2018 AmandaEstevesSilva TCC

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Universidade De Brasília

Instituto De Letras — IL
Departamento De Teoria Literária — TEL
Curso De Letras - Japonês

A QUESTÃO DA IDENTIDADE EM TANIN NO KAO DE ABE KŌBŌ

AMANDA ESTEVES SILVA

BRASÍLIA
2018
AMANDA ESTEVES SILVA

A QUESTÃO DA IDENTIDADE EM TANIN NO KAO DE ABE KŌBŌ

Monografia apresentada ao Departamento


de Línguas Estrangeiras e Tradução — LET da
Universidade de Brasília — UnB como requisito
parcial para obtenção do grau de licenciado em
Língua e Literatura Japonesa.

Orientador: Profa. Dr. Donatella Nelli

BRASÍLIA
2018
AMANDA ESTEVES SILVA

A QUESTÃO DA IDENTIDADE EM TANIN NO KAO DE ABE KŌBŌ

Monografia apresentada ao Departamento de


Línguas Estrangeiras e Tradução — LET da
Universidade de Brasília — UnB como requisito
parcial para obtenção do grau de licenciado em
Língua e Literatura Japonesa.

Orientador: Profa. Dr. Donatella Nelli

Brasília, ____ de ________ de 2018.

Banca Examinadora

_____________________________________________

Profa. Dra. Donatella Nelli

______________________________________________

Profa. Dra. Patrícia Trindade Nakagome

______________________________________________

Profa. Me. Camila Regina F. Pimentel


RESUMO:

O presente trabalho objetiva a investigação da importância da busca da identidade


dentro da obra Tanin no Kao para seu autor japonês, Abe Kōbō. Apresenta a sociedade
moderna japonesa com destaque para alguns eventos que desencadearam o movimento
literário vanguardista do pós-guerra japonês, o qual Abe fez parte. Evidencia as influências
políticas integradas à vanguarda japonesa, principalmente o comunismo e a atuação do autor
no Partido Comunista Japonês, além de sua estilística surrealista e fantástica. Explora a
temática perda de identidade social, consequência da vida na Manchúria e as influências
ocidentais. Por não ter vivido parte de sua vida no Japão, suas obras não possuem o
tradicionalismo japonês. Analisa os temas da perda e busca por uma nova identidade e a
alienação social através da obra Tanin no Kao (O rosto de Outro, 1964). Obra que se destaca
por suas peculiaridades e sua importante representação da sociedade moderna japonesa da
época.

Palavras-chaves: Abe Kōbō, Sociedade Moderna Japonesa, Literatura, Identidade.


ABSTRACT

This paper has the objective of investigating of importance of the search for identity
within the Tanin no Kao prose (The Face of Another, 1964) for its Japanese author, Abe Kōbō.
It presents the modern Japanese society with highlight to some events that unleashed the
avant-garde literary movement of the Japanese post-war, which Abe was part of. It evidences
the political influences integrated to the Japanese vanguard, mainly the communism and the
action of the author in the Japanese Communist Party, besides its surrealistic and fantastic
stylistic. It explores the thematic loss of social identity, a consequence of life in Manchuria
and Western influences. For not having lived part of its life in Japan, its works do not possess
the Japanese traditionalism. It analyzes the themes of loss and the search for a new identity
and social alienation through Tanin no Kao. This work stands out for its peculiarities and its
important representation of the modern Japanese society of the time.

Keywords: Abe Kōbō, Modern Japanese Society, Literature, Identity.


DEDICATÓRIA
Este trabalho é dedicado a todas as pessoas
que estão como eu, voando no céu como um pássaro.
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar a Deus, que me deu habilidade que nem eu mesma tinha para
estruturar esse trabalho. Da minha graduação, aos meus sensei que ensinaram mais que só
uma língua ou uma cultura. A Professora Donatella por ter me ajudado apesar da minha falta
de escrita e minhas enrolações. A minha família que sempre me apoiou e me ajudou ao longo
dos meus estudos. E aos Joselito e Ana que me ensinaram a não desistir e a perseverar, que ao
vierem para Brasília mudaram a minha vida e a vida da minha família.
Sumário

RESUMO:...................................................................................................................... iv

ABSTRACT ................................................................................................................... v

DEDICATÓRIA ............................................................................................................ vi

AGRADECIMENTOS .................................................................................................vii

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 1

1 CAPÍTULO – VANGUARDA E PÓS-GUERRA ................................................... 3

1.1 Vanguarda do Pós-Guerra ................................................................................. 3

1.2 O Fantástico na Literatura Japonesa ................................................................. 6

1.3 Influência Comunista ...................................................................................... 10

2 CAPÍTULO – ABE KŌBŌ E SEU TEMPO ......................................................... 13

3 CAPÍTULO – TANIN NO KAO ........................................................................... 21

3.1 Sobre a obra: ................................................................................................... 21

3.2 Antes da carta.................................................................................................. 23

3.2.1 Perda da identidade ................................................................................... 23

3.2.2 A máscara .................................................................................................. 26

3.3 A carta da esposa ............................................................................................ 28

3.4 Relação matrimonial ....................................................................................... 29

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 33

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 35
1

INTRODUÇÃO

O Japão, durante o Período Meiji (1868-1912) foi marcado não apenas pelo fim do
Xogunato1. O país se abriu para o Ocidente iniciando um amplo processo de modernização
que abrangeu várias áreas, inclusive a cultural. Os programas de desenvolvimento
estabelecidos pelo governo tiveram resposta entusiasmada dos japoneses (povo).
Este processo de modernização iniciado pelo Japão foi realizado de forma inigualável
a qualquer outro país não-ocidental (Napier, 1996, p. 5) e se refletiu em várias áreas da cultura
japonesa, na literatura em particular, por meio da apresentação de traduções de obras
ocidentais.
Todavia, no âmbito da literatura fantástica, cujo primeiro exemplo mais sucedido é
Viagem Noturna no Trem da Via Láctea2 de Miyazawa Kenji (1896-1933), a modernização é
muitas vezes observada de forma crítica e apresentada sob seus aspectos negativos.

...o fantástico revelou as profundezas sombrias da modernidade em


imagens extraordinárias e memoráveis, como os asilos lunáticos e hospitais de
Akutagawa e Yumeno Kyūsaku, a tecnologia fora de controle de Abe e Oe, ou nos
ataques contínuos e vívidos à evolução por escritores tão díspares quanto Izumi
Kyoka e Tsutsui Yasutaka.3
(NAPIER, de 2005, p.13, tradução nossa)

De fato, a modernização japonesa foi argumento de muitos autores do fantástico no


Japão, não apenas no Período Meiji (1868-1912), como também no Período Taishō (1912-
1926) e Shōwa (1926-1989), fato que proporcionou uma grande variedade de trabalhos
literários com preocupações diferentes a respeito dessa temática.
No período Shōwa, os eventos que sucederam a Segunda Guerra Mundial trouxeram
um avanço tecnológico muito rápido e um consequente desenvolvimento marcante da
sociedade japonesa. A forma como o povo japonês reagiu a essa nova fase da modernidade
criou diferentes dilemas existenciais que foram abordados pelos artistas emergentes.
Na literatura, em particular, muitos autores desse período enfatizaram a ameaça da
tecnologia e sua alienação sobre o homem.
Abe Kōbō (1924-1993) foi um importante escritor de literatura fantástica no pós-
guerra que abordou esse tipo de temática. Seu estilo analítico, devido a sua formação médica e
ao seu fascínio pela ficção científica, revelaram-se instrumentos essenciais da sua escrita.
1
Sistema de governo predominante no Japão de 1192 a 1867.
2
Kenji, Miyazawa. Viagem Noturna no Trem da Via Láctea. Tradução de Lica Hashimoto e Madalena
Hashimoto Cordaro. 1º ed. Globo Editora, 2008. 412 p.
3
NAPIER, Susan J. The Fantastic in Modern Japanese Literature Napier: the Subversion of Modernity.
Oxford: Taylor & Francis. 2005.
2

Por ter vivido parte de sua vida na Manchúria, distante de seu país de origem, o
escritor entrou cedo em contato com a cultura ocidental e teve assim a oportunidade de
estudar autores estrangeiros e contemporâneos. Esta experiência o levou a vivenciar uma
identidade segmentada, principalmente por falta nele de um marcante sentimento de
patriotismo japonês. Abe Kōbō ofereceu uma visão divergente, como ele mesmo diz, “da
visão alienada da sociedade japonesa” (Cahill, 2009) e ainda assim, recebeu grande respeito e
admiração dos seus leitores por ter alcançado um amplo reconhecimento internacional.
Reconhecimento esse que surgiu com o seu romance mais famoso, Suna no Onna (“A Mulher
de Areia”, 1962).
A questão da procura pela identidade no pós-guerra foi algo enredado em suas obras,
assim como a alienação da sociedade consumista japonesa, outro tema que, sem dúvida,
devem-se as influências marxistas recebidas na juventude.
O presente trabalho é dividido em três capítulos cujo primeiro apresenta a sociedade
moderna japonesa. Sua contextualização, alguns eventos importantes que desencadearam o
movimento literário vanguardista do pós-guerra, tais como as implicações políticas integradas
à vanguarda japonesa, principalmente o comunismo e sua atuação no Partido Comunista
Japonês. No segundo capítulo será investigado como a vida na Manchúria e as influências
ocidentais geraram a visão de Abe Kōbō sobre a identidade social. Identidade essa muito
tratada em suas temáticas. E no terceiro capítulo, a análise da obra Tanin no Kao (O rosto de
Outro, 1964). Obra que se destaca por suas peculiaridades e sua importante representação da
sociedade moderna japonesa da época.
O objetivo do trabalho é tentar investigar a importância da busca pela identidade
dentro da obra Tanin no Kao. Pois Abe Kōbō foi considerado um autor japonês por sua prosa
ser escrita na língua japonesa. Seu estilo e influência não japonesa, porém, o tornam como diz
Timothy Iles, “um fantasma dentro do sistema de literatura japonesa” (1997, p.1). Sua
desenvoltura literária se diverge pela rejeição de qualquer associação com a literatura
japonesa, como sua estrutura, sua visão social, suas ideologias em favor do contexto mais
amplo da literatura mundial.
Os esforços de Abe em escrever sobre a sociedade japonesa sob a influência dos
conceitos ideológicos e filosóficos ocidentais possibilitou ao Ocidente compreender e lidar
com o Japão moderno. Sua visão única capacitou a seus personagens externarem o desespero
e agonia de uma sociedade engolida pela tecnologia e urbanização.
3

1 CAPÍTULO – VANGUARDA E PÓS-GUERRA

...os japoneses em 1945 não precisaram ir muito longe para encontrar o


oposto de uma utopia; estava tudo ao redor deles nos escombros de Tóquio e nas
cinzas de Hiroshima. . Talvez a coisa mais próxima da ficção distópica possa ser
encontrada nos escritos dos chamados decadentes ou Burai-ha como Sakaguchi
Ango, Ishikawa Jun.4
(NAPIER, de 2005, p. 194, tradução nossa)

O cenário japonês mudou completamente no dia 15 de agosto de 1945, quando o


Imperador Shōwa (Hirohito, 1901-1989) apareceu publicamente e fez o famoso
pronunciamento de rendição incondicional do Japão. Esse discurso foi a primeira declaração
pública da “divindade” imperial e sancionou a única derrota do Japão em trezentos anos.
Entretanto, o que impressionou os japoneses foi a presença do Comandante Supremo
das Forças Aliadas, Douglas McArthur ao lado do Imperador Hirohito, no momento em que
negava sua descendência divina. De fato, além de renunciar a sua função política, o Imperador
abriu mão de seu status divino, segundo a antiga tradição xintoísta, e passou a ser apenas um
símbolo da unidade do povo japonês.
Essas mudanças afetaram profundamente o povo japonês, que acreditava serem
súditos de um descendente divino. E mesmo que a palavra “rendição” não aparecesse no
discurso que encerrou a guerra, a seguinte intervenção e submissão do governo japonês às
exigências dos americanos indignou muitos japoneses ao ponto que logo depois da rendição
tiveram vários casos de seppuku5 entre os nacionalistas.
A ferida da Segunda Guerra Mundial deixou a sociedade japonesa muito vulnerável.
Além dos ataques aéreos, a economia desestabilizada, a miséria e a fome que o país sofreu
durante a guerra com os bombardeios nucleares a esperança de uma vitória se perdeu para
sempre, e esta tomada de consciência foi devastadora para os japoneses. A derrota causou em
muitos um sentimento de traição por parte Imperador e a abdicação de todos os valores que
lhes foram ensinados.

