2018 AmandaEstevesSilva TCC
2018 AmandaEstevesSilva TCC
2018 AmandaEstevesSilva TCC
Instituto De Letras — IL
Departamento De Teoria Literária — TEL
Curso De Letras - Japonês
BRASÍLIA
2018
AMANDA ESTEVES SILVA
BRASÍLIA
2018
AMANDA ESTEVES SILVA
Banca Examinadora
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This paper has the objective of investigating of importance of the search for identity
within the Tanin no Kao prose (The Face of Another, 1964) for its Japanese author, Abe Kōbō.
It presents the modern Japanese society with highlight to some events that unleashed the
avant-garde literary movement of the Japanese post-war, which Abe was part of. It evidences
the political influences integrated to the Japanese vanguard, mainly the communism and the
action of the author in the Japanese Communist Party, besides its surrealistic and fantastic
stylistic. It explores the thematic loss of social identity, a consequence of life in Manchuria
and Western influences. For not having lived part of its life in Japan, its works do not possess
the Japanese traditionalism. It analyzes the themes of loss and the search for a new identity
and social alienation through Tanin no Kao. This work stands out for its peculiarities and its
important representation of the modern Japanese society of the time.
Em primeiro lugar a Deus, que me deu habilidade que nem eu mesma tinha para
estruturar esse trabalho. Da minha graduação, aos meus sensei que ensinaram mais que só
uma língua ou uma cultura. A Professora Donatella por ter me ajudado apesar da minha falta
de escrita e minhas enrolações. A minha família que sempre me apoiou e me ajudou ao longo
dos meus estudos. E aos Joselito e Ana que me ensinaram a não desistir e a perseverar, que ao
vierem para Brasília mudaram a minha vida e a vida da minha família.
Sumário
RESUMO:...................................................................................................................... iv
ABSTRACT ................................................................................................................... v
DEDICATÓRIA ............................................................................................................ vi
AGRADECIMENTOS .................................................................................................vii
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 1
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 35
1
INTRODUÇÃO
O Japão, durante o Período Meiji (1868-1912) foi marcado não apenas pelo fim do
Xogunato1. O país se abriu para o Ocidente iniciando um amplo processo de modernização
que abrangeu várias áreas, inclusive a cultural. Os programas de desenvolvimento
estabelecidos pelo governo tiveram resposta entusiasmada dos japoneses (povo).
Este processo de modernização iniciado pelo Japão foi realizado de forma inigualável
a qualquer outro país não-ocidental (Napier, 1996, p. 5) e se refletiu em várias áreas da cultura
japonesa, na literatura em particular, por meio da apresentação de traduções de obras
ocidentais.
Todavia, no âmbito da literatura fantástica, cujo primeiro exemplo mais sucedido é
Viagem Noturna no Trem da Via Láctea2 de Miyazawa Kenji (1896-1933), a modernização é
muitas vezes observada de forma crítica e apresentada sob seus aspectos negativos.
Por ter vivido parte de sua vida na Manchúria, distante de seu país de origem, o
escritor entrou cedo em contato com a cultura ocidental e teve assim a oportunidade de
estudar autores estrangeiros e contemporâneos. Esta experiência o levou a vivenciar uma
identidade segmentada, principalmente por falta nele de um marcante sentimento de
patriotismo japonês. Abe Kōbō ofereceu uma visão divergente, como ele mesmo diz, “da
visão alienada da sociedade japonesa” (Cahill, 2009) e ainda assim, recebeu grande respeito e
admiração dos seus leitores por ter alcançado um amplo reconhecimento internacional.
Reconhecimento esse que surgiu com o seu romance mais famoso, Suna no Onna (“A Mulher
de Areia”, 1962).
A questão da procura pela identidade no pós-guerra foi algo enredado em suas obras,
assim como a alienação da sociedade consumista japonesa, outro tema que, sem dúvida,
devem-se as influências marxistas recebidas na juventude.
O presente trabalho é dividido em três capítulos cujo primeiro apresenta a sociedade
moderna japonesa. Sua contextualização, alguns eventos importantes que desencadearam o
movimento literário vanguardista do pós-guerra, tais como as implicações políticas integradas
à vanguarda japonesa, principalmente o comunismo e sua atuação no Partido Comunista
Japonês. No segundo capítulo será investigado como a vida na Manchúria e as influências
ocidentais geraram a visão de Abe Kōbō sobre a identidade social. Identidade essa muito
tratada em suas temáticas. E no terceiro capítulo, a análise da obra Tanin no Kao (O rosto de
Outro, 1964). Obra que se destaca por suas peculiaridades e sua importante representação da
sociedade moderna japonesa da época.
