Paulo Duarte Fontes - Entrevista

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HISTÓRIAS DE VIDA

Memória MPM – O senhor é natural de onde?

Paulo Duarte Fontes – Nasci no dia 4 de maio de 1927. Morávamos


na Avenida Atlântica, em Copacabana. Naquele tempo, a praia ainda era muito
rudimentar. Fiz o ginasial, me formei no colégio São Bento, beneditino; sou
muito católico. Depois, fiz exame para a Faculdade Nacional de Direito e me
formei em 1952.

Memória MPM – E desse período da Faculdade, o senhor se lembra dos


professores, dos estudantes? Como era a vida acadêmica?

Paulo Duarte Fontes – Eu lembro! A vida acadêmica foi excelente.


Era uma turma muito boa, professores notáveis. Alguns colegas tornaram-
se magistrados, outros advogaram com destaque. Dois chegaram a ser
embaixadores. Formei-me e resolvi montar um escritório, no último andar
do Edifício Sloper, no Rio de Janeiro. Advogava no Crime e no Cível, e nas
Auditorias também, onde fiz amizade com um sujeito sensacional, falecido
em 1994, chamado Carlos [Maria] de Paiva Ronco, servidor da Procuradoria-
-Geral de Justiça Militar. Ele me indicou para ser promotor substituto da
Justiça Militar. O substituto era, então, convocado para atuar em um processo,
ou dois, por ano.

Mas estourou a Revolução. Certo dia, o Ronco me telefonou,


dizendo que minha indicação estava travada no SNI. Como o professor Luiz
Viana Filho era meu contraparente, amigo de família, telefonei-lhe, pedindo
sua intervenção. Ele disparou apenas um telefonema e garantiu-me que eu
estava nomeado. Imagine: na Revolução, alguns promotores efetivos – não vou
declinar os nomes – tiravam o corpo fora e se colocavam em exercício, por
medo da cassação.

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Os processos eram sérios. O primeiro que jogaram sobre mim,


foi o do [Roberto] Hipólito [da Costa], que matou o Alfeu [de Alcântara
Monteiro]: ambos brigadeiros. Alfeu era o comandante da 5ª Zona Aérea,
no Rio Grande do Sul. O [Nélson Freire Lavanére] Wanderley, ministro da
Aeronáutica, tinha ido lá para prendê-lo, pois ele era considerado janguista, e
o levar para São Paulo. Ele era um sujeito de posições firmes e disse: “Aqui eu
não vejo homem para a minha bala.”. Começou a discutir com o Wanderley,
disparou um tiro, que o pegou de raspão. Aí dois oficiais entraram na sala e
ele disparou novamente. Então, o Hipólito entrou e atirou. O Alfeu morreu,
alvejado por dois tiros que atingiram a lateral esquerda do tronco. Eu funcionei
nesse processo e defendi a tese da legítima defesa, própria e de terceiro.

Memória MPM – A legítima defesa do Hipólito?

Paulo Duarte Fontes – Do Hipólito, sim, que foi absolvido. Naquele


tempo, na Aeronáutica tinha o [ João Paulo] Burnier. Todo mundo tinha medo
dele, e eu tenho a impressão de que por causa desse processo ele me respeitava.
Um dia ele disse a um advogado do Ministério da Aeronáutica que queria
falar comigo. Atendi ao convite. Na sala dele, me deu uma porção de nomes
– não vou citá-los –, gente que eu deveria denunciar. Disse-lhe que lastimava,
mas um promotor não decreta a prisão preventiva de ninguém, de sorte que
ele precisaria justificar o motivo, nome por nome, encaminhar o pedido para
o juiz, que abriria vistas para mim. Só então poderia dar um parecer, que seria
favorável ou contrário, dependendo da minha convicção e consciência.

O Burnier esperneou. Não gostou. Mas, apesar de ser uma dessas


pessoas expansivas, que ao se precipitarem podem fazer besteiras, era também
um sujeito com raciocínio, de forma que acabaria se acalmando e refletindo.

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Porém, saí de lá convicto de que seria cassado e cheguei a comentar isso


com meu sogro, em sua fazenda, para onde fui em seguida. Estávamos em
novembro, mês de Finados. Voltando da fazenda, para visitar meus pais,
casualmente me encontrei com o Burnier. Surpreendentemente, me convidou
para almoçar. Eu disse: “Brigadeiro, só de ver o senhor já tremi.”. Rimos.
Afinal, ficamos até amigos.

Daí, fui promovido. Um dia, cheguei em casa – foi incrível –, liguei a


TV e assisti ao presidente [Artur da] Costa e Silva dizendo: “Amanhã, aquele
moleque do João Pinheiro Neto vai para a cadeia, porque vai ser denunciado!”.
Ele estava falando, eu ouvindo. Ele disse até uma besteira, que o Pinheiro teria
cometido latrocínio. Deu para ver quando um auxiliar o cutucou, como quem
fala: “Não diz besteira!”. Desliguei a TV e fui estudar um processo que havia
recebido naquele dia. Era, justamente, o processo do João!

Memória MPM – O senhor já sabia que estava com o processo do ex-


diretor da Supra?

Paulo Duarte Fontes – Não! Sabia apenas vagamente que tinha


alguma relação com as invasões de terras em Pernambuco.

Memória MPM – Mas por que um processo sobre invasão de terras em


Pernambuco foi parar nas mãos do senhor?

