Ana Rita Gil

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Ano LXIi 2021 Número 2

Revista da Faculdade de diReito


da univeRsidade de lisboa
Periodicidade semestral
vol. lXii (2021) 2

LISBON LAW REVIEW

COMISSÃO CIENTÍFICA

alfredo calderale (Professor da universidade de Foggia)


christian baldus (Professor da universidade de Heidelberg)
dinah shelton (Professora da universidade de Georgetown)
ingo Wolfgang sarlet (Professor da Pontifícia universidade católica do Rio Grande do sul)
Jean-louis Halpérin (Professor da escola normal superior de Paris)
José luis díez Ripollés (Professor da universidade de Málaga)
José luís García-Pita y lastres (Professor da universidade da corunha)
Judith Martins-costa (ex-Professora da universidade Federal do Rio Grande do sul)
Ken Pennington (Professor da universidade católica da américa)
Marc bungenberg (Professor da universidade do sarre)
Marco antonio Marques da silva (Professor da Pontifícia universidade católica de são Paulo)
Miodrag Jovanovic (Professor da universidade de belgrado)
Pedro ortego Gil (Professor da universidade de santiago de compostela)
Pierluigi chiassoni (Professor da universidade de Génova)

DIRETOR
M. Januário da costa Gomes

COMISSÃO DE REDAÇÃO
Pedro infante Mota
catarina Monteiro Pires
Rui tavares lanceiro
Francisco Rodrigues Rocha

SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
Guilherme Grillo

PROPRIEDADE E SECRETARIADO
Faculdade de direito da universidade de lisboa
alameda da universidade – 1649-014 lisboa – Portugal

EDIÇÃO, EXECUÇÃO GRÁFICA E DISTRIBUIÇÃO


LISBON LAW EDITIONS
alameda da universidade – cidade universitária – 1649-014 lisboa – Portugal

issn 0870-3116 depósito legal n.º 75611/95

data: Março, 2022


ÍNDICE 2021

M. Januário da Costa Gomes


9-12 editorial

ESTUDOS DE ABERTURA

Eduardo Vera-Cruz Pinto


15-64 a interpretatio legis na norma do artigo 9.º do código civil e a interpretatio iuris no
ius Romanum (d. 50.16 e 17)
The interpretatio legis in the norm of Article 9 of the Civil Code and the interpretatio iuris in the
ius Romanum (D. 50.16 e 17)
Francesco Macario
65-89 Rinegoziazione e obbligo di rinegoziare come questione giuridica sistematica e come
problema dell’emergenza pandemica
Renegociação e dever de renegociar como questão jurídica sistemática e como problema da emergência
sanitária

ESTUDOS DOUTRINAIS

António Barroso Rodrigues


93-128 a tutela indemnizatória no contexto familiar
Compensation of damages in the family context
Aquilino Paulo Antunes
129-148 Medicamentos de uso humano e ambiente
Medicines for human use and environment
Fernando Loureiro Bastos
149-167 art market(s): from unregulated deals to the pursuit of transparency?
Mercado(s) da arte: de negócios a-jurídicos para a procura da transparência?
Francisco Rodrigues Rocha
169-211 seguro de responsabilidade civil de embarcações de recreio
Assurance de responsabilité civile de bateaux de plaisance
Ingo Wolfgang Sarlet | Jeferson Ferreira Barbosa
213-247 direito à saúde em tempos de pandemia e o papel do supremo tribunal Federal brasileiro
Right to Health in Pandemic Times and the Role of the Brazilian Federal Supreme Court
João Andrade Nunes
249-276 a Regeneração e a humanização da Justiça Militar Portuguesa – a abolição das penas
corporais no exército e o Regulamento Provisório disciplinar do exército em tempo
de Paz (1856)
The “Regeneração” and the humanisation of Portuguese Military Justice – The abolishment of
corporal punishment in the Army and the Armys’s Provisional Disciplinary Regulation in the
Peacetime (1856)

3
João de Oliveira Geraldes
277-307 sobre os negócios de acertamento e o artigo 458.º do código civil
On the declaratory agreements and the article 458 of the Civil Code
José Luís Bonifácio Ramos
309-325 do Prémio ao Pagamento da Franquia e Figuras afins
From Premium to Deductible Payments and Related Concepts
Judith Martins-Costa | Fernanda Mynarski Martins-Costa
327-355 Responsabilidade dos agentes de Fundos de investimentos em direitos creditórios
(“Fidc”): riscos normais e riscos não suportados pelos investidores
Liability of Agents of Receivables Investment Funds: normal risks and risks not borne by investors
Luís de Lima Pinheiro
357-389 o “método de reconhecimento” no direito internacional Privado – Renascimento
da teoria dos direitos adquiridos?
The “Recognition Method” in Private International Law – Revival of the Vested Rights Theory?
Mario Serio
391-405 contract e contracts nel diritto inglese: la rilevanza della buona fede
Contract e contracts: a relevância da boa fé
Miguel Sousa Ferro | Nuno Salpico
407-445 indemnização dos consumidores como prioridade dos reguladores
Consumer redress as a priority for regulators
Peter Techet
447-465 carl schmitt against World unity and state sovereignty – schmitt’s concept of
international law
Carl Schmitt contra a Unidade Mundial e a Soberania do Estado – O Conceito de Direito Internacional
de Schmitt
Pierluigi Chiassoni
467-489 legal Gaps
Lacunas jurídicas
Rafael Oliveira Afonso
491-539 o particular e a impugnação de atos administrativos no contencioso português e da
união europeia
Private applicant and the judicial review of administrative acts in the Portuguese and EU legal order
Renata Oliveira Almeida Menezes
541-560 a justiça intergeracional e a preocupação coletiva com o pós-morte
The inter-generational justice and the collective concern about the post-death
Rodrigo Lobato Oliveira de Souza
561-608 Religious freedom and constitutional elements at the social-political integration
process: a theoretical-methodological approach
Liberdade religiosa e elementos constitucionais no processo de integração sociopolítica: uma abordagem
teorético-metodológica

4
Telmo Coutinho Rodrigues
609-640 “com as devidas adaptações”: sobre os comandos de modificação nas normas remissivas
como fonte de discricionariedade
“Mutatis mutandis”: on modification commands in referential norms as a source of discretion

ESTUDOS REVISITADOS

Ana Paula Dourado


643-655 a “introdução ao estudo do direito Fiscal” (1949-1950), de armindo Monteiro,
revisitada em 2021
Introduction to Tax Law (1949-1950), by Armindo Monteiro, Revisited in 2021

Pedro de Albuquerque
657-724 venda real e (alegada) venda obrigacional no direito civil, no direito comercial e
no âmbito do direito dos valores mobiliários (a propósito de um estudo de inocêncio
Galvão telles)
Real sale and the (so-called) obligational sale in civil law, in commercial law and in securities law
(about a study of Inocêncio Galvão Telles)

VULTOS DO(S) DIREITO(S)

António Menezes Cordeiro


727-744 claus-Wilhelm canaris (1937-2021)
Paulo de Sousa Mendes
745-761 o caso aristides sousa Mendes e a Fórmula de Radbruch: “a injustiça extrema não
é direito”
The Aristides de Sousa Mendes Case and Radbruch’s Formula: “Extreme Injustice Is No Law”

JURISPRUDÊNCIA CRÍTICA

Ana Rita Gil


765-790 o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal: (mais) um olhar do tribunal europeu dos
direitos Humanos sobre a aplicação de medidas de promoção e proteção a crianças
em perigo
The case neves caratão Pinto vs. Portugal: one (more) look at the application of promotion and
protection measures to children at risk by the European Court of Human Rights

Jaime Valle
791-802 a quem cabe escolher os locais da missão diplomática permanente? – comentário
ao acórdão de 11 de dezembro de 2020 do tribunal internacional de Justiça
Who can choose the premises of the permanent diplomatic mission? – Commentary on the Judgment
of 11 December 2020 of the International Court of Justice

5
Jorge Duarte Pinheiro
803-815 Quando pode o estado separar as crianças dos seus progenitores? – o caso Neves
Caratão Pinto c. Portugal
In which circumstances can a State separate children from their parents? – case neves caratão
Pinto v. Portugal

VIDA CIENTÍFICA DA FACULDADE

José Luís Bonifácio Ramos


819-827 transição digital no ensino do direito
Digital Transition in Teaching Law
Margarida Silva Pereira
829-843 arguição da tese de doutoramento de adelino Manuel Muchanga sobre “a
Responsabilidade civil dos cônjuges entre si por violação dos deveres conjugais e
pelo divórcio”
Intervention in the public discussion of the doctoral thesis presented by Adelino Manuel Muchanga
on the subject “Civil Liability of the Spouses between themselves due to Violation of Marital Duties
and Divorce”
Miguel Teixeira de Sousa
845-855 arguição da tese de doutoramento do lic. Pedro Ferreira Múrias (“a análise axiológica
do direito civil”)
Discussion of the Doctoral Thesis of Pedro Ferreira Múrias (“A Análise Axiológica do Direito Civil”)
Paulo Mota Pinto
857-878 arguição da dissertação apresentada para provas de doutoramento por Pedro Múrias,
A análise axiológica do direito civil, Faculdade de direito da universidade de lisboa,
11 de novembro de 2021
Discussion of the Doctoral Thesis of Pedro Ferreira Múrias, “A Análise Axiológica do Direito Civil”,
Lisbon Law School, 11th November 2021
Teresa Quintela de Brito
879-901 arguição da tese de doutoramento apresentada por Érico Fernando barin – A natureza
jurídica da perda alargada
Oral Argument and Discussion of the PhD Thesis presented by Érico Fernando Barin – the juridical
nature of the extended loss

6
O caso Neves Caratão Pinto c. Portugal: (mais) um
olhar do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
sobre a aplicação de medidas de promoção e proteção
a crianças em perigo
The case Neves Caratão Pinto vs. Portugal: one (more) look
at the application of promotion and protection measures
to children at risk by the European Court of Human Rights

Ana Rita Gil*

Resumo: no caso Neves Caratão Pinto c. Abstract: in the case of Neves Caratão Pinto
Portugal, o tribunal europeu dos direitos c. Portugal, the european court of Human
Humanos condenou o estado Português Rights condemned the Portuguese state
por violação do artigo 8.º da convenção for violating article 8 of the european
europeia dos direitos Humanos, devido convention on Human Rights, due to the
à aplicação, a dois menores, de medidas de application of protection measures to two
promoção e proteção que implicaram a sua minor children, which entailed, for many
retirada da casa materna e o acolhimento years, their removal from the maternal home
junto de outros familiares durante largos and their placement with other family mem-
anos. a duração das medidas, a falta de ava- bers. the duration of the measures, the lack
liação adequada da necessidade de renovação of adequate assessment of the needs to renew
das mesmas, e a falta de garantia efetiva de them, and the suspension of the mothers’
um direito de visita à recorrente-mãe, bem visits, as well as the excessive length of
como a duração excessiva dos processos, the proceedings, led the strasbourg judges
levaram a que os juízes de estrasburgo to conclude that the state had made an
concluíssem que as medidas estaduais haviam illegitimate interference in the applicant’s
constituído ingerências ilegítimas na vida family life.
familiar da recorrente. Keywords: children’s Protection Measures;
Palavras-chave: Medidas de Promoção e Right to respect for family life; european
Proteção de crianças e Jovens; direito ao court of Human Rights; article 8 of the

*
Professora auxiliar convidada da Faculdade de direito da universidade de lisboa e investigadora
do centro de investigação de direito Público. e-mail: [email protected].

