O Caso Veja Luis Nassif
O Caso Veja Luis Nassif
O Caso Veja Luis Nassif
Introdução
Desde os anos 90, a par dos temas políticos, econômicos e culturais, tomei
partido em diversos episódios jornalísticos que caracterizavam claramente
crimes de imprensa.
Fui o primeiro jornalista a denunciar os abusos da mídia em casos
célebres, como a campanha contra o então Ministro da Agricultura Alceni
Guerra, os casos Escolas Base e Bar Bodega, entre outros. Alguns desses
temas foram tratados no livro “O jornalismo dos anos 90”.
Nele, situava o início dos abusos na campanha do impeachment de
Fernando Collor, episódio em que houve um liberou geral e no qual a mídia
abdicou de filtros mínimos de controle de qualidade.
Crítico de Collor, fui alvo de várias ações judiciais de seu grupo, por
pressão dele perdi o programa de TV que tinha na TV Gazeta de São Paulo,
Nacional de Brasília e Educativa do Rio. Mas quando começou a campanha
do impeachment, parei a tempo alertado por um conselheiro experiente, o ex-
embaixador Walther Moreira Salles que serviu em Washington no auge do
período macarthista.
- Esses processos de linchamento trazem à tona o que de pior existe na
natureza humana! observou ele, em um dos nossos encontros.
Mesmo assim, da redemocratização até meados dos anos 2.000, talvez a
imprensa brasileira tenha passado pelo momento de maior abertura e
diversidade. A campanha das diretas ganhou corações e mentes e a imprensa
temia ser cobrada pelos anos de parceria com a ditadura. Essa abertura
permitia contrapontos que funcionavam como uma auto regulação.
Em fins dos anos 90, publiquei uma série de artigos sobre abusos da
imprensa que acabaram influenciando algumas direções. O Estadão, de Ruy
Mesquita, e a própria Abril, de Roberto Civita, distribuíram cópias para
seus diretores, visando chamar sua atenção para os exageros cometidos.
Desde os anos 80, a Folha já dispunha da figura do ombudsman. A
preocupação generalizada se devia a um projeto de lei para uma nova lei de
imprensa em tramitação no Congresso.
Foi só refluir o PL para se desarmarem novamente os filtros jornalísticos.
A partir de algum momento em 2005, a diversidade começou a
desaparecer e todos os erros anteriores da mídia perderam expressão perto
do esgoto jornalístico que passou a jorrar intermitentemente dos jornais e
TVs.
Antes, houve uma verdadeira Noite de São Bartolomeu que afastou dos
jornais colunistas mais incômodos. O caos irresponsável do pós-
impeachment de Collor foi substituído por uma ação articulada, quase uma
operação de guerra cultural, na qual as opiniões foram enquadradas, os
recalcitrantes fuzilados e os assassinatos de reputação banalizados.
A imprensa brasileira entrava na era da infâmia.
Raros momentos da história da imprensa brasileira registraram tantos
absurdos simultâneos. Transformaram em escândalo a compra de uma
tapioca com cartão corporativo. Um ex-presidiário, recém libertado, foi
tratado como grande consultor, para uma denúncia inverossímil contra o
BNDES.
Levou algum tempo para que conseguisse juntar as peças e decifrar o que
estava ocorrendo.
A morte de três pioneiros – Ruy Mesquita, Otávio Frias de Oliveira e
Roberto Marinho –, em uma fase de mudanças radicais no cenário da mídia,
certamente contribuiu para a perda de rumo, ao colocar os herdeiros a
reboque de Roberto Civita.
No início, deu para intuir que aqueles movimentos visavam devolver aos
grupos de mídia o prestígio e o poder do período do impeachment. Mas não
era apenas isso.
Aos poucos foram chegando informações sobre as estratégias políticas do
australiano Rupert Murdoch, a maneira como passou a explorar a
intolerância gerada pela migração, o uso do linguajar da ultradireita norte-
americana, as interferências no Partido Republicano e, depois, na própria
eleição presidencial. E, principalmente, a estratégia montada com os demais
grandes grupos de mídia do país para conseguir eleger o seu candidato à
presidência da República, tornando-se um verdadeiro partido político A Fox
News se incumbia de criar os boatos e os demais em difundi-los. Depois, se
valiam das redes sociais para ampliar a disseminação dos boatos.
Inaugurava-se a era do que veio a ser conhecido como fenômeno do fake
News. E sob comando dos grupos de mídia.
Tudo isso, somado à guerra cultural levada a efeito, era prenúncio das
grandes manipulações das redes sociais dos anos seguintes, com o uso de
estratégias de disseminação da informação através de algoritmos e de outros
expedientes das chamadas guerras híbridas
Foi uma das mais sórdidas campanhas eleitorais da história dos Estados
Unidos. Das próprias redes sociais veio uma reação espontânea, de grupos
pró-Obama, que garantiu sua vitória.
Obama terminou a campanha sem dar uma entrevista sequer aos grupos de
mídia. Eleito presidente, seu primeiro gesto foi convidar para um encontro
na Casa Branca os presidentes da Apple, Google e Facebook.
Simbolicamente, ele mostrava ali o fim de um ciclo em que os grupos de
mídia dominaram o mercado de opinião das democracias ocidentais, mais
influentes que as igrejas, os sindicatos e os partidos políticos.
O uso da intolerância tornara-se arma política global dos grupos de
mídia, visando potencializar sua influência política para combater os novos
adversários que chegavam: as gigantes de telefonia.
Levou algum tempo para entenderem que os verdadeiros adversários eram
as redes sociais.
Depois que passei a entender razoavelmente o pano de fundo, iniciei a
série de reportagens sobre a revista Veja, pela Internet. Foi a primeira vez
que um jornalista, armado apenas de um blog, ousava enfrentar uma máquina
de assassinar reputações.
Para minha surpresa, naquele início de nova era, começaram a pipocar
outros blogs independentes, entrando na guerra. Os hackers descobriram um
sistema que permitia jogar o link da série no primeiro lugar da página de
buscas do Google, quando se colocava revista Veja.
Foi uma luta complicada, porque a revista apelou para todo tipo de
represália, com ataques pessoais pesados através de seus blogs, que
afetaram a vida da minha família.
Contei com a compreensão de minhas filhas mais velhas e da minha
esposa à época, a quem consultei antes de entrar na guerra, sabendo que
seriam atingidas pelos jorros de esgoto da revista.
Creio não ter havido na história da imprensa campanha tão infame.
Achacador, mascate, mão peluda, frequentador de sauna gay foram alguns
dos ataques desferidos por blogueiros contratados por Roberto Civita,
especializados na arte de assassinar reputações, especialmente Reinaldo
Azevedo. Cada dia era um tormento, toda vez que as filhas de 10 e 9 anos
iam para a escola, por não saber de que maneira os ataques chegariam até
elas.
Deu para sentir na pele o que passaram as dezenas de vítimas de crimes
da imprensa que defendi ao longo de minha passagem pela Folha.
E enfrentei o maior dos desafios, o de não devolver na mesma moeda.
Não faltavam histórias remetidas por leitores indignados, relatando
episódios que explicariam os ataques, notadamente os de cunho sexual.
Felizmente fui contido pela lembrança de que ele tinha filhas, que poderiam
ser afetadas pela guerra suja.
A não ser os blogueiros anônimos e os leitores do Blog, não houve um
gesto de indignação por parte de colegas e da chamada opinião pública. Pelo
contrário, antigos amigos, pessoas que recorriam à coluna, nos tempos da
Folha, escondiam-se temerosos de se expor a um poder que parecia não ter
limites. Associações de jornalistas, ONGs em defesa da liberdade de
expressão, nenhuma se manifestou, com receio do agudo macarthismo que
tomou conta do país, e do que parecia ser um poder ilimitado da revista para
assassinar reputações impunemente.
A segunda etapa do ataque de Veja consistiu em abrir cinco ações
judiciais.
Quando a guerra se estendeu para outros veículos, meus advogados
abandonaram a ação, me deixando na mão. Sequer se valeram das mais de
500 páginas de ataques que sofri para proporem uma reconvenção contra os
autores das ações.
Foram tempos extraordinariamente pesados, aos quais sobrevivi graças à
solidariedade da família e aos leitores que plantavam palavras de apoio, na
seção de comentários do Blog.
Dedico este livro as filhas Mariana, Luiza, Beatriz e Dora, à neta Clara,
que foram o amparo emocional que me garantiu a paz interior para não ceder.
À Eugênia, que muitos anos antes de a conhecer, já intuíra sobre os
abusos da mídia e, como jovem procuradora, não se eximiu de sua
responsabilidade, entrando com representações contra vários crimes de
imprensa.
Aos leitores anônimos que, com seu apoio nos comentários do blog,
criaram um colchão de carinho essencial para que não esmorecesse na luta.
Dois comentários em particular me sensibilizaram muito.
Um, o de um leitor que oferecia sua bicicleta para uma rifa de apoio
contra as ações judiciais que pipocavam.
Outro, de Goiás, que me dizia que toda noite, antes de dormir, ele e a
esposa rezavam por mim.
Foi quando me dei conta que o direito à informação é um valor tão
essencial quanto o direito à alimentação, à saúde e à educação.
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O caso de Veja
O estilo neocon
De um lado há fenômenos gerais que modificaram profundamente a imprensa
mundial nos últimos anos. A linguagem ofensiva, herança dos “neocons”
americanos, foi adotada por parte da imprensa brasileira como se fosse a
última moda.
Durante todos os anos 90, Veja havia desenvolvido um estilo jornalístico
onde campeavam alusões a defeitos físicos, agressões e manipulação de
declarações de fonte. Quando o estilo “neocon” ganhou espaço nos EUA,
não foi difícil à revista radicalizar seu próprio estilo.
Um segundo fenômeno desse período foi a identificação de uma profunda
antipatia da chamada classe média midiática em relação ao governo Lula,
fruto dos escândalos do “mensalão”, do deslumbramento inicial dos petistas
que ascenderam ao poder, mas principalmente devido às políticas de
inclusão social que despertaram forte preconceito de classe. Esse sentimento
combinava com a catarse proporcionada pelo estilo “neocon”.
Outros colunistas utilizaram esse falso elitismo com maior ou menor
talento. Nenhum com a fúria grosseira com que Veja enveredou pelos novos-
velhos caminhos jornalísticos. Mesmo após o estilo ser banalizado por
dúzias de pittbulls a serviço desse jogo, Veja permaneceu imbatível.
O jornalismo e os negócios
Outro fenômeno recorrente – de certo modo imbricado com o nascimento do
próprio negócio da notícia—foi o da terceirização das denúncias e o uso das
notícias como ferramenta para disputas empresariais e jurídicas.
Trata-se de uma esperteza secular. Cria-se o inimigo externo, fomenta-se
o macarthismo, em nome da guerra aceitam-se todos os abusos e, debaixo
deles, as piores jogadas comerciais.
Sem o filtro do critério jornalístico, foram perpetrados todos os abusos.
A loucura ganhou método quando esse aparente descontrole se tornou peça
da estratégia editorial dos veículos.
O marketing da notícia, a falta de estrutura e de talento para a reportagem
tornaram muitos jornalistas meros receptadores de dossiês preparados por
lobistas.
Ao longo de toda a década, esse tipo de jogo criou uma promiscuidade
perigosa entre jornalistas e lobistas. Havia um círculo férreo, que afetou em
muitos as revistas semanais. E um personagem que passou a cumprir, nas
redações, o papel sujo antes desempenhado pelos repórteres policiais: os
chamados repórteres de dossiês.
Consistia no seguinte:
O lobista procurava o repórter com um dossiê que interessava para seus
negócios.
O jornalista levava a matéria à direção, e, com a repercussão da denúncia
ganhava status profissional.
Com esse status ele ganhava liberdade para novas denúncias. E aí
passava a entrar no mundo de interesses do lobista.
O caso mais exemplar ocorreu na própria Veja, com o lobista APS
(Alexandre Paes Santos).
Os interesses políticos
Imbricado com os interesses comerciais entram os interesses políticos, que,
no caso da mídia, se tornam particularmente exacerbados em períodos de
mudanças de padrão tecnológico, que colocam em risco a supremacia dos
grupos de mídia no mercado de opinião.
Foi assim nos anos 20, com o advento do rádio; no início dos anos 50,
com as tentativas de criação de grupos concorrentes; no fim dos anos 50,
com as disputas em torno da televisão; no início dos anos 90, com o advento
da TV a cabo; e nos anos 2.000, com a consolidação da Internet.
O velho modelo entrava em crise, deixava as empresas em dificuldades
crescentes ao mesmo tempo em que nascia uma nova tecnologia
potencialmente capaz de abalar a anterior.
Esse quadro de instabilidade levava à exacerbação do ativismo dos
grupos de mídia, que passavam a apostar todas as fichas no seu poder de
cooptar ou desestabilizar politicamente governos, para garantir – via política
– o controle sobre o novo mundo que se prenunciava.
Santos Vahlis, hoje em dia, é mais conhecido pelos edifícios que deixou
no Rio de Janeiro e pelas festas que proporcionou nos anos 50. Foi um dos
grandes construtores do bairro de Copacabana.
Venezuelano, mudou-se para o Brasil, trabalhou com importação de
gasolina e tentou se engatar nas concessões de refinarias no governo Dutra.
Foi derrotado pela maior influência dos grupos cariocas já estabelecidos.
Provavelmente graças ao fato de ser bom cliente dos jornais, com seus
anúncios imobiliários, tinha uma coluna no Correio da Manhã, cujo ghost
writer era o grande Franklin de Oliveira.
