Da Guerra Justa Ao Império Cristão: Juan Ginés de Sepúlveda, Bartolomé de Las Casas E A Teolo-Gia Política
Da Guerra Justa Ao Império Cristão: Juan Ginés de Sepúlveda, Bartolomé de Las Casas E A Teolo-Gia Política
Da Guerra Justa Ao Império Cristão: Juan Ginés de Sepúlveda, Bartolomé de Las Casas E A Teolo-Gia Política
Resumo: No século XVI, o processo de conquista levou os espanhóis a se consolidarem como os primei-
ros europeus a ocuparem a América. O período entre 1535 e 1551, ou seja, da instituição do primeiro
vice-rei da Nova Espanha, Antonio de Mendoza, até a chamada “controvérsia de Valladolid” compreende
uma série de episódios que demonstram a disputa interna entre articuladores de projetos políticos distintos
dentro da Corte Hispânica. Neste sentido, temos como objetivo propor uma nova forma de re-inserir o
debate sobre a “guerra justa” em Bartolomé de Las Casas e em Juan Ginés de Sepúlveda dentro de uma
problemática contextual própria desse período, que é a da mundialização do conceito cristão de império
— e o papel que certas categorias políticas e religiosas teriam nesse processo. Para isso, nossa proposta
consiste em realizar a análise histórico-religiosa da categoria de “guerra justa” no debate de Valladolid, a
partir de dois referenciais teóricos: a problemática da “teologia política” e as classificações propostas por
Merio Scattola (2009) para o tema no século XVI, e a análise comparativa e diferencial proposta por
Nicola Gasbarro (2006, 2011, 2014) para o problema histórico do encontro cultural, desenvolvida tam-
bém por Cristina Pompa (2006) e Adone Agnolin (2013, 2014, 2015, 2017).
Resumen: En el siglo XVI, el proceso de conquista llevó a los españoles a consolidarse como los primeros
europeos en ocupar la América. El período comprendido entre 1535 y 1551, es decir, desde la institución
del primer virrey de Nueva España, Antonio de Mendoza, hasta la denominada “controvérsia de Valla-
dolid” comprende una serie de episodios que evidencian la disputa interna entre articuladores de diferentes
proyectos políticos dentro de la Corte Hispánica. En este sentido, pretendemos proponer una nueva forma
de reinsertar el debate sobre la “guerra justa” en Bartolomé de Las Casas y en Juan Ginés de Sepúlveda
dentro de un problema contextual propio de ese período, que es la globalización del concepto cristiano
imperio - y el papel que ciertas categorías políticas y religiosas jugarían en este proceso. Para ello, nuestra
propuesta consiste en realizar el análisis histórico-religioso de la categoría de “guerra justa” en el debate
de Valladolid, a partir de dos referentes teóricos: el problema de la “teología política” y las clasificaciones
propuestas por Merio Scattola (2009) para el tema en el siglo XVI, y el análisis comparativo y diferencial
propuesto por Nicola Gasbarro (2006, 2011, 2014) para la problemática histórica del encuentro cultural,
también desarrollado por Cristina Pompa (2006) y Adone Agnolin (2013, 2014, 2015, 2017).
1 Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, graduado em História
pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail:
[email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2133820650351878.
2 Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, graduado em História
pela Universidade Federal do Tocantins, Campus Porto Nacional. E-mail:
[email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1147832325801379.
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Introdução
Em algum momento entre 1570 e 1580, assombrado com suas próprias lembranças
da guerra, Michel de Montaigne repetia a Eneida de Virgílio e narrava o cerco dos Bourbon
a Roma, tratando do tema do medo: “no mesmo cerco foi memorável o medo que apertou,
invadiu e paralisou com tanta força o coração de um fidalgo que ele caiu duro, morto, no
chão, numa brecha, sem nenhum ferimento” (MONTAIGNE, 2010: 56). A guerra as-
sombra o coração dos homens desde a antiguidade, fazendo parte, contudo, do cotidiano
político daqueles que detêm o poder.
Muitos foram os pensadores que articularam a guerra dentro da normatividade.
Dentro do sistema do cívico e jurídico de Roma Antiga, Cícero e Agostinho apresentaram
motivos diferentes — um “pagão” e o outro cristão — para a justificativa da guerra (STE-
WART, 2018; JOHNSON, 2018). O século XVI foi um período de conturbações polí-
tico-religiosas na Europa continental com o contexto da Reforma Protestante; em con-
junto, ocorre o encontro entre europeus e americanos, realizado de forma violenta desde o
primeiro momento. Esses acontecimentos estão abarcados sob o prisma da renovação cul-
tural realizada pelo Renascimento (AGNOLIN, 2013).
As teorias de guerra justa foram mobilizadas nos séculos XV e XVI de formas
diversas. Desde as bulas de 1486 e 1487 convocando a cruzadas contra os turcos, a Mar-
tinho Lutero exortando à guerra contra os camponeses (1525) e contra os turcos (1528),
os europeus buscaram formas de justificar a guerra, principalmente utilizando-se das cate-
gorias religiosas. No contexto americano não seria diferente, e desde os primeiros anos
após 1492 teóricos como Francisco de Vitória irão se debruçar sobre a questão da guerra
justa detidamente contra os indígenas (BELLAMY, 2018).
O conceito de “guerra justa” está intrinsecamente relacionado a dois dos principais
elementos constitutivos da sociedade ocidental: “civilização” e “religião”. Essas duas cate-
gorias, intrinsecamente inter-relacionadas durante todo o processo histórico da
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Afinal, desde Santo Agostinho que essas duas concepções se aproximam, do ponto de vista cristão, como Étienne
Gilson (2006, particularmente as p. 326-350) bem nos mostra. Essa constatação se mostra interessante para nossa
análise pois, apesar da relação intrínseca entre “civilização” e “religião” do ponto de vista agostiniano, a mesma
coisa não pode ser afirmada sobre a relação entre “política” e “religião” (Império e Igreja), como aponta Merio
Scattola (2009: 54-59 e 88-91).
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E continua sendo, na realidade: a responsabilidade do governo Trump seria “proteger o povo americano, a pátria
e o estilo de vida americano” (EMBAIXADA, 2017).
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Uma das principais disputas teóricas que aconteceu nesse período foi o Debate de
Valladolid, em 1550. Momento no qual o filósofo humanista Juan Ginés de Sepúlveda,
que se intitulava “aristotélico”, e o missionário dominicano Bartolomé de Las Casas, que
se proclamava “defensor de los indios", se enfrentam num debate perante o Conselho das
Índias. Os dois autores acabam por se defrontar com a problemática da justificativa da
escravidão dos indígenas a partir, entre outras coisas, da mobilização do conceito de guerra
justa. Em síntese, para Sepúlveda, a guerra contra o indígena seria justa, pois, os mesmos
seriam “bárbaros” no sentido aristotélico do termo e, para Las Casas, a escravização do
indígena não se justificaria, pois, o objetivo da Igreja e da Coroa na América deveria ser a
conversão ao cristianismo — processo que não seria facilitado, e sim dificultado, com a
escravização.