Paulo Duarte Fontes – Ele era do Rio, tinha feito aquele discurso na
Central do Brasil, junto com o João Goulart. Comecei a estudar o processo e,
por sorte minha, havia um documento que dizia que, pelo mesmo fato, ele tinha
sido julgado e absolvido na Justiça Comum. Ora, em Direito existe um princípio
que diz: “Non bis in idem”, isto é, ninguém pode ser denunciado duas vezes pelo

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mesmo crime. Então, acabou-se o processo. É evidente que o Costa e Silva não
deve ter gostado. Mas Juscelino [Kubitschek] gostou. Ele falou com o João
Pinheiro que queria me homenagear. Assim, ofereceu um jantar no apartamento
do João. Foi muita gente, inclusive minha prima Regina, filha do [Olavo] Bilac
Pinto. A minha mulher, Marly Fontes, que era da UDN, saiu de lá encantada
com o Juscelino. Nós sentamos na mesa de honra. O jantar foi admirável. Depois
disso o João ofereceu um almoço mais restrito para mim, no qual o Juscelino
também estava presente. Foi muito agradável e fiquei amigo do Juscelino.

Passou-se um tempo e fui promovido para Juiz de Fora. Um colega


disse-me que iria me incomodar, pois lá havia dois substitutos: um era meio
louco, vivia dando denúncias ineptas; e o outro trabalhava com o SNI. Mas
isso não me assustou. Quando cheguei a Juiz de Fora, havia uma sessão em
andamento, e o substituto exclamava-se com dramaticidade: “Hoje, sexta-feira,
minha beca está manchada de sangue, porque meu substituto vai assumir a
Auditoria de Juiz de Fora!”. Esse era o tal maluco. Estava referindo-se a mim
(e nesses termos), quando o substituto era na verdade ele! Fui ao Cartório
e avoquei todos os processos. O juiz era um sujeito espetacular, o [Antonio
Carlos] Seixas Telles, de quem me tornei muito amigo. Senti que era um
homem equilibrado, sério e faria cumprir a lei. Quando acabou a sessão, vem
outro cara, com um [revólver] calibre 45 na cintura, dizendo: “Eu já distribuí
os processos.”. Dei um berro: “Se o senhor entrar aqui com esse revólver, vou
prendê-lo, porque sou o responsável, então, o senhor tome juízo! E tem mais:
o senhor não distribui processo nenhum, quem distribui é o seu chefe, que sou
eu; de hoje em diante, o senhor só faz o que eu mandar!”.

Já tinham me avisado que o substituto mantinha um escritório no


próprio quartel. Naturalmente, ele foi queixar-se para o general [Ariel] Pacca

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[da Fonseca], comandante da 4ª Região Militar, das minhas providências.


Também fui falar com ele. Achei-o uma simpatia. Expliquei-lhe que a força
de um procurador residia no poder de representar. Assim, se percebesse algo
errado, eu representaria para o Superior Tribunal Militar, para o comandante
do I Exército, para onde necessário fosse. Ele compreendeu e me prometeu
que aquela situação, de fato, teria fim. Começamos a julgar os processos. As
coisas pareciam ter entrado nos eixos, até que um dia o sujeito denunciou o
escultor Guido Rocha. O senhor sabe o motivo? Porque considerou os seus
Cristos subversivos! Pode? Veja aquele Cristo ali na parede [apontando para
uma escultura afixada na parede do hall de entrada do apartamento]: é um
Guido Rocha.

Memória MPM – É um Cristo lindo! Representando com eloquência o


drama do padecimento na Cruz…

Paulo Duarte Fontes – É claro! É arte, de qualidade. Denunciar


o artista por causa de suas representações do Cristo era uma estultice, uma
arbitrariedade! Mas isto estava longe de ser um caso isolado. Havia outras
denúncias delirantes, baseadas em superdimensionamento de aspectos triviais,
sem lastro probatório algum.

Noutro processo, ele denunciou uns trinta padres! Tinha havido, em


1968, no Rio de Janeiro, aquela tragédia com um estudante secundarista, morto
em um confronto com a Polícia Militar. O corpo foi velado na Assembleia
Legislativa e se celebraram missas na Igreja da Candelária. Saíra, então,
um ônibus de Juiz de Fora com os padres, que lá foram em solidariedade e
assinaram um livro de condolências, que funcionou como um manifesto de
repúdio à morte lamentável de um menino de 16 anos num acidente. Não

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havia nem mesmo uma responsabilização da Polícia Militar nesse documento.


Ora, qualquer um assinaria! Eu assinaria! Houve um coronel que assinou, era
irmão de dois generais, um de cabelos vermelhos e o outro de cabelos pretos.

Mas o promotor denunciou os padres: escreveu duzentas e tantas


folhas. Isso foi a julgamento. Ele estava crente que faria a acusação. Avoquei
o processo. Estavam crentes de que me meteriam medo, mas “meti os ferros”:
a denúncia era inepta. Numa dessas tiradas, o general [Euclides] Figueiredo
(irmão mais velho do presidente) tinha dito que a Igreja Católica Apostólica
Romana era marxista, leninista, comunista. Eu aproveitei o momento do
julgamento para protestar. O general era um sujeito formidável, o respeitava,
mas não podia admitir falarem nesse tom da minha Igreja.

