Entrelinhas Impressas

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EIXO TEMÁTICO 3 – ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO:

a pesquisa na área da História da Arquitetura e do Urbanismo

ENTRELINHAS IMPRESSAS:
Amazônia de Sergio Bernardes em magazines e jornais

CHAVES, CELMA (1);


NASCIMENTO, CLAUDIA HELENA CAMPOS (2)

1. Universidade Federal do Pará. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo –


PPGAU/ITEC/UFPA.
Endereço Postal: Av. Conselheiro Furtado, 1934, apto. 1602. Nazaré. Belém/PA. CEP 66040-100
E-mail: [email protected]

2. Universidade Federal de Roraima. Departamento de Arquitetura e Urbanismo – DAU/CCT/UFRR.


Endereço Postal: Avenida Ene Garcêz, 2413, bloco V – DAU/CCT. Bairro Aeroporto. Boa Vista/RR.
CEP 69240-000.
E-mail: [email protected]

RESUMO
O presente ensaio busca apresentar achados preliminares sobre o registro da atuação do arquiteto
Sergio Bernardes (Rio de Janeiro/RJ, 1919-2002) em revistas especializadas em arquitetura e
urbanismo, jornais e magazines, contemporâneos às suas obras, com especial interesse aos projetos
pouco conhecidos e, especialmente, os desenvolvidos na região amazônica. A necessidade de
identificar, a partir de fontes diversas, as contribuições de Sergio Bernardes na Amazônia se faz pela
ausência de informações e dados na bibliografia e principais fontes que têm como foco a arquitetura
moderna brasileira. Desta forma, o procedimento metodológico parte da prospecção em publicações
correntes à época – com destaque ao Jornal do Commércio (AM) e Revista Manchete (RJ) – pela
proximidade com a região e com o arquiteto, respectivamente. A facilidade de acesso a essas fontes,
através da Hemeroteca da Biblioteca Nacional, favoreceu a pesquisa no tempo de pandemia. A
estrutura do artigo apresenta breve biografia e o discurso sobre a perspectiva da arquitetura moderna
brasileira, a partir de uma das fontes comumente utilizadas, o livro Arquitetura Contemporânea
Brasileira, de Yves Bruand (1926-2011), para compor os cenários do recorte temporal, isso é, até a
década de 1970. Sobre as revistas, magazines e jornais, foram acrescidas notas explicativas sobre o
escopo editorial específico dessas publicações. Por fim, ao identificarmos a partir desse pequeno
estudo que compõe parte da pesquisa documental de projeto de tese em Arquitetura e Urbanismo do
Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Pará, projetos e edifícios que não constam
nas referências primevas da produção de Bernardes, apontamos para a riqueza dos veículos de
comunicação impressa na definição de um direcionamento investigativo. Os elementos indiciais
encontrados levantados nas fontes até o momento - como a autoria de dois edifícios em Belém/PA -
nos permitem identificar achados e ausências e apontam para a necessidade de pesquisas mais
aprofundadas, ampliando as abordagens necessárias para o registro da contribuição de Bernardes
para o desenvolvimento da região norte, a partir de sua práxis projetual e das discussões do
Laboratório de Investigações Conceituais (LIC) pertencente ao seu escritório de arquitetura.

Palavras-chave: Sergio Bernardes; Amazônia; Décadas de 1950-1970; Revistas de Arquitetura;


Periódicos: revistas e jornais.

7º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação


06 a 08 de outubro de 2021
INTRODUÇÃO
Não podemos medir as tendências da história com
o metro do nosso destino pessoal (Leon Trotsky)

Sergio Wladimir Bernardes (Rio de Janeiro, 1919-2002) foi um dos arquitetos mais
relevantes da segunda geração modernista brasileira, posteriormente denominada Escola
Carioca. Em seu tempo, entre discussões sobre a validade ou não de se configurar uma
arquitetura nacional, com embates entre historicistas e futuristas, Bernardes exercitou a
liberdade de dialogar com todos os que pudessem somar ao seu ideário. Podemos antecipar
às conclusões desse texto que a presença dele nas páginas impressas dos meios de
comunicação – jornais e magazines – possuem densidades diferenciais ao longo das
décadas. Contudo o Damnatio memoriæ1, a que foi submetido Bernardes pelos críticos de
seu tempo merece de uma revisão, diante de suas contribuições, ainda válidas.

Como método para o presente trabalho, inicia-se o levantamento2 de ocorrências em


revistas de Arquitetura e em magazines, além da busca de matérias no Jornal do
Commércio(AM), a partir da base digital da Biblioteca Nacional. Como fundamento para a
condução teórica partiremos do texto de Luca (2008) sobre a importância das fontes
impressas, como periódicos, para a pesquisa histórica e Jacques Le Goff (1990), sobre o
tratamento que devemos dar aos documentos em uma pesquisa.

Em contraponto ao argumento construído traremos o mais emblemático dos


historiadores da arquitetura moderna brasileira, Yves Bruand3 (2012), que foi arauto e
cronista da produção da década de 1960, moldando ícones desse momento. O livro
“Arquitetura Contemporânea do Brasil” vai se constituir como um referendo à linguagem que
se consolida com a construção de Brasília e seus palácios4.

