Pedro Romano Martinez
Pedro Romano Martinez
Pedro Romano Martinez
DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Periodicidade Semestral
Vol. LXI (2020) 2
COMISSÃO CIENTÍFICA
DIRETOR
M. Januário da Costa Gomes
COMISSÃO DE REDAÇÃO
Pedro Infante Mota
Catarina Monteiro Pires
Rui Tavares Lanceiro
Francisco Rodrigues Rocha
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
Guilherme Grillo
PROPRIEDADE E SECRETARIADO
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade – 1649-014 Lisboa – Portugal
ESTUDOS DE ABERTURA
Pierluigi Chiassoni
53-78 Common Law Positivism Through Civil Law Eyes
ESTUDOS DOUTRINAIS
Alfredo Calderale
81-119 The Forest Law e The Charter of the Forest ai tempi di enrico iii Plantageneto
The Charter of the Forest at the time of Henry III Plantagenet
Catarina Salgado
181-203 breves notas sobre a arbitragem em linha
Brief notes on online arbitration
3
Francisco Rodrigues Rocha
289-316 seguro desportivo. cobertura de danos não patrimoniais?
Sports insurance. Non-financial losses cover?
Georges Martyn
317-346 o juiz e as fontes formais do direito: de “servo” a “senhor”? a experiência belga (séculos
XiX-XXi)
The judge and the formal sources of law: from “slave” to “master”? The belgian experience (19th-21th
centuries)
Ino Augsberg
385-414 Concepts of Legal Control and the Distribution of Knowledge in the Administrative Field
Miguel Patrício
447-477 análise económica do Risco aplicada à actividade seguradora
Economic Analysis of Risk applied to the Insurance Activity
4
Pedro Romano Martinez
583-607 diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
Different ways to pursuit justice in the application of the Law
Rui Pinto
629-646 oportunidade processual de interposição de apelação à luz do artigo 644.º cPc
The timing for filing an appeal under the art. 644 of Portuguese Civil Procedure Code
Rute Saraiva
647-681 a interpretação no momento ambiental
Interpretation in the environmental moment
JURISPRUDÊNCIA CRÍTICA
5
Gonçalo Sampaio e Mello
743-751 em torno das salas-Museu da Faculdade de direito de lisboa – “sala Professor Marcello
caetano” e “sala Professor Paulo cunha”
On The Museum-Chambers of the Law School of the University of Lisbon – Professor Marcello Caetano
and Professor Paulo Cunha Chambers
Isabel Graes
775-782 Recensão à obra Inamovilidad, interinidad e inestabilidad, de Pedro ortego Gil
José Lamego
783-784 Recensão à obra Hans Kelsen. Biographie eines Rechtswissenschaftlers, de thomas olechowski
6
Diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação
do direito
Different ways to pursuit justice in the application of the
Law
Resumo: o texto encontra-se estruturado Abstract: this text is divided in four parts:
em quatro partes: i. o direito e a sua apli- i. the law and its application, ii. Pursuit
cação, ii. Prossecução da justiça na aplicação of justice in the application of the law, iii.
do direito, iii. decisão segundo a equidade decision according to equity and iv. Justice
e iv. Justiça na solução do caso concreto, a in the solution to each case.
que se seguem conclusões. briefly, after restating that the law is, si-
sinteticamente, depois de reiterar que o multaneously, an art and a science, that has
direito é, simultaneamente, uma arte e as premise its application, as it is not spec-
uma ciência, que tem como pressuposto ulative, and in that need for application,
a sua aplicação, pois não é especulativo, e the law is comparable to music, that needs
nessa necessidade de aplicação, o direito to be played.
é comparável com a música, que tem de the law has several ways of protection and
ser tocada. its application is not limited to the courts.
o direito tem diferentes modos de tutela the law, as discipline of the life, is applied
jurídica e a sua aplicação não se circunscreve in the daily life, spontaneously, by each per-
aos tribunais. o direito, como ordem da son. the law was designed to solve people’s
vida, é aplicado no dia-a-dia, espontanea- problems, being the people the subjects of
mente, por cada sujeito. o direito foi pensado the laws.
para resolver os problemas das pessoas, os the law pursuits justice. and to under-
destinatários das normas. stand this purpose of the law one must
*
Professor catedrático da Faculdade de direito da universidade de lisboa e académico
correspondente da academia das ciências de lisboa.
o presente estudo corresponde ao texto escrito da comunicação apresentada pelo autor na academia
das ciências de lisboa, no dia 9 de Janeiro de 2020.
