O Caso Veja Luis Nassif

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Copyright ©Luis Nassif 2021


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É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, da
editora.
Coordenação editorial: Sálvio Nienkötter
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Design editorial: Carlos Garcia Fernandes
Produção: Cristiane Nienkötter
Preparação de originais e revisão: O Autor
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angelica Ilacqua CRB-8/7057
Nassif, Luis
O caso Veja / Luis Nassif. -- Curitiba : Kotter Editorial, 2021.
344 p.
ISBN 978-65-89624-76-9
1. Jornalismo - Aspectos políticos - Brasil 2. Revista Veja 3. Crimes
jornalísticos 4. Imprensa e política I. Título
CDD 070.44932
21-3364

Kotter Editorial Ltda.


Rua das Cerejeiras, 194
CEP: 82700-510 - Curitiba - PR
Tel. + 55(41) 3585-5161
www.kotter.com.br | [email protected]
Feito o depósito legal
1a Edição
2021
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Introdução

Desde os anos 90, a par dos temas políticos, econômicos e culturais, tomei
partido em diversos episódios jornalísticos que caracterizavam claramente
crimes de imprensa.
Fui o primeiro jornalista a denunciar os abusos da mídia em casos
célebres, como a campanha contra o então Ministro da Agricultura Alceni
Guerra, os casos Escolas Base e Bar Bodega, entre outros. Alguns desses
temas foram tratados no livro “O jornalismo dos anos 90”.
Nele, situava o início dos abusos na campanha do impeachment de
Fernando Collor, episódio em que houve um liberou geral e no qual a mídia
abdicou de filtros mínimos de controle de qualidade.
Crítico de Collor, fui alvo de várias ações judiciais de seu grupo, por
pressão dele perdi o programa de TV que tinha na TV Gazeta de São Paulo,
Nacional de Brasília e Educativa do Rio. Mas quando começou a campanha
do impeachment, parei a tempo alertado por um conselheiro experiente, o ex-
embaixador Walther Moreira Salles que serviu em Washington no auge do
período macarthista.
- Esses processos de linchamento trazem à tona o que de pior existe na
natureza humana! observou ele, em um dos nossos encontros.
Mesmo assim, da redemocratização até meados dos anos 2.000, talvez a
imprensa brasileira tenha passado pelo momento de maior abertura e
diversidade. A campanha das diretas ganhou corações e mentes e a imprensa
temia ser cobrada pelos anos de parceria com a ditadura. Essa abertura
permitia contrapontos que funcionavam como uma auto regulação.
Em fins dos anos 90, publiquei uma série de artigos sobre abusos da
imprensa que acabaram influenciando algumas direções. O Estadão, de Ruy
Mesquita, e a própria Abril, de Roberto Civita, distribuíram cópias para
seus diretores, visando chamar sua atenção para os exageros cometidos.
Desde os anos 80, a Folha já dispunha da figura do ombudsman. A
preocupação generalizada se devia a um projeto de lei para uma nova lei de
imprensa em tramitação no Congresso.
Foi só refluir o PL para se desarmarem novamente os filtros jornalísticos.
A partir de algum momento em 2005, a diversidade começou a
desaparecer e todos os erros anteriores da mídia perderam expressão perto
do esgoto jornalístico que passou a jorrar intermitentemente dos jornais e
TVs.
Antes, houve uma verdadeira Noite de São Bartolomeu que afastou dos
jornais colunistas mais incômodos. O caos irresponsável do pós-
impeachment de Collor foi substituído por uma ação articulada, quase uma
operação de guerra cultural, na qual as opiniões foram enquadradas, os
recalcitrantes fuzilados e os assassinatos de reputação banalizados.
A imprensa brasileira entrava na era da infâmia.
Raros momentos da história da imprensa brasileira registraram tantos
absurdos simultâneos. Transformaram em escândalo a compra de uma
tapioca com cartão corporativo. Um ex-presidiário, recém libertado, foi
tratado como grande consultor, para uma denúncia inverossímil contra o
BNDES.
Levou algum tempo para que conseguisse juntar as peças e decifrar o que
estava ocorrendo.
A morte de três pioneiros – Ruy Mesquita, Otávio Frias de Oliveira e
Roberto Marinho –, em uma fase de mudanças radicais no cenário da mídia,
certamente contribuiu para a perda de rumo, ao colocar os herdeiros a
reboque de Roberto Civita.
No início, deu para intuir que aqueles movimentos visavam devolver aos
grupos de mídia o prestígio e o poder do período do impeachment. Mas não
era apenas isso.
Aos poucos foram chegando informações sobre as estratégias políticas do
australiano Rupert Murdoch, a maneira como passou a explorar a
intolerância gerada pela migração, o uso do linguajar da ultradireita norte-
americana, as interferências no Partido Republicano e, depois, na própria
eleição presidencial. E, principalmente, a estratégia montada com os demais
grandes grupos de mídia do país para conseguir eleger o seu candidato à
presidência da República, tornando-se um verdadeiro partido político A Fox
News se incumbia de criar os boatos e os demais em difundi-los. Depois, se
valiam das redes sociais para ampliar a disseminação dos boatos.
Inaugurava-se a era do que veio a ser conhecido como fenômeno do fake
News. E sob comando dos grupos de mídia.
Tudo isso, somado à guerra cultural levada a efeito, era prenúncio das
grandes manipulações das redes sociais dos anos seguintes, com o uso de
estratégias de disseminação da informação através de algoritmos e de outros
expedientes das chamadas guerras híbridas
Foi uma das mais sórdidas campanhas eleitorais da história dos Estados
Unidos. Das próprias redes sociais veio uma reação espontânea, de grupos
pró-Obama, que garantiu sua vitória.
Obama terminou a campanha sem dar uma entrevista sequer aos grupos de
mídia. Eleito presidente, seu primeiro gesto foi convidar para um encontro
na Casa Branca os presidentes da Apple, Google e Facebook.
Simbolicamente, ele mostrava ali o fim de um ciclo em que os grupos de
mídia dominaram o mercado de opinião das democracias ocidentais, mais
influentes que as igrejas, os sindicatos e os partidos políticos.
O uso da intolerância tornara-se arma política global dos grupos de
mídia, visando potencializar sua influência política para combater os novos
adversários que chegavam: as gigantes de telefonia.
Levou algum tempo para entenderem que os verdadeiros adversários eram
as redes sociais.
Depois que passei a entender razoavelmente o pano de fundo, iniciei a
série de reportagens sobre a revista Veja, pela Internet. Foi a primeira vez
que um jornalista, armado apenas de um blog, ousava enfrentar uma máquina
de assassinar reputações.
Para minha surpresa, naquele início de nova era, começaram a pipocar
outros blogs independentes, entrando na guerra. Os hackers descobriram um
sistema que permitia jogar o link da série no primeiro lugar da página de
buscas do Google, quando se colocava revista Veja.
Foi uma luta complicada, porque a revista apelou para todo tipo de
represália, com ataques pessoais pesados através de seus blogs, que
afetaram a vida da minha família.
Contei com a compreensão de minhas filhas mais velhas e da minha
esposa à época, a quem consultei antes de entrar na guerra, sabendo que
seriam atingidas pelos jorros de esgoto da revista.
Creio não ter havido na história da imprensa campanha tão infame.
Achacador, mascate, mão peluda, frequentador de sauna gay foram alguns
dos ataques desferidos por blogueiros contratados por Roberto Civita,
especializados na arte de assassinar reputações, especialmente Reinaldo
Azevedo. Cada dia era um tormento, toda vez que as filhas de 10 e 9 anos
iam para a escola, por não saber de que maneira os ataques chegariam até
elas.
Deu para sentir na pele o que passaram as dezenas de vítimas de crimes
da imprensa que defendi ao longo de minha passagem pela Folha.
E enfrentei o maior dos desafios, o de não devolver na mesma moeda.
Não faltavam histórias remetidas por leitores indignados, relatando
episódios que explicariam os ataques, notadamente os de cunho sexual.
Felizmente fui contido pela lembrança de que ele tinha filhas, que poderiam
ser afetadas pela guerra suja.
A não ser os blogueiros anônimos e os leitores do Blog, não houve um
gesto de indignação por parte de colegas e da chamada opinião pública. Pelo
contrário, antigos amigos, pessoas que recorriam à coluna, nos tempos da
Folha, escondiam-se temerosos de se expor a um poder que parecia não ter
limites. Associações de jornalistas, ONGs em defesa da liberdade de
expressão, nenhuma se manifestou, com receio do agudo macarthismo que
tomou conta do país, e do que parecia ser um poder ilimitado da revista para
assassinar reputações impunemente.
A segunda etapa do ataque de Veja consistiu em abrir cinco ações
judiciais.
Quando a guerra se estendeu para outros veículos, meus advogados
abandonaram a ação, me deixando na mão. Sequer se valeram das mais de
500 páginas de ataques que sofri para proporem uma reconvenção contra os
autores das ações.
Foram tempos extraordinariamente pesados, aos quais sobrevivi graças à
solidariedade da família e aos leitores que plantavam palavras de apoio, na
seção de comentários do Blog.
Dedico este livro as filhas Mariana, Luiza, Beatriz e Dora, à neta Clara,
que foram o amparo emocional que me garantiu a paz interior para não ceder.
À Eugênia, que muitos anos antes de a conhecer, já intuíra sobre os
abusos da mídia e, como jovem procuradora, não se eximiu de sua
responsabilidade, entrando com representações contra vários crimes de
imprensa.
Aos leitores anônimos que, com seu apoio nos comentários do blog,
criaram um colchão de carinho essencial para que não esmorecesse na luta.
Dois comentários em particular me sensibilizaram muito.
Um, o de um leitor que oferecia sua bicicleta para uma rifa de apoio
contra as ações judiciais que pipocavam.
Outro, de Goiás, que me dizia que toda noite, antes de dormir, ele e a
esposa rezavam por mim.
Foi quando me dei conta que o direito à informação é um valor tão
essencial quanto o direito à alimentação, à saúde e à educação.
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O caso de Veja

Veja constituiu-se no maior fenômeno de antijornalismo da história do país.


Nem Assis Chateaubriand e seu jornalismo marrom, nem as campanhas
inclementes contra Vargas e Jango chegaram aos pés do jornalismo de esgoto
que passou a jorrar da revista especialmente a partir de 2005.
Gradativamente, o maior semanário brasileiro foi se transformando em
um pasquim sem compromisso com o jornalismo, recorrendo a ataques
desqualificadores contra quem atravessasse seu caminho, envolvendo-se em
guerras comerciais ostensivas e aceitando que suas páginas e sites
abrigassem matérias e colunas do mais puro esgoto jornalístico.
Reeditava, quase um século depois, o padrão dos anos 20 o “jornalismo
marrom”, da era dos “barões ladrões”, como ficaram conhecidos o estilo e
os primeiros empresários dos grupos de mídia.
Para entender o que se passou com a revista nesse período, é necessário
juntar um conjunto de peças que remontam a própria criação dos grupos de
mídia chegando até os tempos de Internet e das redes sociais e seus impactos
sobre a mídia brasileira.
O primeiro conjunto são as mudanças estruturais que a mídia vem
atravessando em todo mundo.
O segundo, a maneira como esses processos se refletiram nos grupos de
mídia brasileiros e seus desdobramentos nas disputas políticas e
empresariais.
A terceira, as características específicas da revista Veja, e as mudanças
pelas quais passou nos últimos anos.

O estilo neocon
De um lado há fenômenos gerais que modificaram profundamente a imprensa
mundial nos últimos anos. A linguagem ofensiva, herança dos “neocons”
americanos, foi adotada por parte da imprensa brasileira como se fosse a
última moda.
Durante todos os anos 90, Veja havia desenvolvido um estilo jornalístico
onde campeavam alusões a defeitos físicos, agressões e manipulação de
declarações de fonte. Quando o estilo “neocon” ganhou espaço nos EUA,
não foi difícil à revista radicalizar seu próprio estilo.
Um segundo fenômeno desse período foi a identificação de uma profunda
antipatia da chamada classe média midiática em relação ao governo Lula,
fruto dos escândalos do “mensalão”, do deslumbramento inicial dos petistas
que ascenderam ao poder, mas principalmente devido às políticas de
inclusão social que despertaram forte preconceito de classe. Esse sentimento
combinava com a catarse proporcionada pelo estilo “neocon”.
Outros colunistas utilizaram esse falso elitismo com maior ou menor
talento. Nenhum com a fúria grosseira com que Veja enveredou pelos novos-
velhos caminhos jornalísticos. Mesmo após o estilo ser banalizado por
dúzias de pittbulls a serviço desse jogo, Veja permaneceu imbatível.

O jornalismo e os negócios
Outro fenômeno recorrente – de certo modo imbricado com o nascimento do
próprio negócio da notícia—foi o da terceirização das denúncias e o uso das
notícias como ferramenta para disputas empresariais e jurídicas.
Trata-se de uma esperteza secular. Cria-se o inimigo externo, fomenta-se
o macarthismo, em nome da guerra aceitam-se todos os abusos e, debaixo
deles, as piores jogadas comerciais.
Sem o filtro do critério jornalístico, foram perpetrados todos os abusos.
A loucura ganhou método quando esse aparente descontrole se tornou peça
da estratégia editorial dos veículos.
O marketing da notícia, a falta de estrutura e de talento para a reportagem
tornaram muitos jornalistas meros receptadores de dossiês preparados por
lobistas.
Ao longo de toda a década, esse tipo de jogo criou uma promiscuidade
perigosa entre jornalistas e lobistas. Havia um círculo férreo, que afetou em
muitos as revistas semanais. E um personagem que passou a cumprir, nas
redações, o papel sujo antes desempenhado pelos repórteres policiais: os
chamados repórteres de dossiês.
Consistia no seguinte:
O lobista procurava o repórter com um dossiê que interessava para seus
negócios.
O jornalista levava a matéria à direção, e, com a repercussão da denúncia
ganhava status profissional.
Com esse status ele ganhava liberdade para novas denúncias. E aí
passava a entrar no mundo de interesses do lobista.
O caso mais exemplar ocorreu na própria Veja, com o lobista APS
(Alexandre Paes Santos).

Durante muito tempo abasteceu a revista com escândalos. Tempos depois, a


Policia Federal deu uma batida em seu escritório e apreendeu uma agenda
com telefones de muitos políticos. Resultou em uma capa escandalosa na
própria Veja em 24 de janeiro de 2001 em que acusavam desde assessores
do Ministro da Saúde José Serra de tentar achacar o presidente da Novartis,
até o banqueiro Daniel Dantas e o empresário Nelson Tanure de atuarem
através do lobista.
Na edição seguinte, todos os envolvidos na capa enviaram cartas negando
os episódios mencionados. Foram publicadas sem que fossem contestadas.
O que a matéria deixou de relatar é que, na agenda do lobista, aparecia o
nome de uma editora da revista - a mesma que publicara as maiores
denúncias fornecidas por ele. A informação acabou vazando através do
Correio Braziliense, em matéria dos repórteres Ugo Brafa e Ricardo
Leopoldo.
A editora foi demitida no dia 9 de novembro, mas só após o escândalo ter
se tornado público.
Antes disso, em 27 de junho de 2001 Veja publicou uma capa com a
transcrição de grampos envolvendo Nelson Tanure. Um dos “grampeados”
era o jornalista Ricardo Boechat. O grampo chegou à revista através de
lobistas e custou o emprego de Boechat, apesar de não ter revelado nenhuma
irregularidade de sua parte.
Graças ao escândalo, o editor responsável pela matéria ganhou prestígio
profissional na editora e foi nomeado diretor da revista Exame. Tempos
depois foi afastado, após a Abril ter descoberto que a revista passou a ser
utilizada para notas que não seguiam critérios estritamente jornalísticos.
Um dos boxes da matéria falava sobre as relações entre jornalismo e
judiciário.

O boxe refletia, com exatidão, as relações que, anos depois, juntariam


Dantas e a revista, sob nova direção: notas plantadas servindo como
ferramenta para guerras empresariais, policiais e disputas jurídicas.

Os interesses políticos
Imbricado com os interesses comerciais entram os interesses políticos, que,
no caso da mídia, se tornam particularmente exacerbados em períodos de
mudanças de padrão tecnológico, que colocam em risco a supremacia dos
grupos de mídia no mercado de opinião.
Foi assim nos anos 20, com o advento do rádio; no início dos anos 50,
com as tentativas de criação de grupos concorrentes; no fim dos anos 50,
com as disputas em torno da televisão; no início dos anos 90, com o advento
da TV a cabo; e nos anos 2.000, com a consolidação da Internet.
O velho modelo entrava em crise, deixava as empresas em dificuldades
crescentes ao mesmo tempo em que nascia uma nova tecnologia
potencialmente capaz de abalar a anterior.
Esse quadro de instabilidade levava à exacerbação do ativismo dos
grupos de mídia, que passavam a apostar todas as fichas no seu poder de
cooptar ou desestabilizar politicamente governos, para garantir – via política
– o controle sobre o novo mundo que se prenunciava.
Santos Vahlis, hoje em dia, é mais conhecido pelos edifícios que deixou
no Rio de Janeiro e pelas festas que proporcionou nos anos 50. Foi um dos
grandes construtores do bairro de Copacabana.
Venezuelano, mudou-se para o Brasil, trabalhou com importação de
gasolina e tentou se engatar nas concessões de refinarias no governo Dutra.
Foi derrotado pela maior influência dos grupos cariocas já estabelecidos.
Provavelmente graças ao fato de ser bom cliente dos jornais, com seus
anúncios imobiliários, tinha uma coluna no Correio da Manhã, cujo ghost
writer era o grande Franklin de Oliveira.
Tentou adquirir o jornal “A Noite” para fortalecer a imprensa pró-Jango.
Foi atropelado pelo pessoal do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação
Democrática) que, em vez de comprar o jornal, comprou sua opinião por Cr$
5 milhões. A CPI que investigou a transação, aliás, teve como integrante o
deputado Ruben Paiva, mais tarde preso, torturado e assassinado pela
ditadura militar.
Por sua atuação, Vahlis sofreu ataques de toda ordem. Contra ele,
levantaram a história de que teria feito uma naturalização ilegal, aliás a
mesma versão utilizada para tentar bloquear a ascensão de Samuel Wainer.
Em 1961, em pleno inverno, foi preso e jogado nu em uma cela de cadeia, a
ponto do detetive que o prendeu temer por sua vida.
Como era possível a perseguição dos IPMs (Inquéritos Policial
Militares), de delegados e do Ministério Público, contra aliados do próprio
governo?
No mesmo período, Samuel Wainer sofreu perseguição implacável por
pretender, com a aquisição da editora Erika e a criação da Última Hora,
entrar no mercado de mídia.
No fim da década. Wallace Simonsen tentou entrar no mercado de
televisão, com a criação da TV Excelsior. Foi esmagado pelo golpe de 1964.
Em fins dos anos 80, a TV a cabo começa a ser implantada, colocando a
primeira brecha no cartel da televisão aberta. José Sarney cedeu às pressões
dos grupos de mídia e cobriu-os de favores. Manteve-se no cargo apesar da
notável falta de rumo político e econômico.
Em vez de ceder às pressões dos grupos de mídia, Fernando Collor tentou
estimular uma nova rede de TV aliada, a CNT. Foi alvo de uma campanha
implacável que o derrubou em pouco tempo.
Para entender o que ocorreu nos últimos anos com os grupos de mídia
nacionais, é preciso um breve mergulho na história recente das democracias
ocidentais, no advento da Internet e das redes sociais e na crise global do
setor.
É o que se pretende nesse livro. Não se trata de uma historiografia, mas
apenas de um fio condutor para levantar as características dos grupos de
mídia, seu poder de coerção e suas motivações e entender o que se passou
com a mídia brasileira na última década.
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A fraude do século

A democracia representativa e a imprensa


A democracia representativa foi uma construção em cima de alguns
princípios centrais.
Os países democráticos passam a ser governados por três poderes.
Ao Executivo cabe a condução das políticas públicas, da diplomacia, da
segurança nacional.
Ao Legislativo, a formulação e aprovação de leis e o aval ou veto às
decisões do Executivo.
Ao Judiciário, a interpretação e aplicação das leis.
As relações entre os poderes ficam sujeitas a um sistema de freios e
contrapesos, com os diversos poderes limitando mutuamente seus
respectivos espaços. Na base de todos eles consolidou-se o conceito
fundador de que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.
Cabe ao povo, através do voto, a eleição dos seus representantes no
Poder Executivo, Legislativo e em muitos cargos do Judiciário. E ao
Presidente da República – a expressão máxima do voto - a nomeação para
diversos cargos-chave dos demais poderes, como os Ministros do Supremo,
o Procurador Geral da República, o diretor geral da Polícia Federal.
Para exercer essa função – de eleger os governantes -, a Constituição
norte-americana garantiu ao cidadão, como peças centrais, o direito à
informação e a liberdade de expressão. Para que esses direitos pudessem ser
exercidos na prática, definiu como meio a imprensa, na época representada
por jornais regionais e uns poucos jornais nacionais.
Caberia a ela buscar a informação, oferecê-la de forma organizada ao
cidadão comum em um ambiente competitivo, dar voz às manifestações
sociais e ser a representante de fato do que se denominou “a opinião
pública”.
A competição entre os veículos permitiria refletir a diversidade de
opinião e, a partir dessa competição, formar-se-iam consensos que
desembocariam nas eleições dos candidatos a cargos majoritários e ao
Parlamento.
Antes mesmo da revolução norte-americana, no entanto, o advento da
mídia já trazia no seu bojo distorções reportadas por vários historiadores,
dramaturgos e intelectuais.
As denúncias sobre a busca do sensacionalismo, o uso da informação
para fins comerciais ou jogadas econômicas, o assassinato de reputações e
outros abusos inerentes à nova forma de comunicação, acompanharam a
imprensa desde o seu nascimento.
As revoluções tecnológicas seguintes trouxeram um novo componente: a
concentração de poder, a oligopolização em termos nacionais e, depois,
globalmente. E, aí, o equilíbrio democrático viu-se ameaçado.
Depois da invenção da impressora, a nova era tecnológica foi inaugurada
com a invenção do telégrafo sem fio.
Como muitas outras invenções que se seguiram, tornou-se concessão
pública assegurando o monopólio à Western Telegraph.
Com o telégrafo sem fio nasceu a primeira agência de notícias – a
Associated Press. E com ela, a primeira interferência notável dos grupos de
mídia nos processos eleitorais.
Em cada localidade, o jornal com acesso à agência ganhava vantagens
nítidas sobre seu concorrente, na medida em que dispunha de farto noticiário
nacional, cultural, entre outros temas, mediante o pagamento de uma
assinatura.
O resultado foi a homogeneização do noticiário, da política e dos valores,
conferindo enorme poder político aos controladores da AP.
A primeira exibição de força ocorreu nas eleições presidenciais de 1877.
Principal acionista da Western, William Smith aliou-se ao New York
Times para apoiar o candidato republicano Rutherford Hayes. Apoiou nas
prévias do partido e, depois, nas eleições nacionais.
Inicialmente, o jogo consistia em apresentar Hayes como competente e
atacar a reputação dos adversários.
Depois, partiu-se para a fraude.
As pesquisas eleitorais previam a vitória do democrata Samuel Tiden por
cerca de 200 mil votos. Graças ao controle das informações, a AP constatou
que havia muitas dúvidas dos democratas sobre os resultados em alguns
estados do sul.
Os republicanos foram informados e concentraram por lá um enorme
esquema de corrupção política, que acabou elegendo Hayes. O episódio foi
retratado em um livro de autoria de Roy Morris Jr com o título de “A Fraude
do Século”1.
Pouco mais de cem anos depois, esse expediente seria repetido no Brasil,
com o episódio Proconsult.
O caso Tiden foi a grande estreia dos grupos de mídia no recém-criado
mercado nacional de opinião, mas apenas um ensaio do que seriam as
décadas seguintes.

Os barões ladrões e o jornalismo marrom

O apogeu da imprensa escrita aconteceu no período de 1890 a 1920.


Surgiram aí os chamados “barões da mídia”, ou “barões ladrões”, como
eram alcunhados, especialmente os norte-americanos William Randolph
Hearst e Joseph Pulitzer. Eles definiriam os dois padrões que dominariam o
estilo dos grupos de mídia no século.
Ambos controlavam ferreamente o trabalho de seus jornalistas,
enquadrando-os na linha definida por eles. Mas cada qual tinha uma
estratégia de negócio.

Pulitzer praticava o chamado jornalismo de opinião, buscando público


qualificado e formas de interferir nos centros de poder.
Foi autor de máximas:
“Para se tornar influente, um jornal tem que ter convicções, tem que
algumas vezes corajosamente ir contra a opinião do público do qual
ele depende”.
“Acima do conhecimento, acima das notícias, acima da inteligência, o
coração e a alma do jornal residem em sua coragem, em sua
integridade, sua humanidade, sua simpatia pelos oprimidos, sua
independência, sua devoção ao bem-estar público, sua ansiedade em
servir à sociedade”.
E a mais conhecida delas:
“Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e
corrupta formará um público tão vil como ela mesma”.
Já Hearst abria mão de qualquer escrúpulo e tratava as informações como
ferramentas de negócios.
A partir do seu trabalho se consolida o termo “imprensa marrom”,
definindo um estilo que derrubaria de vez os limites entre os fatos e a ficção,
o respeito aos direitos individuais e das minorias.
Os repórteres saiam das redações com a incumbência de trazer fatos que
se adaptassem à pauta pré-definida. Se não encontrassem, que inventassem.
Contra adversários tudo era permitido, da distorção mais primária à calúnia
mais clamorosa. A favor dos aliados, da blindagem mais despudorada aos
elogios mais inverossímeis.
No Brasil pré-televisão, Pullitzer serviu de inspiração para os Mesquita,
de O Estado de S. Paulo; Hearst para Assis Chateaubriand, dos Diários
Associados.
No Brasil pós anos 2.000, Hearst tornou-se a referência maior, através de
seu mais notável seguidor: o australiano Rupert Murdoch servindo de
inspiração para os quatro grandes grupos de mídia nacionais, conforme se
poderá conferir ao longo deste livro.

O livro dos insultos


Diferentes no estilo e no público alcançado, os objetivos finais da imprensa
marrom e da imprensa tida como séria eram os mesmos – todos
subordinados aos interesses de seus controladores. Apenas os métodos
variavam. E a parte mais podre do jornalismo – na opinião de alguns autores
da época – não era definitivamente os jornais sensacionalistas, mas aqueles
que atuavam diretamente junto aos centros de poder, o que se convencionou
chamar de o quarto poder, a imprensa de opinião.
Em seu “O Livro dos Insultos”, o notável cronista H. L. Mencken
descrevia assim a imprensa norte-americana dos anos 20 (Mencken, 1984)2.
“Muita conversa é jogada fora sobre a suposta diferença entre a
imprensa marrom e a mais respeitável. A diferença e
precisamente a mesma entre um contrabandista e o
superintendente de uma escola dominical, ou seja, nenhuma.
Honestamente acho até, baseado em vinte anos de intima
observação e incessante reflexão, que a vantagem, se existe,
está do lado dos jornais marrons.
“Tirando um dia pelo outro, são provavelmente menos
malignamente mentirosos. As coisas sobre as quais mentem não
costumam ter a menor importância — pedidos de divórcio,
pequenos subornos, fofocas sociais, intimidades das vedetes”.
“(...) Mas no domínio da politica, do governo e das altas
finanças, os marrons chegam as vezes mais perto da verdade do
que os jornais mais austeros, 90% dos quais são de propriedade
de homens envolvidos em alguma espécie de exploração dos
trouxas”.
Exemplo claro foi a maneira como os impérios de Hearst e Pullitzer atuaram
a serviço de grupos norte-americanos com negócios em Cuba. Havia
interesse no açúcar, tabaco e na siderurgia de Cuba, e propriedades
avaliadas em cerca de US$ 1,2 bilhão (em dólares de hoje).
Para induzir o governo norte-americano a avançar sobre as possessões
espanholas no continente, os jornais de Pullitzer e Hearst trataram de
fabricar o fantasma do inimigo externo3.
Explodiu uma pequena rebelião em Cuba. Nos meses seguintes, os jornais
de Hearst e Pullitzer passaram a denunciar canibalismo e tortura promovidos
pelos espanhóis.
Um dos correspondentes enviados por Hearst, Frederic Sackrinder
Remington, figura notável da época, pintor, ilustrador, escultor e escritor,
mandou uma mensagem ao cappo informando nada ter encontrado em Cuba.
A resposta de Hearst foi clássica
- Por favor, permaneça aí e forneça as imagens, que eu vou fornecer a
guerra4.
Pressionado pela mídia, o presidente William McKinley acabou cedendo,
enviando ao porto de Havana o navio de guerra USS Maine. O navio
explodiu em 15 de fevereiro de 1898, matando 266 pessoas. Sem aguardar a
análise das razões da explosão, a imprensa norte-americana acusou a
Espanha de atentado, conseguindo a deflagração da guerra5.
Esse padrão se repetiria ao longo de todo o século.

As novas tecnologias
Naqueles anos 20, a radicalização da imprensa escrita estava diretamente
ligada ao aparecimento de novas tecnologias da informação. Iniciava-se a
era do rádio.
Mas o padrão se repetiria dali em diante6.
Grupos de mídia consolidavam-se na tecnologia vigente, ganhando
expressão política. Cada nova tecnologia produzia um terremoto no setor,
abrindo espaço para novos grupos sociais e políticos e, especialmente, para
novos protagonistas midiáticos.
Os grupos hegemônicos se organizavam e valiam-se do prestígio político
para tentar firmar pé na etapa seguinte. Alguns desapareciam pelo caminho.
Outros completavam a transição e assumiam a liderança da nova etapa.
Foi assim com o início do rádio.
No lançamento, o padrão eram as rádios comunitárias de baixo alcance. A
nova tecnologia trazia sonhos similares aos atuais, com as redes sociais.
Com pequeno investimento, qualquer um poderia abrir a sua rádio. A febre
inicial levou universidades, igrejas, radio clubes, jornais, o próprio Exército
e a Marinha, a abrirem sua rádio. Surgiram rádios especializadas em jazz7.
Era tanta variedade que uma das emissoras mais populares de Nova York
era uma espécie de Yahoo da época: sua programação consistia em divulgar
as novidades que surgiram nas diversas pequenas rádios inauguradas.
Em 1920, conseguir uma licença de rádio era tarefa descomplicada e sem
custo algum.
Havia a necessidade de disciplinar o uso do espaço público, sim. Mas na
hora de definir a divisão do espaço, a opção escolhida foi a de restringir
totalmente o espaço para poucos grupos.
“A FRC teve a opção de apoiar muitas estações de menor porte
ou poucas de maior porte. Havia espaço para bandas de
transmissão de todas as escolas de pensamento, se os direitos de
difusão fossem confinados a localidades e transmissores de
baixa voltagem. Era simplesmente uma questão de como se
dividiria o éter”,
observou Tim Wu, autor do monumental “Impérios da Comunicação”.
A avanço da telefonia permitiu a montagem das redes de transmissão.
Inicialmente, a ATT – detentora do monopólio nacional da telefonia -
montou uma rede própria de 16 emissoras, o mesmo produto sendo
transmitido para 16 públicos diferentes, trazendo uma notável economia de
escala.

A utilidade política ficaria clara quando os presidentes norte-americanos


puderam ter seus discursos transmitidos por todo o país em tempo real.
Quem estreou foi Calvin Coolidge. O auge foram as “conversas ao pé do
fogo”, de Franklin Delano Roosevelt, com as quais enfrentou o bombardeio
da imprensa escrita.
Em seguida, veio a rede NBC, lançando os primeiros programas e ações
patrocinados em rede, inaugurando com A&P Gypsies e Eveready Hour a
fórmula que passou a dominar, dali por diante, a indústria do entretenimento
e os grupos de mídia. Os financiadores da mídia passam a ser os grandes
anunciantes nacionais, voltados ou não para o mercado de consumo. E os
avalistas das concessões públicas, os governos nacionais.
A estreia de Eveready Hour foi em 1924, patrocinado pela Companhia
Nacional de Carbono.
As empresas descobrem o marketing e o marketing descobre nos grupos
de mídia seus veículos preferenciais.
Tudo passa a ser tratado como mercado – do mercado de consumo ao de
opinião. E os grupos de mídia tornaram-se instrumentos de venda de
produtos de consumo, de construção ou destruição de marcas e de venda ou
desconstrução de ideias para influenciar decisões de governo, de políticos e
de magistrados. Ajudam a construir (ou destruir) a imagem de produtos e a
reputação de políticos e, principalmente, a utilizar o poder extraordinário da
notícia para seus interesses comerciais. A política tornou-se, dali para
frente, seu território preferencial de atuação.
Gradativamente, os novos veículos vão definindo seu formato padrão.

Desde a histórica luta de Jack Dempsey e George Carpentier, no início dos


anos 20, os eventos esportivos ocupam lugar central na programação.
Junto com eles, vieram os programas de auditório. A partir dos anos 50, a
segmentação etária, com programas infantis, juvenis e adultos. Depois, a
grade, atrações diárias, repetitivas, visando criar o hábito da audiência. Na
fase inicial, desenhos, teatros, novelas. E, como produto nobre e arma
política, os telejornais diários sustentados pela audiência da grade de
programação e incumbidos de fornecer a munição para as estratégias
comerciais e políticas dos grupos.
A partir daí o mercado de consumo – de produtos e de opinião - ganha
nova dinâmica.
As redes de TVs abertas criaram um mercado nacional para produtos e
ideias ampliando o alcance das redes de rádios. A publicidade provinha de
produtos de alcance nacional, justamente os de consumo produzidos por
grandes grupos econômicos, mas não apenas eles.
O poder de influenciar o consumo em breve chegou ao mercado de
opinião, com os vitoriosos da nova etapa tecnológica tornando-se os novos
donos da opinião, montados em concessões públicas que impediam a entrada
de novos concorrentes.
Essa parceria - grandes empresas, agências, governo e grupos de mídia -
esculpe o que seria conhecido, no século 20, como ”american way of life”,
peça central da sociedade norte-americana, tanto nos hábitos de consumo
como na massificação de ideias e conceitos.
O marketing passa a ocupar um espaço cada vez maior nas vendas, na
diplomacia e na política, criando um mundo mitológico, glamoroso –
ajudado pelo fascínio da indústria do entretenimento de Hollywood.
As agências de publicidade desenham o mundo de sonho e fantasia que
inebria a classe média, criando verdades, disseminando mentiras,
construindo desejos, modelando um novo modo de vida e se tornando a
maior alavanca de vendas do século. Ao lado do cinema, os grupos de mídia
são os grandes veículos propagadores do modelo através de seus jornais,
revistas e emissoras de rádio e TV.
Quando a globalização explode e as multinacionais norte-americanas
saem à conquista do mundo, levam consigo o novo modelo, sua agência de
publicidade e seu escritório de advocacia para cada país.
As agências de publicidade ajudam não apenas a homogeneizar o
mercado de consumo da classe média incluída, como tornam-se as grandes
financiadoras da mídia local e, através dela, ganham relevância imediata no
mercado de opinião.
A expansão do capitalismo internacional, na sua versão norte-americana,
se dá, portanto, em torno de duas redes transnacionais.
A primeira, a do mercado financeiro e do circuito do grande capital.
A segunda, a da mídia.
Nesse processo, a democracia sempre foi o modelo predileto – e não
apenas por suas vantagens sobre os demais, mas por permitir a influência
direta sobre a opinião pública dos países periféricos através da enorme rede
de comunicação montada a partir dos grupos de mídia e da indústria do
entretenimento norte-americanos e das parcerias com os grupos nacionais.
É a parceria com seus congêneres emergentes que garantirá a pressão
sobre os governos nacionais, a venda das virtudes da internacionalização, a
pressão política em defesa dos interesses corporativos contra o Estado
nação – porque atuando diretamente sobre os mercados de opinião nacionais
– em alguns casos modernizando hábitos, costumes e negócios; na maior
parte das vezes, mantendo a relação de dominação econômica e cultural
Voltemos ao introdutor do jornalismo marrom. Nos anos 40, Hearst
possuía 25 jornais diários, 24 revistas semanais, 12 estações de rádio, 2
agências de notícias internacionais, uma agência especializada em filmes, e,
em 1948, adquiriu a WBAL-TV em Baltimore, uma das primeiras emissoras
norte-americanas.
A concentração de capital e a expansão das multinacionais norte-
americanas pelo mundo trariam um componente novo, a internacionalização
dos grupos de mídia e suas parcerias com a mídia dos países emergentes,
conforme se verá a seguir.

1 (Morris Jr, 2004)


2 (Mencken, 1984)
3 (História, 2015)/
4 (Collection)/
5 https://collections.vam.ac.uk/item/O108092cuba-in-war-time-by-poster-remington-frederic/
6 (Wu)
7 Wu, posição 710
.

Globalização da mídia
.

Expansão capitalista e mídia

Quando o domínio norte-americano se estende pelo mundo, após a


Segunda Guerra, no rastro das multinacionais vão os grupos de
mídia.

As redes de TV dos EUA planejam sua expansão


O avanço das telecomunicações e o desenvolvimento do micro-ondas
abriram novas perspectivas para as redes de TV norte-americanas. Em fins
dos anos 40 elas começaram a planejar sua expansão internacional, de olho
na América Latina.
Coube a Henry Luce, fundador e mentor do grupo Time-Life a grande
revolução do período, que o tornou o norte-americano mais influente de sua
época. Ele praticamente criou o conceito de editora de revistas,
posteriormente seguida por grupos nacionais como a Manchete até
desembocar na Editora Abril e no Globo.
Antes da TV, Luce se consagrara com um conjunto de revistas campeãs, a
Time (que se tornaria o modelo das revistas semanais de informação,
espelho da futura Veja), a Life (copiada pela Manchete), a Fortune (de
negócios) e a Sporteds Illustred, servindo de modelo para os novos grupos
editoriais.
Por aqui, nos anos 40 dois grupos tentaram desenvolver modelos
similares: a Erika, uma editora de Horácio de Carvalho, mas bancada por
Walther Moreira Salles, cujo carro chefe era a revista A Sombra; e o Globo,
de Roberto Marinho, com sua Rio Magazine.
O lançamento da revista Time foi um divisor de águas na imprensa
mundial, dando um novo status às revistas semanais, uma influência política
sobre a opinião pública equiparável à dos grandes diários e inspirando
similares em todos os países, muitos deles tendo a própria Time-Life como
sócia.
O estilo Time consistia em organizar o universo (já abundante) das
notícias diárias em uma periodicidade mais cômoda para o leitor – a
semanal -, selecionando um universo restrito de temas, mas embalando-os de
forma agradável e com sua própria visão de mundo, com um texto
eminentemente opinativo que fosse compreendido pelo leitor mediano. Para
obter esse alcance, havia uma simplificação de toda ordem, especialmente
em cima de temas complexos.
Para conferir credibilidade ao texto, o estilo contemplava um largo
descritivo, criando diálogos imaginários, mas verossímeis, descrevendo
detalhes de ambientes, passando a ideia da “onipresença” e “onisciência”.
Tipo: “Salvador Allende entrou sozinho no salão do Palácio La Moneda,
olhou longamente a multidão pela janela, foi para um canto, tirou a
espingarda, e, com o olhar grave, encaixou-a debaixo do queixo, aguardou
alguns segundos e apertou o gatilho”.
Luce também inovou no modelo de negócios, ao criar uma nova empresa
de venda em catálogo que se valia da grande penetração das revistas. Tinha
o perfil dos donos de mídia criados pelo novo modelo, fundamentalmente
comerciantes com visão de produto.
Quanto começou a era da televisão, promoveu uma transição bem-
sucedida para a nova mídia tornando-se o primeiro grupo a juntar todas as
formas de comunicação em um mesmo conglomerado, batizado de Time-Life
Broadcast Inc
Nos anos 50, junto com as redes NBC, CBS e ABC, a Time-Life saiu à
caça de parceiros internacionais, preferencialmente latino-americanos.
Em outubro de 1964, em um seminário do Hudson Institute, um dos
principais executivos da Time Life explicou a fórmula de expansão das redes
norte-americanas8:
1. Ter posição minoritária nos países da América Latina, devido às leis
dos respectivos países sobre telecomunicações.
2. Ter sócios locais, e “eles têm provado ser dignos de confiança”.
3. A programação diurna da TVserá importante para o êxito comercial e
poderosamente eficaz e popular.
Ao mesmo tempo, propunha uma parceria com o governo norte-
americano, “como um meio de atingir o povo do continente”.
Um pouco antes, apontara sua mira para o Brasil.

O mercado de mídia no Brasil


Em 1928, quando o Brasil começou a se urbanizar e a lançar as bases de um
mercado de consumo mais robusto, chegaram as primeiras agências de
publicidade internacionais, com a Ayer and Son representando a Ford. Logo
depois, vieram a J.W.Thompson e a McCan Erickson ao mesmo tempo em
que o modelo norte-americano de concessão de rádios começava a ser
implantado no país.9
O ecossistema dos grupos de comunicação norte-americano com seus
jornais, filmes e rádios começava a ensaiar a internacionalização, de mãos
dados com as grandes multinacionais do país:
1. A rede afiliada.
2. As agências de notícias.
3. As agências de publicidade, sendo o elo de ligação com os
patrocinadores.
4. O Departamento de Estado, conforme se verificou na Missão
Rockefeller, na Segunda Guerra.
Em 1931, logo após a revolução que levou Getúlio Vargas ao poder, definiu-
se a radiodifusão brasileira, no modelo de concessão em caráter precário,
outorgada pelo Executivo para entidades públicas e privadas.
Nos anos 40, o esforço de guerra norte-americano incluiu decididamente
a parceria com a indústria da comunicação. Jornais aliados ganhavam cotas
de papel, mas, principalmente, o conteúdo das agências puxado pelo fascínio
de Hollywood10
Criado e comandado por Nelson Rockefeller, o Escritório do
Coordenador de Assuntos Interamericanos (CIAA) foi um exemplo clássico
da geopolítica das grandes corporações norte-americanas.
No Brasil, tinha a retaguarda da embaixada americana no Rio de Janeiro e
o suporte de Comitê de Coordenação composto por empresários, dentre os
quais representantes da General Eletric, Standard Oil, Metro Goldwin
Mayer, Light and Power Co., The National City Bank of New York. O comitê
tinha agências em São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Belém
Fortaleza, Natal, Recife, Salvador, Curitiba e Florianópolis.
Suas ligações iam desde os cafeicultores até intelectuais.
A Divisão de Informação, atuava com as seções de imprensa, rádio,
filmes, análise de opinião pública e ciência/educação.
Na parte de Imprensa, por exemplo, a CIAA negociou com as agências
United Press e Associated Press para que promovessem notícias da América
Latina nos EUA, e notícias favoráveis aos EUA para serem distribuídas no
continente. A distribuição chegava a 422 publicações brasileiras. Promoveu
também o intercâmbio de editores e jornalistas dos dois países. Importante:
facilitava licenças de exportação de papel dos EUA para os jornais aliados.
No cinema, atuou para que Hollywood produzisse filmes com temas que
interessavam a América Latina, organizou turnês de astros e estrelas (como
Bing Crosby) e diretores (John Ford e Orson Welles), além da visita de Walt
Disney. No contra fluxo, foi responsável pela ida de Carmen Miranda e Ary
Barroso aos EUA. E foi através dela que Disney foi convencido a criar tipos
que salientasse a solidariedade pan-americana, como o Zé Carioca, e a
realização de filmes com esse fim, como “Alô Amigos”.
Chegou a ajudar na elaboração de 122 filmes em português. Alguns com a
colaboração do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda). Entre as
propostas rejeitadas, um projeto de um ítalo-americano de nome Roberto
Civita, sobre quem se falará bastante neste livro (Moura, 2012).
Todo o aparato tecnológico dos grupos de mídia, cinema, indústria
fonográfica, agências de publicidade foram canalizados para o Brasil, de tal
maneira que se tornaram-se praticamente o único sistema de financiamento
das empresas jornalísticas, editoras, emissoras de rádio e da nascente
televisão, substituindo a máquina do governo.
No início dos anos 50, a imprensa brasileira de opinião resumia-se aos
Diários Associados, de Assis Chateaubriand, com sua enorme rede de
jornais regionais, o Estado de São Paulo da família Mesquita e, no Rio, um
conjunto de diários, entre os quais O Globo, Jornal do Brasil, Correio da
Manhã, Diário Carioca e alguns veículos regionais.
Entre as rádios, havia rede Tupi, a Globo, Jornal do Brasil, Mayrink
Veiga e a estatal Nacional no Rio; em São Paulo o sistema Record, da
família Machado de Carvalho; e os Associados espalhando-se por diversas
capitais.
Inaugurada em janeiro de 1951, por Assis Chateaubriand, rapidamente a
televisão avançou sobre o bolo publicitário. Naquele ano, o meio rádio
detinha 24% dos investimentos em publicidade. Em 1960 sua participação
caiu para 14% enquanto o novíssimo meio televisão já dominava 9% do
mercado publicitário, apesar do pais possuir apenas um milhão de aparelhos
receptores contra 6 milhões de rádios.
Os Associados foram os primeiros a inaugurar um canal de televisão.
Seguiram-se a TV Paulista canal 5, em março 1952, e a TV Record Canal 7
em setembro de 1953.
Direta ou indiretamente, Luce tornou-se o fator de desequilíbrio, principal
inspirador dos dois grupos empresariais que acabariam modernizando e
dominando a mídia brasileira nas décadas seguintes: as Organizações Globo
e a Editora Abril.
Na época, Marinho havia sido procurado pela NBC (National
Broadcasting Corporation) e pela Time-Life. A sócia escolhida foi a Time-
Life devido à transição vitoriosa para a televisão.
O ponto de aproximação foi a diplomata Clare Booth Luce, que se tornou
figura permanente nas manchetes lisonjeiras de O Globo. Clare era esposa
de Henry Luce. Escritora de sucesso, foi a primeira mulher indicada para
cargos relevantes na diplomacia norte-americana.
No período em que Clare foi embaixadora na Itália, houve o lançamento do
Panorama, do Time-Life em sociedade com um grupo Mondatori.
O grupo se internacionalizou empunhando a bandeira do anticomunismo e
de alianças com algumas das mais corruptas ditaduras do mundo – a mais
ostensiva foi a parceria com o casal Chiang Kai-shek, o ditador da China
pré-Mao, considerado na época o regime mais corrupto do planeta.
A mancha maior na biografia de Luce foi o apoio incondicional dado ao
senador Eugene McCarhty em sua campanha infame contra políticos, artistas
e intelectuais, no auge da Guerra Fria, no episódio que acabou levando seu
nome, o macarthismo.
A partir de 1950, as disputas em torno da bomba atômica, a vitória de
Mao Tse Tung na China provocaram um frisson na opinião pública. Disto se
prevaleceu Mc Carthy, até então um obscuro parlamentar de Winsconsin.
Começou acusando de comunista 205 funcionários do Departamento de
Estado. Depois, mirou a artilharia sobre Hollywood. Assumiu o Subcomitê
de Atividades Antiamericanas do Senado e conduziu sua campanha em
dobradinha com J. Edgar Hoover, diretor do FBI.
Finalmente investiu contra o lendário General George Marshall, Prêmio
Nobel da Paz em 1953.
Conseguiu tudo isso graças à blindagem recebida do grupo Time-Life, de
Luce.
Sua louca aventura terminou em 21 de dezembro de 1954, quando foi
destituído do cargo pelo Senado.
Nomeada embaixadora do Brasil, Clare não chegou a assumir devido a
problemas nos EUA justamente devido às amizades chinesas. Mas serviu de
ponte para a sociedade com Roberto Marinho, firmada em 1961. Apenas
após 1964 o contrato pode ser plenamente realizado, contornando os
obstáculos legais.
Algum tempo antes, em 1959, Roberto Marinho conseguiu importar
equipamentos para a rádio Globo por um câmbio especial, com o dólar a um
terço do dólar oficial.
A parceria definitiva foi com o grupo Time-Life, que injetou quantia
considerável no Globo, algo em torno de US$ 5 milhões da época. Com
esses recursos, mais uma série de privilégios – como a importação de
equipamentos sem pagamento de impostos e com câmbio especial -, a Globo
logrou contratar as melhores atrações dos concorrentes.
Além disso, representantes da Time passaram o know how da
programação, da comercialização, as séries-novela que fidelizavam o
público diariamente, o modelo dos grandes eventos.
Em “A história secreta da Globo” (Herz, 1991)11, o autor levantava:
“Menos de um mês depois de constituída aTVGloboLtda.e
umasemanadepois de receber US$ 1,5 milhões de dólares de Time-Life Inc.,
Roberto Marinho assinou com o grupo norte-americano o contrato chamado
Principal (Cf. Anexo 4).
Por esse contrato, a TV Globo se comprometia a adquirir e instalar todo o
equipamento de transmissão de televisão e completar a construção do prédio
para o estúdio no terreno na Rua Von Martius.
A construção desse prédio deveria estar concluída até lº de julho 1963 e
até 1o de outubro do mesmo ano a estação deveria estar operando. A Time-
Life Broadcast International Inc.
Comprometia-se a oferecer treinamento especializado na área de
televisão, troca de informações sobre direção administrativa e comercial,
assessoramento de engenharia e orientação para a aquisição de filmes e
programas produzidos no estrangeiro.
Além disso, a Time-Life comprometia-se a pagar à TV Globo uma quantia
de até Cr$ 220 milhões, ou seja, uma parcela igual à realizada em bens por
Roberto Marinho no capital social da TV Globo Ltda. Essa quantia seria
“creditada à conta de Time a sociedade em conta de participação da qual TV
Globo fará parte com todo o seu”
A sociedade ganhou velocidade após 1964.
No dia 18 de dezembro de 1965, João Batista Amaral, presidente da TV
Rio, Canal 13, procurou a ABERT (Associação Brasileira das Empresas de
Rádio e Televisão) para denunciar o avanço da Globo sobre as demais
emissoras, alavancado pelo capital da Time-Life
A grande articulação entre as grandes multinacionais norte-americanas,
estimulada por Nelson Rockefeller, mostrou-se eficaz.
Investigações do senador João Calmon (dos Diários Associados) na
época identificaram a presença da Standard Oil nas negociações com a
Globo.
Ambas – Globo e Standard Oil – constituíram uma empresa, a Cobalub,
com sede na empresa. Os sócios eram a Solutec, a Sicra e a Carioca. A
Solutec era controlada pela Esso Brasileiro de Petróleo e a Carioca por
pessoas ligados a O Globo. As sedes de ambas ficavam, respectivamente, no
edifício Novo Mundo, sede da Esso, e na Rua Irineu Marinho, 35, sede de O
Globo.
O grande apoio da Esso a Roberto Marinho foi transferir o Repórter Esso
da rádio Nacional para a Rádio Globo (p.94, Globo). Na época, a Wordmark
Encycloof The Nations, editada pela Worldmark Press Inc., classificou O
Globo como “órgão conservador subsidiado pelos Estados Unidos”.
Uma CPI proposta no Congresso condenou por unanimidade as
negociações entre a Time-Life e a Globo.
Constatava:
A participação de Time-Life no negócio foi de quase dez vezes o
patrimônio da Rede Globo. Esta participação, junto com a compra
do prédio da Rede Globo e a posse de notas promissórias “com
vencimento em aberto”, determinaram um predomínio financeiro
que levou à ingerência dos assessores de Time-Life sobre a
empresa brasileira.
A Rede Globo não suportaria os prejuízos de instalação de
emissora -que até março de l966 chegavam a
Cr$4.090.067.182,00 sem o afluxo de dólares de Time-Life.
A Rede Globo incluiu indevidamente entre seus bens registrados
em balanço o edifício e as instalações já alienadas desde
11defevereirode 1965, procedimento este que evidencia
irregularidades: “As contradições em que incidiu o senhor
Roberto Marinho evidenciam a anormalidade das negociações
encetadas com ‘Time-Life’. A infidelidade do balanço e dos
balancetes encobre a situação econômica da ‘TV Globo”.
“A expansão do domínio de ‘Time-Life’ pôs em risco a própria
segurança nacional, pois já se encontram sob controle, nas
mesmas condições da TVGlobo, os bens adquiridos pelo senhor
Roberto Marinho à Organização Victor Costa, compreendendo
entre outros, a TV Paulista e a TV Bauru.
Antes do acordo com o grupo Time-Life, Roberto Marinho possuía a Rádio
Globo. Depois, adquiriu a Rádio Eldorado no Rio de Janeiro e uma pequena
estação em Petrópolis.
Depois das negociações, o grupo inaugurou a TV Globo no Rio de Janeiro
e comprou em São Paulo a TV Nacional, a TV Paulista, canal 5, a Rádio
Nacional, a Excelsior, a TV Bauru; em Porto Alegre adquiriu uma estação de
rádio; em Recife, mais cinco estações. E numa só penada recebeu
autorização para instalar estações de rádio no Rio de Janeiro, São Paulo,
Recife, Salvador, Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza,
Goiânia, JoãoPessoa, Maceió, Manaus, Brasília, SãoLuiz, Aracaju, Teresina,
Vitória, Cuiabá, Porto Alegre, Ribeirão Preto, Uberaba, Campo Grande e
Campina Grande (p.126 Globo).
A parceria só foi interrompida em 1971, quando Marinho adquiriu a parte
da Time-Life, com o sócio incomodado pela CPI e pelas restrições do
governo brasileiro.
A compra final da parcela da Time-Life foi uma novela à parte. Marinho
tinha sido sócio do banqueiro Walter Moreira Salles e do jornalista Arnon
de Mello no Parque Lage. Quando Carlos Lacerda elegeu-se governador do
Rio, mandou desapropriar o parque. Os três sócios ingressaram na justiça.
Quando Chagas Freitas foi eleito governador do então estado da
Guanabara, Roberto Marinho apressou-se em negociar com ele a
reintegração do parque, mas não avisou seus sócios. Pelo contrário, adquiriu
a parte de Moreira Salles por valor irrisório, alegando que tinha caixa
sobrando e queria apostar no parque a longo prazo.
Moreira Salles sentiu-se enganado e partiu à forra. Marinho precisava de
US$ 5 milhões para quitar o empréstimo dado pelo grupo Time-Life. Não
concedeu.
Mas Roberto Marinho agiu rápido e conseguiu um empréstimo com José
Luiz de Magalhães Lins, que dirigia o Banco Nacional de seu tio Magalhães
Pinto. Quitou o empréstimo e consolidou o controle da Globo.