1 Termo forjado no Direito romano, “danação da memória”, a busca pelo apagamento de uma memória, como
ação oficial deliberada de condenação à destruição das referências de sua existência. Prática comum no Império
Romano que, em sentido contrário, levava à deificação dos imperadores.
2 Esse ensaio é parte de pesquisa de doutoramento e busca identificar a contribuição de arquitetos modernistas
– especialmente Sergio Bernardes – entre as décadas de 1960 a 1980, na região amazônica.
3 Seu livro registra a arquitetura brasileira no século XX até o ano de 1969. Quando retorna à França em 1971,
apresenta seu trabalho na Université de Paris IV, publicado em português apenas em 1981. Até então, sobre
Arquitetura Moderna Brasileira, a referência era o livro de Henrique Mindlin (1956), publicado em inglês sob o
título “Modern Architecture in Brazil” por Reihold Publishing Corporation, e o catálogo da exposição “Brazil Builds:
architecture new and old. 1652-1942” ocorrida no MOMA (Nova York, 1943). O panorama da historiografia da
arquitetura moderna brasileira possui, direta ou indiretamente, o protagonismo de Lucio Costa e uma linhagem
lecorbusiana. ”São textos distintos, como distintos são os seus autores – em formato, objetivos, influência e
amplitude – e vão participar desse processo de formação e consolidação de uma versão historiográfica canônica
da arquitetura moderna brasileira, que pode ser identificado, a partir de uma visão retrospectiva, percorrendo
todas as etapas do modelo de interpretação historiográfica” (TINEM, 2006, grifo nosso).
4 Nessa época, Bruno Zevi (Roma, 1918-2000) e outros críticos se reunirão no Congresso Internacional dos
Críticos de Arte, ocorrido entre as cidades de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, em 1959.
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Como objetivo visamos apresentar discursos silenciados que surgem nos impressos,
digamos populares, em detrimento da imagem que se constituiu em torno de Sergio
Bernardes. Nesse caminho, prospectaremos algumas obras e projetos publicados nesses
meios, visando ampliar a perspectiva de sua contribuição na Amazônia.

PERSPECTIVAS DE MODERNIDADE

É tarefa do arquiteto traduzir, no espaço e no tempo, o equilíbrio buscado,


sem o qual a evolução é massacre de indivíduos, esmagamento da
humanidade, degradação e destruição da natureza pelo sacrifício do
universal aos interesses particulares (Sergio Bernardes)

Descrevem a pessoa de Sergio Bernardes em poucas palavras: o bon vivant e o


utópico, em cada uma de suas fases da vida. Sobre esses pontos de vista existem muitas
linhas, que reafirmam essas personas. É necessário começar a revelar algo não-dito sobre
esse arquiteto, embora alguns lugares-comuns tenham que ser reafirmados, para situar o
contraponto.

Filho do jornalista Wladimir Bernardes, aos treze anos abre uma oficina de maquetes
e inicia experimentações, que percorreram da carpintaria e marcenaria aos motores de
automóveis. Com quinze anos já havia projetado uma residência para um amigo dos pais.
No ano de sua graduação em Arquitetura, em 1948, seu projeto para o Country Club de
Petrópolis foi publicado em número especial da revista L’Architecture d’Aujourd’hui,
dedicado à nova arquitetura brasileira (BERNARDES ARQUITETURA, s/d).

Assim, quando o historiador e paleógrafo Yves Bruand vem ao Brasil empreender


pesquisa para sua tese no final da década de 1960, Sergio Bernardes já havia percorrido
longo percurso no seu processo projetual e possuía sólida reputação. Contudo o autor
escreve sobre Bernardes com o título “A casa de Sergio Bernardes e as raras tentativas [de]
entrevistas a partir de 19605” (BRUAND, 2012, p. 289), passando a impressão de que o
arquiteto tenha se tornado taciturno e avesso a entrevistas.

Quando Sergio Bernardes, que tinha quarenta anos na época, pensou, em


1960, em instalar seu escritório de arquitetura e sua casa numa ponta
rochosa da Avenida Niemeyer, em plena costa selvagem da metrópole
carioca, sua reputação já estava solidamente estabelecida por causa das
várias casas que construiu no Rio e em Petrópolis (BRUAND, p. 289, grifo
nosso)

5 Em 1968, Sergio Bernardes está em Nova York (BERNARDES, 2014).


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A simplória definição de arquiteto de casas parece não ter suporte em suas fontes. O
autor construirá o texto da pesquisa em revistas, que não são poucas no período de sua
coleta, tanto nacionais quanto estrangeiras, para apoiar o discurso sobre a produção de
Sergio Bernardes (Tabela 1). Também, pode-se afirmar, não são as únicas revistas que
tratam da obra do arquiteto no período.

Tabela 1: Registros de obras de Sergio Bernardes em revistas, segundo Yves Bruand.


REVISTA OCORRÊNCIA OBSERVAÇÕES

Acrópole 1956 a 1963 Editada entre 1938/1971

Habitat 1952 a 1956 Editada entre 1951/1965.


Criada por Lina Bo e Pietro Maria Bardi
Módulo 1955 e 1965 Editada entre 1955/1965. Registro de Bernardes na edição
inaugural, essa revista foi fundada por Oscar Niemeyer
Arquitetura e Engenharia 1954 a 1958 Compunham o Conselho Diretor Affonso Reidy, Sylvio
Vasconcelos, Álvaro Vital Brasil, entre outros
Arquitetura e Decoração 1954 e 1955 Editada a partir de 1953

Brasil-Arquitetura 1953 e 1954 Editada entre 1953/1957


Contemporânea
Architecture D’Ajourd’Hui 1952 Duas edições em 1952

Aujour D’Hui edição nº 1 Editada a partir de 1955

Architectural Review 1953 e 1954 Editada a partir de 1896

Architectural Forum6 vol. 114, 1961 Editada entre 1892/1974


Zodiac7 ---

Por seu turno, Henrique Minldlin (1999)8 já havia antecipado algumas dessas
residências, como a casa de Jadir de Souza (1951), casas de campo de Guilherme Brandi
(1952) e a icônica residência de Lota de Macedo Soares (1953). Bruand reafirma Bernardes
como arquiteto de casas e ignora em sua produção algumas obras relevantes, como o
Sanatório de Curicica/RJ (1952), o projeto urbanístico da Cidade Jardim Eldorado, em
Contagem/MG9 (1954), os pavilhões de Volta Redonda, em São Paulo (1954), o de São

