Trata-Se Do Realismo - GEORG LUKÁCS

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Georg Lukács

Trata-se do realismo!1

No seu tempo, a burguesia revolucionária travou, em favor da sua


classe, uma luta violenta, recorrendo a todos os meios, até mesmo aos
da literatura. O que é que tornou os restos da cavalaria tão ridículos, aos
olhos de toda gente? O Dom Quixote de Cervantes. O Dom Quixote foi
a arma mais poderosa nas mãos da burguesia na sua luta contra o feuda-
lismo, contra a aristocracia. Ao proletariado revolucionário bastaria, pelo
menos, um único pequeno Cervantes (risos) que pudesse lhe fornecer uma
arma semelhante (risos, aplausos).
(G. Dimitrov, Discurso pronunciado por ocasião de uma sessão anti-
fascista, realizada na Casa dos Escritores, em Moscou).

O debate sobre o expressionismo na revista Das Wort apresenta


para o participante tardio um certo grau de dificuldade; muitos
defenderam apaixonadamente o expressionismo. Mas desde o
momento em que se tornou necessário afirmar concretamente qual
era o escritor expressionista modelo, isto é, quem merecia, afinal,

1 Publicado na revista Das Wort, Moscou, v.3, n.6, 1938, sob o título Es geht um den
Realismus!. Incluído no v.4 das Obras de Georg Lukács, Essays über den Realismus.

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ser chamado de expressionista, as opiniões começaram a divergir


de tal forma que não surgiu nenhum nome que não fosse discutível.
Chegamos a nos perguntar – precisamente quando se lê os apaixo-
nados discursos de defesa – se existiram realmente expressionistas.
Como a nossa intenção aqui não é a de discutir o valor de
determinados escritores, mas sim debater princípios na evolução
da literatura, o esclarecimento deste ponto não assume para nós
relevância especial. Para a história da literatura há, sem dúvida,
um expressionismo, como corrente, com os seus autores e os seus
críticos. Nas observações que farei a seguir, limitar-me-ei a questões
de princípio.

Para começar, uma pequena questão prévia: trata-se, neste caso,


da oposição entre a literatura moderna e a clássica (ou mesmo do
classicismo), como vários escritores ressaltam, em especial quando
fazem da minha atividade crítica o objeto dos seus ataques? Vejo
que essa questão é fundamentalmente incorreta. A ela subjaz uma
identificação da arte do presente com a linha de evolução de cer-
tas correntes literárias, evolução essa que se processa a partir do
naturalismo em dissolução e do impressionismo, até o surrealismo,
passando pelo expressionismo. Esta teoria é formulada contun-
dentemente e apodítica no artigo de Ernst Bloch e Hanns Eisler
publicado na revista Neue Weltbühne e referido por Peter Fischer.
Quando tais escritores falam da arte moderna, aparecem, então,
como representantes dessa arte moderna, exclusivamente autores
desta linha de evolução a que fizemos referência. Não queremos,
por agora, emitir qualquer juízo de valor. Perguntamos apenas: esta
teoria pode ser considerada fundamento da história da literatura
de nosso tempo?
Em todo caso, existe também uma outra concepção. A evolução
da literatura – especialmente no capitalismo, sobretudo na época
de sua crise – é um fenômeno extraordinariamente complexo. No
entanto, podemos distinguir, grosso modo, na literatura do nosso
tempo, três grandes círculos que, naturalmente, se entrecruzam
com frequência na evolução de certos escritores particulares:

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Em primeiro lugar, a literatura de defesa e de apologia do sistema


existente, em parte nitidamente antirrealista, em parte pseudorrea-
lista; a ela não faremos referência aqui.
Em segundo lugar, a literatura da chamada vanguarda (da
verdadeira vanguarda falaremos mais adiante), do naturalismo
ao surrealismo. Qual é a sua tendência básica? Neste ponto, e
antecipadamente, apenas podemos dizer: a sua tendência principal
consiste num, cada vez mais forte, afastamento do realismo, numa
liquidação cada vez mais enérgica do realismo.
Em terceiro lugar, a literatura dos realistas significativos deste
período. Na maior parte dos casos, estes escritores estão literal-
mente entregues a si próprios; nadam contra a corrente de ambos os
grupos literários anteriormente referidos. Para uma caracterização
provisória do realismo atual bastará, por agora, apontar os nomes de
Górki, de Thomas e Heinrich Mann e de Romain Rolland.
Nas intervenções do debate que defendem apaixonadamente
os direitos da arte moderna contra a presunção dos supostos classi-
cistas, essas figuras de ponta da nossa literatura atual não são nem
uma só vez mencionados. Para a história e para a crítica de van-
guarda da literatura atual eles simplesmente não existem. No livro
de Ernst Bloch Erbschaft dieser Zeit (Herança deste tempo), uma obra
interessante, rica de ideias e de material, se a minha memória não
me engana, o nome de Thomas Mann é citado uma única vez; o
autor fala do seu “burguesismo refinado” (assim como do de Wasser-
mann). Com este juízo, o problema fica resolvido para Ernst Bloch.
Concepções como essa colocam de cabeça para baixo todo o
sentido do debate. Já é hora de voltar a colocá-lo sobre os pés e de
defender, contra a incompreensão dos seus detratores, o que há de
melhor na literatura atual. O que se encontra em discussão não
é, pois, o clássico contra o moderno, mas a questão: quais são os
escritores, quais as correntes literárias, que representam o progresso
na literatura atual? Trata-se do realismo.

Tenho sido acusado, sobretudo por Ernst Bloch, de, no


meu artigo “Ensaio sobre o expressionismo”, me ter ocupado

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exageradamente dos teóricos desta corrente. Espero que ele me


desculpe o fato de voltar agora a repetir esse “erro”, submetendo a
um exame “suas” observações críticas sobre a literatura moderna.
Uma vez que não creio que as formulações teóricas de movi-
mentos artísticos sejam de menor importância – mesmo quando
contenham afirmações teoricamente incorretas. É precisamente
nesses casos que elas expressam “segredos” dessas correntes, em
geral, cuidadosamente encobertos. E, como Bloch é um teórico de
calibre diferente do que Picard e Pinthus foram em seu tempo, é
compreensível que eu me detenha um pouco demoradamente sobre
as suas teorias.
Bloch dirige os seus ataques contra a minha concepção de “tota-
lidade” (Deixo de lado a questão sobre em que medida ele interpreta
corretamente a minha concepção. Não se trata da questão, se eu
tenho razão ou se Bloch me compreende bem, mas da própria
coisa.). Ele vê no “realismo objetivo e intacto, característico do pe-
ríodo clássico”, um princípio hostil. Segundo Bloch, eu pressuponho
“em tudo a existência de uma realidade fechada e coesa ... Se isto é
a realidade, é o que está em questão; se isso é, de fato, a realidade,
então todas as tentativas expressionistas de ruptura e interpolação,
assim como as tentativas mais recentes de estruturação descontínua
e de montagem, não passarão de um jogo vazio”.
Nesta realidade coesa, vê Bloch apenas um resíduo dos sistemas
do idealismo clássico no meu pensamento, e expõe a sua própria
concepção da seguinte forma: talvez que uma autêntica realidade
seja também interrupção. Como Lukács tem um conceito obje-
tivista e fechado da realidade, ao tratar do expressionismo, ele
opõe-se a qualquer tentativa artística de destruir uma visão do
mundo (mesmo quando essa visão do mundo é a do capitalismo).
Por essa razão é que considera que uma arte que recorre à decompo-
sição das conexões de superfície e que procura descobrir o novo nos
espaços vazios, não passará de uma decomposição subjetivista; por
esse motivo ele identifica a experiência de decomposição (Zerfällen)
com a situação de decadência (Verfall).
Encontramo-nos diante de uma fundamentação teórica
fechada da evolução da arte moderna e que atinge a própria con-
cepção de mundo. Bloch tem toda razão: ao empreender-se uma
discussão teórica fundamentada sobre essas questões deveriam ser