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ana Rita Gil

respeito pela vida Familiar; tribunal europeu european convention on Human Rights;
dos direitos Humanos; artigo 8.º da Placement in foster families; visitation rights.
convenção europeia dos direitos Humanos;
Medida de acolhimento junto de outro
familiar; direito de visita.

Sumário: 1. introdução; 2. os factos apurados: aplicação de medidas de promoção e


proteção, direitos de visita da recorrente e instauração de ação de regulação das responsabilidades
parentais; 3. argumentos das Partes: o respeito pela vida familiar e o processo equitativo;
4. o direito nacional aplicável; 5. a decisão no contexto da jurisprudência do tedH
sobre obrigações substanciais de proteção da vida familiar; 6. a decisão no contexto da
jurisprudência do tedH sobre o direito a um processo justo na matéria; 7. enquadramento
do caso no contexto de outras condenações do estado Português na matéria; 8. os efeitos
da decisão e sua projeção nos processos em curso e na prevenção de condenações futuras.

1. Introdução

i. no caso Neves Caratão Pinto c. Portugal1, o tribunal europeu dos direitos


Humanos (tedH) condenou o estado Português por violação do artigo 8.º da
convenção europeia dos direitos Humanos (cedH), por ingerência ilegítima na
vida familiar da recorrente, devido à adoção de várias medidas de promoção e proteção
tomadas em relação aos seus dois filhos menores, que consistiram na retirada dos
mesmos aos seus cuidados e no acolhimento destes junto de outros familiares. Foram
as renovações sucessivas, a falta de fundamentação das mesmas e os insuficientes
direitos de visita garantidos à recorrente que acabaram por ditar o juízo do tribunal
de estrasburgo. Para além de censurar as medidas e a insuficiente fundamentação
das mesmas, o estado Português foi ainda condenado por violação do mesmo artigo
8.º por falhas processuais e atrasos nos processos de promoção e proteção.
no acórdão em anotação, o tedH não se afastou daquele que é o seu método
de decisão habitual em matéria de garantia da vida familiar, prevista no artigo 8.º
da convenção2. Manteve, aliás, o seu entendimento assente na ideia de que só

1
acórdão de 13 de julho de 2021, queixa n.º 28443/19.
2
Para uma análise deste método de decisão, v. JoRGe duaRte PinHeiRo, “direito ao respeito pela
vida familiar”, a.vv., Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e dos Protocolos Adicionais,
Paulo Pinto de albuquerque (org.), vol. ii, universidade católica editora, 2019, pp. 1511-1537,
susana alMeida, Familia a la luz de Convenio Europeo de Derechos Humanos, Juruá editorial, 2016.

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o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal

razões muito fortes podem ditar a separação de crianças dos seus progenitores. o
acórdão vem, pois, na linha de uma jurisprudência pacífica do tedH em matéria
de proteção do direito à manutenção da unidade familiar, na qual se inserem, aliás,
como se verá, outras condenações do estado Português.
a decisão em presença tem, porém, um aspeto menos comum, por tecer
considerações em relação a um processo ainda em curso nos tribunais portugueses
– o processo de regulação das responsabilidades parentais dos menores envolvidos.
importará analisar de que forma poderá esta condenação influenciar o processo
pendente, bem como contribuir para a prevenção de outras violações do artigo
8.º cedH pelas autoridades portuguesas.

2. Os factos apurados: aplicação de medidas de promoção e proteção,


direitos de visita da recorrente e instauração de ação de regulação das
responsabilidades parentais
i. Qualquer análise completa de um caso referente à quebra da unidade da
vida familiar, sobretudo quando estão em causa medidas de proteção de menores
e a retirada dos mesmos à família de origem, pressupõe um enquadramento
cuidadoso dos factos. desde logo, porque neste contexto não se trata de medidas
de caráter geral, mas decisões muito complexas, tomadas frequentemente por várias
autoridades estaduais, em que se sucedem avanços e recuos dos vários atores
envolvidos, e ponderações muito sensíveis e mutáveis. esta é uma matéria em que
todos os pormenores e contornos do caso concreto são detalhadamente escrutinados
pelo tedH. Por esse facto, não podemos partir para a análise da decisão sem antes
procedermos a uma breve exposição dos factos.

ii. o caso teve na sua origem uma queixa deduzida pela mãe de duas crianças
gémeas, d. e t., que haviam sido objeto de uma medida de promoção e proteção
de confiança a outros membros da família. tais medidas haviam sido inicialmente
aplicadas na sequência de várias denúncias de conflitualidade entre os progenitores,
alcoolismo do pai e negligência em relação às crianças. Quando os menores tinham
apenas quatro meses, a 30 de março de 2012, foi celebrado um acordo de promoção
e proteção, através do qual foi aplicada a medida de apoio junto de outro familiar,
prevista nos artigos 35.º, n.º 1, alínea b) e 40.º da lei de Proteção de crianças e
Jovens em Perigo (lPcJ)3. um dos menores ficaria à guarda da filha maior da

3
lei n.º 147/99, de 1 de setembro, alterada, por último, pela lei n.º 26/2018, de 05/07.

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ana Rita Gil

recorrente (F.), e o outro à guarda dos tios paternos (a.). as famílias de acolhimento
ficaram vinculadas a promover o encontro entre os irmãos e a permitir a visita dos
progenitores. a recorrente e o companheiro ficaram vinculados a respeitar o
quotidiano das famílias de acolhimento, a visitar as crianças, de preferência aos
fins-de-semana e na casa dos avós paternos, mediante aviso e combinação prévia.
a mãe comprometeu-se ainda a “procurar emprego ativamente”, bem como
alojamento adequado que permitisse o regresso rápido das crianças aos seus cuidados.
o pai, por seu turno, deveria procurar tratamento para o problema de alcoolismo.
Findo o prazo desta primeira medida, a situação foi reavaliada: a mãe invocava
já ter encontrado emprego e ter-se separado do pai, pelo que já não existiria um
ambiente inseguro no seu lar. a comissão de Proteção de crianças e Jovens
(cPcJ) visitou a casa da mãe, considerando haver condições adequadas para
acolher as crianças. Já o pai veio ao processo opor-se a que a recorrente recebesse
as crianças, alegando que esta não tinha as necessárias capacidades parentais. Por
seu turno, as famílias de acolhimento referiam que as visitas da mãe às crianças
não se processavam de forma serena, pelo que era seu entendimento que esta
ainda não conseguiria proporcionar um ambiente adequado para os filhos. a
cPcJ propôs então a renovação da medida por mais seis meses, mas com alargamento
dos contactos entre a progenitora e os menores. Por oposição dos cuidadores a
tal alargamento e impossibilidade de celebração de um acordo de promoção e
proteção daí decorrente, foi o processo remetido ao tribunal competente. em
sede judicial, foram as medidas renovadas pelo prazo proposto. nesta renovação,
porém, determinou-se que as visitas da mãe – tendo em conta os relatos de alguma
agitação das mesmas, “deveriam ser mais espaçadas”, em fins-de-semana alternados,
e supervisionadas.
a partir de 2014, os processos de proteção foram divididos, em função da re-
sidência dos menores: o processo de d. passou para o tribunal de lisboa, e o
processo relativo a t. para o tribunal de amadora-sintra. os dois tribunais con-
tinuaram a decidir pela renovação sucessiva das medidas de acolhimento junto de
outro familiar. na base destas várias renovações esteve sempre a tomada em
consideração dos relatórios das entidades envolvidas, que davam conta de que as
visitas não se passavam de forma tranquila: a mãe demonstrava uma permanente
angústia junto das crianças, não respeitava o espaço das mesmas e era conflituosa
com as famílias de acolhimento. os tribunais competentes requereram várias
perícias psiquiátricas à progenitora que, no entanto, relataram que a mesma não
sofria de qualquer problema de saúde mental, apesar da agitação e angústia que a
separação dos filhos lhe provocava, bem como os sentimentos de revolta em relação
às medidas aplicadas aos menores.

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o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal

as visitas da mãe aos menores, que até 2014 se vinham a realizar de forma
supervisionada e bimensal foram, entretanto, interrompidas para ambos os filhos
por decisão judicial. após essa data, passaram suceder-se, de forma incerta, períodos
de reencontros e períodos de interrupção de convivência. estes últimos chegaram
a perdurar por mais de um ano, interpolados de pequenos períodos de contactos,
sempre supervisionados.

iii. em 2016, os tribunais competentes consideraram que as crianças se en-


contravam perfeitamente integradas nas famílias de acolhimento, pelo que já não
se encontravam em perigo. nessa sequência, deveriam cessar os procedimentos de
promoção, e retomado um processo de regulação das responsabilidades parentais
que já havia sido proposto pela recorrente em 2012. no processo instaurado em
lisboa, o domicílio do menor foi fixado provisoriamente junto dos seus tios paternos
(a. e cônjuge). não se fixou qualquer direito de visita da mãe. no processo instaurado
em sintra, decidiu-se provisoriamente que o menor ficaria sujeito à guarda e cuidados
de F., sua irmã maior. o pai continuaria a ter direitos de visita livres, mediante aviso
prévio, e a mãe teria direito a visitas supervisionadas uma vez por mês. no entanto,
como se referiu supra, este direito de visita foi recorrentemente suspenso, vindo
apenas a ser retomado em 2020, na sequência de recurso para o tribunal da Relação
de lisboa. À data da entrada do processo no tedH, os dois processos de regulação
das responsabilidades parentais ainda se encontravam pendentes.