6 “The Architectural Forum began in 1892 as The Brickbuilder. (Volumes under that name are listed separately.) It
was renamed The Architectural Forum in 1917 with Volume 26, continuing the Brickbuilder's volume numbering.
The first copyright-renewed issue is April 1932 (v. 56 no. 4). The first copyright-renewed contribution is from
November 1932. It ceased publication in 1974 ” (OCKERBLOOM, s/d), se caracterizando como a mais antiga
revista de Arquitetura, entre as citadas, porém, não a mais longeva.
7 “Zodiac: Rivista Internazionale dell’architettura contemporanea”, não foi possível encontrar outros dados
referentes a esta publicação.
8 Na nota do autor, ele destaca que o livro foi concebido “como um suplemento ao livro Brazil Builds (...) decidiu-
se mais tarde incluir aqui alguns dos exemplos mais importantes ali mostrados anteriormente” (MINDLIN, 1999,
p. 21).
9 Bairro construído para a Companhia Importação, Exportação e Vendas S.A (COMPAX), localizado no
município de Contagem/MG, à época, Belo Horizonte. Em 1912, sob o mesmo parâmetro concebido por
Ebenezer Howard, foi implantado em São Paulo a empresa "City of São Paulo Improvements and Freehold Land
Company Limited", responsável pela urbanização de importantes bairros paulistanos, como Jardim América,
Anhangabau, Pacaembu, Alto de Pinheiros, Bela Aliança, Lapa, Pirituba e City Butantã. Alguns destes, inclusive,
foram projetados pelos urbanistas ingleses Barry Parker e Raymond Unwin (Fonte:
https://saopauloantiga.com.br). No Rio de Janeiro, em 1930, Alfred Agache propôs que fossem construídas duas
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Cristóvão (1957) e Pavilhão Brasileiro da Feira Internacional de Bruxelas (1958), registradas
em suas fontes, como parte do seu processo10. Na clara opção discursiva, percebemos que
a desatenção a Bernardes é reveladora, em um rasgo de sinceridade que surge na escrita
de Bruand.

claro que realizamos essa seleção com a máxima objetividade, mas seria
presunçoso admiti-Ia como inteiramente justificável num futuro mais ou
menos remoto, pois temos consciência de que os conceitos por nós
emitidos estão muito influenciados por nossas preferências pessoais
(BRUAND, 2012, p. 8).

Outras posições são bem definidas para o historiador, como sua perspectiva sobre
“moderno”, que levará à escolha de “contemporâneo” para sua publicação.

Não aceitamos o termo "arquitetura moderna", empregado por numerosos


autores para designar a arquitetura contemporânea ou, melhor, um certo
tipo de arquitetura contemporânea: aquela que procura expressar-se numa
linguagem nova, tanto em termos técnicos, quanto em termos estéticos. A
oposição entre uma "arquitetura moderna" e uma" arquitetura tradicional" é
perigosa, visto que o limite entre ambas pode variar de acordo com o ponto
de vista da pessoa que emprega tais termos; contudo o adjetivo
"moderno" não é de modo algum conveniente, pois contém apenas uma
noção de tempo aplicável ao conjunto da produção de uma época e não
unicamente a uma de suas partes; substituir sua acepção cronológica
por um elemento de valor é um contrassenso, hoje infelizmente muito
comum. Entretanto, já que o termo "arquitetura moderna" tem sido
frequentemente empregado nos debates teóricos entre arquitetos ou em
palestras por eles feitas, não foi eliminado totalmente; pode ser encontrado
ocasionalmente em nosso texto com o significado que lhe foi atribuído por
aqueles que o usam, mas sempre entre aspas, a fim de ressaltar as
restrições que fazemos a esse respeito (BRUAND, 2012, p. 13, grifos
nossos).

Soma-se ao contexto de indefinições conceituais a posição, por exemplo, de Lucio


Costa, que não se admitia como “moderno”, preferindo o termo “futurista” como mais
adequado. Assim, quando Bruand grafa “moderno” em relação à obra de Bernardes, é
claramente demeritório. A exemplo, quanto ao uso da taipa: “hoje em dia pode ser
encontrado em certas construções baixas, não tendo Sergio Bernardes hesitado em dar-lhe

cidades-jardim, uma na Ilha do Governador e outra em Paquetá. Nas conferências que fez no Rio, em 1927,
discorreu sobre o modelo.
10 A exemplo do Tropical Hotel Tambaú, João Pessoa/PB, em fase de finalização à época.
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uma versão moderna, em algumas das residências que projetou” (BRUAND, 2012, p. 13), e
prossegue afirmando que a “falta de preconceitos teóricos e de uma linha bem definida, fruto
de uma abertura de espírito e uma disponibilidade tão completas que às vezes beiravam a
utopia e a dispersão” (IDEM, ibidem, p. 289). A insubordinação a um padrão, a
experimentação, que foram elementos caros para Sergio Bernardes, eram vistos de forma
frágil pelo historiador, independentemente do alcance do resultado, e sempre utilizando
como parâmetro comparativo a arquitetura paradigmática positivista. Bruand segue sobre
Bernardes:

o estilo desses trabalhos era bastante heterogêneo: a frequente retomada


das formas inventadas por Niemeyer estava lado a lado com pesquisas de
geometria pura mais pessoais, sem que se pudesse notar uma evolução
cronológica precisa. A preferência absoluta manifestada pelas técnicas
modernas não levava a nenhuma especialização e o arquiteto passava, sem
constrangimento, do concreto armado, aos vários tipos de estrutura
metálica, numa série de tentativas bastante ecléticas; os materiais
tradicionais surgiram frequentemente, junto com materiais mais recentes,
como meio de acabamento e estes ou aqueles, conforme o caso, eram
deixados aparentes, no estado bruto, ou eram disfarçados com
revestimentos. Assim, os traços comuns ao conjunto resumiam-se numa
nítida paixão pelas experiências de todo tipo e uma vontade marcante de
fazer uma construção econômica (BRUAND, 2012, p. 289).

