Garantismo Penal

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Garantismo penal e presunção de inocência:


uma análise do Habeas Corpus 126.292

Penal garantism and presumption of innocence: an


analysis of the Habeas Corpus 126.292

Emetério Silva de Oliveira Neto


Doutorando em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Direito
Público pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor Substituto da Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista Capes (Brasil). Advogado criminalista.
[email protected]

Recebido em: 21.07.2017


Aprovado em: 08.10.2017
Última versão do autor: 27.10.2017

Áreas do Direito: Penal; Constitucional

Resumo: O presente artigo pretende analisar o Abstract: This article intends to analyze the
princípio constitucional da presunção de inocên- constitutional principle of the presumption of
cia à luz da teoria do garantismo penal, desen- innocence in the light of the theory of penal
volvida e sistematizada pelo jurista italiano Luigi garantism, developed and systematized by the
Ferrajoli. Nesse sentido, mostra que o garantismo Italian jurist Luigi Ferrajoli. In this sense, it shows
representa um pilar fundamental do Estado de- that garantism represents a fundamental pillar
mocrático de direito, ao passo que a presunção of the democratic State of law, while the pre-
de inocência, que nele haure a sua vivacidade, sumption of innocence, that in garantism finds
ergue-se, de um lado, como exigência de que o its liveliness, arises, on the one hand, as an exi-
órgão acusador deve provar a culpa do imputa- gency that the accusing body must prove the
do e não este a sua inocência, e, do outro, como guilt of the accused and the accused does not
obstáculo à execução da sentença condenatória have to prove his innocence, and, on the other,
antes do trânsito em julgado. Prossegue esclare- as an obstacle to the execution of the conviction
cendo que, apesar desses valores democráticos, before the final judgment. It proceeds clarifying
expressamente positivados no ordenamento jurí- that despite of these democratic values, expres-
dico brasileiro e em importantes documentos in- sly affirmed in the Brazilian legal system and in
ternacionais, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao important international documents, the Supre-
julgar o habeas corpus 126.292/SP, entendeu por mo Tribunal Federal (STF), in judging habeas cor-
admitir como constitucional a execução da pena pus 126.292/SP, admitted as constitutional the
após a confirmação da decisão condenatória pe- execution of the penalty following the confirma-
la segunda instância, embora pendentes de jul- tion of the condenation by the second instance,
gamento os chamados recursos extraordinários, although the extraordinary appeals are pending

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com isso relativizando o sentido e o alcance da judgment, thereby reducing the meaning and
garantia fundamental. A pesquisa é de cunho bi- scope of the fundamental guarantee. The resear-
bliográfico, tendo como pano de fundo o estudo ch is bibliographic, presenting as a background
de alguns casos de indubitável repercussão so- the study of some cases of indubitable social and
ciojurídica enfrentados pelo STF. legal repercussions faced by the STF.
Palavras-chave: Garantismo penal – Presunção Keywords: Penal garantism – Presumption of in-
de inocência – Pena de prisão – Supremo Tribu- nocence – Prison sentence – Supremo Tribunal
nal Federal – Habeas Corpus 126.292/SP. Federal – Habeas Corpus 126.292/SP.

Sumário: 1. Introdução. 2. Algumas linhas epistemológicas acerca do garantismo penal. 3.


Do sentido e do alcance da presunção de inocência. 4. Das modalidades de prisão no Brasil.
5. Do julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP: mudança de jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal (STF). 5.1. Da irresignação de alguns ministros do STF quanto à mudança
da jurisprudência da Corte. 5.2. HC 137.728/PR: o “caso de José Dirceu” na operação Lava
Jato. 6. Considerações finais. 7. Referências bibliográficas.

1. Introdução
A teoria do garantismo penal, embora desconhecida em profundidade por
muitos, é, qual um mantra, reiteradamente invocada, seja no âmbito da pesqui-
sa acadêmica, que de algum modo inspiraria, seja por parte dos operadores do
direito, quando se defrontam com situações concretas que reclamam a melhor
solução, supostamente nela encontrada. Sob a égide da segunda perspectiva,
os principais atores do processo (penal) assim se sentiriam contemplados: a
defesa, na medida em que o garantismo asseguraria, contra a potestade estatal,
o respeito aos direitos fundamentais do imputado; a acusação, à luz da ideia
de garantismo integral como estorvo à chamada proteção social deficiente; e o
aplicador, que encontraria no garantismo o fundamento de racionalidade para
produzir uma decisão mais próxima dos anseios de justiça.
Com efeito, o grande teórico moderno dessa doutrina é o jurista italiano
Luigi Ferrajoli, que a desenvolveu e sistematizou em sua densa obra intitulada
Diritto e ragione: teoria del garantismo penale, cuja primeira edição, prefacia-
da por Norberto Bobbio, veio a lume no ano de 1989. Ferrajoli, como se sabe,
é autor de linha nitidamente positivista1, fortemente inspirado nos ideais ilu-

1. Em obra dedicada especialmente ao juspositivismo, Norberto Bobbio (In: O positi-


vismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. de Márcio Pugliesi et al. São Paulo:
Ícone Editora, 2006. p. 131-134) elenca sete pontos fundamentais imanentes a essa
doutrina, quais sejam: 1) o positivismo jurídico considera o direito como fato e não

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ministas, que constituem, destarte, a pedra angular de sua sólida formação ju-
rídico-filosófica.
Em outra mirada, não são poucas as tintas gastas, aqui e alhures, quando
o assunto é presunção de inocência2, a despeito de nem sempre as abordagens
desenvolvidas se afigurarem as mais adequadas, mormente por se tratar de te-
ma dos mais fecundos e repleto de nuances, comumente identificadas apenas a
partir de casos práticos.
Produto de equívocos interpretativos, a incompreensão do tema resvala ine-
xoravelmente sobre os pilares do sacrossanto direito constitucional à liberdade
de locomoção (ir, vir e ficar)3, desgraçadamente ferindo-o de morte em plena
arena onde se encontra erigido o Estado democrático de direito.
Nessa toada, emblemático e recente exemplo de malferimento da aludi-
da garantia fundamental por força de viés interpretativo é coligido do julga-
mento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Habeas Corpus (HC) 126.292/
SP, o qual modificou entendimento pretoriano sedimentado desde o ano de
2009, quando do julgamento do paradigmático HC 84.078/MG (Rel. Min.
Eros Grau)4, deixando em polvorosa toda a advocacia criminal brasileira, as-
sim como parcela considerável de estudiosos e defensores da Carta Cidadã de
1988, que, atônitos, ainda não digeriram tão grave entendimento promanado
da maior Corte de justiça do país.

como um valor; 2) o juspositivismo define o direito em função do elemento coação,


de onde deriva a teoria da coatividade do direito; 3) o positivismo jurídico afirma a
teoria da legislação como fonte preeminente do direito; 4) o positivismo jurídico con-
sidera a norma como um comando, formulando a teoria imperativista do direito; 5) o
positivismo jurídico sustenta a teoria da coerência e da completude do ordenamento
jurídico; 6) o positivismo jurídico sustenta a teoria da interpretação mecanicista, em
detrimento do elemento criativo do direito; 7) o positivismo jurídico encabeça a teo-
ria da obediência absoluta da lei enquanto tal.
2. A ideia de presunção de inocência é indissociável da de garantismo, uma vez que esta
é condição de possibilidade da primeira.
3. Os franceses indicam, como conteúdo da liberdade da pessoa física, três prerrogativas,
quais sejam: liberdade de ir e vir; segurança individual e liberdade de intimidade. Al-
guma doutrina brasileira, porém, entende que as formas de expressão dessa liberdade
se revelam apenas na liberdade de locomoção e na liberdade de circulação, sendo esta
o direito de ir, vir, ficar, parar, estacionar (cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito
constitucional positivo. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 237-239).
4. Decidiu-se, naquela oportunidade, que a interposição de recursos da defesa aos Tri-
bunais Superiores (instâncias extraordinárias), mesmo após condenação confirmada
por Tribunal local, suspende a execução da pena privativa de liberdade.

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Seguindo essa direção, o presente trabalho tem como objetivo crucial ana-
lisar o instituto da presunção de inocência – expressamente positivado no or-
denamento jurídico pátrio (v.g., Constituição Federal/88 e Código de Processo
Penal) – em consonância com a doutrina do garantismo penal, tendo como
ponto de referência o entendimento do STF acima ventilado. A crítica volta-se
para o fato de que essa garantia não pode ser restringida por obra do julgador,
admitindo-se, no máximo, uma modificação legislativa que atinja o sistema re-
cursal com o fito de propiciar maior celeridade ao trânsito em julgado da sen-
tença penal condenatória.
Cuida-se, portanto, de uma pesquisa marcadamente bibliográfica, apresen-
tando como pano de fundo, além do HC 126.292, o estudo de alguns outros
casos de induvidosa repercussão sociojurídica enfrentados pelo STF antes e
após o seu julgamento (análise de jurisprudência).

2. Algumas linhas epistemológicas acerca do garantismo penal


Para que se entenda corretamente a doutrina sub examine, impende sejam
assentadas, já ab initio, algumas premissas não raras vezes esquecidas (ou des-
conhecidas) por aventureiros que d’algum modo se debruçam sobre a temática.
Em primeiro lugar, garantismo e positivismo são realidades que caminham
juntas, tanto que a separação entre direito e moral é confessadamente um dos
pontos nodais da doutrina garantista5. Em segundo plano, é importante escla-

5. Ad exempli, verifica-se essa premissa na seguinte passagem: “... o que confere rele-
vância penal a um fenômeno não é a verdade, a justiça, a moral, nem a natureza, mas
somente o que, com autoridade, diz a lei” (cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão:
teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica et al. 4. ed. rev. São Paulo: Ed.
RT, 2014. p. 39). Em artigo recente no qual critica o neoconstitucionalismo, Ferrajoli
(cf. Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo. Trad. André Karam Trin-
dade. Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional da ABDConst, Curitiba:
ABDConst, 2011. p. 96 e 100-101) aponta uma nova tendência: “com a incorporação
nas Constituições de princípios de justiça de caráter ético-político, como a igualda-
de, a dignidade das pessoas e os direitos fundamentais, desaparece o principal traço
distintivo do positivismo jurídico: a separação entre direito e moral, ou seja, entre
validade e justiça. Segundo esta tese, a moral, que no velho paradigma juspositivista
correspondia a um ponto de vista externo ao direito, agora faria parte do seu ponto de
vista interno”, com a qual não concorda: ““[...] continua a valer, contra aquela enési-
ma e insidiosa versão do legalismo ético, que é o constitucionalismo ético, o princí-
pio juspositivista da separação entre direito e moral [...] É, portanto, insustentável a
derivação – em razão da banal circunstância de que leis e Constituições incorporam
“‘valores”’ – da tese de uma “‘conexão conceitual”’ entre direito e moral ”[...]”. Na

