocal, e esta, por sua vez, pela articulação.
Articulação nesse contexto significa, portanto, configuração do trato
vocal, e é determinada pela atuação coordenada de várias estruturas
fonoarticulatórias, ou articuladores: lábios, mandíbula, língua, palato
mole, faringe e laringe. (SUNDBERG, 2015, p. 29)
7
Refiro-me à experiência pessoal que tive durante o curso de graduação em Fonoaudiologia na
Unesp (Marília) entre os anos de 1998 e 2001.
8
Rouquidão, aspereza e soprosidade eram os termos usados na época para se referir à qualidade das
vozes consideradas patológicas.
31
neurológicas congênitas e perinatais, congênitas extralaríngeas, alterações
sindrômicas), disfonias endócrinas (regulação hormonal, distúrbios hormonais),
disfonias psiquiátricas (transtornos psiquiátricos), disfonias neurológicas,
disfonias por refluxo gastroesofágico, disfonias por câncer de cabeça e pescoço.
(cf. BEHLAU, 2001 e 2005).
9
ressalto que essa era uma visão corrente no período a que me refiro e que as pesquisas sobre a voz
cantada dentro da própria Fonoaudiologia foram se modificando com o passar do tempo.
32
Além de não me sentir atraída pelo modo de entender a voz da Fonoaudiologia
que acabava de conhecer, o proporcional distanciamento da prática com a minha
aproximação da teoria sobre a voz cantada me deixava inquieta. Algo estava fora de
lugar. Meu interesse estava muito mais próximo da voz como expressão artística do
que de uma voz reduzida aos seus ajustes motores.
Decidida a voltar para a prática do canto, no terceiro ano da faculdade, em
2000, fiz um teste e fui aprovada para o coral da universidade, o Coral Boca Santa,
composto por alunos, professores e funcionários da Unesp de Marília. O coral era
dividido em quatro vozes e tinha um repertório variado. Cantando no grupo aprendi
noções de afinação e “impostação” vocal, sobre como cantar de forma homogênea
com os outros cantores.
O termo impostação é utilizado na área da Técnica Vocal indiscriminadamente
para ajustes possíveis no canto, geralmente, o canto erudito. No coral em questão, o
uso do termo se referia a sonoridade resultante do espaço dentro da boca alcançado
pela elevação do palato mole e abaixamento da língua, somado aos ajustes de pregas
vocais e ao registro de cabeça. Comumente se espera que um coral soe como uma
“única voz”, sem diferenças de timbre e de afinação entre os cantores.
Depois de um tempo, passei a fazer a preparação vocal dos coralistas com
base nos conhecimentos da área da Fonoaudiologia, dos livros e das aulas, e da
área da Técnica Vocal, cujos conhecimentos e práticas tive contato a partir de uma
oficina com a então professora de canto do Instituto de Artes da Unesp, a Martha
Herr10.
10
Martha Herr, nascida nos Estados Unidos e radicada em São Paulo em 1978, foi uma grande
cantora lírica (soprano), regente de coral e professora de canto nos cursos de graduação e de pós-
graduação do Instituto de Artes da Unesp. Considerada uma intérprete especialista em canção erudita
brasileira, além de sua carreira artística, orientou vários trabalhos de pesquisa sobre o tema. Martha
Herr faleceu no ano de 2015.
33
Figura 3 Bordado livre do mapa do estado de São Paulo e os deslocamentos entre Osvaldo Cruz,
Marília e São Paulo.
34
forma de trabalho possível naquele momento:
A técnica vocal aqui deve ser vista como um item adicional que possibilitará
a veiculação da interpretação, fazendo com que seja dado um caráter mais
expressivo para a música, e não um item isolado que não se relaciona com
a interpretação já que
35
Figura 4 Bordado livre do mapa do estado de São Paulo e os deslocamentos entre Osvaldo Cruz,
Marília, Assis e São Paulo.
36
e integrá-los ao sujeito que canta e produz efeitos de sentido com sua própria voz.
Figura 5 Bordado livre do mapa do estado de São Paulo e os deslocamentos entre Osvaldo Cruz,
Marília, Assis, São José do Rio Preto e São Paulo.
37
os de natureza linguística (tais como os prosódicos e os semânticos),
constitutivos da interpretação/atuação do cantor. (GELAMO, 2006, p.
20)
Meu objetivo era chamar a atenção para o fato de que “voz e linguagem
são fenômenos indissociáveis” (GELAMO, 2006, p. 21) e, para justificar essa
afirmação, era necessária uma busca fora do campo da Fonoaudiologia e dentro do
campo da Linguística, mais especificamente nos estudos sobre a prosódia:
Durante os dois anos de mestrado que cursei na Unesp de São José do Rio
Preto, na área de concentração de Análise Linguística, aprendi a ouvir os sons de
outra maneira, analisando-os e buscando nomear os possíveis sentidos que o uso da
voz trazia para o texto.
38
E fui adormecer como um despacho
Deitadinha no capacho
Na porta do enjeitados
Cresci olhando a vida sem malícia
Quando um cabo de polícia despertou meu coração
E como eu fui pra ele muito boa
Me soltou na rua a toa
Desprezada como um cão
E agora que eu sou mesmo da virada
E que eu não tenho nada nada
Que por Deus fui esquecida
Irei cada vez mais me esmolambando
Seguirei sempre cantando na batucada da vida
39
Figura 6 Bordado livre do mapa do estado de São Paulo e os deslocamentos entre Osvaldo Cruz,
Marília, Assis, São José do Rio Preto e São Paulo.
40
Figura 7 Bordado livre do mapa da cidade de São Paulo.
Decidida a ficar perto dos cantores e do lugar onde eu achava que teria mais
possibilidades de me aproximar e me aprofundar na pesquisa e trabalho com as
Artes, me mudei para São Paulo.
Neste mesmo ano tive uma importante experiência profissional na Faculdade
Santa Marcelina, ao ser convidada para oferecer a disciplina Fisiologia da Voz em
conjunto com o cantor Wladimir Mattos11 dentro do curso de Música. Foi um período
de um mês em que tive contato com alunos de canto e instrumento, momento em
que atuei como educadora e fui descobrindo junto com eles como falar sobre a
voz, como sentir a voz no corpo, como organizar didaticamente informações sobre
anatomia e fisiologia da voz para o canto. Selecionei canções para ouvirmos juntos
e analisarmos as características vocais presentes na interpretação, mostrei análises
acústicas, fomos juntos para o laboratório e gravamos as vozes. Foi uma experiência
importante, principalmente pelo contato com os alunos que me ajudaram a me
constituir como educadora em voz.
11
Atualmente Wladimir Mattos é professor de prosódia, dicção, fisiologia da voz, pedagogia do
canto, dentre outras disciplinas dos cursos de graduação e pós-graduação em Música e Artes do
Instituto de Artes da Unesp.
41
Em São Paulo, fui procurar um lugar para, além de trabalhar com cantores,
cantar também. E é neste momento da história que o lugar de potência que até
então eu vinha construindo com a voz sofre uma quebra. Fiz inscrição num teste
para cantar no coral de uma universidade, porém, meu nome não apareceu na lista
dos aprovados. Apesar de não saber o motivo de não ter sido aprovada, entendi que
não poderia cantar nesse coral e nem em qualquer outro lugar. A resposta “não”
me paralisou e decepcionou profundamente. Hoje, lembrando desse fato, consigo
dizer que o “não” colocou em xeque toda a construção de experiências físicas e
intelectuais que eu havia feito com a voz. Fui aos poucos deixando de cantar e, por
um período de 10 anos após esse acontecimento, silenciei o meu canto.
O silenciamento que me foi imposto (ou que me impus) causou um ponto de
tensão e suspensão ao meu canto, ao modo de me dizer, de me subjetivar com a voz.
Chamo atenção para este ponto fundamental da minha história com a voz: o que
aconteceu foi que a voz que eu oferecia não passou na “peneira” que separava a “voz
que podia cantar” da “voz que não podia cantar” dentro daquele contexto. Escancarou-
se diante de mim um mecanismo de silenciamento e uma política científica/artística
junto de suas “verdades” sobre a voz: só uma voz merece ser enunciada, aquela que
cabe nos cânones. Apesar de não saber em qual aspecto minha voz fora reprovada
no teste para o coral, ela não coube dentro de uma forma pré-concebida para aquele
tipo de canto. As ciências da voz (a Medicina, a Fonoaudiologia, a Técnica Vocal)
tem seus padrões vocais e esses padrões excluem as pessoas que não se enquadram
por algum motivo nos modelos sonoros estabelecidos. Atualmente, tenho especial
interesse justamente por essas vozes que foram “excluídas”.
Enquanto isso, para poder me sustentar financeiramente em São Paulo,
comecei a fazer atendimentos clínicos em um consultório que dividia com
psicanalistas. Recebi muitos encaminhamentos de crianças com problemas de
linguagem, principalmente psicóticos e crianças com diagnóstico de Síndrome
de Asperger12. Fui me distanciando da área de voz e dos cantores. Vez ou outra
12
uma espécie de autismo em que o indivíduo apresenta “ilhas” de conhecimento, porém tem
dificuldade em se comunicar e se relacionar com outras pessoas.
42
chegava uma pessoa procurando atendimento para problemas vocais. Dentre elas,
chegou uma cantora em busca de terapia que me ajudou a elaborar uma importante
relação entre a voz e o sujeito.
Foi na atuação clínica dessa cantora que tive uma das mais marcantes
experiências como terapeuta. Com diagnóstico de disfonia, a Ana13 me procurou
para terapia fonoaudiológica. Durante o processo terapêutico, como de praxe,
fazíamos exercícios para diminuição dos sintomas de sua patologia. Ana é uma
cantora de samba e sua queixa estava relacionada às quebras que tinha em sua
voz quando cantava notas agudas. Sempre, depois de feitos os exercícios, pedia
a ela que cantasse, tentando levar para o canto os ajustes “adquiridos” durante os
exercícios, mas a quebra na voz continuava aparecendo.
Na tentativa de testar na prática o que tinha teorizado no mestrado, de que
a voz é linguagem, propus o estudo do texto da canção Camisa Amarela, de Ary
Barroso. Discutimos a respeito do machismo presente na letra e do posicionamento
permissivo da figura feminina com relação ao homem que vai ao carnaval e, em seu
retorno, a mulher está esperando por ele. Ana, ao cantar essa música, aparentemente
não tinha se posicionado, possivelmente por estar ocupada com os movimentos das
pregas vocais, com sua voz como “objeto”, mas depois desse estudo, decidiu cantar
a música ironicamente, como quem ri da situação. Nesse momento não há quebra
na voz. Na mudança do lugar enunciativo, há também a mudança na voz, no ajuste
motor. Não há mais rouquidão nem quebra de registro ao cantar a canção:
13
Nome fictício.
43
Mais tarde o encontrei num café zurrapa do Largo da Lapa
Folião de raça, bebendo o quinto copo de cachaça
Isso não é chalaça!
Apesar de sua voz ser considerada uma voz fora dos padrões estabelecidos
como normalidade, Ana se posiciona diante da canção e de sua vida. Ela assume
sua voz, assume o seu dizer e cuida dele. O corpo (pregas vocais que tem) enuncia a
si mesma de um outro lugar, aquele em que ela, como mulher, não aceita discursos
de submissão. O seu reposicionamento enunciativo faz reajustar sua musculatura
laríngea e faz mudar a sua sonoridade. A esse mecanismo de silenciamento ela não
se submete.
Dentro dessa relação de poder, Ana assume possibilidade de ter sua voz
própria e me ensina que ter voz é poder escolher ser quem se é. As ciências médica,
fonoaudiológica, técnica e seus autores, junto de suas verdades, foram por mim
questionadas diante desse acontecimento/experiência.
É essa voz que me interessa nesse momento da vida, em que escolho não
fazer da voz um lugar do conforto, nem da assertividade, nem da padronização, nem
do sentido definido, nem da sonoridade homogênea. A voz que busco investigar
é a voz-experiência. Essa voz vai sendo construída junto com pessoas que vou
encontrando na minha caminhada, na experiência de encontro com o outro. A
44
experiência de encontro com o outro
45
de outro. Nunca consegui chegar “lá”, nunca consegui fazer igual a ela. O “lá”
era inatingível, a professora também é inatingível. Eu ia precisar “estudar muito”,
“ralar muito”, “sofrer muito”, “treinar muito”. Ela tem tudo, eu não tenho nada. Ela
tem voz para cantar, eu não tenho. Era minha sensação nas aulas. Mais uma vez há
silenciamento da voz, camuflada por métodos de ensino do canto. Depois de um
tempo busquei outra professora com outro perfil.
Com a professora Laura15 a aula de canto tem outro sentido. Ela me diz na
primeira aula que não tem um método, que está aprendendo a ensinar, não tem uma
técnica vocal, que não vai me ensinar, mas que podemos fazer um som juntas, um
som que vai nascer do nosso encontro e que vai ser construído a cada encontro de
uma maneira diferente. É uma voz-presença. É a voz própria que achou espaço para
soar. Segundo ela, qualquer tipo de som é possível, desde que estejamos conectadas.
Nesse modo de cantar a partir da improvisação vocal não devo seguir modelos
porque posso cantar o que quero. Diante desse espaço concedido, canto com uma
voz que nem sabia que tinha. Cantávamos improvisando uma de frente para a outra,
sem texto, desapegadas da língua. É voz que quer se expressar, voz que rompe o
mecanismo do silenciamento.
Continuando o fio da narrativa sobre minhas experiências com a voz, pontuo
o momento em que me encontro com o professor Alberto Ikeda16 e que considero
como um acontecimento que me levou a buscar caminhos que depois percorri com
a voz na Cultura Popular.
Comecei a assistir as aulas de Etnomusicologia com ele, também no Instituto
de Artes da Unesp, no curso de graduação em Composição e Regência. Era uma
disciplina que, no meu imaginário, se aproximava da canção popular.
Uma vez em contato com o professor Ikeda, conheci um outro universo, o
da cultura popular e junto com esse universo, uma outra possibilidade para a voz.
15
Nome fictício.
16
Alberto Ikeda é professor aposentado das disciplinas Etnomusicologia, Cultura Popular e
Seminários de Pesquisa em Música do Instituto de Artes da Unesp. Atualmente é professor
colaborador do Programa de Pós-Graduação em Música da USP e professor co-orientador do
programa de pós-graduação em Integração da América Latina da USP.
46
Fiquei muito curiosa por aquelas cantorias com voz forte, metálica, geralmente
realizadas em grupo e intimamente ligadas a algum ritual ou festa, em sua maioria,
desvinculadas do palco. Eu havia gostado muito dessas vozes que me soavam como
desobedientes porque elas não cabiam nos modelos que até então eu havia aprendido
dentro da Fonoaudiologia, da Linguística, da Técnica Vocal, da canção erudita e
da canção popular. Eu estava completamente instigada por esse acontecimento
sonoro/vocal, mas não tinha a menor ideia do que fazer com esse desconforto/
curiosidade. Retomarei mais adiante no texto como amarro essa descoberta vocal
em meu percurso com a voz. Mas é curioso pensar que até então eu desconhecia por
completo a música da chamada Cultura Popular, mesmo vindo de uma cidade muito
pequena no interior do Estado de São Paulo, onde supostamente deveria existir esse
universo musical. O que faz mudar meu olhar ao me deparar com uma voz que é
também brasileira? Por que eu não conhecia? Provavelmente, os modelos vocais
por mim conhecidos estivessem ligados ao rádio e à televisão, à Fonoaudiologia
e sua busca por vozes “saudáveis”, à voz do coral e sua homogeneidade, à voz do
canto erudito e sua impostação.
