Oscar Nakasato

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Entrevista com Osar Nakasato

Osvaldo Duarte

ENTREVISTA
OSCAR NAKASATO: AUTOR DE NIHONJIN (ROMANCE) E IMAGENS DA
INTEGRAÇÃO E DA DUALIDADE - PERSONAGENS NIPO-BRASILEIROS NA
FICÇÃO (CRÍTICA E ANÁLISE LITERÁRIA)

Por Osvaldo Duarte

O objetivo da entrevista que segue


é ouvir o escritor Oscar Nakasato1 e
deixar falar a sua obra, especialmente o
romance Nihonjin2 (2011), cujo sucesso
merecido tornou o autor nacionalmente
conhecido. O romance em questão está
intimamente ligado a outro livro,
Imagens da integração e da dualidade –
Personagens nipo-brasileiros na ficção
(2010), obra de crítica e história literária.
Esses textos, entrelaçados em suas
origens e motivações, mobilizam
conteúdos e significados simbólicos que
extrapolam o campo das letras e são muito caros à história de vida do autor. A
substância literária de ambas tem, pois, motivação identitária e investem em
sondagens sobre a memória e a auto/étnico-compreensão cultural do imigrante
japonês e de seus descendentes, buscando delinear, e também afirmar, um
modo particular de representação.
O livro Imagens da integração e da dualidade estuda, a par da história
social da imigração japonesa, a presença de personagens nipo-brasileiros na
literatura e o modo como se dá a representação do processo de aculturação e
integração dos japoneses no Brasil. Realizado a partir de dez romances e três
contos, o estudo que fora a tese de doutoramento do autor chama a atenção
para as imagens literárias da tríade família, educação e trabalho, tidos como
elementos estruturadores do universo comportamental do imigrante, e mostra
como o nipo-brasileiro é retratado na literatura de forma ambivalente, como
indivíduo que se integra ao Brasil e se transforma e, ao mesmo tempo, como
ser que se resguarda em marcas da cultura japonesa.

1
Oscar Nakasato é professor, doutor em Literatura Brasileira pela UNESP e escritor. Com sua
obra de ficção, recebeu, entre outros, os prêmios Benvirá (2011), Prêmio Bunkyô de Literatura
(2011) e Jabuti (2012).
2
“Nihonjin” corresponde ao adjetivo pátrio “japonês”. É como os japoneses se referem a si
mesmos.

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Outra constatação do autor foi a escassez de romances brasileiros em


que figuram tramas e personagens de ascendência japonesa. Essa descoberta –
ou decepção, como ele sugere – tanto a
ausência de figuras, como o modo dual e,
via de regra, sem as nuances e
contradições que dão sentido à vida,
levaram-no a escrever Nihonjin. É fato,
contudo, que já estava em curso na
literatura nacional um movimento que
tende a suprir essa carência; uma
tendência que de certo modo coincide
com a participação cada vez maior de
nipo-descendentes na vida brasileira e
com o aprofundamento das inter-relações
culturais e afetivas. Nesse contexto de
assimilações, alguns autores têm se
ocupado em dar vida a esses personagens,
com crescente aprofundamento
psicológico e alguns momentos de
protagonismo, longe, portanto, dos
estereótipos que caracterizam as primeiras representações nipônicas na ficção
brasileira, como as que se encontram no romance inaugural de Mário de
Andrade, de 1927, e nos dois romances finais de Oswald de Andrade, de 1943
e 1945. Penso, por exemplo, num raio que se estende por três décadas, em
obras como O jardim japonês (1986), de Ana Suzuki; Sonhos bloqueados
(1991), de Laura Honda-Hasegawa; Sonhos que de cá segui (1997), de Sílvio
Sam e O sol se põe em São Paulo (2007), de Bernardo Carvalho, entre outros.
Mas nesse decurso, nenhum outro texto é tão singular quanto Nihonjin.
Concebido como romance histórico, Nihonjin narra a trajetória da
família de Hideo Inabata por três gerações, entre as décadas de 1920 e 1980,
aproximadamente, tendo como motivação a saga dos imigrantes japoneses
chegados ao Brasil no início do século XX. O narrador, neto do protagonista,
está prestes a fazer o caminho de volta à terra de seus antepassados e esse
possível retorno que, em princípio, parece promover o necessário ajuste de
contas com a história de perdas e desencontros que por tantos anos se
impusera sobre aquela família, indicia – de forma emblemática – os percalços
da alteridade, já que o narrador, empenhado em expor as iniquidades
(exploração, violência, xenofobia) a que foram expostos os imigrantes
japoneses no Brasil, vive a expectativa de tornar-se um decasségui brasileiro;
mais uma vez estrangeiro, um japonês de outra pátria, no Japão.

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Entrevista com Osar Nakasato
Osvaldo Duarte