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recer que garantismo não se confunde com abolicionismo penal, estando mais
próximo, isto sim, do minimalismo penal, que é um de seus pilares6. O terceiro
aspecto, que avulta como consequência do primeiro, sustenta que a pena não
tem função pedagógica, pelo que ao Estado não é dado regenerar o condenado
com o fito de, reeducando-o no cárcere, reintegrá-lo, corrigido, à sociedade por
ele vilipendiada quando da perpetração do crime7. Por último, e como quarto

mesma linha, cf. PRIETO SANCHÍS, Luis. “Principia iuris”: una teoría del derecho
no (neo)constitucionalista para el Estado constitucional. Doxa. Cuadernos de Filosofía
del Derecho, Alicante, n. 31, p. 325-353, 2008.
6. Em momento algum da sua extensa e profícua obra Ferrajoli propugna a abolição
do sistema penal, papel desempenhado pelas teorias abolicionistas. A esse respeito,
assim se pronuncia criticamente àqueles que defendem que a sociedade resolva todos
os problemas: “... o modelo da espontânea autorregulação social, que marca a so-
ciedade perfeita sonhada pelas várias versões do abolicionismo holístico, não é uma
previsão cientifica, mas um modelo normativo irremediavelmente utópico, idôneo a
avalizar sistemas sociais repressivos totalizantes, que, somente graças a uma falácia
normativista, podem ser descritos como livres de constrições e coerções” (cf. FER-
RAJOLI, op. cit., p. 305-306). Por isso, mantido o sistema penal, professa a adoção
de técnicas despenalizadoras e desencarceradoras, bem como a redução dos limites
máximos das penas privativas de liberdade. É o que diz, expressis verbis: “penso que a
duração máxima da pena privativa de liberdade, qualquer que seja o delito cometido,
poderia muito bem reduzir-se, a curto prazo, a dez anos e, a médio prazo, a um tempo
ainda menor; e que uma norma constitucional deveria sancionar um limite máximo,
digamos, de dez anos” (cf. FERRAJOLI, op. cit., p. 381). Sobre os efeitos perniciosos
do cárcere (argumento de cunho abolicionista), cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A
palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012,
passim; cárcere como instrumento de exploração da força de trabalho e aviltamento,
cf. MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema
penitenciário (séculos XVI-XIX). Trad. Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan,
2010. passim.
7. A despeito de ser justificacionista, Ferrajoli enfatiza que em hipótese alguma a pena
deve cumprir a função de correção (moral) do apenado. Com isso, rechaça as teorias
da prevenção especial positiva e negativa, remanescendo a teoria da prevenção geral,
justificada em face de que a função preventiva geral, em razão do caráter abstrato da
previsão legal quer dos delitos, quer das penas, enfoca o delito e não o delinquente
individualmente, protegendo estes de tratamentos desiguais e personalizados com fins
corretivos de emenda ou de terapia individual ou social ou para fins políticos de re-
pressão exemplar (cf. FERRAJOLI, op. cit., p. 259). A posição de Ferrajoli é confron-
tada por outras, como o correcionalismo, doutrina do século XIX que, ao defender a
“cura” do criminoso por meio de tratamento correcional, diz que o delito nada mais é
do que um sintoma da anormalidade psíquica do infrator, uma prova de seu desequilí-
brio moral, que denota a necessidade de um remédio racional destinada à sua emenda,

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ponto importante, o garantismo, em oposição ao substancialismo, pauta-se pe-


lo convencionalismo penal, ou seja, advoga que não há um sentido ontológico
para o fenômeno da criminalidade (inexistem crimes e criminosos per se), até
porque os tipos penais são escolhidos ou convencionados pelo legislador, a de-
pender do momento histórico e da sociedade (questões culturais)8.
Fincadas as principais balizas teórico-metodológicas, torna-se fácil identi-
ficar o que não seja garantismo. Assim, diferentemente do que se pensa e se
propaga amiúde, não fazem parte do sistema de garantismo as doutrinas que
deslegitimam qualquer tipo de constrição ou coerção, penal ou social. Numa
palavra, ausente o sistema penal, não haveria que se falar em necessidade das
garantias penais e processuais consubstanciadas no edifício SG9 – erguido com
insofismável maestria por Ferrajoli –, uma vez que inúteis numa sociedade
pretensamente autorregulada.
Mas talvez não haja apenas contraposições entre as correntes minimalis-
tas – estas defendidas pelo garantismo penal – e abolicionistas, na medida em
que em última análise teriam, consoante entendimento de alguns criminólo-
gos, a finalidade comum de deslegitimarem, cada qual ao seu modo, o sistema
penal10. Essa é a visão de Zaffaroni11, vertida nos seguintes termos:

O abolicionismo nega a legitimidade do sistema penal tal como atua na rea-


lidade social contemporânea e, como princípio geral, nega a legitimação de

em seu próprio benefício (cf. MARQUES, Oswaldo H. Duek. Fundamentos da pena. 3.


ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 149). Tal doutrina deu origem à teoria socia-
lizadora, segundo a qual o objetivo principal da intervenção punitiva deve ser o de
integrar o delinquente no meio social, ou seja, a reintegração social do apenado, que
se daria por meio de processos educativos desenvolvidos dentro do cárcere. Há vários
dispositivos na Lei de Execução Penal brasileira que perfilham essa linha ideológica
(v.g., arts. 1º, 10, 17, 22, 25, 78). A esse respeito, cf. MARQUES, op. cit., p. 190-204.
8. Para as doutrinas positivistas (formalistas), consideram-se delitos somente os previs-
tos por uma lei válida como pressuposto de uma pena, de modo que os delitos são
quia prohibita est (porque é proibido) e não quia peccatum est (porque é pecado), cain-
do por terra o sentido universalista de crime (cf. FERRAJOLI, op. cit., p. 340-342).
9. Ferrajoli usa a sigla SG para designar o Sistema Penal Garantista.
10. Com isso não se pretende, em absoluto, estabelecer um “diálogo” entre os defensores
de tais correntes, pois é inegável que os pontos de divergência de cada uma sobre-ex-
cedem, em muito, os de convergência, o que inviabiliza a convivência harmoniosa.
11. Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade
do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa et al. Rio de Janeiro: Revan, 2014.
p. 89.

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qualquer outro sistema penal que se possa imaginar no futuro como alter-
nativa a modelos formais e abstratos de solução de conflitos, postulando a
abolição radical dos sistemas penais e a solução dos conflitos por instâncias
ou mecanismos informais. O direito penal mínimo (minimalismo penal ou
contração penal), a exemplo do abolicionismo, nega a legitimidade do siste-
ma penal, tal como hoje funciona, mas propõe uma alternativa mínima que
considera como mal menor necessário. Esta corrente é tão deslegitimante
quanto o abolicionismo em relação aos sistemas penais existentes, embora o
duplo uso do palavra “deslegitimação” por alguns autores tenha gerado al-
guma confusão: enquanto, para o abolicionismo, a “deslegitimação” engloba
tanto os sistemas penais formais existentes como os futuros, para alguns
autores do minimalismo penal a deslegitimação estende-se apenas aos sis-
temas penais atuais e aos sistemas penais que, propostos para o futuro, não
incorporem os postulados de sua contração minimizante.

Pautados tais postulados, insta aclarar que o Sistema Penal Garantista (SG)
de Luigi Ferrajoli, também chamado pelo autor de cognitivo ou de legalida-
de estrita, resulta da adoção de dez axiomas ou princípios axiológicos funda-
mentais não deriváveis entre si12. Nessa linha, após desdobrar o seu sistema
em máximas latinas de elevada carga semântica, assim Ferrajoli13 desnuda os
referidos princípios:
1) princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação
ao delito; 2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito;
3) princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4) princípio da
lesividade ou da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da
exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade
pessoal; 7) princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato ou no
sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação;
9) princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditó-
rio ou da defesa, ou da falseabilidade.

Com efeito, o sistema garantista exposto por Ferrajoli é desenganadamente


lógico, de maneira que todas as noções que tenham como ponto de partida os
axiomas e as máximas deles derivadas encontram-se devidamente concatena-

12. Eis as máximas aludidas por Ferrajoli: A1 Nulla poena sine crimine; A2 Nullum crimen
sine lege; A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate; A4 Nulla necessitas sine injuria; A5
Nulla injuria sine actione; A6 Nulla actio sine culpa; A7 Nulla culpa sine judicio; A8
Nullum judicium sine accusatione; A9 Nulla accusatio sine probatione; A10 Nulla proba-
tio sine defensione. As seis primeiras são garantias penais e as demais, processuais.
13. Cf. op. cit., p. 91.

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das, obedecendo com rigor a uma sequência argumentativa bem definida, que
desemboca na defesa intransigente do Estado de direito e da democracia con-
tra toda e qualquer investida de jaez arbitrário ou autoritário, não importado
se proveniente do poder público ou de um particular, sendo impossível não se
concordar integralmente com a teoria quando se concorda com as suas premis-
sas14. Sendo, como de fato o é, um ideal, não restam dúvidas de que tal modelo
jamais será alcançado em sua plenitude, mormente no seio de uma sociedade
marcada por imperfeições, embora sirva como farol a guiar todos os poderes do
Estado, bem como os seus cidadãos, na busca pelo implemento e observância
dos direitos fundamentais15.
Nesse contexto, tem-se por inabdicável, num primeiro momento, o postu-
lado de estrita legalidade, dirigido fundamentalmente ao legislador, a quem
prescreve a taxatividade e a precisão empírica das formulações legais (auctori-
tas, non veritas facit legem). Para Ferrajoli, “a lei não pode qualificar como pe-
nalmente relevante qualquer hipótese indeterminada de desvio, mas somente
comportamentos empíricos determinados, identificados exatamente como tais
e, por sua vez, aditados à culpabilidade de um sujeito”16.
Vencida essa etapa, pode ocorrer, no mundo vivido, a prática de uma con-
duta em tese amoldada à descrição típica. Nessa hipótese, cumprirá aos órgãos
de investigação do Estado descobrirem por meio de provas idôneas a autoria e

14. Ferrajoli defende a interdependência entre a democracia e o direito e entre o direito


e a razão, daí que o título da obra é Direito e razão. Dessa relação nasce a eleição de
uma teoria axiomatizada do direito. O sistema axiomático formal não é parte acessó-
ria da obra, mas sua intrínseca estrutura e razão. Tudo isso fica muito claro no tratado
Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia, no qual traça, através de uma
linguagem eminentemente simbólica, as condições de possibilidade de um direito
coerente, sem as aporias e as ambiguidades da linguagem comum (cf. FERRAJOL,
Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. Trad. Perfecto Andrés
Ibañez et al. Madrid: Editorial Trotta, 2011. v. 3; PALMA, Mauro. “Principia iuris”
de Luigi Ferrajoli. DOXA, Cuadernos de Filosofía del Derecho, 31, 2008, p. 289-298).
Ainda, sobre formalização e axiomatização da teoria do direito e o caráter artificial da
linguagem teórica, respondendo críticas e buscando esclarecer alguns pontos do seu
tratado, cf. FERRAJOLI, Luigi. “Principia iuris”: una discusión teórica. Doxa. Cuader-
nos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 31, p. 393-434, 2008.
15. Estribado nos princípios de estrita legalidade e de estrita jurisdicionariedade, o ga-
rantismo penal se debruça sobre os seguintes problemas: a pena, o crime e o proces-
so. Em face disso, Ferrajoli buscará responder três quartetos de questionamentos, a
saber: 1º) Se, por quê, quando e como punir; 2º) Se, por quê, quando e como proibir;
3º) Se, por quê, quando e como julgar.
16. Cf. Direito e razão, op. cit., p. 39.

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a materialidade delitivas, tendo como instrumento para tanto o processo penal,


campo argumentativo onde serão postas as “verdades” das partes (defesa e acu-
sação) em busca do convencimento judicial. Nesse momento, como condição
de efetividade do convencionalismo penal, entra em cena o postulado de estri-
ta jurisdicionariedade, cujas condições são a verificabilidade e a refutabilidade.
Isso significa, consoante lições de Ferrajoli17, que:

O pressuposto da pena deve ser a comissão de um fato univocamente des-


crito e indicado como delito não apenas pela lei mas também pela hipótese
da acusação, de modo que resulte suscetível de prova ou de confrontação
judicial, segundo a fórmula nulla poena et nulla culpa sine judicio. Ao mesmo
tempo, [...], é preciso que as hipóteses acusatórias, como exige a segunda
condição, sejam concretamente submetidas a verificações e expostas a re-
futação, de modo que resultem apenas convalidadas se forem apoiadas em
provas e contraprovas, segundo a máxima nullum judicium sine probatione.