* * *
47
coletivamente e fazer uma análise dos sentidos atribuídos por essas pessoas à
experiência de cantar.
O projeto vai mudando de rumo assim que começo a me aproximar das
narrativas e a escutar as pessoas que cantam ou conduzem cantos coletivos. Escutei
o Zuza Gonçalves, a Cecília Valentim, a Gisele Cruz, a Mônica Thiele Waghabi.
A cada encontro com essas pessoas me chamava a atenção a narrativa cheia de
potência ao falar da emoção que traziam na voz ao cantar, o quanto a voz tinha
a ver com a própria identidade, o prazer que o canto trazia, as histórias de como
aprenderam a cantar, o motivo que as levou a cantar. Posteriormente, fui até
Arapiraca para escutar as narrativas sobre os cantos de trabalho das Destaladeiras
de Fumo. O encontro com elas e com as outras pessoas da Vila Fernandes, zona
rural de Arapiraca, foi uma experiência de choque, me fez estremecer, me fez olhar
para trás e fez abrir para outras palavras, para outras narrativas. Percebo que há
mais voz para além daquelas que eu já conhecia.
48
49
2 Experiência em Arapiraca
Figura 8 Bordado livre do mapa do estado do Brasil e o deslocamento a cidade de São Paulo e
Arapiraca.
Neste capítulo, narro meu deslocamento de São Paulo até a Vila Fernandes,
zona rural de Arapiraca, e o encontro com as pessoas que lá vivem, principalmente
seu Nelson Rosa, dona Francisca, dona Rosália e as mulheres do grupo das
Destaladeiras de Fumo. Em busca de escutar outras vozes, diferente daquela que
50
havia até então conhecido na minha vida pessoal, profissional e acadêmica, conforme
apresentei na seção anterior, busquei me aproximar e escutar o que essas pessoas
tinham a dizer a respeito de suas experiências com os cantos de trabalho, quando, no
passado, trabalhavam com o plantio, colheita e destalação do fumo. O contato com
suas histórias, com seus cantos, com seu modo de vida foi um acontecimento, que
me permitiu viver experiências nesse percurso entre São Paulo e a Vila Fernandes,
possibilitando atribuir outros sentidos para a voz.
Ao narrar minhas experiências, busquei dialogar com ideias de alguns
autores consagrados como Dewey, Deleuze, Larrosa, Bárcena, Skliar, Bosi, mas
também com as narrativas de seu Nelson, dona Francisca, dona Rosália, dona
Josefa, Socorro, Isabel, dona Maria e Rosinalva de Arapiraca, além de outras
pessoas que encontrei no caminho durante esta investigação. Todas elas e todos eles
me ajudaram a enunciar o vivido por mim nesse deslocamento em busca de vozes
e deram sustentação às minhas elaborações, às minhas sínteses; abriram para mais
perguntas e para a curiosidade.
51
da vivência, mas no sentido do que nos acontece e nos faz mudar de lugar.
A busca pela voz me levou à Vila Fernandes, onde vive um grupo de mulheres
que no passado trabalhavam plantando, colhendo e destalando as folhas do fumo.
A lida com o fumo era sempre acompanhada de cantos, os chamados cantos de
trabalho das Destaladeiras de Fumo de Arapiraca.
Diferentemente do que eu havia experimentado com o canto até então no
lugar da padronização, da patologização e do silenciamento, durante os dias em que
estive com elas, pude aprender a partir de suas narrativas um outro sentido e uma
outra maneira de viver o canto: nos cantos de trabalho ninguém “ensina” a cantar,
todos cantam juntos e assim vão ganhando voz; cantar faz parte da própria vida; se
canta para não dormir enquanto se trabalha, se canta para aliviar o peso do trabalho,
se canta como diversão. Não há seleção: todos podem cantar no salão de fumo17.
Conto como foi que cheguei até elas. Conto também o que foi que ouvi da
boca delas ao falarem sobre a experiência de cantar e ao cantarem os cantos de suas
vidas. Minha chegada até as mulheres cantadeiras foi por meio do seu Nelson Rosa.
Seu Nelson18 era, no momento em que estive em Arapiraca, o mestre que cuidava
do grupo chamado Destaladeiras de Fumo de Arapiraca. Aqui também trago o que
ouvi dele, suas histórias e seus cantos.
Junto dessas vozes certamente ouvi tantas outras vozes que permeiam o que
dizem e o que cantam. A sensação é de que essas mulheres19 trazem em suas vozes
muitas outras vidas, como reverberações de cantos de outras mulheres que pisaram
aquele chão, o chão que “guarda a música de todas as pisadas” (SKLIAR , 2014,
p. 90).
O deslocamento que fiz ao encontrar com as vozes de Arapiraca foi para
mim um acontecimento, como aquele enunciado por Bárcena:
17
Ainda que houvesse algum tipo de hierarquia ou controle de quem canta dentro do salão, acolho
as narrativas tal como as escutei e como me ajudaram a pensar e reelaborar os sentidos para a voz.
18
Seu Nelson Rosa faleceu no dia 15 de setembro de 2017.
19
Mais adiante trago uma discussão a respeito dos atravessamentos histórico-culturais que
constituem a nossa voz própria (cf. capítulo 3).
52
acontecimento é aquilo de onde emerge a experiência, o que “nos faz
ser capazes de surpreender-nos com aquilo que, ao experimentá-lo, faz
experiência em nós, deixando-nos sem palavras, mas orientando-nos
em busca do novo, cuja estranheza não chegamos a familiarizar e cuja
novidade a desativar.” (BÁRCENA, 2004, p. 39)
20
Renata Mattar é também diretora geral da Cia Cabelo de Maria fundada em 2007 com a proposta
de compartilhar pesquisas musicais feitas por ela em mais de 20 anos de viagens pelo Brasil
registrando músicas da tradição popular. Também em 2007 o CD Cantos de Trabalho foi gravado
pela Cia Cabelo de Maria (Selo Sesc). Para mais informações, acesse: http://www.ciacabelodemaria.
com
53
Fernandes onde vivem as mulheres que fazem cantos de trabalho para destalar
fumo.
Encantada pelas histórias e principalmente pelo que ouvi sobre os cantos,
Renata me fez perceber a força e a paixão que a arrebataram por aquele modo de
viver. Me passou números de telefone e me recomendou à dona Rosália e ao seu
Nelson Rosa. O brilho nos olhos dela ao lembrar dos cantos me agarrou. No dia
seguinte já estava eu ao telefone com dona Rosália e com seu Nelson Rosa.
Dona Rosália disse:
- venha! Fale com seu Nelson que ele cuida de tudo.
Seu Nelson também fez o convite para estar em Arapiraca e ficar
hospedada em sua própria casa.
Meu corpo entendeu aí o começo de uma história que ia dar pano para
manga. E começou cedo, já na hora de anotar o endereço quando seu Nelson me
diz que lá não tem endereço, que ele mora na casa amarela, em frente ao imbuzeiro.
Me explica que para chegar em sua casa eu deveria ir até a rodoviária de Maceió e
pegar uma van até Arapiraca, pedir ao motorista para descer no posto São Francisco
(posto de gasolina). Lá perto do posto, eu poderia pegar um ônibus que vai pra Vila
Fernandes ou ir de táxi.
Qualquer problema que eu tivesse poderia procurar seus netos, donos de
uma cerealista que ficava em frente ao posto. Eu deveria descer no imbuzeiro.
Na minha cabeça a pergunta era:
- como será que eu ia conseguir chegar naquele lugar sem endereço?
54
Figura 9 notas sobre como chegar à Vila Fernandes – zona rural de Arapiraca.
Na minha cabeça era um lugar que não existia, porque no meu modo de
entender o que é uma localização, acostumada com nomes de ruas e números de
casas, com mapas disponíveis em meu aparelho celular e com aplicativo que diz
em que rua devo virar, me deparar com esse novo tipo de lugar (sem endereço)
55
foi um susto. Mas, para que pudesse prosseguir em busca de uma voz diferente,
me entreguei à “experiência do novo abrindo frestas no tédio do que parece ser
sempre o mesmo.” (BÁRCENA, 2004, p. 107) e fui criando meus próprios mapas-
cartografias ao escutar o que as pessoas com quem eu encontrava tinham a me
dizer e a me ensinar. Cheguei na rodoviária de Maceió, comprei meu bilhete para
Arapiraca.
Entrei na van e pedi ao motorista que me avisasse quando tivéssemos
chegado ao posto São Francisco. Mas ele não sabia de posto São Francisco nenhum.
Lá estava, lá continuava com a tranquilidade de que a Vila Fernandes estava
me esperando e lá eu ia chegar. Sensação de corpo levitando, de suspensão do
tempo diante do desconhecido.
21
A surpresa dessas duas mulheres pode estar relacionada à crença de que é arriscado uma mulher
viajar sozinha, principalmente para Arapiraca, considerada uma das cidades mais violentas do
país (Cf. http://arapiracanews.com/cidade/339/2016/07/15/arapiraca-registrou-mais-de--130-
homicidios-em-2015).
56
“nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo
tempo, quase nada nos acontece” (LARROSA, 2014, p. 18). Estava acontecendo.
Chegamos ao ponto final da van, momento em que as duas mulheres pegam
minhas bolsas e fazem questão de carregar por mim. Elas querem me ajudar a
carregar as coisas que trago. Uma delas me diz que agora vamos caminhar um
pouco até chegar ao posto São Francisco. Caminhamos cerca de meia hora pelo
centro de Arapiraca, debaixo de um sol escaldante e de um barulho infernal de
carros de som, motos, carros e vozes microfonadas de vendedores vindas do interior
das muitas lojas que passamos pelo caminho.
Caminhei com pessoas desconhecidas num lugar estranho entregue à
experiência. Caminhei como quem desloca o olhar para viver a experiência,
não apenas como vivência passiva, mas como trilha na passagem pela estrada
(MASSCHELEIN, 2008, p. 37).
Minhas duas “cuidadoras” tinham ido ao médico em Maceió. A filha de
uma delas estava estudando para ser fonoaudióloga. Alegrei-me com a história.
Entregue à experiência de “estrangeira” naquele lugar desconhecido, com pessoas
desconhecidas, me lembro que eu também sou fonoaudióloga e assumo diante
delas, como quem diz para si mesma que, apesar de tanto tempo longe da profissão
(profissão em vias de desterritorialização), algum traço da minha formação nessa
área ainda me toca. Como Deleuze e Guattari enunciam “um território está sempre
em vias de desterritorialização, ao menos potencial, em vias de passar a outros
agenciamentos, mesmo que o outro agenciamento opere uma reterritorialização.”
(DELEUZE e GUATARRI, 1997, p.137) A Fonoaudiologia neste momento é
território movediço.
Uma delas fica no meio do caminho. Nos despedimos. A outra segue comigo
até o posto.
Numa rua cheia de casas cerealistas, busco aquela indicada por seu Nelson
e me encontro com um de seus netos. Ele me diz que seu Nelson já está chegando.
Ele tinha ido me buscar. A mulher que havia cuidado do meu caminho se despede
57
com um sorriso. Foi minha companheira, minha muito companheira. Uma mulher,
outra mulher. Me senti protegida e com os caminhos abertos.
Ao longo do meu percurso em busca da voz, voz aqui registrada em texto
para uma tese de doutorado, vou me encontrando com companheiros de viagem que
me ajudam a pensar, a me deslocar e a viver. Ensinam-me coisas com seus gestos
de generosidade. Essas duas mulheres me ensinaram a aceitar ajuda para chegar a
um lugar e para carregar o peso das minhas bolsas. Ensinaram-me um caminho por
mim desconhecido e me fizeram olhar com outros olhos para o meu caminho já
percorrido com a área da Fonoaudiologia.
Seu Nelson chega, um senhor de 84 anos. Tinha vindo de moto-táxi para
resolver umas coisas na cidade e me esperou. Pegamos um táxi e logo chegamos
à vila. O imbuzeiro estava lá, frondoso. A casa amarela em frente a ele, como seu
Nelson tinha me dito, apesar de minhas dúvidas.
Sou recebida pela dona Josefa Francisca, esposa do seu Nelson Rosa. Uma
linda senhora de fala lenta e sorriso fácil. Ela me oferece o próprio quarto para
guardar minhas coisas e dormir. Digo que não, imagina dormir na cama dela.
Eu poderia dormir no chão. Mas ela insiste que eu deveria dormir em sua cama.
Ficamos nessa disputa por uns minutos.
Seu Nelson com voz forte ordena que eu fique no quarto de dona Francisca.
Obedeço e ponto. Apesar de me sentir muito mal com a possibilidade de me
tornar um incômodo naquela casa de desconhecidos pude perceber que, como diz
Borges, “cada um e cada situação pede olhar novo de mim. Até posso pegar olhares
conhecidos pra me ajudar nesse novo caminhar, mas vi mesmo que era preciso
‘desver’” (BORGES, 2016) para poder aceitar o convite feito por dona Francisca.
Na casa deles é assim. Visita dorme no quarto principal.
A cama com véus para proteger dos mosquitos. Um altarzinho com Santa
Luzia no canto do quarto que tem as paredes pintadas de azul. Guardo minhas
coisas e sou convidada para um café da tarde. Dona Francisca tinha cuidado de
preparar um café preto, um cuscuz22 e aprontar uma mesa com manteiga e queijo.
22
O cuscuz nordestino é um preparado de farinha de milho cozido no vapor com sal. Se costuma
58
Seu Nelson puxa assunto e começa a contar algumas histórias sobre os cantos
de trabalho. Eu, apressada por coletar dados, queria anotar todas as informações,
gravar todas as nossas conversas desde o início. Mas aceitei o café (apesar de não
tomar café) e experimentei aquele cuscuz pela primeira vez na vida.
A viagem a Arapiraca provocou em mim um movimento de desterritorialização
(DELEUZE e GUATARRI, 1997). Não somente no gesto de aceitar ajuda de
desconhecidos (tão difícil para uma pessoa que acredita ter que resolver sozinha os
problemas) ou provar alimentos nunca antes provados, mas também no modo de
conceber e realizar uma pesquisa com voz imersa num contexto cultural diferente
do meu, onde a vida se passa em outra velocidade e onde o que se valoriza, ao
meu ver, é o cuidado (e o tempo) com o modo de dizer as coisas. A experiência
de tombamento que vivo nesse acontecimento do encontro com as pessoas da Vila
Fernandes dilata a minha sensação de tempo e de espaço.