Verificamos nos subtextos desse autor certo desconforto confesso, expresso em


suas escolhas. Remetendo a Jacques Le Goff, somos alertados da vulnerabilidade na
crença sobre a verdade inequívoca dos documentos, o que caracteriza Bruand.

Quer se trate de documentos conscientes ou inconscientes (traços deixados


pelos homens sem a mínima intenção de legar um testemunho à
posteridade), as condições de produção do documento devem ser
minuciosamente estudadas. As estruturas do poder de uma sociedade
compreendem o poder das categorias sociais e dos grupos dominantes ao
deixarem, voluntariamente ou não, testemunhos suscetíveis de orientar
a história num ou noutro sentido; o poder sobre a memória futura, o
poder de perpetuação deve ser reconhecido e desmontado pelo historiador.
Nenhum documento é inocente. Deve ser analisado. Todo o documento é
um monumento que deve ser desestruturado, desmontado. O historiador
não deve ser apenas capaz de discernir o que é "falso", avaliar a
credibilidade do documento, mas também saber desmistificá-lo. Os
documentos só passam a ser fontes históricas depois de estarem

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sujeitos a tratamentos destinados a transformar a sua função de
mentira em confissão de verdade. (LE GOFF, 1990, p. 110, grifos nossos)

A pesquisa empreendida pelo historiador francês, apoiando-se em registros revistas


especializadas diante da falta de uma historiografia consolidada, é extremamente relevante
pois dá início ao método aplicado na Ecole des Annales11 nesse contexto. Contudo o autor,
nessa empreitada, desconsiderou a possibilidade de fontes mais acessíveis à época: jornais
e revistas em circulação diária ou semanários, também de acordo com a tradição francesa.

Na década de 1970, ainda era relativamente pequeno o número de


trabalhos que e valia de jornais e revistas como fonte para o conhecimento
da história do Brasil. A introdução e difusão da imprensa no país e o
itinerário de jornais e jornalistas já contava com bibliografia significativa,
além de amiudarem-se as edições fac-similes e catálogos, dando conta de
diários e revistas que haviam circulado em diferentes partes do território
nacional (LUCA, 2008, p. 111).

Buscando a percepção da obra de Sergio Bernardes nesse contexto, o arquiteto


aponta para experimentações num campo ampliado, sem se preocupar com a adequação à
qualquer concepção de moderno, estabelecendo diálogos com produções e arquitetos
diversos, além dos brasileiros12, como Richard Buckminster Fuller (1895-1988), o
Archigram13 ou os metabolistas japoneses14, na ponta de lança da crítica da modernidade no
pós-guerras. Os hiatos deixados nos trechos em que Bruand trata sobre Bernardes, assim
como a construção discursiva foram motes importantes para o cruzamento e
reconhecimento de outras fontes, igualmente postas sob suspeição, por método.

11 A Escola dos Annales surge a partir do período entre-guerras e se propunha à produção de uma historiografia
não positivista, registrada nos escritos dos Annales d'histoire économique et sociale. Marcam as três gerações
da Escola dos Annales a inserção dos processos de longa duração e o estudo das mentalidades; a geração
intermediária vai se destacar pela compreensão do tempo como um agente intrínseco da História, não dela
dependente: a História como filha do seu tempo; a terceira geração, a partir do fim da década de 1960, também
conhecida como Nova História, possui como ícones Jacques Le Goff e Pierre Nora, estabelecendo fortes nexos
com outros campos do conhecimento.
12 Oscar Niemeyer, em 1983, reafirma essa relação entre os arquitetos modernos brasileiros no seguinte trecho:
“Era um ponto de reunião e a ele compareciam constantemente o Joaquim Cardoso, Vinícius de Moraes, Luiz
Jardim e outros. Tínhamos o escritório ao lado do Sergio Bernardes e com ele, Helio Uchoa, Reidy, José Reis,
Jorge Moreira, Walter Lopes, Galdino Duprat, com Di Cavalcanti, repartíamos como irmãos nossas alegrias e
tristezas. Mas o problema da arquitetura sempre nos empolgava. Era a nossa pequena cruzada de arquitetos. ”,
Revista Manchete, edição 1629, 1983, p. 46.
13 Archigram, grupo de arquitetos ingleses formado por Peter Cook, Ron Herron, Warren Chalk, Dennis
Crompton, David Greene e Mike Webb.
14 Em 1960 é criado o Grupo Metabolistas, com Kisho Kurokawa, Kiyonori Kikutake, Fumihiko Maki, Masato
Otaka entre outros. Rubem Braga, comentando sobre a Bienal de São Paulo de 1957 aponta: “Assistindo, outro
dia, à projeção de fotografias coloridas de um grande arquiteto japonês que nos visitou, Sergio Bernardes
comentou baixinho, a certa altura: ‘Ih, esse cara aí vai dar muita cria no Brasil...’” (BRAGA, Rubem. A pintura
começa aos 60 e outras reflexões entre goteiras. In Revista Manchete, ed. 286, p. 56, 1957).
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DOCUMENTOS E NOTÍCIAS

A obra de Sergio Bernardes carrega os sonhos e a leveza da infância:


um arquiteto, filósofo e humanista (Pedro Bloch, 1999)

Para além dos discursos teóricos e a produção de bases conceituais, Sergio


Bernardes apostou a sua vida no seu fazer. Escreveu em 196815 carta definitiva que aponta
seus caminhos e inquietudes:

Pretendo dedicar minha vida, à minha obra, pela minha terra, pela minha
gente! A escala do que pretendo fazer é muito grande, o que torna
meus problemas muito pequenos. Representei muitos anos, no mesmo
teatro a mesma peça com os mesmos cenários, com o mesmo público, com
os mesmos artistas, com a mesma estrela. Estou farto de representar. Serei
autenticamente eu e minha sensibilidade. Nego que o passado participe do
presente. Rompo num estado de absoluta coerência comigo mesmo, com a
instituição do casamento. Ninguém é imprescindível a ninguém, só a si
mesmo. (BERNARDES, 2014)
Figura 1: Edição Especial “Rio do Futuro”, 1965

Fonte: Revista Manchete.