Narrada a partir de vozes e pontos de vista que se inter/entrecruzam, a


história se estrutura no intermeio de eixos de tensão, entre os quais os de
maior destaque são os polos da sujeição e da emancipação. Nesse campo de
contradições, situam-se os sentimentos dos imigrantes e dos seus
descendentes com relação ao Japão e ao Brasil, o conflito entre gerações e os
enfrentamentos ideológicos entre os nipo-brasileiros. De um lado, aqueles que
apregoam o insulamento como forma de preservação indenitária; e, de outro,
aqueles que defendem a integração com o universo cultural brasileiro. No polo
da sujeição, há que situar a figura do protagonista Hideo, um nacionalista
inflexível que, a par do desejo de realização pessoal, atende a um chamado do
imperador japonês para que seus súditos emigrem e retornem ao Japão com
recursos para soerguer a nação em crise. Mas a fortuna não vem, a esperança
de voltar ao Japão se desfaz, enquanto Hideo tenta viver e educar seus filhos à
maneira japonesa. A sua condição de homem, pai, marido e líder leva-o a
subjugar aqueles que pela tradição estariam sob sua influência, o que não
decresce a sua humanidade, pois ele é também uma vítima, seja pelo exílio
forçado em que se encontra, seja pela desestruturação de identidade ou por
resguardar certos costumes e crenças que não encontram diálogo na nova
terra: culto extremado à nação, devoção cega ao imperador, a quem julga ter
origem divina e, consequentemente, a adesão mais ou menos simplória e
inconsequente às ideias da Shindo-Renmei3. O princípio emancipação, por
sua vez, representado principalmente pela visão de mundo dos irmãos Haruo
e Sumie, filhos de Hideo, não rejeita completamente os valores defendidos
pela tradição japonesa, embora, confronte-os. Esses personagens iconizam o
processo de formação de uma identidade nipo-brasileira, distinguindo-se de
seus antepassados pela incorporação de valores que lhes possibilitam
enfrentar o autoritarismo patriarcal, resistir ao insulamento social, e cultivar a
individualidade como fator identitário: Haruo identifica-se com a cultura
brasileira, tem consciência de sua condição de japonês-brasileiro e vivencia
isso. É, por outro lado, tão recalcitrante quanto o pai. Se um defende
intransigentemente valores coletivos, o outro é implacável na defesa de seus
pensamentos, rebela-se contra o nacionalismo exacerbado da Shindo-Renmei,
e é assassinado. Sumie – por obediência aos costumes – casa-se com um
nihonjin e, após dez anos de silenciamentos e obliterações, frustrada e infeliz,
abandona a casa, os filhos, o marido (honrado) para viver com o gaijin4, que

3
Associação de caráter nacionalista criada por isseis no interior de São Paulo no início da
década de 1940. Após o final da Segunda Guerra Mundial, seus membros empenham-se em
difundir a ideia de que o Japão saíra vitorioso, punindo, mesmo com a morte, àqueles que
propagavam a rendição japonesa.
4
“Estrangeiro” ou aquele que não é japonês, dito de forma depreciativa.

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amava desde a juventude. Assim, tendo violado os códigos do grupo, é


rejeitada pela família, exilando-se do mundo em que moldara toda a sua vida.
Une-os, por fim, a dialética do ser e do não ser: deixar de ser japonês, sem
deixar de ser japonês; passar a ser brasileiro, sem ser brasileiro e, se perdem a
integridade, pois se revelam como identidades sobrepostas e rasuradas, jamais
perdem a integralidade e a rigidez essencial: em seus mundos interiores não se
apartam sujeito e objeto, homem e nação, corpo e desejo e são tão inflexíveis
que só a rasura, a fratura, o despedaçamento do ser, revela-os por dentro –
quebram-se para não se vergar.
Livre dos artifícios de linguagem, que via de regra se fazem
acompanhar na ficção brasileira atual pela espetacularização da sordidez, da
crueza, da violência e do sexo que exacerbam a materialidade do corpo,
Nihonjin propõe-se como representação realista, caligráfica e ao mesmo tempo
lírica dos acontecimentos. O corpo representado, para sublinharmos um
exemplo de transcriação realista, é apreendido pela percepção do afeto. Trata-
se de um corpo que sente e não apenas de um corpo que atua. Tal humanismo
não exclui o corpo doente, sedentário, extenuado, debilitado pela velhice; o
corpo da dor é o mesmo corpo em que todo o prazer também se levanta.
Imune, pois, ao virtuosismo jactante da moda, Nihonjin se distingue por seu
intimismo crespo e delicado, e por contrariar a tese de que a sociedade
hipermoderna teria perdido a capacidade de ajuizar o tempo da história. O
romance não apenas domina o conhecimento histórico, como se apodera do
subjetivismo, principal característica da ficção do último século,
estabelecendo um inusitado intercâmbio entre a dimensão diacrônica da
história e a dimensão sincrônica da memória subjetiva. Ao optar pela
exploração inventiva da história, supera também os dois obstáculos mais
comuns desse gênero romanesco: o sentimento de falsa história e o de ficção
falsa, pois consegue aproximar, sem gerar ruídos, as dimensões do tempo da
ação e de um tempo do sentir.
Os eventos históricos atuam duplamente como moldura e como
estruturadores das situações narrativas, da trama ao estilo. Com a demarcação
dos limites historiográficos da fábula, o narrador pode se concentrar na
composição dos personagens – traço diferencial do texto –, cuja
funcionalidade é balizada pela contextura sociológica experimentada. Para
reunir e dar forma à sua matéria, faz incursões pela história da imigração
japonesa e por seus arredores afetivos, perscruta a memória da família (cartas
e fotografias antigas, oitivas), tudo lhe servindo para sanar as lacunas do seu
acervo memorial. Como lhe faltam sempre os liames, serve-se da memória do
ojiichan (avô) já em dissipação, das histórias que o tio ouvira dizer e, como
tudo ainda não lhe basta para dar coesão à sua narrativa, vale-se da