Podemos afirmar de forma simplificada que a teoria da “guerra justa” de Juan Ginés
de Sepúlveda tem por objetivo principal ser uma justificativa jurídica da escravidão indí-
gena. Devemos situar os argumentos do pensador espanhol como um produto tanto do
seu contexto histórico quanto nas redes de relações sociais do autor, incluindo sua forma-
ção intelectual nas universidades de Salamanca e Alcalá, sua fase italiana, bem como sua
atuação como cronista oficial do imperador Carlos V.
Ainda no mesmo contexto do século XVI e da conquista, porém com um posicio-
namento totalmente contraposto a Sepúlveda, existe a obra de Bartolomé de Las Casas,
dominicano e missionário nas terras americanas do imperador. Seus manuscritos circula-
vam pelas mãos de missionários e funcionários do reino, apresentando argumentos teoló-
gicos, políticos e morais contrários à ideia de “guerra justa”. A negação lascasiana da guerra
justa se daria por ela ir de encontro com seu projeto político de conversão dos indígenas.
Os dois autores são colocados frente a frente num dos episódios emblemáticos da
colonização espanhola na América, a chamada “controvérsia de Valladolid” de 1550. Exis-
tem diversos debates sobre quem acaba por “vencer” a controvérsia. A posição mais aceita
é a de uma vitória lascasiana, com alguns dos principais historiadores a se debruçarem sobre
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a obra de Las Casas colocando o debate como um simples evento não muito significativo
em uma trajetória aguerrida e militante do dominicano, ou então como o ponto em que a
proposta lascasiana se torna dominante dentro do modelo imperial espanhol (BATAIL-
LON, 1976: 38-39; GUTIÉRREZ, 1993: 173-175). Escritos mais recentes tendem a ver
que, apesar de a Coroa adotar um posicionamento de combate à encomienda5 e à escravi-
zação dos indígenas, Sepúlveda teve forte influência na agenda política e nas formas de
atuação da Coroa na América (SPEER, 2020). Ou então, uma perspectiva crítica que
aponta para o silenciamento de Las Casas dentro das discussões teóricas acerca do jus ad
bellum e da temática da “guerra justa” (BRUNSTETTER, ZARTNER, 2011).
Encontramos também uma tradição na historiografia lascasiana, que é a de estabe-
lecer uma rede de estudos comparados entre Francisco de Vitória6, Las Casas e Sepúlveda.
Quando o fazem, os historiadores colocam Las Casas e Sepúlveda como contrapontos ló-
gicos a uma problemática iniciada a partir da obra de Vitória; é o caso, por exemplo, em
La caída del hombre natural de Anthony Pagden (1988).
Este artigo tem como objetivo propor uma nova forma de re-inserir o debate sobre
a guerra justa em Las Casas e em Sepúlveda dentro de uma problemática contextual própria
desse período, que é a da mundialização do conceito cristão de império — e o papel que
certas categorias políticas e religiosas teriam nesse processo. Ao focar na pergunta “quem
venceu os debates?”, parece que se deixa de lado a problemática contextual do império
espanhol: Las Casas e Sepúlveda não são apenas contrapontos posicionais frente ao indí-
gena, representando muito mais dois projetos distintos para a atuação do império
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Não é o nosso objetivo nesse artigo fazer um detalhamento sobre o quão a questão da encomienda é importante
para a questão da guerra justa. Porém, é importante notar que a inserção social tanto de Sepúlveda quanto de Las
Casas perpassa o seu posicionamento frente aos encomenderos, principalmente para o dominicano, que tem uma
trajetória complexa junto a esse grupo econômico (SOMEDA, 1981).
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Dominicano e teólogo da Universidade de Salamanca. Tanto o teólogo da libertação Gustavo Gutiérrez, quanto
o historiador Anthony Pagden, seguem essa trajetória que vai de Vitória a Las Casas, para se ter exemplos emble-
máticos.
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simbólico cristão, que teria na Coroa espanhola a sua frente de atuação no continente ame-
ricano, no primeiro século e meio de colonização.
Afinal, se a “ideologia imperial de Carlos V [...] é obrigada a repensar a si mesma
em termos simbólicos graças à descoberta do Novo Mundo” (GASBARRO, 2011: 21),
de qual forma esse “repensar-se a si mesmo” deve adequar, junto ao Novo Mundo, as
populações que lhe habitam? Las Casas e Sepúlveda oferecem projetos distintos, mas que
concordam ao avaliar que as populações indígenas devem ser inseridas na economia —
simbólica, econômica e política — do mundo europeu. A partir da mobilização do con-
ceito aristotélico de “guerra justa”, estes dois projetos irão disputar sobre os modos de
inserção ideal dessa população7. As categorias políticas — no recorte deste artigo, mobili-
zadas a partir do debate sobre a “guerra justa” — encaram o desafio de pensar soluções
para que essa “captura” se realize a partir de uma coesa articulação entre prática religiosa,
organização social e produção material.
Por isso, nosso artigo se divide em três momentos: a análise do conceito de guerra
justa em Juan Ginés de Sepúlveda, a contraposição realizada por Las Casas e, na conclusão,
uma reflexão sobre a mobilização desses conceitos no contexto imperial e colonial.
Segundo Anthony Pagden (1988: 155), Juan Ginés de Sepúlveda foi o autor que
escreveu o “argumento más virulento y decidido a favor de la inferioridad del indio ame-
ricano”. No contexto do século XVI grandes eram os debates em torno do chamado “pro-
blema da conquista”, sobre a condição dos povos indígenas americanos e a legitimidade
das ações dos europeus a partir da “descoberta” do Novo Mundo. Muitos destes
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Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que existe todo um processo de rearticulação dos conceitos políticos e
religiosos nos séculos XVI e XVII. O Novo Mundo e as populações indígenas encontram-se no centro dessa nova
articulação de paradigmas, principalmente no momento em que o Ocidente europeu se reorganiza para “capturar”
a alteridade (AGNOLIN, 2017: 513).
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Seguindo particularmente a tradição “averroísta”, de Pádua, assim como seu mestre Pomponazzi (KRISTELLER,
1970: 58).
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Democrates Secundus, o de las justas causas de la guerra contra los índios (Demo-
crates alter sive de justis belli causis apud Indos)
O Democrates Secundus é uma obra escrita com a pretensão de ser uma continuação
do Democrates, primeira obra de Sepúlveda e que chegou a uma tradução em espanhol no
ano de 1541. O principal esforço dessa primeira obra de Sepúlveda é o de “demonstrar
que no es imposible ser a la vez cristiano y soldado” (BATAILLON, 1966: 632). O ob-
jetivo do Democrates alter — uma outra forma de chamar o Democrates secundus — é
aplicar esse conceito do miles christianus (soldado cristão) e justificar as guerras que se
fazem contra os indígenas, como mostra o título.