Preserva-se, com isso, contra possíveis decisionismos, os direitos funda-


mentais do acusado, dentre eles o da presunção de inocência (nulla actio sine
culpa), passível de ser elidida tão somente se, garantida a amplitude de defesa
(nulla probatio sine defensione), a acusação lograr provar (nulla accusatio sine
probatione), nos autos do processo, estreme de dúvidas, a culpabilidade do réu
e esta for reconhecida por sentença do órgão jurisdicional competente (nulla
culpa sine judicio), corroborada por todas as instâncias recursais18. Passada to-
da essa travessia, executa-se, com caráter de definitividade, a pena imposta ao
sentenciado cuja culpa avulta reconhecida.
Com efeito, inobstante tenha Luigi Ferrajoli sistematizado a teoria do ga-
rantismo penal, cumpre registrar que a sua noção é antiga, remontando, quiçá,
a Cesare Beccaria, que, nos idos de 1763, ao escrever Dei delitti e delle pene, sua

17. Cf. op. cit., p. 40-41.


18. A questão que se coloca é a de saber qual o nível de probabilidade aceitável para se
proferir uma condenação criminal. Na ocasião do julgamento da Ação Penal (AP)
470 pelo STF, a min. Cármen Lúcia defendeu que a condenação em processo penal
exige juízo de certeza, não bastando a ausência de dúvida razoável sobre a existência
do fato imputado ao agente (cf. Supremo Tribunal Federal, AP 470, 2012, disponível
em: [ftp://ftp.stf.jus.br/ap470/InteiroTeor_AP470.pdf]. Acesso em: 07.07.2017). Os
defensores do chamado garantismo integral (tese incompatível com o pensamento
de Ferrajoli, diga-se de passagem), ao contrário, sustentam que para condenar basta
a existência de prova para além de uma dúvida razoável (cf. DALLAGNOL, Deltan
Martinazzo. As lógicas das provas no processo: prova direta, indícios e presunções.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015. p. 267 e ss.).

Oliveira Neto, Emetério Silva de. Garantismo penal e presunção de inocência: uma análise do Habeas Corpus 126.292.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 142. ano 26. p. 133-170. São Paulo: Ed. RT, abr. 2018.
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obra-prima, preconizou, em meio à defesa de tantas outras pautas revolucioná-


rias para aquela época, a noção de proporcionalidade entre o fato delitivo pra-
ticado e a resposta estatal, conforme se dessume do excerto abaixo:

Non solamente è interesse comune che non si commettano delitti, ma che


siano più rari a proporzione del male che arrecano alla società. Dunque più
forte debbono essere gli ostacoli che risospingono gli uomini dai delitti a
misura che sono contrari al ben pubblico, ed a misura dele spinte che gli
portano ai delitti. Dunque vi deve essere uma proporzione fra i delitti e le
pene19.

À guisa de síntese, impõe-se asseverar que o garantismo é um sistema de li-


mites que visa proteger a liberdade dos indivíduos contra o arbítrio punitivo
dos poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário). Muitas vezes, essa
proteção é encontrada unicamente no Judiciário, como última trincheira da ci-
dadania, o que se dá quando legitimamente exerce o controle dos atos emana-
dos dos demais órgãos (e poderes) estatais. A propósito, nas situações seguintes
o STF demonstrou ser um tribunal de cariz garantista20: 1) ampliação das hi-
póteses de cabimento do Habeas Corpus; 2) edição das súmulas vinculantes
11 (preserva a dignidade da pessoa humana) e 14 (assegura a ampla defesa)21;
3) reconhecimento, em reiteradas decisões, do princípio da insignificância em

19. Cf. BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene. Milano: Litteratura italiana Einaudi,
1973. p. 17.
20. Em outros momentos (HC 126.292 e ADCs 43 e 44), consoante se verá ao longo
deste texto, o Tribunal cedeu às pressões da população, proferindo decisões com
esteio no “clamor público” (populismo judiciário), o que é de todo lamentável. Além
desses casos notáveis, houve relativização do princípio quando o Supremo, julgando
as ADCs 29 e 30 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.578, reconheceu
a constitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha
Limpa) que consideram inelegível o cidadão que tiver condenação não transitada em
julgado, desde que proveniente de órgão colegiado.
21. Verbis: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de
fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de
terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade
disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato
processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado” (SV 11);
“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos
de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão
com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de de-
fesa” (SV 14).

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matéria penal22; 4) reconhecimento da inconstitucionalidade de diversos dispo-


sitivos de redação vaga constantes da Lei das Contravenções Penais23; 5) decla-
ração de inconstitucionalidade da vedação à concessão de liberdade provisória
para os crimes de tráfico de drogas24; 6) autorização da progressão de regime
para os crimes hediondos como corolário da aplicação do princípio constitu-
cional da individualização da pena25 etc. Em trabalho mais recente, Ferrajoli26
explica esse fenômeno próprio do constitucionalismo moderno:

22. HC 137.290/DF, julgado em 07.02.2017; HC 138.697/MG, julgado em 16.05.2017,


merecendo destaque o seguinte trecho do voto do min. Lewandowski: “Destarte, ao
perceber que não se reconheceu a aplicação do princípio da insignificância, tendo
por fundamento uma única condenação anterior, na qual o ora paciente foi identifi-
cado como mero usuário, entendo que ao caso em espécie, ante inexpressiva ofensa
ao bem jurídico protegido, a ausência de prejuízo ao ofendido e a desproporcio-
nalidade da aplicação da lei penal, deve ser reconhecida a atipicidade da conduta”
(Disponível em: [http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do-
cID=12965943]. Acesso em: 07.07.2017). O projeto de Lei do Senado sobre o Novo
Código Penal (236/2012) trata do princípio da insignificância no § 1º do art. 28, a
vingar o brocardo de minimis non curat praetor.
23. No julgamento do RE 583.523, realizado em 03.10.2013, o STF declarou a incons-
titucionalidade do art. 25 da Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688/41),
que trata do porte injustificado de objetos por pessoas com condenações por furto ou
classificadas como vadios ou mendigos.
24. Julgando o HC 104339/SP (DJe 24.05.2012), o STF declarou, incidentalmente, a in-
constitucionalidade de parte do art. 44 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), que proi-
bia a concessão de liberdade provisória nos casos de tráfico de entorpecentes.
25. O STF reconheceu a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que
proibia a progressão de regime de cumprimento de pena nos crimes hediondos (HC
82.959/SP, DJ 01.09.2006). Tal decisão motivou a edição da Lei 11.464, de 2007, que
revogou o mencionado dispositivo legal.
26. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Sobre los derechos fundamentales. Trad. Miguel Carbonell.
Cuestiones Constitucionales, Universidad Nacional Autónoma de México, México, n.
15, 2006. p. 114. Em defesa do constitucionalismo rígido, que é garantista, aduz
Ferrajoli: “El constitucionalismo rígido, tal como he escrito en varias ocasiones, no
es una superación, sino que es, antes bien, un reforzamiento del positivismo jurí-
dico, que se amplía a las opciones — los derechos fundamentales estipulados en
las normas constitucionales — a las que debe someterse la producción del derecho
positivo. Es el fruto de un cambio de paradigma del viejo iuspositivismo, produci-
do por el sometimiento de la producción normativa a normas de derecho positivo
no sólo formales, sino también sustanciales” (cf. FERRAJOLI, Luigi. Constituciona-
lismo principialista y constitucionalismo garantista. DOXA, Cuadernos de Filosofía
del Derecho, n. 34/2011, p. 24. Disponível em: [http://miguelcarbonell.com/artman/

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Podemos concebir el constitucionalismo como un sistema de vínculos sus-


tanciales, o sea de prohibiciones y de obligaciones impuestas por las cartas
constitucionales, y precisamente por los principios y los derechos fun-
damentales en ellas establecidos, a todos los poderes públicos, incluso al
legislativo. La garantía jurídica de efectividad de este sistema de vínculos
reside en la rigidez de las constituciones, asegurada a su vez, en las cartas
constitucionales de la segunda posguerra, por un lado por la previsión de
procedimientos especiales para su reforma, y por otro por la creación del
control jurisdiccional de constitucionalidad de las leyes. El resultado es un
nuevo modelo de derecho y de democracia, el Estado constitucional de dere-
cho, que es fruto de un verdadero cambio de paradigma respecto al modelo
palleopositivista del Estado legislativo de derecho: un cambio, creo, del que
la cultura jurídica y política no ha tomado todavía suficiente conciencia y
del que, sobre todo, estamos bien lejos de haber elaborado y asegurado sus
técnicas de garantía.

Nos últimos tempos, a versão penal da doutrina do liberalismo defendida


por Ferrajoli tem sido sufocada pelo fenômeno da expansão do direito penal,
que veio a calhar nos ordenamentos positivos das sociedades pós-industriais
(modernas), qual se constata da tipificação dos crimes considerados de perigo
abstrato, de condutas outras antes tidas por inofensivas e da supressão de inu-
meráveis garantias fundamentais de imputados, neste último caso sob o signo
da doutrina do direito penal do inimigo. Ao observar a chamada “administra-
tivização do direito penal”, resultado desse movimento, Jesús-María Silva Sán-
chez27 mostra desilusão ante a possibilidade de se voltar às antigas (e boas)
estruturas liberais, embora não se furte a apresentar um caminho intermediá-
rio exequível:

Definitivamente, portanto, a proposta contida nestas páginas parte da cons-


tatação de uma realidade a respeito da qual se considera impossível voltar
atrás. Essa realidade é a expansão do Direito Penal e a coexistência, por-
tanto, de “vários Direitos Penais distintos”, com estruturas típicas, regras
de imputação, princípios processuais e sanções substancialmente diversas.
A partir da referida constatação, postula-se uma opção alternativa consi-
derando improvável (talvez impossível) um movimento de despenalização,

uploads/1/Constitucionalismo_principalista_y_const._garantista_Luigi.pdf]. Acesso
em: 21.10.2017).
27. Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política
criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz O. de O. Rocha. 3. ed. rev. e atual.
São Paulo: Ed. RT, 2013. p. 177-186.

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propõe-se que as sanções penais que se imponham ali onde têm se flexibilizado
as garantias não sejam penas de prisão. Isso tem duas consequências. Por um
lado, naturalmente, admitir as penas não privativas de liberdade como mal
menor, dadas as circunstâncias, para as infrações nas quais têm se flexibi-
lizado os pressupostos de atribuição de responsabilidade. Mas, sobretudo,
exigir que ali onde se impõem penas de prisão, e especialmente penas de
prisão de larga duração, se mantenha todo o rigor dos pressupostos clássicos
de imputação de responsabilidade28.

3. Do sentido e do alcance da presunção de inocência


A presunção de inocência é, sem nenhuma sombra de dúvida, um dogma
do qual a sociedade não pode prescindir sem que pague um alto preço. Nes-
se sentido, não se pode negar que a relativização dessa garantia através de es-
forços hermenêuticos casuísticos, bastante defendida em tempos de populismo
judiciário, provocado, dentre outros fatores, pela insegurança social hipervalo-
rizada pela mídia – do que se originam movimentos como law and order, “tole-
rância zero” etc. –, trará efeitos perniciosos para o segundo maior bem do ser
humano, a sua liberdade ambulatória, uma vez que o estado de inocência as-
soma como óbice à imediata execução da pena de prisão, ou seja, independen-
temente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória (por exemplo,
na pendência de recurso especial e/ou extraordinário).
Importa acentuar, inicialmente, que a noção de presunção de inocência é
bem antiga, tendo germinado em meio a renhidas lutas em prol das liberdades
individuais, que marcaram época em momentos emblemáticos da história da
humanidade. Com fulcro nessa perspectiva, pretende-se analisar, na presente
seção, além do seu sentido e alcance, a sua presença nos principais documen-
tos normativos, nacionais e transnacionais, o que ajudará a compreender ade-
quadamente esse standard, cuja importância é manifesta.
Fruto da Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Ci-
dadão de 1789, em seu artigo 9º, pontificou: “todo o acusado se presume ino-
cente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o
rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido
pela Lei”. Ressalte-se que desse texto – de todos o mais antigo – advém o nome
histórico pelo qual passou a ser divulgada em todo o planeta a garantia funda-
mental de que se cuida.