Full Professor of the school of law of the university of lisbon and correspondent academic of
the academy of sciences of lisbon.
the present article corresponds to the written text of the communication presented by the author
in the academy of sciences of lisbon, on the 9th of January of 2020.
o direito prossegue a justiça. e para se com- address the justice in aristoteles (Politics).
preender esta finalidade do direito importa the elements that concretize justice are:
atender à justiça em aristóteles (A Política). equality, proportionality, impartiality and
sendo elementos concretizadores da justiça: a legal certainty. legal certainty is comple-
igualdade, a proporcionalidade, a imparcialidade mentary to justice in the application of
e a segurança jurídica. a segurança jurídica the law.
complementa a justiça na aplicação do direito. in the pursuit of justice, under certain
na prossecução da justiça, em determinadas circumstances, the decision may be taken
circunstâncias, pode a decisão ser tomada according to equity. equity is understood
segundo a equidade. entende-se o juízo de as a way to apply the law, as long as one
equidade como um modo de aplicar o direito, assumes that equity is not arbitrariness nor
porquanto se parte do pressuposto de que a decision against the law. equity is a just
a equidade não é arbítrio nem decisão contra decision based on legal criteria, that may
o direito. a equidade é uma decisão justa eventually be moulded according to other
assente em critérios jurídicos, que pode even- criteria, such as moral, economical, etc.
tualmente ser moldada em função de outros Frequently, the application of the law, pur-
critérios, morais, económicos, etc. suing justice, follows other routes, such as
não raras vezes, a aplicação do direito, pros- the legal topic or judicial activism. However,
seguindo a justiça, segue outras vias, como if, by any way, the application of the law
a tópica ou o activismo judicial. Mas se, por is contra legem, jeopardising legal certainty,
qualquer via, a aplicação do direito for contra justice is not achieved. examples are men-
legem, pondo em causa a segurança jurídica, tioned where the courts, deciding according
não se prossegue a justiça. são mencionados to personal convictions of the judge, have
vários exemplos em que os tribunais, deci- taken unjust decisions.
dindo segundo convicções pessoais do juiz, Without certainty and certainty in the ap-
proferem decisões injustas. plication of the law, justice is not pursued.
sem haver segurança e certeza na aplicação Keywords: application of the law, justice,
do direito não se prossegue a justiça. legal certainty.
Palavras chave: aplicação do direito, justiça,
segurança jurídica.
584
diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
o direito foi pensado para resolver problemas das pessoas, não de animais ou
de coisas. sem prejuízo de, por vezes, em legislação recente, surgirem soluções
bizarras que parecem tutelar mais os animais do que as pessoas – vd. o caso dos
danos patrimoniais e não patrimoniais, artigos 496.º e 493.º-a do cc1 – está
sempre em causa a tutela das pessoas, sendo que os sujeitos de direito são necessariamente
pessoas (singulares ou colectivas). indirectamente e por causa das pessoas, tutela-se
o ambiente – e com ele, as árvores, os rios ou o ar que se respira –, assim como os
animais. Mas, em qualquer caso, o direito tem em vista a resolução dos problemas
decorrentes da vida das pessoas em sociedade.
neste seu desiderato, o direito visa a solução de problemas práticos das pessoas;
o direito não é especulativo, ainda que no seu estudo e ponderação de soluções
haja que recorrer à imaginação. as decisões jurídicas pretendem ser pragmáticas,
apesar de se poder especular, mormente no plano da política legislativa, diferentes
soluções.
nesta perspectiva, o direito implica a sua aplicação; existe para se aplicar,
resolvendo os problemas concretos das pessoas.
além de, com ulpiano, se poder afirmar que o direito é uma arte que prossegue
a justiça2, sem a prossecução da justiça, haverá terrorismo, arbítrio, não se podendo
concluir pela existência de direito. a designada «lei do mais forte» é a condenação
do direito. como dizia santo agostinho (A Cidade de Deus), sem justiça, os reinos
são bandos de ladrões. só há direito numa ordem jurídica que prossiga a justiça,
aplicando-a.
tal como o direito, a justiça não é especulativa; aplica-se, concretiza-se. Pese
embora o conceito de justiça e as diferentes vias da sua realização possam ser pro-
blematizantes, a justiça que o direito prossegue tem em vista a resolução de casos
concretos, de situações reais, sendo, por isso, também pragmática. Pragmática no
1
utilizam-se as seguintes abreviaturas de diplomas: cc – código civil; ccP – código dos con-
tratos Públicos; cPc – código de Processo civil; cRP – constituição da República Portuguesa;
ct – código do trabalho; lcs – lei do contrato de seguro.
2
Jus est ars boni et aequi, em que ulpiano acompanha a definição de celso.
3
soaRes MaRtineZ, Filosofia do Direito, 3.ª edição, coimbra, 2003, pp. 289 e ss., depois de indicar
que a justiça acaba por se confundir com o direito, e que aquela se mostra inseparável da igualdade,
conclui que dificilmente se entenderá a justiça como pragmática. contudo, nesta passagem (p.
292), o autor alude a uma justiça absoluta, pois considera que o direito não é insensível a preocu-
pações pragmáticas.
4
esta comparação, entre o direito e a música, surge com mais detalhe em PedRo MúRias, «sobre
algumas características do pensamento jurídico», Exercícios de Introdução ao Estudo do Direito,
lisboa, 2001, pp. 173 e ss.
586
diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
3. Tutela jurídica
5
JosÉ de oliveiRa ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 13.ª edição, coimbra, 2005,
pp. 599 ss.
1. Fundamentação da justiça
6
com uma explicação mais detalhada, vd. FRancisco suÁReZ, De Legibus, tradução Gonçalo
Moita e luís cerqueira, lisboa, 2004, pp. 193 e ss., indicando que ius deriva de iubere (mandar,
ordenar), mas também de iustitia, daí que seja usado tanto como justo ou como ordem e, neste
segundo sentido, é identificado com a lei. além disso, de ius também derivou o acto do juiz, nos
dois sentidos: como acto justo e de acordo com a lei.