Tentou adquirir o jornal “A Noite” para fortalecer a imprensa pró-Jango.
Foi atropelado pelo pessoal do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação
Democrática) que, em vez de comprar o jornal, comprou sua opinião por Cr$
5 milhões. A CPI que investigou a transação, aliás, teve como integrante o
deputado Ruben Paiva, mais tarde preso, torturado e assassinado pela
ditadura militar.
Por sua atuação, Vahlis sofreu ataques de toda ordem. Contra ele,
levantaram a história de que teria feito uma naturalização ilegal, aliás a
mesma versão utilizada para tentar bloquear a ascensão de Samuel Wainer.
Em 1961, em pleno inverno, foi preso e jogado nu em uma cela de cadeia, a
ponto do detetive que o prendeu temer por sua vida.
Como era possível a perseguição dos IPMs (Inquéritos Policial
Militares), de delegados e do Ministério Público, contra aliados do próprio
governo?
No mesmo período, Samuel Wainer sofreu perseguição implacável por
pretender, com a aquisição da editora Erika e a criação da Última Hora,
entrar no mercado de mídia.
No fim da década. Wallace Simonsen tentou entrar no mercado de
televisão, com a criação da TV Excelsior. Foi esmagado pelo golpe de 1964.
Em fins dos anos 80, a TV a cabo começa a ser implantada, colocando a
primeira brecha no cartel da televisão aberta. José Sarney cedeu às pressões
dos grupos de mídia e cobriu-os de favores. Manteve-se no cargo apesar da
notável falta de rumo político e econômico.
Em vez de ceder às pressões dos grupos de mídia, Fernando Collor tentou
estimular uma nova rede de TV aliada, a CNT. Foi alvo de uma campanha
implacável que o derrubou em pouco tempo.
Para entender o que ocorreu nos últimos anos com os grupos de mídia
nacionais, é preciso um breve mergulho na história recente das democracias
ocidentais, no advento da Internet e das redes sociais e na crise global do
setor.
É o que se pretende nesse livro. Não se trata de uma historiografia, mas
apenas de um fio condutor para levantar as características dos grupos de
mídia, seu poder de coerção e suas motivações e entender o que se passou
com a mídia brasileira na última década.
.
A fraude do século
As novas tecnologias
Naqueles anos 20, a radicalização da imprensa escrita estava diretamente
ligada ao aparecimento de novas tecnologias da informação. Iniciava-se a
era do rádio.
Mas o padrão se repetiria dali em diante6.
Grupos de mídia consolidavam-se na tecnologia vigente, ganhando
expressão política. Cada nova tecnologia produzia um terremoto no setor,
abrindo espaço para novos grupos sociais e políticos e, especialmente, para
novos protagonistas midiáticos.
Os grupos hegemônicos se organizavam e valiam-se do prestígio político
para tentar firmar pé na etapa seguinte. Alguns desapareciam pelo caminho.
Outros completavam a transição e assumiam a liderança da nova etapa.
Foi assim com o início do rádio.
No lançamento, o padrão eram as rádios comunitárias de baixo alcance. A
nova tecnologia trazia sonhos similares aos atuais, com as redes sociais.
Com pequeno investimento, qualquer um poderia abrir a sua rádio. A febre
inicial levou universidades, igrejas, radio clubes, jornais, o próprio Exército
e a Marinha, a abrirem sua rádio. Surgiram rádios especializadas em jazz7.
Era tanta variedade que uma das emissoras mais populares de Nova York
era uma espécie de Yahoo da época: sua programação consistia em divulgar
as novidades que surgiram nas diversas pequenas rádios inauguradas.
Em 1920, conseguir uma licença de rádio era tarefa descomplicada e sem
custo algum.
Havia a necessidade de disciplinar o uso do espaço público, sim. Mas na
hora de definir a divisão do espaço, a opção escolhida foi a de restringir
totalmente o espaço para poucos grupos.
“A FRC teve a opção de apoiar muitas estações de menor porte
ou poucas de maior porte. Havia espaço para bandas de
transmissão de todas as escolas de pensamento, se os direitos de
difusão fossem confinados a localidades e transmissores de
baixa voltagem. Era simplesmente uma questão de como se
dividiria o éter”,
observou Tim Wu, autor do monumental “Impérios da Comunicação”.
A avanço da telefonia permitiu a montagem das redes de transmissão.
Inicialmente, a ATT – detentora do monopólio nacional da telefonia -
montou uma rede própria de 16 emissoras, o mesmo produto sendo
transmitido para 16 públicos diferentes, trazendo uma notável economia de
escala.
Globalização da mídia
.
O caso Proconsult
A partir dos anos 70, a Globo passa a ser o grande fator de integração
nacional do regime militar. O Jornal Nacional torna-se uma espécie de
porta-voz do regime, difundindo a ideia do Brasil Grande.
Nas eleições de 1982, a Rede Globo reedita o feito da Associated Press
em 1877.
Participei indiretamente do episódio.
Naquele ano, a Globo se propôs a apurar as eleições em tempo real em
todo o Brasil. Montou uma. Em um período de votação manual, os mesários
apuravam os votos e mandavam os mapas de votação para os Tribunais
Regionais Eleitorais. Chegando lá, a Globo imediatamente alimentava seus
computadores e divulgava os resultados parciais antes mesmo do TSE.
Em São Paulo, a Globo montou parceria com o Estadão.
Na época, eu era chefe de reportagem da Economia do Jornal da Tarde, o
vespertino do Estadão. Diariamente, recebíamos três boletins de cada estado
com os resultados de votos por legenda divididos entre capital e interior.
Pouco antes, havia adquirido meu primeiro computador, um Dismac 8000,
com sistema operacional CPM (que depois serviu de base para o DOS da
Microsoft), armazenamento em gravadores convencionais. Ainda não
existiam softwares, o que obrigava a conhecer a linguagem Basic para
programá-lo.
Para conseguir algum diferencial em relação ao Estadão, montei um
pequeno programa destinado a estimar a composição da Câmara de
Deputados.
O programa fazia projeções simples em cima dos dados enviados através
dos boletins da Globo: votos para Arena, MDB, e partidos menores, em
branco, nulo e abstenção, subdivididos entre capital e interior. Projetava os
resultados parciais de votação e, de acordo com as regras do TSE, estimava
a composição das bancadas.
Nos primeiros dias, o resultado final era de uma bancada
majoritariamente da Arena. À medida que os dias passavam, ia se reduzindo
a vantagem da Arena. Apenas em São Paulo as projeções não se
modificavam.
De repente, estoura o escândalo da Proconsult no Rio. César Maia
analisava os mapas eleitorais, confronta com a apuração da Globo e constata
que havia uma diferença grande em favor da Arena. Valeu-se da rádio Jornal
do Brasil para espalhar a suspeita pelo país.
Assim que o JB deu a denúncia, tentei recuperar os boletins enviados pela
Globo. Como já tinham sido destruídos, fui até o Departamento de
Documentação do Estadão para consultar as edições de O Globo. E me
deparei com a reportagem do jornal celebrando o fato da apuração da TV
Globo, no segundo dia, ter batido integralmente com o do TSE.
Ora, no meu microcomputador desenvolvi um pequeno programa com
algumas centenas de linha. Mas era óbvio que se dois sistemas apresentavam
o mesmo resultado errado, só podia ser pelo fato de um ser cópia do outro. É
probabilisticamente impossível que dois sistemas complexos contenham o
mesmo erro de programação.
De fato, por aqueles dias já haviam detectado o modo de operação da
fraude. No meio do sistema havia um algoritmo que reduzia a totalização de
votos do MDB e ampliava a da Arena.
Fui atrás do diretor de sistemas do jornal e indaguei dele as razões da
coincidência no erro. Ele tirou da sua gaveta uma papelada. Era a proposta
da Globo para que o jornal utilizasse o sistema da Proconsult.
Disse-me que se informara sobre a empresa no mercado, não sentiu
confiança e acabou solicitando para que, em São Paulo, o sistema fosse
desenvolvido pela Gerdau-IBM.
Saí da reunião e imediatamente telefonei para Eurico Andrade, com quem
trabalhara na Veja e que estava assessorando a campanha de Marcos Freire
em Pernambuco. Ele me disse que já tinham se dado conta da jogada. E qual
a razão? Desmobilizar a fiscalização do MDB e abrir espaço para a fraude.
Durante a apuração, promoveriam a fraude em cima dos votos em branco. Na
totalização, se não houvesse questionamento, prevaleceria o sistema
Proconsult.
No Rio, graças a César Maia a fraude não se consumou. No Rio Grande
do Sul foi bem-sucedida. O MDB desmobilizou a fiscalização e o candidato
Pedro Simon foi derrotado pelo candidato da Arena. Em algumas seções,
surpreendeu o fato de não ter havido nenhum voto em branco.
É possível que, em muitos outros estados, a fraude também tenha sido
bem-sucedida.
O Jornal do Brasil desapareceu com problemas de má gestão. E a entrada
do Brasil na era da Internet se dá com a mídia tradicional sendo liderada
pelo grupo dos 4: Globo, Abril, Folha e Estadão, nenhum deles chegando
perto da abrangência e da influência conquistada pela Globo.
Por ora, deixemos de lado um pouco a história para um detalhamento
maior sobre as formas de influência dos grupos de mídia no mercado de
opinião.
O mercado de opinião
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O mercado de opinião
O Mito do Vampiro
A era da Internet
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O padrão Murdoch
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O fenômeno Fox
A tentativa mais ousada de Murdoch foi entrar no mercado digital com a
rede social MySpace.
A rede foi derrotada pelos puros-sangues Google e Facebook.
Percebendo a derrota, Murdoch decidiu levar a guerra para o campo da
política. Conseguiu montar uma aliança inédita dos grupos de mídia norte-
americana contra a eleição de Barack Obama.
Explorou recursos ancestrais de manipulação da informação para
estimular um clima de intolerância exacerbada, apelando para os piores
sentimentos de manada.
O candidato de Murdoch perdeu. Não por outro motivo, uma das
primeiras reuniões de Obama, eleito, foi com os presidentes das redes
sociais - Apple, Google e Facebook.
O ponto central da disseminação desse modelo, no entanto, foi a Fox
News.
Lançada em 1996, a emissora conquistou uma audiência diária de 2
milhões de telespectadores, mais do que a soma da CNN e da MSNBC.
Contratou diversos pré-candidatos republicanos à presidência, promoveu o
Tea Party, contribuiu financeiramente com o Partido Republicano e grupos
de ultradireita e foi relevante para a vitória republicana em 2010.
Disseminou teorias conspiratórias, falseou informações, espalhou boatos
- como a de que Barack Obama era terrorista, ou que teria estudado em uma
escola islâmica.
Algum tempo depois, The Guardian denunciou o jornal por ter grampeado os
atores Jude Law e Gwyneth Paltrow.
O auge do escândalo foi a descoberta de que chegou a grampear o celular
da menina Milly Dowler, de 13 anos, sequestrada e morta. Na tragédia do
atentado ao metrô de Londres, em 2005, o jornal interceptou mensagens dos
celulares dos parentes.
Os abusos reiterados levaram à prisão do editor do jornal, Clive
Goodman, e do detetive particular Glen Mulcaire. E ele nem chegou à
ousadia da revista Veja, que se associou a uma organização criminosa –
Carlinhos Cachoeira –, praticou grampos ilegais, manipulou notícias
envolvendo no próprio STF (Supremo Tribunal Federal), sem ser
incomodada pelo Ministério Público Federal e outros órgãos de controle.
Depois de Murdoch, pelo menos no Reino Unido o poder público,
partidos políticos e opinião pública em geral sentiram a necessidade
premente de instrumentos de regulação que impedissem os abusos de poder
da mídia. Surge daí o relatório Levenson.
12 (Levenson)
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A indústria do anticomunismo
A uniformização do discurso raivoso se deu através da retomada da indústria
do anticomunismo, a mais eficaz ideia-síntese para a criação dos fantasmas
ancestrais.
Nos anos 20 a 40, o anticomunismo penetrou fortemente no imaginário
nacional. Na Igreja, devido às perseguições religiosas em alguns países
comunistas. Nas Forças Armadas, devido à chamada Intentona Comunista,
com os oficiais mortos de madrugada, além da visão internacionalista dos
comunistas se sobrepondo ao conceito de poder nacional. Nos empresários,
devido ao combate à propriedade privada. No meio político, devido ao seu
caráter antidemocrático.
Com o tempo, todos esses fatores esfumaçaram e o comunismo virou um
retrato na parede. A Guerra Fria acabou em 1963, no encontro de Kennedy
com Kruschev; o comunismo terminou em fins dos anos 80, com a queda do
muro de Berlim e, depois, com a Glasnot soviética.
Havia no Brasil um sentimento difuso de desconforto com a corrupção, os
conchavos políticos, a proteção aos campeões nacionais. Mas havia desafios
para transformar o desconforto em ação contra o governo.
O primeiro, é que a maioria dos vícios apontados são comuns a todos os
partidos políticos, típicos do modelo político torto em vigor.
O segundo, é que a dispersão das críticas atrapalhava a unificação do
discurso.
O discurso anticomunista permitiu unificar todas as insatisfações, da
Igreja tradicional e dos evangélicos contra os avanços morais; dos
empresários, contra a burocracia, a carga fiscal e o excesso de intervenção
do Estado; da população em geral, contra a corrupção e os acordos políticos
espúrios; dos militares, contra os que pretendiam escarafunchar os crimes da
ditadura.