O objetivo do trabalho é tentar investigar a importância da busca pela identidade
dentro da obra Tanin no Kao. Pois Abe Kōbō foi considerado um autor japonês por sua prosa
ser escrita na língua japonesa. Seu estilo e influência não japonesa, porém, o tornam como diz
Timothy Iles, “um fantasma dentro do sistema de literatura japonesa” (1997, p.1). Sua
desenvoltura literária se diverge pela rejeição de qualquer associação com a literatura
japonesa, como sua estrutura, sua visão social, suas ideologias em favor do contexto mais
amplo da literatura mundial.
Os esforços de Abe em escrever sobre a sociedade japonesa sob a influência dos
conceitos ideológicos e filosóficos ocidentais possibilitou ao Ocidente compreender e lidar
com o Japão moderno. Sua visão única capacitou a seus personagens externarem o desespero
e agonia de uma sociedade engolida pela tecnologia e urbanização.
3
Assim como Kenzaburō, outro autor que viveu o Pós-guerra foi Fukunaga Takehiko
(1918-1979). Fukunaga, embora tenha nascido em Fukuoka, mudou-se para Tóquio enquanto
ainda cursava o primário. Desde jovem, seus poemas, críticas e romances já eram publicados
em revistas. Seu grande interesse nos escritores franceses o levou a estudar na Universidade
de Tóquio do Departamento de Literatura Francesa. Seus estudos se aprofundaram em
Mallarmé (1842-1898), Baudelaire (1821-1867), Lautréamont (1846-1870), e Rimbaud
6
NATILI, Donatella. Beleza e Ambiguidade. Publicado pela Revista Cerrados: Revista do Programa de
Pós-Graduação em Literatura. n. 44, ano 26, p. 64-79, 2017.
7
Okuno Takeo (1926 - 1997) foi um crítico literário japonês e professor da Universidade de Tama.
Conhecido por sua aceitação das escritoras na literatura japonesa. Recebeu o prémio Taiko Hirabayashi em 1984
e a medalha de fita roxa (Shiju hōshō) em 1995.
8
TAKEO, Okuno. Introdução In: SHINKOKAI, Kokusai Bunka. Introduction to contemporary
japanese literature: Synopses of major works; 1956-1970. Tokyo, 1972. p. xxxvii.
5
Embora as obras tenham ideias sombrias sobre a vida, existe algo de lírico
e doce em suas obras e ao mesmo tempo são histórias bem escritas. Fukunaga
recebe o entusiasmo especialmente das jovens. Seus ensaios sobre amor e solidão
foram amplamente lidos... 9
(SHINKOKAI de 1972, p.40, tradução nossa)
Fukunaga foi aluno de Hori Tatsuo (1904-1953) durante a Guerra. Foi Tatsuo quem
lhe influenciou sobre as melancolias da morte. Infelizmente Fukunaga recebeu um
diagnóstico semelhante ao de seu mentor. A tuberculose deixou Takehiko recluso lhe dando
assim mais solidão para escrever.
Fukunaga com seu estilo próprio foi um dos vanguardistas do Pós-guerra, juntamente
com Ōe Kenzaburō, Ishikawa Jun (1899-1987) e Abe Kōbō. E realmente apesar de serem
classificados como autores do Pós-guerra possuem características individuais. Ishikawa Jun
9
SHINKOKAI, Kokusai Bunka. Introduction to contemporary japanese literature: Synopses of major
works; 1956-1970. Tokyo, 1972, p. 40.
10
Ibd, p. 41.
6
foi um escritor modernista do pré-guerra, mas que foi muito ativo e influenciador no Pós-
guerra.
Ishikawa Jun, que é respeitado e amado por escritores como Abe Kôbô,
Fukunaga Takehiko e Ôe Kenzaburô, precursor da literatura de vanguarda de hoje,
emergiu do relativo silêncio que durou por um tempo, com seu longo romance
Aratama (Violent Soul, 1963-1964).11
(TAKEO, de 1972, p. xl, tradução nossa)
11
TAKEO, 1972, p. xl.
12
SHINKOKAI. 1972, p.77.
7
Susan Napier em sua pesquisa sobre o fantástico japonês concorda com Jackson, que a
literatura fantástica é uma literatura de subversão. No caso do Japão, não pelos mesmos
13
NAPIER. 2005, p. 7.
14
NAPIER op. cit., p. 8.
8
motivos do romance realista. A maior parte da fantasia japonesa existe como um contra
discurso ao moderno, em específico, para Abe Kōbō contra a tecnologia. Napier aponta
também o que diz Eric Rabkin em seu livro Fantástico na Literatura (1976), a respeito da
fantasia e do fantástico.
Essa percepção da fantasia, o fantástico japonês traz em obras que tratam os mitos
rurais. Esses mitos chegam a revitalizar os escritos visionários desses autores. E com isso,
Napier conceitua a fantasia baseada na definição de Kathryn Hume que por si só já é muito
ampla. Napier define fantasia como “qualquer desvio consciente da realidade consensual”.16
Sem deixar de se preocupar com as motivações para se produzir escritos fantásticos.