3. Argumentos das Partes: o respeito pela vida familiar e o processo


equitativo
i. após relatar os factos, a estrutura dos arestos do tedH expõe, de forma
resumida, os argumentos das partes. também aqui importa analisar de que forma
as mesmas fizeram corresponder os factos descritos a violações da convenção –
ainda que o tribunal não fique, naturalmente, vinculado aos fundamentos invocados
por força do princípio iura novit curia.
a recorrente alegava violação do seu direito ao respeito pela vida familiar pelo
estado Português, decorrente da aplicação de uma medida de proteção aos filhos
gémeos menores, que implicou a atribuição da guarda dos mesmos a membros da
família, seguida de sucessivas renovações que importaram a suspensão prolongada
dos seus direitos de visita. invocou que aceitou a adoção da primeira medida por
reconhecer viver num ambiente conflituoso, e ter receio de que as crianças viessem
a ser institucionalizadas. no entanto, as renovações sucessivas da medida já não
constituíam, no seu entender, medidas legítimas, tendo em conta que a sua situação

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ana Rita Gil

havia melhorado substancialmente. Por outro lado, a suspensão das visitas havia
provocado uma quebra gravosa do direito à unidade familiar – tão mais incompreensível
quando o pai dos menores não havia sofrido medida equivalente.
a recorrente não contestou a legalidade das medidas de ingerência, mas alegou
que as mesmas não possuíam um fim legítimo, nem eram proporcionais aos fins visados.
no seu entender, as autoridades nacionais haviam feito prevalecer os interesses das
famílias de acolhimento sobre os seus interesses como mãe, não tendo, aliás, tido
em conta os conflitos existentes entre ambas. Mais invocou não constar do processo
nenhum elemento que demonstrasse a falta de aptidões parentais, e que as numerosas
avaliações psicológicas a que se havia submetido não haviam determinado nenhuma
perturbação para além da angústia decorrente da separação dos filhos.
neste seguimento, concluiu que as autoridades portuguesas não haviam levado
a cabo as medidas necessárias para assegurar o retorno das crianças aos cuidados
maternos ou de garantir um direito de visita.
a recorrente invocou ainda a violação do direito a um processo equitativo,
garantido no artigo 6.º da cedH, em particular devido à demora excessiva dos
dois processos de proteção e à multiplicação de diligências, com reenvios sucessivos
de um tribunal a outro. no seu entender, tal demora contribuiu para uma rutura
dos laços familiares, levando uma situação de facto dificilmente ultrapassável. a
recorrente invocou ainda que os menores nunca haviam sido ouvidos nem sujeitos
a qualquer avaliação psicológica.

ii. o Governo Português por seu turno, invocou que inicialmente se haviam
tomado todas as medidas necessárias para garantir o exercício do direito de visita
à recorrente. no entanto, devido a alguns comportamentos desta, relatados pelas
famílias de acolhimento, entendeu-se ser necessária a sua supervisão, e mesmo a
sua suspensão. tais decisões fundaram-se no facto de a recorrente manter uma
atitude hostil em relação à intervenção, bem como ao facto de as visitas acarretarem
a desestabilização dos filhos.
no que toca à violação do direito a um processo justo e equitativo, o Governo
considerou que a recorrente teve acesso a um processo justo, tendo tido a oportunidade
de ser ouvida, deduzir as pretensões tidas como convenientes, apresentar provas e
fazer recursos. no que toca à duração do mesmo, o Governo indicou a necessidade
de se agir com prudência na matéria, face à premência dos interesses dos menores
envolvidos.

770
o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal

4. O Direito nacional aplicável

i. antes de proceder à decisão, os Juízes de estrasburgo preocupam-se em en-


quadrar o caso no direito interno. neste contexto, tem-se em conta não só a lei
ordinária, com relevância imediata para a decisão dos casos, mas também os
parâmetros supralegais, tenham os mesmos sido ou não objeto de referência por
parte das decisões recorridas. o tedH refere-se ainda às convenções internacionais
vinculativas que, tal como a cedH, contenham disposições garantidoras do direito
alegadamente violado.
no caso em presença, o tedH começou por enquadrar a matéria na constituição
Portuguesa, em particular nos artigos 36.º, n.º 5 e 6, sobre o dever dos pais de
educação dos filhos, e sobre a proibição de separação dos filhos menores dos pais,
salvo em caso de não cumprimento dos deveres em relação aos filhos. Referiu, se-
guidamente, o artigo 68.º, sobre proteção do estado da maternidade e da paternidade,
nomeadamente quanto à educação dos filhos. teria sido pertinente ainda uma
referência ao artigo 69.º respeitante à proteção da infância, que legitima a intervenção
estadual para o desenvolvimento integral das crianças, “especialmente contra todas
as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo
da autoridade na família e nas demais instituições”, bem como, nos termos do n.º
2, para proteção das crianças de “qualquer forma privadas de um ambiente familiar
normal”4.
Passou então o tedH para a indicação das normas legais pertinentes: as
constantes do código civil respeitantes à regulação do exercício das responsabilidades
parentais: artigos 1906.º e 1907.º (regulação em caso de divórcio ou de confiança
da criança a um terceiro), artigo 1918.º (medidas em caso de risco contra a segurança,
a saúde, o desenvolvimento moral e a educação do menor)5, bem como às regras
reguladoras do processo, e, finalmente, as disposições da lei do Processo tutelar
civil respeitantes ao processo de regulação das responsabilidades parentais. esta
referência não deixa de surpreender já que, como se viu, tal processo ainda se
encontrava em curso na data de entrada do recurso no tedH. este ponto apontava

4
assim, também, Paulo GueRRa e Helena bolieiRo, A Criança e a Família – uma Questão de
Direitos, coimbra editora, 2ª edição, 2014, p. 33. sobre o regime constitucional das matérias
objeto do direito da Família, v. JoRGe duaRte PinHeiRo, O Direito da Família Contemporâneo,
5.ª edição, almedina, 2016, pp. 66 e ss. sobre os deveres de proteção no contexto do direito das
crianças, v. JosÉ de Melo aleXandRino, “os direitos das crianças – linhas para uma construção
unitária”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 68, i, janeiro 2008, p. 304.
5
sobre o regime da regulação das responsabilidades parentais, v. JoRGe duaRte PinHeiRo, O Direito
da Família Contemporâneo, cit., p. 218 e ss.

RFdul-llR, lXii (2021) 2, 765-790 771


ana Rita Gil

já, pois, para algumas considerações feitas pelo tedH em relação a tal processo
que merecerão reflexão mais à frente.

ii. as normas centrais na matéria são, porém, as constantes da lPcJ.


importa determo-nos um pouco sobre o regime desta lei6. a mesma legitima a
intervenção do estado quando os pais, representantes legais ou quem tenha a
guarda de facto ponham em perigo a segurança, a saúde, formação, educação
ou desenvolvimento da criança (artigo 3.º, n.º 1). o mesmo artigo 3.º enumera,
não taxativamente, os casos em que se pode considerar que uma criança se
encontra em perigo. os menores em causa enquadrar-se-iam quer na alínea c)
– não recebiam os cuidados adequados à sua idade, bem como na alínea e) –
estavam sujeitos, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetavam
gravemente a sua segurança ou equilíbrio emocional – viviam num lar com
ambiente violento7. a intervenção deve ser pautada por vários princípios, enu-
merados no artigo 4.º. um desses princípios é o da subsidiariedade, nos termos
da qual a intervenção deve ser efetuada, em primeiro lugar, pelas entidades mais
próximas do contexto familiar: sucessivamente pelas entidades com competência
em matéria da infância e juventude, pelas cPcJ e, em última instância, pelos
tribunais8. as cPcJ só podem intervir, porém, mediante consentimento, for-
malizado num acordo de promoção e proteção. Foi assim que iniciou o processo
do caso presente. na falta de tal acordo, o processo deve ser remetido a tribunal,
que é o último reduto de intervenção. Foi também o que se verificou, na sequência
de impossibilidade de acordo destinado à renovação da medida inicialmente
acordada.
outro dos princípios basilares consagrado na lPcJ consiste na intervenção
mínima: a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da

6
sobre o papel do sistema de promoção de proteção de crianças e jovens em perigo, v. aRMando
leandRo, “o papel do sistema de promoção de proteção de crianças em Portugal – o definitivo
balanço de 14 anos de vigência”, in aa.vv., I Congresso de Direito da Família e das Crianças, Paulo
Guerra (org.), almedina, 2016. sobre o regime da lPcJ e, geral, v. Paulo GueRRa e Helena
bolieiRo, A Criança e a Família, cit., p. 33 e ss.
7
sobre a sujeição de crianças a contexto de violência doméstica, v., entre nós, ana teResa leal,
“crianças expostas à violência familiar: vítimas (in)directas do crime de violência doméstica”,
Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2020-i, pp. 147-172 e sÉRGio MiGuel JosÉ coRReia,
“Maus tratos parentais – considerações sobre a vitimização e vulnerabilidade da criança no contexto
parental-filial”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano lXii, 2021, n.º 1,
tomo 2, pp. 899-941.
8
sobre este ponto, v. Paulo GueRRa e Helena bolieiRo, A Criança e a Família, cit. p. 41 e ss.