O avanço da Abril na América Latina


Na área das revistas, Luce foi essencial também para alavancar os irmãos
Civita – dois ítalo-americanos que aportaram no Brasil e Argentina,
respectivamente, sem capital e com a intenção de explorar o mercado de
revistas.
Consta que Civita tinha sido empregado do grupo Time-Life e chegou ao
Brasil sem dispor de maiores capitais, enquanto um irmão ficava na
Argentina. Receberam apoio de Walt Disney, tornando-se distribuidores de
seus quadrinhos. Mas o modelo era a Time-Life.
Em pouco tempo, a Editora Abril, do Brasil, e o Editorial Abril, da
Argentina, lançaram 19 títulos de revistas. Em 1966 a Abril lançou a revista
Realidade, baseada na Life. Um ano depois, a Exame, baseada na Fortune.
Em 1968, a Veja.
Na Argentina, seguindo a fórmula Time o carro-chefe tornou-se a revista
Panorama – que ostentava na capa a parceria da Abril com a Time-Life. No
Brasil, a revista Veja.
No final dos anos 60, com a doença de Assis Chateaubriand e a crise dos
Associados, a Globo assumiu a liderança na TV aberta e a Abril a do
mercado de revistas.
O mercado de opinião passou a ser dominado por ambos, mais alguns
jornais tradicionais – como o Jornal do Brasil no Rio e o Estado de São
Paulo. Nos anos 80, graças ao gênio de Otávio Frias de Oliveira, a Folha
entrou nesse Olimpo, transformando-se no mais influente jornal brasileiro,
mas longe dos modelos contemporâneos da Globo e da Abril.
No governo Figueiredo foram outorgadas 295 rádios AM, 229 FMs e 40
emissoras de televisão – 23,5%, 56,3% e 27,35% do total de emissoras
existentes no país, a maior parcela outorgada a empresários e políticos
ligados ao governo.

O caso Proconsult
A partir dos anos 70, a Globo passa a ser o grande fator de integração
nacional do regime militar. O Jornal Nacional torna-se uma espécie de
porta-voz do regime, difundindo a ideia do Brasil Grande.
Nas eleições de 1982, a Rede Globo reedita o feito da Associated Press
em 1877.
Participei indiretamente do episódio.
Naquele ano, a Globo se propôs a apurar as eleições em tempo real em
todo o Brasil. Montou uma. Em um período de votação manual, os mesários
apuravam os votos e mandavam os mapas de votação para os Tribunais
Regionais Eleitorais. Chegando lá, a Globo imediatamente alimentava seus
computadores e divulgava os resultados parciais antes mesmo do TSE.
Em São Paulo, a Globo montou parceria com o Estadão.
Na época, eu era chefe de reportagem da Economia do Jornal da Tarde, o
vespertino do Estadão. Diariamente, recebíamos três boletins de cada estado
com os resultados de votos por legenda divididos entre capital e interior.
Pouco antes, havia adquirido meu primeiro computador, um Dismac 8000,
com sistema operacional CPM (que depois serviu de base para o DOS da
Microsoft), armazenamento em gravadores convencionais. Ainda não
existiam softwares, o que obrigava a conhecer a linguagem Basic para
programá-lo.
Para conseguir algum diferencial em relação ao Estadão, montei um
pequeno programa destinado a estimar a composição da Câmara de
Deputados.
O programa fazia projeções simples em cima dos dados enviados através
dos boletins da Globo: votos para Arena, MDB, e partidos menores, em
branco, nulo e abstenção, subdivididos entre capital e interior. Projetava os
resultados parciais de votação e, de acordo com as regras do TSE, estimava
a composição das bancadas.
Nos primeiros dias, o resultado final era de uma bancada
majoritariamente da Arena. À medida que os dias passavam, ia se reduzindo
a vantagem da Arena. Apenas em São Paulo as projeções não se
modificavam.
De repente, estoura o escândalo da Proconsult no Rio. César Maia
analisava os mapas eleitorais, confronta com a apuração da Globo e constata
que havia uma diferença grande em favor da Arena. Valeu-se da rádio Jornal
do Brasil para espalhar a suspeita pelo país.
Assim que o JB deu a denúncia, tentei recuperar os boletins enviados pela
Globo. Como já tinham sido destruídos, fui até o Departamento de
Documentação do Estadão para consultar as edições de O Globo. E me
deparei com a reportagem do jornal celebrando o fato da apuração da TV
Globo, no segundo dia, ter batido integralmente com o do TSE.
Ora, no meu microcomputador desenvolvi um pequeno programa com
algumas centenas de linha. Mas era óbvio que se dois sistemas apresentavam
o mesmo resultado errado, só podia ser pelo fato de um ser cópia do outro. É
probabilisticamente impossível que dois sistemas complexos contenham o
mesmo erro de programação.
De fato, por aqueles dias já haviam detectado o modo de operação da
fraude. No meio do sistema havia um algoritmo que reduzia a totalização de
votos do MDB e ampliava a da Arena.
Fui atrás do diretor de sistemas do jornal e indaguei dele as razões da
coincidência no erro. Ele tirou da sua gaveta uma papelada. Era a proposta
da Globo para que o jornal utilizasse o sistema da Proconsult.
Disse-me que se informara sobre a empresa no mercado, não sentiu
confiança e acabou solicitando para que, em São Paulo, o sistema fosse
desenvolvido pela Gerdau-IBM.
Saí da reunião e imediatamente telefonei para Eurico Andrade, com quem
trabalhara na Veja e que estava assessorando a campanha de Marcos Freire
em Pernambuco. Ele me disse que já tinham se dado conta da jogada. E qual
a razão? Desmobilizar a fiscalização do MDB e abrir espaço para a fraude.
Durante a apuração, promoveriam a fraude em cima dos votos em branco. Na
totalização, se não houvesse questionamento, prevaleceria o sistema
Proconsult.
No Rio, graças a César Maia a fraude não se consumou. No Rio Grande
do Sul foi bem-sucedida. O MDB desmobilizou a fiscalização e o candidato
Pedro Simon foi derrotado pelo candidato da Arena. Em algumas seções,
surpreendeu o fato de não ter havido nenhum voto em branco.
É possível que, em muitos outros estados, a fraude também tenha sido
bem-sucedida.
O Jornal do Brasil desapareceu com problemas de má gestão. E a entrada
do Brasil na era da Internet se dá com a mídia tradicional sendo liderada
pelo grupo dos 4: Globo, Abril, Folha e Estadão, nenhum deles chegando
perto da abrangência e da influência conquistada pela Globo.
Por ora, deixemos de lado um pouco a história para um detalhamento
maior sobre as formas de influência dos grupos de mídia no mercado de
opinião.

8 (Herz, 1991), 125


9 (Herz, 1991)
10 (Moura, 2012)
11 (Herz, 1991)
.

O mercado de opinião
.

O mercado de opinião

Não se pode entender os conflitos entre mídia e política sem uma


compreensão mais clara do funcionamento do mercado de opinião.

Nele, há um conjunto de subgrupos influentes, como os da religião, dos


partidos políticos e sua estrutura de diretórios, dos clubes de futebol, das
associações empresariais e movimentos sociais.
Mas, grosso modo, todos esses subgrupos podem ser englobados em dois
grupos maiores.
O primeiro é o mercado liderado pelos Grupos de Mídia.
Por definição, é um mercado que influencia preponderantemente os
setores já estabelecidos que já passaram pela fase da inclusão, do emprego,
da carreira, integrando-se aos estabelecidos da fase anterior à sua e
tornando-se consumidores de ideias e produtos.
Esse grupo emula, em tudo, hábitos, costumes e ideias dos centros
ancestrais de poder.
Por suas características, os subgrupos mais resistentes ao novo são os
estamentos militar, jurídico, alta hierarquia pública e a alta e média classes
médias – especialmente os que trabalham em grandes companhias
hierarquizadas. E também a classe média profissional liberal, que depende
de redes de relacionamentos.
Vivem em estruturas burocráticas, hierarquizadas, nas quais cumprem uma
carreira, sujeitando-se a promoções ao longo de sua vida útil. Por isso
mesmo a renovação se dá de forma muito lenta, proporcional à lentidão com
que mudam os lugares nessas corporações. São os mais apegados ao status
quo.
Uma das principais características desse grupo é a insegurança, o medo
da perda do status ou da condição social ou profissional. Por essas
características, da carreira e da ascensão social construída passo a passo,
esses grupos são influenciados por movimentos de manada: querem pensar
do mesmo modo que a maioria, e preservar o status quo do seu grupo (ou de
suas chefias).
Podem ser denominados conceitualmente de “opinião pública midiática”.
Nesse grande caldeirão misturam-se subgrupos que detém o poder,
capacidade de influenciar leis, julgamentos, de mandar prender e soltar.
Eles constituem e fornecem a base do poder dos grupos de mídia. Mas
não representam a maioria nos votos.
O segundo grupo é o dos novos incluídos econômicos e dos incluídos
políticos, mas que não têm posição de hegemonia nem acesso aos centros de
poder. Entram aí sindicatos, organizações sociais, novos movimentos, enfim,
a maioria da população – especialmente em países com grandes diferenças
de renda.
Os canais de informação desse público são os sindicatos, organizações
sociais, partidos políticos, movimentos de base, a Igreja do bairro, os
vizinhos.
É um público que em alguns momentos detém os votos, mas não detém
poder.
Em cada período de inclusão, o partido que entende as necessidades dos
novos incluídos ganha as eleições. Foi assim nos EUA com o Partido
Republicano no século 19, com o Partido Democrata no século 20.
Processos de inclusão diminuem as diferenças de renda, ampliam a classe
média e garantem a estabilidade política – porque a maioria se torna classe
média.
Mas qualquer gesto em direção à inclusão sofre enormes resistências dos
setores tradicionais, a classe média midiática, outrora chamada (com certo
exagero) de “maioria silenciosa”.
Não se trata apenas de insegurança, viés político, ideológico (no sentido
mais amplo), mas de atraso mesmo, um atraso entranhado, anti-civilizatório,
que atinge não apenas os hommers simpsons, mas acadêmicos
conservadores, magistrados, empresários sem visão. E, especialmente, os
grupos de mídia.

Os do meio temem perder status; os de cima, temem perder poder. E esse


medo das mudanças é uma fresta por onde são plantadas as sementes dos
medos ancestrais e da intolerância, as grandes armas às quais recorre a
mídia de todos os tempos, para se proteger das mudanças tecnológicas que
acompanham as grandes ondas de inclusão e preservar a influência política
angariada no período que se encerra.
O partido que entende os novos movimentos colhe leitor de baciada. E
aos grupos que representam o velho resta apelar para a instabilidade
provocada pelas mudanças e pelos medos ancestrais do desconhecido.
As técnicas dos grupos de mídia
Tem-se, aí, agora, as peças para entender o jogo da mídia.
Na base está o cidadão médio, com as características que se
consolidaram desde o início das democracias e dos mercados de massa: o
medo do imprevisível, da perda de status, da instabilidade econômica.
Para agarrar-se à sua classe social, recorre aos chamados bens de status,
dentre os quais um dos mais requisitados são os bens de opinião. Essa fuga
do isolamento atávico do cidadão democrata abre espaço para a exploração
do espirito de manada, da tendência do cidadão médio de acompanhar a voz
da maioria do seu meio.
É sobre esse universo que atuam os grupos de mídia. Mesmo antes do
aparecimento das novas tecnologias, a notícia já era tratada como produto
influenciado pelo entretenimento – dramaturgia, shows, espetáculos –e
marketing (a capacidade de construir ou destruir marcas e pessoas).
A mescla das características de cada atividade fez com que, desde o
princípio, explorassem a dramaturgia da notícia, a escandalização ou
celebração e o espírito de manada.
Nas reuniões de pauta da Veja, ainda nos anos 70, o personagem mais
mencionado era a “dona de casa de Bauru”. Ou seja, qualquer matéria tinha
que ser compreendida por ela. Na Rede Globo, o telespectador médio é
chamado de “Homer Simpson”.
Nos anos 20, Menken tratava esse personagem como o “homo boobus” ou
“homem inferior”:
“O gigantesco desenvolvimento comercial destes jornais os
obriga a atingir massas cada vez maiores de homens
indiferenciados, e o de que a verdade é uma mercadoria que
estas massas não podem ser induzidas a comprar.
As causas disto estão enraizadas na psicologia do Homo
boobus, ou homem inferior — ou seja, do cidadão normal, típico
e predominante de uma sociedade democrática. Este homem,
apesar de uma aparência superficial de inteligência, e, na
realidade, incapaz de qualquer coisa que possa ser descrita
como raciocínio.
As ideias que lhe entopem a cabeça são formuladas por um
processo de mera emoção. Como todos os outros mamíferos
superiores, eles têm sentimentos muito intensos, mas, também
como eles, falta-lhe capacidade de julgamento. O que o agrada
mais no departamento de ideias — e, dai, o que ele tende a
aceitar mais como verdadeiro — e apenas o que satisfaz os seus
anseios principais.
Por exemplo, anseios por segurança física, tranquilidade
mental e subsistência farta e regular. (...) Na miscelânea de suas
reações as ideias, ele abraça invariavelmente aquelas que lhe
parecem mais simples, mais familiares, mais confortáveis — que
se ajustam mais prontamente as suas emoções fundamentais e
lhe exigem menos agilidade, resolução ou engenhosidade
intelectuais. Em suma, ele e uma besta”.
Para atingir esse leitor médio pela emoção, os grupos de mídia acabaram
criando um universo virtual paralelo, copiando os estilos consagrados pelo
teatro, do burlesco ao drama.
Assim, Menken descrevia o jornalismo praticado na época, na
era pré-rádio:
“Bem, e como atiçar os seus [do público] sentimentos? No
fundo, é bastante simples. Primeiro, amedronte-o — e depois
tranquilize-o. Faça-o assustar-se com um bicho-tutu e corra
para salvá-lo, usando um cassetete de jornal para matar o
monstro.
Ou seja, primeiro, engane-o — e depois engane-o de novo. Essa,
em substância, é toda a teoria e prática da arte do jornalismo
nos Estados Unidos. Se nossas gazetas levam a sério algum
negócio, é o negócio de tirar da focinheira e exibir novos e
terríveis horrores, das costumeiras atrocidades, calamidades
iminentes, tiranias, vilanias, barbaridades, perigos mortais,
armadilhas, violências, catástrofes — e, então, magnificamente
superá-los e resolvê-los. Essa primeira parte é muito fácil.
Não se sabe de nenhum caso em que a massa tenha deixado de
acreditar num novo papão. Assim que o horrendo bicho tira os
véus, ela começa a se agitar e gemer: seu reservatório de medos
primários está sempre pronto a transbordar.”
Esse estilo consagrou dois grupos de personagens midiáticos, bastante
presentes no jornalismo brasileiro pós-redemocratização.

O Mito do Vampiro

Na dramaturgia os grupos de mídia foram buscar os medos ancestrais, o


Vampiro invencível. Cada adversário político é erigido à condição de
“vampiro”, o vilão invencível, capaz de superar todos os obstáculos.
Em todas as matérias, escondem qualquer sinal de humanidade. Todos
seus atos são reportados negativamente, como se ele fosse capaz apenas de
fazer o mal. Seus poderes e influência são superdimensionados.
Desde a redemocratização, vários personagens ocuparam o lugar de
“vampiro” da vez, independentemente de biografia, posições políticas ou
características pessoais. Paulo Maluf foi um dos primeiros “vampiros”.
Depois dele, Orestes Quércia, Leonel Brizola, José Sarney, Lula, José
Dirceu.

O Mito dos Homens Bons


No outro extremo, os aliados são blindados, os erros são ocultados e as
virtudes enaltecidas.
Ao longo das últimas décadas, foram criados vários “homens bons”, em
alguns casos exigindo contorcionismos fantásticos, como Antônio Carlos
Magalhães, José Serra – os dois políticos que mais apoiaram os grupos de
mídia - o Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes, o
ex-senador Demóstenes Torres.
Antes de se tornar “homem bom”, o ex-Ministro Ayres Britto foi alvo de
denúncia pesada.
Ayres foi um dos primeiros defensores da aplicabilidade da Lei de Ficha
Limpa no STF. Havia uma votação envolvendo o ex-governador do DF,
Joaquim Roriz. Um advogado, genro de Ayres, procurou o candidato e,
mediante um preço exorbitante, ofereceu-se para ser contratado. Seria a
maneira do sogro declarar-se impedido e não participar da votação, abrindo
possibilidade de Roriz não ser condenado. Havia um precedente nesse tipo
de jogada, conforme o genro revelou a Roriz.
O próprio Roriz divulgou um vídeo com a denúncia e os jornais
repercutiram.
Nas semanas seguintes, Ayres Britto tornou-se o mais radical defensor
dos interesses da mídia. Foi o principal artífice do fim da lei da imprensa,
comprometendo o direito de resposta. Protagonizou vários seminários em
que a liberdade de imprensa era apresentada como um valor absoluto.
Na presidência do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) criou um grupo
especialmente para defender grupos jornalísticos eventualmente sob a
pressão de algum juiz mais severo. Fez o mesmo na OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil). E foi contratado pela Rede Globo para presidir o
prêmio de qualidade conferido ao poder judiciário.
Nunca mais a denúncia contra o genro voltou a ser lembrada.
Historicamente, esse repertório de estratagemas jornalísticos sempre foi
uma arma dos grupos de mídia, mais facilmente empregadas em períodos
sem contraponto.
Mas, aí, apareceu a Internet.
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A era da Internet
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O cartel brasileiro e a Internet

Antes da Internet, o jogo da mídia brasileira era basicamente provinciano,


mesmo no chamado jornalismo de opinião.
Quatro grandes grupos nacionais pautavam o mercado - Globo, Abril,
Folha e Estado. A partir deles a opinião transbordava para redes menores de
rádio e televisão, um conjunto de grupos regionais - em geral, associados à
Globo -, a jornais regionais e a rádios independentes.
Toda publicidade nacional e a maior parte da publicidade pública era
alocada nos grandes grupos nacionais. E ações menores destinadas aos
grupos regionais (não ligados às redes).
O critério “técnico” básico de alocação de verbas consistia em colocar
mais em veículos que proporcionassem maior audiência. Obviamente as TVs
abertas sempre foram mais beneficiadas, por chegar em quase 100% dos
lares brasileiros.
Esse modelo fundava-se em algumas âncoras dúbias.
A primeira, nas formas de aferição de audiência - IVC (Instituto
Verificador de Circulação) para a mídia impressa; e IBOPE para a mídia
televisiva e radiofônica. Eram excluídos os pequenos veículos sem
condições de bancar a filiação a um dos dois serviços.
Quando começou a cair a tiragem da Veja, suspeitava-se que um dos
estratagemas para turbinar a tiragem consistia em prorrogar a assinatura
mesmo sem o consentimento do assinante e mesmo sem pagamento.
Procedia-se a uma vasta distribuição de assinaturas e tudo entrava na conta
das assinaturas pagas – a métrica que vale para medir tiragem. O custo da
distribuição compensava mais do que a queda proporcional no faturamento
publicitário caso a tiragem real fosse revelada.
No caso das TVs, o agente legitimador era o IBOPE. Em 2014 houve uma
queda radical da audiência da Globo. Há suspeitas no ar de que essa
aceleração da queda foi uma espécie de encontro de contas, ante a iminência
da entrada de novos medidores de audiência e também da venda do IBOPE
para um grupo internacional.
Durante décadas Globo-Ibope era uma aliança mais férrea que Microsoft-
Intel.
Até então, as agências de publicidade admitiam anunciar apenas em
veículos auditados ou pelo IVC ou pelo IBOPE.
A segunda âncora foram práticas de cartelização junto às agências de
publicidade, os chamados BVs (Bônus de Veiculação) pelo qual os grandes
grupos instituíam tabelas progressivas de remuneração das agências de
publicidade de acordo com o volume de publicidade que trouxessem.
Institucionalizou-se um ambiente de ampla promiscuidade entre veículos,
agências e institutos de medição de audiência. E com a formação de
cartórios inconcebíveis em tempos de Internet, como a publicidade legal – a
obrigatoriedade de as empresas de capital aberto publicar balanços em
jornais de ampla circulação.
Com a Internet caíram as principais barreiras que impediam a entrada de
qualquer novo ator no mercado de opinião. No broadcasting, os entrantes
dependiam de concessões públicas; no impresso, de investimentos em
máquinas, comercialização, redação, hábitos de leitura consolidados e
cartelização da publicidade.
Com a confluência da mídia, entraram no jogo dois super-jogadores: as
teles e as redes sociais (Facebook e Google). Nos Estados Unidos, ambos já
levaram da mídia tradicional toda publicidade nacional, por serem mais
abrangentes e permitirem focalizar mais a clientela.
Com a Internet, a crise dos grupos de mídia se desdobra em várias
frentes.

O fim do monopólio da audiência


Com a Internet, duas barreiras deixaram de existir: a barreira da audiência e
a barreira dos medidores de audiência.
A audiência de qualquer site ou blog pode ser auditada em tempo real por
sistemas do Google ou por sistemas mais especializados.
A Internet rompeu definitivamente com as barreiras entre a mídia e outros
setores. Na disputa por públicos e publicidade entram sites de compras,
portais de entretenimento, grupos religiosos, torcidas de futebol.
O que vende mais carro ou imóvel: uma publicidade em jornal impresso,
em um site jornalístico ou em um portal especializado? O anúncio de uma
geladeira é mais eficaz na página interna de um jornal ou no site de uma loja
de departamentos?Quem tem mais credibilidade perante seu público: um
jornal ou um pastor?
Esse é o drama: portais de comércio online ou de outros tipos de
audiência passaram a competir no mercado publicitário com os grupos
jornalísticos.
Em 2014, o ranking da Alexa (o mais conhecido medidor de audiência em
Internet) trazia dados surpreendentes sobre o Brasil.
Na lista dos 25 sítios de maior audiência do país, os quatro primeiros
eram de redes internacionais: Google brasileiro, Facebook, Google
internacional, Youtube. Só então apareciam dois brasileiros: UOL e Globo.
Na sequência, quatro estrangeiros: Yahoo, Live (antigo Hotmail),
Allexpress, Youradexchange. Na 10o posição o Mercado Livre; na 13a o
Netshoes; na 16a o Megaoferta. Só então a Abril na 17o. Por alguma razão
não entrou o Buscapé – que tinha enorme audiência.
Nos Estados Unidos, os dois últimos bastiões da imprensa – os anúncios
de produtos nacionais e os classificados – já migraram para outros veículos
digitais.
Usando as armas de mercado, não haveria como os grupos de mídia
reagirem a essa invasão dos novos hunos, armados até os dentes com o
estado de arte da tecnologia da comunicação.
Foi quando, do Norte veio a luz: um empresário com feições de gangster,
arrojado, sem limites éticos ou comerciais, que saiu da Austrália, valeu-se
da enorme liquidez do mercado financeiro internacional, atravessou o mundo
adquirindo jornais até se estabelecer nos Estados Unidos.
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O padrão Murdoch
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Murdoch define a estratégia de sobrevivência

O australiano radicado nos EUA definiu a estratégia de


sobrevivência da velha mídia: um jogo intenso de manipulação
visando empalmar o poder político para impedir a ascensão da
nova mídia.

O fator Rupert Murdoch


Quando a Internet explodiu, todos os grupos de mídia tradicionais sentiram-
se ameaçados.
A reação mais espúria partiu do magnata australiano Rupert Murdoch. Foi
nele que os quatro grandes grupos de mídia - Globo, Abril, Folha e Estado –
espelharam-se para montar o pacto de 2005.
Em algum tempo escondido na memória, o jornalismo brasileiro inspirou-
se na sofisticação do New Journalism de Tom Wolfe, Gay Talese e Norman
Mailer; nas reportagens-verdade de Truman Capote; e até no jornalismo
gonzo, do repórter vivendo os riscos relatados na reportagem.
Mas nenhum estilo influenciou mais do que o de Murdoch.
Ele surgiu no rastro da globalização. Valeu-se do mercado de capitais,
promoveu uma série de aquisições nos diversos continentes, adquiriu uma
rede social, um estúdio de cinema, a 21st Century Fox e, através da News
Corporation, jornais em diversos países.
Ressuscitou o mais abjeto estilo da história, continuador de William
Randolph Hearst e outros “barões ladrões”, transformando o jornalismo em
uma máquina de assassinar reputações, em um instrumento rude, truculento
de participação no jogo político e de notícias, sem nenhuma sofisticação a
não ser a exibição permanente da força bruta, o jorrar intermitente do esgoto.
Coube a Roberto Civita, presidente da Editora Abril, captar o novo
movimento e importá-lo para o Brasil.
A partir de 2005, tornou-se o padrão dos grupos de mídia brasileiro,
inaugurado pela revista Veja, imitado pela Folha e disseminado por diversos
comentaristas da Globo. Contribuiu para essa adesão acrítica o
desaparecimento dos capitães de mídia do período anterior – Ruy Mesquita,
do Estadão, Otávio Frias, da Folha, e Roberto Marinho, da Globo. Sem a
visão estratégica dos pais, a nova geração de donos de mídia acolheu
passivamente a liderança de Roberto Civita.
Da noite para o dia, o cenário jornalístico brasileiro ficou coalhado de
imitações de personagens funambulescos, tentando emular o modelo
grosseiro da Fox, com todos os veículos praticando o mesmo estilo de
jornalismo murdochiano.
O início do estilo Murdoch
O modelo de jornalismo Murdoch foi montado com as seguintes
características:
1. Buscou na extrema direita - no caso o Tea Party - o linguajar
chulo e agressivo e o compêndio de preconceitos. Usou o
preconceito como recurso jornalístico para conquistar a classe
média, bastante sensibilizada pelos movimentos de inclusão
social nos emergentes e pelos fluxos migratórios nos países
centrais.
2. Criou um inimigo externo, não mais a União Soviética, mas um
novo fantasma. Por lá, o Islã; por aqui, a Bolívia e a Venezuela.
Não havia mais o receio das bombas da Guerra Fria, mas de
outros fantasmas imemoriais, as ideias que penetram
subliminarmente no cérebro dos incautos levando-os para o reino
das trevas. Como disse Arnaldo Jabor em um comentário clássico
na Globo, o comunismo explodiu e disseminou milhares de vírus
pelo mundo, contaminando a cabeça de todos os democratas.Essa
versão dramatizada da “Guerra dos Mundos”, do “Monstro da
Lagoa Negra”, da propaganda subliminar – consagrada no auge da
Guerra Fria - acabou se constituindo no roteiro geral do grupo
Fox e de seus emuladores brasileiros.
3. Valeu-se do conceito consolidado de liberdade de imprensa
para se blindar e promover uma ampla ofensiva de assassinatos
de reputação, de disseminação de notícias falsas, contra
adversários: fossem jornalistas de outros veículos, políticos,
empresários e intelectuais. E, por trás do macarthismo, montou
jogadas comerciais de interesse do grupo.
4. Promoveu a ridicularização do cidadão comum – e dos críticos
e adversários -, como maneira de ressaltar a superioridade
intelectual do seu leitor.
5. Passou a desconstruir todo o sistema de informações com fake
News produzidos pela Fox News e disseminados pelas redes
sociais, um ensaio da guerra híbrida que se instalava no
ecossistema das redes sociais. Tratava-se de uma técnica de
confundir tanto os fatos, desconstruindo os sistemas de aferição,
para poder impor sua própria narrativa, recheada de inverdades e
teorias conspiratórias.

O fenômeno Fox
A tentativa mais ousada de Murdoch foi entrar no mercado digital com a
rede social MySpace.
A rede foi derrotada pelos puros-sangues Google e Facebook.
Percebendo a derrota, Murdoch decidiu levar a guerra para o campo da
política. Conseguiu montar uma aliança inédita dos grupos de mídia norte-
americana contra a eleição de Barack Obama.
Explorou recursos ancestrais de manipulação da informação para
estimular um clima de intolerância exacerbada, apelando para os piores
sentimentos de manada.
O candidato de Murdoch perdeu. Não por outro motivo, uma das
primeiras reuniões de Obama, eleito, foi com os presidentes das redes
sociais - Apple, Google e Facebook.
O ponto central da disseminação desse modelo, no entanto, foi a Fox
News.
Lançada em 1996, a emissora conquistou uma audiência diária de 2
milhões de telespectadores, mais do que a soma da CNN e da MSNBC.
Contratou diversos pré-candidatos republicanos à presidência, promoveu o
Tea Party, contribuiu financeiramente com o Partido Republicano e grupos
de ultradireita e foi relevante para a vitória republicana em 2010.
Disseminou teorias conspiratórias, falseou informações, espalhou boatos
- como a de que Barack Obama era terrorista, ou que teria estudado em uma
escola islâmica.

Em 2008, tentou ligar Obama com Bill Ayers - terrorista americano da


década de 70, e a Louis Farraknan (líder da Nação islâmica nos EUA).
Memorando interno do grupo recomendava aos repórteres enfatizar que no
livro “Sonhos de meu pai”, Obama divulgava ideias simpáticas ao
marxismo.
Um e-mail que chegou a outros veículos de mídia explicitava melhor o
espírito Murdoch. Ordenava aos repórteres que “evitem dizer que o planeta
aqueceu (ou resfriou) em qualquer frase sem apontar em seguida que tais
teorias são baseadas em dados que críticos questionam”.
Seis meses após a invasão do Iraque, 67% dos seus telespectadores
acreditavam que Sadam Hussein tinha se associado à Al-Qaeda, e 60%
juravam que a maior parte dos cientistas garantia que não havia aquecimento
global.
Políticos e jornalistas que ousassem criticar a Fox News tornaram-se
alvos de seus ataques. Da mesma maneira que o Clarin, na Argentina, ou
Veja no Brasil.
Apenas um jornalista ousou se erguer contra aquela máquina de assassinar
reputações, Jon Stewart que, em seu “Daily Show”, ironizava a paranoia da
rede.
O restante dos jornalistas amarelou - da mesma maneira que no Brasil –
mesmo sabendo que aquele estilo contaminava a imagem de todos
indistintamente. E o principal fator foi o medo de ser emboscado por uma
equipe de filmagem, atacado nos shows de televisão, ou ser acusado de
esquerdista ou ainda não ter mais acesso ao mercado de trabalho da mídia
convencional.
Mesmo após a vitória de Obama, a Fox continuou espalhando seu terror.
Durante o debate sobre o aumento do teto da dívida pública, foi a Fox quem
estimulou, através de seus comentaristas em rádio e televisão, o extremismo
de muitos republicanos no Congresso.

O tabloide News of The World


O escândalo maior do fenômeno Murdoch ocorreu com o tabloide News of
The World, até então o jornal mais vendido aos domingos no Reino Unido.
Em 2005 foi alvo de uma série de denúncias, de contratar detetives
particulares e policiais para grampear celebridades e membros da realeza.
Nada que chegasse perto de uma associação com organizações criminosas,
como ocorreu no Brasil com a Veja.

Algum tempo depois, The Guardian denunciou o jornal por ter grampeado os
atores Jude Law e Gwyneth Paltrow.
O auge do escândalo foi a descoberta de que chegou a grampear o celular
da menina Milly Dowler, de 13 anos, sequestrada e morta. Na tragédia do
atentado ao metrô de Londres, em 2005, o jornal interceptou mensagens dos
celulares dos parentes.
Os abusos reiterados levaram à prisão do editor do jornal, Clive
Goodman, e do detetive particular Glen Mulcaire. E ele nem chegou à
ousadia da revista Veja, que se associou a uma organização criminosa –
Carlinhos Cachoeira –, praticou grampos ilegais, manipulou notícias
envolvendo no próprio STF (Supremo Tribunal Federal), sem ser
incomodada pelo Ministério Público Federal e outros órgãos de controle.
Depois de Murdoch, pelo menos no Reino Unido o poder público,
partidos políticos e opinião pública em geral sentiram a necessidade
premente de instrumentos de regulação que impedissem os abusos de poder
da mídia. Surge daí o relatório Levenson.

A regulação da mídia e o relatório Leveson


As estripulias dos jornais de Murdoch levaram o Parlamento inglês a tratar
de forma mais severa a regulação da mídia através da Comissão Leveson,
presidida pelo juiz Brian Leveson, que levantou os abusos da imprensa
britânica12

Sobre as práticas antiéticas da imprensa


Quanto aos exemplos de alta visibilidade da prática antiética da imprensa
que sugerem o contrário, argumenta-se que são aberrações e não refletem a
cultura, as práticas ou a ética da imprensa como um todo.
Eu rejeito totalmente essa análise.
Obviamente, a maioria das reportagens não gera problemas relativosà
difamação, privacidade ou direitos de terceiros e, em sua maioria,
sãoescritos com alto (ou muito alto) padrão de integridade e correção.
Porém, o número significativo de reportagens que não satisfaz esse
padrão não pode ser ignorado e não tenho dúvida de que refletem uma
cultura (ou, talvez mais exatamente, uma subcultura) dentro de alguns setores
de alguns jornais.
Sobre o desapreço às leis
Quando uma notícia é considerada importante, as disposições da lei
pouco contam e, em relação ao Código, suas disposições específicas também
são manipuladas ou violadas – sem falar de sua essência.

Sobre os abusos generalizados


Um número excessivo de reportagens em um número excessivo de jornais foi
objeto de reclamações de um número excessivo de pessoas, sendo que
pouquíssimos jornais assumiram a responsabilidade ou levaram em conta as
consequências para os indivíduos envolvidos.
(...). Além disso, como comprovado em diversas reportagens em
diferentes jornais, é evidente que a deturpação e o exagero acontecem em
grau muito maior do que poderia ser considerado como comentário legítimo
ou justo. Em um setor que supostamente serve para informar, toda
informação errônea e, particularmente, toda distorção, deveria ser motivo de
preocupação. Porém, quando há constante representação deturpada de grupos
sociais, conflitos de interesse ocultos e alarmismo irresponsável na área
científica, o risco para o interesse público é evidente.”

Sobre o conceito de liberdade de imprensa


O segundo ponto foi a discussão sobre limites e responsabilidades da
liberdade de imprensa.
Como resultado deste princípio, que é um dos pilares da nossa
democracia, a imprensa tem direitos importantes e especiais neste país, que
reconheço e tenho apoiado voluntariamente como advogado e juiz.
Junto com esses direitos, entretanto, há responsabilidades para com o
interesse público: respeitar a verdade, obedecer a lei e defender os direitos
e liberdades individuais. Em suma, honrar os princípios proclamados e
escritos pela própria imprensa (e, em grande medida, refletidos no Código
de Conduta dos Editores).”
As provas apresentadas no Inquérito demonstraram, sem sombra de
dúvida, que, com frequência excessiva na última década – considerada
melhor que as anteriores – e antes dela, estas responsabilidades nas quais o
público deposita grande confiança, foram simplesmente ignoradas.”

Sobre a inutilidade da auto-regulação


(...) É, de fato, a função da imprensa chamar aqueles que têm poder à
responsabilidade. É isso, de fato, o que o jornal The Guardian fez em
relação ao News of the World, e o que a ITV e, depois, [o programa]
Panorama fizeram em relação à BBC104
Nenhuma dessas revelações levou qualquer jornal a conduzir uma
investigação, seja sobre suas próprias práticas, seja sobre aquelas de outros
jornais. Nenhum jornal tentou descobrir – e muito menos revelou – se seus
jornalistas haviam respeitado a lei de proteção de dados.
Alguns jornais prontamente proibiram o uso de detetives particulares na
busca de informações; muitos levaram algum tempo para tomar essa medida
e outros não fizeram nada.

Sobre o corporativismo exacerbado da mídia


(...) A Comissão de Reclamações da Imprensa (PCC) não só aceitou as
garantias do News of the World, como também, em uma estranha incursão em
uma investigação dos padrões, ao invés da resolução de reclamações,
condenou o Guardian por ter publicado os resultados da investigação: seu
relatório a respeito disso foi desde então tirado do ar.
(...) Quando investigou questões importantes, a Comissão tentou desviar
ou minimizar as críticas à imprensa. Pouco fez ao responder à Operação
Motorman. Suas tentativas de investigar alegações de grampo telefônico, que
deram apoio ao News of the World, não tiveram qualquer credibilidade.
Exceto por solicitar respostas a perguntas, não foi realizada qualquer”.

Sobre as tentativas infrutíferas de disciplinar a mídia


Há muito se reclama que certos setores da imprensa tratam brutalmente os
outros, sejam eles indivíduos ou o público em geral, sem qualquer interesse
público justificável. As tentativas de responsabilizá-los por isso têm sido
infrutíferas. As promessas feitas não são cumpridas. Mesmo as mudanças
feitas depois da morte de Diana, Princesa de Gales, duraram pouco.

O mito da liberdade de imprensa


Há muita dificuldade conceitual, especialmente no Judiciário, para entender
o papel dos grupos de mídia e de conceitos como liberdade de imprensa,
liberdade de opinião e direito à informação.
Tratam como se fossem conceitos similares.
Direito à informação e liberdade de expressão são direitos dos cidadãos,
cláusulas pétreas da Constituição.
Liberdade de imprensa é um direito acessório das empresas jornalísticas,
visando dar-lhes condições de cumprir corretamente importantíssima missão
constitucional que lhe foi conferida. Portanto, só se justifica se utilizado para
o cumprimento correto da missão.
No Brasil, no entanto, o conceito de liberdade de imprensa tornou-se
extraordinariamente elástico, fugindo completamente dos princípios que o
originaram.
Os grupos de mídia trabalham com jornalismo, entretenimento e
marketing. E tem interesses comerciais próprios de uma empresa privada.
Jogaram todas as atividades de mídia debaixo da proteção da liberdade
de imprensa, mesmo as não jornalísticas, tornando-as imunes a qualquer
forma de controle seja de costumes seja da mera classificação indicativa.
Anos atrás, uma procuradora da República, Eugênia Gonzaga, intimou a
Rede Globo devido a conceitos incorretos sobre educação inclusiva
propagados em uma novela. Foi alvo de artigos misóginos do colunista
Arthur Xexéo - “acusando-a” de pretender interferir no roteiro, ferindo a
liberdade de expressão.
A ação proposta contra o apresentador Gugu, por ocasião da falsa
reportagem sobre o PCC, rendeu reportagem desmoralizadora da revista
Veja contra os proponentes da ação, em nome da liberdade de expressão.
A mera tentativa do Ministério da Justiça de definir uma classificação
etária indicativa para programas de televisão foi torpedeada pela rede
Globo, sob a acusação de interferência na liberdade de expressão.
Em todos os casos, a Justiça derrubou as ações em nome da liberdade de
imprensa.
Quando o conceito de liberdade de imprensa foi desenvolvido – no bojo
da criação do modelo de democracia norte-americano – o pilar central era o
da mídia descentralizada, exprimindo a posição de grupos diversificados,
permitindo que dessa atoarda nascessem consensos e representações.
As rádios comunitárias eram a expressão mais autêntica desse papel
democratizante da mídia, assim como as mídias regionais.
Hoje as rádios comunitárias são criminalizadas. E as concessões públicas
tornaram-se moeda de troca com grupos políticos, com coronéis eletrônicos,
que a tratam como propriedade privada. Aceita-se o aluguel de horários para
grupos religiosos, ou a venda das concessões para outros grupos, como se
fossem propriedade privada e não um ativo público.
Tudo isso decorre da enorme concentração do setor, responsável por
inúmeras distorções. Houve perda de representatividade da mídia regional,
esmagamento das diferenças culturais, ideológicas.
Daí o movimento, em muitos países, por um marco regulatório que de
maneira alguma interfira na liberdade de expressão. Mas que permita a
desconcentração de mercado, promovendo o florescimento de novos grupos
de mídia que tragam a diversificação e a pluralidade para o setor.
Enfim, instituir a verdadeira economia de mercado no setor.
Enquanto o mundo debatia esses limites da liberdade de imprensa,
considerando-se a salvo de qualquer tentativa de regular sequer o direito de
resposta, sob a inspiração de Roberto Civita, os grupos nacionais tentavam
expandir seus limites éticos de atuação, tal como Murdoch havia feito nos
Estados Unidos.

12 (Levenson)
.

Murdoch chega ao Brasil

A influência de Roberto Civita para montar o pacto, espelhando


em Murdoch na campanha de Obama.

A versão brasileira de Murdoch


A importação do estilo Murdoch criou dois movimentos nas redações.
Aberto o novo mercado para estilo agressivos-conspiratórios, jornalistas
tradicionais trataram de emular os personagens da Fox e atender à nova
demanda.
O primeiro deles foi Tales Alvarenga, que entrou na Veja nos anos 70 e
construiu uma carreira burocrática interna, que o conduziu à chefia da
redação nos anos 90.
Sua ascensão coincidiu com as novas atribuições que Roberto Civita se
conferiu, de passar a ser o diretor de fato na revista.
Mais tarde Tales foi nomeado diretor editorial da Veja, mantendo uma
coluna na revista.
Nessa coluna, foi o primeiro a exercitar o estilo pittbull.
O segundo movimento foi a estratégia conjunta dos grupos de mídia de
redesenhar o universo de personalidades da mídia de massa a partir de uma
guerra cultural.
Para se preparar para a guerra seria necessário reconstruir o Olimpo das
celebridades, expurgando jornalistas ou celebridades que pudessem resistir
ao novo modelo e repovoando com a geração pittbull, que aceitasse entrar na
guerra de extermínio contra os inimigos. Processo semelhante foi utilizado
pelo Clarin, na Argentina, de ataques inclementes contra intelectuais e
jornalistas do campo político oposto.