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Entrevista com Osar Nakasato
Osvaldo Duarte

imaginação e da fantasia, a fim de fazer progredir a narração. Assim, ao


admitir que narra aquilo que nem sempre sabe, estabelece um pacto de
fantasia com o leitor, que aceita o jogo dialético entre ficção e história.
Esse comportamento do narrador, poder-se-ia dizer, aproxima-se em
nível inventivo a uma espécie de satisfação imaginária do desejo: ao tentar
compor o perfil de Kimie, a primeira esposa do avô, logo nas primeiras linhas
do romance, diz saber pouco sobre ela, embora interesse-se por ela e pense
nela “como personagem” (p.11). E, tendo se apossado de Kimie como criação,
pode vê-la e estar com ela através da imaginação ou da absorção de outros
pontos de vista: “Eu a encontrei, primeiro, no navio, na longa viagem (...).
Calada. Assim eu a imaginei” (...)”. Assim como Kimie, que enlouquecida, vê e
sente a neve japonesa em meio a um cafezal paulista, o narrador avista a sua
personagem, num movimento que equaliza suas vozes e modos de ver: ela, em
estado de delírio; ele, em estado de criação, com seu poder de onisciência
transgressora e sua liberdade de escrevente.
Com a elegância misteriosa e a contensão de um bonsai, este romance
nascido de um projeto crítico-analítico recupera a história sem a preocupação
de revê-la criticamente como sugerem algumas leituras do romance histórico,
mas para acrescentar à ficção nacional algo que ainda não existia. Por isso, a
entrevista que segue pretende ouvir o autor e deixar falar a sua obra, pois
interessa-nos menos a sua opinião do que os valores que o definem, isto é, os
valores literários por meios dos quais a sua obra se impõe.

ENTREVISTA

Duarte – Seu romance Nihonjin investe em um tema pouco explorado na


ficção brasileira. Esse tema, contudo, não parece ser apenas um assunto de
ficção. É, também, uma experiência complexa, como sansei, como pesquisador
e como ficcionista. Gostaria de começar pedindo a você que falasse um pouco
dessa experiência.

Nakasato – A minha história pessoal enquanto neto de imigrantes foi essencial


na escolha do tema de Nihonjin, e também da minha tese de doutoramento. A
banca da minha defesa na universidade me perguntou por que eu escolhera
aquele tema, e a resposta foi fácil: era uma forma de eu resgatar a minha
própria história. Talvez a banca esperasse uma resposta que envolvesse
questões acadêmicas, as quais, obviamente, foram importantes, mas a primeira
motivação foi pessoal. Essas duas experiências – da tese e do romance – me
ajudaram a entender melhor a história da imigração japonesa no Brasil e, por
conseguinte, a minha história. Foi um exercício de autoconhecimento.

Duarte – Qual foi o espaço ocupado pela cultura nipônica em sua infância?

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Que outras culturas estavam disponíveis e como elas se articulavam? Você


certamente terá ouvido histórias, músicas, folclore. Houve na sua infância a
presença de uma literatura oral japonesa?

Nakasato – Como neto de imigrantes japoneses (meus quatro avós nasceram


no Japão), a cultura japonesa esteve muito presente na minha infância. No
sítio onde passei meus primeiros oito anos, meus vizinhos eram meus primos
e meus tios, bem como meus avós por parte de mãe. Portanto, minhas
lembranças mais remotas envolvem aspectos da cultura japonesa: banhos de
ofurô (nossa família sempre teve ofurô na casa), teru teru bozu (bonecos de
pano que fazíamos e pendurávamos em árvores em dias de chuva para que ela
cessasse), visita aos parentes no primeiro dia do ano, apresentação de músicas
e danças japoneses no kaikan, etc. Nesse contexto, devo ter ouvido lendas e
histórias do Japão, mas não me lembro. Eu tinha um pouco de contato com as
famílias dos colonos, que eram brasileiros. Depois, quando passei a frequentar
a escola, passei a conviver mais. A integração entre crianças é sempre mais
fácil. Eu me lembro de prepararmos fogueira em época de festas juninas. Nas
noites de sábado, íamos à casa do único tio que tinha energia elétrica para
assistirmos à televisão. Lembro-me de assistir à novela Irmãos Coragem, de
Janete Clair, clássico da teledramaturgia brasileira. Dessa forma, naturalmente,
a cultura japonesa e a cultura brasileira se faziam presentes na minha
infância, ocupando espaços distintos, mas complementares.

Duarte – E com relação à literatura brasileira? Um dos traços da cultura


japonesa é a valorização dos estudos e da leitura.

Nakasato – Os japoneses acreditam muito nisso: a dedicação ao trabalho e aos


estudos são motores de ascensão social. São também elementos importantes
na formação de um imaginário sobre os nipo-brasileiros e também indutores
da interação desses brasileiros na sociedade. Com relação à minha formação, a
memória de leitura mais antiga é um livro de Maria José Dupré, que foi, além
de excelente escritora, uma figura importante na difusão do livro e na
valorização da literatura infantojuvenil no Brasil. Quando eu li A ilha perdida
– tinha 10 ou 11 anos – a história me impactou porque, apesar de ter vivido
num sítio até meus 8 anos, eu me identificava com a cidade. E os
protagonistas da história, Eduardo e Henrique, eram dois meninos da cidade
que se aventuravam numa ilha. Eu era um garotinho pacato e reservado, vivia
uma vida tranquila, por isso uma grande aventura, que envolvia
desobediência, ousadia e enfrentamento do proibido me encantou. Depois
vieram os romances de José de Alencar, Machado de Assis e Eça de Queirós,
mas fazia deles uma leitura superficial. Lembro particularmente da
personagem Juliana, de O primo Basílio, cuja trama me fascinou. Esses autores
foram importantes na minha iniciação.