Atento a questões abrangentes, Bernardes desenvolve o projeto Rio do Futuro
(MANCHETE, 1965), que terá edição especial da Revista Manchete (Figura 1). Este

15 Carta de despedida para sua ex-esposa, enviada de Nova York, datada de 2 de novembro de 1968, lida no
filme “Bernardes” (2014), de onde foi transcrito o trecho.
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semanário carioca o insere, já em 195216, como um grande arquiteto brasileiro, ao lado de
Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Irmãos Roberto, Álvaro Vital Brasil, Jorge Moreira, Alcides
Rocha Miranda e Aldary Toledo. No artigo intitulado “Brasil potência arquitetônica” há um
trecho atribuído a Sergio Bernardes:

havendo liberdade de forma e de estilo, todos os detalhes de valor da


arquitetura antiga podem ser aproveitados nas construções modernas,
naturalmente dentro de uma técnica e uma estética determinada. O
emprego de tais detalhes, contudo, não significa inspiração nem tendência
saudosista, mas uma contribuição do que era belo e necessário à função de
uma residência. E que não poderá ser ultrapassado jamais (MANCHETE,
1952).

Nas várias edições desta revista é possível coletar grande número de projetos, no
mesmo período da pesquisa de Bruand, como aeroportos17, edifícios residenciais18 e
conjuntos residenciais19, galerias de arte20, clubes21, planos industriais22, conjunto hoteleiro23
e de turismo entre outros e tantos já citados anteriormente, ampliando a abrangência de sua
atuação.

Também é possível identificar pontos de vista de cronistas que constroem como


imagem de um “duelo novaiorquista pela casa mais moderna e mais bonita – Sergio
Bernardes versus Lucio Costa – esboça-se, prometendo reduzir a uma simples escaramuça
financeira o campeonato arquitetônico da Samambaia, de Correias e adjacências serranas”
(PONGETTI, in MANCHETE, 1954, p.3). O que existe, de fato, é uma comparação – bem
distante de competição – entre eles. Sobre as residências de Niemeyer e Bernardes, tidas

16 Semanário criado por Adolpho Bloch, editado entre 1952 e 2000.


17 Na Revista Manchete (edição 660, 1964, p. 115) há o registro de que “em 1960, o ex-Presidente Juscelino
Kubitschek enviou ao Congresso mensagem solicitando a abertura de crédito especial de Cr$ 2 bilhões para
construção de um moderno aeroporto em Brasília, projetado por Sergio Bernardes. Somente agora a mensagem
chegou às mãos do Deputado Arnaldo Nogueira, relator, que se dirigiu ao ministro da Aeronáutica, Brigadeiro
Nelson Vanderlei, sugerindo que ele solicite o aumento daquela verba já que hoje insuficiente para custear a
obra”.
18 Murtinho Nobre (Copacabana/RJ, 1954).
19 Revista Manchete, edição 573, de 1963, apresenta dois edifícios residenciais de pequeno porte, além da casa
de Sergio Bernardes, da avenida Niemeyer, denominados “conjuntos residenciais” em grande matéria assinada
por Ricardo Menescal sob o título “O Brasil cresce moderno”.
20 Petite Galéry (1960), em Ipanema, Rio de Janeiro/RJ (Revista Manchete, edição 446, 1960, p. 9), foi um
espaço cultural importante, tendo filial em São Paulo/SP inaugurada um ano depois (Revista Manchete, edição
504, 1961, p. 52).
21 Bandeirantes Praia Clube (1962), recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro/RJ. (Revista Manchete, edição
537, 1962, p. 34-36), Clube de Regatas Jaó (IDEM, edição 776, 1967)
22 Cidade Industrial da White Martin, no Nordeste (Revista Manchete, edição 732, 1966, p. 108), Companhia
Baiana de Cervejas (IDEM, edição 770, 1967, p. 110), Centro Industrial de Aratu (IDEM, edição 778, 1967, p.
100)
23 Conjunto Hoteleiro Alpha, Guarapari/ES (1967)
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como “autênticas obras de arte”, tem-se como registro que “o papa da arquitetura moderna,
Le Corbusier, declarou que a casa construída por seu colega brasileiro Sergio Bernardes era
‘digna de um livro’. Mas seu arquiteto e morador desejava, antes de tudo, que ela fosse
digna do próprio Sergio Bernardes” (MANCHETE, 1965, p. 56). Entre os principais nomes da
arquitetura brasileira, os temas prementes da temática produziam diálogo produtivo,
colaborativo ou mesmo elogioso.
Brasília é uma das primeiras cidades que representam uma tese
verdadeiramente humana e numa escala mal-entendida, muitas vezes, mas
necessária, dentro de uma cidade administrativa: a noção das distâncias pra
que não se tenha a monotonia do ‘perto’. É uma cidade em que ainda não
entrou o feio, o mau-gosto. Ela é a marca do Brasil, que se formou
conhecido pela audácia de mudar a Capital. (BERNARDES, in MANCHETE,
1963, p. 24)

As questões urbanas da pauta de Sergio Bernardes não foram tratadas na


perspectiva progressista, nem como espaço de negação ou concorrência, visto que sua
perspectiva, sob o prisma de Yves Bruand, seria organicista. Na verdade, Bernardes dialoga
com a tecnotopia, claramente traduzido em seu Rio do Futuro, mas também possui um
ponto de vista humanista, que se apresenta na sua relação com a favela do Vidigal, vizinha
da sua ovacionada residência. Não sendo uníssono com a postura técnica da época, de
remoções e construção de conjuntos, antecipa a ideia de requalificação de favelas.