1.1 Vanguarda do Pós-Guerra


Um dos grandes autores do pós-guerra foi Ōe Kenzaburō (1935 -), cuja derrota do
Japão o afetou diretamente.
Embora afastado dos centros culturais, Kenzaburō fora doutrinado ideologicamente ao
culto ao Imperador desde a infância. Essa doutrinação era de nível nacional principalmente
4
Ibid, p. 194.
5
O seppuku era um suicídio ritualístico japonês realizado principalmente pelos samurais.
4

durante o expansionismo militar extremamente nacionalista. Pela ausência do pai, Kenzaburō


projetou sua idealização paterna à imposta honra ao Imperador. Com o final da Grande Guerra,
o discurso Imperial de Hirohito causou um sentimento de ambiguidade em Kenzaburō. Ele
sentia-se liberado das obrigações para com o Imperador, e se sentia humilhado. Em vista que,
essa tradição fazia parte de sua vida e identidade nacional desde a infância como parte de sua
formação como cidadão nipônico. Kenzaburō se apoiou em suas convicções ocidentais e em
sua imaginação apurada. Como grande apreciador de Sartre e seu existencialismo, Kenzaburō
expõe sua influência logo em seus primeiros trabalhos. 6
Assim como Kenzaburō, outros autores do Pós-guerra também tiveram acesso às
filosofias ideológicas europeias devido à ocidentalização ocorrida no Japão a partir do final do
século XIX.
De acordo com o crítico literário Okuno Takeo7 (1926 - 1997), muitos escritores que
de fato viveram a guerra nasceram nessa sociedade japonesa com acesso as obras literárias e
filosóficas estrangeiras. E por serem conhecedores da tradição japonesa e explorarem as
ideologias ocidentais, foram capazes de produzir obras inovadoras que de certa forma
direcionaram os escritores do pré-guerra. O efeito de suas obras ímpares fora estimulante para
os escritores já estabelecidos.

A maioria dos escritores da "Terceira Nova Geração" nasceram entre 1916


e 1926 e passaram seus dias de estudante em um período em que o movimento
ideológico marxista no Japão já havia chegado ao fim. A maioria deles foi
convocada para o exército como soldado, alguns deles quando ainda eram
estudantes. Assim, eles eram uma geração da guerra cuja juventude correspondia
aos anos de guerra. Eles compartilham uma desconfiança instintiva de ideologias
ou de políticas. É verdade que o termo "Terceira Nova Geração" é usado por mera
conveniência, e que cada escritor deste grupo tem sua característica individual.8
(TAKEO, de 1972, p. xxxvii, tradução nossa)

Assim como Kenzaburō, outro autor que viveu o Pós-guerra foi Fukunaga Takehiko
(1918-1979). Fukunaga, embora tenha nascido em Fukuoka, mudou-se para Tóquio enquanto
ainda cursava o primário. Desde jovem, seus poemas, críticas e romances já eram publicados
em revistas. Seu grande interesse nos escritores franceses o levou a estudar na Universidade
de Tóquio do Departamento de Literatura Francesa. Seus estudos se aprofundaram em
Mallarmé (1842-1898), Baudelaire (1821-1867), Lautréamont (1846-1870), e Rimbaud
6
NATILI, Donatella. Beleza e Ambiguidade. Publicado pela Revista Cerrados: Revista do Programa de
Pós-Graduação em Literatura. n. 44, ano 26, p. 64-79, 2017.
7
Okuno Takeo (1926 - 1997) foi um crítico literário japonês e professor da Universidade de Tama.
Conhecido por sua aceitação das escritoras na literatura japonesa. Recebeu o prémio Taiko Hirabayashi em 1984
e a medalha de fita roxa (Shiju hōshō) em 1995.
8
TAKEO, Okuno. Introdução In: SHINKOKAI, Kokusai Bunka. Introduction to contemporary
japanese literature: Synopses of major works; 1956-1970. Tokyo, 1972. p. xxxvii.
5

(1854-1891). Takehiko traduziu as obras de Jean-Paul Sartre (1905-1980), como grande


apreciador da literatura francesa.
Por causa de seus problemas de saúde que estiveram presentes desde a infância,
Fukunaga foi dispensado do serviço militar durante a Segunda Grande Guerra. E durante esse
tempo, Fukunaga submergiu na literatura estilo “arte pela arte”, uma vertente que não
considera as preocupações mesquinhas deste mundo. Isso o levou a um extenso conhecimento
literário, em específico a literatura ocidental. Ainda durante a Guerra, Fukunaga formou um
grupo literário juntamente com Nakamura Shin’ichirô, Katô Shûichi e outros autores. O grupo
se chamava Matinée Poétique e estudava várias formas de poesia japonesa e experimentou
escrever alguns desses poemas com rimas regulares. Após a Guerra, o grupo também publicou
uma coletânea chamada 1946 Bungakuteki Kôsatsu (Observações literárias de 1946) o que
chamou a atenção para Fukunaga por sua vasta erudição e seu forte poder de análise (TAKEO,
1972). Com essa publicação, Fukunaga fez sua entrada na literatura do Pós-guerra, por sua
técnica de escrita e suas ideias sombrias.

Embora as obras tenham ideias sombrias sobre a vida, existe algo de lírico
e doce em suas obras e ao mesmo tempo são histórias bem escritas. Fukunaga
recebe o entusiasmo especialmente das jovens. Seus ensaios sobre amor e solidão
foram amplamente lidos... 9
(SHINKOKAI de 1972, p.40, tradução nossa)

Fukunaga foi aluno de Hori Tatsuo (1904-1953) durante a Guerra. Foi Tatsuo quem
lhe influenciou sobre as melancolias da morte. Infelizmente Fukunaga recebeu um
diagnóstico semelhante ao de seu mentor. A tuberculose deixou Takehiko recluso lhe dando
assim mais solidão para escrever.

Fukunaga, que é bem versado na literatura mundial e tem interesses


amplos (incluindo histórias de detetives), é um verdadeiro diletante no bom sentido
da palavra. Ele é um defensor consciencioso da arte pela arte, que está tentando
manter viva a tradição artística japonesa no contexto do estilo Ocidental da
literatura moderna do Japão.10
(SHINKOKAI de 1972, p.41, tradução nossa)

Fukunaga com seu estilo próprio foi um dos vanguardistas do Pós-guerra, juntamente
com Ōe Kenzaburō, Ishikawa Jun (1899-1987) e Abe Kōbō. E realmente apesar de serem
classificados como autores do Pós-guerra possuem características individuais. Ishikawa Jun

9
SHINKOKAI, Kokusai Bunka. Introduction to contemporary japanese literature: Synopses of major
works; 1956-1970. Tokyo, 1972, p. 40.
10
Ibd, p. 41.
6

foi um escritor modernista do pré-guerra, mas que foi muito ativo e influenciador no Pós-
guerra.

Ishikawa Jun, que é respeitado e amado por escritores como Abe Kôbô,
Fukunaga Takehiko e Ôe Kenzaburô, precursor da literatura de vanguarda de hoje,
emergiu do relativo silêncio que durou por um tempo, com seu longo romance
Aratama (Violent Soul, 1963-1964).11
(TAKEO, de 1972, p. xl, tradução nossa)

No cenário japonês após a guerra, os escombros assombraram a sociedade de forma


que os escritores da época não precisavam criar um imaginário distópico, já era a própria
realidade. Retratar o sentimento de desespero estava, sem dúvida, presente também nas
temáticas de escritores do grupo Burai-ha, do qual eram participantes Ishikawa Jun e Dazai
Osamu (1909-1948).

[...] Dazai Osamu e os escritores Oda Sakunosuke, pertencentes aos


mesmos Burai-ha, que acabaram cometendo suicídio ou se arruinando. Mesmo em
desespero, Ishikawa não deixa de ser um observador imparcial. Essa é a razão pela
qual suas obras são tão precisamente espelhadas na realidade.12
(SHINKOKAI de 1972, p.77, tradução nossa)

A loucura e o niilismo são assuntos constantemente abordados na literatura fantástica.


Para os autores que viveram a modernidade tecnológica e vivenciaram a guerra, implicou em
seus personagens estarem constantemente em uma busca desesperada por alguma forma de
“conhecimento” ou certeza. E, ao final, descobria-se que a busca, em si mesma, é
simplesmente uma ilusão.
A literatura fantástica japonesa traz essas características, mesmo com suas diferenças
dependendo da obra e do autor. Para ficar clara a presença do gênero literário Fantástico nos
escritos dos autores vanguardistas do Pós-guerra, será necessário conceituá-lo.

1.2 O Fantástico na Literatura Japonesa


A definição de Literatura fantástica de Tzventan Todorov (1939-2017) em seu livro O
Fantástico: Uma Abordagem Estrutural de um Gênero Literário (1975) é a mais conhecida e
convincente. Todorov se concentra nos seus aspectos formais como um gênero e tornou as
implicações ideológicas e morais do fantástico irrelevantes para caracterizar a estrutura do
fantástico. Ele chega a dividir a literatura fantástica em três vertentes: o fantástico, o estranho
e o maravilhoso. Sua teoria consiste em afirmar que o fantástico é um gênero marcado por um

11
TAKEO, 1972, p. xl.
12
SHINKOKAI. 1972, p.77.
7

momento de hesitação do leitor e, ordinariamente, dos personagens, na tentativa de explicar


um evento ou uma ocorrência em particular que aparenta ser impossível. As explicações
sempre tendo mais de uma interpretação, geralmente tendendo a duas: ou evento impossível
realmente acontece, como se estivesse no mundo do sobrenatural, ou o ocorrido pode ser
explicado por algum pensamento racional, como alucinações, ou algum tipo de truque. Por
Todorov considerar a hesitação o marco fantástico sua explicação não lhe importa.