Debitando tudo na conta do comunismo-chavismo-bolivarismo-castrismo
ou o ismo que fosse, tudo ficava facilitado: reduzia-se toda a crítica a
chavões pouco sofisticados, de fácil assimilação para a média da opinião
pública midiática. E não havia necessidade de trabalhar o discurso para
cada público. As análises antichavistas de Arnaldo Jabor eram do mesmo
nível dos humoristas de shows “stand ups” ou de roqueiros atuando no
Twitter.
É nesse ambiente de intolerância, de macarthismo e assassinatos de
reputações, que Veja define o estilo dominante. Em pouco tempo, o ar
pestilento que emanava na editora espalhou-se por todo o universo
jornalístico da velha mídia.
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Os dossiês e os chantagistas
E aqui se introduz um personagem central nesse neojornalismo: os grupos de
lobbies e organizações criminosas que infestam os negócios públicos
especialmente em Brasília, onde se situam as principais decisões de gastos
públicos.
A partir da campanha do “impeachment” de Fernando Collor, jornalistas,
grampeadores e chantagistas passaram a conviver intimamente em Brasília.
Até então, havia uma espécie de barreira, que fazia com que chantagistas
recorressem a publicações menores, a colunistas da periferia, para montar
seus lobbies ou chantagens. Não à grande mídia.
Com o tempo, a necessidade de fabricar escândalo a qualquer preço
provocou a aproximação, mais que isso, a cumplicidade entre alguns
jornalistas, grampeadores e chantagistas. Paralelamente, houve o desmonte
dos filtros de qualidade das redações, especialmente nas revistas semanais e
em alguns diários.
Foi uma associação para o crime. Com um jornalista à sua disposição, o
grampeador tem seu passe valorizado no mercado. A chantagem torna-se
mais valiosa, eficiente, proporcional ao impacto que a notícia teria, se
publicada. Isso na hipótese benigna.
É uma aliança espúria, porque o leitor toma contato com os grampos e
dossiês divulgados. Mas, na outra ponta, a publicação fortalece o achacador
em suas investidas futuras. Não se trata de melhorar o país, mas de desalojar
esquemas barras-pesadas em benefício de outros esquemas, igualmente
barras-pesadas, mas aliados da publicação. E fica-se sem saber sobre as
chantagens bem-sucedidas, as que não precisaram chegar às páginas de
jornais.
13 (Oltramari)
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A fábrica de dossiês
A segunda perna da indústria de dossiês estava firmemente fincada no campo
político, manobrada por Serra. Caso Lunus, “aloprados”, escuta no STF,
grampo sem áudio, uma sequência insólita de escândalos fabricados que
alimentou a mídia, especialmente a revista Veja.
É na operação Lunus que estão as pistas para se chegar ao início do nosso
modelo.
O caso Lunus inviabilizou a candidatura de Roseana Sarney à presidência
da República.
Policiais Federais montaram campana, identificaram o dia e a hora em
que a Lunus – de Jorge Murad, marido de Roseana Sarney – receberia
contribuições e montaram um flagrante acompanhado de uma equipe do
Jornal Nacional.
Para melhorar a cena, arrumou-se o dinheiro em pacotes de grande
visibilidade, facilitando o impacto televisivo.
Essa mesma jogada – de empilhar o dinheiro para dar impacto televisivo
- foi repetida no caso dos “aloprados”, em 2006, entre um delegado da
Polícia Federal e o Jornal Nacional.
Da própria Lunus foi enviado um telex para o Palácio do Planalto dando
conta do sucesso da operação.
Nesse episódio aparece José Serra, como principal beneficiário. Depois,
o Procurador da República José Roberto Santoro, que se imiscuiu em um
inquérito que não era dele e coordenou a ação, cujo titular era o procurador
Mário Lúcio Avellar.
Do lado da Polícia Federal, atuou o delegado Marcelo Itagiba. E as
suspeitas sobre as escutas que permitiram o flagrante recaíram sobre a
FENCE, Consultoria Empresarial, empresa especializada em arapongagem.
A partir desse episódio, montei um quadro esquemático com atores que
estiveram envolvidos no caso Lunus e nos episódios posteriores de dossiês e
arapongagens, e tentei definir um mapa de relacionamentos entre eles e uma
roteiro de como tudo pode ter começado.
É o fio da meada para se chegar à fábrica de dossiês.
14 (Gramacho, 2002)
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O início de Cachoeira
Filho de um apontador de jogo de bicho, Carlinhos Cachoeira herdou parte
dos negócios do pai, mas começou a deslanchar nos anos 90, quando o
governador de Goiás Maguito Vilela, lhe deu a concessão da Loteria do
Estado de Goiás, a LEG.
Cachoeira tornou-se pioneiro do bingo eletrônico e do caça níquel em
Goiás. Quando Marconi Perillo (PSDB) assumiu o governo do Estado,
Cachoeira mudou-se para Goiânia enquanto colocava o irmão para
administrar as empresas que criou com o dinheiro do jogo.
Em 2001, seu objetivo estratégico era explorar o ramo de jogos virtuais.
Já em 2.000 havia entendido que o futuro do jogo estava na Internet.
Naquele ano se tornou pioneiro do bingo eletrônico e do caça níquel em
Goiás, através da Gerplan.
Esse breve período de legalidade permitiu a Cachoeira estreitar laços
com Demóstenes Torres, então Secretario de Segurança de Goiás, com a
Polícia Civil e com a Polícia Militar.
Cachoeira passou a acionar Demóstenes para reprimir os concorrentes
que atuavam na ilegalidade. Graças a esse apoio, alijou a máfia espanhola
que controlava o bicho, bingos e caça-níqueis no estado, fornecia máquinas e
tinha o controle do território de Goiás.
Em 2007, quando o STF revogou em definitivo a lei goiana, Cachoeira já
era o todo-poderoso do jogo do estado.
Além de explorar o jogo clandestino, autorizava a entrada de novos
competidores, mediante o pagamento de uma taxa de proteção de 35% sobre
o faturamento. E vendia segurança graças à parceria com policiais civis e
militares. Quando um dos concedidos resistiu a pagar os 35%, foi
sequestrado e livrou-se porque era parente de um amigo de Cachoeira, que
se responsabilizou pelo pagamento.
Foi assim mesmo com outras famílias poderosas, como os Quiroga,
ligados à Escuderia Le Coq. Expulsos do Espírito Santo, os Quiroga
desembarcaram em Goiás e bateram continência a Cachoeira.
Enquanto a G Tech se havia com a CEF, Carlinhos Cachoeira tentava sair
de sua base goiana e se lançar nacionalmente
O Rio seria a vitrine para a empresa de Cachoeira, que tentava
aproximação com grupos de loteria na Espanha e Itália. A partir do Rio,
Cachoeira poderia competir com a G Tech em outros estados. Sua entrada no
Rio se deu no governo Benedita da Silva, do PT através de Waldomiro
Diniz.
A incursão de Cachoeira no Rio terminou em um escândalo que gerou uma
CPI – da qual Cachoeira se livrou graças parceria com a revista Veja.
Em janeiro de 2003 foi selado um acordo de paz entre a G Tech e
Cachoeira, pelo qual a empresa repassaria ao bicheiro negócios que tinha
em vários estados. Em troca, Cachoeira ajudaria na renovação do contrato
com a Caixa, recorrendo ao lobby de Waldomiro Diniz e de Rogério Buratti,
ligado ao Ministro da Fazenda Antônio Pallocci.
Nada disso ocorreu.
Em abril de 2003 a Procomp ganhou, em pregão eletrônico um contrato
de R$ 212 milhões para fornecer 25 mil terminais para a rede lotérica da
CEF, desbancando a G Tech. No ano seguinte houve a licitação final, e a
Procomp venceu novamente.
Cachoeira perdeu um faturamento potencial de R$ 30 milhões em cinco
anos. Irritado com a derrota, decidiu se vingar, espalhando o vídeo com a
conversa com Waldomiro, ainda nos tempos da Rio Loteria.
Em janeiro de 2004, Cachoeira deu o ultimato para Waldomiro: ou
revertia a situação ou seria denunciado. Em fevereiro, divulgou o vídeo com
o pedido de propina, ainda dos tempos de Waldomiro na Loterj.
Nesse episódio consolidaram-se relações e alianças entre um conjunto de
personagens centrais para as futuras capas de Veja: o bicheiro Carlinhos
Cachoeira (que bancou a operação de grampo de Valdomiro), o araponga
Jairo Martins (autor do grampo) e o jornalista Policarpo Júnior (autor da
reportagem).
A história do Brasil começou a ser reescrita ali. Significou a quebra da
blindagem do governo Lula e o início da mais pesada campanha midiática da
história moderna.
As parcerias midiáticas
Sem a G Tech, Cachoeira tentou outros caminhos, especialmente no período
2007/2009. Associou-se ao argentino Roberto Copolla e uma empresa
irlandesa, que explorava jogos no seu país e no Paraná. Seu plano era montar
offshores no Uruguai e Curaçao para promover os jogos virtuais no Brasil.
É por volta desse período que Cachoeira descobre o enorme poder da
mídia e a facilidade para montar parcerias.
O primeiro passo de Cachoeira foi procurar o Correio Braziliense, diário
de Brasília. Ele precisava divulgar seu bingo eletrônico, mas a legislação
proibia.
Acertou uma reportagem esperta. Supostamente, ela denunciava o jogo.
Mas, divulgaria todas as informações que os jogadores precisavam:
endereço, onde, quanto, como.
Os grampos da Operação Monte Carlos flagraram o bicheiro
comemorando a reportagem e dando balanço do aumento de acessos e do
lucro líquido.
O passo seguinte foi se aproximar de Policarpo Júnior, repórter policial
de Veja. A primeira demanda – uma reportagem em Veja, nos moldes da que
saiu no Correio Braziliense – não deu certo.
Mas outras parcerias vinham a caminho. E uma delas – a gravação de um
pedido de propina de R$ 3 mil – foi o álibi para a operação que resultou no
“mensalão”. O que não foi revelado é que tudo não passou de uma jogada de
Veja para beneficiar um grupo de contraventores de olho em jogadas nos
Correios.
O araponga e o repórter
O primeiro registro da associação entre Veja e Cachoeira está numa
reportagem de 2004, sobre a CPI de Cachoeira.
Em primeira investida fora do estado, no Rio de Janeiro, foi vítima de um
achaque de um deputado fluminense, André Luiz, que exigia R$ 4 milhões
para não o incluir em uma CPI do Bingo. Cachoeira grampeou a conversa
com o delegado e encaminhou ao repórter policial Policarpo Jr, da Veja.
Na edição 1.878 de 3 de novembro de 2004, Veja implodia com o
denunciante e tratava Carlinhos Cachoeira como “empresário de jogos”.
Trecho da matéria:
Este recorreu a dois laranjas – Joel dos Santos Filhos e João Carlos
Mancuso Villela – para armar uma operação que permitisse desestabilizar o
esquema Jefferson não apenas nos Correios, mas também na Eletrobrás e na
BR Distribuidora.
O alvo escolhido foi Maurício Marinho, diretor menor e biscateiro de
pequenas propinas.
A ideia seria Joel se apresentar a Marinho como representante de uma
multinacional, negociar uma propina e filmar o flagrante. Como não tinham
experiência com gravações mais sofisticadas, teriam decidido contratar o
araponga Jairo Martins.
Jairo foi convidado para um almoço pelo genro de Carlinhos Cachoeira,
Casser Bittar.
Lá, foi apresentado a Wascheck, que o contratou para duas tarefas:
providenciar material e treinamento para que dois laranjas grampeassem
Marinho; e a possibilidade de o material ser publicado em órgão de
circulação nacional.
Imediatamente Jairo entrou em contato com Policarpo e acertou a
operação. O jornalista não só aceitou a parceria, antes mesmo de conhecer a
gravação, como avançou muito além de suas funções de repórter: atuou como
uma espécie de diretor de cena da gravação.
O grampo em Marinho foi gravado em um DVD. Jairo marcou, então, um
encontro com Policarpo. Foi um encontro reservado - eles jamais se falavam
por telefone, segundo o araponga -, no próprio carro de Policarpo, no Parque
da Cidade. Policarpo levou um mini-DVD, analisou o material e considerou
que a gravação ainda não estava no ponto, que havia a necessidade de mais.
Recebeu a segunda, achou que estava no ponto. E guardou o material na
gaveta, aguardando a autorização do araponga, mesmo sabendo que estava se
colocando como peça passiva de um ato de chantagem e achaque.
Wascheck tinha, agora, dois trunfos nas mãos: a gravação da propina de
R$ 3 mil e um repórter, da maior revista do país, apenas aguardando a
liberação para publicar a reportagem.
Quando saiu a reportagem, a versão de que o repórter havia recebido o
material na semana anterior era falsa e foi desmentida pelos depoimentos
prestados por ele e por Jairo à Polícia Federal e à CPI do Mensalão.
Pressionado pelo eficiente relator Osmar Serraglio, na CPI do Mensalão,
Jairo negou ter recebido qualquer pagamento de Wascheck. Disse ter se
contentado em ficar com o equipamento, provocando reações de zombaria
em vários membros da CPI.
Depois, revelou outros trabalhos feitos em parceria com a Veja. E
garantiu que sua função não era de araponga, mas de jornalista. O único
órgão onde seus trabalhos eram publicados era a Veja. Indagado pelos
parlamentares se recebia alguma coisa da revista disse que não, que seu
objetivo era apenas o de “melhorar o pais”.
Segundo o depoimento de Jairo:
‘Aí fiquei esperando o OK do Artur Washeck pra divulgação do
material na imprensa. Encontrei com ele pela última vez no
restaurante, em Brasília, no setor hoteleiro sul, quando ele
disse: ‘Eu vou divulgar o fato. Quero divulgar’. E decorreu um
período que essa divulgação não saía. Aí foi quando eu fiz um
contato com o jornalista e falei: ‘Pode divulgar a matéria’’.