28. Cf. SILVA SÁNCHEZ, op. cit., p. 186.

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No mesmo diapasão, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, produ-


zida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, diz, em seu artigo
11.1, que “toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente
até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um pro-
cesso público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam as-
seguradas”29. Certamente esses diplomas internacionais de direitos humanos
influenciaram decisivamente o legislador constitucional de inúmeros países
democráticos, que passaram a adotar essa garantia em seus respectivos orde-
namentos jurídicos como lição da cidadania contra o arbítrio punitivo dos de-
tentores do poder30.
Tendo em vista que a presunção de inocência produz efeitos na prisão, uma
interpretação extensiva (lex minus dixit quam voluit) autoriza afirmar que a
Constituição Imperial brasileira de 1824 a previu, ainda que de maneira em-
brionária. Basta observar que assegurou a inviolabilidade dos direitos civis e
políticos dos cidadãos brasileiros, tendo por base a liberdade, a segurança indi-
vidual e a propriedade, trazendo no seu bojo a determinação de que “ninguém
poderá ser preso sem culpa formada”31.

29. Disposições semelhantes são encontradas na Convenção Europeia para a Proteção


dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 1950 (artigo 6.2: “toda
pessoa acusada de um delito será presumida inocente até que se prove sua culpabi-
lidade conforme a lei”; sobre a Convenção, cf. CHIAVARIO, Mario. La presunzione
d’innocenza nella giurisprudenza dela Corte Europea dei diritti dell’uomo. In: Studi
in Ricordo di Giandomenico Pisapia. Milano: Giuffrè, 2000. p. 80-81); no Pacto Inter-
nacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 (artigo 14.2: “qualquer pessoa acusada
de infração penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha
sido legalmente estabelecida”) e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Eu-
ropeia (EU) de 2000, que em seu artigo 48 reitera os mesmos termos, reconhecidos
expressamente em 2007 pelo artigo 6º do Tratado da EU. Igualmente, a Convenção
Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica) esta-
belece: “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência
enquanto não se comprove legalmente sua culpa” (art. 8.2).
30. Seguem alguns exemplos: 1) Constituição Italiana de 1948, artigo 27: “L’imputato
non è considerato colpevole sino alla condanna definitiva”; 2) Constituição Portu-
guesa de 1976, artigo 32.2: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em
julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo com-
patível com as garantias de defesa”; 3) Constituição Espanhola de 1978, artigo 24.2:
“Asimismo, todos tienen derecho [...] a no confesarse culpables y a la presunción de
inocencia”.
31. Art. 179: § 8º Ninguém poderá ser preso sem culpa formada, exceto nos casos decla-
rados na lei [...]. § 9º Ainda com culpa formada, ninguém será conduzido à prisão,

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As Constituições posteriores, mesmo as que resultaram de períodos de ex-


ceção, trouxeram dispositivos que, ao assegurarem direitos alusivos à liberda-
de, apresentam alguns elementos constitutivos deste standard32, conforme se
vê: 1) A Constituição de 1891 trouxe previsão de que a prisão exige culpa for-
mada (artigo 72, § 14); 2) A Constituição de 1934 assegurou a preservação da
legalidade da prisão apenas se derivada de flagrante delito ou ordem da auto-
ridade judiciária competente (artigo 113); 3) A Constituição de 1937 manteve,
malgrado com algumas restrições, o Habeas Corpus como forma de garantia
da liberdade33; 4) A Constituição de 1946 estabeleceu que a prisão dependeria
de flagrante delito ou de ordem escrita da autoridade competente (artigo 141,
§§ 20, 21 e 22); 5) A Constituição de 1967, se de um lado previa a presunção da
culpabilidade do acusado (Ato Institucional 5, artigo 10), do outro assegurou a
inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade; 6) A Emenda Constitucio-
nal 1/69, que entrou em vigor no ápice da ditadura no Brasil, embora prevendo
que todos os atos do governo ficavam aprovados e excluídos da apreciação ju-
dicial (art. 81), manteve a cláusula da inviolabilidade dos direitos à liberdade.
De todo modo, a consagração expressa da presunção de inocência veio com
a Constituição Federal de 1988, cujo artigo 5º, inciso LVII, determina que nin-
guém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal conde-
natória. Mas dada a norma, cumprirá ao aplicador (intérprete), num instante
posterior, buscar o seu sentido e alcance, tendo por base os aportes normativos
acima delineados e os métodos hermenêuticos que animam a funcionalidade

ou nela conservado estando já preso, se prestar fiança idônea, nos casos que a lei a
admite [...]. § 10 [...] O que fica disposto acerca da prisão antes de culpa formada não
compreende as ordenanças militares, estabelecidas como necessárias à disciplina; e
recrutamento do Exército; nem os casos que não são puramente criminais, e em que
a lei determina todavia a prisão de alguma pessoa, por desobedecer aos mandatos da
justiça, ou não cumprir alguma obrigação dentro de determinado prazo.
32. Numa visão mais restritiva, há quem destaque que as Constituições brasileiras ante-
riores à de 1988, embora destinassem um capítulo específico aos direitos e garantias
individuais, se limitaram a mencionar que a especificação dos direitos e das garantias
contidos na Constituição não excluiria outros direitos e garantias decorrentes do
regime e dos princípios nelas adotados (cf. GIACOMOLLI, Nereu José. Art. 5º, LVII.
In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil.
São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 442).
33. O Decreto-lei 88/37 – que instituiu o Tribunal de Segurança Nacional – previa, no
art. 20.5, que “presume-se provada a acusação, cabendo ao réu prova em contrário,
sempre que tenha sido preso com arma na mão, por ocasião de insurreição armada,
ou encontrado com instrumento ou documento do crime”.

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da ordem jurídica no Estado democrático de direito. Nessa caminhada, deve


evitar, com intransigência, a contaminação do direito pelos seus códigos mo-
rais, bem como a tomada de decisões sob o influxo de pressões sociais e midiá-
ticas, como sói acontecer em situações de “excepcionalidade”, a exemplo do
julgamento pelo STF do HC 126.292/SP, a ser analisado adiante.
No que pese seja mais apropriado caracterizar a presunção de inocência
não como um direito, mas como modalidade de garantia constitucional funda-
mental, uma vez que assegura, em diversas frentes, o status libertatis do indiví-
duo contra investidas ilegítimas34, se lhe é atribuída, outrossim, a conotação de
princípio, corroborada pela clássica concepção dworkiniana, segundo a qual os
princípios têm dimensão de peso ou importância, a ser confrontada e sopesa-
da no caso concreto com outros princípios do mesmo ordenamento jurídico35.
Por sem dúvida, a presunção de inocência é norma dirigida indistintamen-
te a todos os indivíduos, e apenas a sentença judicial da a qual não caiba mais
nenhuma modalidade recursal – decisão transitada em julgado – tem o condão
de fazê-la soçobrar, o que demonstra tratar-se de presunção juris tantum, sub-
metida a rígidos critérios desconstitutivos. Em verdade, quando o Estado acei-

34. Para Paulo Bonavides (Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros,
2006. p. 529-530), as garantias constitucionais são as disposições assecuratórias que,
em defesa dos direitos, limitam o poder. No dizer de Rui Barbosa, lembrado pelo
ilustre constitucionalista, são as “solenidades tutelares”, de que a lei circunda alguns
direitos contra os abusos do poder. Fala-se, outrossim, de garantias primárias, como
sendo todas aquelas que se relacionam com o conteúdo dos direitos, é dizer, com as
expectativas positivas ou negativas que o Estado deve satisfazer, identificadas como
direitos liberais e sociais, respectivamente (cf. PORTALES, Rafael Enrique Aguilera;
SÁNCHEZ, Rogelio López. Los derechos fundamentales en la teoría jurídica garantis-
ta de Luigi Ferrajoli. Disponível em: [https://archivos.juridicas.unam.mx/www/bjv/
libros/6/2977/4.pdf, p. 64]. Acesso em: 02.07.2017). Diz Ferrajoli (cf. Poderes sel-
vagens: a crise da democracia italiana. Trad. Alexander Araujo de Souza. São Paulo:
Saraiva, 2014. p. 26-27) acerca das garantias: “... as garantias constitucionais dos
direitos fundamentais são também garantias da democracia [...] As garantias cons-
titucionais são as garantias da rigidez dos princípios e dos direitos constitucionais
estabelecidos que incidem sobre os poderes supremos do Estado”.
35. Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 3. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 42-43. É extremamente perigoso considerar a pre-
sunção de inocência um princípio nos moldes preconizados por R. Dworkin e R. Alexy,
pois isso permitirá que seja aplicada em maior ou menor intensidade a partir da
ponderação com outros princípios constitucionais colidentes. Admite-se, contudo,
esse atributo (o de que é princípio), na perspectiva de que constitui norma nuclear
do sistema constitucional.

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ta a positivação desse princípio em diploma normativo de superior hierarquia,


está mostrando que levará em consideração a necessidade de que ele próprio,
por meio das agências de investigação, prove e veja reconhecida, em todas as
instâncias judiciárias, a culpabilidade ou não inocência de um determinado
acusado, para só então poder, em caráter de definitividade, executar a pena
imposta. A propósito, duas situações de sumo relevo se colocam: 1ª) não lo-
grando o órgão acusador trazer aos autos do processo criminal elementos pro-
batórios consistentes e restando, pois, dúvidas acerca da autoria do delito ou
não existindo prova suficiente para a condenação, cumprirá ao órgão julgador
aplicar o princípio do in dubio pro reo, absolvendo, por consequência, o acusa-
do (art. 386, V e VII, do CPP), situação em que a dúvida deve obrigatoriamente
militar a favor do imputado na ação penal36; 2ª) por outro lado, restando pro-
vada no caderno processual a inocência do acusado, será essa expressamen-
te declarada (art. 386, IV, do CPP), independentemente de estar ou não o fato
prescrito, mantendo-se, ipso facto, o seu estado de inocência com todas as con-
sequências dele advenientes. Aqui, ao contrário da situação anterior, é a não
dúvida sobre a inocência do réu que fundamentará a sentença absolutória.
Ora, se a decisão judicial condenatória não transitada em julgado é inábil
a retirar do condenado a capa do estado de inocência, com maior razão, em
respeito ao princípio da materialidade (direito penal do fato), eventuais con-
denações em outros processos, mesmo que definitivas, bem como meras inves-
tigações, em curso ou concluídas, não o seriam. Calha, nesse sentido, o alvitre
de Aury Lopes Jr., quando afirma que a presunção de inocência se projeta nas
dimensões interna e externa ao processo. São palavras do autor:

Na dimensão interna, é um dever de tratamento imposto – inicialmente –


ao juiz, determinando que a carga da prova seja inteiramente do acusador
(pois, se o réu é inocente, não precisa provar nada) [...]; ainda na dimensão
interna, implica severas restrições ao (ab)uso das prisões cautelares [...].
Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção
contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa
dizer que a presunção de inocência [...] deve ser utilizada como verdadeiro

36. Dada a amplitude do princípio constitucional da presunção de inocência, essa obriga-


toriedade vale não apenas em termos do in dubio pro reo, mas também em termos de
interpretação, a título de favor rei, de modo que a interpretação das normas penais e
processuais penais há de ser sempre favorável ao réu (cf. PELUSO, Cezar. Presunção
de inocência, VI Encontro AASP: aula magna do Min. Antonio Cezar Peluso. Revista
Brasileira da Advocacia, ano 1, v. 1, p. 239-245, abr.-jun. 2016).

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limite democrático à abusiva exploração midiática em torno do fato crimi-


noso e do próprio processo judicial37.