Para Todorov, no entanto, não é a explicação, mas o momento de hesitação


diante da explicação, quando o leitor / protagonista espera em antecipação de
suspense para a resolução final, que constitui o verdadeiro fantástico.
Como muitos críticos de Todorov apontaram sua teoria, embora brilhante,
é extremamente limitante. Poucas obras conseguem manter a fantástica hesitação
ao longo de todo o texto13.
(NAPIER, de 2005, p. 7, tradução nossa)

Esse fantástico verdadeiro, segundo Todorov, está presente em algumas obras


japonesas como em Yabu no naka (1921) de Akutagawa ou ainda em Sora no kaibutsu Aguii
(1964) de Ōe Kenzaburō.
Entretanto, a restrita definição estruturalista de Todorov não possibilita o estipular
ideológico presente na literatura fantástica um conceito ou definição. Sem desconsiderar as
implicações que Todorov aponta como o fato de ser um gênero baseado em incertezas, de que
não tenta representar o mundo real baseado em fatos científicos, pois implica em um mundo
desconhecido.
Para Rosemary Jackson, o fantástico é um gênero paradoxal, tendo em vista que é feito
de incertezas e da constante busca para resolvê-las, que, por sua vez, sempre é insatisfatória.
Do ponto de vista ideológico, a busca insatisfatória que dá ímpeto a grande parte do gênero. O
fantástico é colocado como uma literatura de desejo, de forma que abrange o que é a fantasia,
e mais importante, uma literatura subversiva.

Jackson examina esse aspecto da fantasia em relação à ascensão do


romance realista com sua visão de “unidade” no Ocidente do século XIX e conclui
que “subvertendo essa visão unitária, o fantástico introduz confusão e alternativas;
no século XIX isso significava uma oposição à ideologia burguesa sustentada pelo
romance ‘realista’”.14
(NAPIER, de 2005, p. 8, tradução nossa)

Susan Napier em sua pesquisa sobre o fantástico japonês concorda com Jackson, que a
literatura fantástica é uma literatura de subversão. No caso do Japão, não pelos mesmos

13
NAPIER. 2005, p. 7.
14
NAPIER op. cit., p. 8.
8

motivos do romance realista. A maior parte da fantasia japonesa existe como um contra
discurso ao moderno, em específico, para Abe Kōbō contra a tecnologia. Napier aponta
também o que diz Eric Rabkin em seu livro Fantástico na Literatura (1976), a respeito da
fantasia e do fantástico.

O trabalho começa com uma análise da reação surpresa de Alice às


plantas falantes em Alice através do Espelho, de Lewis Carroll. Rabkin argumenta
que o modo fantástico é estabelecido pela inversão das regras básicas: como ele diz,
“um dos principais sinais distintivos do fantástico é que as perspectivas impostas
pelas regras básicas do mundo narrativo devem ser diametralmente contraditas”.
Formas importantes em que as regras básicas são contraditas são através dos temas
comuns da fantasia, como bestas falantes, espelhos mágicos, sonhos, jornadas para
outros mundos, metamorfoses e duplicação, todos os quais ocorrem com frequência
na fantasia japonesa.15
(NAPIER, de 2005, p. 8, tradução nossa)

Essa percepção da fantasia, o fantástico japonês traz em obras que tratam os mitos
rurais. Esses mitos chegam a revitalizar os escritos visionários desses autores. E com isso,
Napier conceitua a fantasia baseada na definição de Kathryn Hume que por si só já é muito
ampla. Napier define fantasia como “qualquer desvio consciente da realidade consensual”.16
Sem deixar de se preocupar com as motivações para se produzir escritos fantásticos.
No Ocidente durante o século XX, o fantástico foi considerado um gênero
marginalizado em relação ao realismo, por ser considerado um gênero não sério. No Japão, a
literatura fantástica fora marginalizada em relação ao naturalismo da época. Posterior à guerra,
a percepção sobre o fantástico foi se tornando mais séria, sua importância tem sido
reconhecida cada vez mais na teoria literária atual.

Fantasmas, andróginos, metamorfoses e imagens espelhadas são


abundantes na fantasia japonesa, questionando intrinsecamente a noção de um
único "real". Além disso, assim como escritores latino-americanos voltaram às suas
tradições folclóricas indígenas para inspirar fantasias contemporâneas, um número
de japoneses escritores, de Izumi Kyōka a Oe Kenzaburō e Nakagami Kenji, voltam
ao mito rural para revitalizar suas próprias obras visionárias. Podemos sugerir que
o impulso latino-americano e japonês para o fantástico é uma redescoberta literal
de um imaginário perdido, o mundo que nas teorias de Lacan constitui o ventre, o
lugar da união perante a lei do pai obriga a criança ao mundo do Simbólico. No
caso do Japão e da América Latina, a lei do pai é claramente o discurso do
Ocidente. Talvez não seja uma coincidência, portanto, que a imagem do útero seja
extremamente importante no fantástico japonês, enquanto o pai, virtualmente um
elemento básico no realismo japonês pré-guerra, é notável por sua ausência.17
(NAPIER, de 2005, p. 11, tradução nossa)

15
Ibid, loc. cit.
16
Ibid., p. 9.
17
Ibid., p. 11.
9

No caso do fantástico japonês não se trata apenas de retornar aos mitos, mas criar
mundos totalmente modernos sem deixar de serem japonês. Em um momento em que a
modernidade está estreitamente ligada a tecnologia do século XX.
O desespero por algum conhecimento é uma consequência da modernidade a qual o
Japão se entregou de forma tão plena e sincera como qualquer país ocidental, no escuro. Sem
garantia ou segurança de que o país se tornaria uma potência a ser equivalente as potências
ocidentais ou a ser outra China, explorada, subdividida e não desenvolvida. Essa semelhança
da falta de certezas com a modernização do Ocidente que faz o Fantástico Japonês trilhar
tantas semelhanças com o Fantástico Ocidental. Então, apesar de divulgar o progresso
constante, o milagre econômico e a harmonia social, como o governo doutrinou o país a
pensar, o Fantástico vive a margem disto para mostrar o inverso. Como um espelho que revela
o contrário desse estereotipado Japão moderno e seus custos.
O progresso e a modernidade foram alvos constantes do fantástico pré-guerra. Em que
a fuga já era pregada como um refúgio do mundo real. Essa resistência ao progresso que o
fantástico japonês pregou, forçou muitas vezes os leitores a questionarem se estavam
perdendo sua identidade nacional de japonês moderno.
O destaque a Ishikawa Jun é justamente por ter sido um desses autores. Seu fascínio e
a impossibilidade da utopia são extensivamente explorados em suas obras. Entretanto sua
visão é mais abrangente e radical, pois engloba tanto a sociedade japonesa da época como a
história do país. Na década de 1930, Jun inovou com o que chamou de Jikken shosetsu
(romance experimental), o qual seus escritos eram uma combinação de autorreflexão com
surrealismo para retratar os problemas políticos presentes no Japão. Essa tendência surrealista
e fantástica já era algo pré-vanguardista em Ishikawa. Pois embora essas vertentes já
existissem no pré-guerra suas combinações com a utopia seria mais bem delineadas após a
guerra.

Outra semelhança com os escritores ocidentais contemporâneos é a técnica


narrativa, especialmente o uso da fantasia ou do surrealismo. Ambos os autores
japoneses e ocidentais estão cada vez mais dispostos a usar o fantástico para fazer
seus pontos utópicos.18
(NAPIER, de 2005, p. 165, tradução nossa)

Entretanto o escritor Abe, manteve sua influência na distopia escrita por Ishikawa. A
visão de Abe não estava de acordo com utopia, na verdade era totalmente distópica. Isso foi
algo que outros autores também absorveram.

18
Ibid, p. 165.
10

A visão sombria de Ishikawa é compensada de alguma forma por suas


imagens de liberdade e fuga. Essa tensão entre aprisionamento e liberdade é
mantida nas obras de outros escritores que se tornaram famosos nos anos 1950 e
1960,... As razões por trás disso estão relacionadas às experiências pessoais dos
escritores e seus respectivos lugares na história japonesa do pós-guerra. Assim, os
escritores que dominaram as décadas de 1960 e 1970, como Abe Kōbō, Oe
Kenzaburō e até mesmo o popular escritor de ficção científica Komatsu Sakyō,
cresceram durante a guerra e, sem dúvida, sua sombra destrutiva influenciou suas
visões frequentemente apocalípticas.19
(NAPIER, de 2005, p. 195, tradução nossa)

Abe conhecia o fantástico principalmente de sua infância, como veremos no capítulo


seguinte, mas no pós-guerra usavam o surrealismo e a fantasia de forma grotesca o que
causava a reação de horror da sociedade estabelecida. Essa questão surrealista tão presente em
suas obras teve maior influência de Hanada Kiyoteru.

1.3 Influência Comunista


Em 1947, os Estados Unidos, atentos aos avanços do comunismo na Ásia, deram
ordens urgentes ao Comandante Douglas MacArthur no Japão para iniciar as primeiras
providências em prol da revitalização da economia nipônica.

Os Estados Unidos preocuparam-se urgentemente com a reconstrução


daquela economia por causa do perigo e medo soviéticos que assombrava o mundo;
os americanos queriam transformar o Japão num país forte, capaz de defender o
Pacífico junto com eles, isso só seria possível projetando-os como uma Nação
economicamente viável.20
(GUEDES, de 2010, p. 18)

O comunismo pregado pela União Soviética ao final da Segunda Guerra Mundial


crescia de uma maneira muito rápida, principalmente em países da Ásia. Sua estratégia era
para que o partido comunista fosse internacional, ou seja, em cada país existisse um grupo
representando esse partido. No Brasil, era o Partido Comunista Brasileiro e no Japão era o
Partido Comunista Japonês fundado em 1922 por Tokuda Kyuichi (1824-1953).
Como ao final da guerra os americanos ocuparam o Japão, os prisioneiros de guerra
retornaram ao país, entre eles o fundador do Partido Comunista. Os ideais comunistas
trouxeram Hanada Kiyoteru para dentro do Partido Comunista Japonês.

19
Ibid, p. 195.
20
GUEDES, Bruna Benini Wanick de Almeida. O Japão do Pós-Guerra: A catarse da tradição e da
modernidade em Yukio Mishima. Trabalho de conclusão de curso - PUC. 2010. p,18.
11

Hanada Kiyoteru (1909-1974) se formou na Universidade Imperial de Quioto e


trabalhou como jornalista em Tóquio. Após a guerra, ajudou muitos escritores vanguardistas a
terem seus textos publicados. Grande defensor do marxismo e do comunismo, Hanada era
membro ativo do partido comunista. As ideias de Hanada, durante o Pós-guerra, partiram de
um entendimento de que o sistema tradicional de valores do Estado estabilizado não poderia
funcionar num momento em que a nação passava por muitas mudanças. Com isso se tornou
extremamente anti-humanista. Sua ideologia se baseava em que o humanismo não tinha
espaço no mundo moderno. O humanismo do qual Hanada era contra, estava sobrepondo o ser
humano sobre as outras espécies de animais, e que os minerais e vegetais receberiam ultima
importância. E no mundo moderno deveria haver uma desconstrução do humanismo para
ocorrer uma preocupação maior pelos não-vivos, propondo assim, uma visão centrada entorno
do mineral. Hanada pregava em suma estância um novo método para representar o mundo em
mudanças, o uso do irreal e o real. A nova arte deveria apresentar lados opostos, como o real e
o irreal para criar uma arte abrangente. Essa teoria de Hanada foi publicada em 1954, Avan
Gyarudo Geijutsu (“Arte de Vanguarda”).
Enquanto Hanada trabalhava na revista Kose como editor, teve seu primeiro encontro
com os escritos de Abe, em 1948. Abe demostrou ter os mesmos interesses ideológicos como
o marxismo que Hanada, e foi ainda apresentado ao surrealismo como um meio de expressar
esses ideais.
Hanada não apenas lhe influenciou quanto à técnica surrealista, mas o apresentou ao
seu grupo literário de vanguarda. Devido à proximidade entre os dois, Abe foi capaz de
influenciar Hanada e vice-versa.
Em 1951, Abe Kōbō se aliou ao Partido Comunista, do qual era membro assíduo.
Guiado não apenas por seus ideais políticos, mas pelo desapego nacional que o deixava
liberado para aceitar o ideal comunista. Ideal esse que exigia uma ruptura completa dos males
do passado e tinha pouca consideração pelas tradições culturais. Nessa época a visão
esquerdista de Abe se tornou bastante afiada, e isto refletiu em suas produções literárias e em
seu senso político.