O deputado Roberto Jefferson, no entanto, imaginou que a denúncia havia
sido montada por José Dirceu. Em represália, concedeu entrevista à Folha,
que foi o ponto de partida para o processo do “mensalão”.
O final da história
Parte da história terminou em agosto de 2007. Sob o título “PF desmonta
nova máfia nos Correios”16, o Correio Braziliense noticiava o
desbaratamento de uma nova quadrilha que tinha assumido o controle dos
Correios17.
No comando, Arthur Wascheck, o lobista que ascendera ao poder graças à
parceria com Veja.
Durante a Operação Selo, foram presas cinco pessoas em dois estados
mais o Distrito Federal.
De acordo com os investigadores, “o grupo agia como traficantes nos
morros”.
“Havia uma quadrilha na ECT (Empresa de Correios e Telégrafos), que
foi desbaratada e afastada. A outra organização tomou o lugar dela. Assim
como os traficantes fazem, quando saem, morrem ou são presos, acontece a
mesma coisa no serviço público. Quando uma quadrilha sai do local, entra
outra e começa a praticar atos ilícitos no lugar da que saiu”, explica o
delegado Daniel França, um dos integrantes do grupo de investigação.
A corrupção tinha apenas trocado de mãos.
O empresário, conforme os investigadores, atuava na área de licitações
desde 1994, sendo que um ano depois ele fora condenado por
irregularidades em licitação para aquisição de bicicletas pelo Ministério da
Saúde.
O valor das fraudes chegava a milhões de reais.
Segundo a polícia, o grupo de Wascheck vendia todo tipo de material para
os Correios, de sapato a cofres, sendo que muitos integrantes do esquema
eram também procuradores de outras empresas envolvidas nas
concorrências.
Nas edições seguintes de Veja, nenhuma menção à operação da PF. Mas
uma das matérias da edição de 15 de agosto de 2007 atendia pelo sugestivo
título de “Porque os corruptos não vão presos”
A reportagem fala do mensalão, insinua que os implicados até
melhoraram de vida, menciona símbolos midiáticos de corrupção (Quércia,
Maluf, Collor etc). Nenhuma palavra sobre a Operação Selo e sobre o papel
desempenhado pelas reportagens de escândalo da própria revista no jogo
das quadrilhas dos Correios, que permitiu a ascensão da quadrilha de
Wascheck.
15 (Bingos)
16 (https://goo.gl/LByQAg)
17 (Luiz)
.
O mensalão do PR
As escolas chinesas
18 https://goo.gl/yGwKud
.
O caso Farcs
Escrever pensando
No dia 24 de janeiro de 2008, o diretor de redação de Veja, Eurípedes
Alcântara, proferiu palestra para os alunos do Curso Abril de Jornalismo.
No intertítulo “As marcas de Veja”, Eurípedes descreve a receita de
jornalismo:
O Diretor de Redação expôs alguns pontos essenciais para a produção da
revista. Um deles é o controle que o repórter precisa ter sobre a matéria.
“Não é a pauta ou a fonte que têm de dominar o jornalista”, disse.
Provavelmente, nem a informação pode servir de limitação. Segundo a
aula de Eurípedes, Veja pratica o conceito de “escrever pensando”:
Outro ponto é a diluição de conteúdo opinativo em meio às
reportagens, a qual Eurípedes chama de “escrever pensando”.
O jornalista ponderou sobre as diversas interpretações dos
críticos sobre determinadas reportagens da revista. “Você só
pode ser cobrado por aquilo que escreve. Não pelo que
interpretam”.
Cobrado pela capa das FARCs, explicou o que a revista fez:
“A Veja disse que a ABIN estava investigando. Não disse que
Lula recebia de guerrilheiros. Isso é uma interpretação”.
De fato, tudo não passou de uma grande interpretação, com direito a capa.
.
19 https://veja.abril.com.br/brasil/em-fitas-demostenes-age-como-socio-de-cachoeira/
20 https://goo.gl/UXohT
.
O caso Satiagraha
O primeiro contato mais estreito da Veja com o banqueiro Daniel Dantas foi
em 1999.
Em 10 de março de 1999, em pleno escândalo das “fitas do BNDES”,
Veja recebeu material demonstrando que a Previ – o fundo de pensão dos
funcionários do Banco do Brasil -- tinha assinado acordo com o banco
Opportunity, de Daniel Dantas, mesmo tendo sido desaprovado por sua
diretoria.
A matéria foi feita pelo repórter Felipe Patury
“No início de fevereiro, um diretor do fundo, Arlindo de
Oliveira, mandou uma carta ao presidente da Previ. São três
páginas, e o tom é de indignação, expresso em frases que se
encerram com três pontos de exclamação. Na carta, o diretor
relata que a diretoria da Previ, reunida em julho do ano
passado, decidiu que não faria parceria com o Opportunity no
leilão das teles tendo de pagar ao banco 7 milhões de reais por
ano de “taxa de administração”. A diretoria achou o valor
descabido e decidiu só fazer o negócio se não tivesse de pagar a
taxa. O estranho é que essa decisão foi ignorada. A Previ
associou-se ao Opportunity na compra de três teles (Tele Centro
Sul, Telemig Celular e Tele Norte Celular) e comprometeu-se a
arcar com os 7 milhões de reais por ano, apesar da decisão
contrária da diretoria”.
Segundo a matéria, a Previ também havia entrado – sem autorização da
diretoria – na operação de compra da Telemar que – na época – pensava-se
que sairia para o Opportunity.
Na semana seguinte, o repórter conseguiu mais material junto às suas
fontes. Chegou a preparar a matéria. Uma semana depois, na edição de 17 de
março de 1999, a matéria não saiu publicada. Mas, pela primeira vez, o
banco Opportunity – denunciado na edição anterior – bancou duas páginas de
publicidade na revista
Não batia. O Opportunity não era banco de varejo, não atuava sequer no
middle market, não havia lembrança de publicidade dele nem mesmo em
revistas especializadas – como a Exame.
No dia 31 de março de 1999, mais duas páginas de publicidade do
Opportunity. E a matéria não saiu.
A revista voltou a açoitar o banqueiro em plena efervescência da batalha
pelo controle das teles, tendo Dantas de um lado e fundos de pensão estatais
de outro.
No dia 28 de julho de 2004, saiu o primeiro petardo contra Dantas. Na
matéria “Um negócio de espiões”, de Alexandre Oltramari, ele era
frontalmente acusado de espionar autoridades brasileiras.
“O caso mais explícito, e o mais grave, é a vigilância de espiões
sobre os passos de Cássio Casseb, atual presidente do Banco do
Brasil e ex-conselheiro da Telecom Italia. Nos relatórios
divulgados na semana passada, fica-se sabendo que a Kroll
Associates, a maior empresa de investigação corporativa do
mundo, contratada pelo Opportunity, andou no encalço de
Casseb por quase um ano, tendo, inclusive, monitorado suas
contas bancárias pessoais – em uma flagrante violação da lei
brasileira.
Nesses movimentos iniciais, nas matérias da Veja Dantas era o vilão; os
demais, suas vítimas.
As entradas de Dantas na revista se davam, apenas, através da seção
Radar. Mas, de uma maneira geral, a linha editorial da revista continuava na
direção oposta: atacar Dantas.
No dia 3 de novembro de 2004, outro petardo contra Dantas: a matéria “O
dia da caça”, assinada por Márcio Aith. O subtítulo já era indicativo do tom
da matéria:
“A Polícia Federal deflagra uma operação contra a Kroll, que,
contratada pelo banqueiro Daniel Dantas, pode ter espionado
até o ministro José Dirceu”.
Na matéria se dizia que:
A Kroll, contratada pela Brasil Telecom dominada por Dantas,
foi acusada de usar métodos ilícitos numa investigação que
teria como objetivo levantar informações comprometedoras
sobre a Telecom Italia. Os indícios de que a empresa de
investigação vinha agindo à margem da lei foram reforçados à
Polícia Federal pela própria Telecom Italia.
Conversas entre Verdial e seu chefe, o inglês que se apresenta
como William Goodall, mostram também que fontes policiais e
da Receita Federal foram pagas pela Kroll para facilitar o
acesso da empresa a informações sigilosas de seus investigados.
A matéria revelava as ligações jornalísticas de Dantas.
Os documentos repassados à Polícia Federal pela Telecom
Italia incluem um e-mail que a PF atribui ao jornalista
Leonardo Attuch, da revista IstoÉ Dinheiro. A mensagem foi
enviada em setembro para Charles Carr, chefe do escritório da
Kroll em Londres. Nela, o remetente, que se identifica por meio
do pseudônimo “Silvio Berlusconi”, comenta em tom de
intimidade uma reportagem que havia feito sobre a empresa
italiana Tecnosistemi, ligada ao grupo Tim e envolvida em
denúncias de falência fraudulenta (na edição datada de 14 de
julho deste ano, a revista IstoÉ Dinheiro saiu com uma
reportagem sobre o assunto, assinada por Attuch). No fim da
mensagem, o remetente afirma que gostaria de ter acesso “à
informação que você tem sobre o Dirceu”. Conclui dizendo:
“Tenho certeza de que renderia uma grande reportagem.”
No final da matéria havia um boxe, “O gênio do mal”, de Lucila Soares e
Monica Weinberg, traçando um perfil de Dantas.
“Também seus colegas na corretora Triplic, onde trabalhou no
início da carreira (quando ainda usava rabo-de-cavalo e bolsa
a tiracolo), espantavam-se com seu talento, que lhe rendeu o
apelido de “professor Gavião, o gênio do mal”. Era só uma
brincadeira de jovens, mas já caracterizava um estilo marcado
pelo hábito de “agir na fronteira”, na definição do próprio
Dantas. A expressão traduz uma ousadia que, segundo amigos, é
capaz de levar o banqueiro a atuar freqüentemente no limite da
legalidade”.
No dia 18 de maio de 2005 sairia uma terceira grande matéria, “A Usina de
Espionagem da Kroll”, assinada por Marcelo Carneiro e Thais Oyama, em
cima de uma operação da Polícia Federal contra a Kroll. Anotem a data
porque marca o fim da era de críticas a Dantas.
Dizia a matéria:
“Até então, porém, suspeitava-se que a empresa havia
atropelado os limites estabelecidos pela Constituição para
atender apenas aos interesses da Brasil Telecom – até o mês
passado comandada por Daniel Dantas, do banco Opportunity.
O material reunido pela PF no curso da investigação, batizada
de Operação Chacal, revela, no entanto, que pelo menos desde a
década de 90 a Kroll se dedica a monitorar a vida de dezenas de
pessoas, entre elas políticos e empresários – e nem sempre por
meio de expedientes legais”.
O simples fato de se saber que praticava ilegalidades já seria suficiente para
ser tratado com cautela por qualquer jornalismo sério. A revelação de que
comprava reportagens recomendava afastamento total.
Nos meses seguintes, porém, uma profunda transformação aconteceria na
linha editorial da revista que denunciara, pouco antes, essas manobras de
Dantas.
A razão foi simples. Até então a parceria de Roberto Civita era com
Giorgio dela Seta, presidente da Pirelli Brasil. Assim como no Brasil, o
suspeito processo de privatização da Telecom Itália jogou o controle nos
braços de Marco Tronchetti Provera, um aventureiro que se casou com uma
bisneta do fundador da empresa, Leopoldo Pirelli.
Dantas conseguiu atravessar a aliança e montar sua própria operação com
Civita. E valeu-se, para tal, da receita descrita no filme “O poder da mídia”.
21 https://goo.gl/pvwqt2
22 https://goo.gl/jRfrzA
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O dossiê falso
A entrevista armada
O medo no Supremo
Medo no Supremo
Ministros do Supremo reagem à suspeita de grampo na mais alta
corte de Justiça do país.
Ninguém mais na mídia havia percebido qualquer sinal de “medo” do
Supremo, ou de generalização das escutas atingindo os Ministros.
Aliás, os últimos abusos contra juízes haviam partido da própria revista e
do autor da reportagem, no falso dossiê contra o então presidente do
Superior Tribunal de Justiça Edson Vidigal – da própria revista. Veja sempre
cultivou relações íntimas com produtores de dossiês.
Na abertura, forçava um lide, dentro do estilo tatibitate-recitativo (“sim,
beira o inacreditável”) de Mario Sabino, diretor de redação adjunto:
“É a primeira vez que, sob um regime democrático, os
integrantes do Supremo Tribunal Federal se insurgem contra
suspeitas de práticas típicas de regimes autoritários: as escutas
telefônicas clandestinas. Sim, beira o inacreditável, mas os
integrantes da mais alta corte judiciária do país suspeitam que
seus telefones sejam monitorados ilegalmente”.
Seguia-se o velho estratagema das estatísticas de fontes:
“Nas últimas semanas, VEJA ouviu sete dos onze ministros do
Supremo – e cinco deles admitem publicamente a suspeita de
que suas conversas são bisbilhotadas por terceiros. Pior: entre
eles, três ministros não vacilam em declarar que o suspeito
número 1 da bruxaria é a banda podre da Polícia Federal”.
Ia além
“As suspeitas de grampos telefônicos estão intoxicando a
atmosfera do tribunal”.
Uma capa de revista semanal é uma celebração. É tema relevante, quente, em
que se colocam os melhores quadros para apurar os dados.
