Hecate Ate o Periodo Classico Grego A Ma
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Ficha catalogáfica
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HÉCATE ATÉ O PERÍODO CLÁSSICO GREGO:
A MAGIA COMO APENAS MAIS UMA DE SUAS FUNÇÕES
Leandro Mendonça Barbosa
No século XVII, a imagem de Hécate foi eternizada como a feiticeira divina que, com seu senso
moral flexível, conferia terror a homens e mulheres. O texto trágico de William Shakespeare, Macbeth, a
coloca como líder das feiticeiras humanas em rituais, fortalecendo um imaginário moderno, que percebe
uma Hécate associada à magia maléfica, praticada para prejudicar. Por meio da deusa seria possível evocar
fantasmas e tramar assassinatos.
O dramaturgo inglês, para construir sua narrativa, parte da concepção sobre Hécate presente,
sobretudo, em parte do imaginário grego clássico, provavelmente em uma tragédia confeccionada e
representada no século V AEC, Medeia. A recepção da Hécate grega em Shakespeare é parte do olhar que
se faz da deusa até os dias atuais1. Entretanto, mesmo no teatro ateniense, particularmente na tragédia,
Hécate era a divindade associada à feitiçaria – termo que julgamos menos anacrônico que bruxaria –
lesiva? Ou esta simbologia não era assim tão difundida no período clássico grego – momento da
confecção de peças teatrais – intensificando-se a partir dos períodos helenístico, romano e medieval,
chegando a Shakespeare?
Este é ponto nevrálgico deste trabalho. A divindade da magia e das feiticeiras, precipuamente,
por vezes assumiu outras facetas antes e durante o período clássico. A intenção é a de perceber como se
deram estas representações a depender do/a escritor/a e da conjuntura, trabalhando a documentação em
seu contexto histórico. Entretanto, uma análise desta não é possível sem aclararmos o que seria a magia
neste período clássico e sem identificarmos passagens que assentam Hécate nesta temática e que apontam
para outros caminhos.
Nesta busca, vale a pena entendermos como Hécate foi erigida no imaginário religioso desde
tempos pretéritos ao clássico, para notarmos que, assim como todas as criaturas divinas, não há
“prerrogativa por excelência”, e a magia em Hécate foi uma função adquirida. Acreditamos que a
simbologia da deusa máxime da feitiçaria foi uma visão difundida no período helenístico, no qual exerceu
preponderantemente este papel, e do mundo romano, em que Hécate continuou como a divindade
símbolo da magia e detentora de extrema popularidade entre plebeus e plebeias. Anterior a isto a deusa
detinha outras atribuições que não somente as práticas de feitiçaria.
Primordialmente, Hécate seria uma criatura da natureza e da fertilidade (ANNEQUIN, 1978, p.
85), associada a outras deidades femininas, como Ártemis:
Déesse de la Nature, Hécate a tout naturellement été confondue maintes fois avec sa
cousine Artémis. Chasseresse divine, elle protège également le gibier lorsqu'elle traverse
les forêts avec ses meutes hurlantes. Les traits qu'elle emprunte à leur grand-mère
commune Phoebé font d'elle une déesse phosphoros, porteuse de lumière et de
flambeaux, associée à la Lune. Hésiode insiste à juste titre sur sa puissance; elle est
monogène et n'a pas à pâtir, comme Artémis, de la présence d'un frère trop prestigieux;
fille des Titans, elle se range parmi les antiques divinités pré-olympiennes aux pouvoirs
illimités. Cependant, elle n'est pas entraînée dans la chute des Titans, puisqu'elle "garde
sa part de terre, de mer et de ciel étoilé" (ANNEQUIN, 1978, p. 85).
Hécate, atesta Haiganuch Sarian, em seu clássico texto redigido para o Lexicon Iconographicum
Mythologiae Classicae, possui diversas características de uma divindade estrangeira (SARIAN, 1989, p. 985),
originada de localidades a Oriente da Grécia e apropriada posteriormente por povos balcânicos.
Assim como Ártemis, Hécate também detinha importantes locais de culto em regiões da Ásia
Menor e das ilhas do Egeu e seu nome, embora não possua uma etimologia definida, deriva,
possivelmente, de uma raiz linguística indo-europeia (SARIAN, 1989, p. 985). A associação entre Hécate
e Ártemis, embora se acentue no período helenístico, já era percebida em tempos mais antigos,2 a começar
1 Para uma discussão sobre a recepção das representações antigas de Hécate na peça Macbeth, ver: Carvalho (2018).
2 O nome primitivo de Apolo, irmão de Ártemis, era Hékatos (SARIAN, 1997, p. 15); desta forma, Hécate seria o
feminino deste deus primitivo, assim como Ártemis representaria o gênero antagônico ao do seu irmão. Nos
sincretismos, as deusas foram ainda mais interligadas, como em Delos, mas também na região da Ática, onde terão
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pelo parentesco: Hesíodo aponta que as deusas são primas, sendo Leto e Astéria – mãe de Hécate – irmãs
(HESÍODO, Teogonia, 404-411).
A junção entre Hécate e Ártemis ligar-se-á a uma terceira deidade: Selene. As três deusas são
conjuntas à Lua, representariam a mesma divindade em distintas funções, de onde pode ter surgido uma
Hécate trifuncional: a partir do período helenístico haverá inúmeras estátuas de Hécate com três faces.
Contudo, a analogia de Hécate com esta trifuncionalidade seria mais antiga, quando a deusa passaria a
simbolizar as encruzilhadas: “L'idée d'une Hecate triple devait remonter à une tradition beaucoup plus
ancienne: il est fort probable qu'elle soit en rapport avec le rôle qu'Hecate exerçait comme divinité des
carrefours [...]” (SARIAN, 1989, p. 987). Como deusa das encruzilhadas, no período clássico, muitas das
práticas mágicas serão realizadas nestes locais.
Hécate não foi citada pela documentação do período homérico que nos chegou. Entretanto, a
Odisseia, por exemplo, está repleta de elementos mágicos, imprecações, feiticeiras, ambientes ocultos e
fúnebres. Por qual razão a deusa que seria da magia não foi citada? Hécate, anterior ao período clássico,
não era associada às feiticeiras, ou pelo menos a documentação não menciona esta relação. Na Teogonia
(411-413) – a fonte escrita mais antiga que a cita – Hécate é a benevolente divindade da Lua, integrada
tanto à terra quanto ao mar.