A conversa segue com seu Nelson me perguntando muito cuidadosamente
quem eu era e porque estava ali. Seu Nelson me escuta e ao me escutar, me acolhe
e me integra a esse espaço outro. Era um modo de dizer que eu fazia parte de um
grupo de mulheres com nome de Renata que tinha passado por sua casa: contou que
por lá já passaram Renata Rosa e Renata Mattar. Eu era a terceira Renata.
Até Ariano Suassuna já tinha passado por lá para saber de suas histórias.
A Regina Casé também foi para gravar um programa de televisão. O Selo Sesc
de Alagoas fez registros das histórias de seu Nelson e dos cantos de trabalhos das
Destaladeiras de Fumo de Arapiraca que podem ser acessados no link https://www.
youtube.com/watch?v=8AgHn_Slgso, dentre tantas outras reportagens de revistas
e jornais da região. Em 1977, Maria Zélia Galvão de Almeida desenvolveu uma
pesquisa sobre os cantos de trabalho de Arapiraca. Há registros disponíveis de sua
pesquisa no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB – USP) e também no
mini documentário que pode ser acessado no site: http://intermeios.fau.usp.br/
midia/36410572.
Seu Nelson é mestre do coco de roda, pai de 7 filhos (4 mulheres e 3 homens),
comer junto com queijo ou molhado no leite. Acompanha o café preto.
59
17 netos e 1 bisneto que está a caminho. Nasceu numa casa da Vila Fernandes.
Os pais eram agricultores. Cresceu no meio de outros agricultores e me conta que
naquela época se cantava muito: para trabalhar, para fazer uma criança dormir, nas
festas. Ao lado da casa onde estamos agora tinha uma casa de farinha, lembra seu
Nelson23. As pessoas se reuniam para ralar a mandioca e cantavam. Conta-me que
cantavam quando alguém morria. Era para que as pessoas que estavam velando o
morto não dormissem, como uma forma de passar por um momento triste.
Seu Nelson é um narrador e “tira o que narra da própria experiência e a
transforma em experiência dos que o escutam” (BOSI, 1994, p. 85). Foi justamente
assim que experimentei a escuta das narrativas de seu Nelson e também das
Destaladeiras de Fumo. E eu estava ali para escutá-lo tecer artesanalmente as
palavras sobre os acontecimentos, materializando em voz os cantos que estavam
em sua memória. Ele me diz que cantar é como uma brincadeira e que as mulheres
se juntavam nos salões para destalar o fumo e cantavam enquanto trabalhavam. Ele
me conta que alguns fazendeiros faziam questão de contratar as destaladeiras que
cantavam e que era muito bonito esse costume, mas hoje as destaladeiras fazem o
trabalho em casa mesmo, sozinhas.
Na escuta do que narra seu Nelson, vou percebendo que cantar não é direito
só de quem fez aula de canto ou foi aceito num teste para um coral ou passou
por atendimentos fonoaudiológicos, por exames de laringe, cantou em um palco,
gravou um disco, fez aula de canto. Cantar deixa de ser uma coisa de gente que
tem conhecimento formalizado, cantar passa a ser também uma experiência de
expressão, um direito, uma “brincadeira”, como enunciou seu Nelson.
Atualmente os cantos de trabalho se mantém vivos em função de um grupo
formado por seu Nelson composto por algumas mulheres que no seu passado
destalavam fumo. O grupo faz diversas apresentações viajando pelo país em centros
culturais e outros locais ligados à Cultura Popular. Não existe mais a prática de
23
No mini documentário feito pela pesquisadora Maria Zelia Galvão de Almeida, as plantações de
mandioca existentes antes mesmo da monocultura do fumo que se instala em Arapiraca a partir da
década de 40 também são lembradas. Os cantos de trabalho já eram praticados antes da chegada do
fumo, nas casas de farinha. Confira vídeo disponível http://intermeios.fau.usp.br/midia/36410572.
60
destalar fumo nos salões acompanhados dos cantos coletivos.
Em junho (2016) iniciariam uma turnê pelo país pelo Sonora Brasil24.
Muitas mulheres foram resistentes, não queriam participar da turnê, por ter que
ficar tanto tempo fora de casa. Essas mulheres já trabalharam destalando fumo.
Todas cantavam durante a lida, porém hoje não cantam mais dessa forma, apenas
no grupo artístico.
Depois de um dia de olhar, ouvir e sentir o diferente, vou para cama dormir.
Mas não consigo. O filho que mora com eles dorme no sofá da sala e seu radinho
de pilha fica ligado a noite toda. Escuto na voz do locutor do rádio um noticiário
policial com notícias seguidas de assassinatos, roubos, assaltos. Com essa voz não
dá para dormir.
Estou completamente tomada, imersa dos pés até a cabeça, naquele dia-
acontecimento de sentidos, intensidades e deslocamentos. Sinto-me incomodada
demais para poder dormir. Sinto-me corpo. E não há experiência sem corpo. Mais
uma vez Bárcena ajuda-me a enunciar convocando o corpo e seus sentidos para se
viver uma experiência:
Seu Nelson havia dito que no dia seguinte poderíamos ir até a casa das
mulheres para convidá-las para um encontro no período da noite. Pergunto que
hora devo me levantar. Às 6h30. Às 6h30 eu estava de pé. No lugar onde o tempo é
outro para os meus sentidos, seu Nelson atravessa a rua e vai se sentar à sombra do
24
O Sonora Brasil é um projeto do Departamento Nacional do Sesc. O projeto que circulou pelo país
nos anos 2015 e 2016 teve como tema Sonoros Ofícios – Cantos de Trabalho e Violas Brasileiras,
buscando o despertar de um olhar crítico sobre a produção e sobre os mecanismos de difusão da
música no país, incentivando novas práticas e novos hábitos de apreciação musical, promovendo
apresentações de caráter essencialmente acústico que valorizam a autenticidade sonora das obras e
de seus intérpretes. (Disponível em http://cartacampinas.com.br/2016/10/sonora-brasil-apresenta-
os-cantos-de-trabalho-e-violas-brasileiras-no-sesc/)
61
imbuzeiro e lá fica até por volta de 8h da manhã, quando dona Francisca o chama
para o café da manhã.
Figura 10 A sombra do imbuzeiro onde seu Nelson costuma se sentar para escrever. À direita da
imagem uma casa de taipa, tipo de construção feita com barro e madeira em mutirão.
62
outras pessoas que ali estavam, eram aceitas. Conta-me que ela também cantava
nos salões de fumo, mas hoje não canta no grupo das destaladeiras porque “não tem
voz, a sua voz some”.
Ela me diz que no grupo das destaladeiras é pra ser bem certinho, mas que
no salão era uma doidice. Qualquer um podia cantar25.
Ela me conta que trabalhava o dia inteiro na roça, começava às 7h da manhã.
À noite ia para o salão para destalar o fumo e lá qualquer pessoa podia cantar, não
precisava ter voz não. Cantava para não dormir. Tomava café da noite, destalava
fumo até 23h, meia noite.
Seu Nelson amanhecia o dia enrolando o fumo. De manhã ia tirar fumo do
varal e quase não dormia. No salão tinham mais ou menos 15 pessoas que vinham
para destalar, famílias inteiras. As pessoas cantavam e amanheciam o dia destalando.
Conta dona Franscisca que os cantos começavam quando não tinham mais o que
conversar ou quando o sono vinha. Como não tinha televisão e não tinha rádio, não
tinha energia elétrica, não tinha água (carregava em balde para casa), cantavam. Me
diz que esse era um tempo em que ela se achava feliz.
***
Esta conversa com dona Francisca no intervalo entre acordar e tomar o café
da manhã foi fundamental para algumas compreensões26.
O salão de destalar o fumo, espaço para os cantos de trabalho, como narra
dona Francisca, era um lugar onde todos podiam cantar, onde não necessariamente
havia uma avaliação prévia sobre a voz, onde não havia separação entre quem sabe
ou não sabe cantar, entre quem “tem ou quem não tem voz”. Entendo o salão como
um espaço público do encontro, do coletivo, do fazer junto e, ao mesmo tempo, o
espaço onde pode-se expor a voz.
25
ainda que houvesse qualquer tipo de hierarquia ou seleção durante a prática dos cantos de trabalho
no salão, nesse momento, me aproximo da narrativa de dona Francisca e desse lugar (utópico?) onde
todos podem cantar, para refletir e questionar como as áreas consagradas da ciência se relacionam
com o tema da voz.
26
Essas compreensões e formulações não aconteceram naquele tempo, mas foram sendo construídas
ao longo das trajetórias e escrita deste texto.
63
Esse lugar da “doidice” é, ao meu ver, um lugar para todos, é lugar público,
de ser quem se é com a voz que se tem. O espaço do salão é uma imagem muito
potente que me põe a pensar em possíveis lugares na nossa sociedade onde a voz
que temos pode ter espaço. É o lugar de acolhimento onde qualquer voz é possível
e onde não há julgamento sobre a voz. Qualquer um pode cantar, como me conta
dona Francisca, inclusive ela própria que “não tem voz” (mas no salão tem). Num
ambiente predominantemente de mulheres, parece não haver seleção ou escolha de
quem pode ter voz. Todas têm. É um direito. No salão, as mulheres se juntam para
cantar enquanto trabalham. Do meu ponto de vista, essa reunião de mulheres é uma
forma de se cuidarem, de se fortalecerem enquanto indivíduos, de falar de si, de
animar o próprio corpo cansado do trabalho, de se manterem acordadas.
Para o etnomusicólogo Alberto Ikeda, os fenômenos das culturas
tradicionais refletem a história das comunidades em que estão inseridos e tem como
característica o coletivo,
64
Outro tema que surge da fala de dona Francisca é uma memória de que
aqueles tempos em que se cantava eram prazerosos. Como veremos mais adiante,
seu Nelson e outras mulheres com quem conversei, também trazem boas lembranças
desse passado em que se trabalhava junto e se cantava ao mesmo tempo. Fato
semelhante foi encontrado pela pesquisadora de cantos de trabalho no sul da Itália,
Flavia Gervasi (Cf. Gervasi, 2015). Os trabalhadores pesquisados por Gervasi
eram charreteiros e, assim como as destaladeiras de fumo, faziam seu trabalho
acompanhado de cantos. Em seu relatos, associam o fato de trabalhar e cantar como
momento de prazer e de convivência com outras pessoas.
65
do menino-segurança para nos acompanhar durante a caminhada; os cumprimentos
carinhosos recebidos pelas pessoas que encontramos na rua; o modo de seu Nelson
falar comigo e com as pessoas que encontramos no caminho.
Figura 11 Desenho livre da rua principal da Vila Fernandes – zona rural de Arapiraca.
Paramos na primeira casa: seu Nelson bate palmas para avisar que chegamos.
Estamos na casa de Dona Maria Pereira. Ela aparece na porta, cumprimenta seu
Nelson com um aperto de mão. Seu Nelson me apresenta como “a outra Renata”.
Ela nos convida a entrar e tomar um café. Seu Nelson muito cuidadosamente
(e esse cuidado me chama a atenção) explica que sou a Renata, que conheço a
Renata Mattar. “Mais uma Renata, diz ele. Se é Renata é gente boa”. “Se o senhor
tá dizendo, seu Nelson”, responde dona Maria. Seu Nelson continua a explicar
lentamente que estou ali para saber sobre os cantos, mas antes de continuar essa
conversa, pergunta sobre os filhos de dona Maria. Dona Maria fala sobre os filhos
e seu Nelson realmente escuta. Só então continua a falar sobre o objetivo de minha
presença e diz que vou explicar o que vim fazer aqui. Apresento-me, explico que
66
vim para escutá-las falando sobre os cantos de trabalho e também para aprender
a cantar com elas. Seu Nelson então pergunta a Dona Maria se ela gostaria de ir
até a casa dele no mesmo dia a noite para conversar e cantar e ao mesmo tempo
explica que no salão da igreja, apesar de ser um local mais próximo para fazermos
o encontro, é perigoso. Diz que se elas puderem ir até a casa dele, tanto melhor.
“Primeiro conversamos, depois pisamos um coco”. Dona Maria repete a mesma
forma de resposta: “se o senhor tá dizendo, eu vou sim”. Sentados no sofá da sala
da casa de Dona Maria, ali ficamos por mais um tempo conversando sobre a vida.
Seu Nelson então diz que vai se despedir para poder seguir caminhando até a casa
das outras mulheres e fazer o mesmo convite.
O cuidado de seu Nelson com as suas próprias palavras ao conversar com
as pessoas na rua e com a dona Maria me chamou muito a atenção. Percebi que ali
naquela comunidade a conversa tem um outro sentido, que não é o mesmo sentido
que estou acostumada no meu dia-a-dia.
Ivan Vilela, em seu livro intitulado Cantando a própria história: música
caipira e enraizamento descreve o mesmo cuidado no modo de falar do caipira:
67
estarmos presentes poderia significar que nossa presença – quer dizer:
nosso corpo – sente, sofre; que essa presença não pode ser adiada, nem
para trás, nem para frente: trata-se de um aqui e um agora que poderia ser
amplo e longo, mas que não pode ser nem antes nem depois; que estar
presente supõe a debilidade ou a fragilidade de um “eu” centrado em
si mesmo, egoísta, fechado; que a presença é presença plural, presença
entre vários, entre muitos, entre qualquer um, entre desconhecidos; que,
também, outra presença entre na nossa, às vezes fazendo um ninho,
outras vezes passa despercebida e outras se torna, quase que por acaso,
uma presença essencial. (SKLIAR, 2014, p. 208)
Rosinalva é a mais jovem das mulheres. Mora na cidade onde trabalha como
professora. Foi convidada pelo seu Nelson para fazer parte do grupo. Encontramos
ela no meio da rua, na garupa de uma moto. Seu Nelson a convida e ela diz que
estará lá no horário.
Chegamos, por fim, na casa de Dona Rosália ao final da rua, depois de
caminhar, cumprimentar, conversar e queimar a pele sob o sol quente. Dona Rosália
nos convida para entrar com sorriso no rosto. Entramos em sua sala, que está cheia
de fotos na parede, imagens de santos, santinhos. No mesmo ritual, seu Nelson
explica à dona Rosália que estamos convidando as mulheres para ir a noite em sua
casa, fazer uma cantoria e no final pisar um coco. Eu explico sobre o que vim fazer
na Vila Fernandes. Seu Nelson diz que no salão da igreja, apesar de mais próximo,
é perigoso. Se elas puderem fazer esse favor de ir até a casa dele, melhor. Dona
Rosália diz que “se seu Nelson tá falando, que sim, vai”.
As visitas chegam ao fim e voltamos caminhando até a casa de seu Nelson
onde dona Francisca estava com o almoço pronto. O feijão é temperado com
cominho e coentro, leva cenoura e tomate. Ela me diz que quando eu voltar lá para
Vila Fernandes de novo com mais tempo vai matar uma galinha do quintal para
gente comer.