O Longo, que presidia Conselho, achou ruim meu protesto, mas não
disse nada na hora. Quando foi passar a palavra aos advogados, advertiu-os:
“Os senhores vão poder falar, mas não vão fazer como o promotor que atacou o
general Figueiredo.”. Pedi novamente a palavra: “Eu lastimo que o senhor não
tenha entendido, eu não ofendi o general Figueiredo; pelo contrário, o admiro,
agora, ele não entende nada do que é o comunismo na Igreja Católica!”. Afinal,
absolveram os padres por unanimidade. O Longo terminou a sessão com uma
ironia, imitando o gesto do padre quando encerra a missa, fazendo o sinal da
cruz: “Vão em paz para casa.”. Desnecessário.

Um dia cheguei à Auditoria de Juiz de Fora e havia um recado de


que o general Pacca queria conversar comigo. Eu gostava dele. Ele estava
preocupado, porque o substituto, [ Joaquim] Simeão [de Faria Filho], junto
com o La Vangeli, tinham prendido o dentista que o atendia e o arrolado como
testemunha. Um absurdo! “E o senhor não o soltou?”, perguntei. “Não, não

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soltei... Sabe como é...”. De fato, era uma posição constrangedora. Garanti-
lhe que resolveria. Cheguei à Auditoria e topei com o La Vangeli, que era
militar: “Tem um minutinho? É o seguinte: vou fazer uma representação
contra o senhor porque prenderam uma testemunha, fizeram tais absurdos, e
vou representar.”. “Chutei o balde!”, como se diz. Empalideceu. Eles “pintavam
e bordavam” em Juiz de Fora; fizeram os maiores absurdos, tudo em nome
da Revolução! Coisa nenhuma! Misturavam seus interesses nisso e até
prejudicavam a Revolução. Ele disse: “Não fui eu, Dr. Fontes, foi o Simeão”. Aí
o chamou e eu disse que representaria contra os dois. O Simeão estava fazendo
hemodiálise naquela época, passou mal e tivemos que o levar ao hospital. Logo
em seguida soltaram todo mundo e esqueci o caso.

Tinha um advogado lá que não gostava do Simeão: o Obregon


[Gonçalves]. Ele vinha queixar-se para mim e eu dizia que estava cumprindo
o meu dever. O fato é que o Simeão acomodava-se quando sentia que se
defrontava com alguma autoridade. Bastou eu afirmar um pouco a minha e tudo
aquietou-se. No tempo em que estive lá, não teve subversão, não apareceram
novos processos de segurança nacional, sobretudo porque o Simeão parou de
denunciar as pessoas. Afinal, a passagem por Juiz de Fora foi agradável e saí de
lá tendo feito muitas amizades, que guardei ao longo da vida.

Fui indicado para a Escola Superior de Guerra: maravilha aquele


curso! Fiz grandes amizades lá. Foi um período extraordinário. Antes de o
curso começar, em janeiro de 1974, o Ruy [de Lima Pessôa] – uma das maiores
inteligências na Justiça Militar, muito meu amigo – me convocou para o Rio,
porque sabia que eu era de lá. Foi ele quem me indicou para a Escola. O Simeão,
contudo, espalhou em Juiz de Fora que eu tinha sido afastado. Ridículo!

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Quando fui para Juiz de Fora, alugara, todo mobiliado, o apartamento


que tinha na Hilário de Gouveia, em Copacabana. O locatário não só não pagou
aluguel, como ainda vendeu os meus móveis, quadros, tudo! Quando cheguei de
volta ao Rio de Janeiro, não tinha nada. A imobiliária era uma porcaria e não
conseguiu recuperar nada. Fiquei tão chateado que vendi o apartamento para o
primeiro comprador que apareceu! Mas não faz mal, pois Deus nos tira com uma
mão e nos dá com a outra.

Quando terminei a Escola Superior de Guerra fui promovido para a


Procuradoria de Brasília, pelo Ruy de Lima Pessôa. Foi em 1975. Quando entrei
na Auditoria fiquei escandalizado: o diretor-geral mandava mais do que todo
mundo; os diretores tinham carro oficial, enquanto nós ganhávamos menos do
que um sargento. Eu não aceitava isso.

Fui conversar com o Gilvan [Correia de] Queiroz, do Ministério


Público do Distrito Federal, e com o Miguel Frauzino [Pereira], procurador da
República. A Procuradoria-Geral da República apertava-se toda em meio andar
do DASP [Departamento Administrativo do Serviço Público], uma vergonha!
Disse-lhes que precisávamos fazer algo, pois aquela situação era insustentável. O
Frauzino estava à frente da Associação Nacional dos Procuradores da República,
fundada em 1973. O Gilvan já tinha uma associação, do MPDFT, que vinha do
início dos anos 1960. O Ministério Público, junto à Justiça do Trabalho, estava
preparando a fundação de sua associação, o que de fato aconteceu em 1979. Era
tudo ainda incipiente, mas nós não tínhamos nem isso. Então, resolvi fundar a
associação, o que aconteceu em novembro de 1978.