A obra inicia-se com um pequeno comentário dirigido a D. Luis de Mendoza, se-
gundo Sepúlveda, aquele que presidia o “Consejo Real de las Indias” que, naquele contexto,
era o conselho encarregado de administrar junto ao imperador as questões referentes às
colônias espanholas no Novo Mundo. Neste pequeno comentário Sepúlveda se encarrega
de situar sua obra frente à grande questão fruto de debate naquele momento, qual seja:
Si es justa o injusta la guerra con que los Reyes de Espana y nuestros compa-
triotas han sometido y procuran someter a su dominacion aquellas gentes bar-
baras que habitan las tierras occidentales y australes, y a quienes la lengua espa-
nola comunmente llama indios: y en que razon de derecho puede fundarse el
imperio sobre estas gentes [...] (SEPÚLVEDA, 2018: 05).
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como seu método, um diálogo socrático entre o alter ego de Sepúlveda, Demócrates, e o
alemão Leopoldo, “[...] contagiado un tanto de los errores luteranos, [...]” (SEPÚLVEDA,
2018: 6). Assim, já a partir dos interlocutores, e durante toda a leitura dos argumentos de
ambos, podemos perceber uma tentativa de deslindar problemas interpretativos que, fir-
mados a partir da reforma luterana de 1517, grassavam entre os debates teológicos do
século XVI.
A análise dos argumentos expostos por Sepúlveda será abordada neste tópico em
duas seções. Na primeira, apresentaremos a teoria da “guerra justa” exposta pelo autor e
os princípios necessários, de acordo com o mesmo, para que uma guerra seja considerada
justa; e na segunda parte, procuramos expor a justificativa da escravidão indígena para Juan
Ginés de Sepúlveda, embasadas na premissa de que os povos originários americanos seriam
“bárbaros” e, por isso, sujeitos ao domínio dos espanhóis e “siervos por naturaleza”.
Nesse sentido, Leopoldo vai pedir: “Vamos, pues, al asunto y exponme ya las causas
(si algunas hay) por las cuales crees tu que, justa y piadosamente, puede emprenderse o
hacerse la guerra” (SEPÚLVEDA, 2018, p. 09).
O diálogo entre os dois interlocutores se inicia com um resumo acerca dos temas
que haviam discutido em face de seu primeiro colóquio, que teria ocorrido em Roma, o
qual está registrado em outro texto do autor, em seu Demócrates Primus. Nesta obra,
Sepúlveda abordou a questão da “compatibilidade” entre a vida militar e a vida religiosa,
no que se refere aos reinos cristãos e a algumas questões que estariam sendo postas a prova
pela interpretação luterana dos textos do cristianismo. Sepúlveda retoma estas questões
para introduzir o problema da “conquista” e da guerra que se fazia aos povos originários
americanos. Assim, após relatar um “encontro” com Hernán Cortés, Leopoldo introduz a
questão à Demócrates, e indaga: “[...] si era conforme a la justicia y a la piedad cristiana el
que los espanoles hubiesen hecho la guerra a aquellos mortales inocentes y que ningun mal
les habian causado” e “[...] todas las causas que puede haber para una guerra justa,[...]”
(SEPÚLVEDA, 2018: 07).
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Segundo Sepúlveda, os princípios para que uma guerra seja “justa” estariam funda-
mentados na chamada “ley natural”, a qual seria, para ele, uma expressão da chamada “ley
divina”. Pois, “[...] todo lo que se hace por derecho o ley natural, se puede hacer tambien
por derecho divino y ley evangelica; [...]” (SEPÚLVEDA, 2018: 08), e conforme os ensi-
namentos de Santo Agostinho, o princípio cristão de apresentar a outra face não quer dizer
que se deve abolir o princípio natural pelo qual “[...] es licito resistir la fuerza con la fuerza
dentro de los limites de la justa defensa”, pues no siempre es necesario probar esa resigna-
cion evangelica de un modo exterior, sino que muchas veces basta que el corazon esté
preparado, [...]” (SEPÚLVEDA, 2018: 08).
Desta forma, Demócrates parte de um lugar comum, onde haveria certa convergên-
cia entre os preceitos da “ley natural” e da “ley divina”, para fundamentar a sua teoria da
“guerra justa”, o que também será uma base importante para os desenvolvimentos acerca
da justificativa da escravidão indígena e do domínio dos espanhóis sobre suas terras e sobre
sua liberdade civil (voltaremos a isso mais a frente). Especificamente, este lugar comum
entre os preceitos da “ley natural” e da “ley divina” é definido por ele, com base em Santo
Agostinho, como a expressão da “voluntad de Dios”:
Los filosofos llaman ley natural la que tiene en todas partes la misma fuerza y
no depende de que agrade o no. Los teologos, con otras palabras, vienen a decir
lo mismo: La ley natural es una participacion de la ley eterna en la criatura
racional. Y la ley eterna, como San Agustin la define, es la voluntad de Dios,
que quiere que se conserve el orden natural y prohibe que se perturbe. De esta
ley eterna es participe el hombre, por la recta razon y la probidad que le inclinan
al deber y a la virtud, pues aunque el hombre, por el apetito, sea inclinado al
mal, por la razon es propenso al bien. Y asi la recta razon y la inclinacion al
deber y a aprobar las obras virtuosas, es y se llama ley natural. (SEPÚLVEDA,
2018: 09).
Assim, a partir deste lugar comum, começa a apresentar em seu diálogo os princípios
para que uma guerra seja considerada “justa”. Para Sepúlveda, não somente as causas devem
ser observadas, mas, é preciso observar também os métodos, os objetivos e a legítima au-
toridade para se declarar a guerra.
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Segundo o autor, para que uma guerra seja “justa” é necessário que seu objetivo seja
o “bem público”, isto é, “[...] el fin de la guerra justa es el llegar a vivir en paz y tranquilidad,
en justicia y practica de la virtud, quitando a los hombres malos la facultad de danar y de
ofender” (SEPÚLVEDA, 2018: 10). Assim como, somente os príncipes, os governantes
responsáveis pela administração do reino é que teriam a legítima autoridade para declarar
a guerra, de forma que para o autor (seguindo as proposições de Santo Agostinho e Santo
Isidoro), a outros governantes de instâncias inferiores não seria lícito declarar a guerra,
como também não seria “justa” a guerra feita sem uma prévia declaração. Os métodos para
fazer a guerra também devem estar de acordo com a virtude cristã, pois, segundo Sepúlveda,
[...] el pecar en cualquier cosa puede ser de muchos modos, pero el obrar bien no puede ser
mas que de uno solo, [...].” (SEPÚLVEDA, 2018: 10).
A partir destes princípios gerais, segundo Juan Ginés de Sepúlveda, seriam muitas
as causas para que uma guerra seja “justa”. “Hay otras causas de justa guerra menos claras
y menos frecuentes, pero no por eso menos justas ni menos fundadas en el derecho natural
y divino; [...]” (SEPÚLVEDA, 2018: 12). No entanto, importante para o nosso trabalho
são as quatro causas enumeradas por Demócrates, de acordo com o “derecho natural y
divino” (“ley natural” e “ley divina”), para que uma guerra seja considerada “justa”. A
primeira causa, “[...] la mas grave, a la vez que la mas natural, es la de repeler la fuerza con
la fuerza, cuando no se puede proceder de otro modo; porque como he dicho antes con
autoridad del papa Inocencio, permitese a cada cual el rechazar la agresion injusta” (SE-
PÚLVEDA, 2018: 11).