O estudo dos primeiros escritos de Abe no contexto de servir à causa


comunista tem um interesse intrínseco por sua própria conta, devido à interação
entre política e literatura. O surrealismo foi a única abordagem que poderia criar
sua visão de um mundo de igualdade total...
Hanada insistiu em um afastamento radical do humanismo renascentista,
no qual os seres humanos ocupavam uma fase central; ele defendeu ainda o
materialismo em que a igualdade é estendida a todas as coisas, não apenas aos
12

humanos e animais, mas também aos inanimados. Sob sua influência, não é
surpresa encontrar a criatividade de Abe dirigida à causa comunista.21
(MOTOYAMA, de 1995, p. 312, tradução nossa)

Essas ideologias defendidas por Hanada influenciaram diretamente a próxima obra de


Abe nesse período. Sua primeira obra carregada de surrealismo e anti-humanismo,
Dendorokakariya: Kumon kun ga Dendorokakariya ni natta Hanashi (“A história do Sr.
Kumon se transformando em uma Dendrocacalia”, 1949).

21
MOTOYAMA, Mutsuko. The Literature and Politics of Abe Kōbō: Farewell to Communism in Suna
no Onna. Monuments Nipponica 50, no. 3 (1995), p. 312.
13

2 CAPÍTULO – ABE KŌBŌ E SEU TEMPO

“Eu li as histórias de Poe e contei para os meus colegas. Eu tinha que ler
uma história por dia para manter minha posição, e ainda havia uma demanda,
mesmo depois de terminar todas as traduções. Eu então me descobri tendo que
inventar histórias durante o inverno. Essa foi a primeira vez que comecei a escrever
o tipo de história que poderia entreter outras pessoas” – Abe Kōbō.22
(SHIELDS,1996, p. 33, apud, CAHILL, de 2009, p. 5, tradução nossa)

Em 1924, na cidade Tóquio, nasceu um dos maiores autores vanguardista do século


XX: Abe Kōbō. Seu pai era médico e sua mãe, uma escritora. Abe viveu grande parte de sua
juventude na Manchúria, no leste da China, devido ao trabalho de seu pai.
Em 1931, apos à invasão japonesa na China continental, Abe viajou para a cidade
natal de sua mãe em Hokkaido. Essa ilha, que foi uma das últimas a ser anexas ao arquipélago
japonês, era uma região agrícola. A estadia em Hokkaido trouxe um pequeno reflexo nas
obras do escritor, pois foi o seu primeiro contato com o Japão até seus 16 anos de vida.
A educação recebida na Manchúria na época era a mesma do Japão por causa
da doutrinação ideológica do édito imperial daquele tempo. Os professores instruíam as
crianças a acreditarem que o Japão era maravilhoso, despertando assim o anseio dos pequenos
em viver em pátria. E isso evidenciava ainda mais as diferenças entre onde residiam e a nação
de onde vieram.

O que podemos ver nesse caso é que Abe, mesmo quando criança, sonhava
em retornar à terra que aprendera a considerar como sua, estava ciente das
contradições daquela terra. A nacionalidade japonesa era algo que seus professores
colocavam nele, como um uniforme que se recusava a se encaixar corretamente.
Por mais desejável que o uniforme pareça inicialmente, eventualmente o
desconforto forçará o usuário a removê-lo - para alterá-lo ou descartá-lo para
sempre [...].23
(ILES, de 1997, p. 24, tradução nossa)

O nacionalismo apresentado pelo corpo docente era tão forte que qualquer mau
comportamento da parte dos alunos, os professores afirmavam que “tal fato nunca ocorreria
em casa”. Usando “casa” para se referir ao Japão. Com o passar dos anos ao ver seus
professores agirem desta forma, Abe foi criando uma visão de um Japão fechado para ele.
Ao contrário da ideia de homogeneidade do Japão difundida nos anos 1930, Abe teve
em sua educação o entendimento de que não havia uma hierarquia de raças. A ideologia

22
SHIELDS, Nancy. Fake Fish: The Theater of Abe Kobo. New York: Weatherhill, 1996, p. 33.
23
ILES, Timothy John Frederick. Towards a New Community: Abe Kôbô: an Exploration of his
Prose, Drama, and Theatre. Toronto, Canadá: University of Toronto, 1997, p. 24.
14

adotada na Manchúria durante a ocupação japonesa (1931-1945) foi “A Harmonia das Cinco
Raças” a qual pregava a unidade entre os seus cinco grupos étnicos (Han, manchu, mongol,
hui e tibetano). Os japoneses que viviam na Manchúria na época, de fato, eram discriminados
pelos japoneses que chegavam do Japão.
Em meio às hostilidades, Abe demonstrou desde cedo um interesse particular pela
literatura, embora ao longo de sua vida desenvolveu outras habilidades como dramaturgo,
fotógrafo, músico e inventor.
Na escola da Manchúria, além de kendo, era interessado por matemática e entomologia,
algo que lhe serviu para a redação de Suna no Onna (“A mulher de Areia”, 1962).
Diferentemente de sua mãe, que era uma leitora das obras japonesa, Abe Kōbō era fascinado
pela literatura ocidental, e subiu as influências de autores como Poe, Rabelais, Sartre, Beckett,
Camus e Rilke (Fernandes, 2011, p. 5). E apesar desses interesses, seguiu os passos de seu
pai. Em 1943, Abe entrou na Faculdade de Medicina da Universidade de Tóquio o que explica
suas histórias às vezes se desviem para o gênero da ficção cientifica com uma mentalidade
friamente lógica (Naiper, 2005).

Para Abe, essa escolha foi apenas parcialmente o resultado de seus


interesses acadêmicos. Abe lembra: “Os estudantes especializados em medicina
foram dispensados de se tornarem soldados. Meus amigos que escolheram as
humanas foram mortos na guerra.” 24
(SHIELDS,1996, p. 34, apud, CAHILL, de 2009, p. 12, tradução nossa)

Em 1944 regressou a Manchúria para ajudar seu pai, que estava doente (Cahill, 2009).
Durante esse tempo escreveu suas duas primeiras publicações, a primeira foi uma coletânea
de poesias Mumei Shishu (Poemas Anônimos). Publicada em 1947, contendo os poemas que
compôs durante os quatro anos que esteve na faculdade de medicina. Seus poemas eram
carregados de ideologia existencialista, em que acreditava na época. E nesse mesmo ano
escreveu sua primeira prosa que viria a ser publicada em 1948, Owarishi Michi no Shirube ni
(“O sinal ao final da estrada”). O protagonista dessa obra foi inspirado num amigo que estava
junto com ele no retorno a Manchúria e faleceu no mesmo ano, de tuberculose. Sua
publicação fora feita por meio de Hanada Kiyoteru, na revista Kose, como a primeira obra
completa de Abe Kōbō. Ao escrever essa obra, Abe apresenta suas ideias existencialistas e o
uso do realismo naturalista, algo que nos anos 50 seria deixado de lado e suas obras teriam
uma estética anti-naturalista com apropriações subversivas de gêneros (Fernandes, 2011).

24
Nancy Shields, Fake Fish: The Theater of Abe Kobo (New York: Weatherhill, 1996), p. 34.
15

O cenário encontrado por Abe na Manchúria era de caos. As cidades estavam sombrias.
Ao mesmo tempo, o Japão estava se desgastando na Segunda Guerra Mundial, e domínio
militar em suas colônias foi algo posto em segundo plano pelo governo japonês. O Estado de
Manchukuo25 estava para ser perdido pelo Japão. Em uma entrevista Abe comenta sobre sua
primeira prosa publicada:
“Eu era um existencialista durante a guerra, suponho. É por isso que,
talvez, eu escrevi Owarishi Michi no Shirube ni. A ideia é baseada na tese "A
existência precede a essência", mas isso é extremamente auto-negativo. Quanto
mais eu tentava entender, mais eu falhava. Foi a partir da minha experiência no
pós-guerra que minha crença no existencialismo começou a desmoronar. Permaneci
na Manchúria por um ano e meio depois da guerra e testemunhei a completa
destruição da ordem social ali. Isso me fez perder toda a confiança em algo
estável”.26
(lijima Koichi, 1959, p. 4, apud, MOTOYAMA, de 1995, p. 5, tradução
nossa)

Com o fim da Segunda Guerra, a China “recupera” o domínio da Manchúria, e os


japoneses que lá viviam foram reintegrados ao Japão.
Em Tóquio, Abe retomou seus estudos de medicina, todavia com um anseio por
literatura e um desejo para escrever romances.
Em 1947, Abe Kōbō se casou com Yamada Machiko (1926-1993), uma estudante de
arte, a qual criou as ilustrações que acompanharam algumas das primeiras edições dos
romances de Abe. Seu interesse por medicina era algo tão superficial que Abe conseguiu seu
diploma em 1948, somente com a promessa de nunca vir a exercer a profissão (Shields, 1996),
fato que lhe deu impulso para prosseguir escrevendo em tempo integral. Sua esposa também o
influenciou, pois Machi era uma designer e uma cenógrafa com ideias inspiradoras. Porém, no
início, o jovem casal passou por dificuldades e pobreza em Tóquio. De fato, Abe conseguiu se
sustentar vendendo carvão e picles nas ruas.
Em 1948, Abe entrou no grupo literário fundado por Hanada Kiyoteru chamado Yoru
no Kai (Associação da Noite). Esse grupo liderado por Hanada compartilhava ideias
antimilitaristas e antifascistas, como também pensamentos filosóficos, literários e até políticos.
Apesar de seus integrantes seguirem gêneros literários distintos, eram unidos pelo objetivo de
inserir a arte vanguardista na literatura do pós-guerra (Fernandes, 2011).
Entretanto, a principal influência do grupo em Abe Kōbō foi o surrealismo
apresentado por Hanada. Durante a última visita ao lar da Manchúria, de fato, Abe havia

25
Foi um estado fantoche na Manchúria e leste da Mongólia Interior. Abolido em 1945.
26
lijima Koichi, 'Abe Kobo', in Abe Kobo, Oe Kenzaburo. 1959, p. 4.
16

ficado fascinado pelo surrealismo ocidental e Hanada o incentivou a utilizá-lo em sua escrita
(Cahill, 2009, p. 15).
Fascinado com o surrealismo, em 1949 Abe publicou Dendorokakariya
(“Dendrocacalia”), um conto de fadas tão surreal que torna difícil associá-lo com a autoria de
sua primeira obra. Segundo Motoyama, Abe teria afirmado ter procurado escrever
frases quanto possível sem sentido para que a obra tivesse um caráter imaginário, ou seja, o
mais distante da realidade. De fato, o “absurdo” dessa história só faria sentido dentro de um
mundo fictício.