A noite de São Bartolomeu da mídia


Lançado em 2004, o filme “The Crusader” – (no Brasil, recebeu o nome de
“O Poder da Mídia”) - dirigido por Bryan Goeres – serviu de inspiração , ao
expor métodos já empregados em outros países.

É a história de uma disputa no mercado de telecomunicações, na qual um


dos lados coopta o dono da rede de televisão.
A estratégia consistiu em escolher um repórter desconhecido e turbiná-lo
com vários dossiês até transformá-lo em celebridade. Tornando-se
celebridade, ganha poder para ser utilizado nas manobras do grupo.
Por aqui o modelo foi testado com um colunista de temas culturais, Diogo
Mainardi. Sem conhecimentos maiores do mundo político e empresarial,
durante algum tempo foi alimentado com dossiês, ampla liberdade para
ofender, agredir.
Lançado seu livro, os jornais seguiram o script de “construir” uma
reputação e alçá-lo à condição de celebridade instantânea.
Uma resenha do Estadão comparou-o a Carlos Lacerda. Uma reportagem-
perfil na Veja tratou-o como “o guru do Leblon”. Ambas as peças se
tornaram símbolos clássicos do ridículo desses tempos de trevas. Seus
ataques a vários jornalistas serviram de álibi para as organizações fazerem o
expurgo e montarem a grande noite de São Bartolomeu da mídia.
A segunda parte do jogo foi a reconstrução do Olimpo midiático com
novas divindades, que se dispusessem a preencher os requisitos exigidos, de
adesão incondicional à estratégia do cartel, ganhando ou recuperando, em
troca, o status de celebridade. Não bastava apenas a crítica contra o governo
e o partido adversário. Tinha que se alinhar com o preconceito e a
intolerância, expelir ódio por todos os poros, tratar cada pessoa que ousasse
pensar diferente como inimigo a ser destruído.
Vários candidatos se ofereceram.
De repente, doces produtores musicais, esquecidos no mundo midiático,
transformaram-se em colunistas políticos vociferantes e voltaram a ganhar os
holofotes da mídia; intelectuais sem peso no seu meio tornaram-se fontes em
permanente disponibilidade repetindo os mesmos mantras; humoristas
ganharam programas especiais e roqueiros a volta da visibilidade em troca
das catilinárias.
Com autorização para matar e para criar a nova elite de celebridades
midiáticas, diretores de redação julgaram que eles próprios poderiam
cavalgar a onda e ocupar o posto de liderança da nova intelectualidade que a
mídia pretendia forjar a golpes de manchete.
Um acordo com a editora Record garantiu lançamentos de livros e um
trabalho de divulgação visando transformá-los em celebridades.
Cada lançamento de membros do grupo recebia cobertura intensiva de
todos os veículos do cartel, páginas na Veja e na Época, resenhas na Folha,
Globo e Estadão, entrevistas na Globonews e no programa do Jô.
Durante algum tempo, o mundo intelectual brasileiro testemunhou um dos
capítulos mais vexaminosos de auto louvação, uma troca de elogios e de
favores que empurrou a velha mídia para o provincianismo mais obtuso.
Diretor-adjunto da Veja, Mário Sabino lançava um romance que recebia
uma crítica louvaminhas na própria Veja, escrita por um seu subordinado; e
campanhas de outdoor em ônibus bancada pela Record - que disseminava a
lenda de que o livro estaria sendo recebido de forma consagradora em
vários países.
O livro de Ali Kamel, diretor da Globo, foi saudado pela revista Época,
do mesmo grupo Globo, como um dos dez mais importantes da década.
Mereceu uma página de crítica consagradora da Veja.
Graças à democratização trazida pelas redes sociais, os neo-intelectuais
não resistiram à exposição.

A indústria do anticomunismo
A uniformização do discurso raivoso se deu através da retomada da indústria
do anticomunismo, a mais eficaz ideia-síntese para a criação dos fantasmas
ancestrais.
Nos anos 20 a 40, o anticomunismo penetrou fortemente no imaginário
nacional. Na Igreja, devido às perseguições religiosas em alguns países
comunistas. Nas Forças Armadas, devido à chamada Intentona Comunista,
com os oficiais mortos de madrugada, além da visão internacionalista dos
comunistas se sobrepondo ao conceito de poder nacional. Nos empresários,
devido ao combate à propriedade privada. No meio político, devido ao seu
caráter antidemocrático.
Com o tempo, todos esses fatores esfumaçaram e o comunismo virou um
retrato na parede. A Guerra Fria acabou em 1963, no encontro de Kennedy
com Kruschev; o comunismo terminou em fins dos anos 80, com a queda do
muro de Berlim e, depois, com a Glasnot soviética.
Havia no Brasil um sentimento difuso de desconforto com a corrupção, os
conchavos políticos, a proteção aos campeões nacionais. Mas havia desafios
para transformar o desconforto em ação contra o governo.
O primeiro, é que a maioria dos vícios apontados são comuns a todos os
partidos políticos, típicos do modelo político torto em vigor.
O segundo, é que a dispersão das críticas atrapalhava a unificação do
discurso.
O discurso anticomunista permitiu unificar todas as insatisfações, da
Igreja tradicional e dos evangélicos contra os avanços morais; dos
empresários, contra a burocracia, a carga fiscal e o excesso de intervenção
do Estado; da população em geral, contra a corrupção e os acordos políticos
espúrios; dos militares, contra os que pretendiam escarafunchar os crimes da
ditadura.
Debitando tudo na conta do comunismo-chavismo-bolivarismo-castrismo
ou o ismo que fosse, tudo ficava facilitado: reduzia-se toda a crítica a
chavões pouco sofisticados, de fácil assimilação para a média da opinião
pública midiática. E não havia necessidade de trabalhar o discurso para
cada público. As análises antichavistas de Arnaldo Jabor eram do mesmo
nível dos humoristas de shows “stand ups” ou de roqueiros atuando no
Twitter.
É nesse ambiente de intolerância, de macarthismo e assassinatos de
reputações, que Veja define o estilo dominante. Em pouco tempo, o ar
pestilento que emanava na editora espalhou-se por todo o universo
jornalístico da velha mídia.
.

O jornalismo brasileiro na era da infâmia

A degradação jornalística da revista Veja foi fruto de dois fenômenos


simultâneos: a mistura da cozinha com a copa (redação e comercial) e o
afastamento dos princípios jornalísticos básicos, a partir do momento em
que Roberto Civita decidiu assumir o comando editorial da revista,
assessorado por José Roberto Guzzo, que se tornou o principal cinzelador
do jornalismo da revista.
Os grupos de mídia sempre tiveram interesses paralelos em jogo. Mas
havia algum pudor
Para não contaminar as redações, se procurava tratar interesses
comerciais no âmbito das cúpulas das empresas. Sempre havia maneiras
“técnicas” de vetar determinadas matérias que não interessavam, assim como
conferir tratamento jornalístico a matérias de interesse da casa ou mesmo se
meter em guerras comerciais sem chamar a atenção demasiadamente.
Para administrar esse território delicado, as boas redações jamais
prescindiram de comandantes fortes e competentes. São os avalistas do
jornalismo perante a empresa e da empresa perante a redação. Não vão
contra a lógica comercial, mas são os radares, aqueles que informam até
onde se pode avançar no noticiário sem comprometer a credibilidade da
publicação.
Obviamente, a contrapartida era a influência pessoal dos chefes de
redação que, em alguns momentos, tornava-se mais relevante que a dos
próprios proprietários.
A nova geração de donos abriu mão desses comandantes, substituindo-se
por chefias de redação de menor peso e dispostas a concordar com todos os
abusos.
Havia um fator a mais a estimular a falta de controle: a desobediência
ampla aos princípios jornalísticos básicos. E aí se encontra um farto
material sobre o mais completo compêndio de anti-jornalismo que a história
moderna da mídia brasileira registrou: o estilo Veja de jornalismo.

O estilo Veja de antijornalismo


Desde os anos 80, cada vez mais Veja se especializaria em “construir”
matérias que assumiam vida quase independente dos fatos que deveriam
respaldá-las. Definia-se previamente como “seria” a matéria. Cabia aos
repórteres apenas buscar declarações que ajudassem a colocar aquele monte
de suposições em pé.
Essa preparação prévia da reportagem ocorria toda segunda-feira nas
reuniões de editores. Era chamada de “pensata”.
O que era um estilo criticável, com o tempo acabou tornando-se uma
compulsão, como se a revista não mais precisasse dos fatos para compor
suas reportagens. Ela se tornou uma ficção ampla, algo que é de
conhecimento geral dos jornalistas brasileiros.
O vício tornou-se tamanho que transbordou para todos os temas, não
apenas para as jogadas políticas. Em maio de 2015, em sua página no
Facebook, o músico Marcelo Nova publicou um protesto contra manipulação
de entrevista dada à revista.
“Fiquei surpreso quando li na revista Veja desta semana (13 de
maio 2015), uma matéria sobre a volta da minha banda Camisa
de Vênus Oficial, na seção CONVERSA.
Algumas das perguntas que lá estão nem sequer me foram feitas e
as respostas ficaram a cargo de vai se saber quem.
Como se não bastasse essa abordagem amadora, há uma suposta
frase minha sobre Raul Seixas: ‘Ele bebia muito e não aparecia
para as apresentações.’
Eu e Raul fizemos juntos 50 shows e ele compareceu em
absolutamente todos. Foi muito mais profissional do que quem
publicou este absurdo.
Deixo uma pergunta: A quem interessa esse tipo de mentira
barata?”

O modelo Veja de reportagem


Antes de análises de caso, vamos a uma pequena explicação sobre como foi
construído o modelo Veja de reportagem, que acabou sendo imitado por
outras publicações.
1. Levantam-se alguns dados verdadeiros, mas irrelevantes ou que nada
tenham a ver com o contexto da denúncia, mas que passem a sensação de que
o jornalista acompanhou em detalhes o episódio narrado.
2. Depois juntam-se os pontos, cria-se um roteiro de filme, muitas vezes
totalmente inverossímil, calçado em alguns fatos irrelevantes, supostamente
verdadeiros.
3. Para “esquentar” a matéria ou se inventam frases que não foram
pronunciadas ou se tiram frases do contexto ou se confere tratamento de
escândalo a fatos banais. Tudo temperado por forte dose de adjetivação.
O caso “boimate” é clássico. Era um trote de 1o de abril da New Scientist
- sobre um cruzamento de boi com tomate que resultou em uma carne com
molho. A revista incumbiuum repórter de obter uma frase de efeito de um
cientista da USP.
O repórter perguntou o que o cientista achava. A resposta foi que era
impossível tal experimento. O repórter tinha que voltar com a frase que se
encaixasse na matéria, então insistiu: “E se fosse possível! “. O cientista,
ironizando: “Seria a maior revolução da história da genética”.
A matéria saiu com a frase do infeliz dizendo que era a maior revolução
da história da genética.
Vamos a alguns exemplos para entender, na prática, em que consiste esse
estilo Veja, a partir de algumas obras de Policarpo Júnior, diretor da
sucursal de Brasilia e peça central no estilo Veja de denúncias, que seria
depois adotado por outras revistas semanais.

O caso Chico Lopes


Em janeiro de 1999, quando houve o estouro no câmbio, seguiu-se uma
catarse geral na mídia, uma busca de escândalos a qualquer preço. Foram
publicados absurdos memoráveis que acabaram se perdendo no tempo –
como o de que Fernando Henrique Cardoso se valia do seu Ministro-Chefe
da Casa Civil Clóvis Carvalho para informar os banqueiros sobre as
mudanças cambiais.
O escândalo refluiu, cada publicação tratou de esquecer as ficções que
plantou e a vida prosseguiu.
Na época, Veja publicou uma capa acusando Chico Lopes de ter
beneficiado os bancos Marka e FonteCindam com informações
privilegiadas. Chegou a afirmar que quatro bancos pagavam US$ 500 mil
mensais para ele.

A matéria não respondia à questão central: se os dois bancos recebiam


informações privilegiadas de Chico Lopes, se Chico assumiu a presidência
do Banco Central com a missão precípua de mudar a política cambial,
porque apenas eles quebraram na mudança? Na época, a explicação de Veja
já era absurda. Assoberbado com os problemas da mudança cambial, Chico
tinha se esquecido de avisar seus clientes (que lhe pagavam US$ 500 mil
mensais apenas para ter aquela informação, segundo a reportagem).
O mistério persistiu até o dia 23 de maio de 2001 quando saiu a capa da
Veja “A História Secreta de um Golpe Bilionário” um clássico à altura do
“boimate”.
A abertura nada ficava a dever a um conto de Agatha Christie.
O momento mais dramático do governo do presidente Fernando
Henrique Cardoso ocorreu no dia 13 de janeiro de 1999.(...)O
que ninguém sabia é que, desde aquele dia, um grupo
reduzidíssimo de altos membros do governo passou a guardar
um segredo de Estado, daqueles que só se revelam vinte anos
depois da morte de um presidente. Após quatro meses de
investigação e 22 entrevistas com catorze personagens
envolvidos, VEJA desvendou peças essenciais para o
esclarecimento do mistério, que resultou na inesperada, e até
hoje inexplicada, demissão do presidente do Banco Central
apenas duas semanas depois da desvalorização.
A demissão de Lopes tinha sido mais que explicada: os erros na condução
da mudança da política cambial.
O então presidente do Banco Central, o economista Francisco
Lopes, vendia informações privilegiadas sobre juros e câmbio –
e uma parte de sua remuneração saía da conta número 000 018,
agência 021, do Bank of New York. A conta pertencia a uma
empresa do Banco Pactual, a Pactual Overseas Bank and Trust
Limited, com sede no paraíso fiscal das Bahamas. Chico Lopes,
como é conhecido, repassava as informações para dois
parceiros, que se encarregavam de levá-las aos clientes do
esquema. Os contatos entre os três eram feitos por meio de
aparelhos celulares. A Polícia Federal suspeita que os números
sejam os seguintes: 021-99162833, 021-99835650 e 021-
99955055
Salvatore Alberto Cacciola, então dono do banco Marka, do Rio
de Janeiro, descobriu todo o esquema por meio de um grampo
telefônico ilegal e também passou a ter as mesmas informações
privilegiadas. As fitas, que registram as conversas grampeadas,
estão guardadas num cofre no Brasil – e há cópias depositadas
num banco no exterior. Cacciola chegou a custear viagens a
Brasília para que seu contato obtivesse, pessoalmente, as
informações de Chico Lopes. Numa delas, seu contato voou do
Rio a Brasília num jatinho da Líder Táxi Aéreo (o aluguel do
jato saiu por 10 500 reais) e hospedou-se no hotel Saint Paul (a
conta: 222,83 reais). Quebrado com a mudança cambial, que
seu informante não conseguiu avisar-lhe a tempo, Cacciola
desembarcou em Brasília no dia seguinte, 14 de janeiro de 1999,
com o que chamou de “uma bazuca”. Ela estava carregada de
chantagem: ou o BC lhe ajudava ou denunciaria ao país a
existência do esquema. O BC ajudou. Vendeu dólar abaixo da
cotação e, no fim, Cacciola levou o equivalente a 1 bilhão de
reais.
Era um furo fantástico! Em vez de pagar US$ 500 mil mensais, Cacciola
descobrira o modo mais barato de obter informações privilegiadas:
grampeando celulares de quem pagava.
Nem se fale de o contrassenso de alguém experiente em mercado jogar
todo seu futuro no resultado de um “grampo”. Qualquer decisão de mudança
de política cambial seria imprevista, da noite para o dia. Como confiar toda
sua vida financeira a um mero “grampo”?
Segundo a matéria, no dia aziago o grampo falhou e Cacciola quebrou.
Indignado, foi tirar satisfações com Chico Lopes, que cedeu à chantagem.
Como foi montado esse nonsense?
Depois de “22 entrevistas com 14 personagens” envolvidos, Veja havia
conseguido – de fato - as seguintes informações:
1. Com Luiz Cezar Fernandes, ex-controlador do Pactual, em briga com
seus ex-sócios, o número da suposta conta corrente do Pactual em Nova York
de onde sairiam os supostos pagamentos para Chico Lopes. Na verdade, o
número apresentado era o de registro do banco na praça de Nova York, feito
junto ao Banco de Nova York – equivale aquele 001 que você confere nos
cheques do Banco do Brasil.
2. Na declaração de renda de Luiz Bragança (o suposto intermediário de
Chico Lopes no vazamento das informações) algum araponga brasiliense
levantou os números dos três celulares. Ou seja, na versão de Veja, o sujeito
montava um esquema supersecreto para transmitir informações, que
supostamente renderia US$ 500 mil mensais, valendo-se de telefones
celulares – e colocava o número dos aparelhos na sua declaração de renda.
Como tempero final, um apanhado de fatos e dos boatos mais
inverossímeis que circularam por ocasião da mudança cambial.
Citado na matéria, o economista Rubens Novaes enviou carta a Veja
esclarecendo todos esses pontos. A carta jamais foi publicada. Ele limitou-
se a enviar cópias para alguns jornalistas.
Longe de mim afirmar que não houve irregularidade, que Cacciola era
inocente, ou mesmo colocar a mão no fogo por Chico Lopes. Na época,
mesmo, divulguei indícios fortes de que Cacciola tinha, no mínimo, alguém
que lhe passava informações sobre as taxas de juros praticadas pelo Central
- e até sugeri a metodologia para identificar essa prática de “insider”.
Mas era evidente que toda a matéria de Veja era uma ficção ampla.
Longe de exceção, refletia um padrão de “jornalismo” presente em todas
as coberturas bombásticas da revista.
.

A lobista que foi chantageado por Veja

Um dos episódios mais emblemáticos do método Veja de jornalismo foi a


denúncia do suposto envolvimento de Fábio Luis Lula da Silva, o Lulinha,
com o superlobista Alexandre Paes dos Santos, o APS.
A capa de 25 de outubro de 2006 trazia Fábio Luís na capa e, atrás dele,
Lula. O título era “O ‘Ronaldinho’de Lula”. O subtítulo dizia que “o
presidente comparou o filho empresário ao craque de futebol. Mas os dons
fenomenais de Fábio Luís, o Lulinha, só apareceram depois que o pai chegou
ao Planalto”.
O filé mignon da matéria era um boxe com o APS, lobista brasiliense,
velho conhecido da revista, obtendo fornecido a ela algumas capas nos anos
90.
A prova do crime, para a revista, era o fato de Lulinha e Omar Kalil –
sócio dele na Gamecorp – supostamente ocuparem uma sala no escritório do
lobista APS, “em uma imponente mansão com quatro andares e elevador na
sofisticada região da zona sul”.
A reportagem dava detalhes. A sala usada pelos dois tinha 40 metros
quadrados, bem ao lado da sala de APS. Há algumas semanas, estava
mobiliada com duas mesas. Todas as cadeiras eram vermelhas. Havia dois
computadores, duas linhas telefônicas, uma impressora e um quadro na
parede.
Valia-se do velho estratagema de rechear uma mera suspeita com uma
sucessão de detalhes, para passar a impressão de uma apuração meticulosa.
Segundo a reportagem, APS diz apenas: “Eu emprestei a sala, mas não
tenho a menor ideia do que eles faziam lá”. E o texto completava: “seria
ingênuo que dissesse alguma coisa mais comprometedora sobre os vizinhos
de sala e colegas por dois anos”.
Os detalhes não paravam por ali.
Além da sala, APS também teria colocado uma frota à disposição da
dupla. Quando Lulinha e Kalil começaram a frequentar o escritório do
lobista, seus deslocamentos por Brasília eram feitos em Ford Fiesta. Com
cerca de 1,90 metro de altura, Kalil reclamou que o Fiesta era
desconfortável e disse que gostaria de carro mais espaçoso. APS substituiu o
Fiesta por um Omega.
A reportagem prosseguia lembrando que ambos ficavam hospedados na
Granja do Torto ou no Palácio do Alvorada e, quando isso não era possível,
Kalil ia para o Blue Tree, a menos de um quilômetro do Alvorado. Então
qual a razão para ficarem em um escritório manjado, como o do APS?
Não se conhecem bem as razões pelas quais Lulinha e Kalil mantinham
uma sala no escritório do lobista de métodos heterodoxos. O que faziam ali?
Por que despachavam dali? Em busca dessas respostas, Veja descobriu que a
sala foi cedida a Lulinha e Kalil como parte de um acordo dele com a
francesa Arlette Siaretta, dona do grupo Casablanca, um conglomerado de 54
empresas que, entre outras atividades, faz produção de filmes”.
Não tinha resposta lógica. Pela própria reportagem, Lulinha e Kalil não
tinham necessidade de ficar no escritório de APS. Mas ficavam devido a um
acordo com a francesa Arlette.
A reportagem saiu no sábado. Na segunda, reportagem de André Michel,
da Folha, trazia no título “Lobista diz que nunca viu filho de Lula e que ele
não usava sua sala”.

“O Fábio Luís nunca esteve no escritório. Só o vi em fotos publicadas pela


imprensa. O Kalil eventualmente ia lá, mas ele não tinha nenhum negócio
com o escritório. Usou uma sala por conta de um acordo operacional que
mantenho com a Arlete [Siaretta]”, disse APS.
Na edição seguinte, de 1o de novembro de 2006 (em plena campanha
presidencial) a revista insiste no tema, com nova reportagem.
A reportagem começava com uma foto de APS e a declaração entre aspas:
“O Fábio ficava mais ali”.
Visava rebater a entrevista de APS à Folha, negando que conhecesse
Lulinha.
A reportagem de Veja mencionava grampos de conversas gravadas de
APS.
Os advogados de Lulinha entraram, então, com uma ação judicial contra
Alexandre e a Editora Abril S/A. No curso da ação, APS reiterou que jamais
manteve qualquer relação pessoal ou profissional com Fábio Luis.
A reação da Veja foi uma demonstração dos métodos empregados pela
revista. Os advogados juntaram no processo uma gravação ambiental
clandestina, um grampo no lobista, praticado por um repórter.13.
Nela, vê-se o lobista negociando proteção com a revista e o repórter
tentando convencê-lo a bancar a informação. A degravação do grampo, no
entanto, acabou surpreendentemente revelando uma conversa em que o
repórter combina com o lobista o que ele deveria falar:
“Repórter - a matéria... a matéria... ela tem como foco ... e quem
vai possivelmente ... pra capa da revista é o filho do presidente”.
O segundo ponto que é... você tocou num ponto que é central, você
disse assim: ‘ah, rapaz, isso aí é uma trolha do tamanho do
mundo, é ano de eleição...’ ...
(...) . ai lá pelas tantas que eu vou ter que dizer: ‘olha, em Brasília
eles dormiam no Palácio do Planalto, na Granja do Torto e
chegaram até a despachar em alguma mansão-escritório em
Brasília, numa área nobre da cidade’
APS - hum, hum...
Repórter - é... e aí entra você, sei lá, dizendo... é... ou: ‘não quero
falar nada’ ou talvez dizendo a verdade: ‘olha, eu disponibilizei
um espaço...’...
APS - tenho... eu tenho que pensar nisso aí, porque isso aí vai ser
difícil, é a abertura pra porrada... se eu tivesse cinquenta fins-de-
semana (...) ... pô, pau na máquina!
Repórter -. pensa nisso, porque eu acho que isso não é abertura
pra porrada, eu acho que isso aí é uma... dique de contenção que
você ergue, na medida que as cartas estão na mesa: ‘recebi sim,
trabalharam aqui algum... vieram algumas vezes...’...
Surpreendentemente, a Justiça condenou APS a pagar uma indenização de R$
5 mil a Lulinha, por frases depreciativas contra ele, ditas na conversa
informal (e grampeada) com o repórter.
Quanto à Veja e ao repórter, foram absolvidos.

Os dossiês e os chantagistas
E aqui se introduz um personagem central nesse neojornalismo: os grupos de
lobbies e organizações criminosas que infestam os negócios públicos
especialmente em Brasília, onde se situam as principais decisões de gastos
públicos.
A partir da campanha do “impeachment” de Fernando Collor, jornalistas,
grampeadores e chantagistas passaram a conviver intimamente em Brasília.
Até então, havia uma espécie de barreira, que fazia com que chantagistas
recorressem a publicações menores, a colunistas da periferia, para montar
seus lobbies ou chantagens. Não à grande mídia.
Com o tempo, a necessidade de fabricar escândalo a qualquer preço
provocou a aproximação, mais que isso, a cumplicidade entre alguns
jornalistas, grampeadores e chantagistas. Paralelamente, houve o desmonte
dos filtros de qualidade das redações, especialmente nas revistas semanais e
em alguns diários.
Foi uma associação para o crime. Com um jornalista à sua disposição, o
grampeador tem seu passe valorizado no mercado. A chantagem torna-se
mais valiosa, eficiente, proporcional ao impacto que a notícia teria, se
publicada. Isso na hipótese benigna.
É uma aliança espúria, porque o leitor toma contato com os grampos e
dossiês divulgados. Mas, na outra ponta, a publicação fortalece o achacador
em suas investidas futuras. Não se trata de melhorar o país, mas de desalojar
esquemas barras-pesadas em benefício de outros esquemas, igualmente
barras-pesadas, mas aliados da publicação. E fica-se sem saber sobre as
chantagens bem-sucedidas, as que não precisaram chegar às páginas de
jornais.

13 (Oltramari)
.

As duas pernas da indústria de dossiês

Os anos 2.000 foram politicamente marcados pela indústria de dossiês, um


jogo tenebroso que não respeitou direitos individuais, limites legais,
transformando a imprensa em uma imensa máquina de assassinar reputações.
Grampos ilegais, vazamento de documentos, mentiras toscas ou
elaboradas, parcerias com organizações criminosas ou com procuradores da
república e delegados federais, tudo somado colaborou para que os últimos
quinze anos fossem marcado como a era da infâmia.
No centro desse jogo, a revista Veja, como estuário de uma aliança que
juntou as duas maiores fábricas de dossiês da moderna história do
jornalismo. Em uma ponta, a organização criminosa de Carlinhos Cachoeira;
na outra, um grupo político onde pontificava a figura do ex-candidato a
presidência da República José Serra.
Para entender o fenômeno Veja e seus dossiês é preciso, antes, uma
passada de olhos sobre os principais personagens que atuaram nesse
período.

A fábrica de dossiês
A segunda perna da indústria de dossiês estava firmemente fincada no campo
político, manobrada por Serra. Caso Lunus, “aloprados”, escuta no STF,
grampo sem áudio, uma sequência insólita de escândalos fabricados que
alimentou a mídia, especialmente a revista Veja.
É na operação Lunus que estão as pistas para se chegar ao início do nosso
modelo.
O caso Lunus inviabilizou a candidatura de Roseana Sarney à presidência
da República.
Policiais Federais montaram campana, identificaram o dia e a hora em
que a Lunus – de Jorge Murad, marido de Roseana Sarney – receberia
contribuições e montaram um flagrante acompanhado de uma equipe do
Jornal Nacional.
Para melhorar a cena, arrumou-se o dinheiro em pacotes de grande
visibilidade, facilitando o impacto televisivo.
Essa mesma jogada – de empilhar o dinheiro para dar impacto televisivo
- foi repetida no caso dos “aloprados”, em 2006, entre um delegado da
Polícia Federal e o Jornal Nacional.
Da própria Lunus foi enviado um telex para o Palácio do Planalto dando
conta do sucesso da operação.
Nesse episódio aparece José Serra, como principal beneficiário. Depois,
o Procurador da República José Roberto Santoro, que se imiscuiu em um
inquérito que não era dele e coordenou a ação, cujo titular era o procurador
Mário Lúcio Avellar.
Do lado da Polícia Federal, atuou o delegado Marcelo Itagiba. E as
suspeitas sobre as escutas que permitiram o flagrante recaíram sobre a
FENCE, Consultoria Empresarial, empresa especializada em arapongagem.
A partir desse episódio, montei um quadro esquemático com atores que
estiveram envolvidos no caso Lunus e nos episódios posteriores de dossiês e
arapongagens, e tentei definir um mapa de relacionamentos entre eles e uma
roteiro de como tudo pode ter começado.
É o fio da meada para se chegar à fábrica de dossiês.

Assumindo o Ministério da Saúde, através da CEME (Central de


Medicamentos) Serra contrata o delegado da Polícia Federal Marcelo
Itagiba e aproxima-se do subprocurador da República José Roberto Santoro.
Contrata também a FENCE, empresa especializada em escutas e varreduras
telefônicas.
Santoro aproxima-se de Carlinhos Cachoeira no episódio Waldomiro
Diniz. Ele é o procurador que se reúne de madrugada, sigilosamente, com
Cachoeira no próprio prédio do MPF, conforme matéria divulgada pelo
Jornal Nacional.
Cachoeira tem ligações estreitas com Jairo Martins (seu principal
araponga e operador junto à Veja) e com o ex-senador Demóstenes Torres.
Na presidência do STF, Gilmar Mendes contrata Jairo como seu consultor
de informática.
E mantém relações antigas de amizade com Demóstenes. Por sua vez,
Serra tem ligações antigas com Gilmar e com a revista Veja.
No episódio Lunus, a mídia ainda não estava fechada com Serra e a
cobertura da época desvendou rapidamente a trama.
A FENCE recebia por varredura efetuada. Segundo reportagem da revista
Veja, de 20 de março de 2002, de primeiro de janeiro a 28 de fevereiro de
2002, período que antecedeu a Operação Lunus, a FENCE recebeu R$ 210
mil do Ministério da Saúde. Para tanto, necessitaria ter realizado 840
varreduras em menos de 60 dias, ou quase 14 varreduras por dia.
É evidente que o pagamento não se devia a varreduras internas no
Ministério.
Depois que tomou posse como governador, Serra contratou a FENCE para
monitorar todos os telefonemas do estado que passavam pela Prodesp
(empresa de processamento de dados do estado) e “outras de seu interesse”.
Reportagem da Folha, de 17 de março de 2002 dizia o seguinte sobre
Santoro e Itagiba14:
“O presidenciável tucano, senador José Serra (SP), conseguiu
reunir sob as asas de aliados as duas principais investigações
em curso que podem prejudicar sua candidatura ou implodir a
campanha de seus adversários. São eles o subprocurador da
República José Roberto Santoro e o delegado de Polícia
Federal Marcelo Itagiba”.
A reportagem mostrava como Santoro coordenou informalmente o pedido de
busca e apreensão de documentos na Lunus. E como Itagiba se valeu do
cargo de superintendente regional da PF para afastar um delegado que
investigava doações de campanha a Serra.
Segundo a matéria, era antiga a parceria de Santoro e Itagiba:
“José Roberto Santoro e Marcelo Itagiba fazem parte da tropa
de choque de Serra no aparato policial e de investigação. Os
dois já estiveram juntos antes. Em 2000, enquanto Santoro
promovia ações judiciais de interesse do então Ministro José
Serra na área da saúde, Itagiba coordenava uma equipe
instalada na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)
para investigar laboratórios”.
Quando Serra foi Ministro da Saúde, o bicheiro Carlinhos Cachoeira
investiu em laboratório de genérico em Goiás.
Mas, para entender a base de sua influência, torna-se necessário um
mergulho mais profundo na grande guerra política da contravenção, em torno
do jogo eletrônico.

14 (Gramacho, 2002)
.

A parceria de Veja com Cachoeira

Como a parceria entre um bicheiro e a Veja provocou a maior


crise da República
.

A guerra das loterias

O bicheiro Carlinhos Cachoeira entra em nossa história dentro de um dos


capítulos mais intrincados e obscuros da atuação do crime organizado no
país: a guerra entre máfias internacionais e locais em torno do 15butim das
loterias.
A informatização do jogo mudou o padrão das guerras intestinas do bicho,
deu espaço para a entrada de grupos estrangeiros, com seus sistemas para
controles de apostas.
Ao mesmo tempo, abriu enormes possibilidades de financiamento político
para os diversos governos, independentemente de partidos.
A primeira incursão audaciosa foi da G Tech com a Caixa Econômica
Federal (CEF) em 1993, no governo Itamar Franco. O presidente da CEF era
Danilo de Castro.
Até então, o processamento das apostas era executado pela Datamec,
empresa pública da qual a CEF detinha 99% do capital.
Em 1993, a Racimec convenceu Danilo de Castro a montar um grupo de
trabalho de loterias, visando implantar o sistema online real time. Foi
formalizado através da Portaria n° 258/93.
Com a desculpa de que o processo precisava ser agilizado, 18 meses
antes da abertura da concorrência pública, a CEF aceitou mudar o modelo.
Alegou inexigibilidade de licitação para adquirir novos equipamentos “de
transição” da Racimec, que seriam utilizados para a implantação final do
modelo, três anos e meio à frente. No processamento offline das apostas,
topou também substituir a Datamec pela Racimec.
Através da Concorrência Pública n° 001/1994 entregou os serviços online
ao consórcio liderado pela empresa Racimec, sócia da G Tech.

Por trás da Racimec, estava a G Tech, empresa que dominava o sistema de


jogos em Las Vegas e grande fatia do mercado mundial.
A G Tech teve, entre seus lobistas, o senador John McCain, candidato a
presidente dos EUA pelo Partido Republicano em 2008. E controlava a
loteria do Texas, quando George Bush Filho governou o Estado.

O início de Cachoeira
Filho de um apontador de jogo de bicho, Carlinhos Cachoeira herdou parte
dos negócios do pai, mas começou a deslanchar nos anos 90, quando o
governador de Goiás Maguito Vilela, lhe deu a concessão da Loteria do
Estado de Goiás, a LEG.
Cachoeira tornou-se pioneiro do bingo eletrônico e do caça níquel em
Goiás. Quando Marconi Perillo (PSDB) assumiu o governo do Estado,
Cachoeira mudou-se para Goiânia enquanto colocava o irmão para
administrar as empresas que criou com o dinheiro do jogo.
Em 2001, seu objetivo estratégico era explorar o ramo de jogos virtuais.
Já em 2.000 havia entendido que o futuro do jogo estava na Internet.
Naquele ano se tornou pioneiro do bingo eletrônico e do caça níquel em
Goiás, através da Gerplan.
Esse breve período de legalidade permitiu a Cachoeira estreitar laços
com Demóstenes Torres, então Secretario de Segurança de Goiás, com a
Polícia Civil e com a Polícia Militar.
Cachoeira passou a acionar Demóstenes para reprimir os concorrentes
que atuavam na ilegalidade. Graças a esse apoio, alijou a máfia espanhola
que controlava o bicho, bingos e caça-níqueis no estado, fornecia máquinas e
tinha o controle do território de Goiás.
Em 2007, quando o STF revogou em definitivo a lei goiana, Cachoeira já
era o todo-poderoso do jogo do estado.
Além de explorar o jogo clandestino, autorizava a entrada de novos
competidores, mediante o pagamento de uma taxa de proteção de 35% sobre
o faturamento. E vendia segurança graças à parceria com policiais civis e
militares. Quando um dos concedidos resistiu a pagar os 35%, foi
sequestrado e livrou-se porque era parente de um amigo de Cachoeira, que
se responsabilizou pelo pagamento.
Foi assim mesmo com outras famílias poderosas, como os Quiroga,
ligados à Escuderia Le Coq. Expulsos do Espírito Santo, os Quiroga
desembarcaram em Goiás e bateram continência a Cachoeira.
Enquanto a G Tech se havia com a CEF, Carlinhos Cachoeira tentava sair
de sua base goiana e se lançar nacionalmente
O Rio seria a vitrine para a empresa de Cachoeira, que tentava
aproximação com grupos de loteria na Espanha e Itália. A partir do Rio,
Cachoeira poderia competir com a G Tech em outros estados. Sua entrada no
Rio se deu no governo Benedita da Silva, do PT através de Waldomiro
Diniz.
A incursão de Cachoeira no Rio terminou em um escândalo que gerou uma
CPI – da qual Cachoeira se livrou graças parceria com a revista Veja.
Em janeiro de 2003 foi selado um acordo de paz entre a G Tech e
Cachoeira, pelo qual a empresa repassaria ao bicheiro negócios que tinha
em vários estados. Em troca, Cachoeira ajudaria na renovação do contrato
com a Caixa, recorrendo ao lobby de Waldomiro Diniz e de Rogério Buratti,
ligado ao Ministro da Fazenda Antônio Pallocci.
Nada disso ocorreu.
Em abril de 2003 a Procomp ganhou, em pregão eletrônico um contrato
de R$ 212 milhões para fornecer 25 mil terminais para a rede lotérica da
CEF, desbancando a G Tech. No ano seguinte houve a licitação final, e a
Procomp venceu novamente.
Cachoeira perdeu um faturamento potencial de R$ 30 milhões em cinco
anos. Irritado com a derrota, decidiu se vingar, espalhando o vídeo com a
conversa com Waldomiro, ainda nos tempos da Rio Loteria.
Em janeiro de 2004, Cachoeira deu o ultimato para Waldomiro: ou
revertia a situação ou seria denunciado. Em fevereiro, divulgou o vídeo com
o pedido de propina, ainda dos tempos de Waldomiro na Loterj.
Nesse episódio consolidaram-se relações e alianças entre um conjunto de
personagens centrais para as futuras capas de Veja: o bicheiro Carlinhos
Cachoeira (que bancou a operação de grampo de Valdomiro), o araponga
Jairo Martins (autor do grampo) e o jornalista Policarpo Júnior (autor da
reportagem).
A história do Brasil começou a ser reescrita ali. Significou a quebra da
blindagem do governo Lula e o início da mais pesada campanha midiática da
história moderna.

As parcerias midiáticas
Sem a G Tech, Cachoeira tentou outros caminhos, especialmente no período
2007/2009. Associou-se ao argentino Roberto Copolla e uma empresa
irlandesa, que explorava jogos no seu país e no Paraná. Seu plano era montar
offshores no Uruguai e Curaçao para promover os jogos virtuais no Brasil.
É por volta desse período que Cachoeira descobre o enorme poder da
mídia e a facilidade para montar parcerias.
O primeiro passo de Cachoeira foi procurar o Correio Braziliense, diário
de Brasília. Ele precisava divulgar seu bingo eletrônico, mas a legislação
proibia.
Acertou uma reportagem esperta. Supostamente, ela denunciava o jogo.
Mas, divulgaria todas as informações que os jogadores precisavam:
endereço, onde, quanto, como.
Os grampos da Operação Monte Carlos flagraram o bicheiro
comemorando a reportagem e dando balanço do aumento de acessos e do
lucro líquido.
O passo seguinte foi se aproximar de Policarpo Júnior, repórter policial
de Veja. A primeira demanda – uma reportagem em Veja, nos moldes da que
saiu no Correio Braziliense – não deu certo.
Mas outras parcerias vinham a caminho. E uma delas – a gravação de um
pedido de propina de R$ 3 mil – foi o álibi para a operação que resultou no
“mensalão”. O que não foi revelado é que tudo não passou de uma jogada de
Veja para beneficiar um grupo de contraventores de olho em jogadas nos
Correios.

O araponga e o repórter
O primeiro registro da associação entre Veja e Cachoeira está numa
reportagem de 2004, sobre a CPI de Cachoeira.
Em primeira investida fora do estado, no Rio de Janeiro, foi vítima de um
achaque de um deputado fluminense, André Luiz, que exigia R$ 4 milhões
para não o incluir em uma CPI do Bingo. Cachoeira grampeou a conversa
com o delegado e encaminhou ao repórter policial Policarpo Jr, da Veja.
Na edição 1.878 de 3 de novembro de 2004, Veja implodia com o
denunciante e tratava Carlinhos Cachoeira como “empresário de jogos”.
Trecho da matéria:

Na semana passada, o deputado federal André Luiz, do PMDB


do Rio de Janeiro, não tinha amigos nem aliados, pelo menos em
público.
Seu isolamento deveu-se à denúncia publicada por VEJA
segundo a qual o deputado tentou extorquir 4 milhões de reais
do empresário de jogos Carlos Cachoeira. As negociações da
extorsão, todas gravadas por emissários de Cachoeira, sugerem
que André Luiz agia em nome de um grupo de deputados.
A fonte da matéria são “emissários de Cachoeira”, o “empresário de jogos”
que Veja transformou de investigado em vítima na mesma CPI.
Foi o início de uma das mais profícuas e escandalosas parcerias da
história da mídia brasileira e que, por vias tortas, acabou explodindo no
escândalo do mensalão.
Nas alianças políticas do governo Lula, os Correios foram entregues ao
esquema do deputado Roberto Jefferson.
Em determinado momento, o esquema Jefferson passou a incomodar
lobistas que atuavam em várias empresas. Dentre eles, o lobista Arthur
Wascheck.

Este recorreu a dois laranjas – Joel dos Santos Filhos e João Carlos
Mancuso Villela – para armar uma operação que permitisse desestabilizar o
esquema Jefferson não apenas nos Correios, mas também na Eletrobrás e na
BR Distribuidora.
O alvo escolhido foi Maurício Marinho, diretor menor e biscateiro de
pequenas propinas.
A ideia seria Joel se apresentar a Marinho como representante de uma
multinacional, negociar uma propina e filmar o flagrante. Como não tinham
experiência com gravações mais sofisticadas, teriam decidido contratar o
araponga Jairo Martins.
Jairo foi convidado para um almoço pelo genro de Carlinhos Cachoeira,
Casser Bittar.
Lá, foi apresentado a Wascheck, que o contratou para duas tarefas:
providenciar material e treinamento para que dois laranjas grampeassem
Marinho; e a possibilidade de o material ser publicado em órgão de
circulação nacional.
Imediatamente Jairo entrou em contato com Policarpo e acertou a
operação. O jornalista não só aceitou a parceria, antes mesmo de conhecer a
gravação, como avançou muito além de suas funções de repórter: atuou como
uma espécie de diretor de cena da gravação.
O grampo em Marinho foi gravado em um DVD. Jairo marcou, então, um
encontro com Policarpo. Foi um encontro reservado - eles jamais se falavam
por telefone, segundo o araponga -, no próprio carro de Policarpo, no Parque
da Cidade. Policarpo levou um mini-DVD, analisou o material e considerou
que a gravação ainda não estava no ponto, que havia a necessidade de mais.
Recebeu a segunda, achou que estava no ponto. E guardou o material na
gaveta, aguardando a autorização do araponga, mesmo sabendo que estava se
colocando como peça passiva de um ato de chantagem e achaque.
Wascheck tinha, agora, dois trunfos nas mãos: a gravação da propina de
R$ 3 mil e um repórter, da maior revista do país, apenas aguardando a
liberação para publicar a reportagem.
Quando saiu a reportagem, a versão de que o repórter havia recebido o
material na semana anterior era falsa e foi desmentida pelos depoimentos
prestados por ele e por Jairo à Polícia Federal e à CPI do Mensalão.
Pressionado pelo eficiente relator Osmar Serraglio, na CPI do Mensalão,
Jairo negou ter recebido qualquer pagamento de Wascheck. Disse ter se
contentado em ficar com o equipamento, provocando reações de zombaria
em vários membros da CPI.
Depois, revelou outros trabalhos feitos em parceria com a Veja. E
garantiu que sua função não era de araponga, mas de jornalista. O único
órgão onde seus trabalhos eram publicados era a Veja. Indagado pelos
parlamentares se recebia alguma coisa da revista disse que não, que seu
objetivo era apenas o de “melhorar o pais”.
Segundo o depoimento de Jairo:
‘Aí fiquei esperando o OK do Artur Washeck pra divulgação do
material na imprensa. Encontrei com ele pela última vez no
restaurante, em Brasília, no setor hoteleiro sul, quando ele
disse: ‘Eu vou divulgar o fato. Quero divulgar’. E decorreu um
período que essa divulgação não saía. Aí foi quando eu fiz um
contato com o jornalista e falei: ‘Pode divulgar a matéria’’.
O deputado Roberto Jefferson, no entanto, imaginou que a denúncia havia
sido montada por José Dirceu. Em represália, concedeu entrevista à Folha,
que foi o ponto de partida para o processo do “mensalão”.

O final da história
Parte da história terminou em agosto de 2007. Sob o título “PF desmonta
nova máfia nos Correios”16, o Correio Braziliense noticiava o
desbaratamento de uma nova quadrilha que tinha assumido o controle dos
Correios17.
No comando, Arthur Wascheck, o lobista que ascendera ao poder graças à
parceria com Veja.
Durante a Operação Selo, foram presas cinco pessoas em dois estados
mais o Distrito Federal.
De acordo com os investigadores, “o grupo agia como traficantes nos
morros”.
“Havia uma quadrilha na ECT (Empresa de Correios e Telégrafos), que
foi desbaratada e afastada. A outra organização tomou o lugar dela. Assim
como os traficantes fazem, quando saem, morrem ou são presos, acontece a
mesma coisa no serviço público. Quando uma quadrilha sai do local, entra
outra e começa a praticar atos ilícitos no lugar da que saiu”, explica o
delegado Daniel França, um dos integrantes do grupo de investigação.
A corrupção tinha apenas trocado de mãos.
O empresário, conforme os investigadores, atuava na área de licitações
desde 1994, sendo que um ano depois ele fora condenado por
irregularidades em licitação para aquisição de bicicletas pelo Ministério da
Saúde.
O valor das fraudes chegava a milhões de reais.
Segundo a polícia, o grupo de Wascheck vendia todo tipo de material para
os Correios, de sapato a cofres, sendo que muitos integrantes do esquema
eram também procuradores de outras empresas envolvidas nas
concorrências.
Nas edições seguintes de Veja, nenhuma menção à operação da PF. Mas
uma das matérias da edição de 15 de agosto de 2007 atendia pelo sugestivo
título de “Porque os corruptos não vão presos”
A reportagem fala do mensalão, insinua que os implicados até
melhoraram de vida, menciona símbolos midiáticos de corrupção (Quércia,
Maluf, Collor etc). Nenhuma palavra sobre a Operação Selo e sobre o papel
desempenhado pelas reportagens de escândalo da própria revista no jogo
das quadrilhas dos Correios, que permitiu a ascensão da quadrilha de
Wascheck.

Surge o mosqueteiro do bem, show de bola


A parceria entre Veja e Carlinhos Cachoeira obedeceu a todos os requisitos
encontrados em organizações criminosas. Conforme constatou o relatório
final da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) sobre o tema,
“a complexa Organização Criminosa chefiada por Carlos
Cachoeira estava em sereno e profícuo processo de expansão e,
para assegurar a perenidade de sua atuação e a impunidade de
suas ações, já havia cooptado diversos agentes públicos e
políticos (...)
O pleno êxito das atividades criminosas, contudo, dependia de
outros fatores, que o grupo buscou rapidamente superar, quais
sejam: promoção e divulgação nos meios de comunicação das
atividades ilícitas da quadrilha (jogos eletrônicos na Internet);
eliminação ou inviabilização da concorrência (empresas
adversárias); e, desconstrução de imagens e biografias (de
adversários políticos)”.
O modelo de atuação obedeceu a uma estratégia habilidosa.
1. Cachoeira ajudou a eleger o senador Demóstenes Torres.
2. Veja alçou-o à condição de cruzado contra a corrupção.
3. Com a reputação conquistada, Demóstenes passou a influenciar órgãos
do governo e do Judiciário em negócios de interesse de seus dois parceiros.
Na edição de 4 de junho de 2007, reportagem assinada por Otávio Cabral e
Alexandre Oltramari dava início ao processo de construção da imagem do
novo paladino da ética: o senador Demóstenes Torres.