Insta esclarecer, em acréscimo às considerações até aqui alinhavadas, que a


tutela da presunção de inocência não se limita ao processo penal, a despeito de
ser o seu princípio reitor, aplicando-se, também, a quaisquer procedimentos
em que “haja possibilidade de restrição de direitos ou sanção à condição, con-
duta ou atividade da pessoa”, de modo que “todas as pessoas, independente-
mente de estarem sendo submetidas a algum procedimento, estão sob o signo
da presunção de inocência”38, eis que constitui, antes de tudo, um direito na-
tural do indivíduo, que logrou positivação nas ordens jurídicas. Ademais, não
impede a decretação, como ultima ratio, de prisões processuais39, de caráter
cautelar e vinculadas às necessidades do regular andamento do processo (efe-
tividade da jurisdição), desde que não figurem, na prática, como antecipação
dos efeitos da condenação transitada em julgado, hipótese em que será imedia-
tamente revogada, consoante se estudará detalhadamente na seção seguinte.
Preocupado com a presunção de inocência e a garantia de liberdade do im-
putado, Ferrajoli40 destacou, em elucidativas passagens de sua obra seminal, o
que se segue:
[...] o princípio de submissão à jurisdição [...] postula a presunção de ino-
cência do imputado até prova contrária decretada pela sentença definitiva
de condenação [...]. A culpa, e não a inocência, deve ser demonstrada, e é a
prova da culpa – ao invés da de inocência, presumida desde o início – que
forma o objeto do juízo. [...] Toda vez que um imputado inocente tem razão
de temer um juiz, quer dizer que isto está fora da lógica do Estado de direito:
o medo e mesmo só a desconfiança ou a não segurança do inocente assina-
lam a falência da função mesma da jurisdição penal e a ruptura dos valores
políticos que a legitimam.

No que concerne ao sentido do vocábulo presunção constante da fórmula


“presunção de inocência”, Cezar Peluso41, ministro aposentado do STF, susten-
tou, em texto publicado pela Revista Brasileira da Advocacia, a impropriedade

37. Cf. LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 588.
38. Cf. GIACOMOLLI, op. cit., p. 444.
39. Nesse sentido, a antiga Súmula 9 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), verbis: “A
exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da
presunção de inocência”.
40. Cf. Direito e razão, op. cit., p. 505-506.
41. Cf. PELUSO, op. cit., p. 231-238.

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Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 142. ano 26. p. 133-170. São Paulo: Ed. RT, abr. 2018.
Processo penal 151

da colocação de tal termo. Para o ministro, há apenas dois sentidos na palavra


presunção, o legal (praesumptio iuris), que reflete o que ordinariamente ocor-
re na realidade extrajurídica como espelho da jurídica, e o lógico (praesumptio
hominis), baseado em raciocínio lógico-indutivo, nenhum deles condizentes
com o princípio. Ao contrário, o princípio teria, para o autor, outro alcance,
de caráter axiológico, porquanto afirmaria um valor político-ideológico ligado
à dignidade do homem, com três dimensões semânticas distintas: 1) regra de
tratamento do réu no curso do processo; 2) expressão de um modelo de pro-
cesso penal concebido para proteger a liberdade e a dignidade do réu; 3) regra
de juízo, com reflexos na distribuição do ônus da prova.
Na legislação ordinária, a necessidade do trânsito em julgado para a quebra
da presunção de inocência e a consequente autorização de execução da medi-
da constritiva de liberdade, após o exercício do onus probandi pela acusação,
capitaneada pelo Ministério Público nas ações penais públicas (modelo de civil
law)42, vêm explicitadas na Lei de Execução Penal (LEP)43 e no art. 283 do Có-
digo de Processo Penal, com redação dada pela Lei 12.403, de 201144.
Diante de tão sobejas razões, vê-se que ao Poder Judiciário não é dado in-
terpretar casuisticamente o texto constitucional, máxime em detrimento de
garantia fundamental, como fez o STF no julgamento do HC 126.292, quando

42. Na common law não há nexo entre a presunção de inocência e a liberdade pessoal,
mas sim com o encargo probatório, em razão do modelo acusatório de processo pe-
nal, que dá a esse princípio significado dúplice: regra de tratamento do imputado e
regra de juízo (cf. GIACOMOLLI, op. cit., p. 441).
43. “Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade,
se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimen-
to para a execução” e “Art. 147. Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena
restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério
Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário,
a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares”.
44. “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e funda-
mentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condena-
tória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude
de prisão temporária ou prisão preventiva”. A matriz garantista do constitucionalis-
mo, esclarece Alfredo Copetti Neto (cf. O paradigma constitucional garantista em
Luigi Ferrajoli: a evolução do constitucionalismo político para o constitucionalismo
jurídico. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 417,
jul.-dez. 2013), “reforça o positivismo jurídico, no sentido de que os próprios direitos
fundamentais estabelecidos nas normas constitucionais devem promover o direito
positivo, ou seja, trata-se de um positivismo não apenas formal, mas material, com-
plementando o positivismo jurídico tradicional e o Estado de Direito”.

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se sabe que as instâncias recursais brasileiras não se esgotam no segundo grau,


pelo que este não é a antessala do trânsito em julgado, a menos que o legisla-
dor, de lege ferenda, modifique, dentro das suas atribuições legítimas, os textos
constitucional e legal. A antecipação do trânsito em julgado da sentença con-
denatória, sem embargo dos recursos excepcionais, é uma possibilidade que se
divisa no horizonte45, a ser discutida no âmbito estrito da política. Nesse senti-
do, é inconcebível que um poder desrespeite o limite do outro, nada obstante
pareça ter ocorrido. Ao versar sobre os riscos da expansão dos espaços de dis-
cricionariedade do poder jurisdicional, Ferrajoli46 é assertivo:

L’ultima cosa di cui si avverte il bisogno è perciò che la cultura giuridica,


attraverso la teorizzazione e l’avallo di un ruolo apertamente creativo di
nuovo diritto affidato alla giurisdizione – inteso con “creazione” non già
l’inevitabile interpretazione della legge esistente, ma la produzione di nuovo
diritto – contribuisca ad accrescere questi squilibri, assecondando e legitti-
mando un ulteriore ampliamento degli spazi già amplissimi della discrezio-
nalità, dell’argomentazione e del potere giudiziario, fino all’annullamento
della separazione dei poteri, al declino del principio di legalità e al ribalta-
mento in sopra-ordinazione della subordinazione dei giudici alla legge.

4. Das modalidades de prisão no Brasil


Há basicamente duas modalidades distintas de prisão previstas no orde-
namento jurídico nacional, a saber: a prisão processual e a prisão como pe-

45. Proposta em 2011 pelo então presidente do STF, min. Cezar Peluso, a chamada PEC
dos recursos teve como principal objetivo atacar os problemas da lentidão dos pro-
cessos e da impunidade. A fórmula seria evitar que recursos de natureza meramente
protelatória chegassem às instâncias superiores a partir de uma alteração nos arts.
102 e 105 do CF/88. Com ela, as decisões judiciais de segunda instância já teriam
efeito imediato. Antecipava-se o trânsito em julgado das decisões. Em artigo publi-
cado, disse o min. Cezar Peluzo: “Em termos simples, o projeto estabelece o final do
processo após duas decisões judiciais. O Brasil é o único país do mundo em que um
processo pode percorrer quatro graus de jurisdição: juiz, tribunal local ou regional,
tribunal superior e Supremo Tribunal Federal (STF). O sistema atual produz intole-
ráveis problemas, como a “‘eternização”’ dos processos, a sobrecarga do Judiciário e a
morosidade da Justiça” (disponível em: [http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticia-
Detalhe.asp?idConteudo=181248]. Acesso em: 10.07.2017). Ocorre, no entanto, que
por vontade política do Poder Legislativo o projeto não vingou.
46. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Contro la giurisprudenza creativa. Questa Rivista, n. 4/2016,
p. 16. Disponível em: [http://www.questionegiustizia.it/rivista/pdf/QG_2016-4_03.
pdf]. Acesso em: 20.10.2017.

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na propriamente dita. A primeira tem como espécie mais comum a preventiva,


também cognominada de custódia ante tempus, cuja base normativa é o art.
312 do Código de Processo Penal (CPP), o qual estabelece como requisitos a
garantia da ordem pública ou da ordem econômica, a conveniência da instru-
ção criminal e a necessidade de se assegurar a aplicação da lei penal, e como
pressupostos a prova da existência do crime e o indício suficiente de autoria47.
A segunda modalidade deflui de uma sentença penal condenatória transitada
em julgado, único título hábil a declarar, em juízo definitivo, a culpabilidade
do indivíduo submetido à jurisdição penal (art. 5º, inc. LVII, da CF/88).
Em solo brasileiro, a pena de prisão é a mais grave consequência jurídica
ante o cometimento de um crime48. Nessa linha, a Constituição Federal admi-
te unicamente a prisão de natureza temporária, eis que veda a pena de prisão
perpétua (art. 5º, inciso XLVII, “b”)49, vedação essa corroborada em sede de le-
gislação infraconstitucional pelo art. 75 do Código Penal, ao dispor que o tem-
po de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a
trinta anos.
A grande dificuldade que se coloca sobre a pena de prisão é a de saber em
que momento a sua execução está autorizada, independentemente da presença
ou não dos requisitos das prisões cautelares (que com ela não se confundem),
uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro prevê diversas instâncias recur-
sais, que segundo a doutrina majoritária devem ser esgotadas a fim de que essa
execução se materialize sem arranhões ao texto constitucional. Mais precisa-
mente, são três os níveis de recursos, a saber: segunda instância (Tribunais de
Justiça e Tribunais Regionais Federais), Superior Tribunal de Justiça (recurso
especial, para preservar a higidez da legislação infraconstitucional) e Supremo
Tribunal Federal (recurso extraordinário, para preservar de violações as nor-
mas de cunho constitucional).

47. A outra espécie, prevista na Lei 7.960, de 1989, é a prisão temporária, cabível em
três hipóteses: I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;
II - quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessá-
rios ao esclarecimento de sua identidade; e III - quando houver fundadas razões, de
acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação
do indiciado em crimes graves (homicídio, roubo, extorsão, tráfico de drogas etc.).
48. Cf. OLIVEIRA NETO, Emetério Silva de. A pena de prisão no Brasil: contradições,
desproporcionalidade e ausência de isonomia na sua aplicação. In: AVILA, Gustavo
Noronha de et al. (coord.). Criminologias e política criminal: Org. CONPEDI/UFMG/
FUMEC/Dom Helder Câmara. Florianópolis, SC: CONPEDI, 2015. v. 1. p. 191.
49. Na mesma esteira, proíbe penas de morte (à exceção da previsão constante do art. 84,
inciso XIX), de trabalhos forçados, de banimento e cruéis.

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Diante dessa mui complexa engrenagem, indaga-se: qual o limite da pre-


sunção de inocência? É cabível a execução da pena de prisão quando o caso
esteja pendente de recurso, por exemplo, nas instâncias extraordinárias, am-
biente em que não se analisará matéria probatória? Elidiria a decisão de segun-
do grau a presunção de não culpabilidade do réu, a ponto de tornar legítima a
execução do título penal?
Em linha de princípio, argumenta-se que não há direitos fundamentais
absolutos, mormente em se tratando de direito com estrutura normativa de
princípio, que admite sopesamento no caso concreto, podendo um prevalecer
sobre o outro, dada a dimensão de peso ressaltada por Dworkin. Diz-se, assim,
que a própria presunção de inocência é relativizada pelo sistema ao admitir
o uso de prisões ante tempus (preventiva e temporária), além do que, mesmo
nas hipóteses de condenações definitivas (trânsito em julgado), a inocência
seria passível de ser elidida por revisão criminal50, o que modificaria o estado
de inocência do indivíduo já assentado por anterior decisão judicial definiti-
va, de modo que, por tal raciocínio, aparentemente sedutor, se nem mesmo o
trânsito em julgado garantiria em caráter absoluto a inocência do indivíduo,
a decisão que exaure a matéria fático-probatória pode ser executada sem que
haja agressão aos valores constitucionais, pois a execução é sempre provisória.
O argumento, contudo, não procede, por duas razões: 1) o direito penal não é
instrumento de vingança e nem remédio para aplacar a cólera da opinião pú-
blica ignara; 2) o ordenamento admite recursos extraordinários, na pendência
dos quais não se perfaz o trânsito em julgado do édito condenatório. Por isso,
não há outra maneira de interpretar o texto constitucional, considerando que
esses recursos podem modificar – como de resto em muitas ocasiões têm mo-
dificado – a situação jurídica do réu, em seu favor51.
Apesar das polêmicas e das múltiplas controvérsias instaladas nessa seara,
é ponto pacífico o de que a decisão condenatória de primeiro grau mantém in-
tacta a garantia da presunção de inocência do condenado, de modo que nesse
contexto a prisão só se manterá ou será decretada exclusivamente no nível da
cautelaridade, exigindo-se, destarte, a presença inconcussa dos requisitos da
prisão preventiva – única modalidade viável a essa altura – para tanto. No en-

50. Cf. FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca et al. Execução provisória da pena. Um
contraponto à decisão do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n. 84.078.
Garantismo penal integral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 493-494.
51. Os recursos extraordinários corrigem erros na dosimetria da pena, na fixação do regi-
me prisional, etc., cujo impacto incide diretamente na execução da pena. Além disso,
reconhecem temas como a prescrição e o princípio da insignificância.