Desde fins de março de 1978, eu funcionei numa comissão constituída


pelo procurador-geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, com atribuição

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para elaborar o anteprojeto de lei complementar que estabeleceria as normas


gerais para a organização do Ministério Público no Brasil, que acabou sendo a
Lei Complementar nº 40, de 1981. A instituição, ali, deu um salto em termos
organizacionais. Então, eu sentia o quão importante era que tivéssemos, também,
a nossa associação de classe, para participar com legitimidade do debate que
estava acontecendo e que acabaria ganhando corpo no Brasil dos anos seguintes.
Eu tinha, na verdade, alguma experiência com a vida associativa, porque fui vice-
-presidente da Associação do Ministério Público do Brasil de 1973 a 1976.

Mas, enfim, o início não foi fácil. A adesão dos membros era voluntária
e gratuita, de forma que organizei uma entidade meio simbólica. Estávamos
com pressa em ter essa representação. A partir daí, o Gilvan o Frauzino e eu,
estávamos os três legitimados para lutar pelos interesses da classe. Íamos ao
Palácio, ao Congresso, lutamos muito. Como eu tinha sido militar, a carteirinha
abria algumas portas. O [Paulo César] Cataldo e o Inocêncio [Mártires Coelho]
estavam na Casa Civil e nos recebiam. A primeira coisa que conseguimos foi
um aumento. Era a “gratificação de produtividade”, um nome meio fantasioso.
E a coisa melhorou um pouco, mas estávamos longe de ficarmos satisfeitos.
Queriam nos dar um V.A.S., mas comprometia as finanças do governo. Um dia,
o ministro Cataldo comentou comigo na barbearia: “Saiu a outra gratificação
para vocês.”. Ficamos com o salário e duas gratificações. Um dia, localizei uma
jurisprudência do Supremo que determinava que o salário era o somatório do
vencimento-base com essas duas vantagens. A partir daí é que se calculavam
os anuênios e as vantagens pessoais. Requeri ao Milton [Menezes da Costa
Filho] para ele deferir. Inteligente e brilhante como é, mandou o assunto para o
Tribunal de Contas, onde foi aprovado por unanimidade. Então, o problema dos
vencimentos ficou mais ou menos resolvido.

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Estávamos, naqueles tempos, subordinados ao Ministério da Justiça,


o que era algo que nos diminuía institucionalmente. O chefe do Ministério
Público da União era o ministro da Justiça. Depois de muita luta, conseguimos
mudanças. Inicialmente, ficamos subordinados ao procurador-geral da
República, mas não fomos aceitos na carreira do Ministério Público Federal,
não sendo considerados equivalentes aos procuradores da República.

Era norma constitucional o presidente da República receber uma


tabela de aumentos elaborada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal,
para os magistrados, e pelo procurador-geral da República, para os membros
do Ministério Público. O [ José Paulo Sepúlveda] Pertence resolveu constituir
uma comissão, da qual tive a honra de fazer parte, que recomendou um
aumento maior de 5% aos procuradores da República. O Pertence tinha
muita força. Logo depois, foi nomeado ministro do STF. Bem, a proposta
seguiu para o Congresso Nacional. Na Câmara, o projeto fora aprovado – era
presidente o deputado Ulysses Guimarães. Aí seguiu para o Senado. Meu
primeiro movimento foi pedir apoio ao [Francisco] Leite Chaves, que tinha
sido procurador-geral da Justiça Militar, mas ele achou que o aumento era um
absurdo e não queria mais nem ouvir falar no Ministério Público. Procurei,
então, o Maurício [ José] Corrêa, de quem era amigo, que de fato nos ajudou.
Um dia, o Maurício Corrêa alertou-me: “Deu zebra, porque o Leite Chaves
está criando um caso.”. Corri para o telefone, liguei para o [Marco Antonio
Pinto] Bittar, que não estava; liguei para o Milton, que disse: “Eu vou para aí
voando!”. Fomos conversar com o Leite Chaves, que gostava muito do Milton,
mas não gostava de mim (porque eu não gostava dele; hoje, contudo, o admiro).
Foi graças ao Milton que o Leite Chaves concordou com o projeto, garantindo
a sua aprovação.

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Memória MPM – E por que o Leite Chaves não queria apoiar o projeto?

Paulo Duarte Fontes – Ele não queria mais se envolver, porque já


tinha dado encrenca esse assunto do aumento.

Mais tarde, o Milton, com a inteligência, o preparo e o valor dele, fez


cinco emendas e as justificou maravilhosamente. O [ José Carlos] Couto [de
Carvalho], o Flávio Corrêa [de Andrade] e eu fomos ao Congresso, procurar
o Leite Chaves para defender e apresentar estas emendas. Novamente ele disse
que não queria nem saber. Levei as emendas à Comissão de Justiça, presidida
pelo Amir Lando, cujo vice era exatamente o Maurício Corrêa, que as acolheu
como se fossem dele. Uma dessas emendas inseria-nos na carreira do Ministério
Público da União, o que nos garantia equiparação aos procuradores da República.

Memória MPM – Isso foi depois da Constituição, na Lei nº 75, de 1993?

Paulo Duarte Fontes – Exatamente. Isto foi fundamental. Nasceu ali


um novo Ministério Público.

Memória MPM – E a associação, como foi organizada?

Paulo Duarte Fontes – No início, as coisas funcionavam muito na


base do improviso. Era tudo incipiente, não tínhamos verba de representação,
orçamento nem sede. Mas a entidade nos legitimava. Com as medalhas que
criamos, por exemplo, adocicávamos autoridades. O pessoal gosta de receber
medalhas e condecorações.