O título era consagrador – “Os Mosqueteiros da Ética” – colocando


Demóstenes ao lado de aliados da revista de melhor reputação, como
Fernando Gabeira, os senadores Pedro Simon, Jarbas Vasconcellos e
Jefferson Peres.
A revista estava, na época, em uma cruzada inclemente contra o
presidente do Senado Renan Calheiros. Os mosqueteiros eram apresentados
como “sentinelas avançadas da sociedade brasileira”.
Demóstenes era tratado como “o incansável senador (...)”.
“No Conselho de, digamos assim, Ética do Senado, ele é uma
das únicas vozes a exigir investigações sérias e denunciar as
manobras para absolver sem apurar. Demóstenes Torres entende
o que muitos senadores fazem questão de não ver: o Senado está
se desmoralizando numa velocidade avassaladora. A esperança
que resta é que esse pequeno conselho de mosqueteiros consiga
derrotar as malandragens do grande Conselho de, digamos
assim, Ética do Senado”.
O panegírico maior foi uma entrevista de páginas amarelas, em 8 de junho
de 2011, quando as relações de Demóstenes com Cachoeira já eram de pleno
conhecimento da Veja.
Sob o título “Só nos sobrou o Supremo”, o intertítulo informava que “o
combativo parlamentar diz que o Congresso age bovinamente, o TCU está
sob fogos e os promotores cansados, situação que põe em risco do estado de
direito no Brasil”.
Na apresentação a revista discorria sobre as qualidades do entrevistado.
Demóstenes
“Não nega o rótulo de direitista (...) Com o mesmo vigor com
que levanta a voz contra o governo, também combate as
políticas de cotas raciais para o ingresso nas universidades e a
expansão irrestrita de programas assistencialistas, como o
Bolsa Família”.
Era tão grande a influência de Demóstenes sobre a mídia que compareceu a
uma audiência pública do STF para criticar as cotas raciais. Seu
desempenho foi criticado em reportagem da Folha. E o jornal abriu espaço
para o ghost writer de Demóstenes no discurso, geógrafo Demétrio
Magnolli, desancar os dois repórteres autores da matéria com acusações
pesadas nas páginas do próprio veículo em que trabalhavam.
A entrevista de Demóstenes à Veja foi um jorro de preconceitos e ideias
conservadoras. A segurança pública deveria ser montada sem tantos
benefícios aos detentos. A frouxidão penal era responsável pelo aumento da
criminalidade. A criminalidade só cedia se alvo da aplicação de políticas
convencionais rigorosas.
A entrevista foi saudada euforicamente no bunker de Cachoeira, entre
conversas sobre produtos piratas entre Cláudio, o lobista da Delta e o
Cachoeira, grampeadas pela Polícia Federal (Federal):
CLAUDIO - ...”o Combativo Parlamentar diz que o Congresso
age bovinamente, o TCU está sobre fogos, os promotores
cansados, situação que põe em risco o Estado de direito do
Brasil”. Mole, cara?
CARLINHOS - É foda mesmo viu! Fala bem aí?
CLAUDIO - E muito bem,
CARLINHOS. Você não comentou
CLAUDIO- e o amigo lá, o Inspetor da Receita hem, me ligando,
me parabenizando e agradecendo, me convidando e o pessoal no
cerimonial ligando pra me colocar lá no estande de autoridades
na destruição dos produtos piratas
CARLINHOS - Você que mais traz né, cara?
CLAUDIO - Como é que é?
CARLINHOS - Você é quem mais traz
CLAUDIO - Faz o que, o viado?
CARLINHOS - Você é o que mais traz
CLAUDIO - Que mais traz?
CARLINHOS – É, uai!
CLAUDIO - Mas eu trago produtos piratas, porra?
CARLINHOS – Ah, pirata não, você traz os produtos, né (...)
CLAUDIO – É, show de bola aqui viu, bicho, show de bola,
(Demóstenes) tá falando bem cara. Eu li a reportagem aqui no
IPAD.
A partir daí, inaugurou-se uma era de reportagens escandalosas, frutos da
parceria com Carlinhos Cachoeira

15 (Bingos)
16 (https://goo.gl/LByQAg)
17 (Luiz)
.

O grampo no apartamento de Dirceu

Na edição de 31 de agosto de 2011, Veja divulgou vídeos gravados


clandestinamente no apartamento do Hotel Nahoum, que o ex-Ministro da
Casa Civil José Dirceu utilizava como escritório.
Virou matéria de capa, “O poderoso chefão”, com Dirceu com óculos
escuros.
Na capa dizia que Dirceu conspirava contra o governo de Dilma
Rousseff.
Avançava em mais especulações. Dizia que Dirceu articulou 45 horas de
reuniões para planejar a demissão do então Ministro da Casa Civil Antônio
Palocci.
De concreto, havia fotos de vídeos com autoridades recebidas por
Dirceu. Em cima das fotos, criou-se o roteiro.
Horas antes da demissão de Palocci, Dirceu recebeu três senadores do
PT: Delcídio Amaral, Walter Pinheiro e Lindbergh Farias. Logo, só poderia
ter tratado da demissão de Palocci, conclui a revista. Pouco antes da
indicação de Gleise Hoffmann para o cargo, Dirceu recebeu o então Ministro
Fernando Pimentel. Logo, só poderiam estar planejando a troca de
Ministros. Assim, sem nenhuma informação adicional, apenas juntando fatos
do momento – técnica primária de falsificar correlações, que seria
abundantemente empregada na Lava Jato.
No QG de Cachoeira, todos esperavam a contrapartida prometida por
Policarpo Júnior: uma reportagem sobre o jogo eletrônico pela Internet,
mesmo que fosse nos moldes da que saiu no Correio Braziliense, criticando
o jogo, mas dando todas as dicas sobre onde jogar.
Foi esse o acordo firmado com Policarpo Junior por Cachoeira, quando o
repórter procurou o araponga Jairo Martins para obter imagens do hotel.
No dia 2 de agosto de 2011, Jairo Martins e Policarpo (vulgo Caneta)
encontram-se no Parque da Cidade.
JAIRO: Oi
POLICARPO: Opa, tudo bem?
JAIRO: Tranquilo?
POLICARPO: Tá na área?
JAIRO: Tô
POLICARPO: Tá de serviço hoje?
JAIRO: Tô não
POLICARPO: Vamos comer um bife mais tarde?
JAIRO: A que horas?
POLICARPO: Que horas você pode?
JAIRO: Pra mim, depois do meio-dia está tranquilo.
POLICARPO: Vamos marcar meio-dia e meia?
JAIRO: Pode ser
POLICARPO: Onde, hein?
JAIRO: Cê que sabe
Terminada a ligação, Jairo ligou imediatamente para Cachoeira
para informar que o acordo está quase fechado:
JAIRO: Deixa eu te falar. Tem uns 15 minutinhos, o Caneta me
ligou aqui, ta. Pra mim almoçar com ele 15 pra uma. A respeito
daquela, daquela matéria lá, tá?. Que tá pronta. Que só fala
comigo.
CARLINHOS: Ah, excelente. Ai se me posiciona ai. Brigado
Mais tarde Jairo liga para Cachoeira indignado com a falta de
palavra de Policarpo, que prometera não utilizar as imagens
enviadas. Pede para que Carlinhos obtenha a autorização do
chefe do esquema no hotel:
CARLINHOS: E ai, JAIRO, o que que ele queria?
JAIRO: Como sempre queriam fuder a gente, né ? É, diz que tem
uma puta de uma matéria, né? Pra daqui a duas semanas, que
naquele período que ele me pediu, o cara recebeu 25 pessoas lá,
sendo que 5 pessoas assim importantíssima, mas pra sustentar a
matéria dele, ele tem que usar as imagens, entendeu? Que era o
combinado era não usar, né?
CARLINHOS: As imagens lá do hotel?
JAIRO: É, as imagens das pessoas. entendeu?
CARLINHOS: É, se ele combinou tem que cumprir, né ?
Na conversa, avaliam a importância do material enviado para a
revista.
CARLINHOS: E o que é, basicamente? É o JD recebendo o
pessoal lá e comemorando a queda do outro?
JAIRO: É, a importância influencia dele nos momentos de crise
(...) todo mundo vem pedir a benção dele.
Cachoeira acaba acertando com Jairo as imagens
CACHOEIRA: Vou almoçar com ele aqui. Se der algum acordo
aqui faz mal ele publicar?
JAIRO: Avalia aí, cara. A minha preocupação é só o meu colega.
A preocupação dele é o emprego. O resto...
CACHOEIRA: Mas será que cai nele?
JAIRO: Pode ser que sim, pode ser que não. Tem rastro né? Tem
mais gente que mexe.
CACHOEIRA: Entendi. Vou ver aqui e te falo. Um abraço. Vou
mandar ele tacar o pau.
JAIRO: Tá, vê aí
Acabam encontrando um modo: alegar que deu pau na fita e
mandar consertar
JAIRO: Oi
CACHOEIRA: Ele te ligou mais, não?
JAIRO: Não, só naquela hora. Saí já do colega lá. Só precisa
gente ver um detalhezinho (ininteligível), aquela situação, mas
acho que vai dar certo. Só precisa ver um detalhezinho ele lá.
CACHOEIRA: Qual que é? Pra ver se não consegue pegar ele?
JAIRO: Isso. Talvez ele “dê um pau”, entendeu?
CACHOEIRA: Ah, melhor. E manda pra “consertar”, entendeu?
JAIRO: Isso que a gente pensou. Eu dei aquela segurança pra
ele, se acontecer alguma coisa. Ele só pediu até amanhã, talvez
dê um pau lá.
PAULO ABREU: Qual é... quem é vai sair na próxima VEJA
agora?
JAIRO: ZÉ DIRCEU, ZÉ DIRCEU.
PAULO ABREU: Beleza. Só queria ouvir isso aí. Abraço. A gente
se fala, hei. Dez e meia lá.
JAIRO: Falou, abraço.
E seguida, Cachoeira informa o senador Demóstenes Torres,
que julga “fantástico” o resultado.
CARLINHOS: Ô DOUTOR.
DEMÓSTENES: Fala PROFESSOR, e ai? Tranquilo?
CARLINHOS: Beleza, novidade ai?
DEMÓSTENES: Uai, nada, liguei fiquei o dia inteiro fora do ar
ai, saber se tem alguma coisa.
CARLINHOS: Não, só o POLICÁRPIO que vai estourar ai, o
JAIRO arrumou uma fita pra ele lá do hotel lá, onde o DIRCEU,
DIRCEU, é, recebia o pessoal na época do tombo do PALOCCI
ai, ai ele vai demonstrar, mas não vai ser esse final-de-semana
não, tá? Vai ser umas duas vezes ai pra frente, que ele planejou
a queda do PALOCCI também, recebia só gente graúda lá, tá?
Isso quer dizer que os momentos importantes da República, o
DIRCEU que comanda.
DEMÓSTENES: Exatamente, ai é bom demais, uai, o que que é
isso?
CARLINHOS: É vai sair aí, já falou com o JAIRO, hoje almoçou
com o JAIRO, e perguntou com o JAIRO se podia, quando for
estourar, por, por a fita na veja online e o JAIRO veio perguntar
pra mim, ai eu falei pra ele: “não, deixa não, manda ele pedir
pra mim”.
DEMÓSTENES: Exatamente, é claro ué. Ai não, né? Ai ninguém
guenta, né?
CARLINHOS: É mas ai vai mostrar muita coisa, viu? Ai vai por
fogo ai na REPÚBLICA, porque vai jogar o PALOCCI contra
ele, porque ai vai vir cenas né? Dos nego procurando o
DIRCEU no hotel.
DEMÓSTENES: Exatamente, ai é ótimo, fantástico
A revista acabou não dando a contrapartida, a matéria dos bingos
eletrônicos.
Houve uma denúncia sobre de invasão de domicílio que acabou flagrando
o repórter Gustavo Ribeiro.
No dia 24 de agosto de 2011, jejuno no tema, o repórter tentou invadir o
apartamento de Dirceu. Gerou um inquérito na 5ª Delegacia de Polícia Civil
do Distrito Federal, que constatou a tentativa de invasão.
A alegação do repórter foi de que apenas tentou conferir se Dirceu estava
hospedado lá. Mas acabou confessando ter tentado entrar em ambiente
privado.
Foi ouvida uma camareira que contou que Gustavo pediu para que ela
abrisse o quarto, dizendo-se o ocupante do apartamento e que esquecera as
chaves do lado de dentro. A camareira não foi na conversa.
Foi ouvido também o responsável pela segurança do hotel. O material foi
remetido ao Juizado Especial Criminal de Brasília que absolveu o repórter
alegando que, graças à camareira, não se consumou o crime.
.

Os esquemas com empreiteiras

A aproximação entre a Construtora Delta e Cachoeira ocorreu em 2005.


Era uma empresa de 40 anos que tinha se consolidado no Rio de Janeiro
nas gestões Garotinho, Rosinha Garotinho e Sérgio Cabral e junto ao DNIT
(Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte).
A empreiteira montou escritório em Goiânia e designou para dirigi-lo
Cláudio Abreu, executivo com relações antigas com Cachoeira.
O primeiro desafio que Cachoeira colocou para a Delta foi no mercado
de lixo. As empresas de Cachoeira não dispunham de know how. A Delta
também não tinha, mas tinha credibilidade.
Em 2006, Cachoeira abriu a porta para a Delta entrar na prefeitura de
Palmas, falsificando um certificado de capacidade técnica. Aberto o
caminho, Cachoeira-Delta passaram a controlar o lixo no centro-oeste. E
entraram em São Paulo na gestão Gilberto Kassab.
A parceria Cachoeira-Delta tornou-se promissora. A partir de 2011, a
importância de Cachoeira torna-se tão relevante que a Delta Centro-Oeste o
torna sócio, com 45% da companhia.
Há um diálogo com o governador de Goiás Marconi Perillo, no qual
Cachoeira se mostra indignado com determinada atitude do governador que
estaria prejudicando seu negócio. Aí Marconi intercede e diz que “aquilo lá
é seu”. Na sequencia vê-se que é a Delta que assume o botim, confirmando a
associação.
Quando a Delta se sentiu prejudicada em suas relações com o DNIT,
Cachoeira recorreu à Veja.
Contrariados, porque a empresa Delta não seria beneficiada em uma
licitação para pavimentação de uma rodovia federal, Cachoeira e Cláudio
Abreu denunciam para Policarpo Junior um encontro que haveria entre as
empresas que supostamente dividiram lotes e trechos para a realização da
obra, sem a participação, como dito, da empresa Delta.
No dia 29 de junho de 2011, Cachoeira convoca Policarpo para que
encontre “aquele amigo”, Cláudio Abreu, da Delta.
CARLINHOS - Tenho uma informação quentíssima. Encontra
aquele amigo
POLICARPO- Qual deles?
CARLINHOS - Aquele, rapaz, Delta
POLICARPO - Ah, tá
CARLINHOS - Lá onde você viu o Stepan, pode ser?
POLICARPO - Pode...quando?
CARLINHOS - Agora. Vai ter uma reunião amanhã uma hora da
tarde e você lá
POLICARPO - Tá bom
CARLINHOS - Vai pra lá agora
POLICARPO - Estou indo agora
Cláudio vai ao encontro e volta entusiasmado:
CARLINHOS: Teve com o Policarpo aí?
CLÁUDIO: Cara, show de bola. Achei que ele ia me dar um
beijo.
CARALINHOS: Ele gostou?
CLÁUDIO: Pra caramba, né amigo? Você é uma fonte de
primeira.
CARLINHOS: Que que ele falou? Que que é o negócio?
CLÁUDIO: Vai ter uma reunião no Paraná, em Curitiba, dos
assuntos da ANEOR, licitação da BR-080. 70 empresas vão estar
na reunião. Aí mandei o pessoal da Delta sair, porque não
vamos participar da obra e falei pra eles não ir lá. Ele falou
‘porra, tem jeito de ir lá?’. Falei você infiltra lá e grava a
conversa. Vão sortear duas obras. Ele tem que falar que é de
uma empreiteira, que fez a caução.
CARLINHOS: Exatamente. Ele falou que vai fazer o trem?
CLÁUDIO: Falou que vai mandar gente
CARLINHOS: Tá. Vai matar a pau=
Em seguida, avisa Demóstenes
CARLINHOS: Amanhã que horas você chega aqui
DEMÓSTENES: Devo chegar aí...vou pegar uma carona com Zé
Elinton...deve ser umas quatro da tarde.
CARLINHOS: Então tá bom. Passei um trem pro Policarpo hoje
que ele vai bamburrá, viu?
DEMÓSTENES: Bom demais. O que é?
CARLINHOS: Guarda pra nós aí, porque ele vai infiltrar lá. Vai
ter uma reunião da ANEOR, sindicato dos empreiteiros, mais de
70 empresas lá, e eles distribuindo obras. Ele vai infiltrar lá
dentro.
DEMÓSTENES: Show de bola. Aí é supercraque. Vai ser de
arrebentar
CARLINHOS: Amanhã, uma e meia da tarde. Não comenta com
ninguém não. Ele vai com filmadora e tudo
DEMÓSTENES: Bom demais. E ele tem aquele jeitão de
empresário, vai ser ótimo.
CARLINHOS: Amanhã a gente se fala.
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O mensalão do PR

A matéria foi publicada na edição de 2 de julho de 2011, interrompendo a


obra. Foi uma demonstração maiúscula do poder de fogo de Cachoeira e da
Delta.
O intertítulo era forte:
“A presidente Dilma Rousseff diz que o Ministério dos Transportes está
sem controle, que as obras estão com os preços inflados e anuncia uma
intervenção na pasta comandada pelo PR – que cobra 4% de propina das
empresas prestadoras de serviços”.
A reportagem trazia detalhes da reunião de Dilma com dirigentes do
Ministério e do DNIT.
O bunker de Cachoeira tornou-se pura festa
CLÁUDIO: Rapaz, o Junior amigo nosso de Brasília é mais
forte que Aldrin 40
CARLINHOS: Não, o que ele falou? Foi boa?
CLÁUDIO: Agora, 15 horas e 12 minutos: a presidente Dilma
Rousseff convoca ministro dos Transportes e manda afastar
todos os citados na reportagem da Veja
CARLINHOS: É mesmo? A reportagem saiu e ela já mandou
afastar todo mundo?
CLÁUDIO: Já mandou afastar todo mundo. Entra no site do
UOL pra você ver. matéria ficou boa pra caralho. E ele citou a
reunião, cara
CARLINHOS: Você é forte hein Cláudio?
CLÁUDIO: Você é que é forte. Ainda bem que sou seu amigo. Já
mandei mensagem pra ele...manda uma pra ele...ele tem um
Viber. Mandei assim: ‘sua matéria já deu repercussão. Você é
mais forte que Aldrin 40’. Ele respondeu ‘já, já teve
repercussão?’. Falei ‘já, veja site do UOL’. Ele falou ‘vou ver,
abraço’.
CARLINHOS: Ele já viu, rapaz, aquilo é malandro.

Na edição seguinte, a Carta ao leitor de Veja saudava a demissão sumária da


cúpula do Ministério dos Transportes. “Ação fulminante”, dizia que a
presidente Dilma agiu com rapidez e, com isso, abriu caminho para que a
intolerância com a corrupção deixe de ser episódica e se torne regra.
Na mesma edição, a revista publicou a matéria “Crime contra o
jornalismo”, informando que a revelação de uso de espionagem e quebra de
sigilo de pessoas comuns provocou o fechamento de um tradicional tabloide
londrino, de propriedade de Rupert Murdoch, “levou os oportunistas de
sempre a questionar a liberdade de expressão”.
A denúncia da Delta foi publicada na edição de 2 de julho de 2011,
interrompendo a obra. Foi uma demonstração maiúscula do poder de fogo de
Cachoeira e da Delta.
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As escolas chinesas

Um dos modelos trabalhados na parceria Veja-Cachoeira era a revista criar


uma expectativa em relação a determinado tema de interesse do bicheiro,
estimulando alguma demanda pública para a qual Cachoeira já estivesse
preparado para suprir.
Foi o caso do modelo de escolas chinesas.
No dia 7 de julho de 2011 Cachoeira vende seu peixe para Policarpo.
CACHOEIRA: Oi, pode falar aí?
POLICARPO: Posso
CACHOEIRA: Deixa te falar...tem um secretário de Educação
aqui em Goiás que está fazendo uma revolução na Educação,
entendeu?
POLICARPO: Hâ hã
CACHOEIRA: Acho interessante vocês verem o trabalho dele,
sabe? Com quem que ele vê isso?
Quase um mês antes, no dia 9 de junho de 2011, Cachoeira
detalhou o projeto para Greyb Ferreira da Cruz, um de seus
principais auxiliares.
CARLINHOS: Rapaz, tem um negócio bom aí, viu? Vamos falar
com o menino amanhã. Ele tá aí, da China?
GLEYB: O Alex cê fala? Qual deles, o nosso, ou lá de cima, de
São Paulo?
CARLINHOS: O Alex, da China.
GLEYB: Tá, tá na mão. Todo dia ele pergunta porque ele queria
que a gente financiasse aquele negócio dos 250, e eu tô dando
uma empurrada. Agora dá uma segurada porque tem coisas em
primeiro plano.
CARLINHOS: Então vamos falar com ele amanhã. Vamos fazer
escola. Surgiu um negócio bom demais. Vamos fazer escola. Já
manda ele olhar lá. Aquele modelo de escola lá, entendeu?
GLEYB: Entendi. Pode enquadrar naquela da casa. Você chegou
a ver aquela outra de dois andares?
CARLINHOS: Não. É boa?
GLEYB: Boa demais. Parece hotel. Já vou pedir pra ele olhar
para amanhã estar com isso na mão.
CARLINHOS: Escola! Não comenta com ninguém não, mas o
Thiago vai passar os modelos pra nós, tá? Vai alugar várias
escolas no Estado, entendeu? Vamos construir porque na hora
que sair está pronta, é só oferecer.
GLEYB: Perfeito. Ótima ideia. Vou ligar pra ele agora.
CARLINHOS: Manda ele pegar lá... de escola. Mas não fala pro
cara que é do secretário.
GLEYB: Não, só vou falar que é para ver o modelo que a gente
quer dar uma olhada.
No dia 7 de julho de 2011 Cláudio Abreu está com Policarpo e
Cachoeira insiste para ele reforçar a ideia do projeto:
CACHOEIRA: Vê os negócios aí. O Thiago está fazendo uma
revolução na Educação aqui, manda ele designar um repórter
pra cobrir.
CLÁUDIO: Ele tá no telefone. Vou falar pra ele.
CACHOEIRA: Beleza. Agora cê passou a ser fonte, hein
Cláudio?
(...)
CLÁUDIO: Falar o que pra ele?
CACHOEIRA: Que o Thiago está fazendo uma revolução aqui
em Goiás, rapaz, se não vale a pena cobrir. Voltou 14 mil
professores que estavam fora pra sala de aula e está fazendo
projeto com a Gerdau, que vai lançar agora, e vai revolucionar
a educação em Goiás.
CLÁUDIO: Coisa importante pra caraio, hein? Ele acabou a
ligação aqui, vou falar pra ele.
CACHOEIRA: Tá bom.
Na edição de 21 de dezembro de 2011 foi publicada matéria de capa da
Veja.

Sob o título “A arma secreta da China” e o subtítulo “A educação de


qualidade e baixo custo para milhões é o verdadeiro segredo dos chineses
em sua corrida para a liderança mundial”.
Assinada por Gustavo Ioschpe, era uma extensa reportagem dividida em
sete capítulos. Na edição online, Ioschpe descreve o que é a construção da
escola chinesa.
Os prédios são parecidos com os de muitas escolas brasileiras,
ainda que um pouco mais verticalizados. As escolas têm três ou
quatro andares. São escolas grandes, a maioria com mais de mil
alunos. O sistema chinês é dividido em três níveis: o
“Elementary”, do 1º ao 6º ano; “Middle”, do 7º ao 9º, e o
“High School”, de três anos. Em Xangai há uma leve alteração:
5-4-3 ao invés de 6-3-3.
Não visitei nenhuma escola que tivesse os três níveis. A maioria
tinha apenas um nível, ou no máximo dois (middle e high). Em
algumas escolas cada série ocupava um andar. Essa
organização do espaço é relevante. Pois em cada andar há uma
sala de professores, e essa divisão permite que professores das
mesmas séries estejam em contato frequente e tenham a
formação do seu grupo de estudos facilitado. A sala de
professores não tem nada a ver com esse espaço social e
descontraído dos colégios brasileiros: em Xangai, cada
professor tem o seu cubículo, em que guardam livros e materiais
de sua disciplina e onde também há um computador, onde
preparam o material de aula (sempre da marca Lenovo, empresa
chinesa que adquiriu o negócio de PCs da IBM).
Ioschpe também atuava como consultor da Secretaria de Educação de Goiás.
.
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O assassinato de reputação do Ministro dos Esportes

Na edição de 19 de outubro de 2011, com o título “O Ministro recebia o


dinheiro na garagem”, Veja procedia a mais um assassinato de reputação.
A vítima era o Ministro dos Esportes Orlando Silva, do PCdoB, alvo
anteriormente do mais ridículo factoide desses tempos cinzas: a “denúncia”
de que comprara uma tapioca com cartão de crédito corporativo.

A revista atribuía a denúncia a um militante do PCdoB. O policial militar


João Dias Ferreira, “revela detalhes de como funciona a engrenagem que,
calcula-se, pode ter desviado mais de 40 milhões de reais nos últimos oito
anos”.
Segundo a reportagem, de autoria de Rodrigo Rangel, “o relato do
policial impressiona pela maneira rudimentar como o esquema funcionava”.
Para dar mais molho à denúncia, segundo a revista “o militar conta que
Orlando Silva chegou a receber, pessoalmente, dentro da garagem do
Ministério dos Esportes, remessas de dinheiro vivo provenientes da
quadrilha”.
Polícia Militar, Ferreira entrou na política, em 2006 foi candidato
derrotado a deputado distrital do Distrito Federal e acumulou um património
injustificado para um PM com salário de R$ 4,5 mil: três apartamentos
pequenos, uma casa grande e três academias de ginástica.
Ele recebera dinheiro do Ministério para implementar dois projetos, pela
Federação Brasiliense de Kung Fu e pela Associação João Dias de Kung Fu.
Na hora da prestação de contas, a auditoria do Ministério dos Esportes
constatou desvio de R$ 1 milhão. João Dias tornou-se alvo de uma Tomada
de Contas Especial (TCE), procedimento que prevê até o confisco de bens
dos responsáveis.
Em 2010, como resultado das investigações João Dias chegou a ser preso.
E passou a responder por desvio de conduta na Polícia Militar de Brasília.
Para a revista, apresentou uma versão totalmente fantasiosa.
Segundo ele, sobrou R$ 1 milhão do convênio firmado e “estava em
trâmite para ser devolvido à União”. Aí,
“me disseram que estavam precisando daquele dinheiro para
botar na campanha. Eu autorizei meu coordenador a geral a
tratar disso direto com o pessoal do ministério, desde que eles
ficassem responsáveis. Foram feitas as transferências para as
empresas que o partido indicou. O valor foi sacado e entregue
ao esquema”.
Sentindo-se traído ele teria invadido armado a Secretaria Nacional de
Esporte Educacional, dado coronhadas no Secretário, virado a mesa em
cima dele. Um certo Célio Soares, apresentado como espécie de faz-tudo do
esquema, informou ter ido várias vezes à garagem do Ministério levar
dinheiro da propina.
O factoide fez com que o Procurador Geral da República Roberto Gurgel,
um procurador geral totalmente conduzido por manchetes, pedisse abertura
de inquérito contra Orlando Silva e seu antecessor, Agnelo Queiroz,
governador do Distrito Federal, em cuja gestão, no Ministério dos Esportes,
o convênio foi assinado.
Na edição seguinte Veja voltou ao ataque. Outra reportagem de Rodrigo
Rangel, dizendo ter tido acesso a “uma reveladora conversa entre o policial
João Dias e dois assessores do Ministro”. Em um texto rococó, repleto de
anáforas, mostra-se uma gravação no qual assessores do Ministério – na
gestão Agnelo Queiroz – tentam encontrar uma saída para problemas de
prestação de contas das ONGs de Dias.

Entre 15 e 27 de outubro o factoide rendeu uma centena e meia de artigos na


velha mídia.
De réu, João Dias tornou-se celebridade instantânea, com direito a
reportagem no Fantástico e entrevistas seguidas em sua mansão no
Condomínio Vivendas Bela Vista.
O alarido levou a Ministra Carmen Lúcia, do STF, outra Ministra movida
a manchetes, a autorizar o inquérito contra Orlando Dias.
As matérias de Veja suscitaram uma avalanche de denúncias vazias, a
mais retumbante das quais foi uma reportagem da UOL acusando Orlando
Silva de jogada na compra do terreno de um condomínio em Campinas.
Retrato acabado da perda de qualidade da imprensa, a reportagem
conseguiu o feito de criar suspeitas conflitantes.
Orlando adquirira um terreno mal localizado em um condomínio de
Campinas. Por ser mal localizado, o preço foi menor do que o dos terrenos
bem localizados. O que era uma questão banal – comprou o terreno mais
barato, devido ao fato de estar ao alcance de suas posses - foi transformada
pela prestidigitação jornalística em duas suspeitas:
1. Por que, havendo no condomínio terrenos mais bem
localizados, Orlando escolheu um terreno mal localizado?
Obviamente, por ser mais barato.
2. Por que pagou pelo terreno um preço inferior ao de outros
terrenos do condomínio? Obviamente porque era mal localizado.
Onde estava o golpe? Pagou um preço inferior por um terreno de localização
inferior. Simples assim.
Perto do condomínio passa um oleoduto da Petrobras. Segundo a UOL, a
jogada só poderia ser a de Orlando adquirir o terreno aguardando uma futura
desapropriação para ampliação do oleoduto da Petrobras.
Pouco tempo depois, em 7 de dezembro de 2011, João Dias invadiu o
Palácio do Buriti, sede do governo do Distrito Federal, agrediu o secretário
de governo Paulo Tadeu e foi preso.
Em 5 de julho de 2013 João Dias foi aposentado da PM por
“incapacidade para o serviço”. No dia 26 de novembro de 2013 foi preso
suspeito de receptação dolosa qualificada18.
Naquele período tenebroso, ao sair de uma palestra fui abordado por uma
senhora. Apresentou-se como a sogra de Orlando Silva e agradeceu os
artigos que escrevi em defesa do genro. Seu desabafo mostrou a extensão
dos danos que irresponsabilidades daquele tipo causam nas vítimas e em
seus familiares:
- Cada artigo seu que saía em defesa do Orlando a gente mandava para
nossos familiares, para mostrar que Orlando não é desonesto.

18 https://goo.gl/yGwKud
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Os furos de Carlinhos Cachoeira

Quando a CPMI de Carlinhos Cachoeira divulgou os grampos levantados


pela Operação Monte Carlo, da Polícia Federal, foi possível identificar a
maioria das matérias plantadas por ele na Veja, porque estavam justamente
entre as mais ostensivamente falsas.
Do grampo da PF
CACHOEIRA: Jairo, põe um trem na sua cabeça. (...) os grandes
furos do Policarpo fomos nós que demos, rapaz. Todos eles
fomos nós que demos (...).
Cachoeira: Eu fiquei puto porque ontem ele xingou o Dadá tudo
pro Cláudio, entendeu? E você dando fita pra ele, entendeu? (...)
CACHOEIRA: Agora, vamos trabalhar em conjunto porque só
entre nós, esse estouro aí que aconteceu foi a gente. (...)
Limpando esse Brasil, rapaz, fazendo um bem do caralho pro
Brasil, essa corrupção aí. Quantos já foram, rapaz. E tudo via
Policarpo.
As digitais do bicheiro e seus associados, incluindo o senador Demostenes
Torres, estão nos principais furos da Sucursal de Brasília ao longo do
governo Lula: os dólares de Cuba, o dinheiro das FARC para o PT, a
corrupção nos Correios, o espião de Renan Calheiros, grampo sem áudio, o
“grupo de inteligência” do PT.
O que essas matérias tinham em comum:
1) A origem das denúncias é sempre nebulosa: “um agente da
ABIN”, “uma pessoa bem informada”, “um espião”, “um
emissário próximo”.
2) As matérias sempre se apoiam em fitas, DVDs ou cópias de
supostos relatórios secretos – que nem sempre são apresentados
aos leitores, se é que existem.
3) As matérias atingem adversários políticos ou concorrentes nos
negócios de Cachoeira e Demostenes Torres (o PT, Lula, o grupo
que dominava os Correios, o delegado Paulo Lacerda, Renan
Calheiros, a campanha de Dilma Rousseff)
4) Nenhuma das denúncias divulgadas com estardalhaço se
comprovou (única exceção para o pedido de propina de 3 mil
reais no caso dos Correios).
5) Assim mesmo, todas tiveram ampla repercussão no resto da
imprensa.
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As reportagens sobre Os dólares de Cuba

A reportagem de Veja, na edição de 2 de novembro de 2005, sobre o suposto


financiamento cubano à campanha do PT, baseava-se no depoimento de duas
fontes -Rogério Buratti e Vladimir Poleto, da república de Ribeirão Preto,
do terceiro escalão petista, ligados a Antônio Palocci, mas deserdados pelo
partido.
Fazia tempo que Buratti estava na mira de Carlinhos Cachoeira por suas
tentativas de influir no sistema de loterias da Caixa Econômica Federal.
Segundo a reportagem, entre agosto e setembro de 2002, US$ 1,4 milhão
(ou US$ 3 milhões, não se sabe), em notas de dólares, chegaram à casa de
um diplomata cubano em Brasília, foram colocadas em três caixas de bebida
que percorreram longo trajeto -transportados por um jatinho, que saiu do
aeroporto de Brasília, passou por Viracopos e, de lá, de carro para a sede
do PT, em São Paulo, levadas por Poleto, que achava que transportava
bebidas.
A única testemunha, o transportador, não viu os dólares. Teria sabido da
natureza da carga tempos depois, por meio de Ralf Barquette, assessor de
Palocci. Só que Barquette já havia morrido. Mencionou-se como possíveis
testemunhas a viúva (que negava saber qualquer coisa, segundo a própria
reportagem) e o empresário ribeirão-pretano Chaim Zaher -que não foi
ouvido pelo repórter, mas também negou.
Restavam os testes de verossimilhança.
Como a maior nota é de 100 dólares, seriam 14 mil ou 30 mil notas de
100 dólares, que jamais caberiam em três caixas de bebida.
A inteligência cubana é considerada eficiente e profissional, inclusive por
suas congêneres do Primeiro Mundo. Tem experiência em operações de
inteligência no exterior, com 15 anos em Angola, apoio ao sandinismo, à
guerrilha em países africanos, ao chavismo na Venezuela, aos cocaleros da
Bolívia e às Farc.
Antes de Cuba quebrar, o governo cubano tinha dezenas de “tradings” no
Panamá ou mesmo a Cubatour (a agência oficial de turismo, muito utilizada
nos anos 80). Bastaria uma delas depositar na conta de um doleiro brasileiro
em Nova York, ele sacar em reais aqui e entregar ao PT. Tudo terceirizado e
limpo. É assim que funciona o mercado paralelo, justamente para dispensar
o passeio das notas.
Sendo profissionais, os cubanos jamais envolveriam seu diplomata mais
conhecido no Brasil, Sérgio Cervantes, em uma operação de transporte
físico de dinheiro vindo do exterior. Seria um risco desnecessário.
Por isso mesmo, era difícil entender a lógica de caixas com dólares
passeando por dois aeroportos, sendo levadas à própria sede oficial do PT
em São Paulo (três locais sob estreita vigilância da PF), em plena campanha
eleitoral, com os ecos do caso Lunus ainda vivos, e jornalistas
permanentemente postados na porta do prédio. Depois, o mala-preta indo até
o escritório do doleiro e saindo de lá com malas de reais.
Mesmo assim, a notícia rendeu durante semanas. Jamais foi desmentida,
mesmo nunca tendo sido confirmada.
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O caso Farcs

Na edição de 16 de março de 2005, Veja cometeria mais um de seus


malabarismos editoriais, com a matéria “Tentáculos das FARC no Brasil”
produzida em parceria com Cachoeira
Foi matéria de capa. A ilustração era uma metralhadora e o texto
incriminador:

“Espiões da ABIN gravaram representantes da narcoguerrilha colombiana


anunciando doação de 5 milhões de dólares para candidatos petistas na
campanha de 2002”.
Depois, outro texto:
“PT: militantes serão expulsos se pegaram dinheiro das Farc”.
Havia excesso de textos na capa, ferindo princípios básicos de clareza
editorial. A revista estava em plena campanha, na sucessão de capas sobre
Lula. E pouco lhe interessava saber da consistência ou não das matérias. Nas
páginas internas, ficaria mais claro o estilo Veja de criar matérias através da
manipulação de ênfases.
Jogam-se acusações enfáticas. Depois, algumas ressalvas para servir de
blindagem contra ações judiciais, seguidas de novas acusações taxativas.

O que se tinha, objetivamente, era um informe da ABIN (Agência Brasileira


de Inteligência), uma página, três parágrafos e nada mais, na qual um
agente infiltrado relatava um encontro em uma chácara, com um padre
supostamente ligado às FARCs. O padre era conhecido como um mitômano,
há muito tempo afastado do contato com as FARCs.
No encontro, teria mencionado o suposto financiamento à campanha do
PT. Não havia nenhuma indicação a mais sobre isso. Na ABIN, não se levou
a sério o informe.
Para sustentar a matéria, Veja assegurava que o informe tinha recebido
tratamento relevante da ABIN e que havia documentos comprovando as
doações. Não aceitou a palavra oficial da ABIN, de que nunca levou a sério
o informe.

O ping pong das acusações


Nas páginas internas, a chamada era forte.
”Documentos secretos guardados nos arquivos da ABIN informam que a
narcoguerrilha colombiana Farc deu 5 milhões de dólares a candidatos
petistas em 2002”
A matéria começava com afirmações taxativas:
”Nos arquivos da Agência Brasileira de Inteligência em
Brasília há um conjunto de documentos cujo conteúdo é
explosivo. Os papéis, guardados no centro de documentação da
ABIN, mostram ligações das Forças Armadas Revolucionárias
da Colômbia (Farc) com militantes petistas. (...)
Em apenas uma folha e dividido em três parágrafos, esse
documento informa que, no dia 13 de abril de 2002, um grupo
de esquerdistas solidários com as Farc promoveu uma reunião
político-festiva numa chácara nos arredores de Brasília.
Na reunião (...) o padre Olivério Medina, que atua como uma
espécie de embaixador das Farc no Brasil, fez um anúncio
pecuniário. Disse aos presentes que sua organização
guerrilheira estava fazendo uma doação de 5 milhões de dólares
para a campanha eleitoral de candidatos petistas de sua
predileção. A notícia foi recebida com aplausos pela plateia.
Faltavam então menos de seis meses para a eleição. Um agente
da ABIN, infiltrado na reunião, ouviu tudo, fez um informe a
seus chefes, e assim chegou à ABIN a primeira notícia de que as
relações entre militantes esquerdistas, alguns deles petistas, e
as Farc podem ter ultrapassado a mera simpatia ideológica e
chegado ao pantanoso terreno financeiro”.
O “anúncio pecuniário” - segundo a escorreita expressão da revista – estaria
mencionado em três documentos da ABIN.
“Num deles, está descrita a forma de pagamento: o dinheiro
sairia de Trinidad e Tobago, um pequeno país do Caribe, e
chegaria às mãos de cerca de 300 pequenos empresários
brasileiros simpáticos ao PT, que, por sua vez, fariam
contribuições aos comitês regionais do partido como se os
recursos lhes pertencessem”.
Assim como na matéria sobre os “dólares de Cuba”, a operação era
inverossímil. Como se poderia manter sob sigilo uma operação que
envolveria 300 pequenos empresários brasileiros? Fugia ao bom senso. Mas
a revista não se deixava intimidar e mandava o bom senso às favas:
Em outro documento, aparece a informação de que o acerto financeiro
fora celebrado entre membros do PT e das Farc durante uma reunião
realizada numa fazenda no Pantanal Mato-Grossense – e que os encontros de
cúpula seriam articulados com a ajuda de Maria das Graças da Silva, uma
funcionária da Câmara dos Deputados em Brasília que já militou no PC do B
e seria amiga muito próxima do “comandante Maurício”, apontado como a
maior autoridade das Farc no Brasil.
Para se prevenir contra eventuais ações judiciais, incluíam-se as
ressalvas, formando o estilo pterodátilo.
A apuração comprovou a reunião, o local, a data e os
personagens. Só não encontrou o principal: provas ou ao menos
indícios de que os 5 milhões de dólares tenham realmente saído
das Farc e chegado aos cofres do PT.
A doação financeira é dada como realizada pelos documentos
da ABIN, mas a investigação de VEJA não avançou um
milímetro nesse particular. Pode ter sido apenas uma bravata do
padre Olivério Medina, codinome de Francisco Antônio
Cadenas Colazzos, para alegrar seus convivas esquerdistas?
Pode. Além da convocação manifestada nos documentos da
ABIN, a revista não encontrou elementos consistentes para que
se faça uma afirmação sobre esse aspecto.
O expediente era o mesmo adotado na capa sobre o falso dossiê das contas
de autoridades brasileiras no exterior.
Os documentos mostram que as informações ali contidas foram checadas
(pela ABIN) com afinco. (…)O documento 0095/3100, de 25 de abril de
2002, o principal entre todos os que narram as ligações entre militantes
petistas e as Farc, passou por todas essas etapas e acabou com um carimbo
de “secreto”. Isso significa que suas informações eram críveis e seu
conteúdo tinha consistência suficiente para ser levado ao conhecimento do
presidente da República.
Na edição seguinte, de 23 de março de 2005, a matéria receberia uma
suíte no mesmo estilo. Primeiro, um sonoro desmentido da ABIN:
VEJA noticiou que o auxílio financeiro aparecia no documento número
0095/3100, datado de 25 de abril de 2002 e classificado como “secreto”.
Tudo isso foi confirmado pelo general (Jorge Armando Felix), mas houve um
adendo categórico. O general disse que a informação sobre a doação de 5
milhões de dólares não foi levada a sério pela ABIN, que a encarou como
“um boato” e arquivou o documento.
A revista não aceitava as explicações.
A explicação oficial até faz sentido, mas não é verdadeira.
Na semana passada, VEJA voltou a entrevistar o espião que,
infiltrado no movimento sindical em Brasília, abastecia a ABIN
com informações sobre as Farc e suas relações financeiras com
o PT. (…) Esquerdistas convidaram-no para participar da
criação de um comitê em defesa da guerrilha colombiana. O
espião topou e passou a participar de reuniões, quase sempre
reservadas. Até que sua rotina foi quebrada, no dia 13 de abril
de 2002, quando participou da reunião político-festiva de
esquerdistas pró-Farc na chácara Coração Vermelho, situada
nos arredores de Brasília. Foi nessa reunião que o espião ouviu
o padre Olivério Medina, embaixador da guerrilha no Brasil,
falar da doação de 5 milhões de dólares para a campanha de
Lula em 200.
Veja informava ter entrevistado em cinco ocasiões o coronel Eduardo
Adolfo Ferreira, que recebia os informes do espião:
Os memoriais, nome dado a um conjunto extenso de relatórios,
eram encaminhados diretamente à então diretora da ABIN,
Marisa Del’Isola. “A ABIN em São Paulo até rastreou o que
seria uma parte do dinheiro das Farc para o PT.” O coronel
contou que, com a ajuda do setor de inteligência da Polícia
Federal, a ABIN obteve três ordens de pagamento, somando
cerca de 1 milhão de dólares, com indícios de que se tratava de
parte do dinheiro das Farc para o PT. “Não podemos afirmar
que era o dinheiro da guerrilha mesmo. Eram indícios. Indícios
fortes, mas a investigação parou quando o PT ganhou as
eleições e eu saí da ABIN”, contou. (…)
O coronel diz que, nos arquivos da ABIN, há gravações em
áudio das promessas das Farc de ajudar o PT e, também, cópias
das três ordens de pagamento.
Com acesso à fonte, por que a revista não exigiu a apresentação das cópias -
ainda que sob o compromisso de não as publicar? Qual a razão para não ter
ido atrás do elemento que não apenas consolidaria a capa, como seria o
grande furo da reportagem?
O espião do caso Farc disse que está disposto a contar tudo o que sabe no
Congresso, desde que seu depoimento seja tomado em reunião fechada.
Diante dessa possibilidade, VEJA consultou o senador Demostenes Torres,
do PFL de Goiás, membro da comissão que apura a história. O senador disse
que, publicada a reportagem da revista, faria o pedido para ouvir o espião.
Um factoide que não teve suíte. Nem da própria revista. E, nele, a
presença indefectível de Demóstenes Torres.

Escrever pensando
No dia 24 de janeiro de 2008, o diretor de redação de Veja, Eurípedes
Alcântara, proferiu palestra para os alunos do Curso Abril de Jornalismo.
No intertítulo “As marcas de Veja”, Eurípedes descreve a receita de
jornalismo:
O Diretor de Redação expôs alguns pontos essenciais para a produção da
revista. Um deles é o controle que o repórter precisa ter sobre a matéria.
“Não é a pauta ou a fonte que têm de dominar o jornalista”, disse.
Provavelmente, nem a informação pode servir de limitação. Segundo a
aula de Eurípedes, Veja pratica o conceito de “escrever pensando”:
Outro ponto é a diluição de conteúdo opinativo em meio às
reportagens, a qual Eurípedes chama de “escrever pensando”.
O jornalista ponderou sobre as diversas interpretações dos
críticos sobre determinadas reportagens da revista. “Você só
pode ser cobrado por aquilo que escreve. Não pelo que
interpretam”.
Cobrado pela capa das FARCs, explicou o que a revista fez:
“A Veja disse que a ABIN estava investigando. Não disse que
Lula recebia de guerrilheiros. Isso é uma interpretação”.
De fato, tudo não passou de uma grande interpretação, com direito a capa.
.

O fim da parceria Veja-Cachoeira

Quando as Operações Vegas e Monte Carlo vieram à tona, mostrando as


relações entre o bicheiro Carlinhos Cachoeira, o senador Demóstenes Torres
e o jornalista Policarpo Júnior, o bunker da Editora Abril entrou em
polvorosa.
Há muito sabiam dos riscos dessa parceria. Alguns anos antes, quando
publiquei o capítulo “O araponga e o repórter”, na série sobre a Veja, pela
Internet, fui procurado por Sidney Basile, assessor especial de Roberto
Civita, propondo um acordo. Eles abririam mão das cinco ações abertas
contra mim – em nome de seus jornalistas – em troca de interromper as
denúncias.
Aceitei o almoço com uma condição:
- Metade do almoço você é o assessor do Roberto Civita. Na outra
metade, somos velhos companheiros e você me explica essa piração que
tomou da revista.
No almoço, Sidney revelou a profunda preocupação da Abril com o
envolvimento da redação com Cachoeira.
Não aceitei o acordo e as ações continuaram a rolar.
Com a abertura da CPI de Cachoeira, ameaçando trazer à tona todo o
material das Operações Monte Carlos e Las Vegas, claramente Roberto
Civita entrou em pânico.
As primeiras informações davam conta de mais de 200 ligações
grampeadas entre Policarpo, Carlinhos e outros membros da quadrilha.