Porém, de informações objetivas, a reportagem tinha o seguinte:
“A Polícia Federal se transformou num braço de coação e
tornou-se um poder político que passou a afrontar os outros
poderes”, afirma o ministro Gilmar Mendes, numa acusação
dura e inequívoca”.
O restante era um cozidão das seguintes notícias, factoides ou boatos que já
haviam saído na mídia.
Notícia de 24 de maio de 2007, na Folha:
“O ministro (Sepúlveda Pertence) diz que as suspeitas de que a
polícia manipula gravações telefônicas aceleraram sua
disposição em se aposentar. “Divulgaram uma gravação para
me constranger no momento em que fui sondado para chefiar o
Ministério da Justiça, órgão ao qual a Polícia Federal está
subordinada. Pode até ter sido coincidência, embora eu não
acredite”, afirma”.
A notícia era de janeiro de 2007, conforme o Terra Magazine. Mais: o
grampo da Polícia Federal não tinha sido em cima do Ministro, mas em um
lobista envolvido em uma transação em Sergipe e que estava sob
investigação da PF.
A matéria de Veja esquentava o recozido, sem nenhum respeito aos fatos:
“Na quinta-feira passada, o ministro Sepúlveda Pertence pediu
aposentadoria antecipada e encerrou seus dezoito anos de
tribunal. Poderia ter ficado até novembro, quando completa 70
anos e teria de se aposentar compulsoriamente. Muito se
especulou sobre as razões de sua aposentadoria precoce. Seus
adversários insinuam que a antecipação foi uma forma de fugir
das sessões sobre o escândalo do mensalão, que começam nesta
semana, nas quais se discutirá o destino dos quadrilheiros –
entre eles o ex-ministro José Dirceu, amigo de Pertence. A
mulher do ministro, Suely, em entrevista ao blog do jornalista
Ricardo Noblat, disse que a saída de seu marido deve-se a
problemas de saúde. O ministro, no entanto, diz que as suspeitas
de que a polícia manipula gravações telefônicas aceleraram sua
disposição em se aposentar. “Divulgaram uma gravação para
me constranger no momento em que fui sondado para chefiar o
Ministério da Justiça, órgão ao qual a Polícia Federal está
subordinada. Pode até ter sido coincidência, embora eu não
acredite”, afirma”.
Tinha mais.
“Os temores de grampo telefônico com patrocínio da banda
podre da PF começaram a tomar forma em setembro de 2006,
em plena campanha eleitoral. Na época, o ministro Cezar
Peluso queixou-se de barulhos estranhos nas suas ligações e
uma empresa especializada foi chamada para uma varredura”.
A notícia era de 17 de setembro de 2006:
“O ministro Marco Aurélio Mello recebeu uma mensagem
eletrônica de um remetente anônimo. O missivista informava
que os telefones do ministro estavam grampeados e que
policiais ofereciam as gravações em Campo Grande. O caso foi
investigado, mas a Polícia Federal - ela, de novo - concluiu que
a mensagem era obra de estelionatários fazendo uma denúncia
falsa”.
No decorrer da semana, Blogs e veículos da grande imprensa
desmascararam a farsa. Praticamente todo leitor bem informado percebeu
que estava diante de um “cozidão”.
Os dois principais fatos da reportagem: as declarações de Sepúlveda
Pertence e de Marco Aurélio de Mello foram colocadas nos devidos termos
pelos próprios Ministros.
O desmentido de Sepúlveda
No dia 20 de agosto de 2007, o jornalista Bob Fernandes, da Terra
Magazine, ouviu o Ministro Sepúlveda Pertence.
- Ministro, boa tarde. Estou ligando para falar sobre a denúncia, sobre a
hipótese de grampo telefônico contra o senhor, contra ministros do Supremo,
publicada na Veja desta semana.
- Sim, eu falei com a revista sobre o assunto.
- O senhor foi grampeado?
- ... falei sobre um assunto que aconteceu comigo (publicado neste Terra
Magazine em janeiro, leia aqui).
- Sim, é um assunto que conhecemos. Mas, lhe faço uma pergunta: O
senhor crê ter sido grampeado?
- Não...
- O senhor acredita ter sido grampeado, ou seus colegas terem sido
grampeados?
- Não, não creio em grampos contra mim.
- Nem contra...
- Não, não tenho nenhuma razão para crer em grampo telefônico...
- Mas...
- ... o que eu falei foi sobre aquele episódio... salvo aquele episódio, não
tenho nada a dizer sobre este assunto.
- O ministro Marco Aurélio Mello já desmentiu, nesta segunda, a
existência de grampo, disse que falava por ele... O senhor acha que houve
um engano?
- ... um engano.
O desmentido de Mello
No domingo do próprio fim-de-semana em que a capa saiu, ouvido pelas
rádios, Marco Aurélio Mello desmentiu o teor da matéria.
Denúncia de grampo no STF era falsa
O Globo;
BRASÍLIA - A Polícia Federal afirma que era falsa a denúncia
de que agentes federais estariam negociando escutas telefônicas
com conversas de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
A investigação mostrou que os e-mails apócrifos recebidos pelo
ministro Marco Aurélio de Mello, relatando o suposto grampo,
faziam parte de uma vingança pessoal. Um funcionário do INSS
exonerado por corrupção tentou incriminar o delegado da PF
que o investigou.
Marco Aurélio recebeu o resultado da investigação do ministro
da Justiça, Tarso Genro, e o encaminhou ao procurador-geral
da República, Antônio Fernando de Souza
- O sujeito (funcionário do INSS) queria fustigar o delegado.
Trata-se de retaliação. Foi satisfatória a apuração. Dei o
episódio como suplantado - disse Marco Aurélio.
Requentando o recozido
Na semana seguinte, a direção de redação recorreu aos mesmos estratagemas
conhecidos, para dar sobrevida à falsificação.
Na seção de cartas, só foram publicadas aquelas a favor. Mais: recorreu-
se à velha barganha para garantir a continuidade do tema. Em troca de
visibilidade um deputado anunciava a intenção de abrir uma CPI. O
contemplado foi o ex-Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, Marcelo
Itagiba, um dos personagens da indústria de dossiês.
Dizia a matéria:
“Os grampos telefônicos, uma das principais ferramentas de
investigação policial da atualidade, vão passar por uma
devassa. Na semana passada, a Câmara dos Deputados recolheu
191 assinaturas para criar a CPI dos Grampos, que pretende
investigar a suspeita de que ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF) tiveram seus telefones interceptados ilegalmente,
conforme VEJA noticiou em sua edição passada. Cinco dos onze
ministros do STF admitiram publicamente a suspeita de que
suas conversas telefônicas podem estar sendo bisbilhotadas
clandestinamente. A CPI, que terá prazo de 120 dias para
concluir a investigação, deverá ser instalada já no início do
próximo mês. “Quando a mais alta corte do país se sente
ameaçada e intimidada, isso é uma coisa muita séria, que
precisa de uma resposta urgente”, diz o deputado Marcelo
Itagiba, do PMDB do Rio de Janeiro, delegado licenciado da
Polícia Federal e autor do requerimento de criação da CPI”.
Era a mesma manobra do caso Edson Vidigal. Na ocasião soltou a matéria e
informou que o Conselho Nacional de Justiça recebeu uma denúncia. Houve
denúncia, de fato, mas depois da matéria ter sido publicada – e utilizando a
própria matéria como elemento de prova. A armação era nítida, como era
nítida a armação com Itagiba, para propor a CPI.
O factoide da escuta no Supremo foi um marco importante, por ter sido o
primeiro absurdo da Veja que não mereceu repercussão na mídia. Até então,
todos os abusos eram repercutidos, por um efeito pavloviano.
Mas, como resultado do factoide, o Congresso abriu uma CPI do Grampo,
tendo como relator o próprio Marcelo Itagiba. E, na época, a revista ainda
conseguiu que um Ministro do STF, Joaquim Barbosa, aceitasse participar de
sua campanha publicitária.
Era apenas um ensaio para os capítulos seguintes, de tentativa de
amordaçar a Polícia Federal, que já trabalhava a Operação Satiagraha.
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O grampo no Supremo
O caso Femsa
Depois que Fischer perdeu a conta da Schincariol, a revista não falou mais
da empresa, a não ser em matérias policiais, quando a diretoria foi presa por
sonegação de impostos. A cerveja preferida agora, era outra, a Kaiser, a
partir do momento em que contratou o publicitário.
No dia 24 de maio de 2006, Radar reservou seu melhor espaço para a
contratação de Eduardo Fischer pela mexicana Femsa – que havia adquirido
a Kaiser. Era um Box, com cor diferenciada e foto do publicitário, um lugar
de destaque na seção de maior leitura da revista.
A nota era altamente laudatória.
Ele já produziu campanhas para Brahma, Skol e Nova Schin.
Para a última, criou o slogan “Experimenta”, que a AmBev
denunciou como ilegal em 2003. Curiosamente, um relatório do
banco Bear Stearns divulgado na semana passada afirma que a
AmBev copiou a campanha do “Experimenta” no Peru. Até o
momento, Fischer tem se recusado a falar sobre esse assunto.
No dia 4 de outubro de 2006 uma nota do Radar visava criar expectativa
sobre a campanha da Femsa.
“O grande segredo do mercado publicitário e do setor de
cervejas começa a ser desvendado nos próximos dias. Mas só
em parte. Trata-se da retumbante estratégia da Femsa, a
mexicana dona da Kaiser, para sacudir o mercado. O objetivo
do diretor da Femsa, Ernesto Silva, é sair rapidamente dos
cerca de 7,5% de participação de mercado para dois dígitos.
Reservadamente, ele tem dito que haverá uma megacampanha
para recuperar a marca Kaiser”.
A nota também saíra com destaque no Radar, em um box colorido e com a
foto do diretor da FEMSA, Ernesto Silva.
No dia 18 de outubro de 2006, saiu uma matéria grande na editoria de
Economia, “Duelo de Gigantes no Brasil”:
“Mais uma guerra das cervejas está em curso. Desta vez, entre duas
multinacionais”
A matéria dizia que a Ambev teria montado uma sala de guerra para
enfrentar os mexicanos. Seriam dois os motivos:
“Primeiro, a publicação de uma foto em que a bela atriz Karina
Bacchi aparece beijando José Valien, conhecido como o
“baixinho da Kaiser”. Parte da imprensa chegou a acreditar
que se tratava de um novo casal na praça, mas a tropa
mobilizada pela AmBev não tardou a descobrir a verdade: era
jogada de marketing da concorrente”
O outro motivo de alvoroço nas fileiras da AmBev foi que no
mesmo dia começou a ser veiculada na TV a nova campanha
publicitária da Femsa, gigante mexicana que comprou a Kaiser
no início do ano. Os dois episódios marcaram o início de mais
uma guerra das cervejas. Esse promete ser um combate como
nunca houve no país. Mais barulhento do que o ocorrido em
2003, quando a Schincariol lançou a Nova Schin e surpreendeu
o mercado com o bordão “Experimenta”. Ou do que o duelo
entre as brasileiras Brahma e Antarctica, no início dos anos
90”.
A falta de habilidade jornalística era nítida. Era necessário mobilizar uma
tropa na Ambev para descobrir que o “caso” entre o Baixinho e a atriz
Karina Bacchi era jogada publicitária.
Na Ambev ninguém entendeu a razão da matéria. O fato da Femsa ser
multinacional não significava nada, já que a Kaiser foi vendida para ela por
outra multinacional – a canadense Molson – que falhou. No campo
específico das cervejas, a Molson era maior que a Femsa - que também é
sócia da Coca-Cola.
Depois, a troco de quê o Baixinho da Kaiser beijando uma modelo
provocaria uma operação de guerra na líder disparada do mercado? E que
história era aquela de um “um combate como nunca houve no país”?
O colunista foi procurado pela Ambev e informado de que não havia
nenhuma operação especial contra a Femsa. Foi convidado a visitar a
empresa, para conferir se havia alguma sala de guerra. Não adiantou. A
matéria ironizou as declarações da Ambev:
“Não houve uma vírgula de mudança em nossas estratégias”,
diz Alexandre Loures, gerente de comunicação da AmBev. Não é
bem assim. Internamente as discussões denotam um pouco mais
de preocupação. A sala de guerra da empresa estava em estado
de alerta havia meses, aguardando o início da ofensiva de
Fischer”.
Não havia nenhuma fonte confirmando essa informação do “estado de
guerra”. Tudo era espuma para criar uma expectativa junto ao público, uma
guerra capaz de dar visibilidade à campanha e repercussão na mídia.
Como sempre, a matéria não poupava elogios a Fischer.
“O comandante da investida mexicana é o publicitário Eduardo
Fischer, que já trabalhou para a rival – foi o criador do slogan
“Número 1”, para a Brahma – e depois se tornou um
especialista em enfrentá-la. “Meu estilo é jiu-jítsu: quanto
maior o tamanho (do concorrente), maior a queda”, diz Fischer.
Ele virou uma pedra no sapato da AmBev desde que criou a
campanha “Experimenta”, um sucesso tão estrondoso que em
pouco mais de dois meses a Schincariol aumentou de 9% para
15% sua participação no mercado e virou um fenômeno no setor
de cervejas.
A multinacional aposta que Fischer conseguirá repetir o
sucesso da campanha de 2003. Embora a empresa não admita
publicamente, sua meta imediata é tirar da Schincariol a vice-
liderança nas vendas. “Uma companhia do tamanho da Femsa
não vai entrar no Brasil para ser terceiro ou quarto lugar. Para
fazer sentido investir aqui, ela vem no mínimo para ocupar a
vice-liderança”, afirma Poppe, da Mellon.