No Ocidente durante o século XX, o fantástico foi considerado um gênero
marginalizado em relação ao realismo, por ser considerado um gênero não sério. No Japão, a
literatura fantástica fora marginalizada em relação ao naturalismo da época. Posterior à guerra,
a percepção sobre o fantástico foi se tornando mais séria, sua importância tem sido
reconhecida cada vez mais na teoria literária atual.
15
Ibid, loc. cit.
16
Ibid., p. 9.
17
Ibid., p. 11.
9
No caso do fantástico japonês não se trata apenas de retornar aos mitos, mas criar
mundos totalmente modernos sem deixar de serem japonês. Em um momento em que a
modernidade está estreitamente ligada a tecnologia do século XX.
O desespero por algum conhecimento é uma consequência da modernidade a qual o
Japão se entregou de forma tão plena e sincera como qualquer país ocidental, no escuro. Sem
garantia ou segurança de que o país se tornaria uma potência a ser equivalente as potências
ocidentais ou a ser outra China, explorada, subdividida e não desenvolvida. Essa semelhança
da falta de certezas com a modernização do Ocidente que faz o Fantástico Japonês trilhar
tantas semelhanças com o Fantástico Ocidental. Então, apesar de divulgar o progresso
constante, o milagre econômico e a harmonia social, como o governo doutrinou o país a
pensar, o Fantástico vive a margem disto para mostrar o inverso. Como um espelho que revela
o contrário desse estereotipado Japão moderno e seus custos.
O progresso e a modernidade foram alvos constantes do fantástico pré-guerra. Em que
a fuga já era pregada como um refúgio do mundo real. Essa resistência ao progresso que o
fantástico japonês pregou, forçou muitas vezes os leitores a questionarem se estavam
perdendo sua identidade nacional de japonês moderno.
O destaque a Ishikawa Jun é justamente por ter sido um desses autores. Seu fascínio e
a impossibilidade da utopia são extensivamente explorados em suas obras. Entretanto sua
visão é mais abrangente e radical, pois engloba tanto a sociedade japonesa da época como a
história do país. Na década de 1930, Jun inovou com o que chamou de Jikken shosetsu
(romance experimental), o qual seus escritos eram uma combinação de autorreflexão com
surrealismo para retratar os problemas políticos presentes no Japão. Essa tendência surrealista
e fantástica já era algo pré-vanguardista em Ishikawa. Pois embora essas vertentes já
existissem no pré-guerra suas combinações com a utopia seria mais bem delineadas após a
guerra.
Entretanto o escritor Abe, manteve sua influência na distopia escrita por Ishikawa. A
visão de Abe não estava de acordo com utopia, na verdade era totalmente distópica. Isso foi
algo que outros autores também absorveram.
18
Ibid, p. 165.
10
19
Ibid, p. 195.
20
GUEDES, Bruna Benini Wanick de Almeida. O Japão do Pós-Guerra: A catarse da tradição e da
modernidade em Yukio Mishima. Trabalho de conclusão de curso - PUC. 2010. p,18.
11
humanos e animais, mas também aos inanimados. Sob sua influência, não é
surpresa encontrar a criatividade de Abe dirigida à causa comunista.21
(MOTOYAMA, de 1995, p. 312, tradução nossa)
21
MOTOYAMA, Mutsuko. The Literature and Politics of Abe Kōbō: Farewell to Communism in Suna
no Onna. Monuments Nipponica 50, no. 3 (1995), p. 312.
13
“Eu li as histórias de Poe e contei para os meus colegas. Eu tinha que ler
uma história por dia para manter minha posição, e ainda havia uma demanda,
mesmo depois de terminar todas as traduções. Eu então me descobri tendo que
inventar histórias durante o inverno. Essa foi a primeira vez que comecei a escrever
o tipo de história que poderia entreter outras pessoas” – Abe Kōbō.22
(SHIELDS,1996, p. 33, apud, CAHILL, de 2009, p. 5, tradução nossa)
O que podemos ver nesse caso é que Abe, mesmo quando criança, sonhava
em retornar à terra que aprendera a considerar como sua, estava ciente das
contradições daquela terra. A nacionalidade japonesa era algo que seus professores
colocavam nele, como um uniforme que se recusava a se encaixar corretamente.
Por mais desejável que o uniforme pareça inicialmente, eventualmente o
desconforto forçará o usuário a removê-lo - para alterá-lo ou descartá-lo para
sempre [...].23
(ILES, de 1997, p. 24, tradução nossa)
O nacionalismo apresentado pelo corpo docente era tão forte que qualquer mau
comportamento da parte dos alunos, os professores afirmavam que “tal fato nunca ocorreria
em casa”. Usando “casa” para se referir ao Japão. Com o passar dos anos ao ver seus
professores agirem desta forma, Abe foi criando uma visão de um Japão fechado para ele.