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analisados todos os problemas da teoria dialético-materialista da


reprodução.
Não é esta a ocasião para tal discussão, discussão que, no
entanto, pessoalmente, eu celebraria de muito bom grado. O que
agora está em questão é um problema muito mais simples. Trata-se
de saber se a “conexão fechada”, a “totalidade” do sistema capita-
lista, da sociedade burguesa na sua unidade processual de economia
e de ideologia, constitui, na realidade, de uma forma objetiva e
independentemente da consciência, um todo.
Entre marxistas – e Bloch no seu último livro se confessou
energicamente partidário do marxismo – não deveria haver qual-
quer discordância. Marx diz: “As relações de produção de qualquer
sociedade formam um todo”.
Temos de sublinhar aqui a palavra qualquer, portanto, precisa-
mente em relação ao capitalismo do nosso tempo, Bloch põe em
dúvida esta “totalidade”. Consequentemente, de um ponto de vista
formal e imediato, a oposição entre nós parece não ser filosófica,
mas antes uma oposição na nossa concepção econômico-social do
próprio capitalismo; no entanto, como a filosofia é um reflexo ideal
da realidade, desse fato derivam, sem dúvida, oposições filosofica-
mente importantes.
É claro que a frase citada de Marx deve ser entendida histori-
camente: isto é, a totalidade da economia é ela própria qualquer
coisa de historicamente mutável. Mas essas mutações consistem es-
sencialmente na expansão e no fortalecimento da conexão objetiva
entre as várias manifestações da economia, consistem, portanto,
no fato de essa “totalidade” se tornar cada vez mais ampla e rica
de conteúdo. Na realidade, segundo Marx, o papel decisivo e his-
toricamente progressista do capitalismo consiste precisamente em
desenvolver o mercado mundial, o que transforma toda a economia
mundial num todo objetivamente coeso. As economias primitivas
criam uma superfície de aspecto muito fechado; basta pensarmos,
por exemplo, numa aldeia comunitária primitiva ou numa cidade
do princípio da Idade Média. Mas este “aspecto fechado” assenta
precisamente no fato de uma tal área econômica estar ligada por
muitos poucos elos aos meios que a envolve, à evolução global da
sociedade humana. No capitalismo, pelo contrário, os momen-
tos, os elementos da economia, autonomizam-se de uma forma

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completamente nova (basta pensarmos na autonomia assumida


pelo comércio, pela moeda no capitalismo, que chega a atingir a
possibilidade de se verificarem crises monetárias, provocadas pela
circulação da moeda etc.). Em consequência da estrutura objetiva
deste sistema econômico, a superfície do capitalismo vai se apresen-
tar “desunida” (Zerrissen), ela consiste em momentos que, objetiva
e necessariamente, se vão autonomizando. Naturalmente que tal
fato se deve refletir na consciência dos indivíduos que vivem em
tal sociedade, portanto também na consciência dos seus escritores
e pensadores.
A autonomização desses momentos parciais é, assim, um fato
objetivo da economia capitalista. Todavia, esta autonomização
constitui apenas uma parte, um momento do processo conjunto. E
a unidade, a totalidade, a conexão objetiva de todas as partes, se
expressa, de uma forma mais incisiva, precisamente nos períodos
de crise, apesar da autonomização objetivamente existente e
necessária. Marx analisa a conexão dialética desta autonomização
necessária dos momentos:

Como eles, afinal, formam um todo, a autonomização destes momen-


tos correlacionados só pode surgir de uma forma violenta, como processo
destrutivo. É precisamente a “crise”, na qual a sua unidade se realiza, a
unidade do diverso. A independência que os momentos interdependentes
e complementares assumem uns em relação aos outros é violentamente
aniquilada. A crise manifesta, assim, a unidade dos momentos que se
autonomizaram uns em relação aos outros.