Teve início, então, uma complicada operação de abandonar o barco de


Cachoeira
Na edição de 4 de abril de 2012, começou o desembarque e Veja deixou
o aliado ferido no campo de batalha.
Reportagem com o título “O senador desce aos infernos”, crava a estaca
no coração de Demóstenes Torres.
Dizendo dispor de gravações da PF, obtidas “com exclusividade pela
revista”, contava sobre os negócios entre Demóstenes e Cachoeira – tratado
cerimoniosamente como “o contraventor Carlos Cachoeira”. O tom
editorialesco era típico da direção de redação:
Um congressista usar do cargo para defender interesses
privados é inaceitável em qualquer ambiente que preze
minimamente valores republicanos.
Continua a reportagem, como se fosse uma ampla novidade para a revista.
“A situação torna-se ainda mais insustentável quando o
congressista pilhado ipo de comportamento é, aos olhos do
grande público, o mais ardoroso defensor da moral e dos bons
costumes19.
A edição de 2 de maio de 2012 trazia, nítido, o desconforto da revista com a
CPI.
O título já indicava isso: “Todos sabem como elas começam...”
De autoria de Otávio Cabral e Daniel Pereira, a reportagem começa com
um surpreendente panegírico à presidente Dilma Rousseff:
A presidente Dilma Rousseff bateu novo recorde de aprovação
popular, angariando apoio em todas as faixas de renda e de
escolaridade da população. Não foi a única boa notícia para
ela. Segundo uma pesquisa do Instituto Datafolha, Dilma
venceria com folga ainda maior um adversário da oposição se a
eleição presidencial fosse hoje. Além disso, já é vista como a
candidata natural do PT, em 2014, por um em cada três
entrevistados. EM um ano, e quatro meses de mandato, Dilma
saiu da sombra de Lula, conquistou uma fatia do eleitorado que
negara voto ao antecessor e – como aponta o levantamento –
concorre com ele para ser o principal polo de poder do país.
O que esse exercício de lisonja tinha a ver com o tema? Se entenderá
continuando a ler a reportagem:
Uma rivalidade que ultrapassa a gélida seara das estatísticas e
já incendeia os bastidores da CPI do Cachoeira, instalada na
semana passada. Dilma e Lula têm concepções diferentes dos
métodos e dos objetivos da comissão que investigará as relações
da quadrilha de jogatina com parlamentares, governadores e
empreiteiras. Pelo menos na primeira rodada, a presidente
levou vantagem, garantindo um plano de trabalho inicial
submetido aos valores republicanos e menos suscetível a sofrer
pressões políticas subalternas da falconaria petista”.
A revista, que se notabilizara pelo exercício cotidiano de todas as infâmias,
pelos mais despudorados ataques que um órgão de imprensa jamais ousou
contra figuras públicas ou privadas, de repente tornava-se doce, acolhedora,
quase súplice.
Os elogios não eram apenas para Dilma, mas também para o relator
escolhido, deputado Odair Cunha (PT-MG), “moderado, admirado pela
presidente e com bom trânsito no Palácio”.
Terminou afirmando que as relações de Cachoeira com o PT eram
históricas, tentando salvar a cara perante seus leitores, após tantos elogios
inesperados à chefe do governo.
Em nenhum momento abriu o jogo sobre a origem do escândalo do
“mensalão”, uma parceria Cachoeira-Veja.
Na edição de 16 de maio de 2012, o pânico tornou-se explícito. Àquela
altura, Roberto Civita estava na mira da CPI de Cachoeira. Já na capa, Veja
invocava dispositivos constitucionais para assegurar sua impunidade. A
manchete era: “A imprensa acende a luz”.
Veja e demais veículos empreendiam uma maratona visando desalojar a
CPI com o noticiário sobre o “mensalão”.
Os demais grupos jornalísticos vieram, então, em socorro de Roberto
Civita. O Globo publica um editorial de apoio a Civita que mereceu
demonstração de um alívio quase cômico, por parte de Civita.
Veja deu pleno destaque ao editorial. O alívio estampado era evidente.
Em defesa da liberdade
Sob o título “Roberto Civita não é Rupert Murdoch”, o jornal O Globo
publicou um editorial que ficará na história das lutas democráticas no Brasil.
O jornal da família Marinho levantou-se contra as tentativas políticas de
criminalizar o trabalho jornalístico de Veja, comparando-o à teia de ações
ilícitas promovidas por publicações do australiano Murdoch na Inglaterra”.
Segundo Veja,
“o jornal desmontou a acusação mais odiosa contra Roberto
Civita, presidente do Conselho de Administração do Grupo Abril
e editor de Veja: “Comparar Civita com Murdoch é tosco
exercício de má fé”.
De fato, em nenhum momento Murdoch chegou onde Civita chegara, de dizer
que a mídia seria o novo poder político do país.
Na edição de 23 de maio de 2012, em um enorme esforço para conseguir
que a CPI terminasse em pizza, reportagem de Otávio Cabral e Daniel
Pereira esmerou-se em difundir as ameaças de Fernando Cavendish, dono da
Delta.
Montou-se a mesma situação de outras CPIs fracassadas, como a do
Banestado, a dos Precatórios. Havia uma corrupção ampla que ameaçava
vários setores. A mídia tratava, então, de divulgar as ameaças dos principais
réus, visando o final em pizza.
A reportagem era isso: do começo ao fim um festival de ameaças de
Cavendish:
“Nos bastidores, seu dono ameaça revelar segredos que comprometeriam
políticos e outras grandes empreiteiras”.
Parceria da maioria das jogadas de Cachoeira, Veja descrevia assim o
jogo do bicheiro:

“Deflagrada pela Polícia Federal, das operações Vegas e


Monte Carlos revelaram o envolvimento do contraventor Carlos
Cachoeira com o senador Demóstenes Torres (ex-DEM) e
Cláudio Abreu, ex-diretor da Delta na região Centro-Oeste.
Entre outras atividades, o trio agia para abrir os cofres dos
governos estaduais e federal à empresa”
A reportagem inteira recende ameaças contra o PT, para também pressioná-
lo a enterrar a CPI de Cachoeira.
“O ex-presidente sabe do potencial de dano ao PT e a seus
aliados, caso Fernando Cavendish conte como a sua Delta
conseguia seus contratos de obras e, em troca, pagava
políticos”.
(...) A Delta tem obras contratadas por governadores
pertencentes aos maiores partidos do país – PT, PSDB e PSDB,
Será que essa onipresença da Delta explica as razões pelas
quais a CPI decidiu não chamar para1 depor os governadores
Agnelo Queiroz (PT-DF), Marconi Perillo (PSDB-GO) e Sérgio
Cabral (PSDB-RJ)?
No restante da reportagem, continuou-se despejando ameaças de Cavendish.
Ao invés de se valer das supostas informações de Cavendish para investigar,
Veja as utilizava para atemorizar a CPI:
Nos bastidores, Cavendish tem falado. E muito. Ele usou
interlocutores de sua confiança para divulgar suas mensagens.
Uma delas foi endereçada a políticos. Seus soldados
espalharam a versão de que a empreiteira destinou cerca de 100
milhões de reais nos últimos anos para o financiamento de
campanha eleitorais – e que o dinheiro, obviamente, percorreu o
bom e velho caminho dos “recursos não contabilizados”. Uma
informação preciosa dessas deveria excitar o ânimo
investigativo da CPI de Cachoeira”.

Na edição de 30 de maio de 2012, com o título “A CPI encontra seu


caminho”, Veja tentou se desvencilhar de vez das ligações com Cachoeira.
Primeiro, elogiou a CPI pelo fato de tirar o foco da mídia e,
particularmente, da Veja. Depois, apontou para as ligações entre a Delta e
Carlinhos Cachoeira, como se fosse uma novidade para a revista.
“Já se sabe que a construtora tinha o contraventor como uma
espécie de sócio oculto e, através dele, mantinha em
funcionamento um gigantesco caixa dois, ao que tudo indica,
para pagar propinas e financiar campanhas políticas.
A revista “descobria” também que Cláudio Abreu, ex-diretor da Delta no
Centro-Oeste, tinha procuração para movimentar contas bancárias da
empreiteira.
Mais ainda:
“Desde que a Polícia federal desbaratou o esquema de jogos
ilegais operado por Carlos Cachoeira, era sabido que a Delta
nacional transferira 39 milhões de reais para empresas de
fachadas sediadas em Brasília.
A reportagem insistia em envolver José Dirceu na história, mesmo
Cachoeira tendo alimentado a revista de grampos contra ele. No fundo, era
uma maneira de encontrar um álibi perante seus leitores: se a Delta estava
com Dirceu, logo Cachoeira não estava com a Veja.
No final, a revista refere-se a seu ex-parceiro Demóstenes Torres:
Alvo de um processo de cassação, Demóstenes diz já ter 32
votos favoráveis à sua absolvição. Portanto, para preservar o
mandato, precisa convencer ainda mais nove colegas de que é
perdoável o erro de ter se apresentado tanto tempo com face de
implacável paladino da ética enquanto atendia a interesses do
bicheiro Cachoeira.
Foi bem-sucedida nas suas tentativas de intimidação, graças ao rabo preso
de todo o meio político com a Delta e com Cachoeira, incluindo o PT. E
graças à blindagem do Ministério Público Federal e da Polícia Federal à
própria imprensa.
A CPI terminou de forma inglória, com a pizza sendo endossada pelo
relator do PT. E, mesmo com a abundância de provas, não foi aberto um
inquérito sequer para investigar uma parceria – de Cachoeira, Veja e
Demóstenes – que durante anos operou para os negócios do bicheiro e da
revista.
No dia 30 de julho de 2012, a esposa de Cachoeira, Andressa Mendonça,
tentou o último uso da parceria, ameaçando chantagear o juiz federal
Alderico Rocha Santos20.
Sua ameaça foi direta: tinha em suas mãos um dossiê produzido pelo
jornalista Policarpo Junior a pedido de Carlinhos Cachoeira. Se não soltasse
Cachoeira, Veja publicaria a matéria.
O casamento Cachoeira-Veja já tinha terminado e a chantagem falhou.
Mas Andressa demonstrou, rapidamente, o que deve ter ocorrido em escala
macro no longo período de casamento entre Veja e Cachoeira.
A frente cerrada da mídia em favor de Civita salvou-o da CPI e de
qualquer investigação posterior. Nem o Procurador Geral Roberto Gurgel
ousou avançar nas denúncias levantadas pela Operação Monte Carlo contra a
revista.
Roberto Civita morreu celebrado como um grande homem. E mereceu de
Fernão Mesquita, herdeiro do Estadão, a maior prova de falta de
discernimento que tomou conta dos grupos familiares de mídia, ao equiparar
Civita a seu pai Ruy Mesquita, um conservador dono de um caráter
jornalístico da escola de Pulitzer, em tudo diferente do Murdoch ítalo-
brasileiro.

19 https://veja.abril.com.br/brasil/em-fitas-demostenes-age-como-socio-de-cachoeira/
20 https://goo.gl/UXohT
.

O caso Satiagraha

Com dois cadernos milionários de publicidade na Veja, Dantas


consegue que um colunista da revista se torne seu instrumento nas
guerras pelo controle das comunicações no país.
.

A maneira como Civita acertou com Dantas

O primeiro contato mais estreito da Veja com o banqueiro Daniel Dantas foi
em 1999.
Em 10 de março de 1999, em pleno escândalo das “fitas do BNDES”,
Veja recebeu material demonstrando que a Previ – o fundo de pensão dos
funcionários do Banco do Brasil -- tinha assinado acordo com o banco
Opportunity, de Daniel Dantas, mesmo tendo sido desaprovado por sua
diretoria.
A matéria foi feita pelo repórter Felipe Patury
“No início de fevereiro, um diretor do fundo, Arlindo de
Oliveira, mandou uma carta ao presidente da Previ. São três
páginas, e o tom é de indignação, expresso em frases que se
encerram com três pontos de exclamação. Na carta, o diretor
relata que a diretoria da Previ, reunida em julho do ano
passado, decidiu que não faria parceria com o Opportunity no
leilão das teles tendo de pagar ao banco 7 milhões de reais por
ano de “taxa de administração”. A diretoria achou o valor
descabido e decidiu só fazer o negócio se não tivesse de pagar a
taxa. O estranho é que essa decisão foi ignorada. A Previ
associou-se ao Opportunity na compra de três teles (Tele Centro
Sul, Telemig Celular e Tele Norte Celular) e comprometeu-se a
arcar com os 7 milhões de reais por ano, apesar da decisão
contrária da diretoria”.
Segundo a matéria, a Previ também havia entrado – sem autorização da
diretoria – na operação de compra da Telemar que – na época – pensava-se
que sairia para o Opportunity.
Na semana seguinte, o repórter conseguiu mais material junto às suas
fontes. Chegou a preparar a matéria. Uma semana depois, na edição de 17 de
março de 1999, a matéria não saiu publicada. Mas, pela primeira vez, o
banco Opportunity – denunciado na edição anterior – bancou duas páginas de
publicidade na revista
Não batia. O Opportunity não era banco de varejo, não atuava sequer no
middle market, não havia lembrança de publicidade dele nem mesmo em
revistas especializadas – como a Exame.
No dia 31 de março de 1999, mais duas páginas de publicidade do
Opportunity. E a matéria não saiu.
A revista voltou a açoitar o banqueiro em plena efervescência da batalha
pelo controle das teles, tendo Dantas de um lado e fundos de pensão estatais
de outro.
No dia 28 de julho de 2004, saiu o primeiro petardo contra Dantas. Na
matéria “Um negócio de espiões”, de Alexandre Oltramari, ele era
frontalmente acusado de espionar autoridades brasileiras.
“O caso mais explícito, e o mais grave, é a vigilância de espiões
sobre os passos de Cássio Casseb, atual presidente do Banco do
Brasil e ex-conselheiro da Telecom Italia. Nos relatórios
divulgados na semana passada, fica-se sabendo que a Kroll
Associates, a maior empresa de investigação corporativa do
mundo, contratada pelo Opportunity, andou no encalço de
Casseb por quase um ano, tendo, inclusive, monitorado suas
contas bancárias pessoais – em uma flagrante violação da lei
brasileira.
Nesses movimentos iniciais, nas matérias da Veja Dantas era o vilão; os
demais, suas vítimas.
As entradas de Dantas na revista se davam, apenas, através da seção
Radar. Mas, de uma maneira geral, a linha editorial da revista continuava na
direção oposta: atacar Dantas.
No dia 3 de novembro de 2004, outro petardo contra Dantas: a matéria “O
dia da caça”, assinada por Márcio Aith. O subtítulo já era indicativo do tom
da matéria:
“A Polícia Federal deflagra uma operação contra a Kroll, que,
contratada pelo banqueiro Daniel Dantas, pode ter espionado
até o ministro José Dirceu”.
Na matéria se dizia que:
A Kroll, contratada pela Brasil Telecom dominada por Dantas,
foi acusada de usar métodos ilícitos numa investigação que
teria como objetivo levantar informações comprometedoras
sobre a Telecom Italia. Os indícios de que a empresa de
investigação vinha agindo à margem da lei foram reforçados à
Polícia Federal pela própria Telecom Italia.
Conversas entre Verdial e seu chefe, o inglês que se apresenta
como William Goodall, mostram também que fontes policiais e
da Receita Federal foram pagas pela Kroll para facilitar o
acesso da empresa a informações sigilosas de seus investigados.
A matéria revelava as ligações jornalísticas de Dantas.
Os documentos repassados à Polícia Federal pela Telecom
Italia incluem um e-mail que a PF atribui ao jornalista
Leonardo Attuch, da revista IstoÉ Dinheiro. A mensagem foi
enviada em setembro para Charles Carr, chefe do escritório da
Kroll em Londres. Nela, o remetente, que se identifica por meio
do pseudônimo “Silvio Berlusconi”, comenta em tom de
intimidade uma reportagem que havia feito sobre a empresa
italiana Tecnosistemi, ligada ao grupo Tim e envolvida em
denúncias de falência fraudulenta (na edição datada de 14 de
julho deste ano, a revista IstoÉ Dinheiro saiu com uma
reportagem sobre o assunto, assinada por Attuch). No fim da
mensagem, o remetente afirma que gostaria de ter acesso “à
informação que você tem sobre o Dirceu”. Conclui dizendo:
“Tenho certeza de que renderia uma grande reportagem.”
No final da matéria havia um boxe, “O gênio do mal”, de Lucila Soares e
Monica Weinberg, traçando um perfil de Dantas.
“Também seus colegas na corretora Triplic, onde trabalhou no
início da carreira (quando ainda usava rabo-de-cavalo e bolsa
a tiracolo), espantavam-se com seu talento, que lhe rendeu o
apelido de “professor Gavião, o gênio do mal”. Era só uma
brincadeira de jovens, mas já caracterizava um estilo marcado
pelo hábito de “agir na fronteira”, na definição do próprio
Dantas. A expressão traduz uma ousadia que, segundo amigos, é
capaz de levar o banqueiro a atuar freqüentemente no limite da
legalidade”.
No dia 18 de maio de 2005 sairia uma terceira grande matéria, “A Usina de
Espionagem da Kroll”, assinada por Marcelo Carneiro e Thais Oyama, em
cima de uma operação da Polícia Federal contra a Kroll. Anotem a data
porque marca o fim da era de críticas a Dantas.
Dizia a matéria:
“Até então, porém, suspeitava-se que a empresa havia
atropelado os limites estabelecidos pela Constituição para
atender apenas aos interesses da Brasil Telecom – até o mês
passado comandada por Daniel Dantas, do banco Opportunity.
O material reunido pela PF no curso da investigação, batizada
de Operação Chacal, revela, no entanto, que pelo menos desde a
década de 90 a Kroll se dedica a monitorar a vida de dezenas de
pessoas, entre elas políticos e empresários – e nem sempre por
meio de expedientes legais”.
O simples fato de se saber que praticava ilegalidades já seria suficiente para
ser tratado com cautela por qualquer jornalismo sério. A revelação de que
comprava reportagens recomendava afastamento total.
Nos meses seguintes, porém, uma profunda transformação aconteceria na
linha editorial da revista que denunciara, pouco antes, essas manobras de
Dantas.
A razão foi simples. Até então a parceria de Roberto Civita era com
Giorgio dela Seta, presidente da Pirelli Brasil. Assim como no Brasil, o
suspeito processo de privatização da Telecom Itália jogou o controle nos
braços de Marco Tronchetti Provera, um aventureiro que se casou com uma
bisneta do fundador da empresa, Leopoldo Pirelli.
Dantas conseguiu atravessar a aliança e montar sua própria operação com
Civita. E valeu-se, para tal, da receita descrita no filme “O poder da mídia”.

A estratégia de Dantas na Veja


Diogo Mainardi mantinha-se um colunista cultural que, a partir de certo
momento, ganhou liberdade para ofender personalidades políticas, culturais.
Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, Dantas havia conquistado
o controle de várias teles – a Brasil Telecom, Telemig Celular, Telemig
Amazônia – através de jogadas com fundos de pensão. Com parcela ínfima
do capital assumiu o controle de várias delas, envolveu-se em lutas pesadas
com empresas estrangeiras que tiveram a infelicidade de tê-lo como sócio.
Denunciei algumas manobras de Dantas e tornei-me alvo de ataques pesados
de Mainardi em duas edições sucessivas da revista. Cada edição veio
acompanhada de suplementos de oito páginas de publicidade das empresas
Telemig Celular e Amazônia Celular.
Começava ali uma parceria empresarial que perduraria por toda a
Operação Satiagraha - deflagrada pela Polícia Federal e pelo Ministério
Público Federal e que terminou sem conclusão graças à notável influência de
Dantas no poder judiciário.
Depois das duas edições, cessaram os cadernos de publicidade. Mas a
imagem da Veja já estava indelevelmente contaminada pela venda explícita
de espaço editorial.
Quando divulgaram os grampos da Satiagraha, em uma das conversas com
uma assessora Dantas revelava sua decepção pelo fato da coluna de
Mainardi estar sendo gradativamente relegada a segundo plano, sinal de que
Veja estava colocando um fim ao acordo firmado.
Antes disso, o que se viu, da parte da revista, foi um dos grandes
episódios de manipulação da história do jornalismo.
.

O caso Edson Vidigal

A tentativa de “assassinato de reputação” do Ministro Edson Vidigal,


presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi um dos capítulos em
que o descuido editorial da revista deixou impressões digitais sobre a sua
tática de armar escândalos.

A matéria vinha com uma manchete dúbia:


“Não pode pairar a dúvida. O presidente do STJ é envolvido em casos
que precisam ser esclarecidos”.
A matéria não enfocava uma suspeita específica. Havia um estoque de
fatos relacionados a Vidigal - o que demonstrava, nitidamente, que se tratava
de um dossiê especialmente preparado contra ele.
A primeira acusação era um “esquentamento” de fato banal, visando
conferir tratamento escandaloso: o de que Vidigal viajara para o Chile, para
um Congresso patrocinado pela Amil, empresa de seguro saúde, sendo que,
na semana anterior, havia liberado um reajuste de 26% para o setor de
planos de saúde.
A viagem tinha sido em um final de semana, em um seminário para
discutir a legislação chilena para o seguro saúde. A matéria procurava
ressaltar aspectos de mordomia:
“O seminário realizou-se em Santiago, no Chile. Foi uma curta temporada
regada a bons vinhos daquele país e com todas as mordomias que costumam
acompanhar esses rega-bofes”.
O “prego sobre vinil” esquentava a matéria com obviedades. É óbvio que
qualquer Congresso tem coquetéis e almoços e, sendo no Chile, vinhos
chilenos.
Pouco importava se o patrocinador não tinha ingerência na programação,
ou se um final de semana trabalhando em Santiago de Chile está longe de
configurar suborno ou mordomia.
Para tornar mais estranha a acusação, não havia a prova do suborno: a
matéria informava que, com sua sentença, Vidigal limitara-se a convalidar
um parecer da Secretaria de Direito Econômico sobre o tema. Onde a
relação, então, entre favor recebido e serviço prestado?
Dizia mais:
“Muito provavelmente, o pedido da Amil é justo. Mas, depois da viagem
ao Chile, também é justo levantar suspeita sobre o julgamento da liminar.”
Mas, para efeito de levantar a mancha da suspeita, dizia que “um
observador de fora tem o direito de enxergar no episódio os contornos de
improbidade administrativa. O caso deverá ser analisado pelo Conselho
Nacional de Justiça, órgão recém-criado com a incumbência de exercer o
controle externo do Judiciário.”
De fato, a “denúncia” foi feita por uma Associação de Defesa da
Cidadania e do Consumidor... mencionando justamente a matéria de Veja.
Era de um amadorismo constrangedor. Veja divulgava uma denúncia ao CNJ
baseada na própria reportagem que ainda não havia sido publicada.
A denúncia nasceu morta. O corregedor Antônio de Pádua Ribeiro
rejeitou-a por não estar “consubstanciada infração disciplinar nem violação
dos deveres funcionais da magistratura”.
A segunda denúncia do dossiê era que o nome de Vidigal aparecera em
grampos com membros da quadrilha do argentino Cesar de La Cruz Arrieta.
Como eram fitas de um inquérito sigiloso, era óbvio que o dossiê fora obtido
de forma ilegal por membros do submundo que habita Brasília.
A matéria reconhecia que a menção a Vidigal poderia ser apenas bravata
de contraventores. Mas colocava como agravante o fato do apartamento de
um enteado de Vidigal ter sido alugado para os bandidos.
Vidigal explicou que o apartamento tinha sido entregue a uma imobiliária,
que se responsabiliza por quem aluga.
“O apartamento, pelo que sei, estava entregue a uma
imobiliária. E ninguém pede atestado de bons antecedentes
quando aluga um imóvel.” Mas a coincidência envolvendo um
dos mais altos magistrados do país precisa ser esclarecida.”
Que tipo de favor Vidigal poderia ter prestado a Arrieta?
Consultando seus arquivos, ele constatou ter atuado em apenas um caso
envolvendo Arrieta. E sua decisão tinha sido a de negar um habeas corpus a
ele.
A troco de quê aquela marcação?
Apenas os leitores mais bem informados entenderam a ginástica
jornalística perpetrada por Veja.
Pouco tempo antes, Vidigal havia dado a liminar que permitiu aos fundos
de pensão e ao Citibank retomar o controle da Brasil Telecom das mãos de
Daniel Dantas
Foi uma sentença dura contra o Opportunity.
“Com olhos voltados à defesa do interesse público, notadamente
porque envolvidos vultosos recursos do erário, antevejo
ameaçada a ordem econômica. Neste contexto, considero que
eventual prejuízo sofrido pelos fundos de investimento, em
última análise, será suportado pelo erário, com vistas a
garantir a milhares de brasileiros, beneficiários dos mesmos —
e que acreditaram nos fundos de pensões e deles dependem —, a
necessária subsistência”, registrou o ministro Vidigal na
ocasião.
“Considerei, também, nas razões de decidir, as informações
trazidas pelo requerente que dão conta que a decisão objeto da
suspensão entrega a gestão de mais de 10 bilhões de reais em
ativos financeiros, materiais e societários ao Grupo
Opportunity que, anteriormente, já fora destituído da gestão
deste fundo por quebra dos deveres fiduciários, o que, também,
recomenda a concessão da contracautela”, afirmou também o
presidente do STJ.
A sentença de Vidigal foi proferida no dia 15 de junho de 2005. A tentativa
de um novo “assassinato de reputação”, por parte de Veja, em 21 de
setembro de 2005.
No dia 16 de maio de 2006 - quase um ano depois -, acuado pela
revelação do dossiê falso sobre as contas de autoridades no exterior, Dantas
mostraria claramente as peças que se encaixavam nas duas tentativas de
“assassinato de reputação” da Veja, as razões para os ataques a Edson
Vidigal.
Em entrevista à Folha de S. Paulo, Dantas disse o seguinte21:
O controlador do Opportunity, Daniel Dantas, disse à Folha ter
recebido informações de que o governo pressionou o Judiciário
brasileiro para favorecer os fundos de pensão na briga pela
telefônica Brasil Telecom.
“Informaram a mim que teria havido uma intervenção do
ministro Palocci [ex-ministro da Fazenda] junto ao ministro
Edson Vidigal [ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça]
para dar uma decisão favorável aos fundos de pensão”, disse
Dantas em entrevista concedida no último sábado, por
videoconferência. “Fui conferir e ouvi de uma pessoa que
esteve com Palocci que o próprio teria dito não ter sido ele
diretamente, mas alguém ligado a ele [que procurou Vidigal].”
(...) A versão segue as declarações feitas por advogados do
banco em Nova York. Em documento público, eles lembram que
o STJ tem 21 ministros, mas que os litígios entre o Opportunity e
os fundos costumavam ser julgados por Vidigal (o ex-ministro
assinou pelo menos três liminares favoráveis aos fundos de
pensão).
Foi o segundo capítulo de uma longa série de matérias que, nos anos
seguintes, marcaria de forma indelével a parceria Dantas-Veja.

O caso Márcia Cunha


Dois magistrados foram fundamentais para apear o Opportunity do controle
da Brasil Telecom. Antes de Edson Vidigal, a desembargadora Márcia
Cunha, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que deu a primeira sentença
séria desfavorável a Daniel Dantas.
Vamos entender o jogo aproveitando o bom levantamento feito pelo
jornalista Fábio Carvalho, em resposta a uma discussão entre blogs sobre um
dos capítulos da série.
2/10/2005 – “Juíza acusa Opportunity de tentativa de corrupção”.
A Folha publicou denúncia da magistrada que afastou Daniel Dantas do
controle da Brasil Telecom. A juíza acusa um suposto lobista de Dantas,
Eduardo Rascovsky, que teria oferecido propina a seu marido (advogado
aposentado, que teria gravado a conversa) para obter decisão favorável na
briga contra os fundos de pensão e o Citigroup.
Duas informações são relevantes nessa matéria:
1. Opportunity disse desconhecer o homem identificado como
Eduardo Rascovsky.
2 Segundo a assessoria do Tribunal de Justiça, “o Conselho da
Magistratura se declarou incompetente” para examinar os
argumentos que o Opportunity ofereceu contra a juíza Márcia
Cunha. O caso, portanto, seria levado ao Órgão Especial do TJ.
7/10/2005 –“ Justiça analisa decisão de juíza contra Dantas”.
Cinco dias depois, a repórter Janaína Leite é “enviada especial” ao Rio
de Janeiro, invadindo um tema que estava sendo coberto pela sucursal do
Rio.
Diz ela:
“A Folha apurou que” em setembro, antes das acusações da juíza contra o
Opportunity serem publicadas por O Globo (e repercutidas na Folha, através
da sucursal do Rio), o Conselho da Magistratura teria decidido, por
unanimidade, contra Márcia Cunha.
Janaína aproveitava para levantar um conjunto de insinuações contra a
juíza, no mesmo estilo “dossiê” aplicado pela Veja no caso Edson Vidigal.
“Não é a primeira vez que Márcia Cunha sofre questionamentos
administrativos. A primeira foi no início dos anos 1990 e envolvia tentativa
de fraude fiscal. A juíza também foi alvo de críticas por aceitar passagens de
cortesia da Varig quando julgava processos envolvendo a companhia aérea”,
escreve a repórter.
Na entrevista com a desembargadora, fica nítida a intenção de Janaína de
utilizar as perguntas para fabricar insinuações.
“Magistrada vê tentativa de desmoralização”
A juíza Márcia Cunha disse considerar “ofensivo” qualquer
questionamento sobre quem é o autor da sentença assinada por
ela que favoreceu os fundos de pensão na briga pela Brasil
Telecom. Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha
ontem.
Folha - A sra. foi a autora da sentença contra o Opportunity?
Márcia Cunha - Essa pergunta chega a ser ofensiva. Por sorte,
tenho testemunhas que me viram escrevendo. É uma tentativa de
desmoralização.
Folha - O texto é muito diferente dos padrões das suas decisões
anteriores. Por quê?
Márcia - É um processo complexo, com 18 volumes.
Folha - A decisão saiu em poucos dias. A sra. leu tudo?
Márcia - Claro, eu tinha lido o processo há mais tempo porque
dei outras decisões, inclusive favoráveis ao Opportunity.
Folha - A sra. disse que houve uma tentativa de corrupção por
intermédio do seu marido. Por que não colocou isso por escrito
na sua defesa?
Márcia - Como a senhora sabe disso? Não posso dizer, é algo de
maturação sigilosa.
Folha - Mas a sua defesa é pública. E por que denunciar só
agora, pela imprensa?
Márcia - Existem coisas que só podemos dizer quando há
provas. Naquela época não tinha provas. Só vim a público
porque o Opportunity estava distribuindo dossiês contra mim
nas redações de jornais, com coisas falsas.
Folha - Na entrevista a “O Globo” a sra. falou que tinha fitas
mostrando o diálogo. Houve outras conversas com seu marido?
Márcia -Não vou falar sobre isso. Ir contra os interesses deles
expôs meu nome, sai uma coisa torta no jornal e eu nunca mais
recupero a idoneidade.
Folha - A sra. comprou um apartamento de quatro quartos em
Ipanema pouco depois de dar a sentença?
Márcia - Meu Deus, que absurdo! Eu moro de aluguel.
Folha - A sra. mudou quando?
Márcia -Em maio. Aluguei de um casal de velhinhos.
Folha - A sra. ganhou passagens da Varig?
Márcia - A assessoria do tribunal já esclareceu esse assunto.
Não vou falar sobre isso.
Folha - A sra. foi a Nova York por conta própria?
Márcia - Para Nova York? Eu fui para os Estados Unidos em
uma viagem pessoal em maio e só passei uma noite em Nova
York. Fui acompanhar uma pessoa doente. Quem pagou foi ela.
Folha - Casos envolvendo a sra. já foram enviados ao Órgão
Especial antes?
Márcia - Não. Tudo isso não passa de uma enorme mentira para
macular meu nome.
A entrevista fala por si, uma devassa implacável na vida pessoal da juíza,
deixando toneladas de insinuações no ar.
05/11/2005: “Juíza acusada pelo Opportunity é inocentada em processo no
TJ”
A matéria não é mais de Janaína, mas da repórter da Sucursal do Rio,
Luciana Brafman, que informa que a 8ª Câmara Cível do TJ/RJ julgou
improcedente ação que o Opportunity pedia o impedimento da juíza Márcia
Cunha. Uma filha da magistrada seria estagiária em um escritório que
representava os fundos de pensão. Os desembargadores entenderam que a
decisão de Márcia Cunha era “imparcial”. Ainda estava pendente a
manifestação do Órgão Especial do TJ/RJ.
04/03/2006 – “Juíza se afasta de casos com o Opportunity”
Márcia Cunha disse não ter condições de “enfrentar tamanho poderio
econômico” e declara a própria suspeição no caso. Afasta-se. Em matéria
assinada por Elvira Lobato e Pedro Soares, da sucursal do Rio, informa-se
que ela teria sido vítima de boatos, entre eles o de que teria sido corrompida
e “comprado um apartamento em Ipanema”. A decisão de suspender o
acordo guarda-chuva, diz a reportagem, “foi mantida em segunda instância
pelo Tribunal de Justiça do Rio”. O objetivo do “assassinato de reputação”
fora alcançado.
09/04/2006 – “Sócios voltam a negociar controle da BrT”
Nova matéria de Janaína Leite, insistindo na desqualificação da
desembargadora.
(...) O acordo “guarda-chuva” está suspenso, mas há uma
chance de ser restabelecido na próxima terça-feira. Se isso
acontecer, o Opportunity poderia reassumir, mesmo que
temporariamente, o controle da BrT, interferindo no rumo das
negociações.
O acordo “guarda-chuva” pode voltar a valer porque a liminar
que o suspendeu está sendo questionada. A liminar foi assinada
pela juíza Márcia Cunha, da 2ª Vara Empresarial fluminense. O
Ministério Público e o Conselho da Magistratura do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro, porém, consideraram indícios de
que a sentença não foi escrita por ela.
(...) A juíza se defendeu das suspeitas e negou a participação de
terceiros na elaboração da liminar. No mês passado, afastou-se
do caso BrT. Julgou-se impedida de emitir novas opiniões sobre
o acordo “guarda-chuva”.
Segundo Márcia Cunha, a decisão foi motivada porque ela não
tem forças para enfrentar o Opportunity. Acusou o grupo de
disseminar calúnias, fazer ameaças a familiares e tentar
corrompê-la.
As acusações da juíza não encontraram respaldo do Ministério
Público e da polícia. Ambos consideraram não existir provas
contra o Opportunity.
05/05/2006 – “Juíza é inocentada de acusação do Opportunity”
Elvira Lobato informa que o Órgão Especial do TJ/RJ inocentou a juíza
Márcia Cunha.
Ontem, ao ser procurada pela Folha, limitou-se dizer que estava “de alma
lavada” com a decisão do Órgão Especial do tribunal”.
Nenhuma manifestação de Janaína. Nem ao menos um “Erramos” da
Folha. O “assassinato de reputação” já tinha produzido os resultados
esperados e novas batalhas estavam a caminho.
O processo disciplinar contra Márcia Cunha foi aberto pelo corregedor
do Tribunal de Justiça do Rio, Carpena de Amorim. Algum tempo depois,
uma batida da Polícia Federal e do Ministério Público Federal no escritório
de doleiros flagrou contas de Carpena no exterior. Foi processado, demitido
e condenado a dois anos de prisão.

O caso Lewis Kaplan


As reportagens sobre o contrato “guarda-chuva” não terminam aí. Na
sequência ocorre o impensável. Janaína publica na Folha uma série de
matérias para serem utilizadas no julgamento do acordo “guarda-chuva” em
Nova York, envolvendo o Citigroup versus Opportunity, tentando influenciar
o juiz Lewis Kaplan.
No final, os advogados do Citigroup denunciam a manipulação feita pela
imprensa. A denúncia sai em reportagem da própria correspondente da Folha
em Nova York.
11/05/2006 – “Grupo Opportunity acusa PT de persegui-lo por negar
propina”
Janaína Leite informa que o Opportunity remeteu carta à Justiça nos
Estados Unidos. O documento acusa o PT de ter pedido propina, em 2002 e
em 2003, de “dezenas de milhões de dólares”.
12/05/2006 – “Opportunity insinua que Lula pressionou Citi contra Dantas”.
Matéria de Janaína Leite e Leila Suwwan (de Nova York). A matéria
contém acusações pesadas:
Correspondência interna trocada entre executivos do Citigroup
sustenta que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva interferiu
em favor dos fundos de pensão e contra o Opportunity na
disputa pela Brasil Telecom.
No dia 26 de abril passado, um advogado do Opportunity se
referiu a essa suposta pressão do presidente ao se dirigir ao juiz
Lewis Kaplan, da Corte de Nova York, responsável pelo litígio
entre o grupo do banqueiro brasileiro Daniel Dantas e o
Citigroup.
A matéria é maliciosa. Coloca como se fosse de Gustavo Marin, presidente
do Citibank Brasil, a afirmação de que o governo brasileiro tem interesses
comerciais e odeia Daniel Dantas. É preciso ler com cuidado para entender
que a frase é do advogado do Opportunity:
“Há interesses comerciais, conforme explicado por Gustavo
Marín, presidente do Citibank Brasil, da Brasil Telecom, e
reportados do seu encontro com o presidente do Brasil: o
governo do Brasil odeia Daniel Dantas. É o que ele [Marín]
disse. Eles têm muito mais interesse em fazer transações com o
Brasil do que qualquer coisa que possa acontecer com este
investimento em particular”, argumentou Philip Korologos,
advogado do Opportunity.
19/05/2006 – “Opportunity desinforma mídia, diz Citi”
Leila Suwwan, de Nova York, agora em matéria sem a parceria de
Janaína, informa que o Citi acusa o Opportunity de promover uma campanha
de desinformação na imprensa brasileira utilizando citações incorretas dos
autos e provas secretas contidas na Corte norte-americana.
Ontem, o advogado do Opportunity tentou novamente envolver
“executivos do mais alto nível do Citigroup” e membros do
governo brasileiro numa espécie de conluio contra seu cliente.
As provas do processo -série de documentos requisitados de
ambos os bancos, inclusive e-mails de seus diretores- estão
guardados sob segredo de Justiça, mas o resto do litígio é
público.
Quando possível, em cartas ao juiz Lewis Kaplan ou em
audiências abertas, os advogados do Opportunity fazem menção
ou detalham essas provas, cujo conteúdo não pode ser
verificado. Em dois casos recentes, essa técnica foi utilizada
para acusar o PT de uma tentativa de achaque de dezenas de
milhões de dólares do Opportunity e para acusar o presidente
Lula de ter se envolvido pessoalmente para pressionar o Citi
contra Dantas.
(...) Desta vez, o Citi retrucou. Apontou para a presença de
jornalistas brasileiros e acusou: “O juiz deve se perguntar
porque o advogado do Opportunity gosta de ficar citando
executivos graduados do banco. É porque está promovendo uma
campanha de imprensa na qual cita equivocadamente os autos e
os documentos secretos deste processo”.
Com isso, o juiz Lewis Kaplan, irritado, encerrou a discussão. Concedeu
uma liminar que protegeu o Citi de processo do Opportunity no Brasil até o
dia 2 de junho e exortou ambos os grupos a considerar uma solução
financeira arbitrada. “Isto já está ficando cansativo e problemático”, disse
Kaplan. Antes, havia se queixado de que seu tribunal não é dedicado à
deliberação de liminares contra Daniel Dantas. Faltou à correspondente da
“Folha” dizer o nome da jornalista que mais praticou esse tipo de jogo: sua
própria colega Janaína Leite22.

21 https://goo.gl/pvwqt2
22 https://goo.gl/jRfrzA
.

O dossiê falso

A parceria de Veja com Daniel Dantas prosseguiu no decorrer de 2006.


Várias matérias, dossiês, especialmente os mais improváveis, pareciam
terem sido fornecidos pelo banqueiro.
Na edição de 17 de maio de 2006, Veja fez sua aposta mais ousada.

Veja recebeu um dossiê de Dantas, sobre presumíveis contas de altas


autoridades do governo no exterior.
A tarefa de ir atrás das pistas do dossiê coube a Márcio Aith, o mesmo
jornalista que cobrira o caso do dossiê da Kroll para a “Folha”.
Saiu a campo e, em pouco tempo, constatou que o dossiê era uma
falsificação. Tinha tudo para uma reportagem memorável sobre falsificações
de dossiês.
O levantamento tinha sido feito por Frank Holder, ex-agente da CIA
especializado em América Latina que, depois, largou o serviço secreto e
montou uma firma de investigação – a Holder Associates – posteriormente
adquirida pela Kroll.
Aith foi atrás de Holder na Suíça. Ouviu sua versão de que a lista tinha
sido obtida no curso da investigação italiana sobre a parte brasileira dos
escândalos da Parmalat. O repórter foi atrás de autoridades policiais de
Milão – que investigavam o caso Parmalat – que afirmaram desconhecer a
informação.
Holder, então, mudou a versão e informou que o dossiê tinha sido
levantado pelo argentino José Luiz Manzano, ex-ministro e, segundo Aith, um
dos símbolos da corrupção do governo Menen.
Aith foi atrás de Manzano que confirmou o dossiê e incumbiu assessores
de passar mais dados. O material entregue apresentava inúmeras
inconsistências.
Há um princípio básico de jornalismo: quando está configurado que a
fonte tentou enganar o jornalista, é obrigação do jornalista denunciá-la.
Eurípedes Alcântara, o diretor da revista, resistiu a divulgar o nome de
Dantas. Houve discussão interna. Não havia como fugir do levantamento de
Aith mas, por outro lado, havia acordos entre Dantas e a Abril.
Aith cedeu. De um lado, admitia-se que a fonte era Dantas. Mas foram tais
e tantas as tentativas de salvar a cara do banqueiro, que a matéria se
transformou em um novo pterodátilo, um bicho disforme e mal acabado.
Começava pela capa. A chamada não mencionava dossiê falso. Pelo
contrário, apresentava a falsificação como se fosse algo real:
“Daniel Dantas: o banqueiro-bomba. O seu arsenal tem até o
número da suposta conta de Lula no exterior”
A matéria não tinha pé nem cabeça. As investigações de Aith já tinham
confirmado tratar-se de uma falsificação preparada por Dantas.
Mas o “lead” da matéria falava o contrário:
“O banqueiro Daniel Dantas está prestes a abrir um capítulo
explosivo na investigação sobre os métodos da “organização
criminosa” que se instalou no governo e o estrago causado por
ela ao país”.
O primeiro parágrafo inteiro, em vez de realçar o furo de Aith – a
descoberta de que era um dossiê falso – dizia que:
“Na sessão, o senador Arthur Virgílio (PSDB-AM) revelou o
teor de um documento no qual o banco Opportunity, controlado
por Dantas, diz ter sofrido perseguição do governo Lula por
rejeitar pedidos de propina de “dezenas de milhões de dólares”
feitos por petistas em 2002 e 2003. A carta, escrita por
advogados de Dantas e entregue à Justiça de Nova York, onde o
banqueiro é processado pelo Citigroup por fraude e negligência,
é só o começo de uma novela que, a julgar pela biografia de
Dantas, não se resume a uma simples tentativa frustrada de
achaque”.
Prosseguia a matéria:
“Para defender-se das pressões que garante ter sofrido do PT
nos últimos três anos e meio, Dantas acumulou toda sorte de
informações que pôde coletar sobre seus algozes. A mais
explosiva é uma relação de cardeais petistas que manteriam
dinheiro escondido em paraísos fiscais”.
Ia mais longe:
“Além disso, Dantas compilou metodicamente não só os pedidos
de propina como também as contratações e os pagamentos
efetivamente feitos para tentar aplacar as investidas do atual
governo sobre seus interesses. Se pelo menos uma parte desse
material for verdadeira, o governo Lula estará a caminho da
desintegração”
Esse tipo de menção ao poder terrível do banqueiro era um convite ao
achaque. Na mesma matéria, Veja justificava a publicação do dossiê como
forma de prevenir achaques:
“Ao mesmo tempo, isso (a publicação do dossiê) impedirá que o
banqueiro do Opportunity venha a utilizar os dados como
instrumento de chantagem em que o maior prejudicado, ao final,
seriam o país e suas instituições”.
A conclusão final era risível:
“Por todos os meios legais, VEJA tentou confirmar a veracidade
do material entregue por Manzano. Submetido a uma perícia
contratada pela revista, o material apresentou inúmeras
inconsistências, mas nenhuma suficientemente forte para
eliminar completamente a possibilidade de os papéis conterem
dados verídicos”.
Só então entrava na reportagem o conteúdo apurado por Aith.

A entrevista armada

Pior: em uma matéria em que Dantas era desmascarado como autor de


documentos comprovadamente falsos, permitia-se uma ressalva no mais puro
estilo prego sobre vinil, uma entrevista concedida por ele ao colunista Diogo
Mainardi.
Não era uma entrevista normal. Sua leitura induzia qualquer leitor atento a
suspeitar que as perguntas foram formuladas por quem respondeu. Não se
deu sequer ao trabalho de utilizar o padrão de formatação da revista para
entrevistas ping-pong. O padrão da revista são as perguntas em caixa baixa e
negrito. O da entrevista era em caixa alta.
É como se Mainardi tivesse ido até Dantas, recebido o questionário
preparado pelo advogado, remetido para a revista, que o publicou na íntegra.
Nem edição houve.
Cada pergunta levantava uma bola para o banqueiro bater em sua tecla de
defesa: a de que seus problemas eram decorrentes de perseguição política –
na mesma matéria em que se demonstrava que ele próprio recorria a dossiês
falsos para achaques.
O nível do ping-pong era da seguinte ordem:
POR QUE O GOVERNO QUERIA TIRAR O OPPORTUNITY DO
COMANDO DA BRASIL TELECOM?
Porque havia um acordo entre o PT e a Telemar para tomar os ativos da
telecomunicação, em troca de dinheiro de campanha.
A TELEMAR ACABOU COMPRANDO A EMPRESA DO LULINHA. POR
QUE VOCÊS TAMBÉM NEGOCIARAM COM ELE? ERA UM AGRADO AO
PRESIDENTE LULA?
Nós procuramos de todas as maneiras diminuir a hostilidade do
governo.
O EX-PRESIDENTE DO BANCO DO BRASIL CÁSSIO CASSEB DISSE
AO CITIBANK QUE LULA ODEIA VOCÊ.
Casseb disse também que ou a gente entregava o controle da companhia
ou o governo iria passar por cima.
A entrevista, na qual provavelmente a única participação de Mainardi foi
a assinatura, terminava apresentando Dantas como vítima de achacadores, e
não como quem tinha acabado de produzir um dossiê falso, com o claro
intuito de achacar.
.