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Processo penal 155

tanto, se a decisão condenatória vier a ser confirmada pela segunda instância,


discute-se se é constitucional executar a pena imposta acaso a defesa venha a
interpor recurso especial e/ou extraordinário. Os defensores da execução ime-
diata argumentam, dentre outros pontos, que tais recursos não possuem efeito
suspensivo, a teor do que dispunha o antigo § 2º do art. 27 da Lei 8.038/9052 e
do que dispõe o art. 637 do CPP sobre os recursos extraordinários53. De outra
banda, os partidários da inexecução provisória ou antecipada, mais afeiçoados
aos postulados garantistas, sustentam que executar a pena sem o trânsito em
julgado constitui violação à presunção de inocência.

5. Do julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP: mudança de


jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF)
Em 17 de fevereiro de 2016, julgando o emblemático Habeas Corpus
126.292/SP54, o plenário do STF houve por bem mudar jurisprudência conso-
lidada desde o ano de 2009, quando do julgamento do HC 84.078/MG55, pas-

52. Verbis: “os recursos extraordinário e especial serão recebidos no efeito devolutivo”.
Tal dispositivo foi revogado pela Lei 13.105/2015, que instituiu o Novo Código de
Processo Civil, tratando da matéria no art. 1.029, § 5º.
53. Tanto que o STJ editou em 2002 a Súmula 267, que dizia: “A interposição de recurso,
sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de manda-
do de prisão” (consultada em: [https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletroni-
ca/stj-revista-sumulas-2011_20_capSumula267.pdf.]. Acesso em: 26.10.2017).
54. O Plenário Virtual do STF reconheceu a repercussão geral do tema objeto do refe-
rido HC, cujo processo paradigma é o Recurso Extraordinário com Agravo (ARE)
964.246, rel. Min. Teori Zavascki, DJe 10.11.2016, assim ementado: “Constitucional.
Recurso extraordinário. Princípio constitucional da presunção de inocência (CF, art.
5º, LVII). Acórdão penal condenatório. Execução provisória. Possibilidade. Reper-
cussão geral reconhecida. Jurisprudência reafirmada. 1. Em regime de repercussão
geral, fica reafirmada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de
que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal,
ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio
constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da
Constituição Federal. 2. Recurso extraordinário a que se nega provimento, com o
reconhecimento da repercussão geral do tema e a reafirmação da jurisprudência sobre
a matéria” (disponível em: [http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAnda-
mento.asp?incidente=4966379]. Acesso em: 21.10.2017).
55. Transcrevem-se, pela importância, os pontos altos da ementa deste precedente: “Ha-
beas corpus. Inconstitucionalidade da chamada “‘execução antecipada da pena”’. Art.
5º, LVII, da Constituição do Brasil. Dignidade da pessoa humana. Art. 1º, III, da

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sando a perfilhar o entendimento de que a confirmação de uma condenação


pelo segundo grau de jurisdição dá ensejo à imediata execução da pena pri-

Constituição do Brasil. 1. O art. 637 do CPP estabelece que “‘[o] recurso extraordi-
nário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do
traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença”’.
A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade
ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988
definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que “‘ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória”’. 2. Daí que os preceitos veicu-
lados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobre-
põem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. A prisão antes
do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar.
4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases
processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da
sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do
direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a
pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão. 5. [...]. 6. A antecipação da exe-
cução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia
ser justificada em nome da conveniência dos magistrados – não do processo penal.
A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF]
serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subsequentes agravos e
embargos, além do que “‘ninguém mais será preso”’. Eis o que poderia ser apontado
como incitação à “‘jurisprudência defensiva”’, que, no extremo, reduz a amplitude ou
mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade
de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço. 7. No RE 482.006, rela-
tor o Ministro Lewandowski, quando foi debatida a constitucionalidade de preceito
de lei estadual mineira que impõe a redução de vencimentos de servidores públicos
afastados de suas funções por responderem a processo penal em razão da suposta
prática de crime funcional [art. 2º da Lei 2.364/61, que deu nova redação à Lei n.
869/52], o STF afirmou, por unanimidade, que o preceito implica flagrante violação
do disposto no inciso LVII do art. 5º da Constituição do Brasil. Isso porque – disse
o relator – “‘a se admitir a redução da remuneração dos servidores em tais hipóte-
ses, estar-se-ia validando verdadeira antecipação de pena, sem que esta tenha sido
precedida do devido processo legal, e antes mesmo de qualquer condenação, nada
importando que haja previsão de devolução das diferenças, em caso de absolvição”’.
[...]. 8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem
essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas
entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III,
da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consi-
deradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que
somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de
cada qual. Ordem concedida” (Disponível em: [http://www.stf.jus.br/portal/processo/
verProcessoAndamento.asp?incidente=2208796]. Acesso em: 02.07.2017).

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Processo penal 157

vativa de liberdade, independentemente da interposição, pelo condenado, de


recurso especial (REsp) e/ou extraordinário (RE), com isso relativizando ou
minorando os efeitos e a força normativa da garantia fundamental que entabu-
la a presunção de inocência.
O julgamento se deu na esteira do clamor público contra a impunidade dos
assim denominados “crimes do colarinho branco”, em grande parte provoca-
do pela midiatização e popularidade da conhecida Operação Lava Jato. Jogan-
do com a opinião pública, os ministros, salvo exceções56, utilizaram, em seus
votos, fortes argumentos de ordem moral57, como se vê abaixo (sem destaques
no original):

“[...] portanto, o sacrifício que se impõe ao princípio da não culpabilida-


de – prisão do acusado condenado em segundo grau antes do trânsito em
julgado – é superado pelo que se ganha em proteção da efetividade e da
credibilidade da Justiça [...] Estão em jogo aqui a credibilidade do Judiciário –
inevitavelmente abalada com a demora da repreensão eficaz do delito –, sem
mencionar os deveres de proteção por parte do Estado [...] Por fim, a mudan-
ça de entendimento também auxiliará na quebra do paradigma da impunidade
[...] Ao evitar que a punição penal possa ser retardada por anos e mesmo
décadas, restaura-se o sentimento social de eficácia da lei penal [...]” (trechos
do voto do min. Roberto Barroso, HC 126.292. Disponível em: [http://re-
dir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246],
p. 27-54. Acesso em: 07.07.2017).
“[...] e, fazendo um paralelismo entre essa afirmação e a realidade práti-
ca, e a jurisdição em sendo uma função popular, ninguém consegue entender
a seguinte equação: o cidadão tem a denúncia recebida, ele é condenado
em primeiro grau, é condenado no juízo da apelação, condenado no STJ e

56. Merece destaque o voto do min. Celso de Mello, na parte em que diz: “A necessária
observância da cláusula constitucional consagradora da presunção de inocência (que
só deixa de prevalecer após o trânsito em julgado da condenação criminal) represen-
ta, de um lado, como já assinalado, fator de proteção aos direitos de quem sofre a
persecução penal e traduz, de outro, requisito de legitimação da própria execução de
sanções privativas de liberdade ou de penas restritivas de direitos” (Disponível em:
[http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246].
Acesso em: 10.07.2017, p. 85-86).
57. Na esteira do positivismo jurídico, Bobbio (Teoria da norma jurídica. Trad. Ariani
Bueno Sudatti e Fernando Pavan Baptista. 6. ed. São Paulo: Edipro, 2016. p. 59)
acentuou: “quando Kelsen sustenta que aquilo que constitui o direito como direito
é a validade não quer em absoluto afirmar que o direito válido seja também justo,
mesmo porque os ideais de justiça, para ele, são subjetivos e irracionais”.

Oliveira Neto, Emetério Silva de. Garantismo penal e presunção de inocência: uma análise do Habeas Corpus 126.292.
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ingressa presumidamente inocente no Supremo Tribunal Federal. Isso efeti-


vamente não corresponde à expectativa da sociedade em relação ao que seja
uma presunção de inocência [...] É preciso observar que, quando uma inter-
pretação constitucional não encontra mais ressonância no meio social [...] e se
há algo inequívoco hoje, a sociedade não aceita essa presunção de inocência de
uma pessoa condenada que não para de recorrer [...]” (trechos do voto do
min. Luiz Fux, HC 126.292. Disponível em: [http://redir.stf.jus.br/pagina-
dorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246], p. 58-60. Acesso em:
07.07.2017).

Conforme se pode observar, o Supremo, a pretexto de debelar a corrupção


e a impunidade, dois graves problemas sistêmicos que de há muito assolam a
nação sem a tomada de atitude pelas instâncias adequadas no tempo e hora de-
vidos, houve por bem relativizar os reflexos da presunção de inocência em ma-
téria penal, dando a falsa impressão à sociedade de que, em assim agindo, os
mencionados problemas serão resolvidos. Para usar uma metáfora, “ante a dor,
amputou-se o membro”, em vez de curá-lo com medicamentos.
A maioria do Supremo encampou a tese de que a determinação constitucio-
nal segundo a qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória” deve ser interpretada sem o apego à literalida-
de, reconhecendo, nesse diapasão, ser possível iniciar-se a execução penal an-
tes que os Tribunais Superiores deem a última palavra sobre a culpabilidade do
réu. Assentou-se que não se pode dar a essa disposição constitucional caráter
absoluto, desconsiderando-se sua necessária conexão com outros princípios e
regras constitucionais que permitem, a par de uma interpretação sistemática, a
conclusão de que é autorizado o início da execução da pena privativa de liber-
dade independentemente do posicionamento das instâncias extraordinárias58.
O relator do Habeas Corpus 126.292, min. Teori Zavascki, trouxe, em seu
substancioso voto vencedor, aportes do direito comparado, mostrando que no
cenário internacional as sentenças penais condenatórias são executadas, no
máximo, quando confirmadas pela segunda instância. Para tanto, valeu-se de
extenso estudo das legislações de vários países, realizado por Luiza Cristina
Fonseca Frischeisen, Mônica Nicida Garcia e Fábio Gusman59. Ocorre, porém,

58. Argumentos colhidos do voto do min. Edson Fachin, que bem sintetiza o entendi-
mento esposado pela maioria (Disponível em: [http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246]. Acesso em: 07.07.2017, p. 20-26).
59. a) Inglaterra: a regra é aguardar o julgamento dos recursos já cumprindo a pena, a
menos que a lei garanta a liberdade pela fiança; b) Estados Unidos: o Código de Pro-

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Processo penal 159

que tal estudo esconde as peculiaridades dos países investigados, traduzidas


em seus respectivos diplomas normativos e não encontradas no Brasil. Em
muitos deles, por exemplo, mesmo sendo gravíssimo o crime perpetrado, se
o acusado pagar os altos numerários de fiança, livrar-se-á solto à espera do re-
sultado dos recursos. Isso significa, na prática, que a relativização da regra vale
tão só para os pobres, ferindo, muitas vezes, de morte o senso de justiça.
Em suma, o Supremo Tribunal Federal denegou a ordem pretendida, con-
siderando válido, naquele caso (HC 126.292/SP), o cumprimento da pena de
prisão antes do trânsito em julgado da condenação, alterando, destarte, juris-
prudência consolidada no âmbito da Corte.
Após a manifestação do STF nesse HC, duas Ações Diretas de Constitucio-
nalidade (ADCs), com pedido de medida cautelar, foram interpostas. A pri-
meira (ADC 43), de autoria do Partido Ecológico Nacional (PEN), em que se
objetiva a declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo
Penal, reconhecendo a legitimidade constitucional da recente opção do legisla-
dor (veiculada na Lei 12.403, de 2011) de condicionar o início do cumprimen-
to da pena de prisão ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. E
a segunda (ADC 44), proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advoga-
dos do Brasil, com objetivo semelhante, qual seja o de desvelar o alcance e âm-
bito de incidência dos princípios da presunção de inocência e da ampla defesa,
à luz do art. 283 do CPP.