Duarte – Nihonjin se inicia com uma evocação à memória. O narrador lamenta


os apagamentos e rasuras provocadas pelo tempo, mas o autor, por sua vez,

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Osvaldo Duarte

sabe que essas são também as artimanhas da invensão, já que ela se faz
também pelo esquecimento: a literatura tende ao trespassamento do factual,
ao devaneio da verdade, ao estremecimento das certezas, e leva à recordação
inventiva, à fantasia voluntária, que chamamos às vezes de memória. Então,
em que medida essas instâncias – ficção, história, perscrutação subjetiva – se
encontram ou se afastam?

Nakasato – É mais ou menos desse modo, por aproximação e por afastamento,


que o narrador de Nihonjin se comporta. Ele tenta a historiografia usando
procedimentos literários, mas nota-se também que o texto se avizinha do que
se poderia chamar de “ficção do eu”. É importante perceber que o narrador,
embora se proponha a contar a história de seu avô e de sua família, não quer
fazê-lo de forma objetiva, e privilegia a memória – a sua, a do avô, Hideo, a do
tio, Hanashiro, a memória coletiva. É um narrador que assume o seu caráter
subjetivo, que é, afinal, a condição de todo aquele que conta uma história. É
assim em toda narrativa. Em diferentes graus, sempre há uma interferência do
narrador. Em Nihonjin, o narrador confessa essa interferência. Ele assume que
inventa. Ele tanto registra o que sabe, como preenche as lacunas com o que
ouve, com o que pesquisa e com o que intui. Há situações, enfim, que só
podem ser apreendidas pela imaginação. Pode-se dizer, então que há um
entrecruzamento de perspectivas e que a reconstrução histórica da imigração
japonesa convive com o intimismo lírico, num jogo entre as formas
voluntárias e involuntárias da memória. Como todo escritor, usei a pesquisa
histórica, a memória e a imaginação para compor Nihonjin e transferi essas
características para o narrador.

Duarte – A fantasia faz parte da constituição humana do personagem, mas ele


não abre mão dos fatos concretos.

Nakasato – Sim, para escrever sobre os colonos italianos, o narrador-


protagonista recorre à própria memória de livros de História do Brasil e de
filmes a fim de preencher as lacunas deixadas pela memória pessoal. A certa
altura ele diz “Vovô se lembrava pouco dos italianos [...]. Mas eu os conhecia
dos meus livros de história, dos filmes sobre a imigração italiana. Então pude
vê-los: de manhã, quando iam para o cafezal”. O narrador destaca também que
recorre ao livro de Tomoo Handa5, buscando fundamentos para contar a sua
história. Às consultas a fontes históricas tradicionais somam-se recordações
do avô e do tio, situação que eu também vivi. São fontes concretas – história
oral.

Duarte – Além disso, ele conta a história de sua própria família, o que implica,
consequentemente, um mergulho emocional. Conta também a favor dessa

5
Tomoo Handa é autor de O Imigrante Japonês: história de sua vida no Brasil (São Paulo: T.
A. Queiroz: Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 1987), uma das fontes para a composição de
Nihonjin.

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subjetividade o fato de que, ao desvendar a história do avô, ele pode apossar-


se de sua própria identidade.

Nakasato – É verdade. Em dado momento, ao se referir à mãe, o narrador


admite que a mulher que traduzia em palavras talvez não fosse propriamente
a mãe que conhecera de verdade. Mas o que é a verdade para esse narrador,
cuja memória é também uma construção imaginária? A mãe traduzida em
palavras talvez fosse uma invenção sua, ou projeções de um homem que
tentava compreender a mulher que abandonara o marido e os filhos. Há,
também, o distanciamento temporal, que contribui para isso. O
distanciamento dos fatos no tempo impede que as fontes do narrador (o avô e
o tio) se lembrem dos detalhes da história vivida. Mas a história, enfim, é
aquilo que se narra.

Duarte – Gostaria de insistir um pouco mais no narrador. Parece que a feição


metalinguística do texto, que é, enfim, uma perspectiva autoral, está presente
também no ponto de vista do narrador. Além de fundir história e ficção, ele
reflete sobre o próprio ato de escrever.

Nakasato – Sim, ele conversa com o avô, entrevista o tio Hanashiro, vale-se da
leitura de Tomoo Handa e diz ter a “mania de arquitetar com palavras”. Diz
também que para escrever precisa-se de tinta e papel, admitindo que todas as
fontes e estratégias são válidas. Uma posição bastante autônoma, e moderna,
da atividade de escrever. Por fim, numa tentativa de síntese, aponta para tudo
isso e diz: “eis a história”. Então, o que faço em Nihonjin, através do narrador,
é unir dois projetos, os quais se mostram compatíveis: o de restaurar o passado
e o de ficcionar.

Duarte – Algumas resenhas e estudos sobre Nihonjin sugerem, com uma ou


outra variante, tratar-se de uma obra temática no entorno dos conflitos entre
os makegumes e os kachigumes6. Penso que o livro trate do enigma que é a
existência humana: como aventurar-se na decifração da existência sem
arriscar-se? O livro iconiza o anseio humano de liberdade. Mas a que preço?
Sempre o isolamento, a perda, a morte?

Nakasato – Entendo que sempre se correm riscos quando se busca a expressão


identitária, principalmente em sociedades opressoras. Os personagens Hideo e
Haruo, pai e filho, representam polos opostos no difícil processo de imigração
e aculturação dos japoneses e seus descendentes no Brasil. O primeiro,
ultranacionalista, recusa-se a aceitar a nova terra, e o segundo luta para se

6
Eram chamados makegumes os membros da colônia japonesa que difundiam a ideia de que o
Japão havia sido derrotado na Segunda Guerra Mundial; acreditavam também que os
imigrantes japoneses deveriam se adaptar à vida no Brasil. Por isso, muitos foram
sentenciados à morte e executados pelos kachigumes, cujas posições eram radicalmente
opostas.