Propôs também o arquiteto Sergio Bernardes que geólogos, engenheiros de


mecânica de solo e engenheiros estruturais estudem aquelas áreas,
projetando pequenas obras que, pelo desvio das águas pluviais, façam a
defesa dos pontos mais vulneráveis da área estudada, justificando: Dizem
que as obras de segurança e desvio de águas custam fortunas
monumentais, não é verdade, Na favela do Vidigal, onde passei a maior
parte do meu tempo naqueles dias do temporal, um grupo de pessoas, com
a minha ajuda e a do meu filho, construiu valas que serviram de desvios
para os cursos d’água em prazo relativamente curto e sem o emprego de
nenhum dinheiro. Estas obras de emergência determinam um excelente
índice de segurança para as habitações dessa favela e, até agora, não
houve nenhum desabamento ali (BERNARDES, in MANCHETE, 1966, p.
32).

O perfil editorial da Revista Manchete expressa mudanças importantes em meados


da década de 1960: a profusão de projetos apoiados em financiamentos e programas de
incentivo fiscal (SUDENE, BNH e outros), cadernos especiais com narrativa
desenvolvimentista – onde a arquitetura moderna assume ainda maior protagonismo e o
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início da atenção à produção dos arquitetos paulistanos. O nome de Sergio Bernardes é
associado à imagem qualitativa de projetos e obras, com expressões com o aposto “projeto
de Sergio Bernardes24” ou “amigo de Sergio Bernardes”25.

SOBRE IMAGENS DA AMAZÔNIA

Utopia é pensar que tal plano será realizado amanhã ou daqui a um século.
Realismo é saber que pode ser feito (Sergio Bernardes, 1965)

É preciso avançar para além do recorte temporal de Bruand para que possamos
identificar a presença de Bernardes na região Norte. Nesse período já vislumbramos obras
dele em Goiás, Bahia e Paraíba, sob o aporte financeiro das Superintendências de
Desenvolvimento (SUDECO e SUDENE), isso é, com efetivo vínculo com a política federal
de ocupação do Brasil Profundo. Cabe registro de que, em meados da década de 1970,
Sergio Bernardes constituirá o Laboratório de Investigações Conceituais/LIC, onde várias
temáticas desenvolvimentistas serão pautadas e desenvolvidas.

Por conseguinte, nessa época, a Manchete foi importante meio de difusão da


imagem de uma Amazônia a ser explorada “em meio aos verdes desertos” (MANCHETE,
1966, edição 764). O diário amazônico Jornal do Commércio também foi importante difusor
dos projetos do período desenvolvimentista26, no qual Sergio Bernardes e outros arquitetos27
irão propagar suas obras.

Nesse sentido, as revistas e jornais apontam a atualidade das ocorrências, o que


revela obras em construção, assim como edifícios que não foram construídos (mas tratados
como propaganda) especialmente, mas não exclusivamente, na Amazônia. “Daí o amplo rol
de prescrições que convidavam à prudência e faziam com que alguns só se dispusessem a
correr tantos riscos quando premidos pela falta absoluta de fontes” (LUCA, 2008, p. 116). O
papel dos periódicos como testemunhas das transformações das cidades, no nosso caso,
da Região Amazônica, defendido por Luca (2008) tem sido fundamental nestas
prospecções. Em poucos impressos foram revelados achados, que se somam às fontes
documentais, como Muriel (1980) e Bernardes (2017), através dos quais identificamos

24 Se utiliza desse expediente o Touring Clube do Brasil, a Companhia Industrial de Filmes (DUFIL).
25 Jacques Martins, diretor-geral da Air France para a América do Sul, primeiro francês a receber a Ordem do
Rio Branco, em 1967, possui esse atributo em matéria da Manchete, entre outros.
26 Para exemplo, o Jornal do Commércio fixa como manchete principal da edição 20029, de 18 de fevereiro de
1969, “Determinação do Governo é de ocupar a Amazônia a todo custo”.
27 Destacamos entre esses Severiano Mário Vieira Porto e seu escritório com Mário Emílio Ribeiro, com sedes
em Manaus e Rio de Janeiro.
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projetos e/ou obras na região norte, nas cidades de Belém/PA, Manaus/AM, Boa Vista/RR e
Caracaraí/RR (Tabela 2), a partir do final da década de 1960.

Tabela 2: Registros de obras de Sergio Bernardes na Região Norte.


ESTADO REGISTRO ANO
AMAZONAS Hotel Tropical de Manaus 1968

Rótula dos Tarumãs 1974

Projeto de ocupação da Amazônia na região dos igarapés s/d


PARÁ Companhia de Telefones do Município de Belém – COTEMBEL 1968

Terminal rodoviário de cargas da região metropolitana de Belém 1981


RORAIMA Centro Cívico de Caracaraí 1976

Mercado Municipal de Caracaraí 1976

Estação rodoviária de Caracaraí 1976

Prefeitura Municipal de Boa Vista 1976

Praça Cívica de Boa Vista 1976


Fontes: MURIEL (1980) e BERNARDES (2017).