São estes os momentos objetivos fundamentais da “totalidade”


da conexão social no capitalismo. E qualquer marxista sabe que
as categorias econômicas fundamentais do capitalismo se refletem
de imediato sempre de uma forma deturpada na cabeça dos indiví-
duos. No nosso caso isto significa apenas que os indivíduos que se
encontram na imediaticidade da vida capitalista, durante o período
do chamado funcionamento normal do capitalismo (etapa dos
momentos autonomizados), vivem e pensam uma unidade; porém,
no período da crise (reconstituição da unidade dos momentos auto-
nomizados) consideram a desunião (Zerrissenheit) como vivência.
Como consequência da crise geral do sistema capitalista, esta última

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vivência sedimenta-se por períodos mais longos, em círculos mais


vastos a que pertencem todos aqueles cujas formas de comporta-
mento, perante as manifestações do capitalismo, se situam no nível
da mera vivência imediata.

O que tem tudo isso a ver com a literatura?


Segundo uma teoria expressionista ou surrealista, que nega a
relação entre a literatura e a realidade objetiva, absolutamente nada;
para uma teoria marxista da literatura, muito. Se a literatura é, de
fato, uma forma particular de reflexo da realidade objetiva, para ela
é, portanto, importante apreender essa realidade tal como ela é de
fato constituída e não se limitar a reproduzir o quê e o como da sua
aparência imediata. Se o escritor se esforça por uma tal apreensão
e representação da realidade tal como esta é, de fato, constituída,
isto é, se ele é mesmo um realista, o problema da totalidade objetiva
da realidade desempenha um papel decisivo – independente da
forma como o escritor a formula conceitualmente. Lenin colocou,
repetidas vezes e de forma enérgica, em primeiro plano o significado
prático da categoria da totalidade: “Para se conhecer realmente um
objeto, é necessário apreender e investigar todas as suas facetas,
todas as conexões e ‘mediações’. Nunca o conseguiremos plena-
mente, mas a exigência de onilateralidade preservar-nos-á do erro e
da cristalização”. (sublinhado por mim, G. L.)
A práxis literária de qualquer verdadeiro realista mostra a
importância da conexão objetiva conjunta do contexto social,
assim como a “exigência de onilateralidade” necessária para a sua
apreensão. A profundidade da configuração, a amplitude e a dura-
ção da repercussão de um escritor realista dependem, em grande
parte, de até que ponto ele se dá conta, artisticamente, do que repre-
senta realmente um fenômeno por ele apresentado. Esta concepção
da relação do escritor significativo com a realidade não exclui de
forma alguma – como pretende Bloch – o reconhecimento de que
a superfície da realidade social apresenta sinais de “decomposição”
que se refletem de modo correspondente na consciência dos indiví-
duos. O mote do meu antigo ensaio sobre o expressionismo mostra

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bem como eu, de forma alguma, deixei de considerar este momento


de apreensão da realidade. A citação de Lenin, utilizada como
mote, começa assim: “o inessencial, o aparente, o que se encontra
à superfície desaparece mais frequentemente, não se mantém tão
‘coeso’, não se apresenta tão ‘firme’ como a ‘essência’”.
Mas o que interessa não é apenas o reconhecimento da exis-
tência deste momento da conexão conjunta, mas também – e
especialmente hoje – reconhecer este momento como momento
desta conexão conjunta e não o empolar conceitual e emocional-
mente, como realidade única. Trata-se, pois, do reconhecimento da
verdadeira unidade dialética entre a aparência e a essência, isto é,
trata-se de uma representação artística da “superfície”, suscetível
de ser revivida, a qual por meio da criação artística, sem qualquer
comentário aduzido do exterior, mostra a relação entre a essência e
a aparência na parcela de vida representada. Sublinhamos o caráter
configurado da relação entre essência e aparência, pois, ao contrário
de Bloch, não consideramos a “montagem” de teses em fragmentos
de realidade, ao modo dos surrealistas de esquerda e que, intrin-
secamente, nada têm a ver com eles, uma solução artística deste
problema.
Basta compararmos o “burguesismo refinado” de Thomas Mann
com o surrealismo de Joyce. Na consciência dos heróis de ambos
se acham configurados aquele desgarramento e descontinuidade,
aquelas rupturas e “espaços vazios” que Bloch, com toda a razão,
considera característicos do estado de consciência de muitos indi-
víduos no período imperialista. O erro de Bloch consiste apenas em
que ele identifica – imediatamente e sem reservas – com a própria
realidade, e também em toda a sua deformação, a imagem exis-
tente nesta consciência com o próprio objeto, em vez de, mediante
a comparação da imagem com a realidade, pôr concretamente
a descoberto a essência, as causas, as mediações etc. da imagem
deformada.
Desse modo, Bloch faz teoricamente o mesmo que os expres-
sionistas e surrealistas fazem artisticamente. Vejamos o método
de representação da realidade utilizado por Joyce. Para que a sua
imagem, em razão de minha atitude de recusa, não surja aos olhos
do leitor sob uma falsa luz, vou citar o que o próprio Bloch afirma
sobre ele:

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Uma boca sem eu está aqui no meio de um impulso fluente, e mais


abaixo, ela o bebe, o balbucia, o desfaz. A linguagem segue fielmente
esta decomposição (Zerfall), não está inteiramente pronta e já acabada,
não tem propriamente forma, é aberta e confusa. Tudo aquilo que, em
períodos de cansaço, nas pausas da conversa ou em indivíduos sonhadores
e inquietos, fala, comete lapsos, joga com as palavras – tudo isso irrompe
aqui desenfreadamente. As palavras tornam-se desempregadas, perderam
seu emprego nas relações de sentido, logo se movem como um verme
cortado em pedaços e depois se cristalizam como em um caleidoscópio
em movimento.

Até aqui a descrição, e agora, a apreciação definitiva:

Uma noz oca e, ao mesmo tempo, a mais inédita venda total por
liquidação; uma heteróclita mistura de prospectos amassados, macaquices,
bolos de enguia, fragmentos de nada e, ao mesmo tempo, a tentativa de
fundar uma escolástica no caos ... um alto, amplo e profundo depósito
de vestígios de uma pátria perdida; sem caminhos e sempre entre mil
caminhos, sem fim e entre mil fins. A montagem é agora mais potente,
antes viviam nesse contexto fugidio as ideias, agora também as coisas,
pelo menos no território inundado, na fantástica selva virgem do vazio.

Tivemos de incluir esta longa citação, porque na apreciação


histórica que Bloch faz do expressionismo, a montagem surrealista
desempenha um papel muito importante, decisivo mesmo. Numa
passagem anterior do seu livro, ele distingue também, como todos
os defensores do expressionismo, entre os seus representantes su-
perficiais e autênticos. E, segundo Bloch, as tendências do autêntico
expressionismo persistem. Ele afirma:

Ainda hoje não existe nenhum grande talento sem origem expressio-
nista, pelo menos sem aqueles aspectos mais espalhafatosos e retumbantes
da sua repercussão. Foram os chamados surrealistas que representaram o
último “expressionismo”; apenas um pequeno grupo, mas neles encontra-
mos de novo a vanguarda. E se o surrealismo pode ser alguma coisa, essa
coisa é a montagem ... a descrição da confusão da realidade vivida, com
as suas esferas desprendidas e as suas cesuras. (sublinhado por mim, G. L.)