Eu aprendi na experiência-caminhada com seu Nelson e nosso “segurança”
sobre as velocidades: minha pressa de pesquisadora querendo respostas rápidas não
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me deixariam viver uma experiência como a que Larrosa nos apresenta: “experiência
é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o
que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo
tempo, quase nada nos acontece.” (LARROSA, 2004, p. 154). Uma vez mais retomo
o sentido da palavra experiência empregado neste texto, como aquilo que se dá no
encontro do sujeito a quem acontece algo, com este algo que o mundo oferece,
abarcando uma dimensão exterior ao sujeito e outra interior a ele.
Os cuidados que recebi no caminho também foram abrindo espaços para
que eu me fizesse presente. Andar mais devagar, cuidar das palavras, cuidar de
ouvir. Esperar o tempo necessário para a palavra chegar. Sofrer a experiência.
Dona Francisca demonstrou muito afeto e cuidado por mim durante os dias
que estive em sua casa. O desejo de cozinhar uma galinha de seu próprio quintal foi
uma dessas demonstrações, como um momento de comemoração por aquele nosso
encontro. Além dos cuidados ligados aos alimentos, dona Francisca me presenteou
com seu próprio anel quando fui embora, como uma aliança entre mulheres que
se dispõem a ouvir, a falar, a trabalhar, dona Francisca marca simbolicamente a
abertura para aquele espaço de cuidado a que nos oferecemos.
Eu me sinto em casa.
69
desde 1990, o grupo das Destaladeiras de Fumo de Arapiraca, que reúne
10 senhoras cantadeiras. Já se apresentou em São Paulo no ano de 2007
e fez participações no CD Cantos de Trabalho, da Cia. Cabelo de Maria.
“Eu tô querendo é me casar/ Pois não quero tá solteira/
Tô querendo me casar/ com uma moça pequenininha, que seja
Bonitinha, cor de canela, que saiba me acarinhar/ Tô querendo me
casar, para acordar sonhando nos braços dela”
Uma das canções de sua autoria – com o tempo, Nelson Rosa passou a
compor e a escrever poemas.
No outro banner está um texto de um poema escrito pelo próprio seu Nelson.
O neto, nosso segurança durante a caminhada, segue nos acompanhando durante a
conversa. Ele é o único dos descendentes, de acordo com seu Nelson, a se interessar
pelos conhecimentos transmitidos pelo avô. Sem cerimônia, pede para ler com sua
própria voz o poema que transcrevo abaixo:
Cabôco Nordestino
Escute lá seu dotô E meio dia como na roça
Como é feito o meu Nordeste Mas só volta pra paloça
Desse Brasil cabôco Quando vê o sol cravar
Aonde tem cabra da peste É o caboco que derruba
Que trabaia o ano inteiro O Mato fechado com os braços
Dia e noite, noite e dia Com foice e machado
Pruquê o seu ideal Pra ele não tem cansaço
É de não vê fartar E depois o tronco ele arranca
O pão pra sua família De enxadeco e chimbanca
O cabôco sertanejo Fazendo às vez de trator
se alevanta pela aurora Mas esse escravo cabôco
Abre a porta e sai pra fora
No cantar da passarada De pés rachado no chão
Pega um cachimbo de barro Esse nordestino forte
Acende e faz um cigarro Que traz o siná nas mão
Já sai de casa fumando Da foice, das picaretas,
Disposto e com alegria dos espinhos da caiçara
Que quando amanhece o dia É o cabôco disposto
Ele já está trabalhando Que muitas vezes queima o rosto
Lá pras sete, oito horas No acender da coivara
É que a mulher leva a bóia Mas esse escravo cabôco
Ele come e enche a barriga É o cabôco que chora
Despois o óio da enxada móia Quando tarda a trovoada
Bate a cunha com a pedra Mas as despois ele canta
Pra ela não desacunhar Quando vê a terra molhada
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Vai cuidá da plantação Ele acende o fugueirão
Contempla o céu cor de ani Dança, canta e pagodeia
Cava a terra e limpa o mato É do Nordeste que sai
Que o caboco é o retrato Esse caboco pachola
Desse Brasil varonil Que sabe tocar rebeca
O caboco sertanejo Fole, cavaquinho e viola
Planta mio, fava e feijão O caboco que faz moda
Macaxeira, jerimum, Que dança coco de roda
batata doce e algodão Seja em casa ou no terrero
Melancia, maxixe e quiabo Dança xote, quadrilha e baião
Por isso num se aperreia E que faz a apresentação
E quando chega o São João Do folclore brasileiro
Nelson Rosa
71
Saudosista, Nelson Rosa , ora com um sorriso nos lábios, ora com lágrimas
nos olhos fala com carinho e grande consideração de todas as coisas do
passado que serviram de arcabouço para a constituição do Nelson cantador
do coco de roda, das músicas que sugeria como receita popular para espantar
o sono das suas destaladeiras de fumo, pois como já dizia o ditado, “quem
canta seus males espanta”.
Amor, sentimento que unia Nelson Vicente Rosa com os laços do matrimônio
a sua amada Josefa Francisca, parceira amada que nunca mediu esforços
para agradar seu marido com quem teve a alegria de ser mãe, de sentir no
seu ventre o pulsar da vida de seus filhos e juntamente com o seu esposo
acompanhou o crescimento dos sete frutos dos quais novos frutos já foram
gerados. Sete filhos que alicerçados pelos valores culturais que Nelson Rosa
colheu das gerações passadas para que sejam repassadas as suas gerações
futuras.
Sentada na cadeira junto com seu Nelson e seu neto, sinto o tempo passando
muito lentamente. A sensação que tenho é que esse lugar se conversa devagar,
se degusta a conversa, há um cuidado com a palavra que me deixa intrigada e
me chama a atenção. Passo a ouvir as minhas próprias palavras ao falar, como se
houvesse uma orelha enorme ligada à minha boca, fazendo amplificar o som da
minha própria voz. Desloco-me, me vejo de outra perspectiva.
O tempo
Aqui o tempo é outro
É o tempo da caminhada lenta
É o tempo da conversa cuidadosa
e atenta
É tempo de ter silêncio
Tempo de brincar debaixo da
mangueira
De escrever na sombra no
imbuzeiro
(notas no caderno de bordo, 25 de
fevereiro de 2015)
Sigo com minhas curiosidades que trouxe anotadas num caderno: como
será que soa a voz das destaladeiras de fumo de Arapiraca? Que memórias virão
desse encontro? Que será que elas vão me cantar?
Continuo meu processo de deslocamento e acomodação dentro de meu
corpo e na cadeira da varanda do seu Nelson. Deslocamento e acomodação foi
o movimento vivido por mim, causado pelo estranhamento de estar num outro
72
espaço, outro tempo e com outras vozes. Movimento que abriu para novos olhares
e para possibilidade de criar um campo de sentidos para a voz.
Ele conta mais histórias e ao contar, canta. Desse momento em diante, todas
as narrativas foram marcadamente entremeadas por cantos, como uma forma de
cantar a própria história. São memórias cantadas das incelenças e dos cantos de
trabalho. Optei por transcrever a letra de algumas cantigas lembradas e cantadas
por seu Nelson e pelas Destaladeiras de Fumo e registrar seus textos no Caderno
de Cantos27. Como se trata de uma pesquisa sobre voz, além das letras, alguns dos
cantos gravados por mim durante o período de imersão no contexto da pesquisa
na Vila Fernandes e, posteriormente, com dona Rosália em São Paulo, podem ser
ouvidos nos links disponíveis no anexo. Recomendo a escuta de todas as vozes
gravadas e disponibilizadas, uma vez que suas sonoridades podem abrir para outras
compreensões, diferentes daquela trazidas pelo texto escrito.
27
O Caderno de Cantos encontra-se no anexo.
28
Sentinela é o termo utilizado pelas pessoas da região para o que conhecemos como velório.
73
Meu Jesus da cana verde
Vamos acompanhar
Meu Jesus da cana verde
***
Antes de seguir com os cantos, eu e seu Nelson fazemos uma pausa para
pensar e falar sobre o sentido de cantar. Ao ouvir as narrativas de seu Nelson,
vou formulando uma pergunta: por quê as pessoas cantam? E compartilho com
ele minha curiosidade. Seu Nelson constrói ali comigo outras perguntas e algumas
elaborações. Ele também se pergunta “por que cantar?” e me diz que talvez seja por
hábito, de quando não existia esse mundo que estamos vivendo, em que a mulher
cantava abanando a criança na rede pra não chorar, em que se cantava varrendo o
casa, para entreter na hora do trabalho, para não pensar em coisas que não eram boas.
Para seu Nelson, esse é o sentido de cantar. Lembra de seus pais que cantavam no
curral tirando leite da vaca, varrendo o terreiro, em atividades normais do cotidiano
e relaciona esse tempo em que se cantava muito como um tempo bom. “Hoje em
dia tem muita preocupação na vida, é uma vida bonita, boa, muitas pessoas ganha
a vida mais fácil, né? Mas também tem muita preocupação, porque as pessoas não
têm tempo de cantar.” (Nelson Rosa)
Seu Nelson me convida à reflexão. Assim como dona Francisca já havia
dito, surge na fala de seu Nelson um saudosismo pelo passado, como um tempo em
que se cantava e que hoje não existe mais. Esses cantos parecem ter tido a função
de diminuir o peso do trabalho, tornando-o divertido e se constituindo como uma
possibilidade de re-existência, trazendo a vida para onde já não existiria mais (no
trabalho, onde o sujeito é expropriado de si mesmo).
O canto está vinculado ao trabalho, é uma adição. Eles cantavam e faziam
algum trabalho. É um “e” que integra, que não dicotomiza a diversão e o trabalho.
Seu Nelson me conta que haviam vários tipos de canto: o rojão de eito (de
derrubada de mata e limpa de roça), o barreiro, a taipa de casa e os cantos de trabalho,
para ralar a mandioca, para pisar o milho, para bater o feijão e também para destalar
o fumo. Alguns deles eram praticados em mutirão, que é a “relação de trabalho em
74
que entre os envolvidos não há uma relação de patrão e empregados (…). Pode
funcionar como uma força-tarefa de um grupo que faz algo coletivamente para
benefício de um dos membros ou da comunidade em geral” (MOTTA, 2014). Nos
mutirões se fazia a raspa da mandioca e a taipa de casa, por exemplo. A pisada do
coco servia para dançar comemorando o término da construção da casa de taipa e
também para bater o chão da casa que tinha sido feito durante o dia. O dono da casa
construída oferecia uma festa, com comida e bebida como forma de agradecimento
pelo mutirão.
Santos observou em sua pesquisa sobre cantos de trabalho no Recôncavo
Baiano que a prática se configura como um “processo de resistência cultural ao árduo
trabalho realizado no campo” (SANTOS, 2006, p. 1). Além dessa característica,
duas outras são marcantes: a prática significativa de manifestações de solidariedade
e de divertimento. Assim como no Recôncavo Baiano e outras comunidades rurais
do país, na comunidade da Vila Fernandes se faziam mutirões acompanhados de
cantos. Nesse sentido,
O prazer que aparece nas narrativas de seu Nelson, dona Francisca e também
nas falas das mulheres do grupo das Destaladeiras de Fumo (como veremos a
seguir) parece estar ligado ao coletivo. Santos também observa esse funcionamento
no Recôncavo Baiano. “Assim, os lavradores se reuniam espontaneamente com o
intuito de ajudar a um companheiro: surpreendendo, brincando, mas acima de tudo
enfrentando a ventura camponesa, em que seu meio de sobrevivência tornava-se,
concomitantemente, um instrumento de luta e lazer.” (SANTOS, 2006, p. 2).
75
2.4 Cantos de destalar fumo
A destalação do fumo, diferentemente dos adjutórios apresentados acima,
era realizada a partir de uma relação de patrão e empregado. Segundo seu Nelson,
alguns patrões incentivavam a cantoria durante o trabalho. Era costume também
que o patrão oferecesse vinho ou cachaça aos empregados enquanto acontecia a
destalação. No período da colheita de fumo, entre agosto e setembro, os agricultores
trabalhavam o dia todo na roça e à noite iam para os salões para destalar fumo. A
vila inteira fazia as cantigas durante o trabalho.
Para seu Nelson não há separação, se trabalhava e se divertia. É momento
de cantar para contar a própria história, e ouvindo as histórias de seu Nelson, as
narrativas daquilo que foi lembrado por ele, “escolhido” e transformado em palavra
para estar agora também comigo, passamos o tempo da minha espera pela chegada
das cantadeiras. No exercício de transformar experiência em palavra, seu Nelson
reconstrói, repensa “com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado”
(BOSI, 1994, p. 55). Ecléa Bosi aponta para a o processo envolvido nas narrações
de histórias do passado e afirma que
76
2.5 Tempo de contar, cantar e emocionar: o encontro com a Destaladeiras
de Fumo de Arapiraca
77
feito por toda a família.
Rosália, Rosinalva, Josefa, Isabel, Maria e Socorro, nessa ordem, narraram
uma a uma suas histórias com os cantos de trabalho durante a lida com o fumo.
Participaram também da conversa seu Nelson e dona Francisca que preferiu ficar
fora da roda, de canto, apesar do meu convite para que ficasse entre nós e também
narrasse sua história.
Cantar para animar, cantar para não dormir, para aguentar o trabalho: na fala
das mulheres é por isso que cantavam juntas. Maria diz que cantava porque assim
se animava e não dormia. Para Rosália, o canto servia para se manter acordada
porque “se ficasse tudo calado dava sono... dá sono e dá preguiça porque o serviço é
preguiçoso mesmo”. Rosinalva confirma que canta para que não desse sono. Josefa
conta que o trabalho era pesado e que às vezes se trabalhava até o amanhecer do dia,
destalando fumo. No dia seguinte a colheita continuava.
Nos salões, em sua maioria ocupados pelo trabalho das mulheres, a quem
cabia a função de destalar o fumo, o aprendizado do canto se dava por meio da
transmissão oral: a mais velha cantava e a mais nova ouvia e cantava junto. Assis
(2009) também chama a atenção para o aprendizado que se dá por meio da oralidade
ou da imitação ao pesquisar a música das Quebradeiras de Coco Babaçu. Para ela
29
Enfatizo o uso do termo imitação como referência ao aprendizado pela via da transmissão oral,
uma vez que as mulheres que fazem parte do grupo das Destaladeiras de Fumo de Arapiraca são
analfabetas. Considero portanto que a imitação faz parte do aprendizado tanto de letrados quanto
de não-letrados. Para uma discussão mais aprofundada do tema imitação sugiro a leitura do livro
Docência e Ad-miração (da imitação à autonomia) da educadora Vera de Faria Caruso Ronca.