O Hotel Tropical de Manaus (Figura 2) era um, dentre vários hotéis que constituiriam
a rede denominada Tropical, que possuía a Viação Aérea Riograndense (VARIG) como
principal acionista, que inicia com a implantação do Hotel Tambaú em João Pessoa/PB28
(1962-1971). Entre 1969 e 1971, destacamos as matérias do Jornal do Commércio:
Hotel na selva amazônica tem seguro financiamento
Ao retornar de Nova Iorque, o arquiteto Sergio Bernardes anunciou que o
seu revolucionário projeto de construção de um hotel em plena selva
amazônica, a 7 quilômetros de Manaus, já tem financiamento no valor de
US$ 15 milhões, devendo ficar pronto dentro de 27 meses. (...)
Segundo o arquiteto, o ‘Hotel de Manaus’ pertence a um consórcio brasileiro
lid[e]rado pela Varig, sendo o primeiro no mundo a não ter janelas, nem
equipamento de ar condicionado, com seus 432 quartos situados acima das
copas das árvores, numa altura de 150 metros.
O prédio ficará coberto por duas campânulas de vidro (uma de cristal
térmico, outra de vidro temperado) com um diâmetro de 300 metros. A luz
do sol é filtrada através dos vidros, deixando passar apenas os raios
infravermelhos, enquanto o calor será anulado pela reflexão de modo a
permitir a temperatura ambiente em torno de 20 graus. A refrigeração será

28 Sobre os outros hotéis da rede, tem-se que “o arquiteto carioca Sérgio Bernardes (1919-2002) responsável
por vários projetos, como o Tropical Hotel de Recife (1968-não construído), o Tropical Hotel Tambaú (1962) e o
Tropical Hotel de Manaus (1963-primeira proposta, 1970-segunda proposta).”; “A princípio, a Companhia passou
a arrendar hotéis já construídos, como foi o caso do Hotel da Bahia, em Salvador e o Hotel Internacional dos
Reis Magos em Natal, ambos com feições notadamente modernistas e projetados por arquitetos de formação
moderna.” (PAIVA, R. ; DE PAULA, P. ; MACIEL, V. 2016, p. 1 e 4, respectivamente).

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garantida com o aproveitamento das águas dos igarapés (média de 12
graus), num original processo de circulação de ar. O financiamento foi
obtido junto ao ‘Development Financial Corporation’, a juros baixos. (Jornal
do Commércio, 1969, edição 20009)
Figura 2: Maquete do Hotel Tropical de Manaus, primeira versão (1963) e segunda versão (1970).

Fonte: Projeto Memória – Bernardes Arquitetura.

Paris vê o Hotel Tropical


(...) Sergio Bernardes tratou em Paris do projeto já aprovado para a
construção de um grande hotel em Manaus – Hotel Tropical – localizado na
Ponta Negra. O seu orçamento está previsto em 300.000 dólares. Sua área
será de 70.000 metros quadrados e terá 432 quartos.
O arquiteto participou de várias reuniões sobre os pontos básicos do projeto
e ainda vai acertar com a VARIG, que detém 60% das ações, os últimos
detalhes do empreendimento. (Jornal do Commércio, 1971, edição 20669)

O colunista social Ibrahim Sued registra, entre amenidades: “Por falar no arquiteto
Bernardes, ele fez uma conferência para colegas franceses e os deixou deslumbrados. Foi
sobre seu projeto de um hotel na selva amazônica. O projeto é ousadíssimo e os franceses
ficaram de boca aberta” (MANCHETE, 1971, p. 108). Nesse retorno ao Rio de Janeiro, após
o afastamento voluntário da família, traz na bagagem o esforço de Bernardes em viabilizar,
através de sua rede de conhecimentos, a implantação da referida rede de hotéis.

Sobre o projeto em Caracaraí, como dito anteriormente, não existem, até o


momento, dados documentais que confirmem a autoria. Contudo, vários elementos
técnicos, construtivos e projetuais remetem a Bernardes, como o uso de cobertura

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auto-portante, introdução da água como elemento da arquitetura e a modulação de
sua planta circular (Figura 3).
Figura 3: Prefeitura de Caracaraí/RR, projeto e execução do fim da década de 1970.

Fonte: Portal Roraima 1.

Retornando a folhear o Jornal do Commércio, uma nota, datada de 1969 chama a


atenção:

Vinte e três pavimentos, fachada em concreto e vidro ‘ray-ban’, assim é o


prédio, em fase final de construção, que o Banco da Amazônia ergue na
cidade de Belém, para servir à agência central. O projeto e autoria da
equipe do arquiteto Sergio Bernardes. Na cobertura haverá um heliporto,
disporá de subestação elétrica própria e um sistema de resfriamento indireto
total. Outro aperfeiçoamento a ser empregado é a situação da caixa-forte,
em tal disposição que permitirá a entrada do próprio carro blindado
(JORNAL DO COMMÉRCIO, edição 20006, 1969, p. 8, grifo nosso)

Esse edifício, inexistente nas referências documentais, surge como um enigma, visto
que a descrição de seus atributos e o registro taxativo de autoria indicam serem claramente
confiáveis29 e, verificado, numa visita breve in loco a existência dos itens listados na nota do
Jornal do Commércio, como o heliporto, algo improvável para as demandas de um projeto
na década de 1970 em Belém. Ademais, importante apontar, o Banco da Amazônia se

29 Para tanto já se iniciaram contatos com as instâncias referentes no Banco da Amazônia, em Belém/PA.
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constitui em uma instância de fomento e se insere como agente financiador das políticas
públicas para a região, desde os anos 194030, como instância de incentivo a um novo
capítulo da economia gomífera e na consolidação do papel de agente financeiro do Fundo
de Investimento da Amazônia (FINAM), administrado pela Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM).