No dia 29 de novembro outra nota no Radar, falando do Baixinho da Kaiser,
nota incompreensível:
Baixinho invocado
Sem alarde, o baixinho da Kaiser mudou de namorada. Depois de
terminar seu “romance” com a estonteante Karina Bacchi, ele aparecerá
nos próximos dias namorando Adriane Galisteu. O cara é fogo!
Qual a justificativa para esse tipo de nota, que destoava completamente
do estilo do Radar?
No dia 13 de dezembro de 2006, outra nota do Radar, falando da “artilharia
da Femsa”, mas mostrando mudanças irrisórias no mercado:
Resultado (parcial) da guerra
A artilharia da Femsa sobre a AmBev acabou atingindo em
cheio a Schincariol e parcialmente a Petrópolis. O resultado de
novembro da Nielsen revela que a AmBev cresceu 0,2 pontos
porcentuais no segundo mês de ataque da Femsa. Sua
participação de mercado passou para 68,8%. A Femsa subiu de
8% para 8,5%. Já a Schincariol caiu de 12% para 11,4%.
No dia 5 de abril de 2007, finalmente, a revista Exame produziria uma
matéria sobre o fracasso da Femsa:
Até agora, em vez de crescer, mesmo que lentamente, a fatia da
empresa nas vendas nacionais de cerveja caiu meio ponto
percentual. Está hoje em 8,5%, segundo o instituto AC Nielsen.
(A situação já foi pior. Em junho do ano passado, a participação
da empresa atingiu 7,4%.) A Sol ainda não pode ser
considerada um sucesso de mercado e a Kaiser segue com
problemas para aumentar as vendas. Há alguns meses, os
mexicanos decidiram reposicionar a marca do Baixinho
reduzindo o preço, para que ela passasse a competir com a
Antarctica e a Nova Schin.
Mesmo com a confirmação de que a estratégia da Femsa fracassara, através
da seção Holofote, Veja insistia em levantar virtudes e afirmar que a
empresa estava “incomodando a concorrência”. De que maneira? Agora,
com ações na Justiça.
No ano passado, com a compra da Kaiser, a mexicana Femsa
entrou no mercado brasileiro de cervejas. O presidente do grupo
no país, Ernesto Silva, ainda não conseguiu ameaçar a
liderança da AmBev, mas já incomoda a concorrência. A seu
pedido, a Justiça determinou a suspensão da venda da cerveja
Puerto del Sol, da AmBev, para evitar confusão com a marca
Sol, dos mexicanos. Como a ordem judicial não foi cumprida, a
AmBev viu-se multada em 15 milhões de reais.
A saga da Femsa na Veja encerrou-se melancolicamente no dia 16 de maio
de 2007. A coluna Radar informou que
Abril registrou uma mudança histórica no agitado mercado de
cervejas brasileiro. Segundo os dados do Nielsen, a Petrópolis
(dona da Itaipava, entre outras) ultrapassou a poderosa Femsa,
dona das marcas Kaiser e Sol. É um fato inédito. Agora, a
mexicana tem 8% do mercado total, contra 8,1% da brasileira.
A “batalha como nunca houve no país”, a “retumbante estratégia”, que
permitiria à Kaiser ultrapassar a Shincariol e conquistar o segundo lugar,
terminava com a Kaiser perdendo o terceiro lugar para a novata Petrópolis.
O caso do antiviral
Quando preparava a série sobre a Veja, deparei-me com uma matéria
estranha, de um remédio antiaids da Pfizer que a revista - sem o respaldo de
uma fonte científica sequer - sugeria para compor o coquetel antiaids do
Ministério da Saúde.
Era uma reportagem comum, de página inteira, não um artigo científico,
assinada por uma repórter sem formação médica. Falava das maravilhas de
um novo princípio ativo da Pfizer, que traria avanços consideráveis no
combate à aids, o Maraviroc.
Nos EUA, o FDA acabara de aprovar a droga. No Brasil, a Anvisa atuou
de forma surpreendentemente rápida, aprovando-a no mesmo ano. E aí, uma
repórter sem nenhuma especialização na área médica, sem pesquisar sites
especializados no assunto, sem recorrer a uma fonte médica sequer, sugere
que o remédio passe a integrar o coquetel antiaids do Ministério da Saúde.
A matéria fechava assim:
“É muito provável, de acordo com os médicos, que as duas
novas classes de drogas antiaids logo venham a fazer parte
desse cardápio farmacêutico (o coquetel antiaids do Ministério
da Saúde, sonho de todo laboratório que produz antivirais)”.
A fonte da revista eram “os médicos”.
O que estaria por trás desse soluço científico da revista?
Na época, nem o Ministério da Saúde nem a Sociedade Brasileira de
Infectologia concordavam com a inclusão do novo princípio ativo,
justamente devido ao fato de se exigir o teste prévio do paciente, oferecido
por apenas um laboratório norte-americano associado à Pfizer.
Havia um conflito latente, discussões técnicas no Ministério da Saúde e
em organismos científicos. Aí a empresa monta essa estratégia de se valer de
uma revista sem nenhuma base científica, para “sugerir” ao Ministério a
adoção do remédio.
O caso foi completado por um leitor.
A seção “Mais Vendidos” é uma instituição da Veja. Criada nos anos 70,
durante décadas se tornou o principal referencial de vendas de livros no
país. Aparecendo na lista, aumentam as encomendas do livro e as livrarias
passam a colocá-lo em lugar de destaque em vitrines e estantes. Há um ganho
efetivo – intelectual e financeiro – em aparecer na relação.
No dia 10 de março de 2004, o romance de estreia do redator-chefe Mário
Sabino – “O Dia em que Matei Meu Pai”- foi resenhado na Veja. A resenha
foi de responsabilidade do jornalista Carlos Graieb, repórter da revista e
subordinado a Sabino . Era algo impensável, vetado por qualquer código de
ética escrito ou tácito, um subordinado incumbido de resenhar o livro do
chefe.
Todos os anos, no mês de dezembro, sai a lista dos “Livros do Ano” do
“The Economist”. A posição da revista quanto ao tratamento dado à obra de
seus talentos internos, está resumida nas seguintes linhas:
“Nossa política é não resenhar livros escritos pela nossa equipe ou por
colaboradores habituais, por que os leitores poderiam duvidar da
independência dessas resenhas”.
Na resenha que Graieb fez do livro de seu chefe, no entanto, os elogios
eram derramados:
“Dois tipos de sedução aguardam o leitor de O Dia em que Matei Meu
Pai (Record; 221 páginas; 25,90 reais). Primeiro, a sedução do bom texto
literário, à qual ele pode se entregar sem medo. O romance de estréia do
jornalista Mario Sabino, editor executivo de VEJA, é daqueles que se
devoram rápido, de preferência de uma vez só, porque a história é
envolvente e a linguagem, cristalina. Sabino possui atributos fundamentais
para um ficcionista, como o poder de criar imagens precisas: em seu texto,
ao ser atingido pelas costas um personagem não apenas se curva antes de
desabar; ele se curva como se fosse “para amarrar os sapatos”.
A resenha destaca a passagem mais marcante do livro, um diálogo do
personagem com o psicanalista, à altura de uma cena hamletiana:
“A certa altura, ele grita para sua analista: “Não quero saber de
interpretações. Faça-as longe de mim, e sem a minha colaboração. De que
elas servem, meu Deus? Você, aqui, não passa de coadjuvante, está
entendendo? Por isso, não tente ser protagonista por meio de suas
interpretações””.
Escrita a resenha, foi encaminhada ao editor responsável pela liberação:
o próprio Sabino . Ele conferiu o título, aprovou a foto em que aparece com
o ar circunspecto dos grandes autores atormentados, e mandou para a
gráfica.
No dia 31 de março de 2004, três semanas após o panegírico, a relação dos
livros mais vendidos na categoria “Ficção” era a seguinte:
1o Perdas e Ganhos, de Lya Luft
2o Pensar é transgredir, de Lya Luft
3o Budapeste, de Chico Buarque
4o As Filhas da Princesa, de Jean Sasson
5o Onze Minutos, de Paulo Coelho
6o O Beijo da Morte, de Carlos Heitor Cony e Anna Lee
7o Harry Potter e a Ordem do Fênix, de J.K. Howlling
8o O Rei das Fraudes, de John Grisban
9o Sobre meninos e lobos, de Dennis Lehane
10o Paixões Obscuras, de Nora Robers.
O livro de Sabino não aparecia.
Na edição seguinte, de 7 de abril de 2004, a seção dos “Mais Vendidos”
anunciava uma mudança nos critérios de classificação dos livros.
“Da categoria de ficção farão parte apenas romances e
coletâneas de contos. Da categoria de não-ficção constarão
ensaios e biografias, mas também livros de crônicas, cuja
referência principal se encontra no noticiário e no registro de
uma realidade mais imediata” Isso acontecerá ainda que o
cronista lance mão de recursos ficcionais”
Não fazia sentido. Há um padrão consagrado nas listas e nas premiações de
considerar crônicas como Ficção. Segundo o leitor Saulo Maciel, que
percebeu essa manobra:
“Um livro de Luis Fernando Verissimo – 100% ficcional –, depois de
dois anos na categoria Ficção, passava a ser considerado Não-Ficção,
embora o próprio sítio internet de sua editora, a Objetiva, o incluísse na
página Ficção. (Recentemente os livros de Verissimo voltaram a figurar, sem
explicação aparente, na categoria Ficção). A revista também não explicava
por que quatro livrarias haviam sido excluídas da lista de estabelecimentos
consultados. (Basta conferir com a edição anterior)”
Quatro livros da categoria “Ficção” foram transferidos para a “Não
Ficção”: os dois da campeã Lya Luft, “As Filhas da Princesa”, e um de Luiz
Fernando Veríssimo.
Essas mudanças permitiram ao livro de Sabino entrar em 10o lugar na
lista, na categoria “Ficção”.
Geralmente o livro entra na relação dos mais vendidos na semana do
lançamento, ainda mais após a exposição recebida de Veja. O de Sabino
entrava na terceira semana, à custa da mudança de critérios e da exclusão de
livrarias pesquisadas.
Mesmo com as alterações nos critérios, o livro não resistiu e sumiu da
lista na semana seguinte. Depois, sem muito alarde, voltaram os critérios
originais dos “Mais Vendidos”.
O caso Record
De 2003 a 2007, Mário Sabino se aproximou da Editora Record. Houve
troca de favores, na época, que provocou ressentimento tanto nas editoras
concorrentes como das seções de lançamento de livros de outras
publicações.
Entusiasmada com o talento nascente de Sabino, durante a Bienal do
Livro em São Paulo de 2004 a editora mandou espalhar outdoors por toda a
cidade, vendendo-o como a grande descoberta do novo romance brasileiro.
Nem os maiores escritores de ficção mereceram divulgação similar.
Mesmo assim, tirando resenhas de amigos e subalternos, a repercussão foi
quase nula.
Mas, a partir dessa relação, a seção de Livros de Veja passou a dar
tratamento diferenciado para a Record – e a Record a dar com
exclusividade, para Veja, o anúncio de seus lançamentos mais relevantes.
Seguiu-se um jogo de troca de favores poucas vezes visto no jornalismo
cultural brasileiro. Sabino assinava uma resenha positiva sobre Miguel
Sanches Neto. Grato, Miguel fazia uma entrevista laudatória com Sabino e
incluía um conto seu na coletânea “Contos para Ler”. O volume era
publicado por Luciana Villas-Boas, da Record, que conseguia nota favorável
em Veja.
Mas não se ficou nisso.
Além dos outdoors, seus livros passaram a ser oferecidos no Exterior,
graças ao empenho pessoal de Luciana e à enorme influência da Record,
maior editora brasileira.
O segundo livro de Sabino, “O Antinarciso” foi resenhado pelo escritor e
médico gaúcho Moacir Scliar.
Na edição de 11 de maio de 2005, o romance “Na Noite do Ventre, o
Diamante”, de Scliar, mereceu resenha elogiosa de Jerônimo Teixeira,
subordinado de Sabino .
Duas edições depois, em 25 de maio de 2005, Scliar resenhou o livro de
contos de Sabino. Scliar é um escritor sério. Mas não havia nenhuma
possibilidade de uma resenha negativa.
No fecho da resenha, Scliar chamava a atenção para o título “O
Antinarciso”, que não sai de nenhum dos contos:
“A esse narcisismo cego, que barra as possibilidades afetivas
dos personagens, é que se contrapõe o olhar atento do autor
antinarciso. E também se opõe à tentação que assalta muitos
escritores contemporâneos – de girar em torno ao próprio
umbigo, de fazer do pronome “eu” a palavra mais importante
da literatura. Os contos de Mario Sabino mostram que a
subjetividade só tem sentido quando está a serviço do
entendimento, quando funciona como um sensível sismógrafo
capaz de captar as vibrações da alma”.
O compadrio na literatura
O “compadrio” no meio editorial é conhecido. No início daquele ano, um
jornalista cultural anotou o seguinte sobre as “orelhas” de livros:
“Longe de serem acessórios dispensáveis a um bom livro,
introduções ou orelhas assinadas são com frequência moeda de
troca do compadrio literário. O autor do elogio confirma seu
prestígio cultural e ainda ganha um troco das editoras. O
escritor elogiado recebe um empurrãozinho na carreira. Só
perde o leitor ingênuo, que acredita no aval dos medalhões
literários”.
A matéria “Pagos para elogiar” era da própria Veja, em 26 de janeiro de
2005, assinada por Jerônimo Teixeira. Era maldosa, ao estilo Veja, escrita
especificamente para atingir Luiz Fernando Veríssimo e Carlos Heitor Cony.