Ao contrário da ideia de homogeneidade do Japão difundida nos anos 1930, Abe teve
em sua educação o entendimento de que não havia uma hierarquia de raças. A ideologia
22
SHIELDS, Nancy. Fake Fish: The Theater of Abe Kobo. New York: Weatherhill, 1996, p. 33.
23
ILES, Timothy John Frederick. Towards a New Community: Abe Kôbô: an Exploration of his
Prose, Drama, and Theatre. Toronto, Canadá: University of Toronto, 1997, p. 24.
14
adotada na Manchúria durante a ocupação japonesa (1931-1945) foi “A Harmonia das Cinco
Raças” a qual pregava a unidade entre os seus cinco grupos étnicos (Han, manchu, mongol,
hui e tibetano). Os japoneses que viviam na Manchúria na época, de fato, eram discriminados
pelos japoneses que chegavam do Japão.
Em meio às hostilidades, Abe demonstrou desde cedo um interesse particular pela
literatura, embora ao longo de sua vida desenvolveu outras habilidades como dramaturgo,
fotógrafo, músico e inventor.
Na escola da Manchúria, além de kendo, era interessado por matemática e entomologia,
algo que lhe serviu para a redação de Suna no Onna (“A mulher de Areia”, 1962).
Diferentemente de sua mãe, que era uma leitora das obras japonesa, Abe Kōbō era fascinado
pela literatura ocidental, e subiu as influências de autores como Poe, Rabelais, Sartre, Beckett,
Camus e Rilke (Fernandes, 2011, p. 5). E apesar desses interesses, seguiu os passos de seu
pai. Em 1943, Abe entrou na Faculdade de Medicina da Universidade de Tóquio o que explica
suas histórias às vezes se desviem para o gênero da ficção cientifica com uma mentalidade
friamente lógica (Naiper, 2005).
Em 1944 regressou a Manchúria para ajudar seu pai, que estava doente (Cahill, 2009).
Durante esse tempo escreveu suas duas primeiras publicações, a primeira foi uma coletânea
de poesias Mumei Shishu (Poemas Anônimos). Publicada em 1947, contendo os poemas que
compôs durante os quatro anos que esteve na faculdade de medicina. Seus poemas eram
carregados de ideologia existencialista, em que acreditava na época. E nesse mesmo ano
escreveu sua primeira prosa que viria a ser publicada em 1948, Owarishi Michi no Shirube ni
(“O sinal ao final da estrada”). O protagonista dessa obra foi inspirado num amigo que estava
junto com ele no retorno a Manchúria e faleceu no mesmo ano, de tuberculose. Sua
publicação fora feita por meio de Hanada Kiyoteru, na revista Kose, como a primeira obra
completa de Abe Kōbō. Ao escrever essa obra, Abe apresenta suas ideias existencialistas e o
uso do realismo naturalista, algo que nos anos 50 seria deixado de lado e suas obras teriam
uma estética anti-naturalista com apropriações subversivas de gêneros (Fernandes, 2011).
24
Nancy Shields, Fake Fish: The Theater of Abe Kobo (New York: Weatherhill, 1996), p. 34.
15
O cenário encontrado por Abe na Manchúria era de caos. As cidades estavam sombrias.
Ao mesmo tempo, o Japão estava se desgastando na Segunda Guerra Mundial, e domínio
militar em suas colônias foi algo posto em segundo plano pelo governo japonês. O Estado de
Manchukuo25 estava para ser perdido pelo Japão. Em uma entrevista Abe comenta sobre sua
primeira prosa publicada:
“Eu era um existencialista durante a guerra, suponho. É por isso que,
talvez, eu escrevi Owarishi Michi no Shirube ni. A ideia é baseada na tese "A
existência precede a essência", mas isso é extremamente auto-negativo. Quanto
mais eu tentava entender, mais eu falhava. Foi a partir da minha experiência no
pós-guerra que minha crença no existencialismo começou a desmoronar. Permaneci
na Manchúria por um ano e meio depois da guerra e testemunhei a completa
destruição da ordem social ali. Isso me fez perder toda a confiança em algo
estável”.26
(lijima Koichi, 1959, p. 4, apud, MOTOYAMA, de 1995, p. 5, tradução
nossa)
25
Foi um estado fantoche na Manchúria e leste da Mongólia Interior. Abolido em 1945.
26
lijima Koichi, 'Abe Kobo', in Abe Kobo, Oe Kenzaburo. 1959, p. 4.