cesso Penal (Criminal Procedure Code), vigente em todos os Estados, em seu artigo 16
dispõe que “se deve presumir inocente o acusado até que o oposto seja estabelecido
em um veredicto efetivo”, o que não impede que as decisões penais condenatórias se-
jam executadas imediatamente, pois “o sistema legal norte-americano não se ofende
com a imediata execução da pena imposta ainda que pendente sua revisão”; c) Ca-
nadá: após a sentença de primeiro grau, a pena é automaticamente executada, tendo
como exceção a possibilidade de fiança; d) Alemanha: o Código de Processo prevê
que, não obstante a relevância da presunção da inocência, diante de uma sentença pe-
nal condenatória, apenas alguns recursos terão efeito suspensivo; e) França: traz em
seu Código de Processo Penal hipóteses em que o Tribunal pode expedir o mandado
de prisão, mesmo pendentes outros recursos; f) Portugal: o Tribunal Constitucional
interpreta o princípio da presunção de inocência com restrições. As decisões dessa
mais alta Corte portuguesa dispõem que tratar a presunção de inocência de forma
absoluta corresponderia a impedir a execução de qualquer medida privativa de liber-
dade, mesmo as cautelares; g) Espanha: é outro dos países em que, muito embora seja
a presunção de inocência um direito constitucionalmente garantido, vigora o prin-
cípio da efetividade das decisões condenatórias; h) Argentina: o Código de Processo
Penal federal dispõe que a pena privativa de liberdade seja cumprida de imediato, nos
termos do art. 494. A execução imediata da sentença é, aliás, expressamente prevista
no art. 495 do mesmo diploma (cf. op. cit., p. 507-515).

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O relator da matéria é o min. Marco Aurélio, que votou no sentido de re-


conhecer a constitucionalidade do sobredito dispositivo processual, deter-
minando a suspensão de execução provisória de réu cuja culpa esteja sendo
questionada no Superior Tribunal de Justiça e a libertação daqueles presos com
alicerce em fundamentação diversa60. Ocorre, todavia, que o plenário do Tribu-
nal, por maioria apertada de 6x5, vencido o relator, denegou, em julgamento
realizado em 5 de outubro de 2016, a cautelar, mantendo-se, naquela assenta-
da, o entendimento firmado no HC 126.292.
O voto do min. Roberto Barroso chama a atenção na parte em que bus-
ca diferenciar e desvincular a consolidação da culpa, para a qual se exigiria,
por expressa disposição constitucional, o trânsito em julgado da sentença pe-
nal condenatória, da possibilidade de execução da pena de prisão, para a qual,
no entender do ministro, far-se-ia mister tão somente uma condenação con-
firmada pela segunda instância. Isso porque, afirma, a Constituição brasileira
não condicionaria a prisão – mas, sim, a certeza jurídica acerca da culpabilida-
de – ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. E propõe, para se
chegar a essa conclusão, uma leitura sistemática dos incisos LVII e LXI do art.
5º da Carta de 1988, à luz do princípio da unidade da Constituição61. O argu-

60. Para o ministro, ainda, não se pode suplantar a literalidade do art. 5º, inciso LVII,
da Lei Maior, de ordem a admitir a gradação da formação da culpa para fins de in-
cidência da garantia em jogo, pelo que é necessário admitir que a certeza jurídica
não ocorre em segunda instância, mas, sim, perante o Superior Tribunal de Justi-
ça (Disponível em: [http://www.uni7setembro.edu.br/wp-content/uploads/2017/03/
UNI7-ADC-44-MC-votos-parcial.pdf]. Acesso em: 09.07.2017, p. 17).
61. A pretexto de conferir uma interpretação sistemática ao dispositivo, Barroso, em ver-
dade, procedeu a uma autêntica mutação constitucional. Absolutamente desneces-
sário qualquer esforço semântico para concluir que uma interpretação meramente
literal ou gramatical do texto constitucional é suficiente para extrair o seu autêntico
sentido. Mas, ad argumentandum, ainda que fosse uma “norma de textura aberta”, o
que não é o caso, é defeso ao julgador “extrair B de A”. Como disse o professor Do-
menico Pulitanò (Il giudice e la legge penale. Questione Giustizia, n. 2/2017, p. 158.
Disponível em: [http://www.questionegiustizia.it/rivista/pdf/QG_2017-2_21.pdf].
Acesso em: 25.10.2017) acerca da interpretação em “contextos abertos”, “L’impor-
tanza fondamentale della critica, dell’argomentazione, di un dare ragioni in un con-
testo aperto, vincolato alla legge e non a precedenti fabbricati altrove, è un’esigenza
comune a tutti i fabbricanti di interpretazioni: allo studioso, alla parte nel processo,
e anche al singolo giudice”. Ferrajoli (cf. Constitucionalismo garantista e neoconsti-
tucionalismo... op. cit., p. 104), em defesa do que denomina constitucionalismo ga-
rantista, alçado como complemento do positivismo jurídico, é categórico em dizer
que a legitimidade da jurisdição se funda sobre o caráter mais cognitivo possível da

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mento, contudo, não procede, exata e precisamente porque a prisão como pe-
na é a consequência da sentença definitiva, estando, sim, atrelada ao conceito
de culpa, o que não ocorre quanto à prisão processual (ou cautelar), que do re-
conhecimento desta independe. Essas modalidades de prisão, tal qual frisado
anteriormente, são, em essência, diversas, de modo que diversos deverão ser
os seus requisitos e as suas consequências jurídicas. Nesse ponto, Ferrajoli62 é
preciso:

La historia de la prisión cautelar del imputado en espera de juicio está estre-


chamente vinculada a la de presunción de inocencia, en el sentido de que los
límites dentro de los que la primera ha sido admitida y practicada en cada
ocasión siguen de cerca los avatares teóricos y normativos de la segunda.
Así sucedió que, mientras en Roma se llegó tras diversas alternativas a la
total prohibición de la prisión preventiva, en el Edad Media, con el desar-
rollo del proceso inquisitivo, se convirtió en el presupuesto ordinario de la
instrucción, basada esencialmente sobre la disponibilidad del cuerpo del
acusado como medio para obtener la confesión per tormentaz. Y sólo volvió
a ser estigmatizada en la época de la Ilustración, de forma simultánea con la
reafirmación del principio nulla poena, nulla culpa sine iudicio y el redescu-
brimiento del proceso acusatorio.

5.1. Da irresignação de alguns ministros do STF quanto à mudança da


jurisprudência da Corte
Consoante frisado, as decisões em comento foram tomadas por maioria
bem apertada, de modo que os ministros vencidos ainda se mostram refratá-
rios em sufragarem o novel entendimento63. Nessa perspectiva, recentemente o

subsunção e da aplicação da lei, ressaltando que o cognitivismo judiciário (veritas non


auctoritas facit iudicium) é a outra face do princípio da legalidade (auctoritas non veri-
tas facit legem). Igualmente, merece destaque escrito de Lenio Streck sobre “neocons-
titucionalismo”, no qual faz coro às críticas de Ferrajoli às tentativas de destruição
do positivismo engendradas por uma hermenêutica não muito afeiçoada ao Estado
democrático de direito (cf. STRECK, Lenio. Neoconstitucionalismo, positivismo e
pós-positivismo. Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com
Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 59-94).
62. Cf. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez et al.
Madrid: Trotta, 1997. p. 551.
63. Em sinal claro de que modificou o seu entendimento sobre a temática, o min. Gilmar
Mendes concedeu liminar no HC 146.815/MG, determinando a suspensão de exe-
cução provisória de sentença penal condenatória confirmada pelo segundo grau. Na

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min. Marco Aurélio concedeu liminar no HC 142.869/MT, afastando a execu-


ção provisória de prisão de condenado em segunda instância. Em trecho de sua
decisão, evidencia que o atual entendimento do STF, no sentido de se permitir
a execução provisória da pena de prisão, não é vinculante. Em outras palavras,
não tem o condão de obstaculizar o acesso ao Judiciário para afastar, via remé-
dio heroico, a lesão a direito que representa64.
No mesmo proceder vem se manifestando o min. Ricardo Lewandowski,
que, também em manifestação recente, concedeu liminar no HC 140.125/DF,
suspendendo a execução da pena de prisão até o julgamento do mérito do pe-
dido, semelhantemente ao que já havia feito em 27.07.2016, no HC 135.752/
PB. Por seu turno, ao deferir medida cautelar no HC 135.100/MG, o min. Cel-
so de Mello destacou a questão que envolve os efeitos de uma decisão do STF
proferida em processo inter partes, tema de cariz eminentemente constitucio-
nal e que bem calha às discussões encetadas. Disse o decano, em seu voto:
Nem se invoque, finalmente, o julgamento plenário do HC 126.292/SP –
em que se entendeu possível, contra o meu voto e os de outros 03 (três)
eminentes Juízes deste E. Tribunal, “a execução provisória de acórdão penal
condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso
especial ou extraordinário” –, pois tal decisão, é necessário enfatizar, pelo
fato de haver sido proferida em processo de perfil eminentemente subjetivo,
não se reveste de eficácia vinculante, considerado o que prescrevem o art.
102, § 2º, e o art. 103-A, “caput”, da Constituição da República, a signifi-
car, portanto, que aquele aresto, embora respeitabilíssimo, não se impõe à
compulsória observância dos juízes e Tribunais em geral (DJe 01.08.2016)65.

Com efeito, tudo isso demonstra que o tema é de todo sensível e não con-
sensuado, até mesmo no âmbito do próprio STF, em que alguns ministros

oportunidade, fez constar em seu decisum: “Ainda, no julgamento do HC 142.173/SP


(de minha relatoria, sessão da Segunda Turma de 23.05.2017), manifestei minha ten-
dência em acompanhar o Ministro Dias Toffoli no sentido de que a execução da pena
com decisão de segundo grau deve aguardar o julgamento do recurso especial pelo
STJ” (Disponível em: [http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.
asp?classe=HC&numero=146815&origem=AP]. Acesso em: 21.10.2017).
64. Cf. Supremo Tribunal Federal, HC 142.869/MT, 2016, rel. Min. Marco Aurélio. Dis-
ponível em: [http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inci-
dente=5170345]. Acesso em: 09.07.2017.
65. Cf. Supremo Tribunal Federal, HC 135.100/MG, 2016, rel. Min. Celso de Mello. Dis-
ponível em: [http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inci-
dente=5003617]. Acesso em: 02.07.2017.

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Processo penal 163

sustentam, ao analisarem os casos concretos que se lhes chegam, a não vin-


culatividade da decisão emanada do HC 126.292/SP, pois que tomada em sede
de processo subjetivo, remanescendo o debate subsequente ao julgamento das
cautelares nas ADCs 43 e 44.
O posicionamento do Pretório Excelso no emblemático HC, conforme
exaustivamente analisado e discutido neste trabalho, se afigura extremamente
prejudicial aos acusados no processo penal e, como tal, ao próprio Estado de
direito, na medida em que viola postulado constitucional do maior relevo, que
não admite interpretação fora da moldura que o ordenamento jurídico, no seu
conjunto orgânico e sistêmico, lhe confeccionou66.