Eu, a propósito, também recebi as minhas. Condecorações do Superior


Tribunal Militar, da Procuradoria-Geral de Justiça Militar, duas do Exército, da
Marinha e até da Rádio Patrulha. Mas a que me comove e me orgulha é esta aqui

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[indica uma placa de metal guardada em uma caixa]: foi oferecida em um jantar
no qual fui homenageado, pelo Milton, os colegas procuradores e os servidores.
Os funcionários eram gratos a mim porque eu ajudava a conseguir apartamentos
funcionais em Brasília. Me deram essa placa...

Memória MPM – “Paulo Fontes, admiração e respeito dos amigos


da PJM”.

Paulo Duarte Fontes – Nesse almoço – ou jantar, já não me recordo


bem –, estavam presentes o Milton, o Andrade, a Marly Gueiros, uma mulher
extraordinária, dona de grande cultura geral e de saber jurídico; delicada e
educada. Tenho muito apreço e admiração por ela.

O pessoal mais moderno fez muito pela associação, continuando a


nossa obra. Conseguiram institucionalizá-la de uma forma mais consistente,
dotaram-na com uma boa sede, o que é muito bom. É pena, apenas, que a
memória daqueles tempos iniciais não tenha sido preservada. Eu doei para
a entidade livros de fotos – das cerimônias de posse dos subprocuradores-
-gerais, por exemplo. A minha posse como procurador de primeira categoria,
em particular, foi muito prestigiada, porque o Luiz Viana Filho se fez presente,
e, em 1980, presidia o Congresso Nacional. A presença dele atraiu, também,
todos os ministros do Superior Tribunal Militar. Foi um evento importante
para a instituição. Já minha posse como subprocurador-geral foi em 1987. O
Luiz Viana Filho ainda estava vivo e no exercício do mandato de senador, mas
já não presidia mais o Congresso. Eu também tinha deixado lá os livros com os
registros das medalhas e condecorações que conferíamos às pessoas – muitos
eram ministros. Mas creio que tudo isso se perdeu. Não houve preocupação em
guardar esses registros.

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Memória MPM – Quem o senhor caracterizaria como o núcleo do


Ministério Público nesse momento? O Milton, o senhor, a Marly…

Paulo Duarte Fontes – Era o Milton! Ele chefiou o Ministério


Público com descortino, entre 1977 e 1985, e, depois, novamente, já como
procurador-geral eleito pela classe e nomeado a partir de lista tríplice, entre 1990
e 1994. É graças à cultura jurídica do Milton que obtivemos o fortalecimento
da instituição em alguns pontos estratégicos, como mencionei. Em 1981, ele
anteviu a necessidade de renovação do Ministério Público Militar e convocou e
organizou um concurso público, algo que não se fazia desde os anos 1950.

Agora, claro, ele fazia o jogo dos militares. Não se metia em nada
que os contrariasse, pelo menos na primeira fase de sua gestão. E teve o azar de
pegar dois processos rumorosos: o dos padres franceses e o Riocentro. Aquele
inquérito do Riocentro é uma vergonha! Não sou eu que digo. As críticas que
o almirante [ Júlio de Sá] Bierrenbach fez em seu livro são irrefutáveis. Ele foi,
talvez, o maior dos ministros militares do Superior Tribunal Militar. Já no caso
dos padres franceses, ele poderia ter distribuído o processo para um procurador,
mas preferiu não o fazer. O Milton entrou no Ministério Público por concurso,
antes da Revolução. Ficou doze anos ao todo à frente da chefia da instituição.
Isto sem mencionar o período de 1985 a 1990, durante o qual ele teve um papel
fundamental, assessorando os procuradores-gerais. O Leite Chaves gostava
muito dele e o Eduardo Pires Gonçalves recorria ao Milton constantemente.

Os militares não tiveram a delicadeza de nomeá-lo ministro, porque


ele os agradava, quer dizer, para os militares era ideal ter um procurador-geral
com o qual pudessem dialogar e pelo qual seriam atendidos. Então, é claro,
tem gente que o critica hoje por esse alinhamento aos militares, mas o fato

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é que ele foi importantíssimo para a instituição. Os Ministérios Públicos do


Trabalho e do Distrito Federal também devem ao Milton o reconhecimento
como membros da carreira do Ministério Público da União, em igualdade de
condições com os procuradores da República.

Memória MPM – Voltando ao caso do Riocentro, o senhor chegou a


criticar o inquérito na época?

Paulo Duarte Fontes – Sim, embora não publicamente, em respeito


aos colegas. O Célio Lobão, corregedor-geral da Justiça Militar, que discordou
do arquivamento estabelecido pelo juiz Edmundo [Franca de Oliveira],
acabou representando contra mim, para o presidente do Superior Tribunal
Militar, brigadeiro Faber Cintra, e para o Milton Menezes. Mas foi por causa
de um mal-entendido. Eu exclamei, num carro: “Que palhaçada é essa que
estão fazendo no Riocentro?”. Logicamente, estava referindo-me ao inquérito
e ao arquivamento. Mas o chofer contou para o Célio Lobão, e disse que eu
estava referindo-me à decisão dele, como corregedor-geral da Justiça Militar,
de representar ao procurador-geral contra o arquivamento. Engraçada a vida...
Sempre gostei muito do Célio, que era mesmo dado a uns rompantes, tinha
uma personalidade forte, mas era boa gente. E, de repente, ele representava
contra mim, que estava de acordo com a crítica que ele fazia ao arquivamento.