16
ficado fascinado pelo surrealismo ocidental e Hanada o incentivou a utilizá-lo em sua escrita
(Cahill, 2009, p. 15).
Fascinado com o surrealismo, em 1949 Abe publicou Dendorokakariya
(“Dendrocacalia”), um conto de fadas tão surreal que torna difícil associá-lo com a autoria de
sua primeira obra. Segundo Motoyama, Abe teria afirmado ter procurado escrever
frases quanto possível sem sentido para que a obra tivesse um caráter imaginário, ou seja, o
mais distante da realidade. De fato, o “absurdo” dessa história só faria sentido dentro de um
mundo fictício.
27
In MOTOYAMA, Mutsuko. The Literature and Politics of Abe Kōbō: Farewell to Communism in
Suna no Onna. Monuments Nipponica 50, no. 3 (1995), p. 309.
17
"casa" e o desejo insaciável por ela, que leva, invariavelmente, a uma frustrada tentativa de
retorno (Cahill, 2009).
O ano de 1951 foi marcado pela entrada de Abe no Partido Comunista Japonês como
membro ativo. O sonho de uma nova comunidade construída em decorrência de sua rejeição
do sistema japonês tradicional e autoritário levou Abe ao comunismo. Na verdade, muitos
jovens fascinados pelos escritos visionários da literatura foram induzidos a associação com os
revolucionários. O ideal comunista e o desespero por uma “nova comuna” influenciou muitos
escritores a promoverem essa ideia de uma nova ordem social. Esse anseio por uma mudança
social estava muito ligado aos desejos da vanguarda japonesa.
28
Ibid, p. 312.
18
Abe Kōbō abraçou a ideia de liberdade artística sobre suas escolhas políticas, e, de
consequência, em 1962 foi expulso do Partido Comunista Japonês, por suas ideias
individualistas. Como se essa retirada do partido comunista tivesse favorecido uma inspiração
artística, neste período, alguns críticos o elogiaram por sua maturidade, pureza e sofisticação.
Ao mesmo tempo, não faltaram acusações de críticos sobre Abe ter buscado o sucesso
comercial, por meio de referências sexuais explícitas. O que na verdade não ocorreu. Abe
29
Ibid, p. 305.
19
continuou a seguir a teoria vanguardista da síntese dos opostos, porém nele o contraste se
dava entre a liberdade e a escravidão, os direitos individuais e as obrigações comunais, a
esperança e o desespero (MOTOYAMA, 1995, p. 321).
Na década de 1960, entretanto, a produção estava longe de diminuir o ritmo, as obras
de Abe Kōbō obtiveram maior repercussão. As obras pelas quais Abe talvez seja mais
conhecido, como a peça teatral Tomodachi (“Amigos”, 1967), os romances Suna no onna (“A
Mulher de Areia”, 1964) e Tanin no kao (“O Rosto de Outro”, 1966), e suas versões filmadas
mostram um surrealismo não mais refém da política.
30
Ibid, p. 306.
20
Abe escreveu em forma de diário, no qual o protagonista narra os fatos de seu ponto de vista,
tratando a questão do indivíduo e da sociedade:
Em 1973, Abe formou sua própria companhia de teatro, o Abe Studio. Ele trabalhava
intensamente em todas as áreas da realização, desde os roteiros das peças até as partituras. E
mesmo absorvido no universo teatral, Abe nunca deixou de escrever ficção. De fato, Hako
Otoko (O Homem da Caixa) e Mikkai (Encontro Secreto) foram escritos respectivamente em
1973 e 1977.
Após se desfazer de seu grupo teatral em 1979, Abe se afastou do mundo artístico, e
nos anos seguintes produziu a obra Hakobune Sakuramaru (“A Arca Sakura”), uma coletânea
de entrevistas intitulada Toshi e no Kairô (“Caminhos de Volta à Cidade”), com uma série de
fotografias tiradas por ele mesmo, assim como uma coletanea de ensaios e de roteiros de
filmes (Iles, 1997, p. 31). Em 1991, publicou sua última obra, Kangaru Nouto (“Caderno
Canguru”), onde o protagonista alienado e age de forma agressiva, representando bem seu
estilo literário. Devido a problemas de saúde que o autor estava enfrentando neste período,
Kangaru Nouto foi seu último trabalho publicado.
Em 1993, Abe Kobo morreu de ataque cardíaco deixando uma obra inacabada
chamada Tobu Otoko (“Homem voador”) que foi publicada mesmo se incompleta.
Por mais de 40 anos Abe Kōbō foi capaz de retratar um Japão moderno em
decorrência da sua evolução tecnológica devida ao crescimento econômico do pós-guerra.