O tema é significativo apenas dentro dos limites fictícios da história. Um


extraordinário poder de fantasia caracteriza o trabalho, impossível para os leitores
acreditarem, mas nunca deixando de manter sua atenção. Ao contrário de um conto
de fadas ou fábula, no entanto, o narrador da história não progride nem com
conhecimento empírico de causa e efeito, nem com qualquer tom didático.27
(MOTOYAMA, de 1995, p. 309, tradução nossa)

Dendorokakariya foi lançado convenientemente durante a “Semana Verde”, uma


campanha para promover o cuidado das plantas e árvores. A transformação de um homem em
uma planta estava de acordo com o anti-humanismo de seu amigo Hanada. Expressa o desafio
ao humanismo, na tentativa de revolucionar a visão convencional do mundo. A transformação
também já expressava o ideal comunista, a qual ocorre uma ruptura radical com o passado
para se sobrepor a visão idealista do futuro. E o momento da metamorfose é onde se encontra
o presente, que iluminará o futuro. A metamorfose é onde o humanismo é invertido e
decentralizado (MOTOYAMA, 1995, p. 311).
Nos anos 50 as coisas se tornaram muito produtivas e cada vez mais prósperas para
Abe Kōbō. Nesse período foram publicados mais de seis contos, junto com quatro grandes
romances, uma coleção de ensaios políticos, uma coleção de críticas de cinema, às
dramaturgias de sete peças (incluindo um musical). Além disto, foi lançado um filme escrito
por Abe, ao qual acrescentam-se a transmissão de uma dúzia de peças na rádio na televisão
da NHK. Muitas de suas peças lançadas naquela década foram produzidas pelo renomado
dramaturgo moderno, Senda Koreya (Iles, 1997).
Em 1950 Abe escreveu Akai Mayu (“Casulo Vermelho”), que lhe rendeu o prêmio de
Literatura do Pós-Guerra de 1951. Essa obra já apresenta o estilo que seria utilizado pelo
autor na década seguinte, além de evidenciar um tema central de seu trabalho, a idéia de

27
In MOTOYAMA, Mutsuko. The Literature and Politics of Abe Kōbō: Farewell to Communism in
Suna no Onna. Monuments Nipponica 50, no. 3 (1995), p. 309.
17

"casa" e o desejo insaciável por ela, que leva, invariavelmente, a uma frustrada tentativa de
retorno (Cahill, 2009).
O ano de 1951 foi marcado pela entrada de Abe no Partido Comunista Japonês como
membro ativo. O sonho de uma nova comunidade construída em decorrência de sua rejeição
do sistema japonês tradicional e autoritário levou Abe ao comunismo. Na verdade, muitos
jovens fascinados pelos escritos visionários da literatura foram induzidos a associação com os
revolucionários. O ideal comunista e o desespero por uma “nova comuna” influenciou muitos
escritores a promoverem essa ideia de uma nova ordem social. Esse anseio por uma mudança
social estava muito ligado aos desejos da vanguarda japonesa.

A ironia da atividade literária e política de Abe é que ele se tornou um


comunista confirmado apenas quando foi atraído pelo surrealismo de vanguarda, e
que ele começou sua participação no partido contribuindo para o periódico
literário dos principais comunistas, Jinmin Bungaku. O realismo proletário do
partido estava em desacordo com o surrealismo de Shin Nippon Bungaku. 28
(MOTOYAMA, de 1995, p. 309, tradução nossa)

Além da filiação de Abe ao Partido Comunista, as ideias proclamadas de Hanada em


Yoru no Kai, apontavam a vanguarda como um meio de dissolução do humanismo em favor
do materialismo. Em Akai Mayu já é perceptível à influência de Yoru no Kai sobre Abe em
relação as suas ideias materialistas. Portanto, o materialismo das obras de Marx veio para
sobrepor o existencialismo que Abe aprendera com Jaspers (1883-1969) e Rilke (1875-1926)
em sua juventude. Algo que, se refletirá em seus próximos trabalhos (Motoyama, 1995, p.
313).
Akai Mayu apresenta um homem que anda pela rua a procura de seu lar, ele não se
lembra de muitos detalhes, e ao observar as casas divaga sobre como seria o seu lar e a se
questiona sobre as pessoas que habitam nele. Nessa busca, tenta se comunicar com uma
mulher na esperança de que saiba qual é a sua casa, porém a porta se fecha diante do
protagonista. Ao prosseguir sua jornada, sente um pedaço de “fita” se enrolar em sua perna, e
ao mesmo tempo em que seus pensamentos especulam sobre o seu lar, começa a observar a
fita enrolar seu corpo totalmente, e como se estivesse em um casulo, o personagem conclui
que o casulo é a sua casa, o local onde pode se refugiar.
A síntese de opostos, o real e o irreal, que está no cerne da teoria de Hanada está
presente em Akai Mayu. A teoria defende a criação de uma nova ordem mundial na qual
estabelece a igualdade entre humanos e todas as outras coisas existentes no universo, sejam

28
Ibid, p. 312.
18

animadas ou inanimadas. A metamorfose humana, assim como em Dendorokakariya,


acontece quando o ser humano perde sua importância no mundo fictício. Em Akai Mayu, Abe
conseguiu apresenta o problema crítico como a perda de identidade de um indivíduo de forma
surrealista.
O conto Akai Mayu foi incorporado à coletânea Kabe (“A Parede”, 1951) a qual fazem
parte também os contos S. Karuma shi no Hanzai (“O crime do Sr. S. Karuma”), Baberu no
Tou Tanuki (“O Texugo da Torre de Babel”), Mahou no Chouku (“O Giz Mágico”) e Jigyou
(“Empreendimento”). Kabe proporcionou ao autor o prêmio Akutagawa no ano em que foi
lançado (1951) (Fernandes, 2011, p. 8). Além do deslanchar de sua carreira, neste mesmo ano,
Abe Kōbō se tornou pai de Neri (1954), a filha que no futuro seguiria a carreira do avô
paterno e se tornaria médica, ao mesmo tempo de ter o gosto do pai pela escrita.
A presença da “metamorfose” nas obras de Abe remete a um de seus autores
ocidentais preferidos desde a infância, Franz Kafka, que foi um escritor muito importante para
Abe. Sua profunda admiração para Kafka o levou até a Europa em 1956. Na verdade, a
oportunidade de participar de uma conferência de escritores na Tchecoslováquia lhe
proporcionou conhecer o ministro da educação checo que se revelou um especialista em
Kafka. Essa viagem também mostrou a Abe que a filosofia comunista difere muito do
governo comunista. A expansão comunista internacional marchando para Hungria,
efetivamente, foi observada de perto em sua viagem (Keene, 2003, p. 78).

Tal união de arte e política, no entanto, continha um perigo inerente de


dissolução. Embora o objetivo de alcançar uma sociedade sem classes fosse um
sonho utópico desses intelectuais, os direitos individuais e a liberdade de expressão
também eram sagrados para eles. Estes artistas de vanguarda não podia tolerar a
censura literária imposta pelos líderes do Partido Comunista Japonês, e houve um
êxodo em massa de literatos do partido em 1962. Abe Kobo estava entre aqueles
que escolheram a arte sobre a política, para deixar a festa em vez de comprometer o
direito fundamental dos artistas: a liberdade de expressão.29
(MOTOYAMA, de 1995, p. 305, tradução nossa)

Abe Kōbō abraçou a ideia de liberdade artística sobre suas escolhas políticas, e, de
consequência, em 1962 foi expulso do Partido Comunista Japonês, por suas ideias
individualistas. Como se essa retirada do partido comunista tivesse favorecido uma inspiração
artística, neste período, alguns críticos o elogiaram por sua maturidade, pureza e sofisticação.
Ao mesmo tempo, não faltaram acusações de críticos sobre Abe ter buscado o sucesso
comercial, por meio de referências sexuais explícitas. O que na verdade não ocorreu. Abe

29
Ibid, p. 305.
19

continuou a seguir a teoria vanguardista da síntese dos opostos, porém nele o contraste se
dava entre a liberdade e a escravidão, os direitos individuais e as obrigações comunais, a
esperança e o desespero (MOTOYAMA, 1995, p. 321).
Na década de 1960, entretanto, a produção estava longe de diminuir o ritmo, as obras
de Abe Kōbō obtiveram maior repercussão. As obras pelas quais Abe talvez seja mais
conhecido, como a peça teatral Tomodachi (“Amigos”, 1967), os romances Suna no onna (“A
Mulher de Areia”, 1964) e Tanin no kao (“O Rosto de Outro”, 1966), e suas versões filmadas
mostram um surrealismo não mais refém da política.

Por sua própria admissão, seus ideais anteriores sofreram rápidas


mudanças, do existencialismo ao surrealismo e depois ao comunismo. Assim, o
surrealismo era apenas um estágio intermediário para o comunismo. Depois de
Suna no Onna e sem comunismo, o ideal de Abe tornou-se focado na liberdade
individual versus obrigação comunal. Ele continuou a empregar a técnica artística
do surrealismo muito depois que sua conexão com o comunismo terminou.30
(MOTOYAMA, de 1995, p. 306, tradução nossa)

O sucesso da filmografia de Suna no onna, em particular, foi tão grande


internacionalmente que obteve o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes de 1964.
A obra conta a história de um etimologista em busca de uma nova espécie de inseto a
fim de se tornar famoso. Então, ele se muda para uma praia deserta com aldeões de moradia
peculiar: um buraco onde todos os dias eles retiram a areia que tenta soterrá-los. O
protagonista se hospeda na casa de uma mulher e todos os dias de forma exaustiva passa a luta
com ela para não serem soterrados. Com o passar do tempo, o etimólogo percebe que está
enredado nessa luta constante com a areia e no relacionamento conflitante com a mulher que
às vezes se torna sensual, e ao mesmo tempo, está servindo o aos aldeões que precisam que a
areia seja retirada. Ao final da obra o próprio etimólogo realiza de estar se tornando um inseto
e sua percepção dos fatos como sempre é tardia.
Suna no Onna (“A Mulher de Areia”, 1962) foi a primeira obra que Abe Kōbō
escreveu após a saída do Partido Comunista. A sua liberdade artística se tornou evidente nessa
obra, pois não precisava usar os padrões do partido para promover o comunismo. Também
aqui não ocorre a metamorfose, como em outros trabalhos anteriores; ninguém se transforma
em casulos ou em plantas. Entretanto, começa a surgir o tema da “identidade”.
Diferentemente de Suna no Onna (“A Mulher de Areia”), o romance Tanin no Kao
(“O Rosto de Outro”, 1966), aqui analisado, não foi um sucesso internacional nos cinemas.