78
letrado, como constitutiva da diversidade sonora da nossa música popular ao dizer
que
Para José Geraldo Vinci de Moraes, as relações entre mestre e aprendiz, que
podemos correlacionar com as mulheres mais velhas e as mais novas, são as formas
de
Nesse sentido, trago as narrativas de Rosália contando como foi que aprendeu
os cantos. Destaquei (em negrito) os trechos em que descrevem a presença do canto
das mulheres mais velhas e como acontece o processo de aprendizado no “estar
junto” enquanto trabalham:
RS: eu mesmo ... eu mesmo não vou dizer como foi que aprendi ... né ...
porque foi assim ... a gente pequena trabalhando ... vendo ... o mais
véio trabalhando no serviço ... cantando aquelas cantigas ... e a gente
... menino já sabe como que é uma hora tá ali outra hora tá escutando
né ... aí ... eu ia ajudar a minha mãe a destalar fumo ... que eu dizer que a
minha mãe can/ que aprendi com a minha mãe é mentira que a minha mãe e/
... morreu e eu nunca vi a minha mãe cantando ... na vida ... nunca ... aí eu
79
s/ eu sei que ... que eu via assim o povo cantando ... e ela levava porque
levava nós pro salão ... antigamente a gente trabalhava no salão
RS: e hoje em dia o povo fica botando fumo ali numa casa porque não
tem quem tira e outro ... pega e traga outro pouquinho aqui ... aí fica só os
donos da casa só né ... antigamente botava assim aquele monte de fumo no
salão ... que era pra aju/ (...) ali ... aí todo mundo começava a trabalhar
e as mulher mais véia ... começava a cantar ... nós ia junto e ia vendo
aquelas cantigas né ... ia aprendendo ... mas pra eu dizer ... aprendi com
a minha mãe eu nunca vi no/ na minha vida a minha mãe cantando ... nunca
vi nem o meu pai nem gungunzando pra cantar ... nunca cantou também ... e
... história de avô e de vó eu nunca ouvi nenhum ... aí aprendi assim ... um
pouco ... cantando ... menino aprende tudo né ... aí eu ia botando aquilo
na cabeça ... quando já fui ficando grandinha já ia pro salão cantar mais
as mulé véia ... já cantava as cantigas que elas cantava ... mas pra dizer
... fui eu que fiz aquela cantiga “ô leleô pilar” ((risos)) ... eu não fiz ((risos))
O que mais importa nesse tipo de canto, é cantar sobre sua vida
cotidiana. É um canto que está no embalo do acontecimento da vida.
(...) Faz-se música para falar da vida corriqueira, para celebrar, para
louvar os santos (...) e para reivindicar direitos (...) (ASSIS, 2009, p. 55)
80
Assim como Rosália que prefere mais cantar do que descrever porquê e
como se cantam as cantigas de trabalho, também as outras mulheres querem menos
falar e mais cantar.
Elas iniciam então uma série de cantos escolhidos por seu Nelson. Rosália é
quem puxa os cantos e as outras começam a cantar juntas logo na sequência.
Ao ouvir a primeira cantiga cantada pelas seis mulheres fiquei emocionada.
A potência de suas vozes soando no conjunto foi contagiante pela força do seu
canto que fez mover energia sonora e de afeto. Afetou-me porque o canto é força
física, afetou-me porque é força emocional. O canto delas é marcado por uma forte
intensidade sonora e por um timbre metalizado, sonoridade também encontrada em
outras manifestações da cultura popular, no Brasil e outros países.
Na materialidade da voz, essa que me chega aos ouvidos e me afeta, o que
mais me chama a atenção é a intensidade e o timbre. Mais adiante, voltarei a esses
termos e descreverei os elementos da voz. Para enfatizar a dimensão material da
voz, apresento os dois conceitos formulados pelo foneticista Abercrombie e chamo
atenção para a inseparabilidade da voz, essa que me emociona depende de um
corpo que a produz. Voz é corpo, voz é gesto.
De acordo com Abercrombie, a intensidade sonora ou volume
depende da força com que a corrente de ar, vinda dos pulmões, passa
pelas pregas vocais, encontrando nelas uma resistência para sua saída,
fazendo assim, com que elas vibrem. Portanto, o volume depende do
controle, por parte do falante, da pressão com que a corrente respiratória
sai dos pulmões e do grau de resistência das pregas vocais à saída do ar.
(ABERCROMBIE, 1967, p. 95)
81
características anatômicas dos falantes, como, por exemplo, falar com os lábios
arredondados ou o véu palatino elevado. Outras tensões musculares contínuas
afetam os ajustes musculares e, portanto, o modo de vibração das pregas vocais,
produzindo diferentes tipos de fonação, como, por exemplo, uma voz soprosa.
O provável ajuste motor realizado pelas Destaladeiras de Fumo ao cantar é o de
tensionamento dos músculos da faringe, soando como uma voz “metálica”.
Elas seguem cantando mais cinco cantos de trabalho. Os cantos seguem
a mesma forma: Rosália do Santos inicia o canto sozinha e as outras começam a
cantar no segundo verso do refrão. Na sequência, cada uma vai tirando um verso
sozinha e as outras respondem cantando o refrão coletivamente.
Trago aqui a letra de uma das cantigas cantada por elas e convido o leitor
à escuta:
Coqueiro verde30
A saudade me deixou
Na grossura de uma linha
Se não fosse a saudade
Eu não era tão fininha
30
Uma versão desta cantiga foi registrada pela Cia Cabelo de Maria no CD Cantos de Trabalho –
Selo Sesc. - 2007 (Faixa 3)
82
Passei na tua casa Meu amor foi embora
Sua mãe gritou São Bento No caminho se acertou
Não sou cobra que te morda Seu eu soubesse onde era
Meu sentido está lá dentro Mandava plantar fulô
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não estava cantando. Dona Rosália foi me mostrando que ela tinha vindo para São
Paulo não para ficar falando, mas sim para cantar. Para dona Rosália, contar como
é que se canta é o mesmo que cantar. Ela vive o canto. Ela narra a própria história
mais pelo canto do que pela fala.
No nosso primeiro encontro sozinhas, passamos a tarde toda. Ela me deu
conselhos sobre casamento, sobre ter uma casa própria. Falou da família, do filho
que “pegou para criar”, da praça que construiu no fundo de casa a pedido de seu
santo, o padrinho Cícero. Contou que já comprou o seu túmulo e que gostaria muito
que em seu velório as pessoas cantassem uma música. Nessa conversa cantada,
dona Rosália canta pelo menos 12 músicas, dentre elas alguns cantos de trabalho,
cantos de incelença, cantos de romaria e outras canções que aprendeu no rádio ou
ouvindo outras pessoas cantarem.
Convido à escuta de seis cantos feitos por dona Rosália:
A primeira delas é Coração de Luto, uma composição de Teixeirinha,
compositor de Porto Alegre (1927-1985). Dona Rosália me diz que aprendeu essa
música ouvindo outras pessoas cantarem.
84
vinha vindo da escola passei fome passei frio
quando de longe avistei por este mundo perdido
no ranchinho que eu morava quando mamãe era viva
cheio de gente encrontei mim disse filho querido
antes c’alguem me dissesse pra não mata nem roba
eu já logo imaginei nem feri sem se ferido
que o causo era de morte descance em prai minha mãe
da mãezinha que eu amei que eu farei o seu pedido
descance em pai minha mãe
que eu farei o seu pedido
Outros cantos aparecem nas narrativas, como por exemplo, aqueles que
aprendeu de um velho que passou misteriosamente pela Vila Fernandes por algumas
horas. Marcados em sua memória, ela canta duas músicas que nunca se esqueceu.
85
seu próprio texto.
RS: é e a otra era essa e ele cantava ((canta))
Assim como seu Nelson, dona Rosália canta algumas cantigas de incelença,
mas faz um alerta de que não gosta dessas cantigas e que elas não podem ser
cantadas fora do contexto da sentinela. O canto faz parte daquele ritual e, portanto,
não há porque cantar “sem motivo”. Nesse sentido, Ikeda enfatiza a forte relação
do canto com a tradição, aprendida com os mais antigos e que está inserida numa
manifestação que não se destina à apresentação artística.
86
Convido à escuta do único canto de incelença feito por dona Rosália.
uma lavandeira
uma beija-flor
lavando os paninhos
de Nosso Senhor
quanto mais lavava
o sangue corria
Nossa mãe chorava
o judeu se ouvia
duas lavandeira
uma beija-flor
lavando os paninho
de Nosso Senhor
quanto mais lavava
o sangue corria
Nossa mãe chorava
o judeu se ouvia
87
Que está escrito meu padrinho Ciço (...)
Do seu sermão o romeiro tem saudade
No peito bate uma tris/teza sem fim
Ainda diz ai meu Deus se eu pudesse
Ver nessa hora meu padrinho junto a mim
Ainda diz ai meu Deus se eu pudesse
Ver nessa hora meu padrinho junto a mim
E mesmo assim já louvei o meu Jesus
Que tá na cruz na maior judiação
Frei Damião roga a Deus pelo romeiro
Do Juazeiro do Padre Ciço Romão
Frei Damião roga a Deus pelo romeiro
Do Juazeiro do Padre Ciço Romão
88
interesse ... leva a frente ... né
Nos versos a seguir, narra-se a pesada carga horária a que está submetido o
trabalhador (o pobre do operário tem três horas de alegria, quando almoça e quando
janta e quando recebe seu dia). Figuras metafóricas também estão presentes na
linguagem dos versos dos cantos de trabalho, neste caso usando a figura da formiga
para identificar o trabalhador e seu pedido por bebida ao patrão.
Chora viola
89
quem não pode com a formiga (chora viola)
não assanha o formigão (chora viola)
e quem não pode dá o vinho (chora viola)
num bota fumo no salão (chora viola)
Essa cantiga faz menção ao vinho. Como me contou dona Rosália era
comum o patrão oferecer vinho ou cachaça para os trabalhadores.
RS: era todo mundo se animava ... bebendo vinho bebendo ... cachaça
bebendo tudo ... quem vin/ o patrão ... levava dois saco de pão um bucado
de bananola e a gente passava noite até o dia trabaiando achava era bom
((risos)) pra gente era um divirtimento né. Por isso que eu digo hoje as
coisa/a é boa é um oto tempo era muito mais milhó do que é agora ... agora
tá tudo fraquim o povo num si/interessa mais cantá não (Rosália dos Santos,
2016)
90
se eu não beber vou embora
RS: não ... num é ... não é sufrido n/ mai sufrido na roça de que no salão
p/ que no salão é a gente sentadim puxando aquele talim abrindo a foinha
butano ... não não pesa não ... cansa o corpo assim porque a pessoa passa um
... o dia todinho ou a noite assentada né ... isso daqui chega dói mas a gente
já é acostumado né nem liga ... é doendo e a gente trabaiando né ((risos)) é
bom demais né
* * *
91
92
3 Ateliê de voz
3.1 Espaço-tempo para experiência
93
Provocada a pensar a partir das minhas experiências e da minha experiência
com a narrativa de minhas histórias nas diferentes áreas da voz, busquei a construção
de um modo diferente de atuar profissionalmente com a voz. Atravessada pelas
experiências, narradas nas últimas páginas, os movimentos de aproximação
e de distanciamento com as áreas consagradas de pesquisa com a voz como a
Fonoaudiologia, a Técnica Vocal, a Linguística, além do contato com a Cultura
Popular, parecem se amalgamar quando me encontro com a Arte e Educação, a área
do conhecimento que provoca a existência de espaços de criação.
Ao me aproximar das Artes, comecei a ter contato com os ateliês. Fui me
deparando com esse lugar em que as pessoas se encontravam para trabalhar, criar
coisas com diferentes técnicas, materiais e suportes e onde podiam testar, manipular,
desenhar, dar formas, enfim, onde podiam inventar coisas. Começo a vislumbrar
uma forma de integrar os saberes das áreas da voz a esses espaços de criação, numa
tentativa de dar movimento à complexidade do fenômeno da voz humana, sem a
visão segmentadora própria de cada área, mas sim com as invenções possibilitadas
pela Arte e Educação.
Na confluência dos encontros, um convite da Angela Castelo Branco, do
Giuliano Tierno e da Letícia Liesenfeld para oferecer a disciplina de voz do curso
de Pós-graduação A Arte de Contar Histórias, que acontece n’A Casa Tombada:
lugar de arte, cultura e educação, coloca-me diante de um desafio, o de materializar
o Ateliê de Voz, assim mesmo nomeado por eles, uma aula-ateliê. O meu desafio
era oferecer à voz, tanto à minha quanto à do outro com quem me encontraria para a
aula-ateliê, um possível lugar de abertura para experiências, um lugar possível para
a criação com a voz.
Num primeiro momento, portanto, o Ateliê de Voz foi oferecido para os
alunos do curso de pós-graduação; porém, passei também a oferecer como oficinas
e cursos livres31, para qualquer pessoa interessada em viver um processo de
pesquisa da própria voz, num espaço da invenção e da experiência. Não é preciso
31
A oficina é um encontro de um único dia, com carga horária de 6 horas. O curso, com 20 horas de
duração, tem sua carga horária distribuída em 7 encontros semanais.
94
“ter conhecimento” sobre a voz, nem saber cantar, nem saber contar histórias,
nem recitar poesia. Todos podem estar juntos diante da aventura que o encontro
provocará.
Miquelina, que participou de três Ateliês de Voz (uma disciplina do curso de
Pós-graduação A Arte de Contar Histórias, uma oficina e o curso livre) traz à tona
em sua fala a heterogeneidade das pessoas que participam do ateliê porque isso
chama a sua atenção:
95
estariam em mais uma oficina de voz (em que se faria um trabalho técnico, com
exercícios, com métodos já conhecidos), há uma ressignificação do trabalho vocal,
um outro caminho possível a ser seguido pela narrativa, pela apropriação da voz,
pela possibilidade de viver experiências com a voz, não como um modelo a ser
seguido, não como uma pré-determinação, não como algo formalizado e vindo de
fora.
Luciene, que estava presente na oficina que ofereci para o Coral Boca Santa,
me escreveu o seguinte trecho logo após nosso encontro:
É levar todo mundo pra essa, para essa experiência, uma experiência... acho
que não esqueço jamais... não esqueço mais ... ouço mais a minha voz né ...
uso mais o meu agudo
96
a também nomear o ateliê de voz assim, como “lugar da doidice”, ou seja, um
lugar em que a padronização da voz não é o objetivo, muito menos selecionar pela
qualidade de sua voz quem nele pode estar. No salão, e também no Ateliê de Voz,
até mesmo quem não tem voz pode estar.
Quero com isso dizer que ao nomear assim o salão onde se destalava o fumo
e ao mesmo tempo se cantava, dona Francisca me presenteia com essa imagem que
hoje uso para convidar as pessoas a estarem juntas, num espaço em que se propõe
a abertura para o desejo de dizer, de cantar, de expor a voz sem a necessidade de
julgamentos. Onde todos têm o direito de contar a sua história com a voz. Também
como no salão, no Ateliê de voz, nos sentamos em círculo para o trabalho. Assim
como no salão em que as mulheres podiam falar de suas vidas pelos versos cantados,
falar de sua realidade de sofrimento ou do que estavam vivendo, no Ateliê de Voz
constituímos esse espaço para a escuta, para falar de si e compartilhar a presença
num espaço que é público, que é coletivo. É onde se canta para não dormir, é onde
se está em estado de presença.