772
o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal

criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade


e significativas. na mesma ordem de ideias, a lei afirma o princípio do respeito pelas
responsabilidades parentais: a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais
assumam os seus deveres para com a criança e o jovem, e da prevalência da família:
deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua
família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração
familiar estável.

iii. Pode dizer-se que os princípios legais acabados de enumerar refletem


aqueles que são, como se verá, os princípios-chave da jurisprudência do tedH
na matéria: toda a intervenção na família deverá tender à manutenção ou reposição
dos laços familiares na maior medida do possível. neste ponto, o princípio da pro-
porcionalidade assume-se como especialmente relevante na ponderação entre os
dois interesses em presença: o da prevalência da família e o da proteção do interesse
da criança. estes princípios devem funcionar como parâmetros determinantes na
escolha da medida a ser aplicada. assim, apesar de não existir uma regra fixa ou
hierárquica de aplicação das medidas existentes na lei9, deve ser dada prioridade
àquela que, protegendo o interesse da criança, se afigure como a menos invasiva
nas relações familiares10.
Por outro lado, importa referir a consagração do princípio da atualidade: a
medida só se deve manter enquanto se verificar a situação de perigo. a prorrogação
da mesma nunca poderá ser feita automaticamente, ou por defeito, implicando
sempre o repensar e reanalisar da manutenção de todos os pressupostos e princípios
que ditaram a sua aplicação num primeiro momento.
Finalmente, também com relevo para o caso, a alínea j) do artigo 4.º consagra
ainda o princípio da audição obrigatória e participação, nos termos do qual o menor,
bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto,
têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de
promoção dos direitos e de proteção.

9
as medidas encontram-se divididas entre medidas a ser aplicadas “em meio natural de vida” e
medidas de colocação (artigo 35.º, n.º 2 da lPcJ). integram as primeiras o apoio junto dos pais,
o apoio junto de outro familiar, a confiança a pessoa idónea e o apoio para a autonomia de vida.
as segundas consistem no acolhimento residencial e na confiança a pessoa selecionada para a adoção,
a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção.
10
assim, também, JoRGe duaRte PinHeiRo, O Direito da Família Contemporâneo, cit., p. 289 e
ss.

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ana Rita Gil

a última fonte do direito referida pelo tedH foi a convenção dos direitos
da criança de 1989. esta referência é também um aspeto constante nos casos em
que estão envolvidas crianças, suprindo a falta de uma referência na convenção a
um princípio do “interesse superior da criança”11.

5. A decisão no contexto da jurisprudência do TEDH sobre obrigações


substanciais de proteção da vida familiar
i. atendendo a que o artigo 8.º da cedH possui uma estrutura assente em
duas partes – a enunciação do direito protegido e a previsão das restrições admissíveis
– o juízo do tedH no que toca à violação do direito à vida privada e familiar
assenta em dois momentos. no primeiro, o tedH averigua se, no caso, existe
efetivamente uma vida privada e/ou familiar digna de proteção. num segundo
momento, analisa (1) se existiu ingerência do estado nessa vida privada/familiar
e (2) se tal ingerência foi legítima – aspeto este que implica a passagem por vários
“testes”, como se verá de seguida.
no que toca ao primeiro aspeto, o tedH procedeu imediatamente à apreciação
da existência de laços familiares a unir a recorrente aos dois filhos menores. ora,
no que diz respeito à ligação entre pais e filhos menores, o tribunal considera que
existe “sempre relação familiar entre os mesmos pelo simples facto do nascimento,
e que a mesma só pode ser posta em causa em circunstâncias excecionais”12. assim,
existem laços familiares entre pai e filho, mesmo que não exista coabitação entre
os mesmos. o tribunal afirma ainda, permanentemente, que o gozo recíproco da
companhia entre filhos e progenitores constitui um elemento fundamental da vida
familiar13. ora, no caso presente, o tedH limitou-se a relembrar este último
ponto, passando de imediato à segunda fase da análise de violação do artigo 8.º,
tendente à verificação da ocorrência de uma ingerência na vida familiar14.

11
note-se, porém, que o artigo 5.º do Protocolo n.º 7 faz referência ao interesse dos filhos na
determinação, em condições de igualdade, dos direitos e responsabilidades dos cônjuges. sobre a
ampla referência ao “interesse superior da criança” na jurisprudência do tedH, v. lÍGia abReu,
“crianças” in aa.vv., Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e dos Protocolos
Adicionais, vol. iii, universidade católica editora, 2020, p. 2770 e ss.
12
acórdão de 21/06/1988, Berrehab c. Países Baixos, queixa n.º 10730/84.
13
acórdão de 08/07/1987, B. c. Reino Unido, queixa n.º 9840/82.
14
note-se, porém, que o tedH tem já também considerado poder constituir vida familiar a união
entre crianças e adultos, não obstante a ausência de ligação biológica, precisamente em alguns casos
de acolhimento familiar. assim, no caso Moretti e Benedetti c. Itália considerou poderem existir tais
laços, tendo em conta o tempo decorrido em que a criança viveu com a família de acolhimento, a

774
o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal

ii. uma ingerência15 consiste numa medida que afete uma vida familiar existente:
sejam decisões concretas – v.g. afastamento de membros da família, de privação
de contactos, sejam medidas gerais com aplicação a número indeterminado de
casos. a ingerência pode constituir uma atuação positiva do estado, ou uma
omissão, quando sobre este recaía uma obrigação positiva. de facto, o tedH tem
continuamente afirmado que decorre do artigo 8.º da cedH não só o dever de
abstenção de interferência arbitrária na vida familiar, mas ainda o dever de agir
para garantir esse direito, quando o mesmo esteja afetado por algum motivo16.
nenhuma das partes contestou ter existido uma ingerência estadual na vida
familiar da recorrente. o tedH considerou que logo a primeira medida, decidida
através de acordo de promoção e proteção, consubstanciava já uma ingerência.
neste contexto, teve em conta o facto de a recorrente ter assinado o acordo quando
se encontrava num contexto de conflito conjugal e de fragilidade emocional – e,
por isso, de “grande vulnerabilidade”. equiparou, assim, uma medida tomada com
a concordância da recorrente a uma medida tomada contra a sua vontade.
seguidamente, o tedH analisa se a ingerência foi legítima, i.e., se cumpriu
todos os requisitos enunciados no n.º 2 do artigo 8.º, a saber: (1) estar prevista na
lei, (2) visar um fim legítimo e (3) ser necessária numa sociedade democrática.
trata-se de uma tríade de condições, inspirada no artigo 29.º da declaração
universal dos direitos Humanos, e que podem ser resumidas às exigências de
legalidade, legitimidade e necessidade17.

qualidade dos laços estabelecidos e o papel assumido pelos adultos na vida do menor (acórdão de
27/04/2010, queixa n.º 16318/07).
15
apesar de algumas divergências na doutrina, considera-se que as ingerências corresponderão a
verdadeiras restrições ou intervenções restritivas ao direito a levar a cabo uma vida familiar protegida
pelo n.º 1 do artigo 8.º da cedH. dando conta das várias flutuações terminológicas na doutrina,
que oscilam entre a qualificação como “limitações”, “restrições”, “interferências”, “condições” v.
vincent coussiRat-coustÈRe, “article 8 §2”, aa.vv., La Convention Européenne des Droits de
l’Homme – Commentaire Article par Article, louis edmond Pettiti, emmanuel decaux & Pierre-Henri
imbert (dir.), economica, 1999, p. 323 e ss., e PeteR KeMPees, “«legitimate aims» in the case-law
of the european court of Human Rights”, aa.vv., Protection des Droits de l’Homme: la Perspetive
Européenne, Paul Mahoney, Franz Matscher, Herbert Petzold & luzius Wildhaber (ed.), carl Heymanns
verlag KG, 2000, p. 659.
16
acórdão de 13/06/1979, Marckx c. Bélgica, queixa n.º 6833/74.
17
nos termos do artigo 29.º da dudH, “no exercício destes direitos e no gozo destas liberdades
ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover
o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas
exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”. também aí,
pois, se fazem exigências respeitantes à origem da restrição – que tem de estar prevista na lei –, bem
como respeitantes à prevenção de arbitrariedade – a restrição ter de visar um dos fins enumerados.

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ana Rita Gil

em primeiro lugar, a ingerência tem de estar prevista na lei. este requisito visa
garantir a prevenção de decisões administrativas arbitrárias e o respeito pelo princípio
da igualdade. de acordo com a jurisprudência pacífica do tedH, “lei” deve ser
entendida em sentido material: deverá fazer parte do direito vinculante do estado,
pelo que estão, assim, abrangidas as convenções internacionais aplicáveis na ordem
interna, bem como os atos regulamentares que tenham por base uma lei interna.
o tedH exige ainda que a lei tenha certas “qualidades”: tem de ser acessível,
justiciável, previsível e suficientemente clara18.
no caso, as partes também não contestavam que a ingerência se encontrava
prevista na lei. apreciando, o tedH constatou que a medida de proteção se
encontrava prevista nos artigos. 35.º, n.º 1, alínea b) e 40.º da lPcJP, e que as
responsabilidades parentais haviam sido fixadas provisoriamente com base nos
artigos. 1907.º e 1918.º do código civil, e do artigo 28.º da lei n.º 141/2015
de 8 de setembro, pelo que cumpriam o requisito da legalidade.
em segundo lugar, a medida de ingerência tem de prosseguir um fim legítimo.
o n.º 2 do artigo 8.º enumera, de forma taxativa, os fins que podem ser tidos
como legítimos19, a saber: a segurança nacional, a segurança pública, a defesa da
ordem e a prevenção de infrações penais, a proteção da saúde e da moral, a proteção
dos direitos e liberdades de terceiros, bem como o bem-estar económico do país.
alguns destes motivos remetem para alguma margem de apreciação dos estados,
que estão melhor posicionados para aferir se um destes interesses se verifica na
prática. Mas é o tedH que procede à qualificação do fim em presença, e o enquadra
numa destas categorias, independentemente da qualificação estadual.
como se viu, as partes divergiam neste ponto. o tedH foi de opinião de
que tanto a medida de promoção e proteção como as suas renovações haviam sido
tomadas para se prosseguir um fim legítimo: proteger as crianças de risco de
negligência e de um ambiente familiar inseguro. assim, tais medidas inserir-se-iam
no fim de proteção dos direitos e liberdades de terceiros: no caso, a proteção do
“direito à saúde” e dos “direitos e interesses das crianças”. É de estranhar a especificação
destes “direitos” assim enumerados, já que os últimos são extremamente vagos.
a medida tem, depois de ser “necessária numa sociedade democrática”. a doutrina
tem considerado que se trata, aqui, da convocação do princípio da proporcionalidade

no entanto, contrariamente à dudH, que estabeleceu uma cláusula geral de restrição, na cedH
optou-se por se estabelecer cláusulas de restrição por cada direito individualmente considerado.
18
v. acórdão no caso Slivenko c. Letónia, 09/10/2003, queixa n.º 48321/99.
19
Para uma análise detalhada do significado de cada um dos “fins legítimos” enumerados, v. PeteR
KeMPees, “«legitimate aims»”, cit., 660 e ss.