O medo no Supremo

Quando começaram a tomar corpo os boatos de que a Polícia Federal


preparava uma grande operação contra o banqueiro Daniel Dantas, Veja deu
início a uma série de factoides visando criar o clima de medo, de um país
sendo grampeado pela Polícia Federal.
Valia-se de um dos recursos históricos da mídia, o da criação do medo
supersticioso.
Em todas suas matérias, contou com os seguintes personagens-chave: o
senador Demóstenes Torres; nos bastidores, o araponga Jairo Martins,
homem de confiança do bicheiro Carlinhos Cachoeira a quem, na qualidade
de consultor, Gilmar Mendes entregara a fiscalização dos sistemas de dados
e de telefonia do Supremo.
Foi assim com a matéria “A sombra do estado policial”, de Policarpo
Junior, na edição de 22 de agosto de 2007.
Como sempre, capa, manchete, submanchete, tudo rescendia a
conspiração:

Medo no Supremo
Ministros do Supremo reagem à suspeita de grampo na mais alta
corte de Justiça do país.
Ninguém mais na mídia havia percebido qualquer sinal de “medo” do
Supremo, ou de generalização das escutas atingindo os Ministros.
Aliás, os últimos abusos contra juízes haviam partido da própria revista e
do autor da reportagem, no falso dossiê contra o então presidente do
Superior Tribunal de Justiça Edson Vidigal – da própria revista. Veja sempre
cultivou relações íntimas com produtores de dossiês.
Na abertura, forçava um lide, dentro do estilo tatibitate-recitativo (“sim,
beira o inacreditável”) de Mario Sabino, diretor de redação adjunto:
“É a primeira vez que, sob um regime democrático, os
integrantes do Supremo Tribunal Federal se insurgem contra
suspeitas de práticas típicas de regimes autoritários: as escutas
telefônicas clandestinas. Sim, beira o inacreditável, mas os
integrantes da mais alta corte judiciária do país suspeitam que
seus telefones sejam monitorados ilegalmente”.
Seguia-se o velho estratagema das estatísticas de fontes:
“Nas últimas semanas, VEJA ouviu sete dos onze ministros do
Supremo – e cinco deles admitem publicamente a suspeita de
que suas conversas são bisbilhotadas por terceiros. Pior: entre
eles, três ministros não vacilam em declarar que o suspeito
número 1 da bruxaria é a banda podre da Polícia Federal”.
Ia além
“As suspeitas de grampos telefônicos estão intoxicando a
atmosfera do tribunal”.
Uma capa de revista semanal é uma celebração. É tema relevante, quente, em
que se colocam os melhores quadros para apurar os dados.
Porém, de informações objetivas, a reportagem tinha o seguinte:
“A Polícia Federal se transformou num braço de coação e
tornou-se um poder político que passou a afrontar os outros
poderes”, afirma o ministro Gilmar Mendes, numa acusação
dura e inequívoca”.
O restante era um cozidão das seguintes notícias, factoides ou boatos que já
haviam saído na mídia.
Notícia de 24 de maio de 2007, na Folha:
“O ministro (Sepúlveda Pertence) diz que as suspeitas de que a
polícia manipula gravações telefônicas aceleraram sua
disposição em se aposentar. “Divulgaram uma gravação para
me constranger no momento em que fui sondado para chefiar o
Ministério da Justiça, órgão ao qual a Polícia Federal está
subordinada. Pode até ter sido coincidência, embora eu não
acredite”, afirma”.
A notícia era de janeiro de 2007, conforme o Terra Magazine. Mais: o
grampo da Polícia Federal não tinha sido em cima do Ministro, mas em um
lobista envolvido em uma transação em Sergipe e que estava sob
investigação da PF.
A matéria de Veja esquentava o recozido, sem nenhum respeito aos fatos:
“Na quinta-feira passada, o ministro Sepúlveda Pertence pediu
aposentadoria antecipada e encerrou seus dezoito anos de
tribunal. Poderia ter ficado até novembro, quando completa 70
anos e teria de se aposentar compulsoriamente. Muito se
especulou sobre as razões de sua aposentadoria precoce. Seus
adversários insinuam que a antecipação foi uma forma de fugir
das sessões sobre o escândalo do mensalão, que começam nesta
semana, nas quais se discutirá o destino dos quadrilheiros –
entre eles o ex-ministro José Dirceu, amigo de Pertence. A
mulher do ministro, Suely, em entrevista ao blog do jornalista
Ricardo Noblat, disse que a saída de seu marido deve-se a
problemas de saúde. O ministro, no entanto, diz que as suspeitas
de que a polícia manipula gravações telefônicas aceleraram sua
disposição em se aposentar. “Divulgaram uma gravação para
me constranger no momento em que fui sondado para chefiar o
Ministério da Justiça, órgão ao qual a Polícia Federal está
subordinada. Pode até ter sido coincidência, embora eu não
acredite”, afirma”.
Tinha mais.
“Os temores de grampo telefônico com patrocínio da banda
podre da PF começaram a tomar forma em setembro de 2006,
em plena campanha eleitoral. Na época, o ministro Cezar
Peluso queixou-se de barulhos estranhos nas suas ligações e
uma empresa especializada foi chamada para uma varredura”.
A notícia era de 17 de setembro de 2006:
“O ministro Marco Aurélio Mello recebeu uma mensagem
eletrônica de um remetente anônimo. O missivista informava
que os telefones do ministro estavam grampeados e que
policiais ofereciam as gravações em Campo Grande. O caso foi
investigado, mas a Polícia Federal - ela, de novo - concluiu que
a mensagem era obra de estelionatários fazendo uma denúncia
falsa”.
No decorrer da semana, Blogs e veículos da grande imprensa
desmascararam a farsa. Praticamente todo leitor bem informado percebeu
que estava diante de um “cozidão”.
Os dois principais fatos da reportagem: as declarações de Sepúlveda
Pertence e de Marco Aurélio de Mello foram colocadas nos devidos termos
pelos próprios Ministros.

O desmentido de Sepúlveda
No dia 20 de agosto de 2007, o jornalista Bob Fernandes, da Terra
Magazine, ouviu o Ministro Sepúlveda Pertence.
- Ministro, boa tarde. Estou ligando para falar sobre a denúncia, sobre a
hipótese de grampo telefônico contra o senhor, contra ministros do Supremo,
publicada na Veja desta semana.
- Sim, eu falei com a revista sobre o assunto.
- O senhor foi grampeado?
- ... falei sobre um assunto que aconteceu comigo (publicado neste Terra
Magazine em janeiro, leia aqui).
- Sim, é um assunto que conhecemos. Mas, lhe faço uma pergunta: O
senhor crê ter sido grampeado?
- Não...
- O senhor acredita ter sido grampeado, ou seus colegas terem sido
grampeados?
- Não, não creio em grampos contra mim.
- Nem contra...
- Não, não tenho nenhuma razão para crer em grampo telefônico...
- Mas...
- ... o que eu falei foi sobre aquele episódio... salvo aquele episódio, não
tenho nada a dizer sobre este assunto.
- O ministro Marco Aurélio Mello já desmentiu, nesta segunda, a
existência de grampo, disse que falava por ele... O senhor acha que houve
um engano?
- ... um engano.

O desmentido de Mello
No domingo do próprio fim-de-semana em que a capa saiu, ouvido pelas
rádios, Marco Aurélio Mello desmentiu o teor da matéria.
Denúncia de grampo no STF era falsa
O Globo;
BRASÍLIA - A Polícia Federal afirma que era falsa a denúncia
de que agentes federais estariam negociando escutas telefônicas
com conversas de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
A investigação mostrou que os e-mails apócrifos recebidos pelo
ministro Marco Aurélio de Mello, relatando o suposto grampo,
faziam parte de uma vingança pessoal. Um funcionário do INSS
exonerado por corrupção tentou incriminar o delegado da PF
que o investigou.
Marco Aurélio recebeu o resultado da investigação do ministro
da Justiça, Tarso Genro, e o encaminhou ao procurador-geral
da República, Antônio Fernando de Souza
- O sujeito (funcionário do INSS) queria fustigar o delegado.
Trata-se de retaliação. Foi satisfatória a apuração. Dei o
episódio como suplantado - disse Marco Aurélio.

Requentando o recozido
Na semana seguinte, a direção de redação recorreu aos mesmos estratagemas
conhecidos, para dar sobrevida à falsificação.
Na seção de cartas, só foram publicadas aquelas a favor. Mais: recorreu-
se à velha barganha para garantir a continuidade do tema. Em troca de
visibilidade um deputado anunciava a intenção de abrir uma CPI. O
contemplado foi o ex-Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, Marcelo
Itagiba, um dos personagens da indústria de dossiês.
Dizia a matéria:
“Os grampos telefônicos, uma das principais ferramentas de
investigação policial da atualidade, vão passar por uma
devassa. Na semana passada, a Câmara dos Deputados recolheu
191 assinaturas para criar a CPI dos Grampos, que pretende
investigar a suspeita de que ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF) tiveram seus telefones interceptados ilegalmente,
conforme VEJA noticiou em sua edição passada. Cinco dos onze
ministros do STF admitiram publicamente a suspeita de que
suas conversas telefônicas podem estar sendo bisbilhotadas
clandestinamente. A CPI, que terá prazo de 120 dias para
concluir a investigação, deverá ser instalada já no início do
próximo mês. “Quando a mais alta corte do país se sente
ameaçada e intimidada, isso é uma coisa muita séria, que
precisa de uma resposta urgente”, diz o deputado Marcelo
Itagiba, do PMDB do Rio de Janeiro, delegado licenciado da
Polícia Federal e autor do requerimento de criação da CPI”.
Era a mesma manobra do caso Edson Vidigal. Na ocasião soltou a matéria e
informou que o Conselho Nacional de Justiça recebeu uma denúncia. Houve
denúncia, de fato, mas depois da matéria ter sido publicada – e utilizando a
própria matéria como elemento de prova. A armação era nítida, como era
nítida a armação com Itagiba, para propor a CPI.
O factoide da escuta no Supremo foi um marco importante, por ter sido o
primeiro absurdo da Veja que não mereceu repercussão na mídia. Até então,
todos os abusos eram repercutidos, por um efeito pavloviano.
Mas, como resultado do factoide, o Congresso abriu uma CPI do Grampo,
tendo como relator o próprio Marcelo Itagiba. E, na época, a revista ainda
conseguiu que um Ministro do STF, Joaquim Barbosa, aceitasse participar de
sua campanha publicitária.
Era apenas um ensaio para os capítulos seguintes, de tentativa de
amordaçar a Polícia Federal, que já trabalhava a Operação Satiagraha.
.

O grampo no Supremo

Na edição de 13 de agosto de 2008 a capa da revista vinha com o título


retumbante: “Exclusivo: Espiões Fora de Controle”. E a informação de que
documento obtido por Veja mostra que o STF foi investigado. E que o
Palácio do Planalto também investigava escuta clandestina na antessala de
Lula.
O título interno era “De olho em nós” e trazia trecho de um relatório da
Secretaria de Segurança do STF com os dados sobre a suposta escuta
captada.
Segundo a reportagem, assinada por Diego Escosteguy e Policarpo Junior,
espiões se instalaram do lado de fora do tribunal e usaram equipamentos
para interceptar as conversas dos Ministros. A revista valia-se de uma
esperteza comum – a “suponhamos que” – para incrementar a reportagem:
“Caso tenham conseguido realmente ouvir as conversas dos ministros,
está-se diante de um grave e inaceitável ataque à democracia”.
A localização da escuta teria sido feita durante uma varredura eletrônica
de rotina em 10 de julho anterior, dizia a revista. “Utilizando um aparelho
rastreador, os técnicos identificaram uma frequência de rádio de forte
intensidade na sala 321, onde despacha o assessor-chefe da presidência”.
Segundo a matéria, não teria sido possível identificar a origem exata do
sinal. “Mas suspeita-se, pela natureza da frequência medida, que os espiões
estivessem com seus equipamentos em um estacionamento próximo”.
Os técnicos evitaram afirmar que era grampo, por não conseguir modular
a transmissão.
Em cima dessas informações frágeis, a revista lançava insinuações sobre
o juiz Fausto De Sanctis, da Operação Satiagraha.
A denúncia ajudou na prorrogação da CPI dos Grampos.
Convocado, o chefe da Segurança do STF entregou o relatório à CPI.
Colocado no site, imediatamente um leitor trouxe o arquivo para o Blog Luis
Nassif. Publiquei o arquivo. Em menos de meia hora, quatro leitores,
engenheiros-eletrônicos desfaziam a trama.
O relatório falava em sinais captados de fora para dentro. Em hipótese
alguma poderia ser grampo, cujos sinais teriam que ser de dentro para fora.
Além disso, pela demora da segurança em localizar os aparelhos, eles
teriam que ser minúsculos. Sendo minúsculos, a escuta demandaria grandes
antenas de captação. Como não se identificou nenhum carro com antena na
rua, o veículo só poderia estar em um estacionamento.
Valendo-se do Google Maps, outro leitor mostrou que os dois únicos
estacionamentos voltados para o ponto da presumível escuta eram os do
próprio STF e do Planalto.
Era um factoide evidente.
Mesmo assim, o estardalhaço da revista ajudou a prorrogar a CPI e a
manter o clima de sobressalto no país (https://goo.gl/u2LXAh).
Algumas reportagens lembraram que o assessor especial de Gilmar para
assuntos de escuta era o araponga Jairo Martins, homem de Cachoeira.

O grampo sem áudio

Na edição de 3 de setembro de 2008 Veja voltou à carga com outra


reportagem bombástica: “A ABIN gravou o Ministro”.
A prova era a transcrição de um suposto grampo de uma conversa entre
Gilmar Mendes e o então mosqueteiro Demóstenes Torres.
Segundo relato da reportagem de Policarpo Jr e Expedito Filho, o
material foi encaminhado por um servidor da própria ABIN, sob a garantia
do anonimato.
A revista se valia de adjetivo que mais empregou naqueles tempos de
escandalização, para afirmar que o relato era “estarrecedor”.
A transcrição do suposto grampo trazia uma conversa curiosa entre dois
homens públicos tecendo loas recíprocas, ambos em favor da moralidade.
Era um caso raro de grampo a favor.
Gilmar Mendes – Oi, Demóstenes, tudo bem? Muito obrigado
pelas suas declarações.
Demóstenes Torres – Que é isso, Gilmar. Esse pessoal está
maluco. Impeachment? Isso é coisa para bandido, não para
presidente do Supremo. Podem até discordar do julgado, mas
impeachment...
Gilmar – Querem fazer tudo contra a lei, Demóstenes, só pelo
gosto...
Demóstenes – A segunda decisão foi uma afronta à sua, só pra
te constranger, mas, felizmente, não tem ninguém aqui que
embarcou nessa “porra-louquice”. Se houver mesmo esse
pedido, não anda um milímetro. Não tem sentido.
Gilmar – Obrigado.
Demóstenes – Gilmar, obrigado pelo retorno, eu te liguei porque
tem um caso aqui que vou precisar de você. É o seguinte: eu sou
o relator da CPI da Pedofilia aqui no Senado e acabo de ser
comunicado pelo pessoal do Ministério da Justiça que um juiz
estadual de Roraima mandou uma decisão dele para o programa
de proteção de vítimas ameaçadas para que uma pessoa
protegida não seja ouvida pela CPI antes do juiz.
Gilmar – Como é que é?
Demóstenes – É isso mesmo! Dois promotores entraram com o
pedido e o juiz estadual interferiu na agenda da CPI. Tem
cabimento?
Gilmar – É grave.
Demóstenes – É uma vítima menor que foi molestada por um
monte de autoridades de lá e parece que até por um deputado
federal. É por isso que nós queremos ouvi-la, mas o juiz lá não
tem qualquer noção de competência.
Gilmar – O que você quer fazer?
Demóstenes – Eu estou pensando em ligar para o procurador-
geral de Justiça e ver se ele mostra para os promotores que eles
não podem intervir em CPI federal, que aqui só pode chegar
ordem do Supremo. Se eles resolverem lá, tudo bem. Se não, vou
pedir ao advogado-geral da Casa para preparar alguma medida
judicial para você restabelecer o direito.
Gilmar – Está demais, não é, Demóstenes?
Demóstenes – Burrice também devia ter limites, não é, Gilmar?
Isso é caso até de Conselhão.
(risos)
Gilmar – Então está bom.
Demóstenes – Se eu não resolver até amanhã, eu te procuro com
uma ação para você analisar. Está bom?
Gilmar – Está bom. Um abraço, e obrigado de novo.
Demóstenes – Um abração, Gilmar. Até logo.
A segunda questão é que não vinha acompanhado de nenhum áudio.
Mesmo assim, a revista não se pejou de divulgar a suposta denúncia da
suposta fonte, de que a ABIN grampeara Deus e o diabo, de Gilberto
Carvalho a Dilma Rousseff, do senador Garibaldi Alves a Tasso Jereissatti.
Nos dias seguintes, a versão foi engolfada por um mar de dúvidas.
Questionado pelo jornal O Globo, Demóstenes limitou-se a afirmar que
houve a conversa e que havia cinco testemunhas na sala. Por sua vez, Gilmar
defendeu-se dizendo que, na condição de vítima, não caberia a ele provar
nada.
Seria simples para a revista dirimir as dúvidas. Bastaria apresentar o
áudio e permitir que fosse periciado.
Sem nenhuma bússola, a imprensa permitiu-se toda sorte de especulações.
Por aquele período, ainda não haviam sido reveladas as relações da Veja
e de Demóstenes com a organização criminosa de Carlinhos Cachoeira. Nem
se deu muita atenção à informação de que Gilmar trouxera para dentro do
Supremo o araponga Jairo Martins.
Sem o arquivo do grampo, qualquer um poderia ter feito essa armação: o
Demóstenes, um araponga contratado pela Veja, alguém da ABIN, da PF, ou
Gilmar Mendes (já que não existe cidadão acima de qualquer suspeita). O
senador Demóstenes já havia se envolvido em outros episódios em que
aparecia como vítima de grampo. Nos dois casos - o primeiro deles em
Goiânia - a denúncia foi-lhe favorável e desfavorável aos seus inimigos.
Em depoimento na CPI do Grampo, o diretor da ABIN Paulo Lacerda
negou que a agência tivesse equipamentos de grampear.
Nos dias seguintes, o Ministro da Defesa Nelson Jobim saiu em defesa de
Gilmar e sustentou que a ABIN dispunha desse equipamento. Jobim afirmou
que seu Ministério descobriu que a ABIN adquiriu o equipamento
aproveitando uma licitação já iniciada pelas Forças Armadas.
O depoimento de Jobim foi decisivo.
Convocado para a CPI, Jobim apresentou a lista de compras da ABIN.
Um comentarista do meu Blog faz uma rápida pesquisa na Internet e
descobriu que a lista fazia parte do catálogo de um vendedor de
equipamentos de escuta. Até erros de digitação mostravam a coincidência
com a lista apresentada por Jobim. Ele se limitara a copiar a página do site,
O desmentido se tornaria completo com uma nota do comandante do
Exército, general Enzo Martins Peri, confirmando a compra de um
equipamento de varredura de grampos telefônicos usado pela ABIN. O
general sustentou que o equipamento só detectava grampos e não podia fazer
escutas telefônicas.
Importado dos EUA, o Oscor 5000 é um computador portátil e uma maleta
005.
Dois representantes do fabricante, Research Eletronic International (REI),
confirmaram que o aparelho não fazia escuta. A um custo entre R$ 500 mil e
R$ 1,5 milhão, ele capta transmissões de rádio e TV, mas não decodifica
conversas em telefones fixos ou celulares.
Não apenas o Exército, mas a Procuradoria Geral da República e o
Superior Tribunal de Justiça e o Senado tinham equipamentos similares.
De nada adiantaram as explicações. Lacerda foi demitido da ABIN e
remetido para a embaixada brasileira em Portugal. Ali Lula começava a
perder o controle da Polícia Federal.
Dez meses depois, a Polícia Federal encerrou o inquérito sobre a suposta
escuta. Segundo os delegados William Morad e Rômulo Berredo,
responsáveis pelo inquérito, a suposta gravação não foi encontrada. Logo,
seria impossível afirmar que o grampo existiu ou não existiu.
O arquivamento do caso mereceu um duro artigo do desembargador
aposentado Walter Maierovitch na Carta Capital:
1. Todos lembram da indignação do ministro Gilmar Mendes no
papel de vítima de ilegal escuta telefônica, que tinha como pano
de fundo a Operação Satiagraha.
Gilmar Mendes parecia possuído da ira de Cristo quando
expulsou os vendilhões do templo. A fundamental diferença é
que a ira de Mendes não tinha nada de santa.
Ao contrário, estava sustentada numa farsa. Ou melhor, num
grampo que não houve, conforme acaba de concluir a Polícia
Federal, em longa e apurada investigação.
(...) 3. Numa prova de fraqueza e posto de lado o sentimento de
Justiça, o presidente Lula acalmou o ministro e presidente
Gilmar Mendes. Ofertou-lhe e foi aceita a pedida cabeça do
honrado delegado Paulo Lacerda, então diretor da Agência
Brasileira de Inteligência (ABIN).
(...) Conforme sustentado à época, — e Lula acreditou apesar da
negativa de Paulo Lacerda–, a gravação da conversa foi feita
por agente não identificado da Agência Brasileira de
Inteligência (ABIN). E o ministro Nelson Jobim emprestou triste
colaboração no episódio, a reforçar a tese de interceptação e
gravação. Mendes e Jobim exigiram a demissão de Paulo
Lacerda.
A conclusão do inquérito policial será encaminhada ao
ministério Público, que deverá analisar a conduta de Mendes, à
luz do artigo 340 do Código Penal.
Sua precipitação, dolosa ou não, não será apreciada pelo
Conselho Nacional de Justiça, dado como órgão corregedor e
fiscalizador da Magistratura.
Nenhum ministro do STF está sujeito ao Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), como se nota, um órgão capenga no que toca a
ser considerado como de controle externo da Magistratura
(menos o STF).
Viva o Brasil.
Nada ocorreu com Gilmar.
Mas em um ponto ele tinha razão. Os abusos da Satiagraha, mais que isso,
a maneira como a operação foi abortada, deixaram um sentimento de
revanche no ar que, alguns anos depois, explodiria na Operação Lava Jato.
Desta vez, a imprensa convalidou a operação porque, na outra ponta, não
havia banqueiros, apensa inimigos políticos.

O encontro de Gilmar com Lula


No dia 30 de maio de 2012, Veja produziu mais um factoide. Reportagem de
Rodrigo Rangel e Otávio Cabral mencionava uma suposta reunião entre Lula
e o Ministro Gilmar Mendes, na qual Lula teria feito propostas indecorosas.
Segundo a reportagem um mês antes, Gilmar foi convidado para uma
conversa com Lula em Brasília. O encontro aconteceu no escritório de
advocacia de Nelson Jobim, ex-ministro do STF e ex-ministro da Justiça de
Lula.
Segundo a reportagem, após algumas amenidades, Lula abordou Gilmar,
afirmando ser inconveniente julgar o processo naquele momento. Segundo a
reportagem, Lula teria dito que o melhor momento seria após as eleições.
A reportagem não ficou por aí.
Garantiu que Lula teria afirmado deter o controle político da CPI de
Cachoeira e oferecido proteção a Gilmar, “dizendo que ele não teria motivo
para preocupação com as investigações’”. Segundo a reportagem, a
mensagem foi a seguinte: “se Gilmar aceitasse ajudar os mensaleiros, ele
seria blindado na CPI”.
Ainda segundo o relato, Lula teria perguntado da viagem de Gilmar a
Berlim – havia suspeitas de que teria se encontrado por lá com o senador
Demóstenes Torres, seu amigo, e pegado uma carona no jatinho de Carlinhos
Cachoeira. Gilmar teria confirmado a viagem - disse que ia a Berlim como
Lula ia a São Bernardo, por ter uma filha morando lá. E desafiou: “Vá fundo
na CPI”.
Na copa do escritório de Jobim, segundo o relato, enquanto Lula comia
frutas, Gilmar teria ouvido relatos “nada enobrecedores” sobre seu plano B:
recorrer a Sepúlveda Pertence para pressionar a Ministra Carmen Lúcia. E
ao jurista Celso Antônio Bandeira de Mello para influenciar o Ministro
Ayres Britto.
A conversa prosseguia repleta de insinuações sobre a maneira com que
supostamente Lula se referia a cada Ministro.
Segundo a reportagem, “o ex-Ministro Nelson Jobim confirma que
agendou o encontro entre Lula e Gilmar, mas diz que não ouviu tudo o que foi
conversado”.
Sepúlveda Pertence e Carmen Lúcia negaram qualquer abordagem.
Empenhado em se aproximar da mídia, o único aval à reportagem foi
dado pelo então presidente do STF Carlos Ayres Britto. Ayres teria dito aos
repórteres que agora fazia sentido para ele o fato de, na última vez que se
encontrara com Lula, ele ter-lhe perguntado de Bandeira de Mello.
Ora, Ayres Britto tornou-se Ministro do STF graças à influência de
Bandeira de Mello junto a Lula. Provavelmente Lula só soube dele através
das recomendações de Bandeira. Empenhado em se aproximar da imprensa,
Ayres transformou o cumprimento em “sinal amarelo”.
A manobra de Gilmar influenciou outros ministros, sábios do direito,
ingênuos da política. No mesmo dia da edição de Veja, o site “Consultor
Jurídico”, correu para obter declarações do decano do STF, Ministro Celso
de Mello, antes que as informações pudessem ser desmentidas.
Celso acatou passivamente a história e se indignou, usando o “se” como
recurso estilístico para entrar no jogo:.
“Se ainda fosse presidente da República, esse comportamento seria
passível de impeachment por configurar infração político-administrativa, em
que um chefe de poder tenta interferir em outro”.
No domingo, em entrevista ao jornal Zero Hora, Nelson Jobim fez um
desmentido cabal.
Negou que Lula tivesse pedido o adiamento do julgamento. Garantiu que
houve apenas uma conversa institucional, “que não teve nada nesses termos
que a Veja está se referindo”. A conversa girou exclusivamente em torno de
uma pesquisa que estava sendo tocada pelo IDP (Instituto Brasiliense de
Direito Público), de Gilmar.
Garantiu que em nenhum momento Lula e Gilmar ficaram a sós.
Quando o jornal perguntou de onde surgiu a história toda, Jobim foi
taxativo: “Você tem que perguntar ao Gilmar, não a mim”.
E, aí, a questão central.
ZH — Veja disse que o senhor não negou o teor da suposta conversa. Por
que o senhor não negou antes?
Jobim — Como não neguei? Me ligaram e eu disse que não. Eu disse para
a Veja que não houve conversa nenhuma.
Nas semanas seguintes, foram sendo encaixadas as últimas peças do
quebra-cabeças. O encontro com Lula ocorreu cerca de um mês antes da
publicação pela Veja. A suposta indignação de Gilmar, portanto, foi contida
durante um mês.
Nesse período, a diretora de redação da rede Globo em Brasília teria dito
a Gilmar que no Palácio comentavam sobre a encontro com Lula – típica
futrica brasiliense. Segundo Gilmar, foi aí que ele decidiu contar sua versão.
À medida que sua versão foi sendo desmontada, Gilmar arreglou.
Em entrevista à Veja Online, no dia 1o de dezembro de 2014, passou outra
versão sobre o ocorrido. Nela, Gilmar admitiu que partiu dele o convite para
o encontro com Lula.
À Veja, o ministro do Supremo reafirmou o que havia dito, em maio de
2012, ao jornal Zero Hora: que o encontro se deu no escritório de Jobim.
Mas esclareceu que ele mesmo solicitou a reunião. Gilmar afirmou que só
contou à imprensa que Lula o havia pressionado para adiar o julgamento do
mensalão após ouvir de jornalistas, em off, que o Planalto espalhara boatos
sobre seu envolvimento com Cachoeira e Demóstenes Torres.
A entrevistadora quis ouvir do Ministro, novamente, se houve pressão de
Lula para que o julgamento fosse adiado.
Conforme relato do Jornal GGN de 1o de dezembro de 2014, a entrevista
transcorreu assim:
“Houve tentativa de achaque, à época? “, perguntou ela. “Eu
interpretei que sim”, respondeu o ministro.
“Mas na verdade, isso precisa ser contextualizado”, emendou.
“Eu queria falar com Lula em função de sua doença. Eu cultivei
boa relação com ele à época de sua presidência. Eu liguei
várias vezes para saber do seu estado de saúde. E em uma
conversa com Jobim, eu disse que quando Lula estivesse em
Brasília, eu gostaria de encontrá-lo”, justificou.
Gilmar Mendes ainda disse que “fizeram o diabo para impedir
o julgamento do mensalão”. “Dois colegas foram retirados
desse julgamento, produziram duas vagas com esse retardo
deliberado. Havia um projeto nesse sentido. Fazer o diabo é
perfeito para aquele momento. Tudo que puderam, fizeram para
adiar”, completou.
A tergiversação de Gilmar não tinha sentido. A reportagem da revista não
necessitava de contextualização: trazia denúncias objetivas que foram
desmentidas pelos personagens mencionados.
O episódio serviu para radicalizar ainda mais o julgamento.
E tudo não passara de um enorme fake News.
.

Outras disputas comerciais

Com seu poder de influência, não foram poucas as investidas comerciais da


revista Veja, em temas que nada tinha de político, mas envolviam grandes
interesses empresariais.

A guerra das cervejas


As jogadas de Veja não se restringiam ao campo político-ideológico. O que
sempre orientou a cobertura enviesada foram os interesses comerciais.
Em alguns momentos, o jogo comercial se escancarava. É o que ocorreu
na guerra das cervejas, um capítulo didático para mostrar como a mídia,
valendo-se de sua capacidade de construir ou destruir imagens, monta suas
parcerias comerciais.
Há tempos, o publicitário Eduardo Fischer recebia tratamento
privilegiado da Veja, especialmente através da seção Radar. Esse apoio
ficou mais ostensivo nas chamadas “guerras das cervejas”
As notas visavam criar expectativas em cima de suas campanhas, reforçar
sua imagem, em um mercado onde a imagem tem efeito direto sobre o valor
das contas.
Em 25 de junho de 2003, o Radar anunciava uma nova campanha na praça,
da Shincariol, comandada por Fischer. Seu papel não seria de um mero
publicitário:
“Eduardo Fischer – justamente o publicitário que inventou para a Brahma
o slogan “a número 1” – estará à frente da esquadra da Schincariol. Ele não
criará somente as campanhas publicitárias. Fischer se meterá também na
distribuição, estratégia de preços, criação de novos produtos e tudo o mais.”
Em 20 de agosto de 2003, o Radar falava de uma “ousada tacada” da
Schincariol, que “viria nas asas de uma das maiores campanhas publicitárias
que já se viram no setor de cervejas”. A ideia seria fazer desaparecer a
marca Schincariol do mercado e, em seu lugar, criar uma nova marca para
enfrentar a líder Skol.
Informava que “o publicitário Eduardo Fischer, comandante- em-chefe da
virada da Schincariol, não confirma a informação. Mas onde há fumaça, há
fogo – ou, neste caso, onde há espuma, há cerveja”.
Em 18 de dezembro de 2003, uma grande matéria sobre a guerra das
cervejas, mais uma vez enaltecendo o trabalho de Fischer.
“A gota de água dessa guerra foi uma brilhante campanha de propaganda
feita para a Nova Schin pelo publicitário paulista Eduardo Fischer. Em
noventa dias, ao custo estimado de 80 milhões de reais, Fischer conseguiu
elevar a participação de mercado da Schincariol de 10,1% para 14,1%,
segundo dados da ACNielsen. O salto é estrondoso.”.
Uma semana depois, em 24 de dezembro de 2003, através de um expediente
bisonho abre-se novo espaço para Fischer, na seção de Cartas dos Leitores:
a publicação de uma carta do próprio Fischer, dividindo as honrarias
recebidas com sua equipe:
“Agradeço a menção elogiosa feita pela revista à campanha
publicitária produzida pela FischerAmérica para um de seus
clientes, o Grupo Schincariol, mas gostaria de ressaltar que a
realização de um importante trabalho criativo não pode ser
creditada a uma só pessoa. Quero destacar que a “brilhante
campanha de propaganda feita para a Nova Schin”, como a
própria VEJA definiu, é fruto da competência, envolvimento e
ativa participação de toda a equipe de criação da agência
FischerAmérica, da qual muito me orgulho, em especial do
diretor de criação, Átila Francucci.”
Cada passo de Fischer na Schincariol era precedido de espuma, na Veja –
quase sempre na seção Radar, às vezes na Holofote.
Em 14 de janeiro de 2004, um mês após as notas anteriores, nova nota no
Radar antecipando mais um sucesso do publicitário:
O “Experimenta” muda de guerra
Agora que, pela nova regulamentação da propaganda de
cerveja, não pode mais usar o “Experimenta” nos comerciais da
Nova Schin, a Schincariol está estudando uma idéia que vai dar
o que falar. Deve utilizar o mais bem-sucedido bordão
publicitário dos últimos tempos para o relançamento do
guaraná da empresa – que vem aí para incomodar o eterno líder
Guaraná Antarctica e o Kuat.
O jogo de levantar a bola continuou em 2005. Durante toda a campanha da
Schincariol, não havia mais ninguém para compartilhar do mérito: apenas
Fischer. Em qualquer matéria consistente de negócios, há análises sobre
outros fatores, como distribuição, pontos de venda, estratégias comerciais.
Nas matérias da Veja, enfatizava-se apenas o lado de marketing e a
genialidade de Fischer.
No dia 9 de dezembro de 2005, por exemplo, o Holofote soltava uma nota
laudatória sobre o publicitário:

O caso Femsa
Depois que Fischer perdeu a conta da Schincariol, a revista não falou mais
da empresa, a não ser em matérias policiais, quando a diretoria foi presa por
sonegação de impostos. A cerveja preferida agora, era outra, a Kaiser, a
partir do momento em que contratou o publicitário.
No dia 24 de maio de 2006, Radar reservou seu melhor espaço para a
contratação de Eduardo Fischer pela mexicana Femsa – que havia adquirido
a Kaiser. Era um Box, com cor diferenciada e foto do publicitário, um lugar
de destaque na seção de maior leitura da revista.
A nota era altamente laudatória.
Ele já produziu campanhas para Brahma, Skol e Nova Schin.
Para a última, criou o slogan “Experimenta”, que a AmBev
denunciou como ilegal em 2003. Curiosamente, um relatório do
banco Bear Stearns divulgado na semana passada afirma que a
AmBev copiou a campanha do “Experimenta” no Peru. Até o
momento, Fischer tem se recusado a falar sobre esse assunto.
No dia 4 de outubro de 2006 uma nota do Radar visava criar expectativa
sobre a campanha da Femsa.
“O grande segredo do mercado publicitário e do setor de
cervejas começa a ser desvendado nos próximos dias. Mas só
em parte. Trata-se da retumbante estratégia da Femsa, a
mexicana dona da Kaiser, para sacudir o mercado. O objetivo
do diretor da Femsa, Ernesto Silva, é sair rapidamente dos
cerca de 7,5% de participação de mercado para dois dígitos.
Reservadamente, ele tem dito que haverá uma megacampanha
para recuperar a marca Kaiser”.
A nota também saíra com destaque no Radar, em um box colorido e com a
foto do diretor da FEMSA, Ernesto Silva.
No dia 18 de outubro de 2006, saiu uma matéria grande na editoria de
Economia, “Duelo de Gigantes no Brasil”:
“Mais uma guerra das cervejas está em curso. Desta vez, entre duas
multinacionais”
A matéria dizia que a Ambev teria montado uma sala de guerra para
enfrentar os mexicanos. Seriam dois os motivos:
“Primeiro, a publicação de uma foto em que a bela atriz Karina
Bacchi aparece beijando José Valien, conhecido como o
“baixinho da Kaiser”. Parte da imprensa chegou a acreditar
que se tratava de um novo casal na praça, mas a tropa
mobilizada pela AmBev não tardou a descobrir a verdade: era
jogada de marketing da concorrente”
O outro motivo de alvoroço nas fileiras da AmBev foi que no
mesmo dia começou a ser veiculada na TV a nova campanha
publicitária da Femsa, gigante mexicana que comprou a Kaiser
no início do ano. Os dois episódios marcaram o início de mais
uma guerra das cervejas. Esse promete ser um combate como
nunca houve no país. Mais barulhento do que o ocorrido em
2003, quando a Schincariol lançou a Nova Schin e surpreendeu
o mercado com o bordão “Experimenta”. Ou do que o duelo
entre as brasileiras Brahma e Antarctica, no início dos anos
90”.
A falta de habilidade jornalística era nítida. Era necessário mobilizar uma
tropa na Ambev para descobrir que o “caso” entre o Baixinho e a atriz
Karina Bacchi era jogada publicitária.
Na Ambev ninguém entendeu a razão da matéria. O fato da Femsa ser
multinacional não significava nada, já que a Kaiser foi vendida para ela por
outra multinacional – a canadense Molson – que falhou. No campo
específico das cervejas, a Molson era maior que a Femsa - que também é
sócia da Coca-Cola.
Depois, a troco de quê o Baixinho da Kaiser beijando uma modelo
provocaria uma operação de guerra na líder disparada do mercado? E que
história era aquela de um “um combate como nunca houve no país”?
O colunista foi procurado pela Ambev e informado de que não havia
nenhuma operação especial contra a Femsa. Foi convidado a visitar a
empresa, para conferir se havia alguma sala de guerra. Não adiantou. A
matéria ironizou as declarações da Ambev:
“Não houve uma vírgula de mudança em nossas estratégias”,
diz Alexandre Loures, gerente de comunicação da AmBev. Não é
bem assim. Internamente as discussões denotam um pouco mais
de preocupação. A sala de guerra da empresa estava em estado
de alerta havia meses, aguardando o início da ofensiva de
Fischer”.
Não havia nenhuma fonte confirmando essa informação do “estado de
guerra”. Tudo era espuma para criar uma expectativa junto ao público, uma
guerra capaz de dar visibilidade à campanha e repercussão na mídia.
Como sempre, a matéria não poupava elogios a Fischer.
“O comandante da investida mexicana é o publicitário Eduardo
Fischer, que já trabalhou para a rival – foi o criador do slogan
“Número 1”, para a Brahma – e depois se tornou um
especialista em enfrentá-la. “Meu estilo é jiu-jítsu: quanto
maior o tamanho (do concorrente), maior a queda”, diz Fischer.
Ele virou uma pedra no sapato da AmBev desde que criou a
campanha “Experimenta”, um sucesso tão estrondoso que em
pouco mais de dois meses a Schincariol aumentou de 9% para
15% sua participação no mercado e virou um fenômeno no setor
de cervejas.
A multinacional aposta que Fischer conseguirá repetir o
sucesso da campanha de 2003. Embora a empresa não admita
publicamente, sua meta imediata é tirar da Schincariol a vice-
liderança nas vendas. “Uma companhia do tamanho da Femsa
não vai entrar no Brasil para ser terceiro ou quarto lugar. Para
fazer sentido investir aqui, ela vem no mínimo para ocupar a
vice-liderança”, afirma Poppe, da Mellon.
No dia 29 de novembro outra nota no Radar, falando do Baixinho da Kaiser,
nota incompreensível:
Baixinho invocado
Sem alarde, o baixinho da Kaiser mudou de namorada. Depois de
terminar seu “romance” com a estonteante Karina Bacchi, ele aparecerá
nos próximos dias namorando Adriane Galisteu. O cara é fogo!
Qual a justificativa para esse tipo de nota, que destoava completamente
do estilo do Radar?
No dia 13 de dezembro de 2006, outra nota do Radar, falando da “artilharia
da Femsa”, mas mostrando mudanças irrisórias no mercado:
Resultado (parcial) da guerra
A artilharia da Femsa sobre a AmBev acabou atingindo em
cheio a Schincariol e parcialmente a Petrópolis. O resultado de
novembro da Nielsen revela que a AmBev cresceu 0,2 pontos
porcentuais no segundo mês de ataque da Femsa. Sua
participação de mercado passou para 68,8%. A Femsa subiu de
8% para 8,5%. Já a Schincariol caiu de 12% para 11,4%.
No dia 5 de abril de 2007, finalmente, a revista Exame produziria uma
matéria sobre o fracasso da Femsa:
Até agora, em vez de crescer, mesmo que lentamente, a fatia da
empresa nas vendas nacionais de cerveja caiu meio ponto
percentual. Está hoje em 8,5%, segundo o instituto AC Nielsen.
(A situação já foi pior. Em junho do ano passado, a participação
da empresa atingiu 7,4%.) A Sol ainda não pode ser
considerada um sucesso de mercado e a Kaiser segue com
problemas para aumentar as vendas. Há alguns meses, os
mexicanos decidiram reposicionar a marca do Baixinho
reduzindo o preço, para que ela passasse a competir com a
Antarctica e a Nova Schin.
Mesmo com a confirmação de que a estratégia da Femsa fracassara, através
da seção Holofote, Veja insistia em levantar virtudes e afirmar que a
empresa estava “incomodando a concorrência”. De que maneira? Agora,
com ações na Justiça.
No ano passado, com a compra da Kaiser, a mexicana Femsa
entrou no mercado brasileiro de cervejas. O presidente do grupo
no país, Ernesto Silva, ainda não conseguiu ameaçar a
liderança da AmBev, mas já incomoda a concorrência. A seu
pedido, a Justiça determinou a suspensão da venda da cerveja
Puerto del Sol, da AmBev, para evitar confusão com a marca
Sol, dos mexicanos. Como a ordem judicial não foi cumprida, a
AmBev viu-se multada em 15 milhões de reais.
A saga da Femsa na Veja encerrou-se melancolicamente no dia 16 de maio
de 2007. A coluna Radar informou que
Abril registrou uma mudança histórica no agitado mercado de
cervejas brasileiro. Segundo os dados do Nielsen, a Petrópolis
(dona da Itaipava, entre outras) ultrapassou a poderosa Femsa,
dona das marcas Kaiser e Sol. É um fato inédito. Agora, a
mexicana tem 8% do mercado total, contra 8,1% da brasileira.
A “batalha como nunca houve no país”, a “retumbante estratégia”, que
permitiria à Kaiser ultrapassar a Shincariol e conquistar o segundo lugar,
terminava com a Kaiser perdendo o terceiro lugar para a novata Petrópolis.

Uma leitura do balanço da campanha, no portfólio da Fischer América,


permitiu entender a insistência da Veja em mencionar o Baixinho.
“A campanha “surpreendente” criada para Kaiser também
envolveu uma forte presença do Baixinho, gerando intenso boca-
a-boca e dezenas de milhões de reais em mídia espontânea
gratuita (apuração em novembro de 2006)”.
As agências costumam conferir valores a matérias publicadas
espontaneamente na imprensa, comparando a centimetragem das matérias
com as da publicidade. Uma matéria na Veja teria um valor considerável na
contabilidade da campanha. Sem contar o efeito-indução sobre outras
publicações.
As notas sobre o Baixinho começavam a mostrar sua utilidade.
Durante esse período, a Ambev recebia tiros do Radar. E não de tratava
de qualquer empresa, mas de um dos maiores anunciantes da Veja e da Abril.
Outros personagens entraram na história, e, só após sua interferência, Veja
voltou a escrever positivamente sobre a Ambev.
.

As reportagens sobre remédios

Um dos pontos obscuros no mercado publicitário são as relações entre a


indústria de medicamentos e a mídia.
Tome-se a questão da publicidade dos remédios. Em qualquer país do
mundo trata-se de um setor sujeito à supervisão das autoridades sanitárias.
No caso do Brasil, da Anvisa.
O modo de burlar a fiscalização é através de reportagens (com claros
indícios de serem) pagas.
Na revista Veja encontra-se de tudo, de capas frequentes sobre remédios
milagrosos, até absurdos como “recomendar” ao Ministério da Saúde
determinadas substâncias para o coquetel antiaids.

O caso do antiviral
Quando preparava a série sobre a Veja, deparei-me com uma matéria
estranha, de um remédio antiaids da Pfizer que a revista - sem o respaldo de
uma fonte científica sequer - sugeria para compor o coquetel antiaids do
Ministério da Saúde.
Era uma reportagem comum, de página inteira, não um artigo científico,
assinada por uma repórter sem formação médica. Falava das maravilhas de
um novo princípio ativo da Pfizer, que traria avanços consideráveis no
combate à aids, o Maraviroc.
Nos EUA, o FDA acabara de aprovar a droga. No Brasil, a Anvisa atuou
de forma surpreendentemente rápida, aprovando-a no mesmo ano. E aí, uma
repórter sem nenhuma especialização na área médica, sem pesquisar sites
especializados no assunto, sem recorrer a uma fonte médica sequer, sugere
que o remédio passe a integrar o coquetel antiaids do Ministério da Saúde.
A matéria fechava assim:
“É muito provável, de acordo com os médicos, que as duas
novas classes de drogas antiaids logo venham a fazer parte
desse cardápio farmacêutico (o coquetel antiaids do Ministério
da Saúde, sonho de todo laboratório que produz antivirais)”.
A fonte da revista eram “os médicos”.
O que estaria por trás desse soluço científico da revista?
Na época, nem o Ministério da Saúde nem a Sociedade Brasileira de
Infectologia concordavam com a inclusão do novo princípio ativo,
justamente devido ao fato de se exigir o teste prévio do paciente, oferecido
por apenas um laboratório norte-americano associado à Pfizer.
Havia um conflito latente, discussões técnicas no Ministério da Saúde e
em organismos científicos. Aí a empresa monta essa estratégia de se valer de
uma revista sem nenhuma base científica, para “sugerir” ao Ministério a
adoção do remédio.
O caso foi completado por um leitor.

Histórico do Caso Maraviroc (Celsentri)


15/8/2007 – A revista Veja faz propaganda disfarçada do medicamento anti-
retroviral Maraviroc, exaltando suas qualidades na matéria “Esperança
Dobrada .
24/9/2007 – “A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou
ontem um novo medicamento anti-retroviral indicado para pacientes com
resistência ao coquetel antiaids, distribuído gratuitamente pelo Ministério da
Saúde.”
Em matéria baseada na assessoria de imprensa da Pfizer, redigida por
Léo Nogueira e publicada no mesmo dia (24/9/2007), lê-se:
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou hoje o anti-
retroviral Celsentri (maraviroc). O medicamento vai integrar o coquetel de
produtos para tratamento de pacientes com HIV/Aids que apresentam
resistência ou que não toleram os remédios disponíveis.
Favas contadas, portanto.
11/1/2008 – Na matéria “ ‘Conflito de interesse’ pode atrapalhar negociação
de Maraviroc no SUS, diz Mariângela Simão diretora do Programa Nacional
de DST/Aids”, vem a informação de que um pré-requisito para a utilização
do medicamentos por pacientes portadores do vírus da Aids seria
simplesmente este:
“... antes de utilizar o remédio, o paciente deve se submeter a um teste que
está disponível em apenas um laboratório nos Estados Unidos, que mantém
relações comerciais com a Pfizer. ‘Temos uma situação complexa, há um
potencial conflito de interesse, uma vez que o único laboratório que faz o
teste de genotipagem tem relações comerciais com esta indústria
farmacêutica’, explicou em entrevista à Agência de Notícias da Aids.”
Quer mais?
“... Só tem um laboratório no mundo que faz isso e foi contratado pelo
laboratório produtor do Maraviroc [Pfizer] para validar o seu estudo [sobre
a eficácia do medicamento].”
A matéria da Veja não mencionou essas duas informações
jornalisticamente relevantes para o entendimento do caso.
2012 – O Celsentri foi retirado do coquetel antiaids (19 medicamentos)
distribuído gratuitamente pelo Ministério da Saúde para cerca de 200.000
pessoas.
Não foi a primeira nem a última investida da revista no terreno pantanoso
da publicidade médica disfarçada em reportagem.

O lobby a favor dos remédios de emagrecimento


Na edição de 23 de fevereiro de 2011 a reportagem de capa era uma defesa
candente dos remédios para emagrecer:
“Remédios para Emagrecer: Por que é ruim proibir a venda”.
Na abertura da reportagem, uma candente defesa... das liberdades
individuais:
“A intenção da Anvisa de banir os anorexígenos, além de ferir as
liberdades individuais, é uma ameaça à saúde de 16 milhões de brasileiros”.
A Anvisa avaliava um conjunto de remédios vistos como inseguros para a
saúde e sem eficácia comprovada. Alguns deles já tinham sido proibidos em
outros países.

A revista se escudava na opinião de seus patrocinadores para uma defesa de


uma classe de medicamentos contra outra.
“Para a agência, o único composto antiobesidade que deveria
permanecer à venda é o orlistat, princípio ativo do Xenival – um
remédio caro, com efeitos colaterais bastante inconvenientes,
por agir diretamente no intestino e de pouca eficácia
terapêutica”.
A opinião não era atribuída a nenhum especialista: era bancada diretamente
pela revista. E atribuía um “caráter eminentemente ideológico” à decisão da
Anvisa.
Atropelando todos os conceitos de regulação da saúde, previstos em
qualquer país, a revista recorreu ao filósofo de direita Denis Lerrer
Rosenfeld para uma defesa enfática do exercício da medicina sem nenhuma
forma de regulação:

“Medidas como essa da Anvisa desconsideram a capacidade do médico de


decidir pelo melhor tratamento para o seu paciente”.
Como a coerência não é marca da revista, na edição de 11 de abril de
2007, no quadro “Quando medicamentos fazem mal à saúde”, Veja
denunciava:
“O uso inadequado de remédios é responsável por 60% dos casos de
intoxicação registrados no mundo. Um dos principais problemas é a
interação medicamentosa, ou seja, o aparecimento indesejado decorrente do
uso simultâneo de vários remédios e substâncias (...) No Brasil, os cursos de
medicina não contam com as disciplinas de farmacologia e toxicologia
clínica, que podem ensinar os futuros médicos a prever essas reações.”
O lobby não produziu efeito.
No dia 4 de outubro de 2010, a Anvisa decidiu pela proibição de um
conjunto de remédios para emagrecer, após um processo de 643 páginas,
elaborado ao longo de oito meses.