A segunda causa, segundo Sepúlveda, “[...] es el recobrar las cosas injustamente ar-
rebatadas, [...]” (SEPÚLVEDA, 2018: 11). Para ele, seria lícito recuperar os pertences e
rechaçar as ofensas, não somente as sofridas contra si próprio, mas, também para ressarcir,
proteger e defender seus aliados. Em seguida, a terceira causa para uma “guerra justa” seria:
[...] el imponer la merecida pena a los malhechores que no han sido castigados
en su ciudad, o lo han sido con negligencia, para que de este modo, castigados
ellos y los que con su consentimiento se han hecho solidarios de sus crimenes,
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Neste sentido, estas três primeiras causas estariam enumeradas por Santo Isidoro de
Sevilha e seriam amplamente reconhecidas pelo “derecho eclesiástico”. Segundo Merio
Scattola (2009: 62-63), Isidoro de Sevilha esclarece que “o pecado representa a condição
da potestade política”, sendo a escravidão uma consequência da queda adâmica. O “género
humano portanto só se pode conservar se for instituída uma diferença entre quem tem de
sofrer o medo e quem pode provocar esse medo”. O recurso a Isidoro de Sevilha não nos
parece ingênuo: a recuperação da autoritas de um pensador ligado às origens da Igreja,
ainda num contexto imperial romano, parece ser um apontamento ao que trataremos pos-
teriormente, que é a defesa, por Sepúlveda, de uma posição que reconheça a plena autono-
mia entre as esferas de agência política da Igreja e do Império.
Ao enumerar a quarta causa, Demócrates provoca certo espanto em Leopoldo, pois,
segundo o luterano, esta seria uma visão muito distinta. No entanto, para Demócrates, esta
matéria já seria de amplo conhecimento dos filósofos, os quais a declaravam “justa” de
acordo com a “ley de naturaleza”. Isso porque a última causa para a guerra enumerada por
Demócrates estaria fundamentada na teoria da “esclavitud natural”, de Aristóteles. Para
ele, “[...] es el someter con las armas, si por otro camino no es posible, a aquellos que por
condicion natural deben obedecer a otros y rehusan su imperio” (SEPÚLVEDA, 2018:
12).
Ao elencar estas causas, influenciado pelos ensinamentos contidos nos textos de
Isidoro de Sevilha e Aristóteles, Sepúlveda enumera vários exemplos retirados dos textos
bíblicos e das tradições clássicas, o que nos remete ao seu percurso de formação intelectual,
como abordado no tópico anterior. Em resumo, para que haja uma “guerra justa”, esta
deveria ser realizada por causas igualmente justas, mas, também, ser legitimamente decla-
rada pelo príncipe, ser combatida por corretos meios e ter por objetivo o bem público.
Deste modo, uma campanha militar que fosse levada a cabo a partir destes princípios estaria
de acordo aos preceitos da “ley natural” e da “ley divina”. Em outras palavras, para
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Sepúlveda, uma guerra que partisse destas condições não somente seria considerada uma
“guerra justa”, como seria considerada a própria “voluntad de Dios”.
Nossa segunda análise vai para a questão central levantada por Leopoldo: “Y quien
nace con tan infeliz estrella que la naturaleza le condene a servidumbre?”.
Demócrates, após elucidar para Leopoldo as causas pelas quais uma guerra pode ser
considerada “justa”, prossegue com sua explicação a partir deste último ponto, a saber:
“[...] es el someter con las armas, si por otro camino no es posible, a aquellos que por
condicion natural deben obedecer a otros y rehusan su imperio” (SEPÚLVEDA, 2018:
12). Conforme expressamos na seção anterior, esta causa estaria fundamentada na “ley
natural”, mais especificamente, e segundo Juan Ginés de Sepúlveda,
[...] tan inferiores a los espanoles como los ninos a los adultos y las mujeres a
los varones, habiendo entre ellos tanta diferencia como la que va de gentes fieras
y crueles a gentes clementisimas, de los prodigiosamente intemperantes a los
continentes y templados, y estoy por decir que de monos a hombres (SEPÚL-
VEDA, 2018: 16).
Através deste trecho podemos observar a forte visão do autor cordobés acerca da
inferioridade dos indígenas americanos, assim como citado por Anthony Pagden.
Para convencer Leopoldo, Demócrates se utiliza de dois argumentos: primeiro,
evoca a questão filosófico-religiosa de uma ausência de virtudes, segundo a qual os indíge-
nas seriam isentos de “prudencia, ingenio, magnanimidad, templanza, humanidad y reli-
gion”, o que é exemplificado, pelo problema da “cobardía, inercía e rudeza”
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(SEPÚLVEDA, 2018: 17). Por outro lado, o segundo argumento diz respeito a aspectos
culturais e religiosos, pois, os indígenas seriam “infieles” adeptos de “costumbres bárba-
ros”, “nefandas liviandades", “sacrificios de víctimas humanas”, “banquetes de cuerpos
humanos” e “culto impío de los ídolos” (SEPÚLVEDA, 2018: 22). A partir destes argu-
mentos, o autor pretende convencer o leitor de suas teses através da narrativa de histórias
retiradas de “[...] relaciones de la conquista de Nueva Espana que hace poco he leido; [...]”
(SEPÚLVEDA, 2018: 15). Aqui, é importante citar que Juan Ginés de Sepúlveda nunca
visitou as terras do “Novo Mundo”, e seu conhecimento sobre os costumes e as instituições
dos povos originários americanos é fruto da sua leitura de “relaciones” publicadas no reino,
e dos relatos colhidos entre sua rede de relações sociais.
Mesmo assim, os argumentos que Sepúlveda intenta defender estão embasados com
ilustrações, que demonstravam estas duas questões: o problema filosófico-religioso da au-
sência de virtudes dos povos indígenas, e os aspectos religiosos e culturais do problema dos
“costumbres bárbaros”, especialmente, o “ejemplo de los mejicanos que eran tenidos por
los mas prudentes, cultos y poderosos de todos” (SEPÚLVEDA, 2018: 17).
Sobre o primeiro, para o autor a ausência de virtudes estaria corporificada em Mo-
ctezuma e na “conquista” de Tenochtitlán:
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Quanto ao segundo argumento, para Juan Ginés de Sepúlveda, era mais justo e pro-
veitoso que os povos originários americanos estivessem sob o domínio dos espanhóis, pois,
segundo ele:
¿Qué cosa pudo suceder a estos bárbaros más conveniente ni más saludable que
el quedar sometidos al imperio de aquellos cuya prudencia, virtud y religión los
han de convertir de bárbaros, tales que apenas merecían el nombre de seres hu-
manos, en hombres civilizados en cuanto pueden serlo; de torpes y libidinosos,
en probos y honrados; de impíos y siervos de los demonios, en cristianos y
adoradores del verdadero Dios? (SEPÚLVEDA, 2018: 23).