Mencionava genericamente pagamentos por “orelhas”, depois levantava
algumas “orelhas” assinadas por Luiz Fernando Veríssimo e Carlos Heitor
Cony – adversários ideológicos da revista.
Não havia uma prova sequer que teriam “vendido” os comentários – ao
contrários dos resenhistas de Veja, que eram remunerados quando teceram
loas a Sabino. Mas, dentro do estilo malicioso da revista, ficava a
insinuação.
A matéria valia pela lição de Veríssimo, sobre a arte de elogiar um
trabalho que não entusiasma:
“A única arte, ou dificuldade, é escrever algo favorável sobre
um trabalho que não entusiasma sem parecer condescendente ou
falso. Em geral, isso é feito para ajudar alguém que está
começando.”
Grande escritor, na resenha de “O Antinarciso” Scliar deu uma
demonstração soberba de como escrever algo favorável de um livro que não
o entusiasmou, como a “orelha” escrita para um amigo iniciante:
“Com uma apurada economia de linguagem, seus textos
mergulham, em sua própria expressão, no “buraco negro” em
que cada personagem esconde não só sua miséria, mas também
sua grandeza.”
(...) “Em alguns casos, a narrativa se resume a um diálogo,
forma que o autor maneja com agilidade e objetividade – basta
ver Miserere, surpreendente conversa entre um ser que se julga
culpado e um interlocutor que detém um poder infinito”.
(...) “Em Da Amizade Masculina, a ligação entre dois colegas de
uma faculdade de filosofia serve para um exame da natureza do
relacionamento entre homens”
(...) “A esse narcisismo cego, que barra as possibilidades
afetivas dos personagens, é que se contrapõe o olhar atento do
autor antinarciso” .
(...) “Os contos de Mario Sabino mostram que a subjetividade
só tem sentido quando está a serviço do entendimento, quando
funciona como um sensível sismógrafo capaz de captar as
vibrações da alma”.
Uma resenha elogiosa em Veja garantia ao autor um belo impulso nas vendas
do livro. Na semana de 19 de setembro de 2007, o livro já figurava em
segundo lugar na lista de “não-ficção” da revista.
Em 18 de setembro de 2007, Kamel publicou coluna no jornal O Globo,
prontamente reproduzida no Estadão, denunciando o conteúdo subversivo de
um campeão de vendas, a coleção “Nova História Crítica”, de uma editora
nacional. As denúncias foram repercutidas nos demais veículos da Globo, da
revista Época ao Jornal Nacional.
Na abertura do artigo, Kamel se esmerava em explicar como o livro
chegara em suas mãos:
O psicanalista Francisco Daudt me fez chegar às mãos o livro
didático “Nova História Crítica, 8ª série” distribuído
gratuitamente pelo MEC a 750 mil alunos da rede pública. O
que ele leu ali é de dar medo. Apenas uma tentativa de fazer
nossas crianças acreditarem que o capitalismo é mau e que a
solução de todos os problemas é o socialismo, que só fracassou
até aqui por culpa de burocratas autoritários. Impossível contar
tudo o que há no livro. Por isso, cito apenas alguns trechos.
O livro era um campeão de vendas, ocupando espaço de concorrentes da
Ática, Scipione, talvez da Santillana, do grupo Pisa, dono do El País.
Kamel denunciava o livro por suposta apologia a Mao Tse-tung
selecionando a parte que enaltecia Mao:
“Foi um grande estadista e comandante militar. Escreveu livros
sobre política, filosofia e economia. Praticou esportes até a
velhice. Amou inúmeras mulheres e por elas foi correspondido.
Para muitos chineses, Mao é ainda um grande herói. Mas para
os chineses anticomunistas, não passou de um ditador.”
Sonegando a parte que o criticava:
“Como governante, agiu de forma parecida com Stálin,
perseguindo os opositores e utilizando recursos de propaganda
para criar a imagem oficial de que era infalível.”
Sobre a revolução cultural chinesa, Kamel mencionava o trecho:
“Foi uma experiência socialista muito original. As novas
propostas eram discutidas animadamente. Grandes cartazes
murais, os dazibaos, abriam espaço para o povo manifestar seus
pensamentos e suas críticas”.
E escondia a crítica:
“O Grande Salto para a Frente tinha fracassado. O resultado
foi uma terrível epidemia de fome que dizimou milhares de
pessoas. (...) Mao (...) agiu de forma parecida com Stálin,
perseguindo os opositores e utilizando recursos de propaganda
para criar a imagem oficial de que era infalível.” (p. 191)
“Ouvir uma fita com rock ocidental podia levar alguém a
freqüentar um campo de reeducação política. (...) Nas
universidades, as vagas eram reservadas para os que
demonstravam maior desempenho nas lutas políticas. (...)
Antigos dirigentes eram arrancados do poder e humilhados por
multidões de adolescentes que consideravam o fato de a pessoa
ter 60 ou 70 anos ser suficiente para ela não ter nada a
acrescentar ao país...”
Sobre a revolução russa, o mesmo procedimento:
“É claro que a população soviética não estava passando fome.
O desenvolvimento econômico e a boa distribuição de renda
garantiam o lar e o jantar para cada cidadão. Não existia
inflação nem desemprego. Todo ensino era gratuito e muitos
filhos de operários e camponeses conseguiam cursar as
melhores faculdades. (...) Medicina gratuita, aluguel que
custava o preço de três maços de cigarro, grandes cidades sem
crianças abandonadas nem favelas...
E escondia as críticas:
“A URSS era uma ditadura. O Partido Comunista tomava todas
as decisões importantes. As eleições eram apenas uma
encenação (...). Quem criticasse o governo ia para a prisão. (...)
Em vez da eficácia econômica havia mesmo era uma
administração confusa e lenta. (...) Milhares e milhares de
indivíduos foram enviados a campos de trabalho forçado na
Sibéria, os terríveis Gulags. Muita gente foi torturada até a
morte pelos guardas stalinistas...”.
Qual a intenção de crucificar dessa maneira um livro didático?
No dia seguinte ao artigo de Kamel, o diário El Pais publicou artigo
repercutindo internacionalmente a denúncia e afirmando que “el libro de
texto ensalza el comunismo y la revolución cultural china”.
No mesmo dia, o ex-Ministro Paulo Renato de Souza (em cuja gestão o
livro passou a integrar as obras do MEC) publicou no site do PSDB a
informação de que entraria com representação na Procuradoria Geral da
República para retirar a Nova História Crítica do mercado.
No seu site pessoal, havia a informação de que sua consultoria tinha entre
seus clientes a Santillana, a editora de El Pais.
Conseguiram matar um campeão de vendas. Mas o contraponto da
blogosfera produziu tal desgaste que a estratégia acabou não sendo mais
repetida, para alívio de outras editoras e autores concorrentes23.
Dentre os artigos veiculados no meu Blog, um levantamento de livros de
história da Ática e da Scipione – controladas pela Abril - mostrava posições
“esquerdistas”, similares à maioria dos livros didáticos de história.
23 https://goo.gl/355jXh
.
O polvo no Poder
Os segredos do lobista
Na edição de 29 de setembro de 2010, finalmente, Veja resolveu entregar
sua fonte, Marco Antônio Marques de Oliveira.
O caso Quícoli
A bolinha de papel
As duas bolinhas
Em poucos minutos, explodem duas cenas.
A primeira, o da bolinha de papel que pipoca na cabeça de Serra e cai no
chão. Serra leva algum tempo para se dar conta do fato e aparentemente
perde a primeira oportunidade de montar o teatro.
A segunda oportunidade é mais à frente. Serra recebe um telefonema.
Pouco tempo depois leva a mão à cabeça. Caminha mais um pouco, sem
aparentar danos. Uns cinco segundos depois leva a mão à cabeça, caminha
em direção ao carro da comitiva. Ainda tem tempo para conversar um pouco
com alguns fãs.
Depois entra e segue para um hospital onde é atendido pelo cirurgião
médico de cabeça e pescoço Jacob Kligerman – que presidiu o INCA
(Instituto Nacional do Câncer) na gestão de Serra na saúde.
Na Justiça existem as provas declaratórias (que dependem apenas de
declarações de testemunhas) e as provas documentais (as que têm
efetivamente valor).
Klingerman declara à imprensa que Serra chegou ao consultório “com
náuseas e tonteira”. Quanto às provas documentais, nada havia. Informa que
não havia lesão aparente (externa), e a tomografia nada acusou. Pelo sim,
pelo não, recomendou 24 horas de repouso.
Naquela noite, o Jornal Nacional divulgou reportagem onde endossava a
versão da agressão com “objeto contundente”. A reportagem terminava com
um Serra interpretando o papel de uma pessoa fragilizada, deblaterando
contra a guerra política.
Naquela mesma noite, uma reportagem da SBT mostrava a cena da
bolinha de papel (mas sem os seguranças), o telefonema recebido por Serra
e, em seguida, ele levando a mão à cabeça, desmascarando o teatro.
O Jornal Nacional chegou a convocar o perito Ricardo Molina para
analisar um vídeo gravado por celular que provaria que houve um segundo
objeto lançado contra Serra, um rolo de fita crepe. Não se perguntou ao
perito se, mesmo supondo-se ter sido um rolo de fita crepe, qual seu poder
de contusão.
Pelas redes sociais, técnicos ligados a universidades rebateram as
análises de Molina, com vídeos colocados na Internet, mostrando que o
objeto identificado como fita crepe não passava de uma sombra de algum
manifestante, em um vídeo de baixíssima resolução.
No dia seguinte, o então presidente Lula comparou Serra ao goleiro
chileno Rojas – que simulou ter sido atingido por um rojão em um jogo no
Maracanã.
O resultado final foi a desmoralização do candidato por um partido alto
de Tantinho da Mangueira.
“Deixa de ser enganador
Pois bolinha de papel
Não fere e nem causa dor”
Foi o fecho de uma escalada inédita de manipulações
(https://goo.gl/D35HcF).
.
Chalita alegou que Grobman namorava uma secretária sua, que estava na foto
publicada.
Uma breve análise da foto mostrava que havia sido retocado.
1. A linha do horizonte, da parte direita da imagem, era irreal. Traçando
uma linha que mantem inclinação, é fato que a linha da parte direita foi
reconstruída. E quem o fez não teve o cuidado de manter o ângulo de
inclinação:
24 https://goo.gl/AijHjX
.
A reportagem armada
No dia 23 de abril de 2008 Cassol já era conhecido nacionalmente, através
de reportagem-denúncia de um dos programas de maior audiência da
televisão, o Fantástico, divulgado apenas dez dias antes, quando começou
seu jogo com a Veja.
Montando o dossiê
Saber quem é esse procurador, e seus embates com Cassol, ajudará a
entender a montagem.
Antes do esquema ser desbaratado pela Operação Titanic, da Polícia
Federal, a única força a enfrentar Cassol e seu grupo político era o
procurador Reginaldo Pereira de Trindade. Especialmente em questões
envolvendo a área indígena.
Há anos Cassol buscava desmoralizá-lo, em uma típica tática de
assassinato de reputação, visando enfraquecer os inquéritos contra ele.
A matéria da Veja foi inteiramente baseada em documentos e vídeos
levantados por uma jornalista (na verdade, uma cabeleireira), de nome
Ivonete Gomes, de um site chamado “Rondoniagora”,
Quando estourou a Operação Titanic, a Polícia Federal de Rondônia abriu
um inquérito, no qual a farsa montada veio à tona. Ouvido, um comerciante
de pedras contou como Ivonete preparou o dossiê contra o procurador
Trindade.
Para fabricar o dossiê, Cassol se valeu das verbas publicitárias do
Estado para financiar um “documentário” sobre a extração ilegal de
diamantes na reserva Cinta Larga e colocou oficiais da PM e funcionários
cooptados da Funai para buscar informações que pudessem ser usadas contra
o procurador Trindade. Na investigação aberta pela PF, constatou-se que
Ivonete Gomes, a jornalista-cabeleireira, forçava as pessoas a falarem mal
do procurador.
Montado o dossiê, foi encaminhado à revista Veja, juntamente com fitas
de vídeo, que não corroboravam a tese da revista sobre o “seqüestro fajuto”.
O caminho para conquistar a cumplicidade da Veja foi fácil. Bastou
insinuar que o procurador era ligado ao PT e Cassol um agente da
modernidade contra o atraso representado pelos índios cintas-largas.
O resto ficou por conta da parcialidade da revista.
Trindade foi contatado na sexta de manhã, com o prazo para apresentar
sua defesa até o meio dia. No prazo concedido, conseguiu enviar 17 laudas
de explicações para a Veja. Não saiu uma linha, nem na seção de cartas.
No dia seguinte, e por vários dias depois, o site Rondoniagora replicou a
notícia de Veja para instigar a população contra o procurador. Cassol usou o
quanto pôde a matéria.
Armação desmontada
No dia 25 de junho, a revista CartaCapital publicou reportagem de Leandro
Fortes, enviado especial a Rondônia. Leandro tinha ido com a incumbência
de levantar o submundo político montado por Cassol. Acabou identificando
a farsa do dossiê:
“Instalada em uma lojinha de subsolo na zona rural do
município de Espigão D’Oeste, em Rondônia, onde negocia a
compra e venda de diamantes, Edvaneide Vieira de Oliveira, de
35 anos, foi convocada pela Polícia Federal, há pouco mais de
um mês, para depor.