De linhagem titânica, parece ser independente dos olímpicos e, diferentemente de outros deuses,
seus poderes não se limitam a alguns campos específicos. Hécate pode, por exemplo, conceder peixe em
abundância ou fazer o gado definhar (GRIMAL, 2000, p. 193). Hesíodo despende de um grande trecho
para exaltação da divindade, batizado modernamente como “Hino a Hécate”. São quarenta e oito versos
que explicam a genealogia da deusa e explicitam alguns de seus papeis e, juntamente com o Hino Homérico
a Deméter, conformam-se nas duas fontes escritas que retratam Hécate até o século V AEC.
Se na Teogonia hesiódica do século VII AEC Hécate é a divindade que possui poderes múltiplos
sobre o cotidiano dos mortais, durante o século VI AEC há uma transição para o mundo telúrico, narrada
pelo Hino Homérico a Deméter. Por que Hécate inicia suas afinidades com o mundo ctônico, até se tornar
ela mesma uma telúrica, neste Hino? Esta é uma questão difícil de ser respondida. Entretanto, por meio
do Hino, percebemos que a deusa era participante dos cultos em Elêusis, provavelmente pela tradição
continuada de associação à fertilidade, análoga à terra em tempos mais remotos.
O fator principal de passagem de Hécate para uma divindade cultuada em Elêusis, acreditamos,
está no fato desta acompanhar Perséfone ao mundo inferior e precedê-la na Primavera3. Este passo é que
faz com que a deusa adentre os Mistérios Eleusinos com uma função essencial. Cremos também que é a
entrada no ciclo de Elêusis que transforma a deusa em ctônica, ainda antes de ser relacionada à magia.
Hécate, no início do Hino, foi a única que ouviu o grito de Perséfone no momento de seu rapto:
“ouviu do antro de sua caverna, Hécate de clara mantilha” (Hino Homérico a Deméter, 25). Embora somente
em um verso, já possuímos algumas informações: a deusa não era sombria, pois trajava uma mantilha
clara, e não o manto escuro das criaturas subterrâneas, apesar de sua morada no imaginário coletivo ser
uma caverna, o que a colocaria entre o claro e o escuro, da mesma forma que a deusa conviverá entre a
vida e a morte (ANNEQUIN, 1978, p. 85).
A representação desta caverna possui um essencial elemento alegórico, pois simboliza o interno
e o externo, o reino visível e o reino invisível (FEATHER, 2009, p. 50), indicando que Hécate convivia
entre os dois ambientes. Contudo, a caverna era também local de ritos e sacrifícios desde o Paleolítico.
Citando Marija Gimbutas, Jacqueline M. Feather informa que cavernas eram vistas pelas sociedades
paleolíticas ao mesmo tempo que um túmulo, um útero, e por essa razão foram palco tanto de cultos de
nascimento e renovação quanto de morte (FEATHER, 2009, p. 52). Munidos destas informações,
propomos que Hécate assume este ambíguo papel: ao mesmo tempo em que é a única que percebe os
infortúnios de Perséfone e os relata a sua mãe, no mundo de luz, está metaforicamente ligada à morte, já
que o raptor Hades leva Perséfone ao submundo.
Mas ela também será, na parte final do Hino, uma materna deidade do amor para Perséfone,
quando esta, após renascer, encerra seu ciclo como Corá. Ou seja, a caverna onde Hécate habita na
santuários e rituais semelhantes, como o sacrifício do porco, um animal que também era dedicado às deidades
subterrâneas (SARIAN, 1989, p. 986).
3 De acordo com Silvia M. S. de Carvalho (2010), este movimento de Hécate corresponderia ao desaparecimento
e renascimento de algum astro – quem sabe a Lua – ou ser ela própria adjunta a algum corpo celeste.
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narrativa hínica é a própria personificação da morte – com o rapto de Perséfone e sua descida às entranhas
do mundo – e do útero, da parte maternal, quando a deusa se torna sua protetora, como uma segunda
mãe. Hécate é a única que concede a informação a Deméter de que sua filha foi raptada, em uma
interligação: Perséfone, neste momento, está associada à sua mãe por meio de Hécate; já Deméter só
consegue saber o que houve com a filha por meio da informação dada pela deusa.
Quando Deméter pergunta a Hécate o que sabe, o autor ou autora do Hino relata uma imagem
da deusa: “encontrou-a Hécate, que tinha archote nas mãos” (Hino Homérico a Deméter, 52). Este archote4
seria uma simbolização de um elemento presente no ritual de Elêusis, a insígnia de conhecimento e
iluminação dos caminhos. Nos cultos em Elêusis, é Hécate quem guiará Perséfone com seus archotes,
retirando a deusa da escuridão e conduzindo-a para o caminho da luz. A função de Hécate é diferente e
complementar ao posto desempenhado por Hermes Psicopompo, que será o guia de Perséfone entre o
mundo dos vivos e o dos mortos. Se Hermes em sua faceta ctônica representa a transição, Hécate
simboliza a iluminação e a chegada de bonanças ao mundo dos vivos.
Na parte final, no retorno de Perséfone ao ambiente subterrâneo, quando era acalentada por sua
mãe, Hécate demonstra seu viés de bondade: “[...] Perto delas veio Hécate de clara mantilha, /e cercou a
filha da pura Deméter de muito afeto. /Desde então essa senhora se fez sua servidora e companheira”
(Hino Homérico a Deméter, 438-440). Está claro que Hécate estava mais operacionalizada a uma afabilidade
de deusa materna – como as primordiais divindades femininas – e de um ser de luz, do que do
obscurantismo, que inclusive poderia prejudicar outros indivíduos. É devido a este trecho que
concordamos com a afirmação de Patricia Marquardt: “In the Hymn, Hecate lives in a cave (24-25) and
carries a torch (52) but is not strongly chthonic” (MARQUARDT,1981, p. 252).
Acreditamos que nos poucos passos em que Hécate é referenciada, a deusa é ctônica, mas não é
conexa à feitiçaria. Hécate, como propõe Marquardt, não era “fortemente ctônica”, mas possuía um apelo
associado ao submundo – pela caverna e pelo fato de guiar Perséfone do mundo dos mortos ao dos vivos
– e aos rituais telúricos de Elêusis – devido à tocha e pela presença de Deméter. A maternal Hécate deste
momento do Hino acompanhará Perséfone todo o tempo. Cremos que é no Hino Homérico a Deméter que
a deusa inicia a sua veia ctônica.