588
diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
7
a indicação, quanto aos preceitos do direito, é mais extensa: Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere,
alterum non laedere, suum cuique tribuere.
13.º da cRP. na aplicação do direito há que decidir tratando de igual modo o que
é igual e diferentemente o que é desigual. não se trata, contudo, de um princípio
absoluto, havendo múltiplas desigualdades tuteladas pelo direito. de todo o modo,
tendencialmente, a solução justa promove a igualdade.
o princípio da proporcionalidade pressupõe que a decisão do caso concreto
assente em três directrizes: adequação da solução à realidade; não ir além do
estritamente necessário; e equilíbrio. na decisão do caso concreto, o operador
jurídico terá de ponderar se a decisão tomada é adequada à factualidade subjacente.
Por outro lado, não pode decidir quanto a questões desnecessárias, nomeadamente
por supervenientemente inúteis. Por fim, o equilíbrio da solução tem de ser
encontrado na globalidade do diferendo e das normas jurídicas aplicáveis.
o princípio da imparcialidade do julgador é especialmente relevante e enqua-
dra-se na independência do aplicador do direito. como referido, a imparcialidade
e a independência do julgador não se aferem só em relação às partes, mas igualmente
na necessidade de não decidir em função de convicções próprias (políticas, sociais,
económicas, etc.).
Por último, o princípio da segurança jurídica é um pilar essencial da justiça;
nas palavras de santos Justo8, uma finalidade do direito. são múltiplos os exemplos
legais de certeza na aplicação do direito. exemplificando: irrelevância do desconhe-
cimento da lei (artigo 6.º do cc); não retroactividade da lei (artigo 12.º do cc);
nulidade por inobservância de forma legal (artigo 220.º do cc); caso julgado
(artigo 619.º do cPc); usucapião (artigo 1287.º do cc); ou Prescrição (artigo
309.º do cc). os exemplos referidos não correspondem a modos de preterir a
justiça, mas antes de a aplicar. Quando, por exemplo, se obsta à reabertura de um
processo judicial, independentemente da injustiça da decisão tomada, por ter havido
caso julgado, está a concretizar-se a justiça. de igual modo, quando se impede uma
demanda judicial por ter decorrido o prazo de prescrição, é proferida uma decisão
justa. Mesmo quando se afirma que a justiça representa um ideal de hierarquia
superior9, não deixa de ser justa a decisão fundada na certeza jurídica; até porque,
como indica baptista Machado, «uma justiça puramente ideal, desacompanhada
de segurança, seria vazia de eficácia e, por isso, não passaria de piedosa intenção»10.
a justiça tem por base a segurança jurídica: são valores que se complementam.
dito de outro modo, a justiça harmoniza-se com a segurança jurídica. não há
justiça sem segurança e certeza na aplicação do direito.
8
santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, 9.ª edição, coimbra, 2018, p. 73.
9
baPtista MacHado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, coimbra, 1983, p. 55.
10
baPtista MacHado, Introdução ao Direito, cit., p. 56.
590
diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
11
assim, dioGo FReitas do aMaRal, Manual de Introdução ao Direito, vol. i, coimbra, 2017, p.
127, afirma: «a equidade é um modo jurídico de resolver litígios suscitados na vida real – mas um
modo alternativo ao da aplicação do direito estrito».
12
cf. oliveiRa ascensão, O Direito, cit., p. 246.
13
antónio MeneZes coRdeiRo, Tratado de Direito Civil, i, Introdução, Fontes do Direito,
Interpretação da lei, Aplicação das leis no tempo, Doutrina geral, 4.ª edição, coimbra, 2012, pp. 591
e s.
legem ou contra legem14. como cícero (De Officiis) referia, através do direito (ius
strictum) podem cometer-se injustiças, summum ius summa iniura.
Paulo otero15 explica que esta perspectiva da equidade se altera com o positivismo
legalista oitocentista, em que a equidade contra legem ou mesmo praeter legem con-
trastaria com a omnipotência da lei, invertendo-se a tradição histórica sobre o
sentido e a função da equidade. o mesmo autor alude ao retorno da equidade, es-
sencialmente no séc. XX e, em especial, na sequência da segunda grande guerra,
com o apelo a uma ordem de valores suprapositiva.
desta evolução e contraposições resultaram três acepções: aequitas, como
bitola crítica do direito; aequitas, como interpretação do direito; aequitas, como
decisão diferente do direito16. destas acepções derivam as noções forte e fraca de
equidade; no primeiro caso, prescindindo da aplicação do direito estrito como via
de resolução do problema, justiça do caso concreto; no segundo caso, partindo do
direito positivo, como modo de corrigir injustiças da rígida aplicação das normas
ou por falta de solução legal concreta17. em qualquer das acepções de equidade
mencionadas, estar-se-á perante a relação da equidade com o direito18.
ii. o código civil tem mais de vinte referências à equidade. além da regra
fundamental constante do artigo 4.º, que, apesar de enunciada neste diploma,
prescreve o regime geral de direito quanto à possibilidade de os tribunais decidirem
segundo a equidade, há várias previsões legais. Refira-se, a título de exemplo, os
artigos 72.º, n.º 2, 283.º, n.º 1, 339.º, n.º 2, 400.º, n.º 1, 437.º, n.º 1, 494.º,
14
Paulo oteRo, “equidade e arbitragem administrativa”, Centenário do Nascimento do Professor
Paulo Cunha. Estudos em Homenagem, 2012, p. 830.