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preceptor de Felipe II, Sepúlveda utiliza de seus conhecimentos em filosofia e teologia para
argumentar em favor da legitimidade do domínio dos espanhóis sobre os indígenas do
“Novo Mundo”. Assim, os argumentos expostos em seu tratado partem das ideias dos
pensadores mais respeitados naquele contexto intelectual, entre filósofos clássicos e teólo-
gos, como Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Isidoro de Sevilha, Santo Ambrósio e
Aristóteles. Desta forma, mesmo sem nunca ter conhecido os povos a quem definiu como
“bárbaros” e, por isso, segundo ele, servos naturais dos espanhóis, Sepúlveda dispõe toda
sua erudição e autoridade em favor dos “conquistadores”.
Consideramos central para o desenvolvimento da teoria da “guerra justa” e para o
embasamento da inferioridade dos povos originários americanos no princípio aristotélico
da “esclavitud natural”, o lugar comum em que Sepúlveda situa os preceitos da “ley natu-
ral” e da “ley divina”. Para ele, de certo modo, a “ley natural” seria uma expressão da
própria “ley divina”, de forma que aquilo que estivesse de acordo com os preceitos da “ley
natural”, não obstante, poderia ser, também, considerado como a realização da própria
“voluntad de Dios”.
De acordo com esse princípio, e tendo a coroa espanhola “justas” causas para fazer
a guerra contra os povos originários americanos, e observado todos os aspectos de uma
guerra justa, isto é, (1) prévia declaração e legítima autoridade para declarar a guerra, (2)
um objetivo considerado como bem publico e (3) correto modo de fazer a guerra de acordo
com as virtudes cristãs, esta poderia ser considerada como a própria “voluntad de Dios”.
Assim, através deste lugar comum entre os preceitos da “ley natural” e da “ley divina”, Juan
Ginés de Sepúlveda tornou plausível a sua teoria das causas para uma “guerra justa” apoiada
nas causas dadas por Santo Isidoro de Sevilha e, por último, na causa retirada de Aristóteles,
exatamente o argumento necessário para afirmar a inferioridade dos indígenas americanos.
Tanto é que a ideia da falibilidade humana é retomada em vários trechos do texto,
demonstrando a habilidade retórica do autor. O pensamento de Sepúlveda pode ser inter-
pretado dentro das relações políticas e econômicas internas ao Império espanhol em dois
43
Volume I, Número I, Ano 2021
sentidos: como defensor da causa imperial (perante os missionários e outras coroas euro-
peias) e como defensor da causa dos encomenderos (perante a Coroa e os letrados que
compunham a Corte). No primeiro ponto, o autor manifesta preocupação na defesa dos
aspectos jurídicos e “justos” da conquista da América realizada pela monarquia católica
hispânica, enfatizando inclusive moralmente a atuação da Coroa (SEPÚLVEDA, 2018:
26, 28, 77, 85; SEED, 2001: 101). No segundo ponto, a forma com a qual Sepúlveda
rearticula a formulação aristotélica de forma a não tornar os indígenas “animais” para po-
der incluir a conquista no rol de guerras justas e, assim, justificar a atuação dos encomen-
deros é notável (GLIOZZI, 2000: 247-251). Portanto, é notável na obra Democrates alter
que Sepúlveda mobiliza o conceito de guerra justa para defender um projeto que englobe
os interesses régios e os interesses de conquistadores, perante outros impérios e confirme
o domínio sobre a América.
44
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dominicano os absurdos que se faziam contra os indígenas, Las Casas mudou o sentido de
sua atuação.
A partir deste momento, Las Casas passou a escrever e, principalmente, a tentar de-
mover a Coroa espanhola a uma reforma do sistema de encomiendas. Entre 1516 e 1521
ainda acreditava que poderia acabar com a destruição das Índias “generalizando y raciona-
lizando la práctica de asociación” (BATAILLON, 1976: 11). O dominicano inicia um
processo quase pendular entre América e Espanha, como quando após a morte do cardeal
Cisneros (1517) vai à corte do jovem Carlos I, buscando iniciar um processo que objetivava
“preservar la vida de los índios, assegurar ganancias crecientes a los españoles y a la Corona,
pero también facilitar la colonización de los colonizados” (BATAILLON, 1976: 14).
Durante as duas décadas de 1520 e 1530, Las Casas atuou pela evangelização da
região de Vera Cruz — como um “agitador”, segundo Abilio López Pérez (1997). As
Leyes Nuevas de 1538 pareciam oferecer um novo ar — um “gobierno espiritual y tem-
poral” (BATAILLON, 1976: 27) — para a missão de Las Casas. Porém, a falta de apli-
cação das leis e a manutenção da encomienda ainda instigam o dominicano a, em 1540,
seguir a uma viagem à Corte de Castela. Dez anos se passam e a situação pouco muda;
incessantes ataques de Sepúlveda às Leyes Nuevas estimulam o debate público entre os
dois autores; e em 1550, por fim, o debate de Valladolid é convocado e o dominicano e o
filósofo arguem, sob o registro de Domingo de Soto.
É interessante notar que um dos elementos que estimula a ideia de uma vitória lasca-
siana nos debates é que a versão escrita que nos chega é a de Las Casas: sua argumentação
foi incluída dentre os Tratados, editados e publicados em 1552 em Sevilha. Os argumentos
de Sepúlveda são apresentados apenas pontualmente por Domingo de Soto; portanto, para
entender o posicionamento de Sepúlveda nesse debate é necessário abordar o Democrates
Secundus, que não foi um livro pensado e escrito para o debate (BRUNSTETTER, 2018:
94).
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Volume I, Número I, Ano 2021
Num geral, a perspectiva lascasiana de encarar a política através de uma leitura reli-
giosa pode ser vista como uma síntese do período inicial da colonização americana. Nisso,
concordamos com Arthur Helps (1980: 289-91), porém discordamos quando atribui à
“benevolência” do dominicano o principal fator para sua importância histórica — que iria
“além de qualquer biografia”9. Las Casas tem uma trajetória biográfica que sintetiza as
dinâmicas imperiais pois ele próprio apresentou um projeto para esse contexto, junto àque-
les que concordavam com eles, como Helps demonstra:
To show that he was not the only person entirely opposed to the sale of the
reversions of encomiendas, Las Casas, in the course of this letter [uma carta ao
Conselho de Índias], makes the following statement: ‘-It is about fifteen days
ago that a member of the Council of the Indies, horrified at what is now known
of the situation of America, and and at the proposition which is now mooted,
made me fear the judgements of God (HELPS, 1980: 281)10.
Após os debates e a publicação dos Tratados, Las Casas segue um percurso escatoló-
gico e cada vez mais “extremista” (BATAILLON, 1976: 49-51). O que nos interessa aqui
é estabelecer a forma com a qual o dominicano entende a “guerra justa”, inserindo-o no
debate sobre o tema, tão caro não apenas à sociedade espanhola do século XVI como
também a nós, que encontramo-nos no século XXI.
A guerra contra o indígena não é justa. Mas o que é uma guerra justa?