Seria um indício de que a deidade estaria entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, pois
Perséfone passaria a viver entre os dois? Acreditamos que sim. Quando o Hino foi redigido já havia o
conhecimento de que Hécate também possuía sua parcela ctônica no submundo e que a simbologia da
deusa como guia a colocaria em fronteira entre o reino dos vivos e o dos mortos. Destarte, Jacqueline M.
Feather propõe que Hécate fosse a chave para uma memória paradoxal do ser humano: os opostos de
nascimento e morte, útero e túmulo e consciente e inconsciente a acompanham, assim como fazem parte
de qualquer ser humano (FEATHER, 2009, p. 66).
É no século V AEC, essencialmente na tragédia euripidiana e em algumas poucas representações
em cerâmica, que Hécate brotará como deusa da magia e protetora das feiticeiras. Entretanto, como
veremos, mesmo no teatro ateniense, isso não foi preceito: outras peças escritas pelo próprio Eurípides,
bem como a comédia de Aristófanes, conceberão a deidade em outras facetas. Entretanto, se nos
dedicarmos à análise da iconografia de Hécate, ela segue como uma divindade dos mistérios de Elêusis
na maioria das imagens.
Apesar de algumas cerâmicas exibirem Hécate em companhia das Erínias ou de cães, seu perfil é
o de empunhar archotes, a guiar Perséfone para o mundo de luz, saída do subterrâneo e acompanhando
as divindades que compunham o séquito de Elêusis. Esta feição e a da magia serão concomitantes a
outras neste século. Se considerarmos todo o corpus documental do período, o contexto de Elêusis
suplanta o mágico.
A partir destas constatações, torna-se importante notar como se dava a construção deste mundo
mágico de que tanto falamos na Grécia antiga anterior à concepção de Hécate como sua deusa, e notar
quando e porque a deidade passa a ser associada à magia e ao ocultismo, enquanto em outras há diferentes
desempenhos. Mary Douglas, ao citar James Frazer, aponta que a magia seria uma primeira fase, a mais
primitiva, das manifestações de fé humanas.
4 Nos Mistérios de Elêusis, o fogo era um elemento primordial. Ao mesmo tempo em que representaria a
purificação, também se ligaria à terra de diversas maneiras, como elemento de transformação (CARVALHO, 2010,
p. 314).
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Desta tese surgiria a antítese que é a religião, um outro estágio do pensamento dos homens.
Finalmente, a síntese, a evolução, a forma mais virtuosa e efetiva, seria a ciência (DOUGLAS, 1980, p.
34). Por esta análise, o mágico, o oculto e a feitiçaria representariam as vontades e as emoções – dentre
elas principalmente o amor e o ódio – que por vezes não poderiam ser expressos em outros momentos
da vida.
Todavia seria errôneo e, certamente, uma leitura ultrapassada, caracterizarmos estas práticas
como simplesmente primitivas. Os atos de feitiçaria e a própria magia se caracterizariam como um dos
vários e complexos ritos religiosos compreendidos pela sociedade helênica. Não percebemos grandes
distinções entre um momento ritual praticado por um sacerdote de um culto olímpico em um templo de
Apolo de uma prática mágica presente em um ctônico rito aos mortos, realizado em uma encruzilhada
durante uma noite de Lua nova. O que diferencia é a aceitação, por parte da comunidade, de alguns ritos
em detrimento de outros.
A magia, como trataremos durante este texto, foi encerrada ao obscurantismo por parte da
sociedade, que passa a não a aceitar. Esta feitiçaria associada ao mal, a goétia, manifestou-se em Atenas a
partir do século V AEC5 – apesar destas crenças serem registradas desde Homero, mas não com os
mesmos fins – e, dentre as várias formas de realizá-las, a documentação escrita e imagética – sobretudo
cerâmica– não agrega Hécate a esta prática, à exceção de Medeia6.
A magia poderia ser considerada, por si só, como religião? Vejamos a citação a seguir, baseada
nas reflexões de James Frazer:
I shall also ask whether 'such differences as can be detected confirm the most
widespread theory about the difference between magic and religion (at least among
classicists), the one made famous by Sir James Frazer, namely, that the magician
constrains, coerces, and forces the divinity to do his will, whereas religious man meekly
submits himself to God's overpowering will (FARAONE; OBBINK, 1991, p. 188).
Se considerarmos as práticas mágicas na acepção dos frazerianos, então o magos, por exemplo,
não seria um homem religioso. Todavia, a feitiçaria se formata na forma em que a crença ou a religiosidade
aparece: o magos coage a divindade, mas o indivíduo que procura este sacerdote crê nesta e por isso pode
ser considerado um indivíduo religioso.
A magia, assim, comporia o conjunto da religião ou, no caso da Grécia, do mito, pois temos, na
definição de Jean-Pierre Vernant, o mito como uma manifestação do ser humano, culturalmente, mas
também psicologicamente, que independe de sua bagagem privada ou de seu estatuto na hierarquia social.
O mito não é uma fantasia de poetas ou uma construção de indivíduos que se utilizariam de fantasias
para compor obras; é sim uma manifestação inerente ao ser humano (VERNANT, 2001, p. 25).
Outrossim, a magia certamente faz parte deste conjunto de estruturas que compõem o mito. Se
não a caracterizarmos como parte do desejo mítico, como uma manifestação religiosa, e não
considerarmos seus sacerdotes como indivíduos que harmonizam e facilitam estas concepções religiosas,
correremos o risco de cair em um ranço determinista e até mesmo preconceituoso, de que somente as
crenças oficiais da polis, ou os sacerdotes registrados e reconhecidos por templos – estes parte do poder
– é que poderiam gozar da condição de religião.
A. Barb aponta para o sentido de que, por haver interação entre o humano e o divino, a magia se
configura claramente como parte do aparato religioso. Se nas práticas rituais o ser humano se submete
ao divino para conseguir o desejado, trabalha para ele em formas de cânticos, cultos e oferendas, na magia
5 A partir deste século foram utilizadas finas lâminas de chumbo chamadas katádesmoi; estas tabuinhas foram
encontradas no perímetro urbano de Atenas, nas regiões do Cerâmico, e eram utilizadas para rituais mágicos. O
katádesmos estava associado ao ocultismo desde sua confecção, pois somente o fato de o indivíduo grafar o nome
de alguém num suporte oculto e fora do âmbito público já teria uma conotação negativa, pois a vítima estaria
incapaz de se defender (CÂNDIDO, 2004, p. 61).