15
“equidade e arbitragem administrativa”, cit., pp. 832 e ss.
16
MeneZes coRdeiRo, Tratado de Direito Civil, i, cit., p. 593.
17
sobre a equidade como critério de decisão de litígios, veja-se dioGo FReitas do aMaRal, Manual
de Introdução ao Direito, cit., pp. 126 e ss.; JosÉ de oliveiRa ascensão, O Direito, cit., pp. 245
e ss.; antónio MeneZes coRdeiRo, “a decisão segundo a equidade”, O Direito, ano 122, 1990,
ii, pp. 261 e ss., e Tratado de Direito Civil, i, cit., pp. 590 e ss.; JosÉ allen de sousa MacHado
Fontes, “súmula de uma leitura do conceito de Justiça no livro v da Ética nicomaqueia de
aristóteles”, Ab Uno Ad Omnes, 75 Anos da Coimbra Editora, 1998, pp. 172 e ss.; Manuel caRneiRo
da FRada, «a equidade (ou a justiça com coração)», Revista da Ordem dos Advogados, ano 72, i,
2012, pp. 109 e ss.; Paulo oteRo, “equidade e arbitragem administrativa”, cit., pp. 830 e ss.
18
MeneZes coRdeiRo, Tratado de Direito Civil, i, cit., p. 599.
num sentido mais amplo, Paulo oteRo, “equidade e arbitragem administrativa”, cit., p. 836,
alude a seis sentidos de equidade: i) para dulcificar a lei; ii) para resolução de casos concretos; iii)
para flexibilizar a aplicação da norma; iv) para interpretar e aplicar a norma; v) para integrar lacunas
do ordenamento jurídico; vi) com o propósito correctivo da lei.
592
diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
496.º, n.º 3, 566.º, n.º 3, 812.º, n.º 1, 883.º, n.º 1, 992.º, n.º 3, 993.º, n.º 1,
1158.º, n.º 2, 1215.º, n.º 2, e 1407.º, n.º 2, todos do cc. nestes casos remete-se
para a equidade porquanto a solução do caso concreto pode ser difícil de encontrar
com base unicamente em critérios legais. Pode afirmar-se que, genericamente, nos
preceitos indicados, a remissão da lei para a equidade é um meio de obviar à
dificuldade de regular em abstracto certo tipo de situações. surgem ainda casos
em que se remete para a equidade como modo de repartição justa, v. g., artigo
462.º do cc, ou para obviar a uma injustiça (artigo 489.º, n.º 1, do cc).
além da referência à equidade no código civil, é determinante a previsão
constante da constituição de o tribunal constitucional decidir segundo a equidade,
no artigo 282.º, n.º 4, da cRP. também a alteração das circunstâncias, nos termos
do artigo 314.º do ccP pode permitir a reposição do equilíbrio financeiro (n.º
1) ou uma compensação financeira, segundo juízos de equidade (n.º 2). o elenco
apresentado de normas com menção à equidade é obviamente exemplificativo,
mas pode concluir-se que as várias remissões legais para a equidade correspondem
à ideia tradicional de uma justiça do caso concreto.
ainda que a equidade possibilite uma decisão com base em critérios jurídicos,
morais, económicos, etc., não permite que seja tomada uma decisão arbitrária ou
contra o direito. em primeiro lugar, está banido o arbítrio, porquanto mesmo uma
decisão fundada na equidade tem de ser justificada à luz dos critérios aplicáveis a essa
decisão. acresce que, ao decidir-se segundo a equidade, o julgador tem de ponderar
os princípios jurídicos e as normas legais aplicáveis ao caso, mesmo quando a decisão
ex aequo et bono seja diversa da que se obteria pela aplicação do direito estrito.
a decisão segundo a equidade, independentemente da concepção seguida de
aequitas, é sempre tomada à luz do direito e da justiça que lhe subjaz. a equidade
não é um campo aberto, de ausência de critério e de arbitrariedade. com efeito,
ela é, desde logo, delimitada por critérios de justiça material e pelas ideias de rectidão
e imparcialidade. como é usual referir-se no direito anglo-saxónico, apesar de equity
não corresponder exactamente ao conceito de «equidade»: equity follows the law.
a equidade diverge da justiça salomónica, a que a lei também, por vezes,
recorre, p. ex. artigos 497.º, 506.º ou 516.º do cc, a propósito da repartição da
responsabilidade ou de obrigações plurais.
19
Quanto à equidade na jurisprudência arbitral, vd., por exemplo, acórdão arbitral proferido por
barbosa de Melo, carlos lima e José vaz serra de Moura de 22 de agosto de 1988, O Direito, ano
121, 1989, iii, pp. 591 e ss. (pp. 599 e ss.); acórdão arbitral proferido por Fausto de Quadros,
Ruy de albuquerque e almeida costa, de 31 de Março de 1993, Revista da Ordem dos Advogados,
ano 55, i, 1995, pp. 123 e ss.; acórdão arbitral proferido por Freitas do amaral, Fausto de Quadros
e vieira de andrade, in Aspectos Jurídicos da Empreitada de Obras Pública, coimbra, 2002, pp. 33
e ss. o acórdão de 31 de Março de 1993 foi apreciado em várias anotações: anotação de MeneZes
coRdeiRo, Revista da Ordem dos Advogados, ano 55, i, 1995, pp. 151 e ss.; anotação de Rita
aMaRal cabRal, Revista da Ordem dos Advogados, ano 55, i, 1995, pp. 194 e ss.