O Faber Cintra, que era bem linha-dura, percebeu que aquilo era
uma bobagem, rasgou a representação; nem respondeu. O Faber Cintra me
conhecia, nós havíamos sido colegas na ESG. Aliás, era um homem agradável,
muito rico, dono de um quarteirão inteiro em Ipanema: completou há pouco
100 anos de vida. A sua esposa faleceu não faz muito tempo, uma senhora
adorável, educada, descendente de alemães, muito religiosa.

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HISTÓRIAS DE VIDA

O Milton também desprezou aquela representação. O chofer, depois


de gerar um estresse desses, foi posto de escanteio, claro. Mas veja que ousadia:
telefonou com ameaças, disse que era um subversivo, que sabia onde meus
filhos estudavam, que os iria pegar. Sujeito desprezível! Falei com o Marabuto,
que o enquadrou e acabou o assunto.

Memória MPM – E o Eduardo Pires Gonçalves?

Paulo Duarte Fontes – Foi procurador-geral da Justiça Militar mas


nunca fez uma sessão do Superior Tribunal Militar. A revista Veja publicou,
certa vez, que eu teria dito que ele era incompetente, que se tivesse que dar um
parecer num processo, chamaria alguém para fazê-lo. Bem, ele era irmão de um
general muito importante, ministro do Exército. Eu sabia que ele iria ganhar a
disputa para a vaga. Essa matéria que saiu na Veja era violenta.

Memória MPM – Entrevista sua?

Paulo Duarte Fontes – Era um grupo de promotores, que incluía o


Lima Pessôa, porque eles diziam que o general Leônidas Pires Gonçalves teria
oferecido ao Ruy a direção em um banco para ele se aposentar. Houve essa
reunião, foram os promotores, e eu disse que a coisa toda era uma vergonha.
Uma vez o Eduardo tinha entrado na sala dos procuradores dizendo que tinha
um sujeito ao telefone perguntando o que era Justiça Castrense e ele não sabia
responder. A Veja publicou essas coisas: ficou chato. Ele era até boa gente.
Telefonou-me: “Paulinho, como é que você faz uma coisa dessas?”, eu disse:
“Mas você entende de alguma coisa?”, “Não, mas eu vou contratar um cara que
faça por mim”. E ficou por isso mesmo.

Memória MPM – Dizem que ele era uma “parada”.

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Paulo Duarte Fontes – Sim, era uma “parada”. Como todo sujeito
que mistificava, era muito agradável, envolvente e, sobretudo, engraçado.
Imagine, ia à praia em Camboriú, de trajes de banho, com um revólver 45
na cintura [risos]. Ele andava sempre armado. Mas no trato pessoal, era um
sujeito muito doce.

Memória MPM – O senhor chegou a participar das comissões do concurso?

Paulo Duarte Fontes – Acompanhei a do Amazonas e a de São Paulo.

Memória MPM – E as comissões para promoção?

Paulo Duarte Fontes – Sim. Isso nem sempre era uma questão
tranquila. Um colega, pelo qual tenho muito carinho, o Flávio Corrêa, do
Mato Grosso do Sul, ficou chateado comigo, certa vez, quando uma comissão
formada por mim, pela Marly Gueiros e pelo Milton Menezes promoveu
o Kleber [de Carvalho Coêlho]. Nos anos 1980, era o ministro da Justiça
quem assinava as promoções: a indicação ia para o Departamento de Justiça
do Ministério e lá eles escolhiam e informavam o ministro, que nomeava. O
fato é que não adiantava eu dar um voto discordante, porque a Marly sempre
votava com o Milton, que queria o Flávio... então foi o Flávio que figurou em
primeiro lugar na lista, seguido do Kleber e do Amauri. O Kleber tinha acabado
de fazer concurso e já estava efetivo. O Amauri não tinha feito o concurso de
1981: estava com mais idade e seria até um absurdo fazer o concurso para
começar a carreira outra vez. Bem, mas eu tinha alguma força no Ministério da
Justiça. O Kleber me telefonou. Eu tinha operado os dentes, estava com dores
e mal podia falar. Ele queria que o acompanhasse ao Ministério da Justiça, que
o apresentasse ao diretor, que era um juiz do Rio Grande do Sul. O Kleber
era encantador quando queria, persuasivo; falou tanto que eu os aproximei e

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HISTÓRIAS DE VIDA

ele, muito envolvente, conseguiu que o cara alterasse a lista, colocando-o em


primeiro. Aí o ministro nomeou o Kleber. Num almoço de aniversário de 80
anos, que o [Antônio Brandão de] Andrade ofereceu na casa dele, na Bahia, ele
gracejou, contando essa história: “O Paulo derrubou o Milton”, referindo-se à
lista que saíra da Procuradoria-Geral. Eu não tinha derrubado lista de Milton
nenhuma! Quem ia ser nomeado era o Flávio. Foi um mal-entendido, que
custou a nomeação do Flávio e adiantou a carreira do Kleber, que se credenciou
uns dez anos mais tarde para o cargo de procurador-geral. Fiquei sentido,
porque eu gostava muito do Flávio.

Memória MPM – E quanto aos casos de Segurança Nacional em que o


senhor atuou, apareceu, por exemplo, algum com pena de morte?