6 Conforme Dolores Alves Puga Sousa (2014), a relação de Hécate com a morte, ademais do ciclo de Elêusis,
poderia estar ligada, no período clássico grego, ao orfismo, uma religião de características estrangeiras – o que
corrobora com as afirmativas de que Hécate pode ter se originado na Tessália ou na Trácia – e muito associada ao
submundo e ao culto aos mortos.
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há uma inversão deste sentido, uma vez que o ser humano é quem utiliza a divindade para atingir seus
resultados; seria ela quem trabalharia para ele (BARB, 1989, p. 118).
Esta visão questiona a perspectiva que foi aceita por parte dos círculos de estudiosos da
Antiguidade e da religião ao longo do século XIX e parte do XX. A visão evolutiva da magia como um
primeiro estágio, primitivo, que seria suplantado pela religião, que por sua vez, seria substituído pela
ciência, neste caráter evolucionista da história, serviu na construção de uma visão histórica que por vezes
recorria ao mundo greco-romano como exemplo a ser seguido (CÂNDIDO, 2008, p. 46), como uma
forma de combate ao irracional, sendo que a magia seria o estágio mais desarrazoado destas sociedades
antigas. Por esta perspectiva, a magia seria um fenômeno a ser superado pela contemporaneidade, tão
adepta dos avanços científicos. Esta relação também se percebia no campo do conhecimento, no qual a
ciência era o saber possível de ser testado e comprovado, a religião um axioma que não deveria ser
contraditado e a magia uma experiência primitiva de como se controlar a natureza (CÂNDIDO, 2008, p.
48).
Entretanto, faz-se importante salientarmos que, na sociedade helênica antiga, certas
manifestações religiosas eram mais malvistas do que outras, e a magia é uma excelente forma de
exemplificarmos esta diferenciação. Pela etimologia de seu termo, estaria ligada ao que os gregos
entendiam como estrangeiros – provavelmente persas – a magia era a religião “do outro”, em uma forma
pejorativa de se referir às manifestações religiosas vindas de fora. Este prisma imputou uma percepção
de identidade pela alteridade, ao mesmo tempo que definiu a própria superioridade helênica partindo de
uma perspectiva autóctone, apontando as religiões “não-gregas” como magia (SILVA, 2010, p. 03).
Desde sua origem o termo magia denota, então, uma preponderância do status quo dominante e
uma aversão por aqueles que não fazem parte deste grupo, não só de costumes socioculturais estrangeiros,
mas de “outras” congregações gregas dentro do próprio cotidiano social helênico (SILVA, 2010, p. 04),
pois a prática de magia passou, no caso de Atenas, a se popularizar no período clássico, e muitos destes
praticantes eram atenienses, mas que lançavam mão de tradições ádvenas e, deste modo, eram encarados
como “outros”, fora da civilidade ateniense esperada.
Desta forma, com os processos de interações mediterrânicas, a polis recebeu diferentes atores
religiosos que, por meio dos sincretismos, apropriaram-se das religiões tradicionais, com novas lideranças
religiosas e divindades que não mais atendem ao status quo pretendido pela oficialidade. Estes novos cultos
e práticas não alteram a matriz cultural e religiosa políade, entretanto, também não partem da premissa de
que serão estandardizados pela vontade cultural e política do poder oficial, diversificando condutas e
atitudes religiosas daqueles e daquelas que não eram parte do corpo cívico e elitista de Atenas
(CÂNDIDO, 2008, p. 47).
Prosseguindo, faz-se importante salientar que as práticas mágicas não eram uma prerrogativa de
Hécate. Inúmeras deidades, incluindo Zeus, em sua faceta ctônica, e até Apolo, foram utilizadas como
instrumento para atingir o objetivo desejado. Contudo, as imprecações eram remetidas às divindades mais
identificadas com o ocultismo ou mesmo sincréticas como, além de Hécate, Leto, Pluto, Selene e Hermes
Psicompompo, por exemplo; tudo dependeria do contexto e do desejo do praticante. Porém, havia as
deidades preferidas dos sacerdotes ou mesmo das pessoas que eram adeptas da magia para a realização
dos trabalhos, como as ligadas ao submundo ou as lunares. Entretanto, é importante ressaltar que,
dependendo do que era pedido, uma série de divindades era mais eficaz que outra.
Hermes Psicopompo, por exemplo, foi o preferido dos praticantes que desejavam manipular
almas. Como o deus é o interlocutor do mundo dos vivos no mundo dos mortos e vice-versa, era usado
para manejar aquelas almas que ainda não haviam passado pelo barqueiro Caronte. Deste modo, os
desejos dos indivíduos vivos para com Hermes – que é o responsável pelas almas em seu momento de
transição – seriam mais bem-sucedidos.
No período clássico, Hécate adquire esta função mágica que, defendemos, não será seu principal
atributo. A magia em Hécate ganhará realmente força nos períodos helenístico e principalmente romano,
eliminando as suas funções primordiais, como a fertilidade. Como foi apontado por Maria Regina
Cândido (2004), a magia passou a vigorar com mais frequência em Atenas – sem negar as práticas de
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outras cidades-estados, claro – devido à individualidade característica do período clássico, em detrimento
da coletividade do sentimento de polis que vigorava nos séculos anteriores7.
Em quatro tragédias, todas escritas por Eurípides – Medeia, Íon, Helena e As Fenícias – Hécate é
retratada claramente, além de duas comédias – As Vespas e As Rãs – de Aristófanes. Na tragédia Medeia,
representada em 431 AEC, é narrada a amargura e a revolta de uma mulher repudiada pelo marido. Com
um tremendo apelo psicológico, Eurípides tece uma personalidade vingativa, mas de sabedoria e técnica,
na mulher estrangeira insurrecta, Medeia, que mata os próprios filhos para se desafrontar seu marido
adúltero, Jasão. Medeia está carregada de rituais mágicos e atos de feitiçaria, e Hécate é referenciada uma
vez, como senhora da feiticeira homônima.
Propomos que esta tragédia teve um papel fundamental na construção da imagem de Hécate
como divindade da magia, pois é a primeira fonte escrita a relacionar um ritual mágico à deusa. É
admissível que Hécate já fosse conexa à feitiçaria, mas, nesta obra, Eurípides assenta a divindade junto a
goétia e a morte. É provável também que a propaganda como divindade ligada à feitiçaria ganhou força
em Medeia e influenciou outras peças que seguiram por vertentes parecidas:
Many of Hekate's darker aspects come to the forefront during the classical era. Her
identification with magic begins to dominate the literature in the late fifth century, due
in large part to Euripides' "Medea". The tragic heroine of this drama, the murderer of
her own children, calls on Hekate as her personal goddess (FRIEDMAN, 2002, p. 138).