594
diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
20
cf. MeneZes coRdeiRo, Tratado de Direito Civil, i, cit., p. 593 e pp. 598 e ss.
21
antunes vaRela, Revista de Legislação e de Jurisprudência, 126.º ano, 1993-1994, n.º 3831, pp.
181-182, nota.
1. Problema jurídico
22
alude-se a «decisões criativas» em sentido diverso do utilizado por MeneZes coRdeiRo, Tratado
de Direito Civil, i, cit., pp. 495 ss., quando o autor se refere à criatividade da decisão. a criatividade
referida pelo tratadista é no quadro legal, atenta a complexidade do processo decisor; no fundo,
explicando que a solução jurídica não surge automaticamente, pois é uma decisão humana em que
o operador recorre a múltiplos elementos. e o autor conclui que a decisão pressupõe uma dogmática
própria, da ciência do direito. de igual modo, quando MeneZes coRdeiRo, Tratado de Direito
Civil, i, cit., pp. 769 ss., expõe a interpretação criativa também não é no sentido do texto, pois
para o autor a interpretação criativa do direito não se confunde com a livre criação do direito (p.
769), porquanto aquela, recorrendo ao método jurídico de interpretação e integração, atende a
situações de aplicação complexa do direito, como no caso de conceitos indeterminados.
596
diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
23
a tópica encontra antecedentes clássicos na Retórica de aristóteles e na Tópica de cícero, ainda
que entendida como dialéctica de pontos de referência.
24
Rui Pinto duaRte, «algumas notas acerca do papel da “convicção-crença” nas decisões judiciais»,
Themis, iv, n.º 6, 2003, p. 14.
25
MiGuel teiXeiRa de sousa, Introdução ao Direito, coimbra, 2012, pp. 448 e s.
26
sobre a potencial incompatibilidade entre princípios e regras jurídicas, vd. MiGuel noGueiRa
de bRito, Introdução ao Estudo do Direito, 2.ª edição, lisboa, 2018, pp. 334 e ss. o autor (ob.
cit., p. 252), apesar de considerar questionável a argumentação com base em princípios, presente
na analogia iuris, acaba por concluir que há uma tendência generalizada para positivar os princípios,
nomeadamente na constituição.
27
baPtista MacHado, Introdução ao Direito, cit., pp. 163 s.
28
baPtista MacHado, Introdução ao Direito, cit., p. 164.
29
santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, cit., pp. 225 ss. e pp. 227 s.
30
santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, cit., pp. 228 s. 446.
31
oliveiRa ascensão, O Direito, cit., p. 418.
32
oliveiRa ascensão, O Direito, cit., pp. 419 e s.
33
nomeadamente na jurisprudência dos valores, cf, KaRl laRenZ, Metodologia da Ciência do
Direito, 3.ª edição, lisboa, 1997, pp. 163 e ss.
34
a chamada «correcção do direito incorrecto», nas palavras de KaRl enGisH, Introdução ao Pensamento
Jurídico, 6.ª edição, lisboa, 1988, p. 310, pode resultar de contradições de técnica legislativa, de
contradições normativas, de contradições valorativas, de contradições teleológicas e de contradições
de princípios (ob. cit., pp. 311 a 321). sem prejuízo da interpretação conforme à constituição, que
pode corrigir regras, enGisH (p. 328) conclui: «”o direito há-de permanecer o direito”, mesmo
quando se mostre desajustado ao caso concreto. o juiz não pode pretender corrigir o legislador. ele
está vinculado à lei». e continua (p. 329), «a rectificação de lapsos de redacção (...) cabe qualificar
ainda como “interpretação”, mas a decisão contra legem está para além da interpretação. o autor
(ob. cit., pp. 334 e ss.), recusando «lançar o direito contra a lei» admite excepcionalmente uma
«espécie de rectificação da lei», parafraseando Radbruch e invocando o caso de leis do nacional-
socialismo, no caso de «contradição da lei positiva com a justiça atinja um grau tal e seja de tal
maneira insuportável que a lei, como “direito injusto”, tenha de ceder o passo à justiça».
598
diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
não aplicação de uma regra jurídica pode contrariar o disposto no artigo 203.º da
cRP, em especial na lapidar formulação do n.º 2 do artigo 8.º do cc: «o dever
de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o
conteúdo do preceito legislativo».
Resta atender ao activismo judicial, que, não raras vezes, na sua perspectiva
intervencionista e pragmática na aplicação do direito, conjuga igualmente a inversão
metodológica da tópica com a prevalência dos princípios jurídicos sobre as normas.
como o designado activismo judicial costuma conglomerar todas estas vias criativas
de aplicação do direito, autonomiza-se a sua análise no ponto seguinte.