Paulo Duarte Fontes – Não. Mas houve um episódio anterior


ao meu ingresso no Ministério Público Militar como substituto. Como eu
defendia militares acusados na Justiça Militar, coube-me a representação do
caso de um marinheiro, que se envolveu numa história triste e escabrosa.
Naqueles tempos, podia acontecer de o pessoal da Marinha, oficiais, inclusive,
levarem moças a bordo de um navio atracado. Essas coisas aconteciam em
cidades portuárias e são retratadas pela literatura e pelo cinema, como se sabe.
Essas moças, às vezes, dormiam nos navios. Havia esse marinheiro, que era
homossexual, e ficava arrumando as camas, servindo aos oficiais. Certa vez,
um dirigiu-lhe gracejos. Estando em companhia das meninas, passando pelo
marinheiro, exclamou: “Ah, esse aí é a ‘bichinha’.”. Isto é, humilhou o cara
na frente dos outros. Ele não disse nada. Quando o navio zarpou para Rio
Grande, as meninas já desembarcadas, numa madrugada, enquanto todos
dormiam, foi de cabine em cabine, alvejando um por um dos oficiais. Matou
oito! Quando apontou o revólver para o último, este se acordou e, numa reação

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PAULO DUARTE FONTES

automática, gritou para o marinheiro: “O senhor está preso! Me dê a arma!”.


Surpreendentemente, ele parou, se desculpou e deu a arma para o oficial. Isto
é, ficou louco, teve um surto, e saiu matando os oficiais. Evidentemente que,
como advogado dele, pedi exames de sanidade mental.

Memória MPM – Como advogado de ofício?

Paulo Duarte Fontes – Não, como advogado particular. Era uma


situação muito chata, um dilema, porque um dos oficiais mortos tinha oito
filhos, o outro deixou mais tantos órfãos, e assim por diante... Uma tragédia!
Naquele momento, a pena de morte não estava prevista na legislação, mas um
cara desses a mereceria. No entanto, eu o estava defendendo e conseguiria
provar sua incapacidade, sua insanidade. Então, foi uma sorte quando o
Carlinhos Paiva Ronco disse que havia me indicado como substituto para
procurador.

Memória MPM – Ah, foi nesse momento! Em plena efervescência da


Rebelião dos Sargentos...

Paulo Duarte Fontes – Sim. Em decorrência dessa indicação,


precisei me afastar da defesa.

Memória MPM – E como terminou o processo?

Paulo Duarte Fontes – Eu não me recordo...

Memória MPM – Dr. Paulo, voltando ao princípio, por que a escolha


pelo Direito? Havia tradição de família?

Paulo Duarte Fontes – Sim, com certeza! Meu pai foi deputado
federal, Fiel de Carvalho Fontes. Meu avô, Paulo Márcio Fontes, baiano,

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HISTÓRIAS DE VIDA

foi o primeiro juiz federal do Brasil. Na Campanha Civilista, foi candidato


ao governo da Bahia, apoiado pelo Rui Barbosa, que se candidatara para a
presidência. Perderam para o [ José Joaquim] Seabra. Naquele tempo, as
eleições não eram exatamente confiáveis. Havia, de fato, fraude no sistema, de
modo que eles nunca reconheceram plenamente a derrota.

Memória MPM – A jurisdição federal foi criada pelo Campos Salles em


1890. Ele foi o primeiro nomeado?

Paulo Duarte Fontes – Sim. Tanto que um juiz federal em Brasília


pediu, esses tempos, a minha filha, para lhe repassar cópias das sentenças do
vovô, porque elas têm essa importância. Mas eu nunca liguei para isto. Não
conheci meu avô. Dizem que era “de lascar”. Ele e meu pai não se entendiam.
Meu pai nem ia à Bahia e, inclusive, abriu mão da herança quando ele faleceu
– vovô era um homem muito rico. Era um daqueles homens baianos à moda
antiga, autoritários, violentos, convictos de encarnarem o poder do mundo.
Mas é preciso entender isso no contexto da época.

Aos domingos, em Salvador, havia uma missa importante na Igreja da


Vitória, na saída da qual as pessoas tomavam o bonde que seguia pela Avenida
Sete [de Setembro]. Ele morava no Campo Grande. Ele e minha avó sempre
se sentavam no primeiro banco. Aquilo era uma espécie de tradição e todas as
pessoas sabiam que, na saída da missa, aquele era o assento de meus avós. Um
dia, um sujeito de fora, parece que de São Paulo, que logicamente desconhecia
essa regra não falada, apareceu sentado no banco. Meu avô não disse nada. Sabe
o que ele fez? Abriu o guarda-sol, tomou minha avó pelo braço e seguiram os
dois caminhando pelo trilho, na frente do bonde, que assim teve de seguir até
o Campo Grande ao passo do casal. O bonde seguiu-o! Ninguém disse nada.

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PAULO DUARTE FONTES

Não teve um cara que honrasse as calças para se insurgir contra o absurdo
daquela situação. Porque todos sabiam que, se algo fosse dito, ele mandava
prender. Essa história eles contavam como vantagem, para exemplificar o
poder que tinham. Eu acho uma idiotice, nada admirável. Dizem que o pessoal
o elogiava por causa de um berro estrondoso que ele dava de vez em quando.
Punha a cabeça para fora da casa e berrava: “Ahhhhh!!!...”. O Campo Grande
inteiro ouvia. Pode? Eu ouvia essas histórias quando era garoto...