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Entrevista com Osar Nakasato
Osvaldo Duarte

inserir nela como brasileiro. O fato de Haruo colocar-se como makegume,


contrariando a orientação do pai e de grande parte da sociedade nipo-
brasileira, representa uma atitude libertária, coerente, aliás, com toda a sua
trajetória, desde a infância. O ápice dessa atitude ocorre na cena derradeira,
quando ele se recusa a se manter escondido e, mesmo sabendo do risco
iminente de morte, assume-se como autor do artigo em que reconhece a
derrota do Japão na guerra. Quando há o anseio pela liberdade, não importam
os percalços, pois é na luta pela autodeterminação que o homem se reconhece
humanamente íntegro, quer dizer, é impossível falar de humanização fora da
liberdade.

Duarte – Há também o caso da personagem Sumie.

Nakasato – Sim, o caso de Sumie é ainda mais contundente. Ela é “filha”,


“irmã”, “esposa” e “mulher”. E, sendo mulher, é obrigada a se ajustar às regras
que a hierarquia familiar e a cultura japonesa lhe impõem, anulando qualquer
desejo pessoal. Por isso, a atitude extrema de abandonar filhos e esposo
japonês para viver com um gaijin significa não somente um desrespeito à
tradição de união intrarracial, mas afronta a uma cultura que considera a
família a célula matriz da sociedade. Para conquistar a felicidade ao lado do
homem que ama, ela não renuncia somente ao marido, aos filhos, aos pais e
aos irmãos, mas também a um passado, a uma cultura. As atitudes de Sumie e
Haruo, com as consequentes perdas, dizem respeito à assunção de seus
destinos, de suas identidades, de seus corpos. Sim, tudo aí é incursão
existencial.

Duarte – A certa altura do livro o narrador cita Cassio Kenro Shimomoto.


Poderia falar um pouco sobre a presença dele no romance? Que mensagem
quis transmitir ao trazer para o texto o autor de um famoso artigo que toca de
forma vibrante e muito avançada – o artigo é de 1935 – em questões de
mentalidade e de identidade Nikkei? A publicação desse artigo gerou muita
polêmica.

Nakasato – Cassio Kenro Shimomoto era um homem culto, japonês que


chegou ao Brasil ainda bebê e se tornou o primeiro nikkei a se formar em
Direito no país. Quando o descobri nas minhas pesquisas sobre a imigração
japonesa e o processo de aculturação dos japoneses e seus descendentes no
Brasil, o personagem Haruo já estava delineado. Mas percebi a semelhança
entre os dois e, então, resolvi “aproveitar” o Cassio Shimomoto de alguma
maneira, e aproximar a ficção e a realidade.

Duarte – Ambos fazem verdadeiras proclamações de liberdade.

Nakasato – Sim, este é um dos pontos de ligação entre eles. Veja o que diz
Cassio Shimomoto no artigo de 1935: "somos brasileiros, respeitamos o Japão,
como pátria de nossos pais, porém como brasileiros devemos amar o Brasil".

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Polifonia, Cuiabá, MT, v. 21, n. 30, p. 289-306, jul-dez., 2014

Eu o cito no romance como amigo de Haruo em função dos aspectos comuns:


ambos defendiam a brasilidade dos nipo-brasileiros, manifestavam
publicamente suas posições e, com isso, enfrentavam a hostilidade dos
ultranacionalistas japoneses que viviam no Brasil.

Duarte – Cassio sofreu retaliações, e foi perseguido politicamente.

Nakasato – Foi muito perseguido, e Haruo foi assassinado por admitir que o
Japão perdera a Guerra. Por isso a alusão a Cassio é importante em Nihojin.
Veja que a reflexão sobre a identidade do nipo-brasileiro é central no romance.
Em uma época em que havia, de um lado, imigrantes e filhos de japoneses que
defendiam entusiasticamente a nacionalidade nipônica e o caráter divino do
imperador, e, de outro, brasileiros que criticavam e rejeitavam os nikkeis por
considerá-los enquistados em redutos particulares, Cassio ousa enfrentar os
dois lados. Por ser um personagem emprestado da vida real, sua participação
imprime a Nihonjin um caráter genuíno, embora a minha proposta tenha sido
realizar uma leitura subjetiva da realidade histórica. Por outro lado, não quis
explorá-lo de forma panfletária, daí a sua inserção acanhada no enredo,
mesmo que suas posições tenham um valor social extraordinário.

Duarte – Linda Hutcheon (A Poetics of Postmodernism, 1988) afirma que


obras literárias são capazes não apenas de resgatar o passado, mas também de
revisar os acontecimentos. Outro teórico, Fredric Jameson, num ensaio
desafiador (O romance histórico ainda é possível?, 2007) afasta essa
possibilidade, tendo como argumento a inconciliabilidade entre a propensão
para o entretenimento que caracteriza o romance pós-moderno e o
compromisso com a construção identitária que distingue a vertente da ficção
histórica. Considerando essas reflexões sobre o romance contemporâneo, seria
possível considerar o lugar que o seu livro já ocupa ou pode ocupar na ficção
brasileira contemporânea?