2. Activismo judicial
35
como indica baPtista MacHado, Introdução ao Direito, cit., p. 312, o ideal de justiça, baseado
em sentimentos e opiniões não pode legitimar uma decisão.
e tendo em vista a justiça do caso concreto, que se pode denominar como «jurisprudência
do coração». além do favor laboratoris, frequente na jurisdição laboral36, podem
ainda indicar-se dois exemplos: conferir à parte débil o «direito à mentira», nomeadamente
no que respeita a deveres de informação a cargo do trabalhador ou do consumidor37,
e impor deveres a um sujeito quando a lei determina que impendem sobre outrem38.
a justiça do caso concreto, num acentuado paternalismo jurídico, em detrimento
da segurança jurídica, conduz a soluções iníquas. como decorre do estatuto dos
Magistrados Judiciais, «É função da magistratura judicial administrar a justiça de
acordo com as fontes a que, segundo a lei, deva recorrer e fazer executar as suas
decisões» (artigo 3.º, n.º 1), acrescentando-se que «os magistrados judiciais julgam
apenas segundo a constituição e a lei (...)» (artigo 4.º, n.º 1) e que «o dever de
obediência à lei compreende o de respeitar os juízos de valor legais» (artigo 4.º, n.º
2). e independentemente de a decisão do caso ser tomada por magistrado judicial,
há que julgar segundo a lei. não no sentido de o julgador ser meramente «a boca
da lei» – numa visão positivista, ultrapassada39 –, mas de julgar segundo o direito,
não podendo interpretar a lei e aplicar o direito recorrendo a critérios diversos dos
estabelecidos; no fundo, aplicar o direito com base em argumentos extrajurídicos.
a invocação de princípios – como o favor laboratoris ou a dignidade da pessoa
humana – tendo em vista não aplicar a solução legal contraria a ciência do direito.
de facto, o activismo jurídico que procura a decisão mais adequada ao trabalhador,
ao consumidor (em suma, ao desprotegido socialmente) assenta numa fusão entre
direito e moral contrária à ciência do direito. Recorde-se que no plano hermenêutico
deu-se uma evolução científica na via de o subjectivismo ser afastado pela interpretação
no sentido objectivo40.
36
cf. do autor, Direito do Trabalho, 9.ª edição, coimbra, 2019, pp. 224 e ss.
37
JosÉ João abRantes, Direitos Fundamentais da Pessoa Humana no Trabalho. Em especial a reserva
da intimidade da vida privada (Algumas questões), coimbra, 2014, p. 31, respondendo à pergunta
«tem o trabalhador direito à mentira?» afirma «Julgamos que não», mas acrescenta: «cremos que,
mais apropriado do que falar de um direito à mentira, será considerar estarmos perante um “direito
a manter reservada a sua intimidade” (...)». RosÁRio PalMa RaMalHo, Tratado de Direito do
Trabalho, ii, situações laborais individuais, 6.ª edição, coimbra, 2016, pp. 159 e s., depois de
considerar lícito que a trabalhadora negue o seu estado de gravidez, admite abertamente o «direito
à mentira», afirmando: «em suma, numa situação deste tipo ou em situações análogas, o trabalhador
terá o direito de mentir».
38
Vd. infra o acórdão citado na nota 43.
39
teiXeiRa de sousa, Introdução ao Direito, cit., pp. 330 s., alude a algumas manifestações de
positivismo, desde Justiniano a napoleão, tendo em vista impedir ou limitar a interpretação jurídica.
40
na dogmática jurídica é possível identificar duas orientações distintas quanto à interpretação dos
negócios jurídicos que marcam a evolução histórica dos ordenamentos (cf. Rui Pinto duaRte, A
600
diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
Interpretação dos Contratos, coimbra, 2016, pp. 10 e ss., com referências a diferentes ordens jurídicas).
ambas as orientações assinalam a prevalência de um de dois princípios materiais fundamentais do
sistema: o da autonomia privada; e o da tutela da confiança. uma primeira orientação, dita subjectivista,
coloca a tónica na vontade do declarante: o sentido juridicamente relevante da declaração negocial
seria aquele que o declarante lhe quisesse ter atribuído. o subjectivismo é a posição dominante no
séc. XiX. o dogma da vontade, moldado por savigny e perpetuado na pandectística, favoreceu esta
orientação. no início do séc. XX, em Portugal, é ainda o subjectivo o critério seguido pelos autores
na interpretação dos negócios jurídicos. contudo, nem mesmo nos autores do séc. XiX alemão, o
subjectivismo foi absoluto. Paulatinamente, à medida que se ia adiantando o séc. XX, foi crescendo
assim a preocupação com a tutela da confiança do declaratário que não se podia ver confrontado
com uma vontade negocial alheia àquela com que razoavelmente podia esperar, atendendo à declaração.
nesta evolução, foi especialmente importante a obra de laRenZ, O método da interpretação do negócio
jurídico, publicada em 1930. e hoje a doutrina é maioritariamente objectivista.
41
acórdão da Relação do Porto de 10 de Julho de 2013 (relator desembargador eduardo Petersen
silva), Proc. n.º 313/12.9ttoaZ.P1, disponível em www.dgsi.pt. importa transcrever algumas
passagens (esclarecedoras) do aresto, que entendeu não haver motivo de despedimento num caso
em que o trabalhador estava a executar a sua actividade (recolha de lixo) com 2,3 g/l de álcool no
sangue: «como não existe na empresa nenhuma norma que proíba o consumo de álcool em serviço
(...)» aconselham a empresa a «que emita uma norma interna fixando o limite de álcool em 0,50
gramas por litro (...) para evitar que os trabalhadores se despeçam todos em caso de tolerância zero».