5.2. HC 137.728/PR: o “caso de José Dirceu” na operação Lava Jato


O “caso de José Dirceu”, que na data do julgamento do mérito do HC
137.728/PR era réu condenado apenas em primeira instância (Ação Penal
5045241-84.2015.404.7000/PR), é diverso dos anteriormente descritos, pois
remete à prisão preventiva. Assim, a segunda turma do STF se debruçou unica-
mente sobre os fundamentos desta prisão cautelar, abstraindo completamente
as condenações existentes e a nova ação penal ofertada contra o ali paciente na
mesma data daquele julgamento, que se afigurou importantíssimo para a evo-
lução do direito processual penal pátrio.
O relator do writ, min. Edson Fachin, argumentou, sinteticamente, em seu
voto, como razões de decidir, que a prisão do paciente deveria ser mantida sob a
ótica do acautelamento da ordem pública, com lastro na gravidade concreta dos cri-
mes cometidos e no fundado receio da prática de outros delitos. Ocorre, todavia, que

66. A interpretação é a de que, paradoxalmente, é constitucional a execução da sentença


condenatória confirmada por decisão de segundo grau. Sucede, entretanto, que a
decisão está escancaradamente fora da moldura constitucional, pois que desrespeitou
os limites formais e materiais estabelecidos pelo Constituinte. A esse respeito, Hans
Kelsen (Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2012. p. 390) pontua: “o Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses,
uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é
conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que
preencha essa moldura em qualquer sentido possível”. Segundo Hart (O conceito de
direito. Trad. Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
p. 352), “não só os poderes do juiz estão sujeitos a muitas limitações que restringem
sua escolha, limitações das quais o poder legislativo pode ser totalmente isento, mas
também, como são exercidos apenas para decidir casos específicos, o juiz não pode
utilizá-los para introduzir reformas amplas ou novos códigos legais”.

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num sistema processual penal estribado em ideais garantistas, qual o é o brasi-


leiro, a prisão cautelar deve ser vista como ultima ratio, é dizer, ter aplicação ex-
cepcional, sendo certo, ademais, que quadro de corrupção sistêmica não figura
como um dos requisitos do art. 312 do diploma processual, ao contrário do que
pretensiosamente dão a entender alguns intérpretes desse diploma processual.
Em 2011, a Lei 12.403 modificou diversos dispositivos do CPP e trouxe a
possibilidade de aplicação de medidas cautelares como mecanismos substituti-
vos da famigerada prisão preventiva, mesmo presente o periculum libertatis. A
propósito, o § 6º do art. 282 do CPP passou a ter a seguinte redação: “a prisão
preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por ou-
tra medida cautelar (art. 319)”. A adoção dessas medidas – lamentavelmente
ainda escassa – rechaça o mito da liberdade plena, eis que o acusado beneficia-
do, além de permanecer processado pelo(s) crime(s) eventualmente cometi-
do(s), estará jungido a constrições importantes, que vão desde o recolhimento
domiciliar noturno até o uso de tornozeleira eletrônica, tudo sob os olhos do
Judiciário e dos órgãos de investigação.
Nesse contexto, e analisando o caso concreto, a maioria dos ministros da-
quela turma resolveu conceder a ordem de Habeas Corpus, com isso afastando
a ilegalidade da prisão. Além da possibilidade de revisão da sentença condena-
tória pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), os principais argu-
mentos insertos no voto divergente do min. Dias Toffoli foram: 1) os supostos
fatos criminosos, cessados em outubro de 2014, não foram contemporâneos a de-
cretação da preventiva do paciente, decidida e efetivada no mês de agosto de 2015,
de modo que a antiguidade do fato joga contra a necessidade da manutenção da
medida cautelar pessoal; 2) a presunção de inocência, enquanto norma constitucio-
nalmente prevista, implica a vedação de medidas cautelares pessoais automáticas
ou obrigatórias; 3) como consequência, a prisão preventiva não pode figurar como
antecipação de pena, uma vez que o paciente ainda não fora condenado em segun-
do grau67. Dentro dessa linha de raciocínio, merece destaque excerto de voto do
min. Teori Zavascki, proferido no HC 127.186/PR, verbis:

Todavia, a sociedade saberá também compreender que a credibilidade das


instituições, especialmente do Poder Judiciário, somente se fortalecerá na
exata medida em que for capaz de manter o regime de estrito cumprimen-
to da lei, seja na apuração e no julgamento desses graves delitos, seja na

67. Cf. Supremo Tribunal Federal, HC 137.728/PR, 2017, voto. Min. Dias Toffoli. Dispo-
nível em: [http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC137728DT.
pdf]. Acesso em: 05.05.2017.

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Processo penal 165

preservação dos princípios constitucionais da presunção de inocência, do


direito a ampla defesa e do devido processo legal, no âmbito dos quais se
insere também o da vedação de prisões provisórias fora dos estritos casos
autorizados pelo legislador (Segunda Turma, DJe de 03.08.2015)68.

Ainda, estando o paciente preso durante quase dois anos, vê-se, também,
claramente o excesso de prazo da sua prisão preventiva, o que per se a torna
ilegal, independentemente da presença ou não na espécie dos seus requisitos.
Ora, diferentemente da prisão temporária, a preventiva não tem prazo de du-
rabilidade prefixado em lei, o que não significa dizer que se deva alongar no
tempo, de maneira indefinida, ad aeternum, mesmo em se tratando de caso
complexo, que geralmente envolve acusações de crimes graves. A sua duração,
portanto, deve ocorrer dentro de prazo razoável, e dois anos de manutenção de
prisão provisória decididamente não se amolda ao conceito de razoabilidade.
Todas essas considerações comprovam que há razões suficientes para afir-
mar que a decisão do STF se reveste de correção. O possível fato, apontado
por um dos investigadores da operação Lava Jato, de o Tribunal não ter man-
tido coerência, uma vez que anteriormente teria negado liberdades em casos
semelhantes ou até de menor gravidade, não retira a legitimidade, a legalidade
e a constitucionalidade da decisão que determinou a revogação da prisão pre-
ventiva. Isto porque, despiciendo lembrar, o cometimento de dez arbitrariedades
não autoriza a prática de mais uma. Ao revés, deve ser levado em consideração
que o decisum em comento, o qual já figura como importante precedente, tem
a potencialidade de conduzir o Tribunal a outro patamar em termos de garan-
tia de direitos fundamentais contra o uso arbitrário e indiscriminado de prisões
cautelares – que faz o Brasil aparecer nas primeiras colocações dentre os países
com maior massa carcerária composta de presos provisórios –, o que se dará a
partir do exercício pleno e intimorato de sua função contramajoritária, a qual,
conforme pontuado por um dos ministros naquela sessão de julgamento, mui-
tas vezes tem o efeito prático de proteger o cidadão contra seus próprios instintos.

6. Considerações finais
Os argumentos desenvolvidos exaustivamente ao longo deste trabalho per-
mitem inferir as seguintes conclusões:

68. Cf. Supremo Tribunal Federal, HC 127.186/PR, 2015, voto min. Teori Zavascki. Dis-
ponível em: [http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inci-
dente=4733030]. Acesso em: 02.07.2017.

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1. A teoria do garantismo penal, desenvolvida e sistematizada em minú-


cias por Luigi Ferrajoli, possui quatro características fundamentais: i) separa
o direito da moral, na linha do positivismo jurídico; ii) não se confunde com
o abolicionismo penal, estando mais próxima do minimalismo; iii) nega que a
pena de prisão deva cumprir, sobre o apenado, o efeito da correção; iv) estriba-
da no convencionalismo, defende que não há crimes em si, opondo-se às teo-
rias substancialistas.
2. Nesse diapasão, o cerne da obra Direito e razão é a interdependência en-
tre a democracia e o direito e entre o direito e a razão, o que faz nascer uma
teoria axiomatizada do direito, construída em cima dos alicerces da racionali-
dade. Com efeito, o sistema axiomático formal não é parte acessória da obra,
mas sua intrínseca estrutura e razão. Ao defender um constitucionalismo forte,
Ferrajoli identifica um sistema de limites e obrigações ao poder, que sem elas
seria soberano, da maioria. Resta claro, portanto, na obra do autor, que demo-
cracia não se confunde com a maioria, sendo limite ao exercício arbitrário de
qualquer tipo de poder, venha de onde vier.
3. O garantismo sempre enfrentou enorme resistência ao longo dos anos,
uma das quais empunhada pela ideia de expansão do direito penal, cuja mate-
rialização, já efetivada de há muito em vários países, tem levado a supressão
de inúmeros direitos e garantias fundamentais, culminando na odiosa doutrina
do direito penal do inimigo.
4. O princípio constitucional da presunção de inocência, representativo de
uma garantia fundamental, tem importantes antecedentes históricos, remon-
tando à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, fruto da
Revolução Francesa de 1789. Posteriormente, vários diplomas internacionais
e nacionais o previram expressamente, destacando-se a Declaração das Nações
Unidas de 1948 e as Constituições do Brasil de 1988, da Itália de 1949 e da Es-
panha de 1976.
5. O sentido e o alcance da presunção de inocência não são pacíficos, seja
no âmbito doutrinário, seja no jurisprudencial. Na doutrina, há quem defenda,
em linha mais dura, que o direito mantém-se incólume independentemente da
consolidação da culpa após decisão de segunda instância, ou seja, pelos Tribu-
nais Superiores, sob a justificativa de que a inocência é uma presunção passível
de cair até mesmo após o trânsito em julgado, via ação rescisória, não sendo um
direito absoluto, ao passo que a corrente de teor garantista não compadece com
qualquer restrição ao alcance do direito, exigindo intransigentemente que to-
dos os recursos sejam esgotados para só então se executar a decisão constritiva.
6. A legislação brasileira prevê duas modalidades distintas de prisão, a sa-
ber: a prisão pena e a prisão processual. A primeira resulta de uma decisão ju-

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Processo penal 167

dicial transitada em julgado, estabelecendo a culpa do imputado. A segunda,


cuja espécie mais comum é a preventiva, busca resguardar o bom andamento
do processo, sendo de natureza instrumental. Essas modalidades não podem
ser confundidas, embora o sejam com considerável (e lastimável) frequência.
7. A jurisprudência pátria já enfrentou vários momentos emblemáticos, sen-
do o mais recente (e tormentoso) o dos julgamentos pelo STF do HC 126.292
e das medidas cautelares nas ADCs 43 e 44, em que se passou a admitir, contra
expressa disposição constitucional, a execução da sentença condenatória antes
do trânsito em julgado. Tal posicionamento também contraria dispositivos do
Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.
8. Essa hermenêutica da Constituição Federal não se afigura escorreita, eis
que não encontra guarida na moldura traçada pelo legislador constitucional a
partir dos postulados da dignidade da pessoa humana e da liberdade, próprios
do Estado democrático de direito.
9. Decisões liminares posteriores proferidas em diversos Habeas Corpus re-
velam que alguns ministros da Corte se mostram infensos à aceitação desse
entendimento, sob o pálio de que os seus efeitos não vinculam, o que mostra
o quanto a mudança na jurisprudência tem ocasionado insegurança jurídica.
10. Compete privativamente ao legislador estabelecer os marcos da presun-
ção de inocência. Qualquer mudança que se queira, portanto, passa por refor-
mas na Constituição e na legislação ordinária que atinjam o sistema recursal,
refletindo no momento do trânsito em julgado da sentença penal condenató-
ria. Assim, o julgador, ao atribuir sentido a essa garantia, não pode, supeda-
neado na técnica da ponderação, restringir seu alcance contra as liberdades
públicas.

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Pesquisas do Editorial

Veja também Doutrina


• A verdade como ferramenta de investigação criminal à luz do garantismo penal, de
Roberto Antônio Darós Malaquias – RT 952/265-293 (DTR\2015\766);
• Justiça restaurativa e garantismo penal: aspectos de divergência e convergência, de
Selma Pereira de Santana e Tássia Louise de Moraes Oliveira – RBCCrim 136/235-263
(DTR\2017\6311); e
• Levando os argumentos a sério: a presunção de inocência no julgamento do HC
126.292/SP pelo Supremo Tribunal Federal, de Fernando Gabriel Ghiggi e Fausto Santos
de Morais – RBCCrim 132/169-190 (DTR\2017\1428).

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