Nakasato – Realmente se percebe, hoje, uma busca pelo entretenimento fácil


na literatura, bem como na televisão, no cinema e no teatro, mas devemos
lembrar que o entretenimento é a função básica da arte. O que me preocupa é
a superficialidade, a ditadura do riso sem esforço, a banalização da lágrima.
Espero que os leitores situem Nihonjin em outro patamar, embora eu queira,
sim, que se divirtam, que chorem, que tenham uma experiência estética com a
sua leitura. Nihonjin é assumidamente subjetivo, por isso não sei se se ajusta
exatamente no conceito de romance histórico, que requer um enquadramento
mais realista. Ao mesmo tempo, em Nihonjin, a História não é somente um
pano de fundo para um palco onde atuam os personagens. A sua interseção
(dos personagens) é realizada considerando-se os eventos da História, que os
marca decisivamente. Nesse aspecto, Nihonjin está impregnado de História,
cuja presença não é incompatível com o entretenimento. Por outro lado, o
fundamento histórico de um romance não justifica a sua leitura; ninguém
precisa ler Nihonjin para conhecer os imigrantes japoneses e seus

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Entrevista com Osar Nakasato
Osvaldo Duarte

descendentes e o processo de inserção desses indivíduos na sociedade


brasileira. Há bons livros de História, Antropologia e Sociologia que informam
e discutem esses tópicos com propriedade. Além disso, concordo com Linda
Hutcheon quando diz que uma obra literária pode resgatar o passado – o que
penso ter realizado com Nihonjin – e revisar a história, embora, no meu caso,
não tenha tido a intenção de fazer nenhuma revisão, muito pelo contrário,
pois usei o que encontrei na História oficial para subsidiar a minha história
(ou estória, para fazer a diferenciação proposta por Guimarães Rosa).

Duarte – Quer dizer, então, que o subjetivismo da ficção moderna não seria
um impeditivo para que se dê credibilidade à dimensão histórica na literatura.
O texto literário incorporaria, assim, a dialética humana da conjunção do
plano histórico e do plano psicológico.

Nakasato – Sim. Essa conjunção é fundamental. É nela ou por meio dela que o
leitor pode se reconhecer em sua completude.
O romance histórico, que realiza um diálogo
entre a realidade e a ficção, sempre teve
leitores fieis que gostam de interagir com
elementos da história oficial. São leitores para
os quais a verossimilhança se materializa
melhor a partir de dados concretos. Quanto ao
subjetivismo, pode ser trabalhado como mais
um ingrediente para a credibilidade. É por
meio das investigações subjetivas que o leitor
tem acesso ao mundo interior dos personagens,
assimila suas vivências, dramas, sonhos e se
reconhece como ser humano.

Duarte – Em seu livro Imagens da integração e


da dualidade: personagens nipo-brasileiros na
ficção você conclui que o imaginário
construído pela ficção nacional sobre os nipo-brasileiros caracteriza os
japoneses como seres duais, cuja vivência no Brasil não os apartaria do Japão.
Em que medida o romance Nihonjin reforça ou modula essa perspectiva?

Nakasato – Com certeza, Nihonjin reforça essa tese. Haruo, que na infância é
castigado pelo pai por assumir que tem coração brasileiro, reconhece, depois,
que se orgulha de ser “um brasileiro filho de japoneses”. E no último capítulo,
o narrador, brasileiro e neto de japoneses, diz que “ir ao Japão é quase um
retorno”. Sua imaginação antecipa os fatos e, então, ele se vê no Japão: “na
primeira oportunidade me desvencilharei dos sapatos, pisarei a areia branca e
sentirei um contato antigo, os pés revivendo o toque, moldando-se a formas
(...) ignoradas pelo tempo, (...) me sentarei num campo de cerejeiras
brancas (...), irei aos pés do monte Fuji, olharei o pico coberto de neve e o
reconhecerei, que será um reencontro”. O narrador e Haruo são dois

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personagens que sintetizam, em suas individualidades complexas, a ideia da


dualidade que caracteriza o brasileiro descendente de japoneses.

Duarte – Imagens da integração e da dualidade é a sua tese de doutoramento,


sim? Quando é que o problema da tese se transforma em tema para o
ficcionista? Parece-me que partes dos dois textos foram escritas ao mesmo
tempo. Poderia falar sobre isso? Como acontece nas artes plásticas, parece que
um texto serviu de estudo para o outro. Em um, o exame das personagens
nipo-brasileiras na ficção nacional e o modo como essas personagens se
constituem como seres sociais e, no outro, uma tentativa de construir
personagens mais humanos.

Nakasato – Na minha pesquisa de doutorado, constatei que a literatura


brasileira, com poucas exceções, ignorava a presença do japonês e seus
descendentes, enquanto outras etnias, como a italiana, eram bem
representadas. Sendo neto de japoneses e aficionado da literatura, a tímida
presença de nikkeis na nossa ficção me incomodou. Assim, tanto a tese de
doutoramento quanto o romance Nihonjin me levaram a resgatar a minha
origem étnica e a minha história, que se confunde com a história de tantos
outros descendentes de japoneses. Pude compreender, então, que o passado –
não somente aquele que alcanço através da memória, mas também aquele que
não vivi, mas faz parte da minha constituição enquanto indivíduo histórico – é
essencial para compreender quem eu sou. Essa foi a minha maior motivação
para escrever Nihonjin. E as pesquisas sobre a imigração japonesa que havia
feito para a tese foram providenciais, pois as usei no romance. Mas a tese
ficou pronta antes. O romance – continuei trabalhando nele por quase cinco
anos.