Para se estar com “o que foi tecido junto”, como diria Morin (2001, p. 38),
foi preciso um movimento de desterritorialização e o encontro com o chão do salão,
com o espaço do ateliê, com o caldo da arte, para poder enxergar e escutar a voz de um
modo mais “complexo”, com elementos inseparáveis que constituem o “todo”. Diria
Irwin (2008, p. 91) que é um espaço miscigenado ou hifenizado: fonoaudiologia-
linguística-técnica vocal-cultura popular-arte e educação. “Trata-se de viver nas
fronteiras, nos espaços entre” (IRWIM, 2008, p. 93). Para a autora, “mestiçagem
é um ato de interdisciplinaridade. Ele hifeniza, cria pontes, barras, e outras formas
de terceiridade que oferecem espaço para exploração, tradução e compreensão de
maneiras mais profundas e enfatizadas de construção de significado.” (IRWIN,
2008, p. 91).
Ao nomear esse trabalho como um ateliê, o que se constitui é um outro
território para a voz (estando eu também desterritorializada) como um lugar de
criação, de invenção, espaço do fazer artístico, da livre pesquisa sobre a vida. Ateliê
“é o espaço da efervescência criativa, o espaço do simbólico e da exploração dos
97
elementos da matéria e das coisas, da cozinha poética.” (MAZZAMATI, 2017, p.
22).
A arte é o caldo que junta todas essas coisas que tinham se cristalizado,
tinham se endurecido, tinham secado, cada uma no seu lugar, a Fonoaudiologia
como Fonoaudiologia, a Linguística como Linguística, a Técnica Vocal como
Técnica Vocal. As Artes se constituem como o meio, como caminho, como o caldo,
que revitaliza tudo isso e cria uma possibilidade de enunciação, de ressignificação.
Ateliê é lugar onde eu posso me enunciar com voz polifônica, onde posso
dizer “o que foi tecido junto”, de vários lugares à partir da arte, como elementos
inseparáveis que constituem o todo: a partir da Fonoaudiologia, da Linguística, da
Técnica Vocal, da Cultura Popular (e outras áreas mais que surgirem), com essa voz
misturada.
Como no salão, é lugar de encontro, é lugar público, onde se pode ter voz para
enunciar a sua própria verdade. Poder falar de si, poder narrar-se como quem (re)
inventa sua história e (re)posiciona sua voz no mundo, em relação consigo próprio
e com os outros. Esse lugar de criação é o lugar da enunciação da experiência. É
também espaço de acolhimento, onde a pessoa pode se sentir à vontade. É convite
a estar presente e escapar dos condicionamentos, das pressas, das palavras gastas. É
lugar em que se pode mostrar fragilidades e potências. Lugar de estar inteira, sem
a exigência de ter que estar com a voz bonita, a voz brilhante, a voz limpa, a voz
forte... poder estar junto com a voz que se tem. Até sem voz se pode estar.
O espaço do Ateliê de Voz é de resistência. De resistência aos “nãos” que
escutamos para nossa voz. Os diferentes tipos de voz são acolhidos e escutados.
Lugar em que o cuidado está presente: o lugar também é de cuidar, cuidar uma da
outra. Em sua maioria, os grupos formados nos Ateliês de Voz são de mulheres.
Mulheres que, no encontro, passam a se cuidar, dão força uma à outra. Constroem
lugares outros. Com suas próprias vozes. Uma rede de cuidar... um lugar de escutar
o que a outra tem a dizer... se abre um espaço, um vão... um espaço no corpo, um
espaço para a escuta... física e simbólica.
Outra característica do Ateliê de voz é ser espaço em aberto, porque se
98
constitui no trânsito das pessoas que se encontram, vai se configurando a partir das
falas, tanto a minha quanto das pessoas que estão presentes. Cada encontro é de um
jeito diferente, porque depende da voz dos presentes, depende das relações que se
estabelecem.
E assim, o rizoma vai se fazendo, se desenhando, com relações inesperadas
e descentralizadas, onde tanto eu como arte-educadora, quanto as pessoas que estão
participando do Ateliê de Voz, podem criar modos de ter voz no encontro com o
outro. No Ateliê de Voz, lugar de reconhecer, inventar e encontrar a voz, se abre a
possibilidade de uma voz-experiência. Voz-experiência como condição para uma
voz-própria. Voz-experiência como possibilidade de se expor e sofrer, tombar, se
apaixonar com ela. Voz-própria como a tomada de consciência à respeito de sua
voz, como soa, como se move, como se oferece ao outro.
Ateliê de voz: onde se pode afirmar mais as potências da voz, com a
possibilidade de criar a voz própria e se inventar a partir dela, de resistir à excessiva
especialização e ao apagamento da voz da pessoa que enuncia, resistir à opressão,
fugir das padronizações mercadológicas. Esse lugar de encontro para a criação, de
invenção, de uso de técnicas (ou de subversão de técnicas), materiais e suportes
pode ser um ateliê. Ateliê de voz é um lugar de experiência e o lugar de experiência
é o lugar da voz própria.
Narro, a seguir, quais foram os caminhos percorridos durante os Ateliês de
Voz e que me levaram à proposição dos termos voz-experiência e voz-própria.
99
experiência, o Ateliê de Voz é um convite para uma pausa, uma parada no tempo
apressado, uma interrupção, uma possibilidade de
pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar
para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender o
automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e
os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar
aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-
se tempo e espaço. (LARROSA, 2014, p. 25)
100
e a uma voz-própria em relação, voz que se faz presença junto de outras vozes, voz
que encosta no outro.
Adentremos um pouco mais esse “salão” para escutar o que cada um tem a
dizer e narrar sobre as relações que se dão nesse espaço. Para tanto, apresento alguns
momentos que proponho às pessoas presentes, espaços-tempo para a pesquisa de si,
para investigar os modos de se habitar à partir da escuta, das narrativas, da percepção
de si em relação ao espaço físico, da respiração, dos gestos vocais, da exposição da
voz, da escuta da voz gravada e dos sentidos atribuídos a ela.
A voz que chega aos ouvidos de quem a escuta é energia acústica, é onda
sonora que faz a membrana timpânica se movimentar. A voz afeta o corpo alheio, é
fenômeno físico, fisiológico, mecânico, neurológico. É afeto.
Pergunto a mim mesma e pergunto aos que ali estão: como chega a minha
voz na sua membrana timpânica? Que voz eu ofereço ao encontro com o corpo do
outro? Ao me fazer essas perguntas, vislumbro fenômenos intimamente conectados:
a voz está em relação com a escuta e a escuta em relação com a voz.
101
A voz e a escuta como corpo, anatomia e fisiologia, é ao mesmo tempo voz
que afeta e escuta que acolhe. Voz-escuta é ato de encontro. Voz que chega no outro
corpo e o afeta fisicamente. Voz como desejo de encostar no outro (Angela Castelo
Branco). Não há como escapar à voz. “Aquele que ouve é completamente exposto a
eventos sonoros, provindos do exterior, que ele não controla.” (CAVARERO, 2011,
p. 55). Mesmo quando uma pessoa tem perda auditiva, a voz do outro, como energia
acústica, chega em seu corpo e encosta nele, faz encontro com a pele.
A escuta é encontro com a voz do outro, com a presença do outro em meu
próprio corpo. Portanto, não há sentido para a voz se não há quem a escute. Ela se
ancora no encontro com o corpo de quem a escuta. A voz do outro encontra meu
corpo e me faz mover, move membrana timpânica, move ossículos, move células
ciliadas e junto move sentidos. Escuta-corpo como uma dança. Fisiologia-poesia.
O que se propõe com esses questionamentos e com essas imagens a respeito
da voz e da escuta é provocar uma escuta que aceita a voz do outro como ela vem,
sem julgamentos; escutar sem ter que responder, sem ter que dar uma opinião,
“escutar (...) como se fosse pela primeira vez, porque, a cada uma, algo da ordem do
inédito atravessa a percepção e muda a pronúncia” (SKLIAR, 2014, p. 24). Atenção
às sensações que aquela voz que escuto causa em mim, perceber-se ouvindo o
outro, perceber como fica o corpo. Essa é a proposta para esse momento, deixar-
se atravessar pela voz do outro, deixar-se afetar, deixar ser ocupado pelas ondas
sonoras que o outro corpo produziu.
Diante dos fatos físicos, fisiológicos, anatômicos, mas também afetivos,
relacionais e poéticos, pergunto mais uma vez:
102
Na relação voz-escuta, escutar a voz do outro é abrir espaço no corpo para
a chegada do outro em mim e também uma abertura para aquilo que ainda não sei,
aquilo que ainda não compreendo, “o que não consigo antecipar, para um sentido
que não está todo posto e todo feito” (DUNKER, 2017). Escuta de corpos, uma
vez que não é possível separar nem a voz, nem a escuta do todo que é o corpo.
Corpo-orelha, corpo-pregas vocais, corpo-diafragma, corpo-pensamento, corpo-
linguagem. Baitello ajuda a pensar a presença como corpo e como acontecem os
processos de escuta ou ausculta (termo por ele empregado):
103
centralizado em mim, mas sim construído no coletivo, no que cada um tem a dizer
sobre a própria voz e sobre a voz do outro. Esse saber vai se nomeando durante
todo o processo, a partir das narrativas de cada pessoa presente.
Se nos abrimos para a escuta de todos, não necessariamente eu, no papel
de educadora, preciso dizer o que vai acontecer no encontro, nem ter o controle do
que vai ser dito. Dou-me a chance de ficar em silêncio para poder escutar o que
os outros têm a dizer, retiro de mim toda ilusão de que tenho a obrigação de deter
conhecimento sobre a voz do outro, que tenho algo a dizer e a modificar, que devo
diagnosticar e analisar.
Ao narrar minha história, ofereço e convido a todos para escutar a quem
queira contar sua própria história, aceitando a voz como ela quiser vir, sem
julgamentos, mas sim, observando o que narra e como aquela voz lhe chega ao
corpo. Nesse momento as pessoas começam um caminho de conexão com o que é
próprio, é momento de poder falar de si, de narrar sua história. É também momento
de se conectar com a história do outro e muitas vezes se reconhecer nela. Cria-se
um ambiente de cuidado, de acolhimento e de confiança.
104
imagens, e essas são imagens geradas por nexos, sentidos e não são imagens
oferecidas prontas de maneira a cercear a capacidade imaginativa” (BAITELLO,
1997, p. 27). Por isso, quando escuto a história do outro, crio imagens e as reconheço
como fazendo ou não parte da minha própria história. Com as imagens, posso
também criar outras histórias ou nomear de outra maneira as próprias experiências.
Como descreve Bárcena “as coisas que nos acontecem, podemos recordá-las
reimaginando-as, contando-as e voltando a contá-las como um conto, a vida tem
como fonte de si mesma o desejo.” (BÁRCENA, 2014, p. 65-66).
O psicanalista Christian Dunker também nos ajuda a pensar a escuta como
lugar de emergência da fala do outro
105
identificações, compartilhamentos de histórias, é a construção de uma “memória
coletiva de [uma] sociedade” (BOSI, 1994, p. 55).
Miquelina nomeia esse espaço-tempo como uma egrégora32, trazendo uma
imagem do coletivo e como esse encontro traz a sensação de confiança:
a proposta do Ateliê, que também é uma das coisas mais bacanas para mim,
foi naquela egrégora que a gente fez que acredito, não vai ser só aquele vai
ser dos próximos também, é uma coisa da proposta da condução que faz a
gente ficar à vontade.
32
Egrégora provém do grego egrégoroi e designa a força gerada pelo somatório de energias físicas,
emocionais e mentais de duas ou mais pessoas, quando se reúnem com qualquer finalidade.
106
3.3.2.1 A escrita da narrativa: fragmentos, restos, escutas... narrativas
sobre histórias com a voz
107
Fragmentos:
Figura 12a Notas dos fragmentos de narrativas escutadas durante os Ateliês de Voz.
interesse em saber mais sobre sua voz, independente da atuação profissional. Foram 2 oficinas livres
e 1 curso n’A Casa Tombada em São Paulo; 2 oficinas no Espacio de la Voz, em Montevideo,
Uruguai; 1 na Casa Centenária, numa escola democrática de Florianópolis; 1 na Casa da Esquina
em Limeira; 1 dentro da Semana de Prevenção de Acidentes no Trabalho no Senac da Penha em São
Paulo, 1 para os cantores do coral Boca Santa da Unesp de Marília e 1 na Casa das Rosas em São
Paulo.
108
Figura 12b Notas dos fragmentos de narrativas escutadas durante os Ateliês de Voz (continuação).
109
Figura 12c Notas dos fragmentos de narrativas escutadas durante os Ateliês de Voz (continuação).
110
Figura 12d Notas dos fragmentos de narrativas escutadas durante os Ateliês de Voz (continuação).
111
Figura 12e Notas dos fragmentos de narrativas escutadas durante os Ateliês de Voz (continuação).
112
Figura 12f Notas dos fragmentos de narrativas escutadas durante os Ateliês de Voz (continuação).
113
O que pude constatar é que essas narrativas são confissões entregues a este
espaço de compartilhamento, com a possibilidade de reconfigurações da história
com a voz, uma vez que no Ateliê de Voz o que se busca é experimentar a voz
em diferentes lugares, com diferentes sonoridades, com potência, mas também
com suas fragilidades, onde as palavras estão expostas para pessoas muitas vezes
desconhecidas. No encontro, tratamos de cuidar dessas palavras entregues, receber
no corpo pela escuta e dar espaço para ressignificações.
114
Figura 13 Notas dos fragmentos de narrativas escutadas durante os Ateliês de Voz em formato de
fita de Moebius.
115
se podem estabelecer é uma forma de se localizar e de se posicionar no mundo
enquanto corpo, enquanto voz, enquanto pessoa. Bertazzo, no trecho que destaco
abaixo, ressalta os efeitos de ter consciência do espaço em que estamos. Para ele,
não existe consciência interna sem uma imediata relação com o espaço
externo, sem que você reconheça a sala, o quarto ou o pátio onde se
encontra. Serão estas as minhas referências: a profundidade e a altura
definindo a vertical, a linha do horizonte atravessando o corpo de lado a
lado. Horizontais e verticais do cenário serão o seu mapa, sua cartografia
para que os sentidos estabeleçam um campo de percepção. [...] o que
está diante de mim? E dos lados? Meus hemisférios expandem-se na
mesma medida? Distribuem-se na luta contra o peso de meu corpo?
(BERTAZZO, 2014, p. 55)
Sem fazer as separações cartesianas entre corpo e mente, entre corpo e voz,
corpo e emoção, proponho um trabalho integrado com a pessoa enquanto corpo,
voz, mente, pensamentos, sentimentos, emoções, linguagem, etc, certa de que o
trabalho com os gestos corporais são os gestos da voz, os gestos da linguagem, ou
seja, os gestos da pessoa de um modo geral. Portanto, o trabalho que imagino no
Ateliê de Voz de expansão, abertura de espaços é tanto dos espaços simbólicos,
quanto dos aspectos físicos, emocionais e de pensamento, pois percebo, na prática
do meu trabalho, que não há separação entre eles. Ter a possibilidade de perceber,
por exemplo, o modo como se pisa no chão pode trazer uma consciência que também
faz perceber como se ajusta as pregas vocais ou como se ajusta a musculatura dos
lábios. É percepção do próprio corpo. É saber sobre o próprio corpo. É enxergar e
escutar a si mesmo.