Em um monólogo, Medeia deseja a morte dos filhos – neste caso por meio de veneno – e pede
proteção à sua deusa:
É sabido que, em várias regiões da Grécia, eram erguidos altares a Hécate nas casas, na forma de um
culto privado (MARQUARDT, 1981, p. 253). Rituais em sua honra eram realizados em encruzilhadas
nas luas cheia e nova, por ser uma divindade lunar, para afastar os espíritos das residências. A deusa, neste
aspecto assemelhando-se a Héstia (FRIEDMAN, 2002, p. 139), também possuía esta perspectiva privada,
de proteção à família e ao lar. Hécate habita o lar de Medeia. Cultos eram prestados para prejudicar o
inimigo, em um caráter individualista que já apresentamos.
Entretanto, aqui se trata de um abalo excessivo e de uma incredulidade por parte de Medeia, que
renunciou à sua vida para viver com Jasão e foi renegada pelo marido. Neste caso, a magia não era para
lesar um inimigo político ou moral, mas sim o marido, utilizando como meio os seus filhos. Atestamos
com isto que, diferentemente dos séculos anteriores, o século V AEC partilhava de um particularismo,
pelo qual os indivíduos se preocupavam mais com suas emoções do que com o bem-estar do “organismo”
polis.
Se antes Hécate era a deusa que agia pelos seres humanos – como demonstrado na Teogonia – ou
partilhava do sentimento maternal, cuidando e zelando pelo bem-estar da filha de Deméter, em Medeia
ajudará aqueles que desejam depreciar outros indivíduos, pessoas que mostravam força quando se sentiam
injustiçadas e traídas, como Medeia, por aqueles que também agiam conforme suas individualidades,
7As epopeias homéricas, por exemplo, já relatavam a recorrente prática da feitiçaria, como as passagens da Odisseia
que se referiram a Circe e a Calipso. Porém, o tipo de prática de feitiçaria ateniense do quinto século AEC diferia
daquela relatada no período homérico por um ponto principal: a finalidade. Os rituais atenienses possuíam um
caráter essencialmente individualista.
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como Jasão. Medeia está muito longe do ideal de sophrosyne dos atenienses e pedirá proteção a Hécate
para suas ações. Pela primeira vez em um documento que sobreviveu ao tempo Hécate é utilizada em
goétia. Entretanto, até o século V AEC é o único documento que a descreve assim.
A feiticeira Medeia é estrangeira. Este ponto reforça a ideia da goétia como um lugar do “outro”,
do incivilizado, do não-grego. O comportamento de Medeia e suas atitudes de magia atestariam para um
barbarismo que não condissera com a temperança tão prezada pelo ideal de Atenas. Entretanto, por qual
motivo a feitiçaria, alijada do discurso civilizatório da polis ateniense, possui uma peça de teatro dedicada
ao tema, com uma feiticeira que evoca a goétia de Hécate?
Tratando-se de uma tragédia que, fundamentalmente, é construída por múltiplos discursos, as
relações discursivas abarcam não só os aspectos da hegemonia cultural políade – apesar do teatro ser parte
deste aparato – mas de temas que podem atender a outras perspectivas da vida social, inclusive como
forma de criticá-los (SOUSA, 2014, p. 114). Há críticas neste texto trágico ora a atitudes de Medeia, ora
a de Jasão, além do próprio questionamento da goétia em algumas passagens.
Circulando em diversos grupos sociais atenienses, a tragédia parte de uma construção contra-
primazia para exercer um discurso que, por vezes, vai de encontro a esta própria preeminência. Medeia,
estrangeira, feiticeira, em agonia e decepção, imputa sofrimento ao herói Jasão. Todavia, Eurípides, na
única peça que julgamos assentar Hécate na goétia, não nega o poder do conhecimento mágico e de
sabedoria da feiticeira, pois Medeia alcança um poder de destruição enorme com o conhecimento de
rituais mágicos. Esta perspectiva maligna das feiticeiras na peça inclui Hécate. A medida em que o logos
se valoriza (SOUSA, 2014, p. 107) e terá, a partir do século V AEC, seu apogeu, negará o que seria a
bestialidade, os sacrifícios e o culto aos mortos para conseguir benefícios individuais ou ainda prejuízo
aos inimigos.
A obra Íon é mais intrigante do que Medeia, pois nela Eurípides altera completamente a genealogia
hesiódica, construindo uma linhagem divina própria, modificando assim padrões do imaginário religioso
ou, ainda, relatando outra teogonia paralela que não sobreviveu até nossos dias. Não se sabe ao certo a
data de sua encenação; fala-se entre 418 e 408 AEC. A peça narra o mito de Creúsa e Xuto, que não
aceita o filho de sua esposa, outrora abandonado e agora reencontrado, Íon.
Esta tragédia é a que aborda Hécate da forma mais dessemelhante. A deusa aqui é associada à
Einódia ou, mais especificamente, confunde-se com esta deidade. Einódia é uma deusa que simboliza a
encruzilhada (PULQUÉRIO; ÁLVARES, 1973, p. 323), assim como Hécate8, o que nos faz concluir que
se trata possivelmente de uma divindade sincrética do período clássico, ou uma miscigenação de
divindades, sobretudo Ártemis e principalmente Hécate (PARISINOU, 2000, p. 85). Outra hipótese parte
da premissa de que Einódia seria outra representação da própria Hécate – no que acreditamos – já que
Einódia não é citada por fontes de períodos pretéritos. Esta é uma das peças na qual Eurípides mais
questiona a organização olímpica divina, subvertendo papéis e caracterizações, por isso esta permutação
de Hécate por Einódia.
A evocação a esta antonomásia de Hécate aparece em uma fala do Coro, que é formado pelas
servas de Creúsa, em uma súplica para que Einódia guie e ilumine os caminhos da sofrida mulher:
CORO
Einódia, filha de Deméter,
você, que governas os noturnos assaltos,
guia hoje, em pleno dia, ao fim a que se destina
minha augusta Senhora,
a taça mortífera, cheia de gotas de sangue
da degolada Górgona, nascida da Terra.
Guia-a para aquele que quer ser senhor
do palácio de Erecteu.