776
o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal

ou da proibição do excesso20. na prática, o tedH atribui a este requisito de


“necessidade” o significado de exigência de realização de um equilíbrio entre todos
os interesses envolvidos. de acordo com este teste, quanto mais grave a medida de
ingerência, mais importantes devem ser os motivos que a justificam. Por outras
palavras, a ingerência no direito não deve ser superior ao necessário para salvaguardar
o fim legítimo identificado. É em função das circunstâncias de cada caso que o juiz
europeu decide qual o direito ou interesse a dar prevalência. do juízo daí decorrente,
o juiz europeu pode chegar a uma das seguintes conclusões: a) a ingerência não é
justificada; b) a ingerência é justificada, mas a situação dos recorrentes prevalece, não
sendo, por isso, a ingerência necessária, e, finalmente, c) a ingerência é justificada e
necessária, tendo sido levado a cabo um justo equilíbrio entre os interesses em
presença, não sendo a medida desproporcionada em relação ao fim prosseguido.

iii. o tedH já estabeleceu alguns princípios no que toca a analisar a


legitimidade da ingerência estadual na vida familiar, nos casos de retirada de filhos
à guarda dos pais para proteção dos primeiros. tais princípios podem ser sistematizados
como se fará de seguida: (1) o ponto de partida é o de que o interesse superior da
criança deve prevalecer em todas as decisões que envolvam menores – o tedH sublinha
que existe atualmente “um amplo consenso” neste ponto –: assim, nas questões de
retirada das crianças a progenitores e de restrições dos direitos de visita, como o presente,
o interesse da criança deve ser a consideração primordial21; (2) os estados têm o
dever positivo de garantir à criança uma evolução num ambiente são, se necessário,
afastando a criança dos progenitores; (3) mas o interesse superior da criança reclama
também que os laços entre os menores e a família sejam mantidos, salvo quando esta
os colocar em perigo; (4) assim, apenas em “circunstâncias muito excecionais” pode
o estado proceder a uma rutura dos laços familiares; (5) mesmo nessas circunstâncias,
devem ser postas em prática as medidas possíveis para restabelecer as relações familiares:
incumbe, pois, aos estados uma obrigação positiva de tomar as medidas necessárias
para permitir a reunião dos filhos com os pais22; (6) em consequência, as medidas

20
sobre o princípio da proporcionalidade na jurisprudência do tedH v., em geral, MaRc-andRÉ
eissen, “le Principe de Proportionalité dans la Jurisprudence de la cour européenne des droits
de l’Homme” Documentação e Direito Comparado, n.º 55/56, 1993, p. 279.
21
Refere o tedH: l’intérêt de l’enfant doit passer avant toute autre considération, para. 10. o tedH
segue, assim, de perto, a formulação do artigo 3.º da convenção dos direitos da criança. v., sobre
este ponto, o caso Maumousseau e Washington c. França, acórdão de 06/12/2007, queixa n.º 25803/94.
22
sublinha o tedH que “todas as autoridades públicas estão vinculadas pela obrigação positiva
de tomar as medidas necessárias de forma a facilitar a reunião da família logo que possível. assim,
o acórdão de 10/09/2019, Strand Lobben e outros c. Noruega, queixa n.º 37283/13.

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ana Rita Gil

de ingerência devem ser temporárias e ter como fim último a reunião da família23; (7)
ainda assim, tal obrigação positiva não é absoluta, pois pode suceder que os menores
já tenham residido durante um longo período de tempo com outras pessoas, e não
possam ver esses novos laços quebrados repentinamente; (8) nessa eventualidade,
podem ser necessários preparativos para a reunificação familiar – tais preparativos
dependerão das circunstâncias específicas de cada caso e da cooperação de todos os
envolvidos; (9) em casos extremos, tais como os de violência ou negligência, o
tedH aceita a hipótese de quebra definitiva da unidade familiar, atendendo a que
esta será a única forma de proteção do interesse superior da criança.
o tedH admite uma certa margem de apreciação aos estados na matéria:
reconhece que as autoridades nacionais estão mais próximas dos factos para tomarem
as decisões que se afigurem mais adequadas, dentro das existentes no direito
interno, não tendo o tedH por função “substituir-se” àquelas para determinar
quando é necessário tomar a cargo um menor. Já no que toca, porém, às restrições
aos direitos de visita dos pais, e às garantias de manutenção dos laços familiares,
o tedH exerce um controlo mais rigoroso. neste aspeto, pois, a margem de
apreciação dos estados diminui consideravelmente.

iv. aplicando estes princípios ao caso sub judice, o tedH começou por analisar
a medida de proteção, aplicada por acordo, a 30 de março de 2012. tendo em conta
a sujeição dos menores à já referida conjuntura de violência, o tedH considerou
que a mesma se havia fundado em motivos “pertinentes” e “suficientes”.
analisou seguidamente as renovações sucessivas dessa medida. no entender
do tribunal, os motivos que justificaram a primeira renovação já se apresentavam
menos prementes, tendo em conta que a recorrente havia cumprido os compromissos
a que se havia vinculado: tinha arranjado emprego e alojamento adequado, e as
duas perícias médicas a que se havia submetido tinham afastado hipóteses de
patologia mental. o tedH considerou que a primeira renovação, fundada na
alegada falta de aptidões parentais da recorrente, se havia apoiado apenas nos tes-
temunhos do ex-companheiro da recorrente e das famílias de acolhimento. ora, estes
últimos haviam, no decurso do processo, reconhecido a sua falta de objetividade
na análise da situação, o que teria sido agravado com a deterioração das relações
com a recorrente. assim, não se poderia considerar que a renovação da medida
fora fundada em “motivos pertinentes e suficientes”. o tedH considerou que
não resultava de forma clara dos autos que confiar os menores às famílias de

23
acórdão de 27/11/1992, Olsson c. Suécia, queixa n.º 13441/87.

778
o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal

acolhimento corresponderia melhor aos interesses das crianças do que um regresso


à casa materna.
neste ponto, pois, a ingerência havia sido ilegítima. Mas note-se que a
ilegitimidade decorria, aqui, da violação de uma obrigação positiva: o estado não
tinha cumprido a obrigação positiva de reunir a família biológica logo que possível.
esta precisão não é de simples pormenor, já que a reunião faria impender sobre o
estado algo mais do que a simples abstenção de renovações das medidas. Para ser
levada a cabo de forma a respeitar plenamente os ditames do artigo 8.º, tal obrigação
positiva poderia requerer, por exemplo, uma preparação prévia das crianças, apoio
junto da mãe para as receber, entre outras medidas. note-se, aliás, que a lPcJ
prevê, no artigo 39.º, a possibilidade de medidas de apoio junto dos pais, as quais
se poderiam revelar pertinentes neste contexto.
seguidamente, o tedH analisou o regime dos direitos de visita conferidos à
recorrente. ao longo do processo, como se viu, os direitos de visita da mãe foram
diminuindo progressivamente de frequência, chegando a ser suspensos durante
longos períodos de tempo. o tedH considerou que as únicas razões para tais
suspensões que ressaltavam de forma clara dos relatórios das visitas consistiam na
animosidade entre a recorrente e as famílias de acolhimento, e as tentativas, por
parte daquela, de estabelecer contactos afetivos com os filhos que, do ponto de
vista dos profissionais, eram inadequados. tais elementos não eram suficientes
para justificar tais restrições ao direito de visita. no entender dos juízes de estrasburgo,
as entidades responsáveis pelos relatórios não haviam procedido a uma análise
global para a avaliação da situação, privilegiando as opiniões das famílias de
acolhimento, que se encontravam incompatibilizadas com a mãe. Por outro lado,
sublinhou que as autoridades nacionais nunca haviam ponderado a possibilidade
de a recorrente passar dias inteiros com os menores. assim, também neste ponto,
a ingerência na vida familiar da recorrente havia sido ilegítima.

v. Muito embora os menores não tenham sido parte do processo – o que levou
a que o tedH não analisasse o direito destes a manter uma vida familiar normal
– não deixou de tecer breves considerações sobre as posições dos mesmos. assim,
apesar de reconhecer a eventual dificuldade, por parte de qualquer das famílias de
acolhimento, em acolher simultaneamente as duas crianças, sublinhou que a
separação prolongada dos irmãos gémeos ia contra o seu interesse superior24. teria

24
v., neste contexto, o acórdão de 10/04/2021, Pontes c. Portugal, queixa n.º 19554/09 e o acórdão
de 25/02/2020, Y.I. c. Rússia, queixa n.º 68868/14.

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ana Rita Gil

sido interessante saber o ponto de vista do tedH sobre uma potencial violação do
artigo 8.º, agora na perspetiva dos menores envolvidos. de facto, a necessidade de
respeito pela convivência familiar entre os irmãos tem sido também tida como
essencial para uma garantia plena do artigo 8.º25. neste ponto, é importante referir
a decisão no já citado caso Olsson c. Suécia, pelas inegáveis semelhanças com o caso
presente. naquele, também as autoridades estaduais haviam colocado dois irmãos
em famílias de acolhimento separadas, a uma distância significativa uma da outra,
bem como dos respetivos progenitores. embora não se possa transpor estas considerações
de forma acrítica para o caso em presença, já que as crianças aqui foram acolhidas
junto de seus familiares, o tedH poderia ter analisado se o estado poderia ter
procurado e optado por medidas alternativas que evitassem a separação da fratria26.