Figura 4: Edifício-sede do Banco da Amazônia, Belém/PA, década de 1970.

Fonte: Biblioteca Digital do IBGE

Portanto, além dos elementos de caráter revolucionário para a época, listados


anteriormente e diante da biografia profissional de Sergio Bernardes, não seria
incongruência considerar a autoria o Edifício-Sede do Banco da Amazônia (Figura 4), em
Belém como sua. Acreditamos que identificaremos outros registros como obras construídas,
na medida em que debruçarmos sobre outras fontes31 como o NPD-UFRJ e as relacionadas
aos respectivos órgãos locais.

30 Trata do período da promoção de imigração nordestina, dos ditos Soldados da Borracha, em plena 2ª Guerra
Mundial, no cômputo dos Acordos de Washington. Criado pelo Decreto-Lei nº 4.451, de 9 de julho de 1942 com o
nome de Banco de Crédito da Borracha, passando a se chamar Banco de Crédito da Amazônia S.A, em 1950;
Banco da Amazônia, em 1966 e recuperando o uso da sigla BASA a partir de 2019. Dados disponíveis em
https://www.bancoamazonia.com.br.
31Inclusive documentais, do acervo de Sergio Bernardes, sob a guarda do Núcleo de Pesquisa e Documentação
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NPD-FAU-UFRJ), tão logo
o arquivo esteja acessível, visto ter, o NPD, sofrido consequências de um sinistro de incêndio ocorrido em 20 de
abril de 2021. A jornalista Kykah Bernardes (2018) escreveu sobre o acervo de Bernardes no NPD-UFRJ.
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ENTRE LINHAS E TRAÇOS
É necessária atenção às linhas dos projetos e escritas nesse período, cientes que
muito há por descobrir. A contribuição de Sergio Bernardes foi além do que a arquitetura
que ele projetou, mas foi traçada a partir de mais de quarenta anos de estudos para a
proposição de nova divisão político-administrativa, baseada na hidrografia, a partir dos quais
planejou um novo modelo de desenvolvimento e preservação (BECKHEUSER, 2020),
denominado Modelo Hidráulico/Projeto Brasil, desenvolvido no LIC.

No campo da arquitetura, entre os trabalhos de Bernardes conhecidos na região


temos o Hotel Tropical de Manaus (com vasta documentação, embora não edificado) e o
Centro Cívico de Caracaraí/RR (sem comprovação documental). Em Belém, tem-se o
registro documental do edifício da COTEMBEL (ainda não identificado) e, soma-se a
esse, o edifício-sede do Banco da Amazônia. A dificuldade metodológica da
pesquisa se estabelece pela imprecisão quanto aos registros de projetos não
edificados e de obras sem documentos que deem aval à autoria.
A necessidade de contrapor evidências a documentos é fundamental, contudo
os impressos apontam para trilhas de descobertas importantes, diante da dificuldade
de acesso ao pesquisador da região às fontes documentais.

É inegável que estamos tateando o reconhecimento da contribuição do gênio de


Sergio Bernardes na Região Norte, contudo o presente artigo já apresenta dados inéditos e
fornece subsídios importantes para aprofundamento e pesquisas futuras.

REFERÊNCIAS
ARQUITETURA E ENGENHARIA. Rio de Janeiro. Nº 31, 1954.
BECKHEUSER, João Pedro. Sergio Bernardes: sob o signo da aventura do humanismo. São Paulo:
Revista Projeto, 2 de abril de 2020. Disponível em https://revistaprojeto.com.br/acervo/sergio-
bernardes-sob-o-signo-da-aventura-e-do-humanismo-por-joao-pedro-backheuser/ Acesso jul 2021.
BERNARDES ARQUITETURA. Projeto Memória: Sergio Bernardes. (site). Disponível em
https://www.bernardesarq.com.br/projeto-memoria/ Acesso ago 2021.
BERNARDES, Kykah. Memória da arquitetura moderna brasileira. Sobre a conservação dos
acervos de Sergio Bernardes e outros arquitetos cariocas. Drops, São Paulo, ano 19, n. 132.02,
Vitruvius, set. 2018 Disponível em https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/19.132/7102.Acesso
jul 2021.
BERNARDES, Kykah. Sergio Bernardes-pesquisa sobre projetos em Roraima (mensagem
pessoal). Mensagem recebida por [email protected] em 18 set. 2017.
BERNARDES, Kykah; CAVALCANTI, Lauro(orgs). Sérgio Bernardes. Rio de Janeiro: Artviva Editora,
2010.

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BERNARDES. Thiago Bernardes (argumento); Direção Gustavo Gama Rodrigues e Paulo de Barros
(direção). Rio de Janeiro: Rinoceronte Produções, 2014. 92 min., som, formato digital.
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2012.
JORNAL DO COMMÉRCIO. Manaus/AM. 1960-1980. Disponível em
http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital. Acesso jul 2021.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
LUCA, Tania Regina de. História dos,nos e por meio dos periódicos. In PINSKY, Carla
Bassanezi (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008, v. 1, p. 111-153.
MANCHETE. Rio de Janeiro,1952-1971. Disponível em http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital.
Acesso jul 2021.
MANCHETE. Rio de Janeiro:Bloch Editores, 17 abr 1965. Número Especial: Rio do Futuro, nº 678.
MINDLIN, Henrique E. Arquitetura no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999.
MURIEL, Emanuel. Contemporary Architects. London: The MacMillian Press Ltd, 1980.
OCKERBLOOM, John Mark. The Architectural Forum. s/d. Disponível em
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USP. Índice de Arquitetura Brasileira 1950/70. São Paulo: FAU-USP/Biblioteca, 1974: 671 p.
Disponível em https://bibfauusp.files.wordpress.com/2014/07/c3adndice-de-arquitetura-brasileira-
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