Meu pai foi deputado federal por quatro mandatos, caindo na


Revolução de 1930, do Getúlio Vargas. Papai gostava de pescar, de viver, era
apaixonado por minha mãe: todo sábado trazia um buquê de rosas para ela. A
vida passa rápido...

Meu avô também foi removido do posto pelo Getúlio. Aí queria que
papai fosse para a Bahia para administrar as fazendas, uma área grande em
Cocorobó, Canudos, onde Antônio Conselheiro promoveu seu levante. Havia
muito latifúndio lá. Papai negou-se. A minha avó, conheci com noventa e nove
anos, magrinha... Dizem que foi um amor de moça.

Memória MPM – Seu pai era formado em Direito, também?

Paulo Duarte Fontes – Sim, mas não advogava. Ele foi presidente
da Companhia de Anilinas, Produtos Químicos e Material Técnico. John
Jürgens passou a presidência para papai quando, em função da Segunda Guerra
Mundial, os alemães precisaram desligar-se do quadro social de empresas,
para que não entrassem na chamada lista negra e fossem, assim, proibidas de
vender e comprar. Seu Jürgens era uma joia de pessoa, não tinha nada a ver
com a situação política na Alemanha, mas era alemão, e isso, para os governos
brasileiro e norte-americano, já bastava.

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HISTÓRIAS DE VIDA

Durante a sua gestão, papai aproveitou funcionários da Bayer, que


foram afastados da empresa em função da intervenção, como o seu presidente
no Brasil, o Dr. Schultz. Após a Guerra, quando a Bayer reorganizou-se no
Brasil, o Dr. Schultz tornou-se seu presidente. Era um cara fantástico!

Nesse novo contexto, a Companhia Anilinas não conseguiria


competir com uma empresa do porte da Bayer. Eram precisos investimentos
vultosos para modernizar o parque industrial, adquirir maquinário novo, etc.
Então, o Dr. Schultz ofereceu ao papai comprar as fábricas e as patentes
da Anilinas, que assim abandonaria a sua produção, mas passaria a fazer a
distribuição em todo o território nacional dos produtos Bayer. Era um acordo
maravilhoso, porque a Anilinas passaria a ser a distribuidora exclusiva dos
produtos da Bayer.

Os engenheiros da Alemanha vieram, avaliaram tudo, redigiram um


estudo completo. Papai reuniu a diretoria para concluir o negócio. Na reunião,
um dos conselheiros disse que era contra a avaliação feita pela Bayer, pois o preço
estaria baixo. Não estava. Era um negócio excelente, para todos. Mas papai,
que também era um desses homens à moda antiga, sentiu-se desautorizado.
Diante daquela contestação reagiu como meu avô faria: “Olha, a coisa que eu
tenho mais perto de mim é o meu chapéu.”. Botou o chapéu na cabeça e saiu
da companhia, para não mais voltar. Não quis receber nem a indenização por
rescisão do contrato. Aí o Dr. Schultz chamou o papai para a Bayer.

Quando a diretoria se deu conta da oportunidade que estava


perdendo, procuraram o Dr. Schultz, que então afirmou: “O negócio com a
Anilinas eu só faria se o Dr. Fontes fosse o presidente; como ele não quer mais
a função, acabou!”. Encerrou-se o assunto. Em poucos anos, a Anilinas pediu

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PAULO DUARTE FONTES

falência. Insistiram no modelo de negócio, adotaram uma política suicida,


foram vendendo prédios para pagar indenizações de empregados demitidos,
cobrir despesas com fornecedores, etc. Com isso, iam perdendo cada vez
mais mercado e desvalorizando o patrimônio. Ao final, não podiam mais
nem pagar os impostos. Foi o fim de uma das mais importantes indústrias
químicas do país.

Memória MPM – E a sua aposentadoria?

Paulo Duarte Fontes – Pedi-a em 1991. Foi um processo meio


demorado com o Tribunal de Contas, mas acabou tudo bem. Acabei me
aposentando depois que saiu a Lei nº 75, de 1993. Como aposentado, me
afastei do Ministério Público. Eu tenho apenas de, todo ano, provar que
estou vivo. Vou até a Representação e lá me apresento para renovação de
cadastro.

Me desliguei de Brasília. Tinha uma casa linda na QI 19, conjunto


10, casa 8; era grande. Eu mantinha dois dobermanns no pátio. É um cão
manso para o dono, mas assusta os outros. Late muito no portão. Alguém
se incomodou e um dia jogou carne envenenada para eles. Morreram os
dobermanns.

Passo a maior parte do tempo na fazenda, em Ouro Fino, Minas


Gerais, onde produzimos café. Torrado e moído, faz um pó especial, chamado
Medalha Milagrosa. A produção é toda exportada. Mantemos, ainda, este
apartamento no Rio de Janeiro.

Acho que Deus é muito generoso comigo. Sou muito feliz. Olho
para a vida e penso em tudo o que vivi com leveza e bom-humor. Não tenho

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HISTÓRIAS DE VIDA

problemas hoje em dia. Amo minha família, gozamos, graças a Deus, de saúde
e levamos uma vida confortável. Eu sou muito feliz, casado há cinquenta e
sete anos. Estou com 88 anos e meu maior sonho agora é celebrar bodas de
diamante, quando desejo promover uma grande festa.

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