Klauss Vianna propôs um trabalho corporal com o qual me identifico, pois
fala justamente sobre processos internos de investigação, sobre a exploração das
possibilidades corporais, sem buscar uma forma externa pré-estabelecida. Osorio
assim descreve a proposta de Klauss Vianna
116
interno de investigação, em que o indivíduo assume a postura de um
pesquisador que, apoiado por preceitos técnicos bem definidos, explora
as possibilidades do corpo no momento presente, criando assim seus
caminhos próprios de movimento. (OSORIO, 2017, p. 4)
117
distribuído ou sobrecarrego o dedão, o calcanhar? Movimentamos e abrimos
espaço na articulação entre as pernas e os pés.
Os joelhos estão flexíveis ou tensos? Posso movê-los? Movimentamos os
joelhos.
Qual o tamanho do quadril? Percutimos o quadril. Movimentamos a
articulação coxo-femural, imaginamos que podemos ampliar o espaço
entre o quadril e as costelas, crescemos esse espaço. Ficamos maiores do
estávamos antes.
Passamos para a percepção dos ossos das costelas pela manipulação e
percussão com as mãos, da clavícula, das escápulas, do osso esterno, da
coluna, dos braços, das mãos, do pescoço, da cabeça e com isso, vamos
ganhando espaços nas articulações.
Trabalhamos com a sensação de abertura do peito e abertura das costelas
durante a respiração, ombro para baixo para abrir espaço na região cervical.
Rotação de ombros
Sensação de que o pescoço é comprido na frente e atrás.
Massageamos a laringe de um lado para outro
Massageamos as orelhas, nuca, couro cabeludo, maxilar, articulação
temporo-mandibular, olhos, nariz, testa, lábios.
Fazemos diferentes movimentações com os lábios, com a língua, com o
palato mole, com as bochechas, percebendo o tamanho, a posição, os
movimentos.
Testamos diferentes posturas e correlacionamos com a postura da língua, do
palato, da faringe, das pregas vocais.
Buscando equilíbrio, flexibilidade e conforto, como um corpo que pode
dançar. Enquanto nos percebemos, nos pensamos, nos nomeamos e nos cuidamos.
Não há separação entre corpo e pensamento. É tudo junto. A entrega à percepção
do corpo traz junto o pensamento, traz junto a história, traz junto os efeitos das
narrativas recém enunciadas.
Testamos diferentes posturas corporais e observamos em especial quais são
118
os gestos da língua, do palato mole e das pregas vocais. Como ficam os espaços
dentro da boca? Paramos e sustentamos o momento para perceber e nomear. Ficamos
o tempo necessário para viver este tempo, sem atropelar a percepção.
Inspirada em práticas do método Bertazzo, da yoga e da própria
Fonoaudiologia, esse trabalho corporal que testei durante os encontros dos ateliês,
longe de ter por objetivo o desenvolvimento de habilidades corporais, é uma busca
por habitar o corpo por meio da percepção dos próprios movimentos, percebendo,
por exemplo, os gestos repetidos e que podem causar dor, quais são as posturas
que adquirimos e muitas vezes cristalizamos e como essa construção corporal está
diretamente relacionada com nossa voz. Assim vamos “entrando” no próprio corpo
e aí buscamos permanecer, se percebendo e percebendo os próprios pensamentos,
os próprios gestos, as próprias dores, as tensões, as sobrecargas.
O objetivo desse momento do Ateliê de Voz é o de provocar uma percepção
do próprio corpo e, mais do que isso, a intimidade, abrindo caminhos para acessar
o reconhecimento dos próprios gestos. Reconhecer, nomear ou recriar a imagem
do próprio corpo, da própria voz. Se preciso for, “modificar a imagem (...) [que a
pessoa] tem de seu corpo e fazer com que adquira uma nova maneira de utilizá-lo.”
(BÉZIERS, 1992, p. 12)
Como disse anteriormente, não pretendo com essas técnicas desenvolver
habilidades, mas sim observar possíveis automatismos e, assim como concebeu
Klauss Vianna em sua técnica somática, “escutar o corpo” e envolver “o pensamento
do corpo, que é um ‘estar presente’ em suas sensações, enquanto se executa o
movimento, sentindo-o e assistindo-o, tornando-se, desta forma, um espectador do
próprio corpo.” (MILLER, 2005, p. 24)
119
iniciativa. A proximidade do outro é, no respiro, ‘fissão do sujeito, para
além do pulmão, até o núcleo resistente do eu, até o indivisível de seu
indivíduo. (CAVARERO, 2004, p. 47)
120
3.3.3.4 Corpo: as pregas vocais
121
temos a voz que temos? Será que ela soa sempre igual ou depende da situação, ou
da pessoa a quem nos dirigimos? Muda quando canto ou quando falo?
122
de fala. Segundo o autor, é medida pela taxa de sucessão de sílabas;
Continuidade: a localização, a quantidade, assim como a duração de pausas
estão intimamente relacionadas com a continuidade e variam de falante
para falante. Abercrombie (1976) aponta para dois modos de classificar as
pausas: (a) como “hesitação” ou (b) como “cessação da fala”. Este último
modo teria o propósito fisiológico de “respirar” e, geralmente, não seriam
percebidas nem pelo falante nem pelo ouvinte;
Ritmo: decorre de uma recorrência periódica de algum tipo de movimento,
produzindo uma expectativa de que haja uma regularidade. Os movimentos
envolvidos no ritmo da fala produzem a acentuação silábica. O ritmo da
fala é essencialmente um ritmo muscular e os músculos envolvidos são os
músculos da respiração;
Variação de tessitura: é uma faixa de tons (frequência) em torno de um
ponto central na qual a fala de um indivíduo é produzida. O tom flutua
continuamente durante a fala, mas as flutuações tendem a ficar em torno
desse ponto central. Os deslocamentos de frequência são específicos, uma
vez que funcionam como marcas de fatores de ordem discursiva, tais como
uma oração parentética, por exemplo;
Registro: são diferentes qualidades vocais decorrentes de diferenças na
ação da fonação; porém, registros são tipos de fonação que variam durante
a fala, com o objetivo, por exemplo, de expressar afetividade. E por serem
características transitórias, devem ser vistos como características de
dinâmica vocal35.
Flutuação tonal: é a variação contínua da frequência da voz enquanto
falamos, fato que define os contornos entonacionais da fala. Por isso, não é
uma flutuação aleatória, mas sim, segue padrões melódicos bem definidos,
considerados de importância linguística e social.
35
Registro é um termo empregado por diferentes áreas do conhecimento, podendo ser entendido de
maneiras variadas.
123
3.3.4 Espaço-tempo para expor a voz
Não é capaz de experiência quem não se expõe (Larrosa, 2014): com essas
palavras, proponho que passemos a observar como lidamos com a situação da
exposição pública da própria voz.
Nesse momento, as pessoas podem escolher o que querem mostrar (cantar,
contar histórias, declamar, ler, etc). Todas as exposições da voz são registradas em
um gravador. Para que cada um possa viver a voz-experiência no lugar de quem
se expõe em público, proponho às pessoas que escutam que estejam na posição de
quem recebe a novidade de uma voz que nunca mais se fará a mesma, como um
presente, um “nascimento”, pois assim é a voz que ali se escancara. Acolhemos os
riscos dos possíveis “erros”, da falta de ar, das palavras “engolidas”, da voz que
falha, da tremedeira das mãos e dos lábios, da boca seca. Na posição de escutadores,
proponho que fiquemos no acolhimento, sem julgar, dando livre movimento à voz
que emerge daquele que se expõe, daquele que se enuncia com voz própria. É voz
e escuta como possibilidade de encontro.
Temos aqui um espaço aberto para o sujeito da experiência, tal como Larrosa
nos apresenta:
124
3.3.5 Espaço-tempo para escutar a voz gravada
Passamos à escuta individual de cada voz ali gravada, para escutar mais
uma vez, agora através de um outro meio: o gravador e as caixas amplificadoras.
É uma voz deslocada que pode trazer outros sentidos para quem escuta, é uma voz
descolada para aquele que emitiu sua voz e agora se escuta em outro tempo.
Algumas pessoas se sentem constrangidas ao escutar a voz gravada, uma
vez que não se reconhecem naquela voz. Outras passam a escutar e reconhecer
características que não sabiam que tinham. Umas se surpreendem e admiram o que
é seu, outras se recusam a acreditar que aquela voz é sua, uma vez que a sonoridade
da voz que escutamos quando falamos ou cantamos é diferente da que escutamos
no gravador. É processo de conhecer a si próprio e observar-se.
125
possibilidades para a voz que já tínhamos, mas não necessariamente percebíamos
que tínhamos. Podemos perceber e nomear a voz-experiência e a partir dela o que
é ter voz própria, quais são suas características, como soa, como nos sentimos
quando enunciamos.
* * *
126
127
4 Voz nas casas
Ao escrever este texto, me dei conta de que a maior parte dos Ateliês de
Voz aconteceram em casas. Em casas que foram para mim lugares do corpo físico,
mas também do corpo do desejo que habita territórios não topológicos, lugares sem
dentro nem fora, onde habitam uma infinidade de mundos e narrativas, lugares da
experiência. As casas não são consultórios, não são palcos, não são escolas. Nas
casas, habitamos e nos protegemos. Habitamos as casas com nossas vozes.
A seguir, faço uma narrativa ensaiada de momentos vividos durante alguns
Ateliês de Voz em casas, procurando nomear minhas experiências, o que aprendi
nesses encontros com outras vozes e como fui afetada, as marcas que foram feitas
em mim, os vestígios deixados, os efeitos, as vozes escutadas (LARROSA, 2014).
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4.1 A Casa Tombada
Foi o primeiro Ateliê de Voz que aconteceu como disciplina do curso de pós-
graduação A Arte de Contar de Histórias. Foi dia 16 de abril de 2016, num sábado,
Dia Mundial da Voz: uma coincidência voltar a dar aulas de voz nesse dia. Era para
mim uma novidade, um começo, dar aula de voz para contadores de história. Mas
era também a confirmação: o que o contador de história faz é enunciar, assim como
faz a cantora, o poeta, a professora e o professor, assim como fazem as pessoas em
seu cotidiano.
Buscamos construir juntos e identificar quais são as características vocais
presentes nesse modo de enunciar, nessa modalidade de linguagem, a de contar
histórias. Pensamos juntos em quem é o contador (e assim pensamos em nós
mesmos e nas marcas de estilo individual), no porquê, para quem e onde se conta
história e experimentamos a voz a partir desses questionamentos.
O último momento do nosso encontro: expor a voz à escuta do outro.
Combinamos que cada um escolheria uma história e traria para contar. A Auritânia
e a Andreia escolheram a mesma história: O conto e a verdade. Apesar do texto
que serviu de base para elas ser o mesmo, os sentidos que pudemos atribuir ao que
cada uma contou foi muito diferente. Na materialização corporal-vocal do texto,
emergiram os estilos individuais de cada uma marcados tanto pela escolha (ainda
que não intencional) e organização das palavras, assim como pelos recursos da voz.
Transcrevo abaixo como cada uma delas contou sua história e convido à
escuta de suas vozes como materialidade de afetos:
Andréia
Na época em que os animais ainda falavam existia uma cidade com casas
somente casas porque naquela época não existia as grandes construções e
nem os prédios somente casas Um dia estava passando por lá uma velha
mulher e vendo aquele monte de casas né ela tava com fome ela tava com
frio cansada e pensou que de repente batendo em algumas das portas ela
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conseguiria um pedaço de pão um abrigo e lá foi a velha mulher chegou em
frente à porta e toc toc toc ((ruído de porta se abrindo)) por essa frestinha da
porta as pessoas de dentro da casa olharam aquela mulher e hum hum hum
aquela velha mulher TA fecharam com a porta na casa daquela mulher bem a
primeira casa né a gente não desiste na primeira e ela foi até a próxima casa
em frente da próxima porta toc toc toc dessa vez nem a frestinha da porta foi
da janela mesmo ali puxando só a cortina que as pessoas de dentro da casa
olharam a velha mulher e nada ninguém respondeu ninguém falou nada nem
um barulhinho sequer e como ela não desiste nunca foi de porta em porta de
casa em casa de porta em porta de casa em casa de porta em porta de casa em
casa de porta em porta ((fungou)) até que ela cansou já estava cansada ficou
mais cansada ainda e vendo uma fonte que estava no centro da pracinha da
cidade ela foi até lá com a voz mansa molhou o rosto bebeu a água ((respirou
profundamente)) enquanto ela estava ali descansando passou por ela um
jovem rapaz alegre e ele vestia uma capa colorida com todas as cores azul
amarelo vermelho preto branco que também é cor e ela ficou observando
aquele jovem rapaz passar por ela e chegar até a próxima porta cantarolando
lalala lala lala lala lala toc toc toc e pra surpresa da mulher não é que a porta
se abriu gente? Foi um milagre e as pessoas da casa ao fecharem a porta
com o jovem rapaz dentro cantavam dançavam riam se alegravam muito ele
saiu dessa casa foi até a casa seguinte parou em frente a porta toc toc toc e
de novo a porta se abriu e as pessoas dessa casa ao fecharem a porta com o
jovem rapaz dentro riam dançavam gargalhavam ah ha haha ((risadas)) e ela
ficou intrigada mas como assim né então ela resolveu ir até aquele jovem
rapaz e falar com ele e assim que ele saiu da casa Olá meu jovem rapaz
quem é você que todos querem receber que todos se alegram que todos
cantam que todos dançam e riem muito diga quem é você Eu eu sou o conto
todos querem me ouvir todos querem me receber mas e você quem é você
que ninguém quer receber diga quem é você Eu eu sou a verdade e ninguém
quer me conhecer E então compadecido da verdade o conto então lhe disse
Venha entre na minha capa e vamos juntos de casa em casa de porta em
porta vamos viajar pelo mundo e assim foram viajaram pelo mundo e viajam
até hoje É e aí eu fico pensando acho que é por isso que toda vez que a gente
ouve uma história a gente ouve uma verdade porque toda história traz uma
verdade não é O que era de papel rasgou-se e o que era de vidro quebrou-
se entrou por uma porta saiu pela outra e a próxima colega que quiser que
conte outra
Auritânia
Certa vez numa aldeia apareceu uma velha mulher cansada muito cansada
130
e ela estava com sede com fome nossa tudo de ruim ela falou eu preciso
pedir ajuda gente não é possível e avistou uma casa alguém vai ter que me
ajudar e poc poc poc a pessoa abriu olhou assim a velha e fechou a porta na
cara dela nossa não sei o que aconteceu mas enfim eu vou tentar outro lugar
ai foi em outra casa a pessoa não quis nem saber olhou da janela e falou e
fechou a janela não quis saber daquela senhora e assim ela foi tentando de
casa em casa e as pessoas sempre batendo a porta na cara dela e ela avistou
uma fonte ela falou ai quer saber eu vou descansar um pouquinho ali e foi
e sentou e tomou aquela agua e jogou a agua no rosto se refrescou e pensou
acho que eu vou dar descansada depois eu continuo procurando uma ajuda
nisso ela avistou um rapaz um moço muito bonito com uma capa colorida
muito bonita também e ele foi passando e na mesma casa que ela bateu ele
resolveu bater também e poc poc poc abriram a porta o jovem entrou e a
mulher escutava muita diversão muitas risadas barulhos de felicidade ficou
intrigada o jovem saiu daquela casa e entrou em outra naquela mesma casa
que a pessoa que só abriu a janela e já foi fechando entrou a velha novamente
ouvia risadas gente alegre diversão isso não é possível por que comigo não
com ele sim eu vou perguntar vou tirar essa dúvida o jovem foi passando
meu rapaz por favor quem é você que entra nas casas e faz todo mundo
sorrir se divertir eu eu sou o conto e o jovem perguntou mas e a senhora
quem é eu sou a verdade só que não é assim que acontece comigo eu bato
nas portas e as pessoas não abrem as portas pra mim eu bato nas portas as
pessoas não querem me conhecer e esse jovem compadecido dessa senhora
falou vamos comigo na próxima casa venha aqui venha aqui na minha capa
e foram os dois numa próxima casa e quando eles saíram de lá eles viajaram
o mundo o mundo o mundo o conto e a verdade e é por isso que todas as
vezes que vocês ouvem um conto nesse conto vem junto com ele a verdade
131
Me coloco a pensar nas palavras que estão desgastadas de tanto dizer em
situações repetidas e o quanto deixamos de habitar essas palavras (CHRISTOV,
2016), o quanto de voz própria deixamos de imprimir quando perdemos o frescor na
“obrigação” de ter sempre o que dizer, de ter sempre que ter uma opinião. Larrosa,
inspirado no texto Experiência e Pobreza de Walter Benjamin (1987), nos alerta
sobre o perigo de termos nossa experiência empobrecida ou mesmo perdida no
mundo contemporâneo quando nos submetemos a essa lógica de termos sempre que
opinar. Para ele
132
4.2 Casa da Esquina
A história da voz de uma criança que decidiu parar de conversar com adultos
aos 9 anos de idade, de uma pessoa que não gosta de sua própria voz, que foi
fazer teatro, mas tinha pavor das aulas de voz. A história da voz de uma mulher
que lembra da voz de sua avó nos encontros familiares de final de semana, da voz
que é aconchego, alimento, cheiro de café coado. A história da voz das mulheres
encarceradas, silenciadas pelas grades dos presídios. A história da voz de uma
educadora que quer oferecer espaços para a voz de outros educadores.