30
Ibid, p. 306.
20

Abe escreveu em forma de diário, no qual o protagonista narra os fatos de seu ponto de vista,
tratando a questão do indivíduo e da sociedade:

Tanin no Kao, 1964 (O Rosto de Outro), e Moetsukita Chizu 1967 (O Mapa


Arruinado), por exemplo, estão preocupados não apenas com a realidade doméstica
do marido e da esposa, mas também com a relação de um indivíduo com outros
membros da sociedade em geral. As obras de Abe são constantes em busca de
individualidade dentro da comunidade, mas inconstantes na resolução, assim como
a areia é sempre adaptável à mudança e nunca se solidifica em uma forma estável.31
(MOTOYAMA, de 1995, p. 323, tradução nossa)

Em 1973, Abe formou sua própria companhia de teatro, o Abe Studio. Ele trabalhava
intensamente em todas as áreas da realização, desde os roteiros das peças até as partituras. E
mesmo absorvido no universo teatral, Abe nunca deixou de escrever ficção. De fato, Hako
Otoko (O Homem da Caixa) e Mikkai (Encontro Secreto) foram escritos respectivamente em
1973 e 1977.
Após se desfazer de seu grupo teatral em 1979, Abe se afastou do mundo artístico, e
nos anos seguintes produziu a obra Hakobune Sakuramaru (“A Arca Sakura”), uma coletânea
de entrevistas intitulada Toshi e no Kairô (“Caminhos de Volta à Cidade”), com uma série de
fotografias tiradas por ele mesmo, assim como uma coletanea de ensaios e de roteiros de
filmes (Iles, 1997, p. 31). Em 1991, publicou sua última obra, Kangaru Nouto (“Caderno
Canguru”), onde o protagonista alienado e age de forma agressiva, representando bem seu
estilo literário. Devido a problemas de saúde que o autor estava enfrentando neste período,
Kangaru Nouto foi seu último trabalho publicado.
Em 1993, Abe Kobo morreu de ataque cardíaco deixando uma obra inacabada
chamada Tobu Otoko (“Homem voador”) que foi publicada mesmo se incompleta.
Por mais de 40 anos Abe Kōbō foi capaz de retratar um Japão moderno em
decorrência da sua evolução tecnológica devida ao crescimento econômico do pós-guerra.
Ele se apropriou de forma ímpar de estilos literários ocidentais sem se submeter à
influência literária japonesa, e por suas fortes críticas a sociedade, foi um autor de vanguarda
impulsionado pela busca da identidade do homem moderno e por seu sentimento de alienação
na sociedade japonesa.

31
Ibdem, p. 323.
21

3 CAPÍTULO – TANIN NO KAO

3.1 Sobre a obra:


Após o sucesso de Suna no Onna, em 1964, Abe Kōbō publicou o romance Tanin no
Kao (“O rosto de outro”). A história é contada por meio de cadernos escritos pelo personagem
principal, cujo nome não é mencionado alguma vez. Esse personagem é apresentado como um
cientista importante que tem seu rosto desfigurado por um acidente, uma explosão de
oxigênio líquido, no laboratório, mas, por sorte, seus olhos e sua boca não foram afetados. O
cientista começa explicando, através de uma carta, que seus escritos são um diário para a
esposa relatando os acontecimentos das últimas semanas.
O acidente fez o cientista reparar e questionar a importância de um rosto na sociedade,
ele escreve de forma exaustiva o sofrimento passado nas relações sociais. A reação do
cientista ao ser observado no metrô por uma criança tornou evidente esse sentimento.

Subitamente voltei a mim — o vagão chegou a minha parada. Sentia-me


fatigado e debilitado quando me apressei a sair para plataforma da estação. Havia
um banco numa extremidade e sentei-me lá. Perguntei a mim mesmo se me evitaram,
porque nenhuma só alma se sentou ao meu lado; o banco parecido reservado
exclusivamente para mim. Dominado por tamanho abatimento, senti vontade de
chorar enquanto observava nebulosamente o fluxo e contra fluxo da corrente de
passageiros.
(página79)

Um dia, ao retirar suas bandagens que cobriam seu rosto, o cientista observa um
líquido como pus começar a escorrer lentamente, exalando um odor de putrefação. Sob o
sentimento de repulsa de seu próprio rosto lhe ocorre o pensamento que possa existir algo
para cobrir as queimaduras sem causar o horror que as ataduras causam.

Como ansiava por cobrir essa angústia, a este jogo de cego procurando a
passagem num beco sem saída!
Daqui a começar a fazer planos para a máscara foi um mero passo.
Basicamente a ideia não tinha nada de extraordinário; como qualquer semente
soprada pelo vento, só precisava de um pouco de terra e uma gota de água para
germinar.
(Página 26)

E com a lembrança de ter lido sobre a existência de órgãos artificiais feitos de plástico,
o cientista procura o Dr. K, para entender o que poderia ser feito. Na consulta tem a brilhante
22

ideia de criar sua própria máscara moldada no formato do seu rosto, mas diferente da
aparência anterior.
Tendo sua máscara pronta, o cientista parece reestabelecer sua confiança, e,
então, revela sua motivação de querer mudar de rosto, o amor por sua esposa. Ele coloca
claramente em seus escritos que sua busca de uma nova cara era com o objetivo de
reencontrar sua esposa fingindo-se ser outro e conquistá-la.
Entretanto, a utilização da máscara para encontrar sua esposa causa ciúmes no
“homem sem a máscara”, seu verdadeiro eu. De consequência, para acalmar sua agonia e
frustração, resolve escrever para sua esposa toda a verdade sobre a máscara e o homem por
traz dela.
O ponto de vista do cientista é descrito na forma de diário revisado com algumas notas
explicando ou comentando os fatos descritos. Esse diário é dividido em três cadernos, um
preto, um branco e um cinza, nessa ordem de acontecimentos. Embora não exista um fim na
última folha de cada caderno, ou tenha uma introdução na primeira folha de cada também. De
todos os cadernos, tem apenas um início (no caderno preto) e um término da história (no
caderno cinza). A narrativa é descritiva, e por ter sido revisada pelo próprio cientista, existem
comentários sobre o que o leitor deve considerar. Esses comentários direcionam o leitor a
conhecerem apenas os fatos de forma incerta. Ao final do livro aparece o ponto de vista da
esposa do cientista, que já confirma ao leitor que talvez alguns relatos do cientista não tenham
ocorrido daquele jeito.
Ao ler todos os cadernos, sua esposa escreve uma carta revelando que já era de seu
conhecimento que o homem com quem se encontrava era na verdade seu marido. Além disso,
expõe seus reais sentimentos, nos quais o cientista retrata de forma distorcida se colocando
como a vítima.
Nessa obra Abe consegue transformar elementos característicos da repugnância em
uma meditação sobre as relações de identidade, entre homem-mulher e o padrão social entre
os japoneses. As reflexões desses temas presentes nessa obra são para levar o leitor a pensar.
Algo que Ishikawa já trazia em sua obra: a combinação do surrealismo e a autorreflexão. E
em Tanin no Kao, Abe apresenta o rosto desfigurado do cientista com a dupla função de
confrontar o leitor a respeito da concepção de estranho e de envergonhar o leitor pelo seu
comportamento homogêneo social (NAPIER, 1996, p. 101).
A proposta de autorreflexão e surrealismo presente na obra possibilita ao leitor evocar
idéias, situações e sentimentos, tais como o isolamento social. Abe aponta que as artes
surrealistas devem permanecer sugestivas e não definitivas (Motoyama, 1995, p. 321). Assim,
23

propicia ao leitor como indivíduo da sociedade, a desenvolver não só a compreensão como a


mudança de concepções ultrapassadas.
Ao ler a obra, percebe-se que podemos dividir O Rosto de Outro em três partes: antes
da carta da esposa ao cientista, a carta da esposa e a relação matrimonial.

3.2 Antes da carta


3.2.1 Perda da identidade
O início do livro é caracterizado pela insatisfação do personagem para com o seu rosto
marcado por queloides. Na verdade, segundo o próprio personagem, esse sentimento surge
após a rejeição de sua esposa. O cientista torna-se atento à maneira como as pessoas se
relacionam com ele. Por causa desta observação obsessiva, percebe que suas relações sociais
sofreram alterações.

Ao mesmo tempo, ele se torna cada vez mais defensivo, considerando os


outros com suspeita e ressentimento pela maneira como ele é tratado. Quer esse
tratamento seja caracterizado por deliberada evitação ou excessiva simpatia, ele
apenas enfatiza sua posição como um estranho.
(MATSON, de 2007, p. 86, tradução nossa).

No trabalho, sua paranoia de perseguição leva o cientista a se sentir exposto e


humilhado. Após uma reunião uma assistente lhe mostra um desenho de uma revista. O
desenho intitulado A Cara Postiça lhe choca.

As feições eram divididas horizontalmente por linhas paralelas que,


conforme o modo como contemplava o desenho, podiam conceber-se como as
sucessivas voltas de uma ligadura. Aberturas pequenas e finas revelavam apenas os
olhos e a boca, e a expressão era tão inexpressiva que chegava a ser cruel.
Subitamente apoderou-se de mim um indescritível sentimento de humilhação.
...estava tão perturbado que o desenho me pareceu o próprio retrato do
meu rosto visto através dos olhos da moça. Era intolerável que ela me via com esse
aspecto.
(Página 20)

A vergonha do cientista ao se sentir observado o faz rasgar o desenho. Como resultado


de seu comportamento infantil, então, começa a acreditar que seu valor não lhe era atribuído
pelo conteúdo de seu trabalho. As atitudes de defesa em relação ao ambiente externo
dominam os sentimentos do cientista, e ele acaba ficando cada vez mais em isolado. Nessa
solidão o mundo a sua volta parece ser ainda mais aterrorizante e ameaçador. Então, o
personagem em angústia por essa “perseguição” percebe que o rosto das pessoas excede em
muito a importância que ele gostaria que tivesse e ele acaba entrando em paranoia.
24

Se o conto de Yanagita é um horror tradicional, O Rosto de Outro, e muito


do trabalho de Abe em geral, pode ser visto como pertencente ao gênero do horror
paranoico. Esse gênero, que vem à tona de forma significativa nos anos 1960
socialmente conscientes e politicamente ativistas, delineia um mundo no qual o
supostamente normal é realmente ameaçador e sinistro. Como diz Andrew Tudor,
“o senso de ordem social e moral estabelecida é o que se segue.” É um mundo onde
a paranoia faz sentido porque a coletividade é a ameaça, não a proteção.
(NAPIER, 1996, p. 107, tradução nossa)

A paranoia vivida pelo protagonista do romance é intensificada pelo seu isolamento


social. Pois o cientista não pode ser mais membro da sociedade pela falta de identidade. Sem
seu rosto, o cientista de antes do acidente é esquecido socialmente. E isto, torna o indivíduo
um ser estranho, rejeitado pela sociedade.
A concepção de estranho existente na sociedade capitalista industrial da época é
apontada pelo autor como a verdadeira ameaça à sociedade japonesa. Abe aponta no livro que
o cientista é um estranho para a sociedade por não ter um rosto, porém os coreanos
descriminados pelos japoneses também são considerados estranhos. Não pelo fato de terem
um rosto distinto dos japoneses, os coreanos são descriminados por uma concepção
estabelecida anteriormente a Segunda Guerra, durante a construção da sociedade capitalista
industrial. Esse conceito de estranho é apontado como algo necessitado de mudança na
sociedade do pós-guerra.
Abe descreve as queloides do rosto do cientista de forma muito similar às queimaduras
das vítimas de Hiroshima, que assim como os coreanos coabitantes no Japão são tratados de
forma discriminatória ou marginalizados pela homogeneidade da sociedade japonesa.
Ao final do livro o cientista se lembra de um filme sobre uma moça de aparência
angelical que tem um lado de seu rosto desfigurado por uma queimadura consequente da
guerra. Quando as pessoas olham o lado belo do rosto da jovem ficam encantados com a
beleza, porém ao verem o lado deformado são tomadas por sentimentos de horror e de repulsa.
A jovem ao final do filme seduz seu irmão e comete suicídio. Segundo Napier32, a concepção
de estranho da moderna sociedade japonesa evoluiu do tradicional justamente por Abe
mencionar essa história. Como se as consequências da guerra não tivessem espaço para
adaptação na sociedade construída e fundamentada antes da guerra. Por isso o cientista, os
coreanos e as vítimas da guerra são de forma vergonhosa, ignoradas socialmente. O cientista,
semelhante às vítimas, já pertenceu a essa sociedade que após o surgimento das queloides em
seus corpos são rejeitados não apenas pela sociedade, mas por si mesmos.