6. A decisão no contexto da jurisprudência do TEDH sobre o direito


a um processo justo na matéria
i. o tedH entendeu analisar as alegações de violação do direito a um processo
equitativo (garantido no artigo 6.º da cedH) também à luz do artigo 8.º da
convenção. na maior parte dos casos de ingerência da vida familiar em que se
levantam também questões processuais, o tedH realiza um juízo alicerçado si-
multaneamente no artigo 8.º e no artigo 6.º27. no caso Assunção Esteves c. Portugal28,
o tribunal sublinhou que, “se o artigo 8.º não consagra expressamente regras
processuais, o processo decisório que decrete medidas de ingerência deve ser
equitativo e adequado a fazer respeitar os interesses protegidos por esta disposição.
cabe, assim, determinar, em função das circunstâncias de cada caso e, especialmente,
em função da gravidade das medidas a adotar, se os pais puderam desempenhar
no processo decisório, considerado no seu conjunto, um papel suficientemente
relevante que lhes garante a proteção que os seus interesses exigiam”.
no caso em presença, porém, o tedH analisou as questões processuais logo
à luz do respeito pelo artigo 8.º, pelo que depois considerou desnecessário proceder
a um novo escrutínio agora à luz do artigo 6.º. subjacente a esta opção está a

25
assim, v. o acórdão de 06/04/2010, Mustafa e Armagan c. Turquia, queixa n.º 24014/05.
26
assim, em sentido semelhante, o caso Wallová e Walla c. República Checa, decidido no acórdão
de 26/10/2006, queixa n.º 23848/04.
27
sobre a jurisprudência do tedH em matéria do direito a um processo equitativo à luz do artigo
6.º da cedH v. MaRco caRvalHo Gonçalves, “direito a um Processo equitativo e Público”,
aa.vv., Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos..., cit., pp. 931-964 e, na mesma
obra, MaRia benedita uRbano, “duração excessiva do Processo”, pp. 965-979.
28
acórdão de 31/01/2021, queixa n.º 61226/08.

780
o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal

convicção de que a plena realização dos direitos substanciais pressupõe o estabelecimento


de condições para que os indivíduos os possam realizar29: compete a cada estado
contratante dotar-se de um arsenal jurídico adequado e suficiente para assegurar
o respeito pelas obrigações positivas que lhe incumbem em virtude do artigo 8.º
da convenção. ora, um elemento desse “arsenal” é a garantia de processo justo,
equitativo e efetivo que permita os familiares efetivarem os seus direitos.
neste contexto, o tedH exige que os tribunais nacionais levem a cabo “uma
análise aprofundada de toda a situação familiar e de todos os elementos de ordem
factual, afetiva, psicológica, material e médica”, e procedam a uma “apreciação
equilibrada e razoável dos interesses respetivos”. caso o tedH verifique que os
requisitos procedimentais acabados de expor não se encontram cumpridos, considera
que a ingerência na vida familiar não cumpre o critério da “necessidade”30. este
critério assume assim, duas vertentes: não só a vertente substantiva, reportada ao
equilíbrio/balanço que as autoridades devem levar a cabo no momento de ponderar
os vários interesses em presença, mas também numa perspetiva procedimental, no
sentido de saber se foram garantidas às partes as condições para levarem ao conhe-
cimento do tribunal os seus interesses de forma equitativa.
Por fim, o processo decisório deve ser célere. o tedH tem sublinhado que,
nos casos respeitantes a interrupção dos laços familiares, a passagem do tempo é
um fator determinante para a reposição da união familiar. neste particular, tem
referido precisamente que um processo longo e demorado pode potenciar a rutura
definitiva dos laços com um filho muito jovem. em alguns casos, isso pode levar
a um verdadeiro “facto consumado”, em que, por exemplo, seja já impossível alterar
o regime de guarda, por se terem consolidados outros laços afetivos31.

ii. ora, a recorrente alegava também, como se viu, a violação do direito a um


processo justo. em primeiro lugar, os juízes de estrasburgo consideraram que a
separação dos processos em dois tribunais havia levado a que se tivessem proferido
decisões divergentes acerca dos direitos de visita da mãe em relação a cada um dos
menores. isso impediu ainda que se pudesse levar a cabo um exame aprofundado
acerca da situação familiar como um todo, e de forma a ter em conta os interesses
de todas as pessoas envolvidas.

29
o tedH tem sublinhado a importância do direito ao procedimento como meio de garantir e
efetivar direitos fundamentais substanciais previstos na cedH. v. inter alia, a decisão de 24/04/2008,
C.G. e outros c. Bulgária, queixa n.º 1365/07.
30
assim, também, o acórdão de 08/07/1987, W. c. Reino Unido, queixa n.º 9749/82.
31
acórdão de 6/96/2003, Maire c. Portugal, queixa n.º 48206/992.

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ana Rita Gil

em segundo lugar, o tribunal analisou os elementos de prova usados. contrariamente


à opinião da mãe, aceitou que a falta de audição dos menores seria justificada, tendo
em conta a idade dos mesmos. Mas ainda assim, sublinhou que tal falta de audição
poderia ter sido suplantada através da produção de relatórios de peritos, destinados
a averiguar a opinião das crianças. ora, não tinha existido, nem tinha sido pedido,
qualquer relatório sobre a situação psicológica dos filhos, ainda que os mesmos de-
monstrassem sinais de sofrimento. Mais considerou não terem sido suficientes, neste
contexto, os relatórios sociais apresentados, já que estes se limitavam a demonstrar
que as crianças se encontravam bem enquadradas nas famílias de acolhimento, mas
não precisavam a perceção que os menores tinham da mãe.
em terceiro lugar, o tedH assinalou que, desde a aplicação da medida de
proteção de 30 de março de 2012, as responsabilidades parentais sobre os menores
ainda não se encontravam estabelecidas, tendo ainda havido demoras excessivas nos
procedimentos de determinação e reposição de visitas. o tedH reconheceu que,
neste tipo de procedimentos, era necessário agir com prudência, de forma a não
precipitar uma aproximação que pudesse pôr em causa a proteção das crianças. no
entanto, no presente caso, a passagem do tempo havia acabado por afastar a possibilidade
de regresso à casa materna, e uma rutura profunda dos laços familiares entre a recorrente
e os filhos32. Face ao exposto, o tedH concluiu que o processo decisório, tido no
seu conjunto, não satisfizera as garantias procedimentais exigidas pela convenção.
neste juízo incluiu não só as renovações sucessivas das medidas de promoção e proteção,
bem como as decisões de fixação provisória das responsabilidades parentais.

7. Enquadramento do caso no contexto de outras condenações do


Estado Português na matéria
i. o presente acórdão não representou a primeira condenação do estado Português
na matéria. de facto, foram já vários os casos em que o tribunal de estrasburgo
censurou medidas estaduais de ingerência na vida familiar: desde logo, sobre decisões
respeitantes à regulação das responsabilidades parentais em caso de divórcio33.

32
v. acórdão de 12/07/2001, K. e T. c. Finlândia, queixa n.º 25702/94.
33
Para um panorama desta jurisprudência, v. ana Rita Gil, “a convivência Familiar nos casos
de Regulação e exercício das Responsabilidades Parentais à luz da Jurisprudência do tribunal
europeu dos direitos Humanos”, Revista do Ministério Público, n.º 53, Jan-Mar. 2018, pp. 61-91.
v., em particular, o muito citado acórdão de 21/12/1999, Salgueiro da Silva Mouta c. Portugal,
queixa n.º 33290/96. neste caso, Portugal foi condenado por ter decidido sobre a atribuição da
guarda e responsabilidades parentais com fundamento na orientação sexual do pai.

782
o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal

ultimamente, porém, o tedH proferiu algumas condenações importantes


em matéria de aplicação de medidas de promoção e proteção a crianças em perigo,
que deveriam ter levado a reponderar a prática de aplicação das mesmas. o primeiro
caso digno de nota foi o caso Pontes c. Portugal, que levou à condenação do estado
numa situação muito semelhante da ora em anotação. neste caso, foi aplicada a
um menor uma medida de encaminhamento para adoção, em conjugação com
restrições de contactos entre os recorrentes e o filho. os juízes de estrasburgo
decidiram, por unanimidade, que tais restrições constituíam uma ingerência
ilegítima na vida familiar dos recorrentes.
ao caso Pontes seguiu-se o caso Soares de Melo c. Portugal34. este foi igualmente
impressivo, já que também respeitou à aplicação de medida de confiança a instituição
com vista à adoção. tal medida implicava a rutura dos laços da recorrente com os
filhos de forma definitiva, e tão pouco permitia a existência de quaisquer contactos
com as crianças. o tedH considerou que a medida não era “necessária numa
sociedade democrática”, atendendo, sobretudo, ao fim visado de proteção dos
menores. não havendo um contexto de violência ou abuso, e existindo, pelo
contrário, laços afetivos muito fortes a unir a família, o tedH concluiu pela
inexistência de um equilíbrio adequado entre os interesses em presença. assinalou
ainda não terem as autoridades ponderado a aplicação de medidas menos gravosas,
como o acolhimento familiar ou institucional35.

ii. Foram também já vários os casos em que o tedH condenou Portugal por
violação do artigo 8.º na vertente adjetiva. na maior parte destes casos esteve em
causa a demora excessiva do processo – ponto que é especialmente valorizado de
forma negativa pelo tedH, tendo em conta os efeitos do tempo na deterioração
dos laços familiares. assim, no caso Santos Nunes c. Portugal36, o tedH censurou
que a execução de uma sentença, que havia atribuído a titularidade do exercício
das responsabilidades parentais ao pai biológico, apenas tivesse sido executada
quatro anos e meio depois da sua prolação37. uma condenação semelhante foi feita
no caso Reigado Ramos c. Portugal, em que o tribunal censurou a falta de medidas

34
acórdão de 16/02/2016, queixa n.º 72850/14.
35
o caso apresentava ainda conteúdos igualmente complexos, que não cabe aqui explorar, por
remeterem para outros princípios, como seja o facto de a decisão das autoridades nacionais ter
também tido como fundamento o facto de a recorrente não ter cumprido compromisso de se
submeter a esterilização por laqueação de trompas.
36
acórdão de 22/05/2012, queixa n.º 61173/08.
37
acórdão de 22/05/2012, queixa n.º 61173/08.