Dentro da vastíssima obra de Bartolomé de Las Casas, uma das que demonstra mais
efetivamente sua posição contra a escravidão indígena é uma carta ao rei, nomeada de “En
9
E não é esse o caso de todo personagem histórico? Afinal, “os homens fazem a sua própria história; contudo, não
a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita,
mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2011: 23). Tendo isso em vista, o trabalho
historiográfico tem como objetivo trazer a forma com a qual as pressões econômicas, culturais e sociais afligem os
personagens, que interagem dialeticamente com essas pressões apesar de nem sempre terem consciência disso
(COSTA, 2014: 113-134)
10
Uma obra que demonstra os casos de “análises comuns” àquela lascasiana, cujo diagnóstico da destruição das
Índias e do prejuízo advindo disso, é a de BACCI, 2007: 33-54.
46
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defensa de los indios”. São oito argumentos para a defesa dos indígenas, contra “los estra-
gos y matanzas” que são feitas “contra toda razón y justicia”. Esses estragos seriam causa-
dos pelas duas tiranias da colonização: a “conquista” e a “gobernación”11 (LAS CASAS,
1978: 47). Por conta da forma de atuação dos espanhóis, nenhuma guerra contra os indí-
genas haveria de ser justa. Neste trecho, segundo Lewis Hanke (1974: XIV-XV), vemos
uma combinação sintética e direta das suas principais concepções sobre teoria jurídica,
princípios cristãos e a capacidade dos indígenas de respeitar sua própria palavra.
Um dos elementos mais presentes em toda a escrita lascasiana é a forma com a qual
o autor organiza seu pensamento em tópicos. Porém, esses tópicos não apenas se tornam
uma tipologia dos temas que está tratando, muitas vezes sendo representações de um pro-
cesso para reforçar seu argumento. Na carta acima referida, as oito “conclusões” a que Las
Casas chega demonstram uma teoria do por que existiriam guerras justas, porém, essa ca-
tegoria não se aplicaria ao que aconteceu nas Índias.
As quatro primeiras conclusões apontam para as injustiças causadas no processo de
conquista e no estabelecimento das encomiendas: (1) as guerras de conquista não foram
justas, por isso (2) os reinos indígenas são na realidade usurpados pelos espanhóis, (3)
tornando as encomiendas e repartimientos em coisas “iniquíssimas” e, consequentemente,
(4) os envolvidos com essas práticas estariam constantemente em pecado mortal; a sexta e
a sétima consequências complementam a questão, apontando a problemática material
(“econômica”) da devolução do ouro e da prata (LAS CASAS, 1978: 47-9). Esses seis
pontos são colocados em concórdia a partir de um princípio, que é o da injustiça das
guerras contra os indígenas. Ficam, portanto, duas questões: existiria guerra justa? Qual o
papel da Coroa perante essas injustiças?
A quinta e a oitava conclusões apresentam apontamentos para a resposta, porém o
“libro que dio [Las Casas] a Su Majestad” (LAS CASAS, 1978: 49) seria aquele que
11
A encomienda.
47
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12
Provavelmente a obra mais conhecida de Las Casas, a que tem mais edições em línguas diferentes. É a Brevíssima
a obra de “entrada” ao pensamento lascasiano, uma narrativa apaixonada sobre a destruição das Índias.
48
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dominicano apresentará sua posição perante a colonização das Índias. Porém, conforme se
faz a análise dos tratados, observamos a existência de dois temas principais no conjunto
dos textos dispostos na obra: a atuação da Igreja e dos missionários na América, e a teori-
zação política, jurídica e teológica que busca compreender a atuação do Império Espanhol
na América.
Os tratados são:
1) A Brevísima relación de la destruición de las Indias, onde há a denúncia da
atuação espanhola na América. Tornou-se a obra mais difundida de Las Casas;
2) O Tratado Segundo, que contém uma carta com “cosas notables” que cau-
sará “lástima y horror” 13 ao leitor, como que confirmando a Brevíssima;
3) O Tratado Tercero, que é a compilação dos debates de Valladolid;
4) O Tratado Cuarto, também conhecido como as Treinta proposiciones muy
juridicas que consiste em proposições sobre o direito da Igreja;
5) O Tratado Quinto ou o De los indios que se han hecho escravos, com críti-
cas à escravidão indígena;
6) O Tratado Sexto ou Entre los remedios que consiste em uma série de indi-
cações para o Imperador de Espanha;
7) O Tratado Séptimo, ou Para los confesores, com regras para os confessores
em América;
8) O Tratado Octavo, ou Tratado comprobatorio del imperio soberano, com
reflexões políticas e jurídicas sobre a ideia de soberania;
9) Por fim, o Tratado noveno, ou Algunos principios que deben servir de punto
de partida, com objetivo de defender a justiça dos índios.
13
LAS CASAS, 1965: 201.
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Nos tratados, o tema da guerra justa está quase sempre entrelaçado à atuação dos
encomenderos e dos “conquistadores”, que são vistos como personagens distintos dentro
da análise lascasiana. Esse tema pode ser encontrado no primeiro, no terceiro, no quarto e
no quinto tratados.
A dificuldade de estabelecer uma “teoria da guerra justa lascasiana” é que ela demanda
uma análise negativa da sua obra. Las Casas estabelece muito mais elementos do que não é
uma guerra justa do que aqueles elementos que justificariam qualquer movimento belicoso.
No Tratado Tercero, ao refutar os argumentos de Sepúlveda, o dominicano começa a
apontar aqueles elementos que não constituiriam motivos para uma guerra justa dos espa-
nhóis para com os indígenas.
Segundo Las Casas (1965), dentre os elementos que não justificariam a guerra justa
estão: a idolatria (p. 289)14, o paganismo daqueles que não “recibieron la fe” (p. 293), o
julgamento forçado dos infiéis (p. 301), o não-cumprimento da lei natural (p. 311), por
conta dos rituais de sacrifício (p. 315), a cobrança de impostos (p. 321). Esses elementos
não justificam guerras por conta das possibilidades aventadas por Las Casas para a justifi-
cação de uma guerra contra os indígenas: a (1) reconquista de terras originalmente cristãs
e punição de práticas idolátricas realizadas nestas terras, (2) punição para heresias e blas-
fêmias, (3) punição para aqueles que impedem a expansão da fé cristã, (4) autodefesa dos
cristãos — como exorta o imperador espanhol a fazer contra os turcos — e, por fim, (5)
qualquer caso de “tirania” contra inocentes que seja identificado pelo Papa enquanto tal
(BRUNSTETTER, 2018: 96-100).
14
É de suma importância apontar que, apesar de não justificar a guerra, a idolatria seria o motivo pelo qual se faz
a missão cristã na América, ainfal “l’etichetta di società idolatriche si impose alle società americane” (AGNOLIN,
2014: 22). O tema da idolatria como elemento constitutivo central para a atuação missionária na América e a
criação de uma “rede lascasiana” — missionários que mobilizam a definição lascasiana de “idolatria” para sua
atuação ortoprática — missionação é o tema central no livro de Carmen Bernand e Serge Gruzinski (1992: 38-66)
e em artigo de Nicola Gasbarro (2009). A questão da missão como a principal representação da ortoprática cristão
na modernidade é o tema central de obras de Gasbarro (2014) e Agnolin (2017). Para uma síntese historiográfica
dos últimos vinte anos do tema no Brasil, ver Torres-Londoño (2019) e Bom (2020).