Duarte – Edward Said, no livro Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (2003,
p. 46) descreve o exílio com “uma fratura incurável entre um ser humano e
um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar”, e atribui a ele uma “tristeza
essencial” que “jamais pode ser superada.” Como pesquisador e como
romancista que refletiu sobre a história de imigrantes, você corroboraria esse
ponto de vista? Como pensa a questão?

Nakasato – Hoje o impacto que decorre da imigração é menor, considerando-se


a facilidade de contato com o país de origem e mesmo com a possibilidade de
se adquirir produtos estrangeiros onde quer que se esteja, mas nas primeiras
décadas do século passado a situação era bastante diferente. Na minha
pesquisa sobre imigração japonesa, marcou-me uma passagem de Tomoo
Handa, escrita em resposta às críticas sobre o enquistamento dos japoneses,
considerados, então, inassimiláveis. Handa avalia que “não terá havido

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Entrevista com Osar Nakasato
Osvaldo Duarte

imigrante que tivesse abandonado seus costumes mais que os japoneses (...).
Desde sua chegada, teve que morar numa casa sem tatame, tirar o quimono,
jogar fora a tigela e o hashi, beber café ao invés de chá”. Ele me chamou a
atenção para o problema da perda de identidade, que começa mesmo antes do
imigrante perceber que se tornou um exilado. Ao corpo acostumado ao tatame,
ao chá e ao peixe, impõem-se o colchão, o café e a carne suína. A essas
imposições vão se somando outras, que transformam o imigrante em um
sujeito mutilado. Em inglês, usa-se o termo uprooted na referência ao
imigrante, que caracteriza aquele que perdeu as suas raízes. É o que ocorre
com alguns personagens de Nihonjin, principalmente Kimie, que morre em
função desse processo de desenraizamento.

Duarte – Podemos refletir um pouco mais sobre essa questão? Citei o livro do
Edward Said porque o problema do exílio me parece pouco discutido no
contexto das imigrações. Essa questão atinge de modo muito violento os
valores individuais de liberdade, pertencimento e identidade; ele dilacera
corpos culturalmente constituídos, como nacionalidade, territorialidade,
família. Penso na tragédia pessoal vivida por alguns imigrantes que, ao
tomarem consciência de que não teriam condições de regressar ao Japão,
deixam de ser imigrantes (com perspectivas de regresso) e tornam-se exilados.

Nakasato – Sim, isso é verdade. É o caso da personagem Kimie, como já


falamos, e também de Hideo, prisioneiro da própria inflexibilidade. Para
Hideo, a tragédia do desenraizamento, da perda de identidade, ratifica-se
quando percebe que não retornará mais ao Japão, transformando-se de
imigrante em exilado. O caso de Kimie é ainda mais pungente, pois a cessação
da dor, se se pode dizer assim, vem pela loucura e pela morte. Há uma
passagem no final da primeira parte do romance que iconiza esse estado de
perdição. É a sua cena derradeira: doente, enlouquecida pela tristeza, febril,
Kimie corre em meio ao cafezal, em plena madrugada. A morte física chega
lentamente, mas o exílio já a matara antes.

Duarte – Estamos falando da imigração que se transfigura em exílio, mas ela


pode também se transfigurar em banimento se é imposta pela necessidade de
sobrevivência. Mesmo assim, esse exílio-banimento, que dilacerou famílias e
dissolveu esperanças, parece ter se convertido em algo positivo pelos
japoneses que permaneceram no Brasil.

Nakasato – Creio que sim. Os japoneses, apesar da mutilação e da perda de


identidade impostas pela imigração, conseguiram manter muitos aspectos da

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cultura do seu país. A união em torno dos costumes foi para os japoneses uma
forma de sobrevivência, pois o distanciamento cultural, notadamente no que
diz respeito à língua, impunha o isolamento e, consequentemente, um grande
sofrimento. Além disso, um traço que caracteriza os japoneses é que eles se
mantiveram firmes na dedicação ao trabalho e aos estudos, o que promoveu
uma ascensão social e o respeito por parte da sociedade brasileira. Em
Nihonjin, ocorre o que a socióloga Ruth Cardoso atesta em sua tese de
doutoramento: a mobilidade física, ou seja, a mudança de endereço, implica
mobilidade social para os nikkeis. Hideo trabalha arduamente e se muda da
fazenda, onde era colono, para se tornar arrendatário em outra propriedade,
depois se transfere para a cidade de São Paulo para ser proprietário de um
comércio. Nesse sentido, pode-se dizer que as dificuldades iniciais serviram
de mola propulsora para algo mais positivo.

Duarte – Nihonjin narra um drama humano que se define pelo entrechoque de


gerações e interseção de culturas. Um drama, aliás, que você relata ter vivido:
“ser diferente e ser igual ao mesmo tempo”, ou “ser japonês em casa e
brasileiro fora de casa”. Fale um pouco sobre isso: essa dialética do viver que –
conforme concebida em seu romance – pode fragilizar o sujeito, encrudelecer
o indivíduo e, também, levar à emancipação.

Nakasato – É importante ressaltar essa palavra: emancipação. Na entrada da


adolescência e na adolescência, ser um “japonês” – porque era assim que me
viam, porque eu tinha cara de japonês – em meio aos “brasileiros” era um
problema. Embora me vissem desde a infância como o japonesinho inteligente
– e inteligente porque era japonês – eu desejava a desenvoltura e a
espontaneidade dos “brasileiros”. Eu me sentia, sim, fragilizado nessa
situação. Tinha dificuldades em aceitar a minha condição nikkei e buscava me
afirmar como “brasileiro”. Depois, descobri que a minha condição de nipo-
brasileiro era a minha real identidade, ou seja, um ser híbrido, com fortes
influências da cultura japonesa e da cultura ocidental. Passei, então, a tirar
proveito dessa situação. A minha tese e o meu romance são exemplos dessa
virada. Hoje eu sei que foi essa dialética japonês/brasileiro que fez o Oscar ser
quem ele é. Sou aquele sujeito que gosta de Chico Buarque e Marisa Monte e
procura musicais de Enka no Youtube, que adora paçoca, churrasco,
missoshiro e tempurá.