Questiona seguidamente se existirá tal norma: «É do bom senso que resulta a norma que proíbe
o consumo de álcool, ou o estar alcoolizado? o bom senso não é fonte de direito, antes fosse.
e no caso do consumo de álcool e da execução da prestação laboral, digamos que o bom senso tem
mil e mais facetas: – depende do tipo de prestação laboral e do tipo (quantidade e consequências da
quantidade) de consumo. vamos dizer que, e sem qualquer carácter pejorativo, não resulta do bom
senso que um “almeida”, um “homem do lixo”, não possa beber uma cerveja ao almoço, e ir trabalhar
a seguir. ou não possa, consoante as suas funções concretas, beber bastante mais ao almoço»
e continua: «vamos convir que o trabalho não é agradável (...)». «note-se que, com álcool, o trabalhador
pode esquecer as agruras da vida e empenhar-se muito mais a lançar frigoríficos sobre camiões, e
por isso, na alegria da imensa diversidade da vida, o público servido até pode achar que aquele
trabalhador alegre é muito produtivo e um excelente e rápido removedor de electrodomésticos».
esquecer as agruras da vida, dando alegria no trabalho. será, por certo, esse o en-
tendimento do decisor, mas não poderia servir como fundamentação de uma
decisão jurídica.
de igual modo, no acórdão da Relação do Porto de 11 de outubro de 201742,
o julgador fundou a decisão em concepções religiosas, nomeadamente na perspectiva
bíblica do adultério e em considerações históricas, consagradas no código Penal
de 1886. sem questionar a solução, que confirmou a pena fixada no tribunal
recorrido, não cabe ao juiz expressar na decisão judicial convicções pessoais de
natureza política, ideológica ou religiosa, em especial quando as mesmas servem
para fundamentar a decisão.
num outro plano, surgem decisões em que o magistrado, atenta a sua concepção
pessoal sobre determinado aspecto, recusa a solução decorrente da regra jurídica
aplicável, decidindo de acordo com a sua convicção.
no acórdão do supremo tribunal de Justiça de 2 de dezembro de 201343,
estando em causa um seguro de grupo, contrariando o que decorre do regime legal,
42
acórdão da Relação do Porto de 11/10/2017 (relator desembargador neto Moura), Processo
n.º 355/15.2 GaFlG.P1, que deixou de constar da página da dgsi, mas se encontra disponível na
internet. lê-se no citado aresto, a propósito de uma agressão a uma mulher adúltera por parte do
marido, “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”, e há
sociedades “em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”, daí que “na bíblia podemos
ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”, acrescentando que o código Penal de
1886 “punia com uma pena pouco mais do que simbólica o homem que, achando sua mulher em
adultério, nesse acto a matasse”.
43
acórdão do supremo tribunal de Justiça de 2 de dezembro de 2013 (relator conselheira Maria
clara sottomayor), proc. 306/10.0tcGMR.G1.s1, disponível em www.dgsi.pt. na fundamentação
jurídica, em que a relatora cita a sua dissertação de doutoramento, lê-se: “a moderna teoria dos
contratos defende uma mudança de orientação no direito dos contratos, traduzida na passagem do
paradigma do liberalismo económico, em que o contrato era visto como o resultado de interesses
antagónicos negociados com dureza e egoísmo, para um nova concepção de contrato baseada num
princípio de respeito pelos interesses do outro e numa ética de cooperação e de solidariedade. este novo
paradigma, resultante da crise do pensamento liberal sobre o contrato, exige às organizações utilizadoras
de cláusulas contratuais gerais novos deveres destinados a suprir a desigualdade estrutural entre as
partes dos contratos de adesão, entre os quais se destacam os deveres de comunicação e de informação
previstos nos arts. 5.º e 6.º do dl 446/85, de 25 de outubro e, em geral, o dever de não lesar os
interesses da contraparte e os deveres pré-contratuais de lealdade, conselho, correcção, assistência e
cooperação, decorrentes do art. 227.º do código civil”. no caso decidido foi acrescentado um dever
de informação e esclarecimento, para além do elenco legal e imposto a diferente sujeito, com base
nesta orientação de princípio, revogando o acórdão da Relação de Guimarães que aplicara correctamente
o direito. além de se ter acrescentado um dever de informação ao extenso elenco legal (artigo 18.º da
lcs), descurou-se o facto de, por se tratar de um seguro de grupo, o dever de informação impender
sobre o tomador do seguro (artigo 78.º da lcs) e não sobre o segurador, como decidido.