RFdul-llR, lXii (2021) 2, 765-790 783


ana Rita Gil

destinadas a garantir ao recorrente o exercício de direitos de visita aos filhos menores,


confiados à mãe na sequência de divórcio, perante a recusa desta em permitir tais
contactos38. o tribunal considerou que as entidades tinham levado a cabo apenas
“uma série de medidas automáticas e estereotipadas”, o que contribuiu para acarretar
a consolidação de uma situação de facto violadora da decisão judicial interna.
Por fim, no caso Assunção Esteves c. Portugal, o tedH condenou também o
estado Português por violação do direito a um processo equitativo no contexto
da aplicação judicial de medida de confiança a instituição com vista a futura
adoção39. no caso, o recorrente pai do menor não havia estado presente na leitura
da sentença, não estivera representado por advogado ao longo do processo, e apenas
dispusera de um prazo de dez dias para recorrer. o tedH valorou ainda a com-
plexidade do processo, “não apenas em razão das questões jurídicas que é chamado
a dirimir, mas também pelas consequências extremamente graves e delicadas que
dele decorrem tanto para a criança como para os pais”.
os casos mais censuráveis em matéria de duração excessiva dos processos, por
levarem à consolidação de uma situação ilegal que constitui prática de crime, cons-
tituem, porém, os de rapto internacional de crianças40. o estado Português foi já
condenado várias vezes por demora nos processos de regresso de crianças raptadas
para Portugal e sua devolução ao progenitor no país de origem. trata-se aqui,
talvez, dos casos em que a demora de execução mais poderá implicar o risco de
danos irreparáveis na relação familiar, por se entender que, não só face à ligação
da criança com o progenitor culpado, como também devido à sua integração no
novo país, o seu superior interesse poderá já não corresponder ao seu regresso para
o país de origem41.

iii. Finalmente, no caso Soares de Melo, foi a natureza não equitativa do


processo a ser censurada: nem sempre fora garantido advogado à recorrente e – tal
como no caso em presença – não se havia determinado a sujeição das crianças a
perícia psicológica. Por outro lado, demonstrou-se não terem sido ponderados os

38
acórdão de 22/11/2005, queixa n.º 73229/01.
39
acórdão de 31/01/2021, queixa n.º 61226/08.
40
sobre este ponto v. ana Rita Gil, “a convivência Familiar...”, cit., p. 59 e ss.
41
são vários os casos em que a condenação do estado Português se fundou em tal demora: o caso
Maire c. Portugal (acórdão de 26/06/2003, queixa n.º 48206/99) talvez seja o mais impressivo:
neste caso, as autoridades portuguesas demoraram mais de quatro anos, após o pedido apresentado
pela autoridade central francesa, para localizar a criança. v. ainda o acórdão 01/02/2011, Dore
c. Portugal, queixa n.º 775/08 e acórdão de 01/02/2011, Karoussiotis c. Portugal, queixa n.º
23205/08.

784
o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal

elementos trazidos ao processo pela recorrente, tendo os recursos apresentados


sido decididos de forma meramente formal42.

8. Os efeitos da decisão e sua projeção nos processos em curso e na


prevenção de condenações futuras
i. importa agora problematizar quais poderão ser os efeitos da decisão nos
processos relativos aos menores ainda em curso nos tribunais portugueses.
sublinharemos, depois, a necessidade de se retirarem algumas ilações da presente
condenação para o futuro.
como se viu, o caso chegou ao tedH após a cessação das medidas de promoção
e proteção – e depois de, no âmbito dos processos respetivos, terem sido deduzidos
recursos para o tribunal da Relação. deu-se, assim, como cumprido o pressuposto
de esgotamento dos meios internos de recurso. o objeto do recurso era, em bom
rigor, apenas a aplicação e regime das medidas de promoção e proteção de acolhimento
junto de outro familiar. no entanto, o tedH não se coibiu de tecer algumas con-
siderações sobre o novo processo que então corria termos nos tribunais portugueses:
o da regulação das responsabilidades parentais relativas aos dois menores. estas
apenas se encontravam estabelecidas de forma provisória à data da decisão. no
entanto, são várias as passagens do acórdão em que os factos ocorridos já no
decurso desses processos são tidos em conta – em particular, no que toca à continuação
de restrição das visitas. senão vejamos:

131. La requérante allègue qu’elle n’a revu son fils que le 4 janvier 2020 (...), ce
que ne conteste pas le Gouvernement. 132. En ce qui concerne T., la Cour relève (...) Si
le droit de visite a été rétabli le 13 octobre 2016 (...) à raison d’une rencontre par mois,
il a été interrompu le 23 février 2017 en raison du retrait de l’association qui était chargée
des rencontres médiatisées (...), puis suspendu de nouveau par décision du tribunal de

42
na sequência de recurso interposto também junto do tribunal constitucional, este julgou in-
constitucional, por violação do artigo 20, n.º 1 e 4 da constituição, a interpretação normativa
extraída do artigo 685.º, n.º 2, do código de Processo civil, aplicável subsidiariamente por força
do disposto no artigo 126.º da lei de Proteção de crianças e Jovens em Perigo, segundo a qual a
contagem do prazo para recorrer de decisão judicial que aplique a medida de promoção e proteção
de confiança de menores a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura
adoção prevista naquela lei tem início a partir do dia da respetiva leitura, desde que a ela tenham
assistido os interessados, mesmo quando não tenham advogado constituído no processo nem lhes
seja facultada no dia da leitura da decisão uma cópia da mesma por eles requerida. cf. acórdão
243/2013, de 10/05/2013. Para um comentário a esta decisão, v. JoRGe duaRte PinHeiRo, “caso
liliana Melo”, in Estudos de Direito da Família e das Crianças, aaFdl, 2015, pp. 383-388.

RFdul-llR, lXii (2021) 2, 765-790 785


ana Rita Gil

Sintra le 17 octobre 2017 au motif que ces rencontres déstabilisaient T. (...). Il ressort du
dossier que les rencontres entre la requérante et son fils T. ont repris, avec également la
participation de D., le 4 janvier 2020 (...).

o tedH chega, depois, a tecer um juízo sobre a legitimidade das suspensões


de visitas:

133. La Cour note que, pour fonder la suspension du droit de visite de la requérante
vis-à-vis de son fils T., le tribunal de Sintra s’est référé à un rapport social de l’ECJ de
Sintra du 30 août 2017 (...). Celui-ci n’explique toutefois pas en quoi les rencontres avec
la requérante déstabilisaient l’enfant T. (...), d’autant que la dernière reencontre avec T.
remontait à février 2017.

Julgamos que, com as referências acabadas de expor, o tedH poderá apenas


ter tido a finalidade de ilustrar, com mais dados, a intensidade e atualidade da
privação dos contactos familiares. elas não são – nem poderiam ser – elementos
determinantes para a condenação do estado Português neste caso. ainda assim,
elas poderão dar pistas sobre aquela que deverá ser a forma de garantir o direito à
unidade familiar no processo de regulação das responsabilidades parentais em
curso, e de evitar repetir as mesmas violações. Poderemos falar, aqui, de um efeito
mediato, ou consequente, do acórdão em análise. Mas para isso importa tecer
algumas considerações sobre os efeitos das decisões do tedH.

ii. do dispositivo do aresto em análise resulta apenas que o estado Português


ficou condenado a pagar à recorrente-mãe uma indemnização de 15.000 euR por
danos morais, bem como a quantia de 19.663,83 euR por taxas e despesas com o
processo, nos termos do artigo 44.º n.º 2 da convenção. não é mencionada qualquer
condenação destinada a alterar a situação factual e a repor o convívio familiar.
decorre do artigo 41.º da cedH que, caso considere ter existido uma violação
da convenção, o tribunal aprecia se existem meios no direito interno para reparar
a mesma (restituto in integrum). no entanto, se tal não for possível, o tribunal
atribuirá à parte lesada uma reparação razoável, se necessário43. no caso presente,
o tedH considerou ter existido privação ilegítima dos contactos da recorrente

43
sobre os efeitos das decisões prolatadas pelo tedH, v., por todos, Rui GueRRa da Fonseca,
“acórdãos e decisões e os respetivos efeitos”, in aa.vv., Comentário da Convenção Europeia dos
Direitos Humanos e dos Protocolos Adicionais, vol. iii, universidade católica editora, 2020, p. 3149
e ss.