Os remédios para emagrecer

Em setembro de 2011 a revista publicou capa polêmica, recomendando o


medicamento Victoza, do Laboratório Novo Nordisk, para combate à
obesidade. O medicamento é para tratamento de diabetes tipo 2, não é
recomendado para emagrecimento.
Novo Nordisk foi o mesmo laboratório beneficiado por José Serra,
quando Ministro da Saúde, para inviabilizar a brasileira Biobras, fabricante
de insulina.
A capa provocou enorme reação dos setores médicos, a ponto da Anvisa
exigir uma Nota de Esclarecimento da Editora Abril.
Pouco tempo depois, Veja trouxe outra capa polêmica, em que expunha um
rapaz alto ao lado de um baixinho e a informação, com base em uma certa
“evolução tecnofísica”, de que “Do alto tudo é melhor” (manchete de capa).
“A ‘evolução tecnofísica’ explica por que as pessoas mais altas são mais
saudáveis e tendem a ser mais bem-sucedidas”, dizia o texto complementar
da capa.
No Blog, o leitor Hugo rebateu as pretensas afirmações científicas da
revista.
“Tão rasa quanto a concepção de que os mais altos se saem melhor que os
baixinhos, é a explicação dada sobre tal tese, tirada sabe-se lá de onde. Sem
fontes claras – fossem elas estudiosos ou mesmo uma pesquisa quantitativa
das que renderam a Fogel boa parte da relevância que tem hoje – a revista
limita-se a exibir um quadro intitulado “Por que alguns centímetros a mais
fazem diferença”, citando relações mirabolantes entre altura e sucesso, e ao
seguinte parágrafo, de autoria da própria redação da revista:
“A altura está associada também à produtividade, ao poder e ao sucesso.
Pessoas mais altas são consideradas mais inteligentes e conseguem aumento
de salário com maior facilidade do que as mais baixas. Medir 5 centímetros
a mais do que os colegas de trabalho garante um salário 1,5% maior, ou 950
dólares suplementares no fim do ano. A altura é um quesito crucial até para a
liderança. Entre 1789 e 2008, 58% dos candidatos mais altos à Presidência
dos Estados Unidos ganharam as eleições. Barack Obama tem 1,85m. O
republicano Mitt Romney, 1,88 metro”.
O que leva uma revista com tal tiragem a montar capas dessa ordem?
Coube ao leitor Pedro Saraiva, médico, desvendar a trama, montada com
o mesmo Novo Nordisk:
(...) Todos devem se lembrar de outra polêmica matéria, também sobre
aparência e aceitação social, onde a revista faz uma descarada propaganda
para a droga Liraglutida, comercializada pela empresa farmacêutica Novo
Nordisk, sob o nome comercial Victoza®.
Esta medicação aprovada mundialmente apenas para uso no diabetes foi
tratada como milagrosa no combate à obesidade, em uma das reportagens
mais irresponsáveis que já vi a nossa imprensa publicar.
Na época, houve grande repercussão no meio médico e inúmeros
especialistas e entidades médicas criticaram abertamente a revista. Até a
ANVISA solicitou uma nota de esclarecimento à Veja. (...)faltou remédio
para os diabéticos, aqueles que realmente tinham indicação de tomar o
medicamento.
Uma semana depois, apesar de todas as críticas, a Revista M de mulher,
também da Editora Abril, trouxe uma outra reportagem, assinada por outra
jornalista, com a mesma falsa propaganda sobre a droga.

Para completar ao circo, em Novembro, outra publicação da Abril, a Revista


Claudia, em nova reportagem, assinada por uma terceira jornalista, faz
novamente irresponsável apologia ao uso do Victoza® como remédio para
emagrecer.
Mas o que a reportagem desta semana tem a ver com estes fatos? Bom, a
empresa farmacêutica Novo Nordisk atua basicamente em apenas 3 áreas da
saúde: diabetes, distúrbios da coagulação e... distúrbios do crescimento.
.

As manipulações com livros

A seção “Mais Vendidos” é uma instituição da Veja. Criada nos anos 70,
durante décadas se tornou o principal referencial de vendas de livros no
país. Aparecendo na lista, aumentam as encomendas do livro e as livrarias
passam a colocá-lo em lugar de destaque em vitrines e estantes. Há um ganho
efetivo – intelectual e financeiro – em aparecer na relação.
No dia 10 de março de 2004, o romance de estreia do redator-chefe Mário
Sabino – “O Dia em que Matei Meu Pai”- foi resenhado na Veja. A resenha
foi de responsabilidade do jornalista Carlos Graieb, repórter da revista e
subordinado a Sabino . Era algo impensável, vetado por qualquer código de
ética escrito ou tácito, um subordinado incumbido de resenhar o livro do
chefe.
Todos os anos, no mês de dezembro, sai a lista dos “Livros do Ano” do
“The Economist”. A posição da revista quanto ao tratamento dado à obra de
seus talentos internos, está resumida nas seguintes linhas:
“Nossa política é não resenhar livros escritos pela nossa equipe ou por
colaboradores habituais, por que os leitores poderiam duvidar da
independência dessas resenhas”.
Na resenha que Graieb fez do livro de seu chefe, no entanto, os elogios
eram derramados:
“Dois tipos de sedução aguardam o leitor de O Dia em que Matei Meu
Pai (Record; 221 páginas; 25,90 reais). Primeiro, a sedução do bom texto
literário, à qual ele pode se entregar sem medo. O romance de estréia do
jornalista Mario Sabino, editor executivo de VEJA, é daqueles que se
devoram rápido, de preferência de uma vez só, porque a história é
envolvente e a linguagem, cristalina. Sabino possui atributos fundamentais
para um ficcionista, como o poder de criar imagens precisas: em seu texto,
ao ser atingido pelas costas um personagem não apenas se curva antes de
desabar; ele se curva como se fosse “para amarrar os sapatos”.
A resenha destaca a passagem mais marcante do livro, um diálogo do
personagem com o psicanalista, à altura de uma cena hamletiana:
“A certa altura, ele grita para sua analista: “Não quero saber de
interpretações. Faça-as longe de mim, e sem a minha colaboração. De que
elas servem, meu Deus? Você, aqui, não passa de coadjuvante, está
entendendo? Por isso, não tente ser protagonista por meio de suas
interpretações””.
Escrita a resenha, foi encaminhada ao editor responsável pela liberação:
o próprio Sabino . Ele conferiu o título, aprovou a foto em que aparece com
o ar circunspecto dos grandes autores atormentados, e mandou para a
gráfica.
No dia 31 de março de 2004, três semanas após o panegírico, a relação dos
livros mais vendidos na categoria “Ficção” era a seguinte:
1o Perdas e Ganhos, de Lya Luft
2o Pensar é transgredir, de Lya Luft
3o Budapeste, de Chico Buarque
4o As Filhas da Princesa, de Jean Sasson
5o Onze Minutos, de Paulo Coelho
6o O Beijo da Morte, de Carlos Heitor Cony e Anna Lee
7o Harry Potter e a Ordem do Fênix, de J.K. Howlling
8o O Rei das Fraudes, de John Grisban
9o Sobre meninos e lobos, de Dennis Lehane
10o Paixões Obscuras, de Nora Robers.
O livro de Sabino não aparecia.
Na edição seguinte, de 7 de abril de 2004, a seção dos “Mais Vendidos”
anunciava uma mudança nos critérios de classificação dos livros.
“Da categoria de ficção farão parte apenas romances e
coletâneas de contos. Da categoria de não-ficção constarão
ensaios e biografias, mas também livros de crônicas, cuja
referência principal se encontra no noticiário e no registro de
uma realidade mais imediata” Isso acontecerá ainda que o
cronista lance mão de recursos ficcionais”
Não fazia sentido. Há um padrão consagrado nas listas e nas premiações de
considerar crônicas como Ficção. Segundo o leitor Saulo Maciel, que
percebeu essa manobra:
“Um livro de Luis Fernando Verissimo – 100% ficcional –, depois de
dois anos na categoria Ficção, passava a ser considerado Não-Ficção,
embora o próprio sítio internet de sua editora, a Objetiva, o incluísse na
página Ficção. (Recentemente os livros de Verissimo voltaram a figurar, sem
explicação aparente, na categoria Ficção). A revista também não explicava
por que quatro livrarias haviam sido excluídas da lista de estabelecimentos
consultados. (Basta conferir com a edição anterior)”
Quatro livros da categoria “Ficção” foram transferidos para a “Não
Ficção”: os dois da campeã Lya Luft, “As Filhas da Princesa”, e um de Luiz
Fernando Veríssimo.
Essas mudanças permitiram ao livro de Sabino entrar em 10o lugar na
lista, na categoria “Ficção”.
Geralmente o livro entra na relação dos mais vendidos na semana do
lançamento, ainda mais após a exposição recebida de Veja. O de Sabino
entrava na terceira semana, à custa da mudança de critérios e da exclusão de
livrarias pesquisadas.
Mesmo com as alterações nos critérios, o livro não resistiu e sumiu da
lista na semana seguinte. Depois, sem muito alarde, voltaram os critérios
originais dos “Mais Vendidos”.
O caso Record
De 2003 a 2007, Mário Sabino se aproximou da Editora Record. Houve
troca de favores, na época, que provocou ressentimento tanto nas editoras
concorrentes como das seções de lançamento de livros de outras
publicações.
Entusiasmada com o talento nascente de Sabino, durante a Bienal do
Livro em São Paulo de 2004 a editora mandou espalhar outdoors por toda a
cidade, vendendo-o como a grande descoberta do novo romance brasileiro.
Nem os maiores escritores de ficção mereceram divulgação similar.
Mesmo assim, tirando resenhas de amigos e subalternos, a repercussão foi
quase nula.
Mas, a partir dessa relação, a seção de Livros de Veja passou a dar
tratamento diferenciado para a Record – e a Record a dar com
exclusividade, para Veja, o anúncio de seus lançamentos mais relevantes.
Seguiu-se um jogo de troca de favores poucas vezes visto no jornalismo
cultural brasileiro. Sabino assinava uma resenha positiva sobre Miguel
Sanches Neto. Grato, Miguel fazia uma entrevista laudatória com Sabino e
incluía um conto seu na coletânea “Contos para Ler”. O volume era
publicado por Luciana Villas-Boas, da Record, que conseguia nota favorável
em Veja.
Mas não se ficou nisso.
Além dos outdoors, seus livros passaram a ser oferecidos no Exterior,
graças ao empenho pessoal de Luciana e à enorme influência da Record,
maior editora brasileira.
O segundo livro de Sabino, “O Antinarciso” foi resenhado pelo escritor e
médico gaúcho Moacir Scliar.
Na edição de 11 de maio de 2005, o romance “Na Noite do Ventre, o
Diamante”, de Scliar, mereceu resenha elogiosa de Jerônimo Teixeira,
subordinado de Sabino .
Duas edições depois, em 25 de maio de 2005, Scliar resenhou o livro de
contos de Sabino. Scliar é um escritor sério. Mas não havia nenhuma
possibilidade de uma resenha negativa.
No fecho da resenha, Scliar chamava a atenção para o título “O
Antinarciso”, que não sai de nenhum dos contos:
“A esse narcisismo cego, que barra as possibilidades afetivas
dos personagens, é que se contrapõe o olhar atento do autor
antinarciso. E também se opõe à tentação que assalta muitos
escritores contemporâneos – de girar em torno ao próprio
umbigo, de fazer do pronome “eu” a palavra mais importante
da literatura. Os contos de Mario Sabino mostram que a
subjetividade só tem sentido quando está a serviço do
entendimento, quando funciona como um sensível sismógrafo
capaz de captar as vibrações da alma”.

O compadrio na literatura
O “compadrio” no meio editorial é conhecido. No início daquele ano, um
jornalista cultural anotou o seguinte sobre as “orelhas” de livros:
“Longe de serem acessórios dispensáveis a um bom livro,
introduções ou orelhas assinadas são com frequência moeda de
troca do compadrio literário. O autor do elogio confirma seu
prestígio cultural e ainda ganha um troco das editoras. O
escritor elogiado recebe um empurrãozinho na carreira. Só
perde o leitor ingênuo, que acredita no aval dos medalhões
literários”.
A matéria “Pagos para elogiar” era da própria Veja, em 26 de janeiro de
2005, assinada por Jerônimo Teixeira. Era maldosa, ao estilo Veja, escrita
especificamente para atingir Luiz Fernando Veríssimo e Carlos Heitor Cony.
Mencionava genericamente pagamentos por “orelhas”, depois levantava
algumas “orelhas” assinadas por Luiz Fernando Veríssimo e Carlos Heitor
Cony – adversários ideológicos da revista.
Não havia uma prova sequer que teriam “vendido” os comentários – ao
contrários dos resenhistas de Veja, que eram remunerados quando teceram
loas a Sabino. Mas, dentro do estilo malicioso da revista, ficava a
insinuação.
A matéria valia pela lição de Veríssimo, sobre a arte de elogiar um
trabalho que não entusiasma:
“A única arte, ou dificuldade, é escrever algo favorável sobre
um trabalho que não entusiasma sem parecer condescendente ou
falso. Em geral, isso é feito para ajudar alguém que está
começando.”
Grande escritor, na resenha de “O Antinarciso” Scliar deu uma
demonstração soberba de como escrever algo favorável de um livro que não
o entusiasmou, como a “orelha” escrita para um amigo iniciante:
“Com uma apurada economia de linguagem, seus textos
mergulham, em sua própria expressão, no “buraco negro” em
que cada personagem esconde não só sua miséria, mas também
sua grandeza.”
(...) “Em alguns casos, a narrativa se resume a um diálogo,
forma que o autor maneja com agilidade e objetividade – basta
ver Miserere, surpreendente conversa entre um ser que se julga
culpado e um interlocutor que detém um poder infinito”.
(...) “Em Da Amizade Masculina, a ligação entre dois colegas de
uma faculdade de filosofia serve para um exame da natureza do
relacionamento entre homens”
(...) “A esse narcisismo cego, que barra as possibilidades
afetivas dos personagens, é que se contrapõe o olhar atento do
autor antinarciso” .
(...) “Os contos de Mario Sabino mostram que a subjetividade
só tem sentido quando está a serviço do entendimento, quando
funciona como um sensível sismógrafo capaz de captar as
vibrações da alma”.

O escândalo dos livros didáticos


Quando a Internet surgiu, ameaçando os modelos de negócios da midia,
houve um movimento dos grupos de mídia na busca de outras alternativas de
negócio. Um dos mercados promissores foi o de livros didáticos, com casos
bem sucedidos como o grupo Pisa, da Espanha, controlador do El Pais e da
editora Planeta.
O magnata Rupert Murdoch foi dos primeiros a trilhar esse caminho, com
sua editora Wireless Generation. Contratou Joel Klein, ex-diretor do sistema
escolar de Nova York, para ser o lobista com o Estado.
No entanto, quando seus métodos de jornalismo vieram a público, suas
vendas de livros passaram a ser questionadas. Um contrato de US$ 27
milhões com o estado de Nova York foi recusado por um auditor de
contabilidade pública do Estado. O motivo alegado é que quem não
praticava um jornalismo idôneo não poderia ser fornecedor de material
educativo para as crianças novaiorquinas.
Quando decidiu entrar no mercado de livros didáticos, a Abril escondeu-
se atrás do macarthismo para tentar afastar os concorrentes.
Só que o “prego sobre vinil” era tão evidente que, à primeira leitura, se
percebiam as intenções da reportagem.

O caso dos cursos apostilados


Em 2007, a Abril descobriu a mina dos cursos apostilados.
Na edição de 14 de fevereiro de 2007, publicou a reportagem “Escola
pública, gestão particular”, de autoria da repórter Camila Antunes.

Era um panegírico aos cursos apostilados, especialmente ao sistema COC,


de Ribeirão Preto.
“A Prova Brasil, exame do Ministério da Educação, que avaliou
o ensino em 5.400 municípios brasileiros, revelou a eficiência
de um novo tipo de escola pública: ela é administrada em
parceria com grupos particulares – e não mais apenas pelos
governos locais (...)
O exemplo mais bem sucedido desse modelo veio de sete
municípios do interior de São Paulo (...) Em comum, eles
contrataram um grupo privado, o COC (dono de uma rede de
200 escolas em 150 cidades), para ditar os rumos pedagógicos
nas salas de aula públicas”.
A reportagem prosseguia tecendo loas ao método do COC.
Pouco tempo depois, uma reportagem da revista Cláudia mostrava que a
Abril mirava o filão. Nela, Cláudia Costin, então vice-presidente da
Fundação Victor Civita, anunciava a entrada da Abril no sistema de cursos
apostilados:
“Cresce o número de escolas privadas e redes municipais que firmam
convênios com grandes sistemas de ensino. De acordo com Claudia Costin,
vice-presidente da Fundação Victor Civita, quem comprou um método saiu-
se melhor na Prova Brasil: “Bem ou mal, essas instituições passaram a
contar com um material que diz claramente o que fazer em cada aula. O
plano de aula, embora pareça um pouco totalitário, garante a aprendizagem”.
(...)
O grupo Abril havia lançado no mercado seu próprio sistema de ensino, o
Ser, que poderia ser adotado a partir de 2008 e colocava à disposição dos
professores o conteúdo das publicações da editora (incluindo a revista
CLAUDIA)”.
No dia 13 de junho de 2007, a mesma repórter que assinou a reportagem
laudatória ao COC voltou com outra reportagem. Desta vez era sobre a mãe
de um aluno que denunciava “conteúdo subversivo “ no material do COC
entregue ao Colégio Pentágono

O trecho de maior impacto era uma lição sobre “como conjugar um


empresário”, efetivamente de baixo nível.
Nela, se estimulava os pais de alunos a exigirem o fim do convênio. O
“prego sobre vinil” era muito evidente para qualquer jornalista com um
mínimo de experiência.
No dia 13 de junho publiquei uma nota no Blog estranhando o tom da
matéria.
“Segue-se uma longa catilinária, com uma conclamação para
que colégios deixem de utilizar o material do COC. “O colégio
onde estuda a filha reagiu com coragem e correção. Não
renovou o contrato com o COC e mandou tirar de sua própria
apostila o texto em questão”.
Depois, críticas genéricas de especialistas contra a má qualidade dos livros
didáticos, mas sem deixar claro se eram críticas genéricas ou específicas.
Faltou informar que a Editora Abril, através de duas editoras que havia
adquirido nos últimos anos, a Ática e a Sciopne, era concorrente direta do
COC no fornecimento de material didático às escolas, que a matéria
favorecia a Abril nessa disputa, que a defesa do COC aparece em apenas
uma frase do proprietário.
No dia 19 de junho de 2007, conversei com Chaim Zaher, dono do COC, que
me deu o seguinte depoimento:
“Pouco tempo atrás fui procurado por uma repórter de “Veja”,
que resolveu fazer uma matéria sobre o material didático do
COC, pelo fato de termos sido premiados pela qualidade do
material. A matéria saiu com muitos elogios.
(...) Não sei o que aconteceu internamente na Abril, mas na
edição seguinte da revista Cláudia, a Abril anunciava sua
entrada no mercado, mencionava o Anglo e o Objetivo, e não
fazia nenhuma menção ao COC, que, segundo a matéria da
“Veja”, era o mais premiado. Aí, a denúncia da jornalista, mãe
de uma aluna, caiu em seu colo e fizeram aquele carnaval.
Jamais declarei à repórter que o COC errou nos trechos
mencionados, como saiu publicado. O que lhe disse é que todo
material didático está sujeito a erros, e isso acontece com o
nosso material e com os de todos nossos concorrentes. E que
nosso trabalho é ir corrigindo os erros, quando identificados.
Ela colocou que eu teria admitido os erros.
O material “Conjugando o Empresário” não consta das
apostilas do COC. Foi um professor do “Pentágono” que copiou
esse texto do vestibular da UFMG e distribuiu para seus alunos,
na sua classe. Tanto que nenhuma outra escola tem esse
material. Expliquei para a repórter, mas colocaram na
reportagem de tal maneira que ficou parecendo que o material
era do COC.
Mandei uma carta para a revista, pedindo que retificassem o
que me foi atribuído. Não publicaram a carta. Muitos pais de
alunos do COC mandaram cartas à revista com cópia para mim.
Nenhuma saiu, só as cartas contrárias, e que se basearam na
matéria da “Veja”.
Recebi muitos telefonemas de solidariedade, mas ninguém quer
dar a cara para bater, temendo retaliação da revista”.
Só depois de publicado esse dossiê no Blog, no dia 27 de junho a revista
resolveu retificar a menção incorreta ao COC da forma mais torta possível.

Na seção de cartas publicou com destaque a carta de um ilustrador negando


ser o autor da ilustração que saíra na reportagem. Segundo a nota, a autoria
tinha sido “atribuído em apostilas do sistema COC de ensino a um homônimo
seu”.
No pé da seção de cartas, uma nota pequena esclarecendo que o texto em
questão havia sido incluído pelo Colégio Pentágono em suas próprias
apostilas. A correção corrigia a carta enviada pelo ilustrador, não a
reportagem em si.
A Abril entrou no mercado de livros didáticos e cursos apostilados
através de uma nova divisão, na qual incorporou as editoras Ática e
Scipione, que havia adquirido em sociedade com o grupo francês Vivendi; e
a Globo tentou uma parceria com a UNO, braço do Santillana.
Mas a guerra estava apenas começando.
A Grande História Crítica
A segunda frente foi conduzida por Ali Kamel, já promovido a diretor da
Globo.
No dia 22 de agosto de 2007, seu livro “Sobre o Islã”, recebeu
tratamento nobre na Veja: duas páginas de lisonja assinadas pelo indefectível
Mário Sabino .

Uma resenha elogiosa em Veja garantia ao autor um belo impulso nas vendas
do livro. Na semana de 19 de setembro de 2007, o livro já figurava em
segundo lugar na lista de “não-ficção” da revista.
Em 18 de setembro de 2007, Kamel publicou coluna no jornal O Globo,
prontamente reproduzida no Estadão, denunciando o conteúdo subversivo de
um campeão de vendas, a coleção “Nova História Crítica”, de uma editora
nacional. As denúncias foram repercutidas nos demais veículos da Globo, da
revista Época ao Jornal Nacional.
Na abertura do artigo, Kamel se esmerava em explicar como o livro
chegara em suas mãos:
O psicanalista Francisco Daudt me fez chegar às mãos o livro
didático “Nova História Crítica, 8ª série” distribuído
gratuitamente pelo MEC a 750 mil alunos da rede pública. O
que ele leu ali é de dar medo. Apenas uma tentativa de fazer
nossas crianças acreditarem que o capitalismo é mau e que a
solução de todos os problemas é o socialismo, que só fracassou
até aqui por culpa de burocratas autoritários. Impossível contar
tudo o que há no livro. Por isso, cito apenas alguns trechos.
O livro era um campeão de vendas, ocupando espaço de concorrentes da
Ática, Scipione, talvez da Santillana, do grupo Pisa, dono do El País.
Kamel denunciava o livro por suposta apologia a Mao Tse-tung
selecionando a parte que enaltecia Mao:
“Foi um grande estadista e comandante militar. Escreveu livros
sobre política, filosofia e economia. Praticou esportes até a
velhice. Amou inúmeras mulheres e por elas foi correspondido.
Para muitos chineses, Mao é ainda um grande herói. Mas para
os chineses anticomunistas, não passou de um ditador.”
Sonegando a parte que o criticava:
“Como governante, agiu de forma parecida com Stálin,
perseguindo os opositores e utilizando recursos de propaganda
para criar a imagem oficial de que era infalível.”
Sobre a revolução cultural chinesa, Kamel mencionava o trecho:
“Foi uma experiência socialista muito original. As novas
propostas eram discutidas animadamente. Grandes cartazes
murais, os dazibaos, abriam espaço para o povo manifestar seus
pensamentos e suas críticas”.
E escondia a crítica:
“O Grande Salto para a Frente tinha fracassado. O resultado
foi uma terrível epidemia de fome que dizimou milhares de
pessoas. (...) Mao (...) agiu de forma parecida com Stálin,
perseguindo os opositores e utilizando recursos de propaganda
para criar a imagem oficial de que era infalível.” (p. 191)
“Ouvir uma fita com rock ocidental podia levar alguém a
freqüentar um campo de reeducação política. (...) Nas
universidades, as vagas eram reservadas para os que
demonstravam maior desempenho nas lutas políticas. (...)
Antigos dirigentes eram arrancados do poder e humilhados por
multidões de adolescentes que consideravam o fato de a pessoa
ter 60 ou 70 anos ser suficiente para ela não ter nada a
acrescentar ao país...”
Sobre a revolução russa, o mesmo procedimento:
“É claro que a população soviética não estava passando fome.
O desenvolvimento econômico e a boa distribuição de renda
garantiam o lar e o jantar para cada cidadão. Não existia
inflação nem desemprego. Todo ensino era gratuito e muitos
filhos de operários e camponeses conseguiam cursar as
melhores faculdades. (...) Medicina gratuita, aluguel que
custava o preço de três maços de cigarro, grandes cidades sem
crianças abandonadas nem favelas...
E escondia as críticas:
“A URSS era uma ditadura. O Partido Comunista tomava todas
as decisões importantes. As eleições eram apenas uma
encenação (...). Quem criticasse o governo ia para a prisão. (...)
Em vez da eficácia econômica havia mesmo era uma
administração confusa e lenta. (...) Milhares e milhares de
indivíduos foram enviados a campos de trabalho forçado na
Sibéria, os terríveis Gulags. Muita gente foi torturada até a
morte pelos guardas stalinistas...”.
Qual a intenção de crucificar dessa maneira um livro didático?
No dia seguinte ao artigo de Kamel, o diário El Pais publicou artigo
repercutindo internacionalmente a denúncia e afirmando que “el libro de
texto ensalza el comunismo y la revolución cultural china”.
No mesmo dia, o ex-Ministro Paulo Renato de Souza (em cuja gestão o
livro passou a integrar as obras do MEC) publicou no site do PSDB a
informação de que entraria com representação na Procuradoria Geral da
República para retirar a Nova História Crítica do mercado.
No seu site pessoal, havia a informação de que sua consultoria tinha entre
seus clientes a Santillana, a editora de El Pais.
Conseguiram matar um campeão de vendas. Mas o contraponto da
blogosfera produziu tal desgaste que a estratégia acabou não sendo mais
repetida, para alívio de outras editoras e autores concorrentes23.
Dentre os artigos veiculados no meu Blog, um levantamento de livros de
história da Ática e da Scipione – controladas pela Abril - mostrava posições
“esquerdistas”, similares à maioria dos livros didáticos de história.
23 https://goo.gl/355jXh
.

A campanha midiática nas eleições de 2010

A campanha eleitoral de 2010 foi o ápice do modelo de


manipulação de notícias pela mídia, firmemente empenhada em
tentar eleger José Serra.
.

O polvo no Poder

A edição de 15 de setembro de 2010 obedeceu ao padrão sanguinolento da


revista. Capa em vermelho, alusão a temores ancestrais.
Era uma reportagem de Diego Escostegui sobre uma suposta organização
criminosa que atuaria na Casa Civil.
A reportagem total tinha 12.185 caracteres.
Nos 5.457 caracteres iniciais, ou 45% da matéria, apenas as seguintes
informações:
1. Um empresário do setor de transporte aéreo, pretendendo entrar
nos Correios, contrata uma assessoria que tem como um dos
sócios Israel Guerra, filho de Erenice Guerra, braço direito de
Dilma na Casa Civil.
2. A consultoria chama-se Capital Assessoria e Consultoria, foi
aberta em julho do ano anterior, tendo como sócios também Saulo
Guerra, filho de Erenice e a mãe de Vinicius Castro, assessor
jurídico da Casa Civil.
3. O contrato previa uma “taxa se sucesso” de 6%, “caso a
licitação pouse suavemente na pista correta”.
4. O total, ou em parte - “não se sabe bem”, como informa o
repórter – se destinaria a “saldar compromissos políticos” –
assim, entre aspas.
5. O endereço da consultoria era da própria casa de Israel. Mas
para receber clientes recorria a um escritório de advocacia em
Brasília.
O empresário em questão era Fabio Bacarat, apresentado como dono da Via
Net Express e sócio da MTA Linhas Aéreas. Segundo a matéria, ele teria
chegado a Israel por indicação de um diretor dos Correios. A reportagem
preservava o nome do tal diretor, que era Marco Antônio, o tio de Vinicius e
o sujeito que, na condição de Diretor de Operações dos Correios, era a
pessoa incumbida da contratação.
Encontrou-se, então, com Israel e Vinicius Castro. E teria recebido a
garantia de que “poderiam entregar ali o que encomendavam”.
O passo seguinte – segundo a revista - teria sido apresenta-los à própria
Erenice. Para entrar no apartamento de Erenice, segundo Bacarat, ele teve
que deixar do lado de fora celulares, relógios, canetas, “qualquer aparelho
que pudesse gravar o encontro”. Daí o fato de não ter nenhuma prova sobre o
que falava. Simples assim.
Mesmo assim, a revista endossou com estardalhaço todas as acusações
supostamente atribuídas a Bacarat.
A única prova apresentada foi o contrato assinado, onde se mencionava a
cláusula de sucesso de 6%. Segundo o empresário, todo mês ele pagava R$
25 mil em dinheiro vivo sempre para Vinicius Castro. “Os acertos se davam
em quartos de hotel, restaurantes e dentro do carro. Ele nunca contava o
dinheiro”, dizia Bacarat.
Segundo a matéria, graças ao lobby de Israel, a empresa que faturava R$
40 milhões por ano em contratos emergenciais com os Correios faturou R$
84 milhões em apenas dois meses.
Qual o preço desse lobby milionário? R$ 120 mil, segundo a revista,
parte dos quais se destinou a subornos na ANAC.
No dia seguinte ao da publicação da reportagem Bacarat soltou uma nota
oficial desmentindo a revista.
Dizia ela:
1. Não era e nunca foi funcionário ou representante comercial da
Vianet. Apenas conhecia algumas pessoas da empresa.
2. Em relação à MTA, limitou-se a algumas tratativas de compra.
3. Jamais havia tratado de negócios com Erenice.
4. Foi procurado pela revista para falar sobre o coronel Artur,
diretor de operação dos Correios que substituíra Marco Antônio.
5. Finalmente, declara-se como um personagem de um joguete
político-eleitoral irresponsável.
Seria simples a revista desmentir Bacarat já que, pelo que a reportagem
informava, tinha gravado as conversas com ele. Nada foi apresentado.
Vamos conferir o método de reportagem do Diego Escosteguy e da Veja.
1. Levantou um contrato da Via Net Express com a Capital (do
filho da Erenice) em que se fala em taxa de sucesso de 6%.
2. Diz que, pela Via Net, quem assina é o seu dono Fábio Baracat.
Na verdade, Baracat nada tem a ver com a empresa, a não ser
oferecer serviços eventuais.
3. Levanta matérias recentes da imprensa, sobre as ligações da
MTA com a ANAC e os Correios.
4. Tem os contratos da MTA junto aos Correios e a comissão de
6%. Cruza uma com outra e tem-se o valor da propina.
No contrato publicado, se lê:
Cláusula 2.1 – São obrigações da Contratada:
a) Prestar serviços de consultoria e (...)
b) Representar a Contratante junto a instituições públicas e
privadas, com zelo e probidade (...)
A revista sublinha esse trecho como se fosse incriminatório. Trata-se de
texto padrão de qualquer contrato de consultoria.
Agora, ao que interessa: as formas de pagamento:
Cláusula Terceira – Do Pagamento
3.1 Pela prestação dos serviços, a Contratante pagará
mensalmente à Contratada o valor de R$ 24.738,00 a título de
remuneração (...)
E o que efetivamente interessa, a tal taxa de sucesso de 6%:
A revista precisava mostrar a «prova» do pagamento de 6% de propina.
Mas esse percentual não vinha separado: estava em um parágrafo inteiro que
não podia ser suprimido. Precisou, então, publicar o parágrafo inteiro para
expor o número mágico dos 6%.
3.3 Na hipótese de êxito na prestação de serviços de assessoria
relacionados à obtenção de empréstimos e/ou financiamentos
junto à instituições nacionais ou internacionais, públicas ou
privadas, a Contratada fará jus a 6% sobre o montante auferido
ao final da transação.
E aí fica-se sabendo que a taxa de sucesso nada tinha a ver com a ANAC,
com contratos com os Correios, com renovação de concessão. Mas apenas
no caso de obter financiamentos – que, pelas declarações do Baracat, nunca
foram obtidos.
Outra reportagem desnuda a primeira
Na edição de 22 de setembro de 2010, outra capa fantasiosa ajudou a
desnudar a história anterior.
Os autores eram o mesmo Diego Escosteguy e Otávio Cabral.
Voltava à cena Vinicius de Oliveira Castro, o advogado que era sócio de
Israel, mas, agora, no papel de testemunha involuntária da esbórnia que,
segundo a revista, tomou conta da Casa Civil.

Na reportagem anterior, para receber o tal Bacarat Erenice teria ordenado


que não entrasse de celular, caneta ou qualquer objeto que pudesse esconder
microfones ou gravadores.
Esse suposto cuidado era deixado de lado na versão seguinte. Segundo a
revista, Vinicius tomou um susto ao ver um envelope na sua mesa e, dentro,
200.000 reais em dinheiro vivo. Dentro da Casa Civil.
Segundo a Casa da Moeda, uma nota de 100 reais pesa 25 gramas. 200
mil reais equivalem a 2 mil notas de 100 reais, ou meio quilo de peso.
O jovem teria gritado, então, “Caraca! Que dinheiro é esse?”. E foi-lhe
explicado que era sua cota bancada pela Tamiflu, a vacina contra gripe suína
adquirida pelo Ministério da Saúde. Tudo de forma aberta, pública. E aí se
fica sabendo que o tio de Vinicius era Marco Antônio de Oliveira, diretor de
operações do Correio.
Juntando-se as duas reportagens, vai-se montando o puzzle.
Na condição de Diretor de Operações do Correio, caberia a Marco
Antônio indicar as empresas para a contratação de emergência.
Provavelmente seria o tal diretor que indicou a consultoria do próprio
sobrinho a Bacarat e que garantia a ele o salto extraordinário nas
contratações dos Correios.
A versão sobre o dinheiro que rolava era extraordinária:
“Foi um dinheiro para o Palácio. Lá tem muito negócio, é uma
coisa. Ofereceram-me 200 000 por causa do Tamiflu”. Vinícius
explicou ao tio que não precisou fazer nada para receber a PP.
“Era o ‘cala-boca’.” O assessor disse ainda ao tio que outros
três funcionários da Casa Civil receberam os tais pacotes com
200 000 reais; porém não declinou os nomes nem a identidade
de quem distribui a propina.
Não se ficou nisso. Logo após a publicação da reportagem “O Polvo no
Poder”, Bacarat soltou a tal nota oficial desmentindo a revista. Na nova
reportagem, procurava-se justificar o desmentido como fruto do temor
“Com medo de retaliações por parte do governo, o empresário
refugiou-se no interior de São Paulo. Ele aceitou voltar à
capital paulista na última quinta-feira, para mais uma
entrevista. Disse ele na semana passada: “Temo pela minha
vida. Vou passar um tempo fora do país”. O empresário aceitou
ser fotografado e corroborou, diante de um gravador, as
informações antes prestadas à revista.”
A tal gravação jamais foi apresentada.

Os segredos do lobista
Na edição de 29 de setembro de 2010, finalmente, Veja resolveu entregar
sua fonte, Marco Antônio Marques de Oliveira.

De autoria do mesmo Diego Escostegui e Rodrigo Rangel, a reportagem era


curiosa, muito menos pelo que informava, muito mais pelo que não dizia.
Marco Antônio admitiu ser tio de Vinicius Castro, ex-assessor da Casa
Civil, que acabou montando uma assessoria com Israel Guerra, filho de
Erenice Guerra, que substituiu Dilma Rousseff na Casa Civil.
Marco Antônio foi diretor da Infraero até 2007. Segundo a reportagem,
desde aquela época já carregava má fama. A reportagem não informa que
pouco antes, em 17 de junho de 2010, Marco Antônio foi demitido do cargo
nos Correios.
A revista diz que ele usava o nome de Dilma e de Erenice em suas
abordagens. Mas, salienta a reportagem, “frise-se também que ainda não se
sabe se o lobista Marco Antônio usava o nome de Dilma e Erenice com o
consentimento delas”.
Veja admitia que a informação não tinha sido confirmada. Mesmo assim,
na reportagem anterior, obrou o seguinte parágrafo:
“Por fim, o que pode ser mais escabroso do que um grupo de
funcionários públicos, ao que tudo indica com a participação de
um ministro da Casa Civil, cobrar pedágio em negócios do
governo? O mais assustador, convenha-se, é repartir o butim ali
mesmo, nas nobres dependências da cúpula do Poder Executivo,
perto do presidente da República e ao lado da então ministra e
hoje candidata petista Dilma Rousseff.”
Tudo isso em cima de informações não checadas, misturadas com
declarações desmentidas.
Ouvia também o Ministro da Saúde José Gomes Temporão que descartou
a possibilidade de qualquer trabalho de lobby, porque o Tamiflu era o único
medicamento disponível no mundo para o tratamento da gripe. Logo, não
haveria brechas para interessados em fazer lobby.
A reportagem encerrava de forma taxativa:
“Caberá ao lobista Marco Antônio esclarecer os limites do que
qualifica de “roubalheira”, seja da Casa Civil, a da família
Guerra - ou se há mais elos comuns entre elas”.
Ao transferir para o lobista a responsabilidade por esclarecer as acusações,
a revista tirava o corpo de uma sucessão de reportagens - a maior parte de
capa - que se constituíram em um dos pontos mais altos - ou mais baixos - da
manipulação política da imprensa brasileira.
.

O caso Quícoli

A reportagem não ficava nos desmentidos de Marco Antônio. Junto, outro


episódio que jamais seria confirmado, um dos casos mais esdrúxulos e
inverossímeis da escalada de reportagens falsas do período.
No dia 16 de setembro de 2010, no rastro das capas da Veja, a Folha
entra em cena com mais um factoide que não passava sequer no teste de
verossimilhança.
Reportagem de Rubens Valente, na Folha, jogava no palco de escândalos
Rubnei Quícoli.
A manchete era bombástica: “Fiquei horrorizado de ter de pagar”
comissão a filho de Erenice, diz empresário.
Na entrevista Quícoli – apresentado como consultor - contava ter sido
apresentado à empresa Capital, do filho de Erenice Guerra, por Marco
Antônio, ex-diretor dos Correios.
Pleiteava um financiamento de R$ 9 bilhões no BNDES (Banco Nacional
do Desenvolvimento Econômico e Social) para uma pequena empresa de
Campinas que fabricava equipamentos de energia eólica, a EDRB do Brasil
Ltda.
Para conseguir o financiamento, segundo Quícoli, a Capital teria pedido
um pagamento de R$ 40 mil mensais.
Não havia nenhuma verossimilhança no relato. Segundo Quícoli, a
empresa ambicionava um financiamento de R$ 9 bilhões. E os rapazes
pediam R$ 40 mil por mês para viabilizar uma mega-operação, acessível a
pouquíssimos supergrupos nacionais.
Em determinado momento, segundo Quícoli, teria aparecido Israel, filho
da Erenice, pedindo R$ 5 milhões para pagar dívida da “mulher de ferro”.
Quem teria solicitado o dinheiro era justamente Marco Antônio, o tio de
Vinícius.
Obviamente o financiamento não saiu. Não havia nenhuma possibilidade
do BNDES liberar R$ 9 bilhões em financiamento para uma pequena
empresa deCampinas especializada em energia eólica. Marco Antônio teria
dito a Quicoli que o financiamento não teria saído porque Israel bloqueou.
À medida que os fatos iam aparecendo, ficava claro o golpe de Marco
Antônio, junto com Quícoli, para vender terreno na Lua. O próprio repórter
Rubens Valente seguiu os princípios jornalísticos e lançou dúvidas sobre
Quícoli, mas a ênfase na narrativa da propina não diminuiu.
Segundo Aldo Wagner, sócio da EDRB do Brasil Ltda., o projeto foi
apresentado ao BNDES e não saiu por falta de garantias. Quícoli teria
apresentado um contrato de consultoria com o filho de Erenice para fazer
acompanhamento jurídico.
“Eu olhei os valores e disse “bom, para fazer acompanhamento jurídico
desse “troço a gente não concorda pagar isso”. Teria sido apenas um caso de
golpe malsucedido.
Segundo ele, Quícoli procurou-os e montou um contrato de parceria para
trazer investidores, Não conseguiu trazer nenhum.
De nada adiantou a ERB informar que Quícoli não estava autorizado a
falar em nome do projeto. E assegurar que as reuniões sobre o projeto
tiveram caráter eminentemente técnico.
O BNDES informou que o projeto não tinha sido aprovado por não ter
apresentado garantia e sequer local definido para o empreendimento.
Também de nada adiantou a informação levantada pelo Blog que o tal
“consultor” tinha acabado de sair da prisão, cumprindo uma pena de dois
anos por roubo de carga e receptação de dinheiro falso.
Com essa capivara, foram atribuídas a ele, sem nenhum questionamento
por parte da revista, acusações envolvendo a instituição da presidência da
República e da Casa Civil.
O falso escândalo ganhou gás na Veja, foi repercutido no Jornal Nacional
e em todos os veículos da velha média e foi a gota d’água para o pedido de
demissão de Erenice.
O assunto rendeu enquanto durou a campanha eleitoral.
.

A bolinha de papel

O auge da manipulação – agora de forma coletiva e orquestrada pela mídia –


foi o episódio da “bolinha de papel”, o tal objeto que teria atingido o
candidato José Serra durante sua campanha eleitoral.
O episódio da bolinha de papel juntou Globo, Veja, Folha e Estadão.

Assinado por Fábio Portella, constava na edição de 27 de outubro de 2010.


O subtítulo falava de “militantes ensandecidos” e que “na base ou no topo
o PT não conhece limites”.
A reportagem baseava-se no testemunho de Fernando Gabeira para
assegurar que Serra ficou “grogue” com o impacto do objeto.
A matéria dizia que Lula acusou Serra de protagonizar uma farsa e ter
sido desmentido “minutos depois”, por imagens gravadas e inequívocas.
O documentário “O Mercado de Notícias”, do cineasta gaúcho Jorge
Furtado entrelaça uma peça do século 17, que já abordava o papel da mídia,
com depoimentos de jornalistas.
A parte mais interessante do documentário é a reconstituição do episódio
da bolinha de papel.
Juntou várias cenas. Uma cena rápida da reportagem da TV Bandeirantes
mostra um braço negro, com uma camisa azul, atirando a bolinha de papel.
Ao lado, uma pessoa corpulenta com camisa cor de vinho. Não se veem seus
rostos.
Outras cenas gravadas mostram um sujeito negro de óculos escuros e
camisa azul, e outro branco, corpulento, de camisa vinho, no mesmo local,
pouco antes do arremesso da bolinha. Só que ambos não eram manifestantes,
mas seguranças do próprio Serra.
Esse conjunto de cenas faz parte de um vídeo de 2010 de autoria de
Sérgio Antiqueira, que gerou apenas 1.639 visualizações no Youtube e
acabou não recebendo os créditos devidos no documentário. Mas foi a
revelação definitiva, fechando o ciclo de uma das maiores tentativas de
fraude eleitoral da história política recente do país.
O primeiro passo foi a escolha do local, uma região francamente hostil da
cidade.
Em 1999, quando Ministro da Saúde, Serra mandou demitir 5.700 mata-
mosquitos da Funasa (Fundação Nacional da Saúde) no Rio - técnicos
incumbidos de combater os mosquitos da dengue.
Há indícios de que o fim dos mata-mosquitos visou liberar verbas para o
governo do Estado, já que a Funasa continuou repassando anualmente os R$
11 milhões referentes aos salários dos demitidos.
As consequências foram desastrosas, com a gripe da dengue se alastrando
por todo o estado. No ano seguinte, a epidemia se abateu sobre 45 mil
pacientes infectados, causando dezenas de mortes, mais da metade do total
de mortes por dengue no país.Foi o ano com mais registros de dengue da
história, a maior parte concentrada no Rio.
Serra acabou inimigo mortal da categoria.Em 2.000, eventos políticos dos
quais participava já tinham sido invadidos por mata-mosquitos .O mesmo se
repetiu em outubro de 2002.
O episódio da bolinha de papel ocorreu justamente na região oeste do
Rio, onde fica o Sindicato dos mata-mosquitos. Era óbvio que haveria
reação, tanto assim que Serra desembarcou cercado por um exército de
seguranças, provocando ostensivamente os manifestantes e criando o clima
adequado para as cenas seguintes.

As duas bolinhas
Em poucos minutos, explodem duas cenas.
A primeira, o da bolinha de papel que pipoca na cabeça de Serra e cai no
chão. Serra leva algum tempo para se dar conta do fato e aparentemente
perde a primeira oportunidade de montar o teatro.
A segunda oportunidade é mais à frente. Serra recebe um telefonema.
Pouco tempo depois leva a mão à cabeça. Caminha mais um pouco, sem
aparentar danos. Uns cinco segundos depois leva a mão à cabeça, caminha
em direção ao carro da comitiva. Ainda tem tempo para conversar um pouco
com alguns fãs.
Depois entra e segue para um hospital onde é atendido pelo cirurgião
médico de cabeça e pescoço Jacob Kligerman – que presidiu o INCA
(Instituto Nacional do Câncer) na gestão de Serra na saúde.
Na Justiça existem as provas declaratórias (que dependem apenas de
declarações de testemunhas) e as provas documentais (as que têm
efetivamente valor).
Klingerman declara à imprensa que Serra chegou ao consultório “com
náuseas e tonteira”. Quanto às provas documentais, nada havia. Informa que
não havia lesão aparente (externa), e a tomografia nada acusou. Pelo sim,
pelo não, recomendou 24 horas de repouso.
Naquela noite, o Jornal Nacional divulgou reportagem onde endossava a
versão da agressão com “objeto contundente”. A reportagem terminava com
um Serra interpretando o papel de uma pessoa fragilizada, deblaterando
contra a guerra política.
Naquela mesma noite, uma reportagem da SBT mostrava a cena da
bolinha de papel (mas sem os seguranças), o telefonema recebido por Serra
e, em seguida, ele levando a mão à cabeça, desmascarando o teatro.
O Jornal Nacional chegou a convocar o perito Ricardo Molina para
analisar um vídeo gravado por celular que provaria que houve um segundo
objeto lançado contra Serra, um rolo de fita crepe. Não se perguntou ao
perito se, mesmo supondo-se ter sido um rolo de fita crepe, qual seu poder
de contusão.
Pelas redes sociais, técnicos ligados a universidades rebateram as
análises de Molina, com vídeos colocados na Internet, mostrando que o
objeto identificado como fita crepe não passava de uma sombra de algum
manifestante, em um vídeo de baixíssima resolução.
No dia seguinte, o então presidente Lula comparou Serra ao goleiro
chileno Rojas – que simulou ter sido atingido por um rojão em um jogo no
Maracanã.
O resultado final foi a desmoralização do candidato por um partido alto
de Tantinho da Mangueira.
“Deixa de ser enganador
Pois bolinha de papel
Não fere e nem causa dor”
Foi o fecho de uma escalada inédita de manipulações
(https://goo.gl/D35HcF).
.

O linchamento de Gabriel Chalita


.