32
The Fantastic in Modern Japanese Literature Napier: the Subversion of Modernity. 1996, p. 102.
25

De forma psicológica, a perda de identidade e a retirada do indivíduo da sociedade


expõe a alienação interna desse indivíduo. Essa alienação interna, no caso do cientista, tenta
ser omitida pelas faixas que cobrem sua deformação facial, porém a perda da identidade ainda
é presente. Entretanto, algo que as faixas lhe proporcionaram por um curto período é a
liberação das obrigações sociais de um indivíduo pertencente ao coletivismo social.

A imagem de um rosto enfaixado serve como um símbolo pungente de


alienação. Através da construção de uma máscara, o indivíduo parece desfrutar de
nova liberdade. No entanto, por baixo dessa liberdade aparente, há uma sensação
insuportável de perda.
(MATSON, de 2007, p. 80, tradução nossa)

Durante uma viagem de metrô, o cientista é confrontado pela expressão de repulsa de


uma criança diante sua aparência. O pensamento que o rosto da criança provoca no
personagem é que ele se parece com um monstro.

Perguntei a mim mesmo se não estaria transformando-me numa espécie de


monstro. Carlyle disse que o hábito faz o monge, e que a farda faz a tropa; talvez a
cara faça o monstro. A cada do monstro forma a solidão, e a solidão molda seu
coração. Se a temperatura da minha formada solidão descesse, ainda que
ligeiramente, eu me transformaria num monstro, indiferente a minha aparência, e
quebraria de estalo todos os laços que me prendem a este mundo.
(Página 80)

Esse fato não é devido à criança enxergar através das bandagens suas queimaduras,
mas sim pela alienação do cientista. Ele percebe que sua identidade é moldada no que as
pessoas enxergam dele. Sem o rosto, ele é um monstro, embora antes ele tivesse sido um
cientista, agora quem o conhece sem rosto esta enxergando apenas um monstro.
Apesar de perceber certa exclusão social baseada nessa alienação, o cientista
reconhece também um sentimento de liberdade em não ter rosto. Essa confissão está em suas
notas sobre espera da criação da máscara.

Talvez tenha vislumbrado, embora por um momento fugaz, uma liberdade


que era inconcebível quando eu dependia de relações humanas vistas através da
janela do rosto. [...]
Mas — bastante perturbadoramente — a minha máscara iria restringir a
liberdade resultante de não ter rosto.
(página 139)

Embora o reconhecimento dessa liberdade seja reconfortante para o cientista, a


necessidade da máscara para reparar sua perda de identidade resulta mais importante. A
insatisfação angustiante do personagem é devido a sua alienação.
26

3.2.2 A máscara
Na obra, o protagonista comenta sobre uma lembrança de quando era pequeno. Se
lembra de ver seu pai trocando o chapéu de palha com um chapéu de feltro:

A criança que eu era contemplava angustiada, o vulto do pai de chapéu de


palha em retirada...
[...] Sim ao certo só sei de uma coisa: a confiança que eu até aí tinha em
meu pai ficou definitivamente abalada pela troca de chapéus. Talvez, desde então,
tenha sempre sentido vergonha por conta do meu pai.
(página 126)

Na sua obra, Abe escreve sobre o contraste entre o mundo rural japonês e a
modernidade urbana japonesa. São dois Japão distintos que ele próprio conheceu. O seu
primeiro contato com o Japão foi em Hokkaido, em uma zona rural. Poucos anos depois, foi
estudar em Tóquio, que era, na época, uma metrópole moderna. A mudança da economia rural
para há industrial nos anos sessenta foi rápida e crescente, e a mudança aconteceu de forma
agressiva, em consequência da ocidentalização durante o período do pós-guerra.

Os escritos de Abe também parecem implicitamente refletir uma mudança


generalizada na atitude japonesa em relação à tecnologia desde o imediato pós-
guerra, quando a supremacia tecnológica ainda era tacitamente cedida ao Ocidente
e, portanto, ainda era "Outro".
(NAPIER, 1996, p 202, tradução nossa)

Em Tanin no kao, esta troca de chapéus, é, para o cientista, uma encruzilhada. O


protagonista está dividido entre a antiga identidade perdida (chapéu de palha), a tradição, e a
possível nova identidade (chapéu de feltro) que é a máscara e a modernização. Então o chapéu
de palha representa a produção rural que era realizada em aldeias de forma mais popular no
Japão, e o chapéu de feltro, representa a industrialização ocidental, a qual ocupa as grandes
capitais e se desenvolve ao longo da nação. Essas representações dos chapéus são de fácil
interpretação devido a sua utilização no cotidiano social da época. O chapéu de feltro ainda
carrega um simbolismo muito forte da ocidentalização, que no desenvolvimento urbano faz
parte do cotidiano vivido pelos japoneses modernos da época.

O que Abe parece estar sugerindo é que a máscara é um fenômeno


moderno, uma resposta à necessidade de esconder a perda do eu por trás de uma
generalidade anônima: “As multidões não se formam porque as pessoas se reúnem.
As pessoas se reúnem porque a multidão existe. […] Só por um curto período de
tempo, mesmo que seja apenas uma fantasia, eles se perdem na multidão, tentando
se tornar um ninguém ”(211).
(MATSON, 2007, p. 79, tradução nossa)
27

A máscara, portanto, resulta ser ao longo da história, a idealização de sua inclusão


social. E mesmo que na multidão, todos pareçam iguais, todos estão inseridos na sociedade
moderna japonesa. Portanto, estas multidões fazem parte da vida moderna urbana, e essa
padronização social é o indício de uma sociedade alienada.
Todavia, o personagem que antes pertencia a essa multidão, após o acidente, é
afastado dela por ter se tornado diferente do padrão. Entretanto, como Matson diz, a “máscara
oferece ao protagonista uma nova identidade e novas oportunidades”33.
Em uma visão econômica industrial (típica dos anos 1960), o cientista fala sobre a
possibilidade de criar um mercado de máscaras. E divaga quanto à infinita possibilidade de
utilização das máscaras e o efeito caótico na sociedade (NAPIER, 1996, p. 196). Ao mesmo
tempo, faz um comentário político chocante:

Por exemplo: negociantes clandestinos se especializarão no plágio dos


rostos de outras pessoas e membros da Dieta se empenharão na prática de
vigarices; alguns artistas celebres serão denunciados como suspeitos de roubo de
automóveis; chefes do Partido Socialista proferirão discursos fascistas; e diretores
de bancos serão denunciados por assalto.
(página 211)

Utilizando uma máscara, a probabilidade que as pessoas cometam qualquer tipo de


crime é enorme. Ainda mais se os assaltantes usarem máscaras de pessoas conhecidas.
Abe faz alusão ao discurso do Partido Comunista Japonês que se diz diferente do
regime fascista. Deduzindo que os defensores do partido seriam falsos defensores da filosofia
comunista. Pela própria experiência do autor já mencionada ao longo deste trabalho, Abe
assim como outros escritores acreditavam na filosofia comunista e, portanto se aliaram ao
Partido Comunista Japonês. Entretanto, ao observar a prática do comunismo baseada em um
sistema fascista, muitos membros do partido se retiraram dele. Ao associar que os discursos
dos chefes do Partido serão fascistas, Abe faz uma crítica ao afirmar que com a máscara serão
reveladas as verdadeiras crenças do partido. Abe como seguidor do marxismo entendia que a
proposta de Karl Marx (1818-1883) era que o socialismo só deveria ser aplicado como um
sistema no ápice de outro sistema oposto, o capitalismo. Esse ápice é exatamente o cenário
descrito pelo cientista, a produção industrial das máscaras, as quais as possibilidades de uso
serão infinitas e sempre a busca por um novo rosto mais jovem, mais belo que o próprio e/ou
a máscara anteriormente comprada, causando assim o caos que seria o ponto de partida para o
socialismo intervir.

33
MATSON, 2007, p. 79.
28

Então após experiências com a máscara, que incluem a compra de um ioiô para uma
garotinha com problemas mentais, interações sociais em bares e metrô, o protagonista segue
com seu plano para seduzir sua esposa. Afinal, segundo o cientista, o motivo de todo essa
busca é reconquistar sua esposa através da máscara.

3.3 A carta da esposa


Em resposta aos cadernos do marido, a esposa escreve no verso da carta do marido,
deixada sobre os cadernos. A carta que a esposa escreve é a única parte do livro onde aparece
o ponto de vista dela que resulta ser o oposto das interpretações que o marido observa nos
encontros que ela teve com o marido usando a máscara.

Não obstante, estas notas foram uma terrível confissão. Senti como se
tivesse sido levada a força para uma mesa operatória, sem estar doente, e retalhada
indiscriminadamente com uma centena de facas e tesouras bizarras, cuja utilidade
não se compreendia qual poderia ser.
(página 288)

A insatisfação da esposa aos escritos do marido é justificada pelo fato dela ter
desmascarado o disfarce do marido desde o início e ele ter escrito negando o fato. Ela afirma
ter enxergado o marido além da máscara, o seu verdadeiro eu. A esposa percebe que o
cientista sabia disto, e por mais esquisito que os encontros parecessem para ela, ficou feliz
com a forma como ela foi tratada pelo marido. Ela interpreta a máscara como a forma de seu
marido compartilhar o próprio sofrimento após o acidente. Por isso se deixa conduzir pelas
ações do marido.
Entretanto, a esposa também manifesta uma recusa à alienação do marido. Ela entende
a sua valorização nas relações sociais, e que o marido não precisava da aceitação dela, mas de
si mesmo e que talvez a construção da máscara fosse o caminho que ele escolheu para isso.
Pois a angústia do marido é devida a perda do rosto que expressava nos outros o próprio eu.
Não foi por ela ter rejeitado o marido, mas ele mesmo ter se rejeitado. Como se com a
máscara fosse outra pessoa.

Segundo Kawashima Hidekazu (1997, p.51) conforme citado por MATSON


(2007, p. 83), “a angústia de não possuir um meio para os outros não é a angústia
em relação à outra pessoa, mas a angústia de não manter o meio para o ego -
angústia em direção ao próprio eu, por assim dizer.”
(tradução nossa )
29

A tentativa do cientista de atribuir à máscara outra personalidade distinta da própria e


sua acusação de traição de sua esposa demonstram uma negação do seu eu presente na
máscara. Ele trata a máscara como um objeto estranho, nega que seja uma expressão de si
mesmo. Considerando o compadecimento da mulher em compreender os transtornos do
marido após o acidente, o marido realmente é uma vítima, porém não da esposa ou das
queimaduras, ou da sociedade, mas de seus próprios desejos egoístas (NAPIER, 1996, 103).
A esposa cita em sua carta a verdadeira necessidade do marido alienado:

Você não precisa de mim. Do que realmente precisa é de um espelho.