Que jamais intruso de outra raça
possa reinar em Atenas,
8 As encruzilhadas, ao menos no período clássico, possuíam uma ambiguidade, conforme nos relata Jacqueline
Feather (2009). Ao mesmo tempo em que era local de aparições de espectros, onde se enterravam criminosos e
suicidas, também poderia se configurar como um local de purificação. Desta forma, Hécate seria a protetora dos
que a ela pedem ajuda nas encruzilhadas.
41
cujo cetro pertence aos nobres Erectidas (EURÍPIDES, Íon, 1048-1058).
Reforçamos que esta Einódia se trata de uma alcunha de Hécate, mais que uma síntese de deidades,
sobretudo pelo fato de a divindade carregar tochas e pela faculdade de guiar. É Hécate quem guia
Perséfone pela escuridão do mundo dos mortos.
Esta Einódia irá guiar a “Senhora” Creúsa, da mesma forma que Hécate faz com Perséfone. Aqui
Eurípides coloca Einódia como filha de Deméter. Temos então uma série de associações. Primeiramente,
a Einódia euripidiana seria originalmente uma antiga deusa da Tessália que adentrou na Ática e levou
traços da magia tessálica para Atenas. Existem fortes indícios, inclusive, de que esta deusa, associada à
Hécate, é que a transformou na divindade das práticas mágicas, o que teria ocorrido justamente no século
V AEC (MARQUARDT, 1981, p. 252), tendo nos séculos vindouros a consagração de Hécate como a
deusa da magia.
Leah Friedman aponta que a deusa tessálica e as próprias mulheres da Tessália, as quais Einódia
estaria representando, foram estereotipadas pela sociedade helênica, sendo conhecidas como feiticeiras e
conhecedoras das práticas mágicas (FRIEDMAN, 2002, p. 140). Provavelmente, foi com esta
centralidade que Eurípides pretendeu trabalhar: a Hécate-Einodia como uma exótica formatação de
feitiçaria, detentora de conhecimentos ocultos que auxiliam os que a ela clamam.
Sendo uma deusa da encruzilhada, Einódia “concedeu” à imagem de Hécate e a seus seguidores
mortais o atributo de celebrar rituais nas encruzilhadas9. Porém, em Íon, Eurípides recria e reinventa
parte da religiosidade ateniense, e é aí que ocorre a associação de Einódia com Deméter, por exemplo.
No período clássico, Hécate já figurava entre os deuses que partilhavam as funções nos Mistérios de
Elêusis e já era, pelo imaginário mítico, reconhecida como uma companheira de Deméter e
principalmente de Perséfone. Entretanto, Eurípides vai além: relendo a genealogia divina, elege Einódia-
Hécate como filha de Deméter, agregando-a também a Perséfone. Estas três deidades, que desde o Hino
Homérico a Deméter possuem correlações, praticamente se fundem nesta tragédia como parte do mesmo
mundo.
O Coro pede a Hécate que guie Creúsa em sua jornada. Todo o trecho tem como pressuposto o
ato de guiar, em um indício da Hécate guia, a que acompanha Perséfone com seu archote de fogo. A
integração entre Hécate e Perséfone pode ser entendida como uma relação de condutora e do poder da
primeira em abrir e fechar as portas do submundo. A deusa é a que “governa os noturnos assaltos”. Os
acontecimentos repentinos, que por algum motivo estavam fora do controle, como a magia na qual
Hécate governa.
Todavia, embora Hécate apresente aqui elementos soturnos, não há uma relação clara com a
feitiçaria, mas sim com seus trabalhos como guia. Diferentemente de Medeia, não há nenhuma analogia
com a goétia, a magia renegada. Hécate auxiliará durante o dia, é importante ressaltar, na proteção do trono
real de Erecteu, do poder da cidade de Atenas; a deusa está protegendo o genos dos Erecteus, a estirpe
real. Do contrário, a tese que defendemos, de que a goétia de Hécate é extremamente individualista, esta
magia, regida sob a luz do Sol, é de interesse público, preocupa toda a polis. Defender o governante é um
interesse políade, e não somente do indivíduo que governa. Já colocamos que, neste final de período
clássico, a feitiçaria individualista se fortalecia; entretanto, a Einódia-Hécate de Íon está associada ao ato
de guiar, durante o dia e de interesse de uma realeza.
9 Hécate possuía uma denominação, Ereschigal, evocada durante a noite, em uma encruzilhada de três estradas. Esta faceta,
ao que tudo indica um lado orientalizado da divindade, era considerada mais perigosa e concederia sonhos reveladores e
pedidos ocultos a quem a chamava; tão delicado era este ritual que, assim que encerrado, o indivíduo deveria sair rapidamente
do local (FARAONE; OBBINK, 1991, p. 178.). Contudo, em nenhuma obra de cunho teatral, histórico ou filosófico este
apodo é citado. Ele encontra-se somente em katádesmoi. Contudo, vários são os ritos ocorridos em encruzilhadas que incluíam
sacrifícios de animais e trabalhos com sangue. O cão era o animal que andava junto a Hécate e muitas vezes era sacrificado
em honra da deusa. A encruzilhada, como já colocamos, poderia ser usada também como um local de purificação. Isto se
daria, da mesma forma, por meio da utilização do sangue, pois este representa o que é belo e elevado, ligando-se à própria
vida e à alma (CHEVALIER, 1986, p. 909.). Este elemento, conforme Walter Burkert, também é símbolo de purificação, e os
sacrifícios purificadores, realizados por meio de sangue, são como “ritos de passagem”, nos quais o antes impuro se torna
purificado (BURKERT, 1993, p. 175). O sangue do animal sagrado para Hécate, o cão, era importantíssimo para o sucesso
do rito.
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Hécate, desde o século VI AEC, está coligada com o mundo dos mortos. Nas partes finais do
Hino Homérico a Deméter é a deusa, ainda sem uma proximidade com a magia, quem cuida e concede
segurança a Perséfone. Na cerâmica do contexto dos Mistérios de Elêusis, Hécate empunha seus archotes
para a filha de Deméter, em seu processo de saída do mundo dos mortos. Esta narrativa, que nos
mistérios eleusinos será digna de honras, é a que a aponta em analogia com o mundo dos mortos e seus
habitantes, como os eidoloi.