A história da Veja ficou pontuada por assassinatos de reputação frequentes,


tornando-se um vício atroz, não respondendo mais a estratégias políticas ou
eleitorais. Foi o caso de Gabriel Chalita, ex-Secretario de Educação de
Geraldo Alckmin, grande esperança de renovação do PSDB, alvo de um
assassinato de reputação perpetrado por José Serra.
No dia 23 de fevereiro de 2013 pipocou a primeira denúncia na Folha :
“Empresa pagava despesas de Chalita, diz ex-colaborador”.
Informava que o Ministério Público Estadual abrira onze inquéritos para
investigar o deputado Gabriel Chalita (PMDB-SP), por suspeita de
corrupção, enriquecimento ilícito e superfaturamento de contratos públicos”.
Todas as denúncias baseavam-se em apenas uma fonte, o analista de
sistemas Roberto Grobman, que se dizia assessor de Chalita. Segundo ele, o
grupo educacional COC pagou diversas despesas de Chalita, da reforma em
seu apartamento a viagens de aviões e helicópteros.
Grobman acusava Chalita de cobrar 25% de propina sobre o valor dos
contratos.
No primeiro governo Alckmin, Chalita despontara com a liderança mais
promissora do PSDB estadual. Quando José Serra assumiu, iniciou uma forte
desconstrução de sua imagem e Chalita acabou saindo do partido. Naquele
momento, havia fortes rumores de que seria nomeado para um Ministério do
governo Dilma Rousseff, habilitando-o a concorrer a um cargo no senado nas
eleições seguintes.
A denúncia abateu-o em pleno voo.
O promotor baseava-se exclusivamente em um dossiê entregue por
Grobman, com “indícios” de que o grupo COC havia financiado uma reforma
no apartamento de Chalita, no valor de R$ 600 mil.
O único indício de retribuição ao COC, apresentado por Grobman, era um
contrato de R$ 2,5 milhões supostamente firmado entre a Secretaria e o
COC. A disparidade entre o contrato e a suposta propina não chamaram a
atenção nem do promotor nem do jornal.
No dia 28 de fevereiro de 2013 o Estadão entrou no jogo, com a matéria
“Dossiê de delator de Gabriel Chalita tem fotos, e-mails e notas fiscais”.
No mesmo dia, a Agência Estado divulgou denúncia mais sólida que
desmontava a armação.
Ex-diretor de Tecnologia da Fundação para o Desenvolvimento da
Educação (FDE), Milton Leme declarou à Agência Estado ter sido
procurado por Grobman com uma proposta de suborno de R$ 500 mil para
avalizar suas denúncias.
Segundo Grobman, o emissário da proposta era o deputado Walter
Feldmann, um dos coordenadores da campanha do indefectível José Serra
para a prefeitura da cidade. Leme teria cortado a conversa ali.
No sábado, Veja entra no jogo com uma reportagem cruel.
Uma chamada de capa insinuava relações íntimas entre Chalita e
Grobman.

E o texto era fantasioso, no estilo dramaturgia de segunda classe:


A “taxa”, de 25%, era entregue diretamente a Chalita em seu apartamento
em Higienópolis.
Segundo Grobman, o ex-secretário chamava o dinheiro de “Vanderlei”.
“Quando tocava o interfone, ele gritava, eufórico: ‘Oba, chegou o
Vanderlei!’. Só mais tarde descobri que Vanderlei não era uma pessoa.
Como ele dizia que mandava a sua parte para uma conta bancária em
Luxemburgo, fazia graça com o nome do técnico de futebol”, diz.
Grobman contou ao MP que, por diversas vezes, viu Chalita distribuir o
dinheiro que recebia. “Ele derramava as notas no chão do closet. Arrancava
as tiras dos maços e jogava em cima dos assessores, imitando o Silvio
Santos: ‘Quem quer dinheiro?!!’.”
Grobman diz que Zaher lhe pagava um salário para que ele atuasse na
secretaria. “O Zaher queria ter uma pessoa dele lá dentro para que pudesse
vender os seus produtos.
Mas nem essa proximidade com o titular da pasta nem as supostas
vantagens que o COC teria ofertado a Chalita — entre elas o pagamento de
parte da reforma de um dos seus apartamentos, fato que Zaher nega —
resultaram em algum negócio para o grupo.
Na Internet, a reportagem de Veja foi publicada com tags onde constava
um “casamento entre homossexuais”. Internamente a foto de ambos,
insinuando relacionamento íntimo.

Chalita alegou que Grobman namorava uma secretária sua, que estava na foto
publicada.
Uma breve análise da foto mostrava que havia sido retocado.
1. A linha do horizonte, da parte direita da imagem, era irreal. Traçando
uma linha que mantem inclinação, é fato que a linha da parte direita foi
reconstruída. E quem o fez não teve o cuidado de manter o ângulo de
inclinação:

2. Uma mancha branca, no pé da foto lançou dúvidas. Ou não era um


objeto real existente no momento da fotografia, ou era uma mesa, prancha de
surf, que sofreu péssimas alterações em software de edição. A comprovação
está na característica extremamente pixelada da parte inferior, e também, no
blur da parte lateral direita. No geral, está bizarro essa parte da foto
publicada pela Veja.
3. A foto era de fácil edição, por possuir um fundo monocromático: o tom
azul claro do céu e azul escuro do mar, separados pela linha do horizonte.
4. Numa fotomontagem, a ferramenta “Blur tool” do Photoshop é
comumente usada para borrar partes especificas das bordas de um objeto,
pessoa ou fundo. Existem partes na foto com essa característica: na face do
homem a esquerda e na linha do horizonte na parte direita da foto.
Se existia uma pessoa ao lado esquerdo de Chalita, e se o braço esquerdo do
Chalita estivesse na frente dessa pessoa, ela poderia sim ter sido removida
da foto.
Na edição seguinte de Veja, duas cartas de leitores decepcionadas com as
supostas falcatruas de Chalita.
No dia 2 de março de 2013, o Conselho Superior do Ministério Público
suspendeu 9 dos 11 inquéritos contra Chalita. O promotor do caso, Nadir
Campos Júnior, declarou estar sofrendo pressões para encerrar as
investigações.
O linchamento prosseguiu no dia 14 de março de 2013, em reportagem do
Estadão intitulada “Promotor apura uso do diretor de fundação em obra
privada de Chalita”.
Nada havia de concreto: apenas a continuidade do depoimento de
Grobman. Desta vez afirmando que um engenheiro da Fundação para o
Desenvolvimento da Educação, foi deslocado por um ano para acompanhar
as obras no apartamento de Chalita.
No dia 13 de agosto de 2013, é noticiado que o Procurador Geral da
República Roberto Gurgel pediu ao STF abertura de inquérito para
investigar Chalita. Prestativo para qualquer denúncia da mídia, desde 2009
Gurgel guardava em sua gaveta inquérito contra Aécio Neves por
manutenção de conta na Suiça.
No dia 26 de novembro de 2013 o quadro começa a mudar. O procurador
Nadir de Campos Júnior foi denunciado criminalmente por falsificação de
documento particular e uso de documento falso, visando fraudar as eleições
para a presidência da Associação Paulista do Ministério Público.
No dia 17 de setembro de 2014, acolhendo parecer do Procurador Geral
da República Rodrigo Janot, o Ministro Teori Zavaski ordena o
arquivamento da denúncia. Entre outros motivos porque o delator Grobman
nunca foi localizado para depor, nem apresentou nenhuma prova das
acusações.

Mas a carreira de Chalita estava liquidada para as eleições de 2014. Veja


nunca mais voltou a mencionar Chalita, menos ainda para noticiar sua
absolvição24.
Na mesma edição em que cometeu as infâmias contra Chalita, Veja
dedicou duas páginas a um blogueiro que utilizava as redes sociais para
atacar adversários do PT.
O título da matéria era “Difamar é o negócio”.

24 https://goo.gl/AijHjX
.

O caso Ivo Cassol


.

Quem é Ivo Cassol, ex- governador de Rondônia?


Em 2004 foi acusado de comandar um esquema de extração clandestina
de diamantes e contrabando de ouro na reserva indígena Roosevelt, dos
Cintas-Largas.
Em 2005 foi julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), acusado de
ter cometido irregularidades quando prefeito de Rolim de Moura.
Em 2007, o Procurador-Geral da República, Antônio Fernando de Souza,
denunciou-o ao STF (Supremo Tribunal Federal) por compra de votos,
formação de quadrilha e coação de testemunhas.
No dia 13 de abril de 2008, reportagem do Fantástico sobre a Operação
Titanic, da Polícia Federal, comprometia Cassol até a medula.
“Exclusivo. Você vai conhecer os bastidores da Operação
Titanic. A ação da Polícia Federal acompanhou os passos de
uma quadrilha que envolveu até um governador de estado no
golpe dos carrões importados.
Dentro de um galpão estão dezenas de milhões de reais em
forma de carros e motos importados. São supermáquinas que
chegam a valer R$ 2 milhões no Brasil. Super máquinas
subfaturadas.
“30% a 40% menores aos preços de mercado”, diz a
procuradora da República (ES) Nádja Machado Botelho.
A Justiça investiga a participação de um governador e do filho e
do sobrinho dele na obtenção de facilidades para o esquema.
Nos vídeos e fotografias da investigação a que o Fantástico teve
acesso, você vai saber como a Polícia Federal seguiu o filho do
governador de Rondônia, Ivo Cassol, durante a chamada
Operação Titanic, para desmascarar a quadrilha da sonegação
(...).
Adriano se tornou conhecido nacionalmente em 2006, ao ser
flagrado agredindo uma mulher depois de uma batida de
trânsito. No mesmo ano, a Polícia Federal apreendeu seis
carros de luxo que ele havia importado. Uma lancha que ele
comprou do megatraficante colombiano Juan Carlos Abadía,
capturado em 2007, também foi apreendida”.
Este é Ivo Cassol.

A reportagem armada
No dia 23 de abril de 2008 Cassol já era conhecido nacionalmente, através
de reportagem-denúncia de um dos programas de maior audiência da
televisão, o Fantástico, divulgado apenas dez dias antes, quando começou
seu jogo com a Veja.

A revista denunciava um suposto sequestro falso de um procurador da


República e um funcionário da ONU pelos índios cintas-largas. Segundo a
revista, o sequestro teria sido simulado para dar evidência aos personagens.
“Os cintas-largas, de Rondônia, estão entre as etnias indígenas
mais hostis do Brasil. Em 2004, eles massacraram 29
garimpeiros a tiros, flechadas e pauladas. Com esse histórico,
não tiveram dificuldade em ganhar as páginas dos jornais do
mundo inteiro, em dezembro do ano passado, quando
anunciaram o sequestro de um membro do Alto Comissariado de
Direitos Humanos da ONU, um procurador da República e
outras três pessoas”.
As provas apresentadas pela revista eram um vídeo (de dois anos antes, que
nada tinha a ver com os cintas-largas), fotos do representante da ONU
tomando banho de rio e do procurador falando ao celular.
“Numa das cenas, que ilustra esta página, vê-se o funcionário
da ONU, o espanhol David Martín Castro, muito satisfeito,
tomando banho de rio com seus supostos carcereiros. No dia em
que deixou a reserva, Martín Castro fez um discurso
emocionado em homenagem a seus anfitriões. “Agradeço pelas
‘picanha’ e pela festa”, disse. As “picanha” às quais ele se
referiu vieram de bois abatidos – um por dia – pelos índios para
comemorar sua “visita” à aldeia. Depois do discurso, ao som de
palmas e brados de felicitação, os cintas-largas presentearam o
espanhol com um colar. O procurador Reginaldo Trindade
recebeu tratamento semelhante.
O texto continha cacos primários, toscos, típicos da então fase da revista,
como esta pérola:
“Em janeiro, Márcio Meira, presidente da fundação, nomeou
para o cargo o cacique Nacoça Cinta-Larga, um dos indiciados
pelos assassinatos dos garimpeiros. Como se vê, esse Nacoça só
não é paçoca porque as autoridades da região pouco fazem para
impor o respeito às leis”.
Em nenhum momento se mencionava o nome do governador Ivo Cassol. E a
versão do procurador foi desconsiderada.
Ele afirmava ter ido à aldeia, acompanhado do representante da ONU,
para convencer os cintas-largas a abandonarem a extração ilegal de madeira
e de diamantes. Levava a proposta do governo, de alternativas à exploração
irregular.
Houve uma discussão com os índios. A liderança principal defendia o fim
imediato da extração e negociação com governo. Outro grupo defendia que
devia continuar até ter garantia maior de que o governo iria cumprir a sua
parte. Concluiu-se que só poderiam aceitar na presença do presidente da
Funai. A posição dos índios foi então de que ninguém sairia dali até o
presidente da Funai chegar.
Não foi um sequestro, no sentido clássico, mas uma restrição de
liberdade, para poder resolver de vez a questão. Nem o representante da
ONU foi proibido de tomar banho de rio, nem o procurador de falar ao
telefone.

Montando o dossiê
Saber quem é esse procurador, e seus embates com Cassol, ajudará a
entender a montagem.
Antes do esquema ser desbaratado pela Operação Titanic, da Polícia
Federal, a única força a enfrentar Cassol e seu grupo político era o
procurador Reginaldo Pereira de Trindade. Especialmente em questões
envolvendo a área indígena.
Há anos Cassol buscava desmoralizá-lo, em uma típica tática de
assassinato de reputação, visando enfraquecer os inquéritos contra ele.
A matéria da Veja foi inteiramente baseada em documentos e vídeos
levantados por uma jornalista (na verdade, uma cabeleireira), de nome
Ivonete Gomes, de um site chamado “Rondoniagora”,
Quando estourou a Operação Titanic, a Polícia Federal de Rondônia abriu
um inquérito, no qual a farsa montada veio à tona. Ouvido, um comerciante
de pedras contou como Ivonete preparou o dossiê contra o procurador
Trindade.
Para fabricar o dossiê, Cassol se valeu das verbas publicitárias do
Estado para financiar um “documentário” sobre a extração ilegal de
diamantes na reserva Cinta Larga e colocou oficiais da PM e funcionários
cooptados da Funai para buscar informações que pudessem ser usadas contra
o procurador Trindade. Na investigação aberta pela PF, constatou-se que
Ivonete Gomes, a jornalista-cabeleireira, forçava as pessoas a falarem mal
do procurador.
Montado o dossiê, foi encaminhado à revista Veja, juntamente com fitas
de vídeo, que não corroboravam a tese da revista sobre o “seqüestro fajuto”.
O caminho para conquistar a cumplicidade da Veja foi fácil. Bastou
insinuar que o procurador era ligado ao PT e Cassol um agente da
modernidade contra o atraso representado pelos índios cintas-largas.
O resto ficou por conta da parcialidade da revista.
Trindade foi contatado na sexta de manhã, com o prazo para apresentar
sua defesa até o meio dia. No prazo concedido, conseguiu enviar 17 laudas
de explicações para a Veja. Não saiu uma linha, nem na seção de cartas.
No dia seguinte, e por vários dias depois, o site Rondoniagora replicou a
notícia de Veja para instigar a população contra o procurador. Cassol usou o
quanto pôde a matéria.

Armação desmontada
No dia 25 de junho, a revista CartaCapital publicou reportagem de Leandro
Fortes, enviado especial a Rondônia. Leandro tinha ido com a incumbência
de levantar o submundo político montado por Cassol. Acabou identificando
a farsa do dossiê:
“Instalada em uma lojinha de subsolo na zona rural do
município de Espigão D’Oeste, em Rondônia, onde negocia a
compra e venda de diamantes, Edvaneide Vieira de Oliveira, de
35 anos, foi convocada pela Polícia Federal, há pouco mais de
um mês, para depor.
No depoimento à PF, Edvaneide disse ter sido procurada pelas
repórteres Ivonete Gomes e Marley Trifílio, ambas do
Rondoniagora, noticiário francamente favorável ao governador
Ivo Cassol (sem partido), em dezembro de 2007, para uma
“videorreportagem”. Segundo a comerciante, as duas, no
entanto, se apresentaram como repórteres do jornal O Estado de
S. Paulo e pediram a ela para falar sobre um sequestro sofrido
pelo procurador Reginaldo Trindade no fim de 2007, pelos
índios cinta-larga, juntamente com um representante das Nações
Unidas, o espanhol David Martín Castro. (...)
No depoimento tomado pelo delegado federal Rodrigo
Carvalho, Edvaneide de Oliveira afirmou que Ivonete Gomes
(“meio gordinha, cabelo com reflexos loiros, comprido”), e
Marley (“gordinha, cabelo com reflexos, mais curto”) queriam
que ela “inventasse uma história para comprometer algum
político, empresário ou autoridade conhecida” e, também,
acusasse o procurador Trindade de estar “fazendo lobby para
alguma pessoa forte”. Segundo a comerciante, Ivonete revelou
ter ido lá “só para isso”. Mais adiante, relatou Edvaneide, a
repórter teria apresentado uma lista de nomes para ligar o
suposto lobby de Trindade a “alguém muito forte”, mas ela não
concordou em referendar nenhum dos nomes. A comerciante
acusa as jornalistas, ainda, de terem oferecido dinheiro em
troca de um depoimento contra o procurador”.
A matéria saiu no domingo. Na quinta-feira, portanto em apenas quatro dias,
o governador Ivo Cassol já enviava uma denúncia para o Conselho Nacional
do Ministério Público, baseada na reportagem da Veja.
A denúncia encaminhada por Cassol ao CNMP continha todos os
elementos mencionados pela revista, mais alguns adicionais. De seu lado,
por mais que tentasse, o procurador Trindade não conseguiu que a revista lhe
enviasse o material, nem mesmo após a publicação da matéria, sob a
alegação de “sigilo de fonte”.
Na mesma quinta-feira, coincidentemente, reuniu-se em Porto Velho a
Subcomissão do Senado para Apurar a Crise Ambiental da Amazônia. O
relator era o senador Expedito Junior – que, logo depois, seria envolvido
com Cassol na denúncia formulada pelo procurador geral da República. Na
reunião, Cassol exigiu em altos brados punição para Trindade, com base nas
denúncias publicadas pela revista. Segundo ele, Trindade estaria
estimulando a exploração de madeiras pelos índios.
Na fronteira da civilização, em pleno faroeste brasileiro, um homem da
lei, um procurador da República, correndo riscos de vida e de reputação,
buscando cumprir sua missão, de impor as leis da Federação sobre a
selvageria de quadrilhas. E foi alvejado pela revista Veja. Sua reputação foi
manchada em todo o país, foi-lhe suprimido o direito de defesa durante a
matéria e após. A revista não publicou uma retificação sequer.
Em maio, após uma manifestação de todo MP de Rondônia, Cassol cessou
a campanha contra Trindade.
Mas uma conta ficou em aberto: os ataques de Veja. Até hoje não se
publicou nenhuma retificação, nenhuma carta contestando os ataques.

A defesa do procurador
No dia 4 de julho de 2008, o Procurador Reginaldo Trindade apresentou sua
defesa ao Conselho Nacional do Ministério Público.
São 109 páginas. O item 9 aborda o “comportamento não condizente do
repórter responsável pela matéria na revista Veja, José Edward”.
A relação de manipulações é ampla.
Fato 1 - O repórter entrou em contato com o procurador, informando-o do
teor da matéria e querendo ouvir sua versão. O procurador solicitou que as
perguntas fossem feitas por escrito, para evitar distorção em suas palavras.
Vieram as perguntas.
Seguiram as respostas, em várias páginas. Nenhuma resposta, nenhuma
ponderação foi incluída na matéria. Na manhã de sexta-feira, 18 de abril, o
repórter entrou em contato com o procurador de novo. Mas provavelmente a
edição da revista já tinha fechado.
Fato 2 - O repórter ligou para o motorista Mauro Bueno Gonçalves, para
tentar levantar se houve encenação na detenção do procurador e do
representante da ONU.
O relatório traz trechos do depoimento do motorista no inquérito aberto:
“E passado já alguns meis (sic) no dia 18/04/08 fui procurado
pelo um reporte da VEJA por nome de José que perguntou como
foi que aconteceu falei como foi ele perguntou sobre Reginaldo
e o David como eles ficarão. Dise o que presenciei e o que
vi.Das pergunta que o reporte fez a mim nada foi dito pela VEJA
o que esta no site. São palavra diferente.” (fls. 35 dos autos;
sic).”
A chave do carro tinha sido tomada à força do motorista pelos índios. A
reportagem ignorou a informação. O motorista informou de golpes violentos
desferidos pelos índios na mesa e nos livros do procurador. A informação
não foi considerada.
O motorista prestou depoimento à Polícia Federal, voltando a reiterar o
comportamento do repórter:
“QUE sim, foi procurado via telefone por um repórter da revista
Veja, o qual se apresentou como José e lhe fez algumas
perguntas, as quais indagavam acerca de um ‘falso seqüestro’
cometido pelos indígenas contra o Procurador da República e
um Representante da ONU, sendo que o declarante respondeu
ao jornalista que o seqüestro realmente ocorreu, nada foi fajuto,
não havendo indícios de que tudo tenha sido tramado; QUE o
jornalista continuou a fazer perguntas sobre o seqüestro,
indagando acerca da alimentação dos mesmos durante o tempo
em que permaneceram na aldeia, além de outras perguntas
pertinentes, sendo que lhe foi respondido da mesma forma em
que está respondendo aos quesitos deste termo de declarações;
QUE após, publicada uma matéria pela revista Veja,
distorcendo as respostas que o declarante teria dado ao referido
jornalista.” (fls. 36/37 da 1ª parte de documentos que instrui a
presente).
Fato 3 - O repórter chegou a procurar o próprio Almir Suruí, chefe indígena,
encaminhando perguntas por e-mail. Almir negou firmemente ter havido
simulação do sequestro. Mas sua resposta também não foi levada em
consideração.
Fato 4 - Também foi consultada Ivaneide Bandeira Cardozo, a “Neidinha”,
da ONG indígena Kanindé. Seu depoimento foi desconsiderado. Ela enviou
carta ao procurador:
“Fui entrevistada pelo repórter José Edward da Revista Veja
(MG), no dia 10 de abril, que fez a mesma pergunta, e respondi
que não era verdade, que havia invasão de madeireiros por
conivência da FUNAI e alguns índios.” (fls. 74 da 1ª parte dos
documentos ora apresentados)”.
Ivaneide enviou um segundo e-mail ao procurador, manifestando sua
impressão de que o repórter fosse ligado ao governador Ivo Cassol.
A percepção geral em Rondônia foi dessa cumplicidade, devido à
coincidência de apenas quatro dias após a publicação da reportagem, o
governador de Rondônia formulou representação à Subcomissão do Senado
para Acompanhar a Crise Ambiental na Amazônia “calcada na reportagem,
mas lastreada em diversos documentos e vídeos “não exibidos pelo site da
revista”.
Mesmo com todos esses indícios de crime jornalístico, tendo um dos seus
como vítima, ninguém do Ministério Público Federal ousou uma
representação sequer contra a revista (https://goo.gl/qJmJm2).
.

A Lava Jato

No dia 14 de outubro de 2015, quando a Lava Jato ainda estava no início,


publiquei o artigo abaixo mostrando a sua lógica.
Como a Lava Jato foi pensada como uma operação de guerra o juiz Sérgio
Moro estudou o episódio das Mãos Limpas, na Itália, e aliou-se à mídia

Considerações sobre a Operação Mãos Limpas


O vazamento torrencial de depoimentos, a marcação cerrada sobre Lula, o
pacto incondicional com os grupos de mídia, a prisão de suspeitos até que
aceitassem a delação premiada, essas e demais práticas adotadas pela
Operação Lava Jato estavam previstas em artigo de 2004 do juiz Sérgio
Moro, analisando o sucesso da Operação Mãos Limpas (ou mani pulite) na
Itália.
O paper “Considerações sobre a operação Mani Pulite”, de autoria de
Moro é o melhor preâmbulo até agora escrito para a Operação Lava Jato. E
serviu de base para a estratégia montada.
Em sete páginas, Moro analisa a operação Mãos Limpas na Itália e, a
partir dai, escreve um verdadeiro manual de como montar operação similar
no Brasil, valendo-se da experiência acumulada pelos juízes italianos.

As metas perseguidas
Na abertura, entusiasma-se com os números grandiosos da Mãos Limpas:
“Dois anos após, 2.993 mandados de prisão haviam sido expedidos; 6.059
pessoas estavam sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978
administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido
primeiros-ministros”.
Admite os efeitos colaterais, dez suicídios de suspeitos, vários
assassinatos de reputação cometidos na pressa em divulgar as informações e,
principalmente, a ascensão de Silvio Berlusconi ao poder.
Mas mostra as vantagens, no súbito barateamento das obras públicas
italianas depois da Operação. Principalmente, chama sua atenção as
possibilidades e limites da ação judiciária frente à corrupção nas
democracias contemporâneas.
A lógica política da Mãos Limpas.
A lição extraída por Moro é que existe um sistema de poder a ser
combatido, que é a política tradicional, com todos seus vícios e influências
sobre o sistema judicial, especialmente sobre os tribunais superiores.
O sistema impede a punição dos políticos e dos agentes públicos
corruptos, devido aos obstáculos políticos e “à carga de prova exigida para
alcançar a condenação em processo criminal”.
O caminho então é o que ele chama de democracia – que ele entende
como uma espécie de linha direta com a “opinião pública esclarecida”, ou
seja, a opinião difundida pelos grandes veículos de imprensa, dando um by-
pass nos sistemas formais.
“É a opinião pública esclarecida que pode, pelos meios institucionais
próprios, atacar as causas estruturais da corrupção. Ademais, a punição
judicial de agentes públicos corruptos é sempre difícil (...). Nessa
perspectiva, a opinião pública pode constituir um salutar substitutivo, tendo
condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos
corruptos, condenando-os ao ostracismo”.
O jogo consiste, então, em trazer a disputa judicial para o campo da
mídia.

Análise de situação
Em sua opinião, os fatores que tornaram possível a Operação, alguns deles
presentes no Brasil.
1. Uma conjuntura econômica difícil, aliada aos custos crescentes com a
corrupção.
2. A abertura da economia italiana, com a integração europeia, que abriu
o mercado a empresas estrangeiras.
3. A perda de legitimidade da classe política com o início das prisões e a
divulgação dos casos de corrupção. Antes disso, a queda do “socialismo
real”, “que levou à deslegitimação de um sistema político corrupto, fundado
na oposição entre regimes democráticos e comunistas”.
4. A maior legitimação da magistratura graças a um tipo diferente de juiz
que entrou nas décadas de 70 e 80, os “juízes de ataque”, nascido dos ciclos
de protesto.

Usando e sendo usado


Um dos pontos centrais da estratégia, segundo Moro, consiste em tirar a
legitimidade e a autoridade dos chefes políticos – no caso da “Mãos
Limpas”, Arnaldo Forlani e Bettino Craxi, líderes do DC e do PSI – e dos
centros de poder, “cortando sua capacidade de punir aqueles que quebravam
o pacto do silêncio”. Segundo Moro, o processo de deslegitimação foi
essencial para a própria continuidade da operação mani pulite”
A arma para tal é o uso da mídia, através da ampla publicidade das
ações. Segundo Moro, na Itália teve “o efeito salutar de alertar os
investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas
mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais
importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais,
impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos
magistrados”.
Moro admite que a divulgação indiscriminada de fatos traz o risco de
“lesão indevida à honra do investigado ou acusado”. Mas é apenas um dano
colateral menor.
Recomenda cuidado na divulgação dos fatos, mas “não a proibição
abstrata de divulgação, pois a publicidade tem objetivos legítimos e que não
podem ser alcançados por outros meios”.
Segundo Moro, “para o desgosto dos líderes do PSI, que, por certo, nunca
pararam de manipular a imprensa, a investigação da “mani pulite” vazava
como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão
eram veiculados no “L’Expresso”, no “La Republica” e outros jornais e
revistas simpatizantes”.
Para ele, apesar da Mãos Limpas não sugerir aos procuradores que
deliberadamente alimentassem a imprensa, “os vazamentos serviram a um
propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do
público elevado e os líderes partidários na defensiva. Craxi, especialmente,
não estava acostumado a ficar na posição humilhante de ter constantemente
de responder às acusações e de ter sua agenda política definida por outros”.

A delação premiada
Segundo Moro, a estratégia consiste em manter o suspeito na prisão,
espalhar a suspeita de que outros já confessaram e “levantar a perspectiva
de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva
no caso da manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no
caso de uma confissão (uma situação análoga do arquétipo do famoso
“dilema do prisioneiro”)”.
Ou seja, a prisão – e a perspectiva de liberdade – é peça central para
induzir os prisioneiros à delação. Mas há que se revestir a estratégia de
todos os requisitos legais, para “tentar-se obter do investigado ou do
acusado uma confissão ou delação premiada, evidentemente sem a utilização
de qualquer método interrogatório repudiado pelo Direito. O próprio
isolamento do investigado faz-se apenas na medida em que permitido pela
lei”.
Moro deixa claro que o isolamento na prisão “era necessário para
prevenir que suspeitos soubessem da confissão de outros: dessa forma,
acordos da espécie “eu não vou falar se você também não”, não eram mais
uma possibilidade.

O caso Lava Jato


Assim como nas Mãos Limpas, a Lava Jato procura definir a montagem de
um novo centro de poder.
Em sua opinião, o inimigo a ser combatido é o sistema político
tradicional, composto por partidos que estão no poder, o esquema
empresarial que os suporta e o sistema jurídico convencional, suscetível de
pressões.
O novo poder será decorrente da parceria entre jovens juízes,
procuradores, delegados – ou seja, eles próprios - com o que Moro define
como “opinião pública esclarecida” – que vem a ser os grupos tradicionais
de mídia.
Nesse jogo, assim como no xadrez, a figura a ser tombada é a do Rei
adversário. Enquanto o Rei estiver de pé será difícil romper a coesão do seu
grupo, os laços de lealdade, ampliando as delações premiadas.

Fica claro, para o Grupo de Trabalho da Lava Jato, que o Bettino Craxi a se
mirar, o Rei a ser derrubado, era o ex-presidente Lula. O vazamento
sistemático de informações, sem nenhum filtro, é peça central dessa
estratégia.
Para a operação de guerra da Lava Jato funcionar, sem nenhum deslize
legal – que possa servir de pretexto para sua anulação - há a necessidade da
adesão total do grupo de trabalho e dos aliados da mídia às teses de Moro.
A homogeneidade do GT só foi possível graças à atuação do Procurador
Geral da República Rodrigo Janot, que selecionou um a um os procuradores
da força tarefa; e da liberdade conferida à Polícia Federal do Paraná para
constituir seu grupo. O fato de procuradores paranaenses e delegados já
orbitarem em torno do ex-senador Flávio Arns certamente favoreceu a
homogeneização. E, obviamente, a ausência de José Eduardo Cardozo no
Ministério da Justiça.
Para ganhar a adesão dos grupos de mídia, o pacto tácito incluiu a
blindagem dos políticos aliados. Explica-se por aí a decisão de Janot de
isentar Aécio Neves das denúncias do doleiro Alberto Youssef, sem que
houvesse reclamações do Grupo de Trabalho.
A falta de cuidados com o desmonte da cadeia do petróleo também se
explica por aí. Na opinião de Moro e da Lava Jato a corrupção nas obras
públicas decorre de uma economia fechada, preocupada em privilegiar as
empresas nacionais. É o que está por trás das constantes tentativas de
avançar sobre o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e
Social) – o similar italiano do BNDES foi um dos alvos preferenciais da
Mãos Limpas.
No fundo, o arcabouço institucional brasileiro está sendo redesenhado
por um autêntico Tratado de Yalta, em torno do novo poder que se apresenta:
juízes, procuradores da República e delegados federais associados aos
grupos de mídia.
A grande contribuição à força Lava Jato foi certamente a enorme extensão
da corrupção desvendada, sem paralelo na história recente do país e sem a
sutileza dos movimentos de privatização e dos mercados de juros e câmbio.
A única coisa que Moro não entendeu – ou talvez tenha entendido – é que
a ascensão de Silvio Berlusconi não foi um acidente de percurso. Foi o rei
posto – a mídia nada virtuosa – sobre os escombros do rei morto – um
sistema político corrupto.
A ideia de que a mídia é um território neutro, onde se disputam espaços e
ideias é pensamento muito ingênuo para estrategistas tão refinados.

A Lava Jato e o assassinato de reputações


Valter Cardeal tem 45 anos de setor elétrico, 30 como diretor, os últimos 13
como executivo do governo federal. Trouxe na biografia a participação no
governo Alceu Collares, quando Dilma Rousseff era Secretária de Energia.
Essa ligação custou-lhe 13 anos de marcação cerrada, na qual levantaram
apenas dois episódios contra ele. Mas deu-lhe o mérito de desenvolver um
dos mais importantes programas sociais da era Lula, o programa Luz Para
Todos.
O primeiro episódio, de um suposto envolvimento em escândalos na
Eletrobras em 2010. A Polícia Federal captou uma escuta que, fora a
linguagem coloquial, não tinha um indício sequer de atos irregulares. O caso
acabou arquivado pelo Ministério Público Federal depois que o próprio
TCU constatou a lisura do processo.

Outro caso foi de um diretor da Eletrobras que respondia a uma ação de


improbidade. O problema não foi detectado nem pela ABIN (Agência
Brasileira de Inteligência) e nem pela Polícia Federal. A ficha vinda da
Justiça omitia a informação. Pelo fato de sua assinatura estar no processo de
contratação, o Ministério Público Federal abriu uma ação contra Cardeal. O
sujeito alvo da ação de improbidade nada sofreu. Cardeal responde à ação
até hoje.

As contratações no setor elétrico


Cardeal não trabalhava em Angra 3, não integrava sequer o conselho da
Eletronuclear. Em princípio nada tinha a ver com as obras de Angra 3. Na
condição de diretor de geração da Eletrobras, tem a responsabilidade de
acompanhar indiretamente o avanço financeiro e físico com a obra, já que a
Eletronuclear é uma subsidiária.
O modelo de contratação do setor elétrico é totalmente diferente. daquele
que vigorava na Petrobras.
Fernando Henrique Cardoso tirou as amarras da Petrobras da Lei das
Licitações, mas a empresa não desenvolveu normas de compliance para
monitorar os processos decisórios. Diretores tinham autonomia para
contratar até R$ 2 bilhões. Um diretor podia convocar as empresas, acertar o
preço e contratar.
Na Eletrobras as contratações são submetidas à Lei 8666.
Na hora de licitar uma usina, a Eletrobras procede ao estudo de
licenciamento ambiental, componente indígenas, questão social, o EVTE
(Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica). Analisa o CAPEX (o total de
investimentos) e o OPEX (o total a ser gasto na operação) para chegar ao
preço da energia.
Esses estudos são apresentados à EPE (Empresa de Planejamento
Energético) que analisa e faz ajustes pontuais. Ai vai para o TCU (Tribunal
de Contas da União) que ajuda a estabelecer o preço final.
Terminado o processo, abre-se a licitação e a Eletrobras disputa o leilão
de energia com outras empresas. Vencendo pelo critério do menor preço, o
contrato é homologado pela ANEEL ou pelo poder concedente. E aí começa
a correr o prazo.
A energia tem que ser entregue na data acertada em contrato. Tem que se
calcular o período de construção, o da licença prévia, mais um período de
licença de instalação de operação e, então, o início da geração comercial.
Para entrar na licitação, a Eletrobras precisa assinar um pré-contrato com a
empreiteira, para poder dar o lance final.
Há um embate permanente entre contratantes e contratados.
Se não entregar a energia no prazo combinado, a empresa terá que a
adquirir no mercado à vista, a preços exorbitantes desde que a seca produziu
desequilíbrios hidrológicos relevantes.
Sabendo disso, os empreiteiros fazem um jogo permanente. Mal começa a
obra apelam aos chamados “claims” (cálculos de perdas em desvios
contratuais). Contratam empresas especialistas para calcular perdas. Se uma
fatura é atrasada por mais de 90 dias, têm direito de parar a obra. Se o
contrato é por PU (Preço Unitário), aumentam a quantidade de unidades. Se
Preço Global, sempre tratarão de identificar riscos geológicos maiores que
os previstos. Começa um trabalho de procrastinar enquanto o calendário vai
correndo.

As rixas com Ricardo Pessoa


Foi nesses embates que Cardeal conquistou um inimigo, Ricardo Pessoa, da
UTC, apontado como coordenador informal do cartel de empreiteiras. Atéo
governo FHC o cartel envolvia 13 empresas. Com a explosão de obras no
governo Lula, passou a contar com 26.
Os trabalhos de Angra 3 são complexos. É uma usina antiga, totalmente
analógica e teria que se terminar a construção com sistemas digitais
modernos. Para tanto, teriam que contratar montagem eletromecânica.
O contrato estava andando quando, de repente, os preços originais de R$
2,9 bilhões foram reajustados para R$ 3,3 bilhões.
Cardeal já tinha mais de 30 usinas nas costas e percebeu que o valor ficou
alto demais. Com 1.450 MW, Belo Monte é maior que Itaipu e, para ela, a
montagem foi contratada por R$ 1,2 bilhão.
A própria UTC integrava o consórcio contratado para Belo Monte e caiu
fora porque não aceitou baixar o preço. Quando saiu do consórcio, foi
admitida outra empresa e fechado o valor final de R$ 1,2 bilhão.
Logo em seguida a UTC apareceu em Angra 3 integrando um consórcio
com a Camargo Correia e a Odebrechet. O preço já tinha sido adjudicado
para o vencedor e publicado no Diário Oficial de forma relâmpago, com a
aprovação da comissão de licitação.
Na hora de assinar o contrato, Cardeal recusou julgando o valor
excessivo. O presidente da Eletronuclear, Almirante Othon Luiz Pinheiro da
Silva temeu pelo atraso e alegou que nada poderiam fazer já que o
orçamento havia sido aprovado no TCU e publicado no Diário Oficial.
Cardeal insistiu, estudou os contratos e descobriu uma cláusula que
permitia uma redução de até 6% no valor da obra – que representava R$ 200
milhões – em caso de gestão compartilhada dos consórcios.
Pessoa alegou que a cláusula era opcional. Cardeal rebateu que poderia
ser opcional para as empreiteiras, não para a Eletrobras. E solicitou que
abrissem todos os custos.Vieram com os custos abertos e a proposta de
redução de 3,94%. Cardeal bateu o pé nos 6% e venceu. Tentou ampliar
mais, mas o contrato não permitia.

A vingança de Pessoa
Aí entra a Lava Jato.
Após a visita aos Estados Unidos, a força tarefa da Lava Jato decidir
focar o setor elétrico. Pessoa foi pressionado a ampliar a delação para além
da Petrobrás. E viu a oportunidade de enredar Cardeal em sua delação.
Antes de confirmar qualquer dado, a Lava Jato liberou as declarações de
Pessoa criminalizando Cardeal para a revista Veja, mesmo estando
protegidas por sigilo.
A versão era de um amplo non sense.

Segundo a matéria fornecida a Veja, a Eletrobras teria pedido um desconto


de 10% no valor cobrado pelo consórcio. Este teria aceitado um abatimento
de 6%. Segundo o jornalismo de baixo nível da revista, “a diferença não
resultou em economia para os cofres públicos” porque a diferença deveria
ser doada para o PT.
Era óbvia a falta de nexo da matéria – e dos procuradores que passaram
as informações.
Primeiro, o ineditismo de baixar o preço para cobrar propina. Mesmo que
a tese fosse correta, não poderia ignorar que houve a redução de 6% na
conta da Eletronuclear.
Além disso, pelas contas da Lava Jato, houve a transferência de R$ 7,5
milhões para a campanha do PT pela UTC. Ora, 4% do contrato
equivaleriam a R$ 133 milhões. Como explicar essa desproporção entre a
suposta delação de Pessoa e os valores apurados?
Se a força tarefa da Lava Jato se dispusesse a analisar documentos, antes
de repassar a denúncia para revista Veja, poderia consultara Carta
Eletronuclear à Eletrobras de 7 de abril de 2014.
Na carta informa-se de uma reunião de 25.02.2014 conduzida pelo
Diretor de Operações da Eletrobras (Valter Cardeal) na qual os consórcios
apresentaram proposta conjunta de desconto de 3,94%. “Declaram,
entretanto, concordar em elevar esse desconto para 6%, valor previsto no
Edital para a situação de acordo operacional entre os consórcios
vencedores”.
Cardeal tentou ampliar o desconto, mas não conseguiu.
A ata é conclusiva:
“A Eletrobras Eletronuclear entende como louvável qualquer
esforço na direção de conseguir menores preços para os
empreendimentos e não temos a menor dúvida que este mesmo
entendimento vem norteando a motivação do Dr. Valter
Cardeal”.
Mesmo assim, apresentava 6 circunstâncias para concluir o processo
licitatório. Alegava que poucos processos licitatórios haviam sido tão
examinados como aquele. A postergação da assinatura dos contratos de
montagem impactava diretamente o cronograma de conclusão.
Outro documento, de 26 de março de 2014, comprova que o consórcio
propunha uma redução de apenas 3,94% no valor final do contrato.
No Estadão, trechos de e-mails recolhidos do consórcio tratam Cardeal
como “Eclesiástico”e “Sua Santidade” e informam que ele questionou a
Eletronuclearsobre os preços cobrados.
De que adiantou? O rosto de Cardeal e a pecha de criminoso circularam
por revistas do porte da Veja e , esta semana, da IstoÉ.
O excesso de pragmatismo
Numa ponta tinha-se o líder de um cartel, Ricardo Pessoa, réu confesso, e
uma revista – a Veja – até recentemente associada a uma organização
criminosa, de Carlinhos Cachoeira. Veja participou ativamente das manobras
para anular a Operação Satiagraha, divulgando informações falsas,
promovendo assassinatos de reputação em troca de gordas verbas
publicitárias do grupo Opportunity.
Na outra, um técnico do setor com 45 anos de carreira sobre a qual não
pesa uma denúncia consistente sequer.
Se a doutrina tivesse sido seguida, os procuradores não teriam passado as
informações para Veja antes de apurar sua consistência. Cardeal teria tido
oportunidade de se defender e demonstrar sua inocência.
O preço dessa parceria midiática não se restringe aos inocentes fuzilados
pelo caminho. A conta é muito mais cara.
.

A capa que quase decide a eleição

Na edição de 29 de outubro de 2014 (que foi para as bancas no dia 23 de


outubro, véspera do segundo turno das eleições presidenciais, Veja parte
para sua última cartada, a decisiva, capaz de decidir uma eleição e, com o
prestígio conquistado, garantir a sobrevivência editorial do grupo.

As fotos de meio rosto de Lula e Dilma compunham um mesmo ambiente. O


texto era incisivo:
O doleiro Alberto Youssef, caixa do esquema de corrupção da Petrobras,
revelou à Polícia Federal e ao Ministério Público, na terça-feira passada,
que Lula e Dilma Rousseff tinham conhecimento das tenebrosas transações
na estatal.
Os analistas já esperavam tenebrosas transações editoriais na véspera da
eleição, a sempre repetida bala de prata que decidiria as eleições.
Desta vez tinha-se um pleito rigorosamente empatado e, dependendo da
repercussão, a capa da Veja poderia decidir a eleição.
A publicação da revista veio acompanhada de um fortíssimo esquema de
distribuição de fac-símiles da capa por todo o país.
Àquela altura, o processo de degradação da revista tinha chegado a níveis
irreversíveis, sem nenhum compromisso com os fatos ou com a verdade.
A Carta ao Leitor era uma tentativa canhestra de explicar a coincidência
de uma reportagem bomba saindo justamente na véspera das eleições.
Nos últimos depoimentos, Youssef disse que Lula participou da montagem
do esquema de corrupção na Petrobras e que Dilma Rousseff sabia de tudo
quando era ministra-chefe da Casa Civil e, depois, já eleita presidente da
República.
(...) Veja publica essa reportagem às vésperas do turno decisivo das
eleições presidenciais obedecendo unicamente ao dever jornalístico de
informar imediatamente os fatos relevantes a que seus repórteres têm
acesso., Basta imaginar a temeridade que seria não trazê-los à luz para
avaliar a gravidade e a necessidade de cumprimento desse dever”.
Assinada por Robson Bonin, a primeira página continha um desenho
simulando o local do interrogatório. E um novo texto explicando as razões
cívicas que levaram a revista a publicar a tal história e uma ressalva
preventiva:
Cedo ou tarde os depoimentos de Youssef virão a público em seu trajeto
na Justiça rumo ao Supremo Tribunal Federal (STF), foro adequado para o
julgamento de parlamentares e autoridades citadas por ele e contra as quais
garantiu a autoridades ter provas. Só então se poderá ter certeza jurídica de
quem as pessoas acusadas são ou não culpadas.
A reportagem citava o que garantia ser declaração de Youssef:
- O Planalto sabia de tudo!
- Mas quem no Planalto? – perguntou o delegado.
- Lula e Dilma – respondeu o doleiro.
Foi assim que a revista descreveu a suposta delação, conforme consta na
página 61 daquela edição.
O doleiro não apresentou – e nem lhe foram pedidas – provas do que
disse. Por enquanto, nesta fase do processo, o que mais interessa aos
delegados é ter certeza de que o depoente atuou diretamente ou pelo menos
presenciou ilegalidades.
Segundo a revista, Youssef teria declarado que José Gabrielli, ex-
presidente da Petrobras, lhe teria solicitado pessoalmente que arrumasse
US$ 1 milhão para acalmar uma determinada agência de publicidade.
Youssef simplesmente convenceu os investigadores de que tem condições
de obter provas do que afirmou de a operação não poder ter existido sem o
conhecimento de lula e Dilma.
A revista dizia ter procurados os advogados de Youssef:
Procurados, os defensores do doleiro não quiseram comentar as
revelações de Youssef justificando que o processo corre em segredo de
justiça.
Durante o dia houve um duro trabalho do Planalto, para tentar convencer a
Globo a não repercutir a matéria no Jornal Nacional sem dar a oportunidade
de se ouvir o outro lado. Havia um empate técnico entre Dilma e Aécio
Neves e um carnaval no Jornal Nacional, em cima de fatos não confirmados,
seria uma interferência radical e indevida no processo eleitoral.
No início, a Globo mostrou-se irredutível. Na hora do almoço começou
uma movimentação nas redes sociais. No meu Blog, por volta das 13 horas
publiquei uma nota denunciando a possível manobra do Jornal Nacional. A
nota viralizou, teve cerca de 240 mil visualizações apenas no Blog. O
trabalho conjunto da blogosfera e das redes sociais impediu a consumação
do golpe. No final da tarde, a Globo concordava em apresentar uma matéria
isenta, ouvindo todos os lados e evitando um endosso à reportagem da Veja.
Na semana seguinte, no dia 29 de outubro, O Globo publicou reportagem
dizendo que a PF suspeitava da de armação na reportagem de Veja. Youssef
havia prestado depoimento em 21 de outubro e sequer citou Lula. Em 22 de
outubro, segundo O Globo, um dos advogados de Youssef pediu para “fazer
uma retificação no depoimento”. Ainda segundo as fontes da PF citadas pelo
jornal, a frase incluída no depoimento teria sido a de que Youssef afirmava
“acreditar que, pela dimensão do caso, não teria como Lula e Dilma não
saberem”.
A suposta retificação teria sido feita na 4a feira e na 5a já estava na Veja,
que antecipou em um dia a distribuição da revista. Mas a própria Veja
afirmara, em sua reportagem, que a investigação havia começado na terça
feira, mas só concluíra na tarde de 5a.
No dia 30 de outubro, reportagem do Valor Econômico, de André
Guilherme Vieira, trazia o desmentido do advogado de Youssef, Antônio
Figueiredo Basto.
A reportagem menciona que a declaração de Youssef teria ocorrida no dia
22 de outubro. “Nesse dia não houve depoimento no âmbito da delação. Isso
é mentira. Desafio qualquer um a provar que houve oitiva da delação
premiada na quarta-feira”, afirma, irritado, Basto.
O advogado diz ser falsa a informação de que o depoimento teria
ocorrido na quarta para que fosse feito um “aditamento” ou retificação sobre
o que o doleiro afirmara no dia anterior. “Não houve retificação alguma. Ou
a fonte da matéria mentiu ou isso é má-fé mesmo”, acusa o defensor de
Youssef.
Através do conjunto de informações levantadas por diversos veículos,
ficava claro que a revista tinha mentido, uma mentira que poderia ter
modificado o resultado das eleições.
A primeira reação da presidente Dilma Rousseff foi solicitar um inquérito
à Polícia Federal para investigar o suposto vazamento. Sua segunda reação
foi não cobrar a conclusão do inquérito.
Jamais se soube das conclusões do inquérito. Dilma nunca se preocupou
em exigir os resultados da investigação, em uma nítida demonstração de
temor em relação ao poder maior da mídia.
.

epub kotter editorial


outono de 2021

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