Porque qualquer desconhecido é para você simplesmente um espelho em que te
reflete. Não quero voltar nunca mais para um deserto de espelhos. As minhas
entranhas quase se partiram com o seu ridículo.
(página 290)

Os espelhos citados pela esposa também expressam uma crítica à sociedade capitalista
moderna. Algo que Abe aborda não só em O rosto de Outro, mas também em Sunna no Onna
é essa visão dos espelhos em que a sociedade é como um deserto de espelhos, a qual reflete
criticamente a identidade social que o indivíduo expressa por um meio, que no caso de O
Rosto de Outro é a face. Embora o rosto não precise expressar sua identidade interna e sim de
fato sua identidade social como indivíduo que segue os valores externos da sociedade
industrializada que sofrem constantes mudanças, principalmente os valores da aparência.

Pior ainda, na sociedade industrial moderna, não pode haver nenhum eu,
apenas um “deserto de espelhos”. Nash diz de um herói Calvino que “o eu agora
não tem nada a ver com qualquer senso interno de identidade. Ser “idêntico”
apenas ao que está fora é submeter-se aos instrumentos de… aparências.” Isso
também vale para a máscara e, de fato, é um aspecto cada vez mais universal da
sociedade capitalista moderna, onde não se pode fugir da ênfase na aparência nos
espelhos críticos da cultura de consumo.
Os romances de Abe são incomuns por ver tanto o mundo dos espelhos que
o indivíduo solitário cria quanto o mundo dos espelhos erigidos pela sociedade.
(NAPIER, 1996, p. 103, tradução nossa)

3.4 Relação matrimonial

Nessa altura, o principal pretexto para fazer a máscara era tentar me


vingar da arrogância dos rostos, te enganando. Mas depois passou a ser o
reestabelecimento das relações com os outros e o te conquistar se transformou em
algo mental, contemplativo; depois, veio à adição de algo físico, e então se deu uma
explosão emocional sob a forma de ciúmes.
(página 242)
30

Os relatos em cadernos, a carta da esposa, e os escritos posteriores à carta são a forma


de comunicação desse casal. Não ocorre confronto ou diálogo profundo entre eles. Segundo
Iles, essa falta de comunicação do casal é uma consequência da perda de identidade. Sem a
identidade, o cientista vive alienado e recluso no seu isolamento, ou seja, sua comunicação
com outro indivíduo é interrompida, inclusive com sua esposa.
Abe apresenta o isolamento do cientista em relação à esposa como uma metáfora
representativa da sociedade e do isolamento social comum nos centros urbanos modernos. Os
moradores de cidades grandes vivem em isolamento onde não se estabelece nenhum tipo de
relacionamento social com a intenção de intimidade, são relacionamentos supérfluos com
poucas interações e de difícil comunicação. Essa falha na comunicação é resultado das
mudanças rápidas e constantes no meio social industrial. À medida que a que a tecnologia se
inova e se transforma, a sociedade tende a se transformar e a crescer, o que causa mudanças e
perdas não somente no exterior, mas também no interior das pessoas. Essas mudanças
externas refletem em fragmentações psicológicas que se adaptam frequentemente ao consumo
que foi imposto como inovação moderna social. E assim movido pela adaptação psicológica o
pensamento consumista gera a economia dessas cidades e as relações são colocadas em
segundo plano, em vista que o objetivo é o lucro gerado pelo consumo.

O ato de comunicação adquire um significado especial nesses romances


como um processo mais provável de resultar em fracasso do que em compreensão,
um processo que quase inevitavelmente apresenta uma distância indissolúvel entre
indivíduos que deveriam estar muito mais próximos uns dos outros. A comunicação
falha porque seus participantes perderam-se por si mesmos e, sem essa definição
pré-requisito de identidade própria, não há nada a ser comunicado.
(Iles, 1997, p. 88, tradução nossa)

A criação da máscara para o cientista é a tentativa esperançosa de reestabelecer essa


comunicação perdida entre pessoas que deveriam ter um nível íntimo de comunicação. O
protagonista buscando um meio para reestabelecer a comunicação com a esposa, por exemplo,
recorre à máscara, a qual, todavia, há muitas vezes um desejo de se expressar de forma
agressiva.
A violência, que só pode ser dita como uma atitude de um monstro é utilizada pelo
protagonista em seus encontros com sua esposa na sua desesperada tentativa de sair de seu
isolamento e estabelecer comunicação. Abe apresenta a violência como uma forma “rápida”
de forçar a intimidade. Em O Rosto de Outro, a máscara estabelece uma intimidade com a
esposa do cientista devido a sua agressividade sexual, porém o cientista se espanta com a
rapidez que sua mulher se entregou a um estranho.
31

A violência apresentada nessa representação microcósmica das tensões sociais da


modernidade ocorre nas cidades urbanas, em que indivíduos em isolamento na tentativa de se
estabelecer comunicação recorrem a ela. Esse meio de se estabelecer comunicação social é
para Abe à forma factual que acontece na urbanização devido as suas mudanças e crescente
expansão.

[...] a mulher oferece ao detetive desconhecido, sua resistência a ele como


um estranho, que desencadeia nele uma fantasia sexual violenta como um meio de
derrubar as barreiras que seu receio suscita entre eles - aqui também, como em
Tanin no kao, a violência é deixada como o único meio através do qual se abre um
canal de comunicação entre moradores de cidades isoladas que não têm outro
caminho rumo à intimidade.
A violência e a expansão da cidade são mais bem intencionalmente
conectadas em um episódio que descreve muito bem a percepção de Abe da
presença continuada de elementos nômades dentro do meio urbano moderno.
(Iles, 1997, p. 98, tradução nossa)

Após ler a carta da esposa, o cientista escreve sua frustração em relação sua falha
comunicação através da escritos. E que são totalmente dependentes da boa vontade para
serem lidos. Essa comunicação do casal é quase como se vivessem em tempos distintos, na
qual, torna a intimidade que deveriam ter cada vez mais longe de ser alcançada. Em oposição
a esse relacionamento, há a relação que a máscara, de forma agressiva, estabeleceu com a
esposa do cientista. Como último ato do cientista, ele coloca a máscara, pega a pistola de ar
comprimido e recorre à violência:

Subitamente ouvir o matraquear de saltos de mulher. Só a máscara ficou;


eu tinha desaparecido. Instantaneamente e sem refletir, ocultei-me numa viga
próxima e soltando a trava de segurança da pistola contive a respiração...
[...] Os passos se aproximavam.
Portanto não voltarei a escrever seja lá o que for. Talvez o ato de escrever
só se torne necessário quando nada acontece.
(página 306)

O autor não deixa claro se a mulher de saltos é a esposa do cientista ou apenas uma
mulher qualquer, a afirmação está na violência como ferramenta necessária para estabelecer
comunicação através da máscara e assim, deixar o isolamento social.
Ao escrever essa última frase Abe se refere não somente a comunicação que funciona
nos centros urbanos modernos, mas também aos movimentos políticos da época.
O sentido politicamente envolvido de Abe pode ser visto como
intrinsecamente ligado aos movimentos políticos dos anos 1960, um período em que
o radicalismo japonês foi além do “ato de escrever”. Era uma época em que jovens
japoneses em particular experimentavam novas identidades por si mesmos em
confronto direto com os mais velhos.
(NAPIER, 1996, p. 104, tradução nossa)
32

A percepção que Abe trás do estranho e da máscara expressava o sentimento que


muitos jovens da época compartilhavam em relação às autoridades e pessoas mais velhas.
Esse pensamento gerou o crescimento da ideologia do niilismo que foi muito forte entre os
jovens e presentes em algumas obras de Abe posteriores a Tanin no Kao, e de outros autores
como Ōe Kenzaburō(NAPIER, 1996, p. 104).
33

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim como outros autores, Abe Kōbō tem refletido em suas obras aspectos de sua
infância. Na verdade, sua infância teve mais influência que seus conterrâneos e mentores, no
que se refere a suas temáticas. Sua infância na Manchúria e sua educação sem os valores
nacionalistas da época causaram uma falta de sentimentos nacionais e na concepção de lar
japonês. O tempo de que Abe passou longe do Japão o privou de conhecer o mundo
tradicional japonês. De consequência, ele não considerava o Japão como casa, mas sim a
Manchúria, que desapareceu após a guerra. Assim, como vimos, em Akai Mayu, o autor
retrata a busca por uma concepção de pertencer a uma casa, pois ele não havia mais uma que
lhe pertencia, mas somente uma sua lembrança.
Após a volta ao Japão, Abe sentia-se deslocado, o que lhe causou a percepção de não
possuir uma identidade na sociedade moderna do Japão.
Por causa de sua falta de um sentimento de identidade nacional, o escritor se manteve
atento às vanguardas e as inovações políticas como existencialismo, marxismo e comunismo,
pois estas estavam dissociadas dos dogmas japoneses. A Manchúria proporcionou a Abe a
liberdade ideológica e filosófica, principalmente para explorar correntes provindas da Europa.
E, graças a sua participação nos grupos de vanguarda teve a oportunidade de continuar seus
estudos filosóficos. Através destes contatos, Abe conheceu o surrealismo, que foi
determinante para o estilo de seu trabalho. E, posteriormente, em conflito entre a política e a
arte literária, seguiu com a arte literária surrealista, embora a política ainda estivesse presente
em muitos seus trabalhos.
A utilização do surrealismo para expressar a alienação que a perda da identidade social
poderia causar em uma sociedade cada vez mais consumista foi um marco de Abe. Como
vimos, em suas visões de alienação social, o indivíduo resulta ameaçado pela coletividade da
sociedade japonesa. De consequência, a paranoia do indivíduo em enxergar a homogeneidade
social como uma ameaça, e não como uma proteção é totalmente compreensível e aceitável
(NAPIER, 1996, p. 107).
Em O Rosto de Outro, aqui analisado, a temática da perda de identidade pessoal,
aborda um mundo paranoico justamente pela ameaça percebida pelo escritor da presente e
constante coletividade da sociedade moderna japonesa dos anos 60. Para a sobrevivência do
personagem principal se torna necessária à criação de uma face emprestada de outra pessoa.
As questões do isolamento social e as relações sociais cada vez mais abaladas pela
modernidade industrial é algo marcante nos escritos do protagonista.
34

O presente trabalho tentou, por meio de investigações sobre a vida do autor, apresentar
as ideias vanguardistas presentes no pós-guerra e analisar o conto O Rosto de Outro. Ao
mesmo tempo, tentou enfatizar a importância do tema da perda de identidade para o autor Abe
Kōbō no contexto da sociedade japonesa moderna. Suas experiências de vida e sua
capacidade de explorar o gênero fantástico trouxeram uma percepção única no panorama da
literatura moderna japonesa. Abe é um dos autores que através de metáforas e situações
absurdas consegue criar, como diz Susan Napier, ‘um dos mundos ficcionais mais
consistentemente sombrios e surreais de qualquer escritor, japonês ou ocidental’ (NAPIER,
1996, p. 196).
Abe Kōbō é o autor excepcional de obras que merecem ser mais pesquisadas. Este
trabalho não exaure a análise das complexas temáticas deste autor. É apenas um incentivo
para que seu olhar crítico sobre a sociedade japonesa do pós-guerra estimule novos trabalhos
no Brasil.
35

REFERÊNCIAS

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Modernity; Japan, the West, and Beyond. Theses. 72 f. New Jersey, Estados Unidos: Seton
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36

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