Pergunta-se como Hécate foi de uma deusa auxiliar de Perséfone, bondosa para os humanos –
haja vista que, uma vez Corá, a agricultura floresceria – para uma deusa oculta das aparições
(CARVALHO, 2018, p. 153). Defendemos que esta ruptura nunca houve de fato. O que ocorreu foi um
amoldamento das antigas funções por outros modelos sociais, ideia que a tragédia pouco difundiu. Por
este trecho da obra euripidiana, parece-nos improvável julgar a obscuridade mortuária da deusa.
A peça Helena, também escrita por Eurípides, foi encenada nas Grandes Dionísias, no ano de 412
AEC; narra o encontro de Helena e Menelau no Egito após a Guerra de Troia, pois Zeus teria dado a
Paris um eidolon da espartana e transportado a verdadeira para o Egito. A citação a Hécate aparece em um
diálogo entre Helena e Menelau quando do reencontro e reconhecimento dos dois:
HELENA
Ó tu vens tarde aos braços da esposa!
MENELAU
Que esposa? Não toques meu manto.
HELENA:
Aquela que meu pai Tindáreo te deu.
MENELAU
Ó lucífera Hécate, envia boas visões!
HELENA
Não me vês serva de Enódia à noite (EURÍPIDES, Helena, 566-570).
O escritor assenta Hécate como uma criatura de luz – “lucífera” – o que exatamente Hécate
concedia a Perséfone com seus archotes, podendo ser também a própria metáfora de Perséfone encontrar
a luz e se tornar Corá.
Hécate é uma divindade que, embora possua ligação com o mundo dos mortos em Eurípides,
carrega a luminosidade, assim como no Hino Homérico a Deméter. É plausível pensar que o tragediógrafo,
na confecção de Helena – assim como de Íon – tenha, nesta passagem, sofrido influências do Hino e
originado esta ideia, muito mais do que a de uma goétia, como consta na fala de Menelau: a deusa traria
boas visões, eidoloi que talvez o ajudasse a reconhecer naquela mulher sua esposa. Com este passo
negamos que o vínculo com o sobrenatural mortuário e os fantasmas não tenham forjado uma Hécate
associada à goétia? Não. Todavia, não percebemos esta relação nas tragédias, que a atrelam mais a
sentimentos pretéritos do que às funções mágicas do período em que eram escritas.
A tragédia As Fenícias, também de Eurípides, encenada por volta de 411 AEC, teve como intuito
dar um outro enfoque à saga de Édipo escrita por Sófocles. Eurípides elabora uma releitura da disputa
pelo trono da cidade de Tebas pelos filhos de Jocasta e Édipo, que se casou com a mãe após decifrar o
enigma da Esfinge. Hécate aparece em uma fala de Antígona, também filha do casal mãe e filho:
ANTÍGONA
Oh, poderosa, filha de Latona,
Hécate! Rebrilha a planície
de bronze toda coberta (EURÍPIDES, As Fenícias, 109-111).
Aqui Hécate também é uma divindade de luz, que resplandecerá uma planície; além de ressaltar a
possível luminosidade – ou esplendecências – que a deusa exalaria. Também há uma inversão da lógica
teogônica de Hesíodo, uma vez que Eurípides, a seu estilo de questionar as genealogias divinas, aponta
Hécate como filha de Leto – Latona é outro nome possível para a deusa, utilizado com maior substância
em Roma.
43
No texto cômico de Aristófanes As Vespas, de 422 AEC, representado no festival das Leneias,
Hécate retorna à sua tradição hesiódica, associada ao julgamento. Na fala de Filocléon, o velho camponês
viciado em julgamentos, temos:
Interessante Hécate figurar em uma peça como As Vespas, permeada de sentimentos jurídicos e legalistas.
Nesta comédia, o alvo da crítica são os homens atenienses das leis, corruptos, que se dedicam a
julgamentos insignificantes e inócuos e se deixam levar por belas palavras. Esta passagem atenta para a
questão de, embora no século V AEC a deusa assumir aspectos distintos daqueles de sua primeira fonte,
ainda conserva, em parte do imaginário religioso ático, características de sua tradição pretérita.
Os pequenos tribunais que os atenienses montarão dentro de suas próprias casas se configuram
como “um nicho de Hécate”. Não encontramos evidências de que Hécate seria, neste período clássico,
uma deusa da justiça – prerrogativa atribuída muito mais a Atena – e na Assembleia democrática figuraria
com efígies ou mesmo menções a ela. Ou seja, Hécate, oficialmente, nada tinha a ver com o ideal de
justiça da democracia.
Aristófanes, nesta sua comédia, resgata uma perspectiva remota da deusa: que em seus
primórdios, ainda no século VII AEC, Hécate sentava-se ao lado dos juízes nos tribunais (HESÍODO,
Teogonia, 430-431). Como forma de criticar os padrões de justiça do período, é possível que Aristófanes
tenha deixado as divindades justas, tradicionais daquele século, e recorrido a Hécate, demonstrando que
a justiça até ali assentada e aceita pelo status quo estava desmoralizada.
Atrelar a imagem de uma deidade ctônica, fora dos padrões da polis e até associada a goétia em
alguns momentos não seria bom para a imagem da Assembleia ateniense, símbolo de poder e justiça, que
não contempla esta divindade em seus julgamentos – deuses olímpicos combinariam mais com esta
prática. A Hécate hesiódica da equidade, dos juris, se vê encerrada à peça de um comediógrafo que, por
sinal, criticava tanto seus pares quanto este ideal da assembleia democrática e seus homens do legalismo.
A última obra a ser trabalhada é a comédia As Rãs, de 405 AEC, representada durante as festas
das Leneias. Nela é narrado o descontentamento do deus Dioniso acerca do que havia se transformado
as artes naquele fim de Guerra do Peloponeso. Temos, na fala do corifeu, recomendações dadas pelo
sacerdote de como não deveria se comportar um ateniense, e como estaria se comportando parte da
sociedade daquele período.
Dentre os exemplos dados está: “[...] quem conspurca as estátuas de / Hécate, ao mesmo tempo
em que canta nos coros cíclicos; [...]” (ARISTÓFANES, As Rãs, 366-367). Do mesmo modo, não
notamos uma alusão a algum aspecto ou função de Hécate; entretanto, fica um forte indício de que esta
deidade, no período de escrita da comédia, não era relegada ao submundo, à obscuridade e ao “outro”
da feitiçaria, uma vez que estátuas em sua honra deveriam existir pela cidade de Atenas, mesmo que em
certas conjunturas.
Em busca de um entrosamento na documentação escrita que retratou Hécate até o quinto século
AEC, entendemos que as prerrogativas da deusa eram múltiplas e se alteraram com o passar dos séculos.