No depoimento à PF, Edvaneide disse ter sido procurada pelas
repórteres Ivonete Gomes e Marley Trifílio, ambas do
Rondoniagora, noticiário francamente favorável ao governador
Ivo Cassol (sem partido), em dezembro de 2007, para uma
“videorreportagem”. Segundo a comerciante, as duas, no
entanto, se apresentaram como repórteres do jornal O Estado de
S. Paulo e pediram a ela para falar sobre um sequestro sofrido
pelo procurador Reginaldo Trindade no fim de 2007, pelos
índios cinta-larga, juntamente com um representante das Nações
Unidas, o espanhol David Martín Castro. (...)
No depoimento tomado pelo delegado federal Rodrigo
Carvalho, Edvaneide de Oliveira afirmou que Ivonete Gomes
(“meio gordinha, cabelo com reflexos loiros, comprido”), e
Marley (“gordinha, cabelo com reflexos, mais curto”) queriam
que ela “inventasse uma história para comprometer algum
político, empresário ou autoridade conhecida” e, também,
acusasse o procurador Trindade de estar “fazendo lobby para
alguma pessoa forte”. Segundo a comerciante, Ivonete revelou
ter ido lá “só para isso”. Mais adiante, relatou Edvaneide, a
repórter teria apresentado uma lista de nomes para ligar o
suposto lobby de Trindade a “alguém muito forte”, mas ela não
concordou em referendar nenhum dos nomes. A comerciante
acusa as jornalistas, ainda, de terem oferecido dinheiro em
troca de um depoimento contra o procurador”.
A matéria saiu no domingo. Na quinta-feira, portanto em apenas quatro dias,
o governador Ivo Cassol já enviava uma denúncia para o Conselho Nacional
do Ministério Público, baseada na reportagem da Veja.
A denúncia encaminhada por Cassol ao CNMP continha todos os
elementos mencionados pela revista, mais alguns adicionais. De seu lado,
por mais que tentasse, o procurador Trindade não conseguiu que a revista lhe
enviasse o material, nem mesmo após a publicação da matéria, sob a
alegação de “sigilo de fonte”.
Na mesma quinta-feira, coincidentemente, reuniu-se em Porto Velho a
Subcomissão do Senado para Apurar a Crise Ambiental da Amazônia. O
relator era o senador Expedito Junior – que, logo depois, seria envolvido
com Cassol na denúncia formulada pelo procurador geral da República. Na
reunião, Cassol exigiu em altos brados punição para Trindade, com base nas
denúncias publicadas pela revista. Segundo ele, Trindade estaria
estimulando a exploração de madeiras pelos índios.
Na fronteira da civilização, em pleno faroeste brasileiro, um homem da
lei, um procurador da República, correndo riscos de vida e de reputação,
buscando cumprir sua missão, de impor as leis da Federação sobre a
selvageria de quadrilhas. E foi alvejado pela revista Veja. Sua reputação foi
manchada em todo o país, foi-lhe suprimido o direito de defesa durante a
matéria e após. A revista não publicou uma retificação sequer.
Em maio, após uma manifestação de todo MP de Rondônia, Cassol cessou
a campanha contra Trindade.
Mas uma conta ficou em aberto: os ataques de Veja. Até hoje não se
publicou nenhuma retificação, nenhuma carta contestando os ataques.
A defesa do procurador
No dia 4 de julho de 2008, o Procurador Reginaldo Trindade apresentou sua
defesa ao Conselho Nacional do Ministério Público.
São 109 páginas. O item 9 aborda o “comportamento não condizente do
repórter responsável pela matéria na revista Veja, José Edward”.
A relação de manipulações é ampla.
Fato 1 - O repórter entrou em contato com o procurador, informando-o do
teor da matéria e querendo ouvir sua versão. O procurador solicitou que as
perguntas fossem feitas por escrito, para evitar distorção em suas palavras.
Vieram as perguntas.
Seguiram as respostas, em várias páginas. Nenhuma resposta, nenhuma
ponderação foi incluída na matéria. Na manhã de sexta-feira, 18 de abril, o
repórter entrou em contato com o procurador de novo. Mas provavelmente a
edição da revista já tinha fechado.
Fato 2 - O repórter ligou para o motorista Mauro Bueno Gonçalves, para
tentar levantar se houve encenação na detenção do procurador e do
representante da ONU.
O relatório traz trechos do depoimento do motorista no inquérito aberto:
“E passado já alguns meis (sic) no dia 18/04/08 fui procurado
pelo um reporte da VEJA por nome de José que perguntou como
foi que aconteceu falei como foi ele perguntou sobre Reginaldo
e o David como eles ficarão. Dise o que presenciei e o que
vi.Das pergunta que o reporte fez a mim nada foi dito pela VEJA
o que esta no site. São palavra diferente.” (fls. 35 dos autos;
sic).”
A chave do carro tinha sido tomada à força do motorista pelos índios. A
reportagem ignorou a informação. O motorista informou de golpes violentos
desferidos pelos índios na mesa e nos livros do procurador. A informação
não foi considerada.
O motorista prestou depoimento à Polícia Federal, voltando a reiterar o
comportamento do repórter:
“QUE sim, foi procurado via telefone por um repórter da revista
Veja, o qual se apresentou como José e lhe fez algumas
perguntas, as quais indagavam acerca de um ‘falso seqüestro’
cometido pelos indígenas contra o Procurador da República e
um Representante da ONU, sendo que o declarante respondeu
ao jornalista que o seqüestro realmente ocorreu, nada foi fajuto,
não havendo indícios de que tudo tenha sido tramado; QUE o
jornalista continuou a fazer perguntas sobre o seqüestro,
indagando acerca da alimentação dos mesmos durante o tempo
em que permaneceram na aldeia, além de outras perguntas
pertinentes, sendo que lhe foi respondido da mesma forma em
que está respondendo aos quesitos deste termo de declarações;
QUE após, publicada uma matéria pela revista Veja,
distorcendo as respostas que o declarante teria dado ao referido
jornalista.” (fls. 36/37 da 1ª parte de documentos que instrui a
presente).
Fato 3 - O repórter chegou a procurar o próprio Almir Suruí, chefe indígena,
encaminhando perguntas por e-mail. Almir negou firmemente ter havido
simulação do sequestro. Mas sua resposta também não foi levada em
consideração.
Fato 4 - Também foi consultada Ivaneide Bandeira Cardozo, a “Neidinha”,
da ONG indígena Kanindé. Seu depoimento foi desconsiderado. Ela enviou
carta ao procurador:
“Fui entrevistada pelo repórter José Edward da Revista Veja
(MG), no dia 10 de abril, que fez a mesma pergunta, e respondi
que não era verdade, que havia invasão de madeireiros por
conivência da FUNAI e alguns índios.” (fls. 74 da 1ª parte dos
documentos ora apresentados)”.
Ivaneide enviou um segundo e-mail ao procurador, manifestando sua
impressão de que o repórter fosse ligado ao governador Ivo Cassol.
A percepção geral em Rondônia foi dessa cumplicidade, devido à
coincidência de apenas quatro dias após a publicação da reportagem, o
governador de Rondônia formulou representação à Subcomissão do Senado
para Acompanhar a Crise Ambiental na Amazônia “calcada na reportagem,
mas lastreada em diversos documentos e vídeos “não exibidos pelo site da
revista”.
Mesmo com todos esses indícios de crime jornalístico, tendo um dos seus
como vítima, ninguém do Ministério Público Federal ousou uma
representação sequer contra a revista (https://goo.gl/qJmJm2).
.
A Lava Jato
As metas perseguidas
Na abertura, entusiasma-se com os números grandiosos da Mãos Limpas:
“Dois anos após, 2.993 mandados de prisão haviam sido expedidos; 6.059
pessoas estavam sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978
administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido
primeiros-ministros”.
Admite os efeitos colaterais, dez suicídios de suspeitos, vários
assassinatos de reputação cometidos na pressa em divulgar as informações e,
principalmente, a ascensão de Silvio Berlusconi ao poder.
Mas mostra as vantagens, no súbito barateamento das obras públicas
italianas depois da Operação. Principalmente, chama sua atenção as
possibilidades e limites da ação judiciária frente à corrupção nas
democracias contemporâneas.
A lógica política da Mãos Limpas.
A lição extraída por Moro é que existe um sistema de poder a ser
combatido, que é a política tradicional, com todos seus vícios e influências
sobre o sistema judicial, especialmente sobre os tribunais superiores.
O sistema impede a punição dos políticos e dos agentes públicos
corruptos, devido aos obstáculos políticos e “à carga de prova exigida para
alcançar a condenação em processo criminal”.
O caminho então é o que ele chama de democracia – que ele entende
como uma espécie de linha direta com a “opinião pública esclarecida”, ou
seja, a opinião difundida pelos grandes veículos de imprensa, dando um by-
pass nos sistemas formais.
“É a opinião pública esclarecida que pode, pelos meios institucionais
próprios, atacar as causas estruturais da corrupção. Ademais, a punição
judicial de agentes públicos corruptos é sempre difícil (...). Nessa
perspectiva, a opinião pública pode constituir um salutar substitutivo, tendo
condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos
corruptos, condenando-os ao ostracismo”.
O jogo consiste, então, em trazer a disputa judicial para o campo da
mídia.
Análise de situação
Em sua opinião, os fatores que tornaram possível a Operação, alguns deles
presentes no Brasil.
1. Uma conjuntura econômica difícil, aliada aos custos crescentes com a
corrupção.
2. A abertura da economia italiana, com a integração europeia, que abriu
o mercado a empresas estrangeiras.
3. A perda de legitimidade da classe política com o início das prisões e a
divulgação dos casos de corrupção. Antes disso, a queda do “socialismo
real”, “que levou à deslegitimação de um sistema político corrupto, fundado
na oposição entre regimes democráticos e comunistas”.
4. A maior legitimação da magistratura graças a um tipo diferente de juiz
que entrou nas décadas de 70 e 80, os “juízes de ataque”, nascido dos ciclos
de protesto.
A delação premiada
Segundo Moro, a estratégia consiste em manter o suspeito na prisão,
espalhar a suspeita de que outros já confessaram e “levantar a perspectiva
de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva
no caso da manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no
caso de uma confissão (uma situação análoga do arquétipo do famoso
“dilema do prisioneiro”)”.
Ou seja, a prisão – e a perspectiva de liberdade – é peça central para
induzir os prisioneiros à delação. Mas há que se revestir a estratégia de
todos os requisitos legais, para “tentar-se obter do investigado ou do
acusado uma confissão ou delação premiada, evidentemente sem a utilização
de qualquer método interrogatório repudiado pelo Direito. O próprio
isolamento do investigado faz-se apenas na medida em que permitido pela
lei”.
Moro deixa claro que o isolamento na prisão “era necessário para
prevenir que suspeitos soubessem da confissão de outros: dessa forma,
acordos da espécie “eu não vou falar se você também não”, não eram mais
uma possibilidade.
Fica claro, para o Grupo de Trabalho da Lava Jato, que o Bettino Craxi a se
mirar, o Rei a ser derrubado, era o ex-presidente Lula. O vazamento
sistemático de informações, sem nenhum filtro, é peça central dessa
estratégia.
Para a operação de guerra da Lava Jato funcionar, sem nenhum deslize
legal – que possa servir de pretexto para sua anulação - há a necessidade da
adesão total do grupo de trabalho e dos aliados da mídia às teses de Moro.
A homogeneidade do GT só foi possível graças à atuação do Procurador
Geral da República Rodrigo Janot, que selecionou um a um os procuradores
da força tarefa; e da liberdade conferida à Polícia Federal do Paraná para
constituir seu grupo. O fato de procuradores paranaenses e delegados já
orbitarem em torno do ex-senador Flávio Arns certamente favoreceu a
homogeneização. E, obviamente, a ausência de José Eduardo Cardozo no
Ministério da Justiça.
Para ganhar a adesão dos grupos de mídia, o pacto tácito incluiu a
blindagem dos políticos aliados. Explica-se por aí a decisão de Janot de
isentar Aécio Neves das denúncias do doleiro Alberto Youssef, sem que
houvesse reclamações do Grupo de Trabalho.
A falta de cuidados com o desmonte da cadeia do petróleo também se
explica por aí. Na opinião de Moro e da Lava Jato a corrupção nas obras
públicas decorre de uma economia fechada, preocupada em privilegiar as
empresas nacionais. É o que está por trás das constantes tentativas de
avançar sobre o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e
Social) – o similar italiano do BNDES foi um dos alvos preferenciais da
Mãos Limpas.
No fundo, o arcabouço institucional brasileiro está sendo redesenhado
por um autêntico Tratado de Yalta, em torno do novo poder que se apresenta:
juízes, procuradores da República e delegados federais associados aos
grupos de mídia.
A grande contribuição à força Lava Jato foi certamente a enorme extensão
da corrupção desvendada, sem paralelo na história recente do país e sem a
sutileza dos movimentos de privatização e dos mercados de juros e câmbio.
A única coisa que Moro não entendeu – ou talvez tenha entendido – é que
a ascensão de Silvio Berlusconi não foi um acidente de percurso. Foi o rei
posto – a mídia nada virtuosa – sobre os escombros do rei morto – um
sistema político corrupto.
A ideia de que a mídia é um território neutro, onde se disputam espaços e
ideias é pensamento muito ingênuo para estrategistas tão refinados.
A vingança de Pessoa
Aí entra a Lava Jato.
Após a visita aos Estados Unidos, a força tarefa da Lava Jato decidir
focar o setor elétrico. Pessoa foi pressionado a ampliar a delação para além
da Petrobrás. E viu a oportunidade de enredar Cardeal em sua delação.
Antes de confirmar qualquer dado, a Lava Jato liberou as declarações de
Pessoa criminalizando Cardeal para a revista Veja, mesmo estando
protegidas por sigilo.
A versão era de um amplo non sense.