786
o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal

com os filhos durante os processos de promoção e proteção. ora, no que toca à


privação desses contactos, a restitutio in integrum era, naturalmente, impossível,
por já terem ocorrido no passado. sendo o objeto do acórdão a violação do artigo
8.º durante tal processo, não poderia, pois, o tedH ter condenado o estado em
nada mais do que na referida indemnização.
no entanto, é pacífico que os efeitos das sentenças do tedH se projetam
para lá da letra das condenações feitas a cada estado no caso concreto. o tribunal
vela pelo cumprimento da cedH, e, nessa tarefa, interpreta a mesma, esclarecendo
de que forma devem os estados agir para a cumprirem plenamente. o princípio
pacta sunt servanda exige aos estados o respeito pela convenção, integralmente e
de boa-fé, pelo que devem seguir as pistas assim dadas pelo tedH para evitar
violações. tanto assim é que os estados-Parte deverão ter em atenção todas as
decisões proferidas, tenham ou não sido parte no processo: tais decisões ilustram de
que forma deverão, eles também, pautar a sua atuação de modo a conformarem-na
plenamente com a convenção.
assim, tem-se referido que as decisões do tedH implicam três tipos de efeitos:
a reparação do dano, a cessação da violação e a prevenção de violações futuras. os
primeiros dois efeitos dizem respeito ao caso concreto. Já o último diz respeito a
situações gerais futuras: o estado sabe agora que determinada atuação viola a cedH
pelo que deverá abster-se de repetir atuações semelhantes em casos futuros.
do que se acabou de dizer, pode concluir-se que o respeito pelas decisões do
tedH pode ser mais amplo do que a simples execução do acórdão condenatório.
tais decisões terão, por assim dizer, um efeito imediato, consistente na execução
da decisão, mas também efeitos mediatos: a cessação da violação naquele caso para
o futuro, e a prevenção de violações gerais futuras.

iii. o tedH tem evitado especificar que medidas devem os estados adotar
para cumprir as suas decisões nas dimensões referidas44. Para tal contribui o

44
assim o referiu o tedH no caso Airey c. Holanda: it is not the Court’s function to indicate, let
alone dictate, which measures should be taken. cf. acórdão de 09/10/1979, queixa n.º 6289/73.
como refere Rui GueRRa da Fonseca, a determinação de medidas particulares tem um caráter
excecional, ocorrendo somente em casos em que o tedH identifica apenas uma atuação possível
para obviar à continuidade da violação. cf. “acórdãos e decisões...”, cit., p. 3164. tem-se assistido,
porém, à prolação crescente dos chamados “acórdãos piloto” ou “quase piloto”, em que o tedH
aponta para a necessidade de os estados adotarem medidas gerais na esfera interna para se conformarem
plenamente com o conteúdo da convenção. tais medidas poderão consistir na alteração de legislação,
de práticas administrativas ou de condições materiais. sobre os julgamentos piloto, v. JaKub cZePeK,
“the application of the Pilot Judgment Procedure and other Forms of Handling large-scale –

RFdul-llR, lXii (2021) 2, 765-790 787


ana Rita Gil

reconhecimento de que os estados dispõem de margem de apreciação para escolher


os meios de direito interno que melhor responderão à obrigação de respeito pleno
pela decisão45. a doutrina tem referido, de forma impressiva, que a condenação
do tedH se traduz numa “obrigação de resultados”, tendo os estados liberdade
para escolher os meios para a levar a cabo46.
assim, se é possível a restitutio in integrum, normalmente é deixado ao estado
a liberdade de escolher os meios para o efeito – os quais, em caso de decisões ju-
risdicionais, poderão implicar uma revisão da sentença nacional por força de
acórdão do tedH47.
se assim sucede no que toca ao efeito reparador para o caso decidido, por
maioria de razão se coíbe o tedH de especificar as medidas concretas a serem
levadas a cabo para cessar a violação para o futuro ou para prevenir futuras violações.
estas deverão, porém, ser retiradas da fundamentação do aresto – pois foi aí que
o tedH especificou o porquê da violação já ocorrida.

iv. as considerações tecidas devem agora ser transpostas para o caso presente.
como se viu, o estado Português foi condenado por violação do artigo 8.º por
três razões: (1) por não ter cumprido a obrigação positiva que lhe cabia, de reunir
a família biológica logo que possível, ao proceder a renovações sucessivas e infundadas
das medidas de promoção e proteção aplicadas aos menores, (2) por ter restringido

dysfunctions in the case law of the european court of Human Rights”, International Community
Law Review, 20 (2018), pp. 347-373.
45
sobre este ponto, v. aRMando RocHa, Contencioso dos Direitos do Homem no Espaço Europeu,
universidade católica, 2010, p. 164. tal deferência justifica-se não só pela soberania dos estados,
mas ainda pelo princípio da subsidiariedade, tendo em conta que os estados estão melhor posicionados
para escolher, dentro das medidas previstas no seu ordenamento jurídico, qual aquela que melhor
se coaduna com o respeito pelas obrigações derivadas da condenação. como bem aponta Rui
GueRRa da Fonseca, “tais medidas podem ser de âmbito geral ou concreto, e implicar indiferen-
ciadamente (da perspetiva do tedH) a intervenção de qualquer uma das funções do estado,
conjunta ou disjuntivamente”. v. “acórdãos e sentenças...”, cit., p. 3173.
46
aRMando RocHa, op. cit., p. 167 e FiliPa aRaGão HoMeM, O Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos e o Sistema de Proteção de Direitos Fundamentais, almedina, 2019, p. 35.
47
aRMando RocHa, Contencioso dos Direitos do Homem, cit., 171. e ainda nuno PiçaRRa, “Recurso
de Revisão de «decisões inconciliáveis»: com a convenção europeia dos direitos do Homem –
anotação ao acórdão do tca norte de 8.7.2011”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 92,
Março/abril, 2012, pp. 49-65. v., contudo, quanto a este ponto, o acórdão proferido a 11.07.2017
no caso Moreira Ferreira c. Portugal, queixa n.º 19867/12. o código do Processo civil prevê, desde
2007, o recurso de revisão de decisão transitada em julgado quando “inconciliável com decisão
definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa do estado português” (artigo 696.º,
alínea f )). o mesmo dispõe o artigo 449.º, n.º 1, alínea g) do código de Processo Penal.

788
o caso Neves Caratão Pinto c. Portugal

de forma desproporcionada os direitos de visita da recorrente e, finalmente, (3)


por não ter garantido um processo justo e célere. será da fundamentação decorrente
destes juízos que se deverão retirar os efeitos “mediatos” da decisão – quer para a
continuação da regulação desta situação familiar, quer para futuros casos.
em relação ao primeiro ponto, cremos que as considerações tecidas em relação
ao processo de promoção e proteção deverão ser tidas em conta no processo em
curso de regulação das responsabilidades parentais. lembre-se, aliás, que o tedH
se referiu ao regime de visitas que já estava a ser concretizado nesse processo –
ilustrando que a privação dos contactos se mantinha. assim, o efeito da decisão
referente à cessação da ingerência ilegítima na vida familiar da recorrente deverá
repercutir-se necessariamente no novo processo que substituiu o anterior: aí, o estado
Português tem de abster-se de continuar a desrespeitar o artigo 8.º da cedH nos
moldes em que o fez no processo de promoção e proteção – quer na vertente
substantiva, quer na vertente adjetiva.
no que toca à vertente substantiva, o dever de cessação da violação do artigo
8.º da cedH exige que o estado cumpra agora a obrigação positiva de promover a
reunião da família. uma interpretação absoluta desta obrigação, porém, poderia
levar a que se defendesse o retorno puro e simples das crianças à casa materna. no
entanto, como resulta da jurisprudência acima exposta, o interesse superior da
criança deverá ser a consideração primordial nos casos de rutura da vida familiar.
assim, poder-se-ia chegar à conclusão que, no momento presente, face ao tempo
decorrido e à integração dos menores nas famílias de acolhimento, tal interesse
opor-se-ia a uma medida desse tipo.
a conclusão diferente se poderia chegar no que toca à reposição dos contactos
familiares através dos direitos de visita da mãe. se é verdade que o tedH não pôs
em causa que as crianças pudessem estar agora plenamente integradas no novo lar,
sublinhou várias vezes que os fundamentos para a suspensão das visitas não haviam
sido suficientes. Parece-nos claro, pois, que a única interpretação defensável de
cessação da violação do artigo 8.º da cedH consiste na obrigação positiva de
promover os contactos através da garantia de um direito de visita à recorrente.
importa aqui relembrar, porém, que o tedH tem afirmado que o cumprimento
de uma obrigação positiva deste tipo deverá ser feito gradualmente, o que poderá
exigir medidas de preparação prévia dos reencontros familiares. o que o estado
não pode fazer é persistir numa inércia ou contribuir infundadamente para uma
persistência – e agravamento – da violação do artigo 8.º, através da contínua
interrupção ou suspensão dos direitos de visita da recorrente.
no que respeita à dimensão processual da violação do artigo 8.º da cedH,
a cessação da mesma deverá projetar-se também no respeito à vida familiar através

RFdul-llR, lXii (2021) 2, 765-790 789


ana Rita Gil

do processo que ora corre termos. no processo de regulação das responsabilidades


parentais não deverá o estado-juiz persistir nas atuações censuradas pelo tedH
no presente aresto. neste particular, o tedH censurou o estado por ter tido quase
exclusivamente em consideração as opiniões das famílias de acolhimento – assumidas
como parciais –, bem como o facto de não ter existido, ou sido pedido, qualquer
relatório sobre a situação psicológica das crianças ou sobre “a perceção que os
menores tinham da mãe”. não pode o estado-juiz deixar de ter em conta estes
fatores para futuras decisões no que toca à vida familiar em causa.
importa referir que a execução do acórdão é supervisionada pelo comité de
Ministros. nos termos do artigo 46.º, se este considerar que uma alta Parte
contratante se recusa a respeitar uma sentença definitiva, poderá, por decisão
tomada por maioria de dois terços, submeter à apreciação do tribunal a questão
sobre o cumprimento. se o tribunal constatar que houve violação do n° 1, devolverá
o assunto ao comité de Ministros para fins de apreciação das medidas a tomar. o
Protocolo n.º 14 veio permitir ao comité de Ministros submeter ao tedH pedidos
relativos à interpretação de acórdãos, bem como iniciar, oficiosamente, um processo
contra um estado em caso de recusa em executar o acórdão.

v. Resta, por fim, tecer algumas considerações relativas à prevenção de violações


futuras da convenção. tais considerações afiguram-se sempre difíceis de levar a
cabo nos casos em que as condenações se processaram tendo em conta os contornos
específicos de casos concretos, sobretudo quando estão em causa ponderações ju-
risdicionais profundamente casuísticas. um caso como o presente é irrepetível nos
seus contornos e ponderações. no entanto, tendo em conta o enquadramento do
mesmo no contexto de outras condenações do estado Português, importa que as
autoridades atentem de forma particularmente cuidadosa na jurisprudência muito
assertiva do tedH, que sublinha continuamente que apenas em “circunstâncias
muito excecionais” pode o estado proceder a uma rutura dos laços familiares, re-
lembrando sempre, porém, a prevalência do interesse superior da criança. este e
outros acórdãos ilustram a necessidade de se proceder a uma ponderação mais
equilibrada destes dois interesses. isso importa não só uma avaliação objetiva,
cuidada, imparcial e completa dos interesses das crianças, mas ainda a tomada em
consideração do direito à vida familiar dos progenitores. apenas em último caso
se deverá proceder à rutura dos laços que unem os dois.

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