Sendo uma divindade bastante contemplada por Hesíodo, assumia funções que não incluíam a feitiçaria,
mas sim um rol de incumbências que a colocaram como deusa primordial, possivelmente em associação
aos poderosos titãs.
Esta retratação segue no século VI AEC, mas com a especificidade agrícola percebida no Hino
Homérico a Deméter. Possivelmente, uma divindade antiga do ciclo de Elêusis, Hécate é quem concede
amor à Perséfone/Corá e auxilia Deméter como matrona. Esta simbolização seguirá no século V AEC
em várias imagens de cerâmica, estátuas e afrescos representando Hécate no contexto de Elêusis, com
seus archotes a iluminar o caminho de Perséfone e a participar do panteão do culto misterioso.
Esta deusa pouco se parece com o que se eternizou: a divindade das feiticeiras e da goétia. Esta
função de Hécate, que se popularizou a partir do período helenístico e é eco até a contemporaneidade,
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viu seu nascimento da documentação escrita e imagética no quinto século AEC, provavelmente pelo
aumento das práticas mágicas em Atenas neste período, o que refletiu em uma parte, ainda que residual,
das imagens em cerâmicas, e de uma pequena representação na tragédia, resumindo-se praticamente a
um trecho bastante específico da tragédia Medeia.
Defendemos, então, que, mesmo durante o teatro ateniense do período clássico, a imagem que
se faz de Hécate, como a auxiliar dos magoi e das feiticeiras em suas práticas mágicas, de caráter
individualista e, muitas vezes, prejudicial aos seus alvos, no intuito de danificar o outro, não foi a
preponderante. Temas que são considerados conexos à magia, como a evocação de eidoloi e o ato de guiar,
estavam presentes, mas em um contexto de benefícios, de auxílio a práticas consideradas adequadas para
a polis. Outras temáticas, como antigas associações com Hesíodo, também estão presentes, em
transformações complexas que vão além da prática da goétia.
Avaliamos importante a forma com que percebemos a construção da imagem de Hécate,
entendendo que a magia não foi, inicialmente, uma caracterização da tragédia, para entendermos a
importância de outros períodos, como o helenístico e o mundo romano, na ereção da representação desta
deusa, que será recebida em períodos posteriores, incluso a contemporaneidade. A representação
eternizada de Hécate talvez não tenha tanto as origens clássicas do teatro, sendo fruto de usos posteriores.
No início deste Capítulo citamos a tragédia shakespeariana Macbeth, julgando que os usos que se
fez da faceta mágica e maligna de Hécate construiu muito mais a imagem que se faz da deusa na atualidade
do que as fontes produzidas na Antiguidade, mesmo aquelas que retratam o contexto da magia, como
Medeia. Desta forma, debruçar-se sobre a documentação antiga é entender que os mitos e suas divindades
são mais complexos do que parecem à primeira vista.
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ARISTÓFANES. Les Guêpes. Trad.: H. van Daele. Paris: Le Belle Lettres, 1985.
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O VOCÁBULO CARMEN :
DO CANTO AO ENCANTO NA POESIA DE HORÁCIO E VIRGÍLIO
Arlete José Mota
Estudiosos de textos literários são sempre surpreendidos pelas obras de poetas ou prosadores aos
quais se dedicam e também pelas leituras e reflexões dos especialistas aos quais têm acesso. Não
poderíamos deixar de citar, em nossa leitura de um aspecto da obra de poetas como Virgílio e Horácio,
o quão influenciou nossas perspectivas conhecer a obra de Claudio Cesar Henriques, na qual o professor
trata das divisões disciplinares (estudos literários e estudos linguísticos), publicada em 2011. Chegamos
a, inclusive, citá-la em um outro momento, dedicado aos estudos do risível na literatura latina. Literatura
como objeto de desejo possibilitou-nos ponderar mais não só acerca da possibilidade de utilização de
abordagens metodológicas distintas, como também a respeito de algo que escapa à letra impressa,
contraditoriamente fria e ardente, que desperta emoções. Aproximando-nos da literatura latina, se
podemos rir de fatos contados por Marcial, o epigramista, podemos nos deixar envolver pela atmosfera,
diríamos mágica, criada por Virgílio e Horácio, em algumas de suas produções. Sem deixarmos de inseri-
los em seu tempo − e ver refletido em seus textos o que representou a época de Augusto, no que tange
à periodização literária. Ambos inseridos no ambiente político, graças à amizade com Mecenas (CONTE,
2011, p. 216).
Nosso intuito é tratar de textos literários. Não poderíamos fazê-lo sem refletir sobre assuntos que
são pertinentes aos textos literários. Não pretendemos responder aos questionamentos sempre presentes
nas discussões sobre origens de gêneros literários e interpretações. Convém, contudo, que apresentemos
ideias norteadoras de nossas análises. A primeira ideia observamos nas palavras de Fabio Durão,
expressas quando o autor indica a sua hipótese de trabalho, explanada da seguinte forma: “pesquisa em
literatura = interpretação + aparato acadêmico”.
A literatura não existe nem nunca existiu no vácuo. Ela só pode tomar corpo em um
contexto histórico específico e, se consegue sobreviver a ele e falar a tempos futuros,
não é porque o repudiou em nome de algum valor transcendente e atemporal, mas, pelo
contrário, porque conseguiu trazer em si aquilo que era decisivo e ainda toca o presente,
por maiores que sejam as mediações necessárias (DURÃO, 2020, p. 15-16).
Há outras conjecturas a fazer. Falar de literatura nos remete a análises etimológicas do termo e a
debates sobre conceituações ao longo do tempo, dentre outros entendimentos, que não caberiam em
nossas interpretações dos textos que apresentaremos nem nos objetivos do trabalho. Interessa-nos,
porém, transcrever as considerações de Roberto Acízelo de Souza, ao tratar de questão à qual se propõe
responder, no segundo capítulo da obra Teoria da literatura (“Pode-se teorizar sobre literatura?”):
teorizar sobre algo é transformá-lo num objeto problemático, isto é, de interesse para
um estudo de caráter metódico e analítico. Ora, o produto cultural que hoje chamamos
literatura [...] desde que se fez presente na civilização ocidental, tem sido objeto de
teorização [...]. Aliás, devemos dizer que a literatura é um produto cultural que surge
com a própria civilização ocidental, pelo fato de que textos literários figuram entre os
indícios mais remotos da existência histórica dessa civilização (SOUZA, 2007, p.7).
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