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Fica claro que existiria uma diferença entre o combate à heresia e o combate ao pa-
ganismo — a heresia se combate, o paganismo se converte. Segundo Las Casas (1965:
295), o papa Silvestre não exortou Constantino a fazer guerra contra os pagãos, e sim a
incluir na lei o cristianismo para que houvesse a conversão. Esse exemplo histórico — e
outros — demonstram a atividade de exortação de papas a líderes temporais para realizar
o combate aos infiéis — aqueles que impediriam a expansão da fé cristã, como o terceiro
ponto demonstraria.
E as guerras de expansão territorial? Seriam justas aquelas que partissem do princípio
de expansão dos territórios cristãos, e não aquelas cujos objetivos seriam apenas as riquezas
materiais. Portanto, aquelas guerras perpetradas por Gregório justificar-se-iam como uma
guerra de expansão da res publica christiana e não uma guerra de expansão territorial pura
e simples: os objetivos da guerra “se enderezaban principalmente a la emendación y sal-
vación de los infieles” (p. 299).
Portanto, a colonização e ocupação da América deveriam ter como norte a expansão
da fé. O que gera uma diferença central do cenário americano para o cenário romano, pois
para os indígenas “la guerra antes es impedimento para la conversión de los indios que no
ayuda” (p. 313). A guerra tornaria os indígenas reativos aos cristãos, assim como a criança
malcriada ao mestre que a castiga, apresentando argumento comum na tópica lascasiana
que é a associação da figura do indígena com a da criança.
Essa reatividade consistiria num dos muitos motivos para demonstrar que os indíge-
nas não seriam bárbaros e, portanto, o argumento aristotélico não se aplicaria a eles. Um
bárbaro, segundo Las Casas, seria:
[...] digo que bárbaros se entende (como disse Sancto Tomás, I, Politicorum,
lectión prima) los que no viven conforme la razón natural y tienen costumbres
malas publicamente entre ellos aprobadas; ora estol es venga por falta de la
51
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religión15, donde los hombres se crían brutales, ora por malas costumbres y falta
de buena doctrina y castigo (LAS CASAS, 1965: 311).
E é neste momento que Las Casas realiza a união entre “religião” e “direito” para
fundamentar a sua definição de guerra justa e, em conjunto, estabelecer que ela não se aplica
ao conceito americano. A guerra é justa só àqueles que se mantém infiéis por opção, ou aos
servos naturais — mas não para os indígenas. Pois eles ainda não tiveram contato com a
verdadeira religião16 para poderem ser infiéis por opção, e nem seriam bárbaros pelos mo-
tivos apontados acima apenas é justa àqueles infiéis por opção e aos servos naturais, não
aos índios17. Assim como os romanos foram preparados para receber a verdadeira religião,
o cristianismo, os indígenas deveriam sê-lo (LAS CASAS, 1909: 208-88, 324-338).
Por conta disso, a questão central no debate sobre a guerra justa para o dominicano
está no condicionamento do direito de exploração e dominação da América à obrigação
com a propagação da fé cristã (SAINT-LU, 1982: 15). A guerra não entra nessa equação
entre “exploração” e “conversão” justamente por dificultar a conversão, e não facilitar. Essa
consciência das dificuldades que a guerra geraria para a ação missionária vem de sua expe-
riência malfadada de conversão da “Tierra de Guerra y Vera Paz” (BATAILLON, 1976:
25-27).
Las Casas não se configura, como bem apontam Daniel Brunstetter e Dana Zartner
(2011: 750), como uma alternativa perfeita ao jus ad bellum. Sua posição contrária à uti-
lização dessa categoria para a colonização da América se justifica pragmaticamente, estando
inserida em seu projeto colonial em prol da conversão.
15
A articulação entre “civilidade” (o oposto do “bárbaro”) e religião é explícita nesse trecho, tópico comum entre
os missionários quinhentistas (AGNOLIN, 2015).
16
“Religião” que, no contexto quinhentista, mantinha-se como um “principio di unità della civilizzazione occiden-
tale che le permetteva, tra l’altro, di caraterizzare e compenetrare, in qualche modo, le sue alterità” (AGNOLIN,
2014: 17).
17
A questão toda da definição de bárbaro para Las Casas é de uma complexidade tremenda. Em síntese, Las Casas
estabelece duas definições para “bárbaro”: nos próprios Tratados, quando afirma que seriam três os tipos de bár-
baro: (1) os passionais, (2) os iletrados e (3) os irracionais (LAS CASAS, 1965: 339-341); e na Apologética, onde
apresenta uma quarta categoria, a dos “infiéis” (cf. CASTILLA URBANO, 2019: 16).
52
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18
Em viagem para a corte de Madrid, responsabilizou-se por levar cartas de Zumárraga e do governador interino
da Guatemala, Maldonado, e do governador Alvarado, titular (BATAILLON, 1976: 28).
53
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índios são naturalmente escravos” (GUTIÉRREZ, 2007: 141). Sepúlveda adaptava e apli-
cava essa ideia em seu discurso, enquanto Las Casas atacava o ponto principal e sustentá-
culo de todo o argumento: a ideia de que os indígenas seriam bárbaros. Se essa ideia ruísse,
todo o edifício do silogismo ruiria junto. Como afirmamos anteriormente, existem debates
quanto ao “ganhador” de facto; o que podemos afirmar sem sombra de dúvidas é que a
posição lascasiana se tornou ponto de partida para a atuação missionária na América, prin-
cipalmente após a sua reconfiguração por José de Acosta (PAGDEN, 1988: 201-260).
Contudo, a disputa entre Las Casas e Sepúlveda representa não apenas uma contenda
sobre a barbaridade ou não dos indígenas. Nossa conclusão nesse trabalho é que o tema da
“guerra justa” no debate Las Casas-Sepúlveda torna claras duas características centrais do
período da Espanha e da Europa na primeira Modernidade: (1) as disputas internas ao
Império espanhol quanto à sua forma, principalmente com relação ao processo de coloni-
zação e administração da América (ELLIOTT, 2017: 187-209; PAGDEN, 1995: 29-
62); e, também, (2) o processo de diferenciação no pensamento europeu entre as categorias
“civilização” e “religião”, e a forma com a qual essas categorias são mobilizadas (AGNO-
LIN, 2014, 2017; GASBARRO, 1992: 3-108).
Em primeiro lugar, havia basicamente duas propostas para o imperium hispânico,
distintas e concorrentes na corte de Carlos V, sendo as obras Democrates Secundus e os
Tratados de Fray Bartolomé de Las Casas uma das várias manifestações manuscritas dessa
concorrência. De um lado, Sepúlveda e o seu “aristotelismo radical”, propunha uma teoria
da expansão territorial do Império Espanhol a partir da aliança com os encomenderos e a
formação de um território livre da “barbárie” através da integração forçada ou eliminação
das populações indígenas. Do outro, Las Casas, retomando em certa medida o tomismo,
buscava normatizar os indígenas dentro de uma nova forma de organização social, também
pautada numa integração forçada das populações indígenas, porém negando qualquer pos-
sibilidade de eliminação como meio de conquista — garantindo o seu papel enquanto
súditos del rey. Em síntese: enquanto para Sepúlveda a guerra se torna justa como
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mecanismo de conquista e conversão, para Las Casas a guerra seria o elemento que imolaria
qualquer possibilidade de realização da conversão e da submissão do indígena a súdito.