Duarte – O romance apresenta elementos construtivos que chamam a atenção


pelo valor funcional e estrutural. Penso, por exemplo, nos marcadores
temporais (ou geracionais) implícitos, como são as formas de tratamento

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Entrevista com Osar Nakasato
Osvaldo Duarte

familiar em japonês e os nomes das personagens. Os primeiros dão ao texto o


aspecto de informalidade cotidiana que se acentua à medida que o tempo
avança e o Japão parece cada vez mais distante para a família Inabata. Quanto
aos nomes, é na terceira geração dos Inabata que aparece um nome de origem
ocidental, pronunciado de forma afetiva: Carlinhos – tudo indicando a
passagem do tempo e a aculturação. Como chegou a esses recursos?

Nakasato – Já me criticaram por usar termos da língua japonesa no meu


romance. Já me disseram, também, que eu deveria incluir em Nihonjin um
glossário. São termos comuns, de uso doméstico, que sugerem informalidade.
Seu uso é proposital, e eu penso que o estranhamento provocado por esses
termos é importante para conduzir o leitor ao universo nipo-brasileiro. Ao
mesmo tempo, acredito que esses termos não sejam tão numerosos que
engessem a leitura do romance. Quanto aos nomes, naturalmente os de origem
japonesa prevalecem, pois se conta a história de uma família de imigrantes
japoneses. Carlinhos é, na verdade, da quarta geração (bisneto de japoneses), é
yonsei, considerando o imigrante, issei, como a primeira geração. A escolha
dos nomes próprios reflete, sem dúvida, o processo de abrasileiramento dos
descendentes de japoneses. Isso ocorre, na verdade, já a partir da terceira
geração. A minha própria família é exemplar nesse aspecto. Meus pais, que
são da segunda geração, foram registrados somente com nomes japoneses.
Minhas irmãs, que são mais velhas que eu, também foram registradas somente
com nomes japoneses, mas foram obrigadas a adotar um nome ocidental para
serem batizadas. Já meu irmão e eu, os mais novos, fomos registrados com
nomes compostos, um ocidental e outro japonês. É o que ocorre com os nomes
dos filhos do narrador de Nihonjin: Pedro Hideki e Maria Hisae.

Duarte – Para encerrar, gostaria de voltar às questões de formação e educação.


Enquanto isso, você poderia falar sobre a literatura atual? Fala-se em crise,
mas já há quem diga que se trata de uma crise de abundância: publica-se
muito e em tomos cada vez mais volumosos, como se escrever fosse um
exercício de tautologia. Considerada a média do que se publica, haveria saída
para o romance fora do entretenimento? Qual seria o lugar do escritor hoje? E
o lugar do romance?

Nakasato – O entretenimento fácil tem “ganhado” escritores que se preocupam


com os números da vendagem, e há aqueles que têm ânsia em publicar. Dessa
forma, realmente, os números são elevados em se tratando de publicação. Ao
mesmo tempo, o entretenimento centrado na imagem conquista cada vez mais
adeptos. Fora desse contexto, há bons escritores, para os quais sempre existe

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um pequeno público que consegue ler nas entrelinhas, que não se contenta
com a camada superficial do texto e que, ao mesmo tempo, não confunde
profundidade com uma moda existente de hermeticidade. Um escritor produz
reflexão, ele faz todo um trabalho nos bastidores antes que o texto seja
apresentado, mas eu sigo acreditando que a literatura deve, primeiro, oferecer
entretenimento. Por isso, em se tratando de romance, uma boa história bem
contada é fundamental. Creio que os concursos literários, cujos números vêm
aumentando, têm colaborado para dar visibilidade a bons escritores e a bons
livros, os quais, fora desse contexto, ficariam restritos a pequenos grupos de
leitores. A internet também tem se mostrado como uma possível vitrine para
bons textos

Duarte – Diz-se que para se tornar um escritor é preciso ser antes um leitor.
Penso que isso interessa bastante aos educadores: que tipo de leitor se deve
ser?

Nakasato – Eu sempre digo isso àqueles que me pedem fórmulas para se tornar
escritor. Mas, que tipo de leitor? Talvez a resposta seja: um leitor assíduo.
Depois: leitor não somente de romances, pois um aspirante a escritor deve
estar informado sobre quase tudo. A reflexão vem com a prática, já que as boas
leituras levam à reflexão, aos questionamentos e às dúvidas. A qualidade dos
textos também é importante, mas essa questão já é mais complexa. Também
sempre digo que se deve prestar muita atenção à vida. Ficar trancado em casa
lendo livros não basta.

Duarte – Domo Arigato gozaimashita.

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Recebido em 30/06/2014.

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Polifonia, Cuiabá, MT, v. 21, n. 30, p. 289-306, jul-dez., 2014

Aceito em 30/07/2014.

Osvaldo Duarte
Docente do Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários da UniR e do Curso
de Letras (Campus de Vilhena). Líder do Grupo de Pesquisa Mapa Cultural -
Centro Interdisciplinar de Estudos em Cultura e Artes.
E-mail: [email protected]

Oscar Fussato Nakasato


E-mail: [email protected]

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