Ele se apropriou de forma ímpar de estilos literários ocidentais sem se submeter à
influência literária japonesa, e por suas fortes críticas a sociedade, foi um autor de vanguarda
impulsionado pela busca da identidade do homem moderno e por seu sentimento de alienação
na sociedade japonesa.
31
Ibdem, p. 323.
21
Um dia, ao retirar suas bandagens que cobriam seu rosto, o cientista observa um
líquido como pus começar a escorrer lentamente, exalando um odor de putrefação. Sob o
sentimento de repulsa de seu próprio rosto lhe ocorre o pensamento que possa existir algo
para cobrir as queimaduras sem causar o horror que as ataduras causam.
Como ansiava por cobrir essa angústia, a este jogo de cego procurando a
passagem num beco sem saída!
Daqui a começar a fazer planos para a máscara foi um mero passo.
Basicamente a ideia não tinha nada de extraordinário; como qualquer semente
soprada pelo vento, só precisava de um pouco de terra e uma gota de água para
germinar.
(Página 26)
E com a lembrança de ter lido sobre a existência de órgãos artificiais feitos de plástico,
o cientista procura o Dr. K, para entender o que poderia ser feito. Na consulta tem a brilhante
22
ideia de criar sua própria máscara moldada no formato do seu rosto, mas diferente da
aparência anterior.
Tendo sua máscara pronta, o cientista parece reestabelecer sua confiança, e,
então, revela sua motivação de querer mudar de rosto, o amor por sua esposa. Ele coloca
claramente em seus escritos que sua busca de uma nova cara era com o objetivo de
reencontrar sua esposa fingindo-se ser outro e conquistá-la.
Entretanto, a utilização da máscara para encontrar sua esposa causa ciúmes no
“homem sem a máscara”, seu verdadeiro eu. De consequência, para acalmar sua agonia e
frustração, resolve escrever para sua esposa toda a verdade sobre a máscara e o homem por
traz dela.
O ponto de vista do cientista é descrito na forma de diário revisado com algumas notas
explicando ou comentando os fatos descritos. Esse diário é dividido em três cadernos, um
preto, um branco e um cinza, nessa ordem de acontecimentos. Embora não exista um fim na
última folha de cada caderno, ou tenha uma introdução na primeira folha de cada também. De
todos os cadernos, tem apenas um início (no caderno preto) e um término da história (no
caderno cinza). A narrativa é descritiva, e por ter sido revisada pelo próprio cientista, existem
comentários sobre o que o leitor deve considerar. Esses comentários direcionam o leitor a
conhecerem apenas os fatos de forma incerta. Ao final do livro aparece o ponto de vista da
esposa do cientista, que já confirma ao leitor que talvez alguns relatos do cientista não tenham
ocorrido daquele jeito.
Ao ler todos os cadernos, sua esposa escreve uma carta revelando que já era de seu
conhecimento que o homem com quem se encontrava era na verdade seu marido. Além disso,
expõe seus reais sentimentos, nos quais o cientista retrata de forma distorcida se colocando
como a vítima.
Nessa obra Abe consegue transformar elementos característicos da repugnância em
uma meditação sobre as relações de identidade, entre homem-mulher e o padrão social entre
os japoneses. As reflexões desses temas presentes nessa obra são para levar o leitor a pensar.
Algo que Ishikawa já trazia em sua obra: a combinação do surrealismo e a autorreflexão. E
em Tanin no Kao, Abe apresenta o rosto desfigurado do cientista com a dupla função de
confrontar o leitor a respeito da concepção de estranho e de envergonhar o leitor pelo seu
comportamento homogêneo social (NAPIER, 1996, p. 101).
A proposta de autorreflexão e surrealismo presente na obra possibilita ao leitor evocar
idéias, situações e sentimentos, tais como o isolamento social. Abe aponta que as artes
surrealistas devem permanecer sugestivas e não definitivas (Motoyama, 1995, p. 321). Assim,
23
32
The Fantastic in Modern Japanese Literature Napier: the Subversion of Modernity. 1996, p. 102.
25
Esse fato não é devido à criança enxergar através das bandagens suas queimaduras,
mas sim pela alienação do cientista. Ele percebe que sua identidade é moldada no que as
pessoas enxergam dele. Sem o rosto, ele é um monstro, embora antes ele tivesse sido um
cientista, agora quem o conhece sem rosto esta enxergando apenas um monstro.
Apesar de perceber certa exclusão social baseada nessa alienação, o cientista
reconhece também um sentimento de liberdade em não ter rosto. Essa confissão está em suas
notas sobre espera da criação da máscara.