602
diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
44
o acórdão do tribunal de Justiça da união europeia de 1 de Março de 2011 (Processo n.º c-
236/09), numa decisão prejudicial do tribunal constitucional belga, decidiu que a diferença de prémio,
no seguro automóvel, entre condutores de distintos sexos em razão da taxa de sinistralidade, “é contrária
à concretização do objectivo de igualdade de tratamento entre homens e mulheres prosseguido pela
directiva 2004/113 e incompatível com os artigos 21.º e 23.º da carta”. no aresto esclarece-se que
“por exemplo, as diferenças entre homens e mulheres na prestação de serviços de saúde, resultantes das
diferenças físicas entre homens e mulheres, não se referem a situações equivalentes, pelo que não
constituem discriminação”, mas acrescenta “para garantir a igualdade de tratamento entre homens e
mulheres, a consideração do sexo enquanto factor actuarial não deve resultar numa diferenciação nos
prémios e benefícios individuais”. como consta do ponto 53 das conclusões da advogada geral, “os
acidentes de viação graves são – estatisticamente – causados mais frequentemente por homens do que
por mulheres”, mas entende ser incompatível com os direitos fundamentais da união europeia considerar
o sexo do segurado como um factor de risco na configuração de contratos particulares de seguro.
45
Por exemplo, o tribunal de Justiça de Pernambuco (apelação 3048122, de 29/5/2013, stênio
José de sousa neiva coêlho, 5.ª câmara cível) condenou a companhia de seguro no pagamento de
uma indemnização por danos morais por se ter recusado a celebrar um seguro facultativo de veículo;
em sentido idêntico, o supremo tribunal de Justiça condenou um segurador por não ter renovado
um seguro de saúde a um segurado quando este perfez 70 anos (Recurso especial 1073595/MG, de
23/3/2011, nancy andrighi, 2.ª seção). Por seu turno, o supremo tribunal Federal (Recurso
1.104.226, de 27/4/2018, Roberto barroso, 1.ª turma; acção 1657 Mc, de 27/6/2007 cezar
Peluzo, tribunal Pleno) tem decidido que a liberdade de iniciativa privada não é uma liberdade
anárquica, mas com cunho social, pelo que deve ser limitada em razão de uma funcionalização do
seguro. esta jurisprudência assenta em três postulados: função social do contrato, boa fé objectiva e
dignidade da pessoa humana; e assim decide tem decidido, v. g. que a apólice que prevê furto
qualificado também abrange furto simples (Recurso especial 1352419/sP, de 19/8/2014, Ricardo
villas bôas cueva, 3.ª turma) ou que são abusivas as cláusulas que indicam delimitação de tratamento
médico ou de fornecimento de próteses ou que determinem tempo máximo de internamento
hospitalar (apelação 1226643/sP, de 5/4/2011, luis Felipe salomão, 4.ª turma).
46
É evidente que uma diferença tão significativa (dez vezes mais) não pode ter como único factor
a citada jurisprudência paternalista; será, sem dúvida, uma análise económica complexa, mas, muito
provavelmente, a diferença do serviço de saúde garantido pelo estado, no brasil e em Portugal,
também influencia o prémio do seguro de saúde.
47
oliveiRa ascensão, O Direito, cit., p. 478.
48
sobre o princípio da legalidade e a sua flutuação, nomeadamente tendo em conta o recurso legal
a conceitos indeterminados, vd. KaRl enGisH, Introdução ao pensamento jurídico, cit., pp. 207 e ss.
604
diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
o autor, ob. cit., pp. 254 e s., indica que a escola do direito livre, apesar de refutada, reaviva-se a
cada passo com diferentes formas, por exemplo a de que o juiz não pode estar escravizado à lei ou
que o juiz deve ter o papel de modelador da vida social. enGisH conclui que estas novas tendências
o preocupam. Quanto a uma apreciação crítica da escola do direito livre, veja-se Galvão telles,
Introdução ao Estudo do Direito, vol. i, 11.ª edição, coimbra, 1999, pp. 269 e ss.
49
cf. artigo 9.º do cc. veja-se, por todos, MeneZes coRdeiRo, Tratado de Direito Civil, i, cit.,
pp. 683 e ss.
V. Conclusões
a decisão jurídica que põe termo a um dissídio tem de ser justificada. e é essa
fundamentação que determina a aceitabilidade da decisão.
a justificação tem de assentar numa coerência argumentativa, que diverge de
uma fundamentação baseada em critérios pessoais do julgador. na fundamentação
da decisão é imprescindível o discurso legitimador51; perante um pluralismo de
posições jurídicas há que legitimar a decisão, fundamentando-a. a prossecução da
justiça pressupõe a fundamentação da decisão, assente, desde logo, nos princípios
50
Rui Pinto duaRte, «algumas notas acerca do papel da “convicção-crença” nas decisões judiciais»,
cit., respectivamente p. 17 e p. 12.
51
baPtista MacHado, Introdução ao Direito, cit., pp. 307 e ss.
606
diferentes vias de prossecução da justiça na aplicação do direito
52
MiGuel teiXeiRa de sousa, Introdução ao Direito, cit., p. 421.
53
MiGuel teiXeiRa de sousa, Introdução ao Direito, cit., p. 435.
54
KaRl laRenZ, Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 171.
55
KaRl laRenZ, Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 173.
56
KaRl laRenZ, Metodologia da Ciência do Direito, cit., pp. 215 e ss.
57
MiGuel teiXeiRa de sousa, Introdução ao Direito, cit., p. 447.
58
MiGuel teiXeiRa de sousa, Introdução ao Direito, cit., pp. 450 e s.
59
baPtista MacHado, Introdução ao Direito, cit., p. 319.