Nota-se que para o dominicano não está em jogo uma justificativa da guerra — in-
clusive, Las Casas não demonstra nos Tratados negar que a guerra justa poderia se enqua-
drar no direito natural de uma nação. O problema é anterior: qualquer movimento de
guerra espantaria e dificultaria a conversão dos indígenas e, por isso, deve ser imediatamente
descartado. A função da expansão imperial estaria atrelada à expansão da fé: as discussões
políticas e jurídicas quanto ao dominium e outros temas afins seriam subordinadas única
e exclusivamente à prática da missão. Não por uma noção simplória de “superioridade do
Papa” em relação ao imperador, mas, sim, pois não há possibilidade da realização plena de
um imperium em toda a sua plenitudo potestatis sem a bênção de Deus19.
Nosso segundo ponto coloca Las Casas e Sepúlveda sob o prisma da investigação
histórico-religiosa, inserindo o seu debate num processo mais amplo de formação dos con-
ceitos caros à Modernidade e ao processo ocidental de análise das alteridades. Nossa pro-
posta neste artigo é realizar a análise histórico-religiosa da categoria de “guerra justa” no
debate de Valladolid, a partir de dois referenciais teóricos: a problemática da “teologia
política” e as classificações propostas por Merio Scattola (2009: 41-86) para o tema no
século XVI, e a análise comparativa e diferencial proposta por Nicola Gasbarro (2006,
2011, 2014) para o problema histórico do encontro cultural, desenvolvido também por
Cristina Pompa (2006) e Adone Agnolin (2013, 2014, 2015, 2017).
O historiador e antropólogo italiano Nicola Gasbarro propõe uma metodologia
histórico-religiosa que, além de articular História e Antropologia, aponta no sentido de
localizar historicamente os conceitos utilizados pela historiografia:
19
Dando argumento para a tese que apresenta Las Casas como um “joaquimista moderado”, como aponta Bataillon
(1976: 44).
55
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problema a ser resolvido por esses pensadores circundava à questão das relações entre os
campos do sacerdócio (Igreja) e da política (Estado). Essas formas de leitura seriam divi-
didas em três tipos pelo autor: a eusebiana, a agostiniana e a gelasiana.
Em síntese, a interpretação eusebiana (p. 50-54) corresponde a um “reino sem
igreja”: a partir do Pecado o mundo se dividiu, e a tarefa do cristão deve ser “restaurar a
unidade da humanidade dispersa pelo pecado” (p. 51), sendo o Império a manifestação do
logos divino, sendo em terra a sociedade eclesial onde se pratica o Evangelho: “O império
é, portanto, a comunidade dos fiéis do Deus único, a igreja na Terra, e o imperador é o seu
chefe” (p. 53). A interpretação agostiniana (p. 54-58) inverteria a posição anterior: a partir
da noção da diferença absoluta entre a cidade de Deus e a cidade dos homens, Agostinho
afirma que não existe um plano da história pensado por Deus para o mundo inteiro, ha-
vendo a necessidade de a Igreja fazer-se militante para triunfar fora do tempo. Por fim,
para Gelásio I (p. 59-61), as esferas do reino e do sacerdócio seriam autônomas; e, apesar
da superioridade hierárquica da esfera pontifícia do ponto de vista moral, “Deus atribuiu
ao imperador a chefia exclusiva do âmbito mundano na conduta pública, e assim todos os
sacerdotes reconhecem suas leis” (p. 59). Essa última perspectiva desenvolve-se como um
caleidoscópio a partir das duas anteriores: haveriam então posicionamentos gelasiano-agos-
tinianos, gelasiano-eusebianos e gelasiano-gelasianos (p. 61).
Las Casas e Sepúlveda concordam haver certa autonomia nas ações da Igreja e da
Coroa dentro da América hispânica, apesar de discordarem da forma com a qual essas ações
se dão20. Essa discordância pode ser sintetizada da seguinte forma: Las Casas aposta na
atuação imperial como aparato de apoio para a realização da verdadeira missão dos reis
católicos de Castela, pois receberam do Papa a soberania sobre as terras americanas (LAS
CASAS, 1965: 1185-9); ou seja, podemos incluí-lo numa perspectiva gelasiana, pois sua
justificativa de autoridade, fundada na ideia de lei eterna, provêm do fato de terem sido
20
Inclusive, Sepúlveda não estabelece nenhum tipo de diretriz para a atuação missionária, limitando-se a aconselhar
o rei e a apontar os motivos para a justificação da guerra contra os indígenas.
57
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dadas duas vidas aos homens — uma terrena e outra espiritual, sendo a segunda subordi-
nada à primeira, mesmo que não deixe de ser autônoma21. Por outro lado, Sepúlveda de-
fende que a atuação imperial deve ser realizada com o objetivo de garantir os melhores
retornos políticos, econômicos e militares aos espanhóis; apesar dessa posição “pragmá-
tica”, existe um teor moral na perspectiva sepulvediana ao apontar para a necessidade de
ordenação dos povos bárbaros, objetivando levá-los à “civilização”, pensada nos termos da
religião católica. Por isso mesmo torna-se problemático afirmar que Sepúlveda teria um
“espírito teórico-pragmático” (RODRIGUES, 2010: 109), como se a questão moral-re-
ligiosa não fosse colocada pelo autor; tanto que Sepúlveda atribui à religião cristã a possi-
bilidade de deixar “su primitiva condición” (SEPÚLVEDA, 2018: 31). Concordamos
com Luis Abellán (1979: 453) que Sepúlveda entende que exista autonomia entre a Igreja
e o Império, e que ela é por si só importante e que essa autonomia deveria manter-se in-
clusive para que a Igreja realize o que deve realizar, e o Império também, a partir de uma
perspectiva elogiosa ao militarismo.
Ao identificar os dois autores dentro dessa leitura da teologia política, nosso objetivo
é tornar clara uma das características que parece ser deixada de lado nas análises sobre o
debate de Valladolid: a disputa política, muito mais do que doutrinária, que existe em jogo.
Essa disputa se debruça para a formação de um projeto de império, em um momento no
qual o caráter da colonização está se transformando. Afinal, se Sepúlveda venceu, por qual
motivo sua obra foi ostracizada e nunca publicada em vida? E se Las Casas venceu, o que
faz com que no final de sua vida seu pensamento se “radicalize”? Talvez, por seu objetivo
de “defensor dos indígenas” não ter dado certo? E, também, por qual motivo Sepúlveda
não leva às últimas consequências a teoria aristotélica da escravidão natural e condena os
indígenas a uma interpretação que os identificaria com os animais?
21
Scattola (2009: 101-106), inclusive, coloca os teólogos da Escola de Salamanca como membros da posição
gelasiana; sabemos da aproximação de Las Casas com Vitória e Soto, como apontam Pagden (1988) e Castañeda
Salamanca (2002).
58
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