3.2.2 A máscara
Na obra, o protagonista comenta sobre uma lembrança de quando era pequeno. Se
lembra de ver seu pai trocando o chapéu de palha com um chapéu de feltro:
Na sua obra, Abe escreve sobre o contraste entre o mundo rural japonês e a
modernidade urbana japonesa. São dois Japão distintos que ele próprio conheceu. O seu
primeiro contato com o Japão foi em Hokkaido, em uma zona rural. Poucos anos depois, foi
estudar em Tóquio, que era, na época, uma metrópole moderna. A mudança da economia rural
para há industrial nos anos sessenta foi rápida e crescente, e a mudança aconteceu de forma
agressiva, em consequência da ocidentalização durante o período do pós-guerra.
33
MATSON, 2007, p. 79.
28
Então após experiências com a máscara, que incluem a compra de um ioiô para uma
garotinha com problemas mentais, interações sociais em bares e metrô, o protagonista segue
com seu plano para seduzir sua esposa. Afinal, segundo o cientista, o motivo de todo essa
busca é reconquistar sua esposa através da máscara.
Não obstante, estas notas foram uma terrível confissão. Senti como se
tivesse sido levada a força para uma mesa operatória, sem estar doente, e retalhada
indiscriminadamente com uma centena de facas e tesouras bizarras, cuja utilidade
não se compreendia qual poderia ser.
(página 288)
A insatisfação da esposa aos escritos do marido é justificada pelo fato dela ter
desmascarado o disfarce do marido desde o início e ele ter escrito negando o fato. Ela afirma
ter enxergado o marido além da máscara, o seu verdadeiro eu. A esposa percebe que o
cientista sabia disto, e por mais esquisito que os encontros parecessem para ela, ficou feliz
com a forma como ela foi tratada pelo marido. Ela interpreta a máscara como a forma de seu
marido compartilhar o próprio sofrimento após o acidente. Por isso se deixa conduzir pelas
ações do marido.
Entretanto, a esposa também manifesta uma recusa à alienação do marido. Ela entende
a sua valorização nas relações sociais, e que o marido não precisava da aceitação dela, mas de
si mesmo e que talvez a construção da máscara fosse o caminho que ele escolheu para isso.
Pois a angústia do marido é devida a perda do rosto que expressava nos outros o próprio eu.
Não foi por ela ter rejeitado o marido, mas ele mesmo ter se rejeitado. Como se com a
máscara fosse outra pessoa.
Os espelhos citados pela esposa também expressam uma crítica à sociedade capitalista
moderna. Algo que Abe aborda não só em O rosto de Outro, mas também em Sunna no Onna
é essa visão dos espelhos em que a sociedade é como um deserto de espelhos, a qual reflete
criticamente a identidade social que o indivíduo expressa por um meio, que no caso de O
Rosto de Outro é a face. Embora o rosto não precise expressar sua identidade interna e sim de
fato sua identidade social como indivíduo que segue os valores externos da sociedade
industrializada que sofrem constantes mudanças, principalmente os valores da aparência.
Pior ainda, na sociedade industrial moderna, não pode haver nenhum eu,
apenas um “deserto de espelhos”. Nash diz de um herói Calvino que “o eu agora
não tem nada a ver com qualquer senso interno de identidade. Ser “idêntico”
apenas ao que está fora é submeter-se aos instrumentos de… aparências.” Isso
também vale para a máscara e, de fato, é um aspecto cada vez mais universal da
sociedade capitalista moderna, onde não se pode fugir da ênfase na aparência nos
espelhos críticos da cultura de consumo.
Os romances de Abe são incomuns por ver tanto o mundo dos espelhos que
o indivíduo solitário cria quanto o mundo dos espelhos erigidos pela sociedade.
(NAPIER, 1996, p. 103, tradução nossa)
Após ler a carta da esposa, o cientista escreve sua frustração em relação sua falha
comunicação através da escritos. E que são totalmente dependentes da boa vontade para
serem lidos. Essa comunicação do casal é quase como se vivessem em tempos distintos, na
qual, torna a intimidade que deveriam ter cada vez mais longe de ser alcançada. Em oposição
a esse relacionamento, há a relação que a máscara, de forma agressiva, estabeleceu com a
esposa do cientista. Como último ato do cientista, ele coloca a máscara, pega a pistola de ar
comprimido e recorre à violência:
O autor não deixa claro se a mulher de saltos é a esposa do cientista ou apenas uma
mulher qualquer, a afirmação está na violência como ferramenta necessária para estabelecer
comunicação através da máscara e assim, deixar o isolamento social.
Ao escrever essa última frase Abe se refere não somente a comunicação que funciona
nos centros urbanos modernos, mas também aos movimentos políticos da época.
O sentido politicamente envolvido de Abe pode ser visto como
intrinsecamente ligado aos movimentos políticos dos anos 1960, um período em que
o radicalismo japonês foi além do “ato de escrever”. Era uma época em que jovens
japoneses em particular experimentavam novas identidades por si mesmos em
confronto direto com os mais velhos.