A Casa da Esquina acolheu essas vozes, essas narrativas logo que começamos
nosso encontro num sábado de manhã.
Uma antiga casa abandonada, na cidade de Limeira (interior de São
Paulo), foi reformada com ajuda de amigos da Mariana, a produtora e animadora
das atividades que acontecem nesta casa. A Casa de Esquina, com suas paredes
amarelas, suas portas azuis, chão de madeira, cheiro de casa de vó, tem um quintal
grande e muitas árvores: pés de jabuticaba, de jatobá, de mamão, de pitanga e uma
grande área de terra, como a casa em que eu morava quando era criança em Osvaldo
Cruz. No meu quintal eu podia cantar e dançar. Nas casas em que o Ateliê de Voz
tem ocupado, as vozes também cantam e dançam.
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4.3 Casa Centenária
É mês de novembro de 2016, venta muito forte e o mar está agitado. No
dia em que cheguei a Florianópolis, a cidade foi inundada por uma tempestade que
trouxe o mar para mais perto das ruas habitadas por casas e comércios. Trouxe o
mar mais perto de mim. Eu estava muito feliz e emocionada com a possibilidade de
fazer um Ateliê de Voz numa cidade com mar. Fiquei lembrando do documentário
Botão de Pérola do chileno Patricio Guzmán36 e pensando quantas vozes o mar de
Florianópolis teria, quantas histórias estariam ali submersas.
Cada casa tem sua forma, seu cheiro, sua localização. A casa de Florianópolis
tem mais de cem anos. Ela fica a poucos metros do mar. Da casa eu podia ouvir o
som das águas. O pé direito é alto, as vozes ecoam. Na sala onde nos sentamos para
escutar e dizer, haviam muitos livros nas estantes, pois agora é uma biblioteca de
uma escola democrática. O chão é de madeira e ele range conforme nos deslocamos.
Nos sentamos no chão, em cima de almofadas. A janela da sala tem vista para
uma árvore muito grande, atrás dela está o mar. Nesse chão, debaixo dessa árvore,
brincam as crianças durante os intervalos ou durante as atividades fora da sala de
aula. O espaço da escola é muito bem cuidado. Encontro detalhes em cada canto
que chego e vejo um pé de morango, azulejos pintados, um caminho de pedras
coloridas, desenhos das crianças que ali habitam durante a semana, mosaicos nas
paredes. Naquele espaço da escola as professoras circulam diariamente. Talvez o
meu olhar seja de estrangeira nessa terra diferente da minha, assim como foi em
Arapiraca. Será que elas enxergam como eu? Será que elas escutam como eu? Como
será o som desta escola durante a semana quando as aulas estão acontecendo?
Que vozes esse chão já recebeu? Quem pisa nessa terra?
36
O documentário Botão de Pérola (El Botón de Nácar, 2015) apresenta um narrativa sobre o litoral
chileno que esconde o segredo de dois misteriosos botões encontrados no fundo do mar. Com mais
de 4 mil Km de costa e o maior arquipélago do mundo, o Chile apresenta uma paisagem sobrenatural,
com vulcões, montanhas e glaciares. Nessa paisagem estão as vozes da população indígena da
Patagônia, dos primeiros navegadores ingleses que chegaram ao país, e também a voz dos presos
políticos do governo de Augusto Pinochet. Neste documentário, premiado com o Urso de Prata
de melhor roteiro, o diretor Patricio Guzmán procura encontrar a história chilena que permanece
escondida na água. Ele declara acreditar que, além de ter memória, a água também tem voz e “se
chegarmos bem perto poderemos ouvir as vozes de cada um dos indígenas e dos desaparecidos”.
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É nesse espaço que nos encontramos. E chamo a atenção para que a gente
possa reconhecer esse espaço, sentir o cheiro dele, perceber como nossa voz soa
nesse ambiente, reconhecer as linhas das paredes, quais são as texturas, as marcas
centenárias, a temperatura do chão, os sons que estão convivendo com nossa oficina.
Assim vamos nos tornando mais presentes, mais atentas e podemos habitar mais
nosso próprio corpo.
Nos reconhecemos nesse lugar que assim nomeei. Cada uma das presentes
nomeia ao seu modo, com as palavras que emergem e comparecem.
Me pergunto se as professoras que ali estão escutam o mar como eu escuto ou
se a convivência diária com ele já teria dessensibilizado a escuta para sua volumosa
e ruidosa presença.
Todas as participantes deste Ateliê são professoras de educação infantil. Em
suas narrativas muitas nomeiam a voz como lugar do excesso na sala de aula. Elas
me contam que precisam falar e/ou cantar muito e durante todo o tempo com as
crianças pequenas e o quanto isso as deixa cansadas. Parece não haver muita chance
de fazer pausa, de fazer silêncio com a voz. O espaço-tempo da sala de aula precisa
ser preenchido com atividades, com desenhos na parede, com a voz da professora.
Mas, ainda sim, a voz pede espaço.
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4.4 Casa das Rosas
O apelo para estar na Casa das Rosas com o Ateliê de Voz é o de pesquisar
a voz na poesia. Era para mim um imaginário de desafio, outra novidade; porém,
Rosa, uma das participantes da oficina, no primeiro dia me diz: somos todos poetas.
A fala de Rosa me traz esclarecimento e tranquilidade, porque me faz lembrar que
a voz na poesia só poderia ser a voz que cada um quisesse dar a ela.
Somos todos poetas. Gosto de pensar e nomear a materialidade da voz a
partir do corpo, da respiração, da vibração das pregas vocais, da escuta como uma
dimensão poética. Assim passei a enxergar a voz durante os percursos que fiz. No
encontro poético com a voz, imagino o gesto de vibração das pregas vocais como
uma dança. Ao receber a energia mecânica das ondas sonoras da voz, a membrana
timpânica também desencadeia sua dança, contaminando os ossículos martelo,
bigorna e estribo a se movimentar encadeados dentro do líquido do ouvido médio
até a janela oval, onde transmitem sua energia e fazem também as células ciliadas
iniciarem sua dança. Assim, voz é movimento, escuta é movimento. A dança da voz
faz a dança da escuta. Afeto no corpo.
Muitas poesias emergiram nesse encontro. A poesia que Juliana escolheu
para se expor à escuta das pessoas que ali estavam reunidas no sótão da Casa das
Rosas, numa sexta-feira de carnaval, dia de calor insuportável, foi Apanhador de
Desperdícios do Manuel de Barros. Fui tomada de surpresa, como se tivesse ganhado
um presente muito especial, ao escutar que essas seriam as palavras pronunciadas
por ela, porque elas parecem justamente dizer de uma forma poética a voz que
venho buscando encontrar, a voz-experiência que está de “barriga no chão” (voz-
corpo) e não à serviço da informação, da norma, da regra. É uma poesia-síntese
para o Ateliê de Voz. É também uma poesia que conheci no grupo de estudos Roda
Língua com a voz da Luiza Christov, minha orientadora-escutadora.
Ao escutar a Juliana era como se ouvisse a leitura de um pergaminho, como
se ela fosse uma porta-voz do próprio Manuel de Barros. A presença da voz diante
do grupo que estava à escuta foi marcada, de acordo com minha percepção, por
uma leitura de velocidade acelerada, com as curvas de entonação que seguiam um
136
padrão recorrente, como de quem lê uma carta escrita por alguém, assim Juliana
vozeou o poema Apanhador de desperdícios:
Manoel de Barros
137
5 Expor a Voz
Escrever é cantar.
138
Referências Bibliográficas
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University Press, 1967.
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comienzo. Barcelona, Herder Editorial, 2004.
BEHLAU, Mara. O livro do especialista. Vol. II. Rio de Janeiro: Revinter, 2005.
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Disponível em: <https://goo.gl/x7neH4>. Acesso em: 27 de dez. 2016.
139
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Pessoa de; FIORIN, José Luiz (Orgs.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. 2ª
ed.1ª reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. p. 11-27.
CIA CABELO DE MARIA. Cantos de Trabalho. São Paulo: Selo Sesc, 2007. CD.
COELHO, Helena Wohl. Técnica Vocal para Coros. São Leopoldo, RS: ed. Sinodal,
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DEWEY, John. Ter uma experiência.In. Arte como experiência. São Paulo: Ed.
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140
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www.youtube.com/watch?v=Zo-jk4kVtE8>. Acesso em: 8 de mar. de 2018.
141
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arte na escolar. Dissertação (mestrado em Artes). Unesp, 2017.
MORAES, José Geraldo Vinci de. Escutar os mortos com os ouvidos. Dilemas
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MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo. Ed.
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MOTTA. Ana Raquel. Muito além da cigarra e da formiga. In. Letras de hoje. Porto
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SUNDBERG, Johan. Ciência da voz: fatos sobre a voz na fala e no canto. Trad.
Glaucia Laís Salomão. São Paulo. Edusp, 2015.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. (1987). Trad. Amalio Pinheiro e Jerusa Pires
Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
142
Anexo
Caderno de cantos
Transcrição das letras dos cantos que ouvi em Arapiraca
Cantos de trabalho
1.
https://goo.gl/CnVXug (versão digital)
Faixa 14 do CD em anexo (versão impressa)
Refrão
Meu amor tá me chamando (ô siu)
eu não vou lá (ô siu)
Tomara que meu bem chegue (siu siu siu)
Pra saudade se acabar
E tomara que meu bem chegue (siu siu siu )
Pra saudade se acabar
143
Meu anel de sete pedra (ô siu)
Que custou mil e quinhentos (ô siu)
Quando eu boto ele no dedo (siu siu siu)
Não me falta casamento
2.
https://goo.gl/SctKtZ (versão digital)
Faixa 2 do CD em anexo (versão impressa)
A saudade me deixou
Na grossura de uma linha
Se não fosse a saudade
Eu não era tão fininha
144
Acudi meu lenço branco
Por cima do forno quente
Só não casarei contigo
Se a morte for de repente
3.
https://goo.gl/t7NwoP (versão digital)
Faixa 15 do CD em anexo (versão impressa)37
Refrão
Morena da mata
Seus cabelos cheira
Água de colônia
E flor da laranjeira
Água de colônia
E flor da laranjeira
Maria ô Maria
Com tanta Maria é essa
Eu vou mudar o meu nome
De Maria pra Josefa
Da vaca lá da capina
O capim não nasce mais
As passada que tu desse
Se for por mim não dê mais
37
Confira também gravação realizada pelo Selo Sesc de Alagoas no album Mestre Nelson Rosa
e Destaladeiras de Fumo de Arapiraca disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8AgHn_
Slgso
145
4.
https://goo.gl/XGAzhp (versão digital)
Faixa 16 do CD em anexo (versão impressa)
5.
https://goo.gl/HxSKdp (versão digital)
Faixa 17 do CD em anexo (versão impressa)
6.
https://goo.gl/B3uBWE (versão digital)
Faixa 18 do CD em anexo (versão impressa)
146
Leva eu saudade
Se me leva eu vou
7.
https://goo.gl/5RBsxG (versão digital)
Faixa 19 do CD em anexo (versão impressa)
plantei um pé de cravo
num pires em cima da mesa
e tô amando moreninho José
com toda delicadeza chorando
por deixa de amar rapaz bandoleiro
se eu não me casar José
morrerei solteira chorando
8.
https://goo.gl/xqtxSt (versão digital)
Faixa 8 do CD em anexo (versão impressa)
147
quem não pode com a formiga (chora viola)
não assanha o formigão (chora viola)
e quem não pode dar o vinho (chora viola)
num bota fumo no salão (chora viola)
9.
https://goo.gl/inQF6S (versão digital)
Faixa 20 do CD em anexo (versão impressa)
Renata venha cá
venha mim faze favo
venha recebe
lembrança que seu amo lhe mandou
148
10.
https://goo.gl/iyNwTU (versão digital)
Faixa 21 do CD em anexo (versão impressa)
11.
https://goo.gl/NWt3MJ (versão digital)
Faixa 22 do CD em anexo (versão impressa)
a chuva choveu
mas não me molho
é chegada a hora
de’u olha pra meu amo
iáiá
149
a chuva choveu
foi um serenim
e está chegada a hora
deu olha pra meu benzim
iáiá
12.
https://goo.gl/gXCvGb (versão digital)
Faixa 4 do CD em anexo (versão impressa)
150