(NAPIER, 1996, p. 104, tradução nossa)
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim como outros autores, Abe Kōbō tem refletido em suas obras aspectos de sua
infância. Na verdade, sua infância teve mais influência que seus conterrâneos e mentores, no
que se refere a suas temáticas. Sua infância na Manchúria e sua educação sem os valores
nacionalistas da época causaram uma falta de sentimentos nacionais e na concepção de lar
japonês. O tempo de que Abe passou longe do Japão o privou de conhecer o mundo
tradicional japonês. De consequência, ele não considerava o Japão como casa, mas sim a
Manchúria, que desapareceu após a guerra. Assim, como vimos, em Akai Mayu, o autor
retrata a busca por uma concepção de pertencer a uma casa, pois ele não havia mais uma que
lhe pertencia, mas somente uma sua lembrança.
Após a volta ao Japão, Abe sentia-se deslocado, o que lhe causou a percepção de não
possuir uma identidade na sociedade moderna do Japão.
Por causa de sua falta de um sentimento de identidade nacional, o escritor se manteve
atento às vanguardas e as inovações políticas como existencialismo, marxismo e comunismo,
pois estas estavam dissociadas dos dogmas japoneses. A Manchúria proporcionou a Abe a
liberdade ideológica e filosófica, principalmente para explorar correntes provindas da Europa.
E, graças a sua participação nos grupos de vanguarda teve a oportunidade de continuar seus
estudos filosóficos. Através destes contatos, Abe conheceu o surrealismo, que foi
determinante para o estilo de seu trabalho. E, posteriormente, em conflito entre a política e a
arte literária, seguiu com a arte literária surrealista, embora a política ainda estivesse presente
em muitos seus trabalhos.
A utilização do surrealismo para expressar a alienação que a perda da identidade social
poderia causar em uma sociedade cada vez mais consumista foi um marco de Abe. Como
vimos, em suas visões de alienação social, o indivíduo resulta ameaçado pela coletividade da
sociedade japonesa. De consequência, a paranoia do indivíduo em enxergar a homogeneidade
social como uma ameaça, e não como uma proteção é totalmente compreensível e aceitável
(NAPIER, 1996, p. 107).
Em O Rosto de Outro, aqui analisado, a temática da perda de identidade pessoal,
aborda um mundo paranoico justamente pela ameaça percebida pelo escritor da presente e
constante coletividade da sociedade moderna japonesa dos anos 60. Para a sobrevivência do
personagem principal se torna necessária à criação de uma face emprestada de outra pessoa.
As questões do isolamento social e as relações sociais cada vez mais abaladas pela
modernidade industrial é algo marcante nos escritos do protagonista.
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O presente trabalho tentou, por meio de investigações sobre a vida do autor, apresentar
as ideias vanguardistas presentes no pós-guerra e analisar o conto O Rosto de Outro. Ao
mesmo tempo, tentou enfatizar a importância do tema da perda de identidade para o autor Abe
Kōbō no contexto da sociedade japonesa moderna. Suas experiências de vida e sua
capacidade de explorar o gênero fantástico trouxeram uma percepção única no panorama da
literatura moderna japonesa. Abe é um dos autores que através de metáforas e situações
absurdas consegue criar, como diz Susan Napier, ‘um dos mundos ficcionais mais
consistentemente sombrios e surreais de qualquer escritor, japonês ou ocidental’ (NAPIER,
1996, p. 196).
Abe Kōbō é o autor excepcional de obras que merecem ser mais pesquisadas. Este
trabalho não exaure a análise das complexas temáticas deste autor. É apenas um incentivo
para que seu olhar crítico sobre a sociedade japonesa do pós-guerra estimule novos trabalhos
no Brasil.
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REFERÊNCIAS
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Modernity; Japan, the West, and Beyond. Theses. 72 f. New Jersey, Estados Unidos: Seton
Hall University, 2009.
ILES, Timothy John Frederick. Towards a New Community: Abe Kôbô: an Exploration of
his Prose, Drama, and Theatre. Toronto, Canadá: University of Toronto, 1997.
KEENE, Donald. Five modern japanese novelists. New York: Columbia University, 2003.
ix, 113 p.
KOBO, Abe. A Máscara. Tradução de Daniel Gonçalves. ed.: Livraria Civilização. Porto,
Portugal, 1970.
NAPIER, Susan J. The Fantastic in Modern Japanese Literature Napier: the Subversion
of Modernity. Oxford: Taylor & Francis, 2005.
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TODOROV, Tzvetan. Introdução a literatura fantástica. São Paulo, SP: Perspectiva, 1975.
191 p.
YUJI, Matson, The Word and the Image: Collaborations Between Abe Kôbô and
Teshigahara Hiroshi. Theses, 44 f. Department of Pacific and Asian Studies, University of
Victoria, 2007.