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Aqui, o leitor reconhece nitidamente aquilo que o defensor do


expressionismo, Bloch, considera a linha de desenvolvimento da
literatura de nossa época, a forma intencional como ele exclui por
completo da literatura todos os realistas significativos deste período.
Que Thomas Mann me perdoe ao mencioná-lo neste contexto
como contraexemplo. Imaginemos Tonio Kroeger ou Christian
Buddenbrook ou as personagens centrais de A montanha mágica.
Imaginemos ainda que elas tenham sido criadas, como Bloch rei-
vindica, só a partir da sua consciência e não em contraste com uma
realidade delas independente. É evidente que, na sua consciência,
tal como ela nos surge imediatamente, tal como as suas associa-
ções se processam, elas surgiriam perante nós sob uma forma que,
no que se refere ao “desgarramento da sua superfície”, em nada
ficaria atrás das figuras de Joyce; encontraríamos nelas tantos
“espaços vazios” como em Joyce. Não se pode dizer que essas obras
nasceram “antes” daquela crise – a crise objetiva, por exemplo, no
caso de Christian Buddenbrook, conduz a uma ruptura interior
mais profunda do que a dos heróis de Joyce. E A montanha mágica
é contemporânea do expressionismo. Portanto, se Thomas Mann
se tivesse deixado ficar pela apreensão imediata, pelo fotografar e
depois pela montagem dos fragmentos de ideias e de vivências des-
ses indivíduos, ele teria com facilidade criado um quadro de igual
modo “artisticamente progressista” como o de Joyce, que Bloch
tanto admira.
Por que razão permanece Thomas Mann, em temas tão moder-
nos, artisticamente “fora de moda”, “tradicional”, e não se faz
passar por “vanguardista”? Precisamente porque ele é um verdadeiro
realista, o que, neste caso, significa antes de tudo que ele – como
artista criador – sabe muito bem quem são Christian Buddenbrook,
Tonio Kroeger, Hans Castorp, Settembrini ou Naphta. Ele não
precisa de o saber como para o caso de uma análise social abstrata
e científica: neste ponto ele pode enganar-se, tal como antes dele
também Balzac, Dickens ou Tolstói se enganaram – no entanto, ele
o sabe no sentido do realista criador; ele sabe como as vivências
e as sensações são parte de um complexo conjunto da realidade.
Assim, ele mostra, como realista, qual o lugar desta componente
no complexo conjunto da vida, de que parte da vida social provém,
qual o seu destino etc.

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Portanto, quando Thomas Mann, por exemplo, não apenas


designa Tonio Kroeger de “burguês perdido”, mas mostra, na ela-
boração artística, como e por que razão ele é um “burguês perdido”,
apesar da sua oposição direta à burguesia, apesar da sua situação
de despatriado dentro da vida burguesa, apesar da sua exclusão da
vida em sociedade, ou antes precisamente por isso – ele se elevou, não
apenas como criador, mas também na sua compreensão da evolução
da sociedade, muitíssimo acima daqueles “ultrarradicais” que ima-
ginam que os seus sentimentos antiburgueses, a sua recusa – muitas
vezes puramente estética – do mofo pequeno-burguês, o seu desprezo
pelos sofás de pelúcia ou pelo pseudorrenascimento na arquitetura,
basta para – objetivamente – fazer deles inimigos irreconciliáveis
da sociedade burguesa.

Os movimentos literários modernos do período imperialista


que, do naturalismo ao surrealismo, se foram sucedendo uns aos
outros rapidamente, assemelham-se entre si na medida em que
tomam a realidade tal como ela se apresenta de imediato ao escritor
e às suas personagens. Esta forma de manifestação imediata se
modifica ao longo do desenvolvimento social. E isto tanto objetiva
como subjetivamente, segundo o modo como mudam as formas de
manifestação objetivas da realidade capitalista, já descritas por nós,
e o modo como a alternância e a luta de classes produzem diferentes
reflexos desta superfície. Essa mudança condiciona principalmente
a alternância rápida e a luta implacável das várias correntes entre si.
Mas todas elas não ultrapassam, tanto conceitualmente como
emocionalmente, esta sua imediaticidade, não buscam a essên-
cia, isto é, a conexão real das suas vivências com a vida real da
sociedade, as causas ocultas que provocam objetivamente essas
vivências, aquelas mediações que ligam essas vivências à realidade
objetiva da sociedade. Pelo contrário, é exatamente a partir desta
imediaticidade – de forma mais ou menos consciente – que elas
criam, espontaneamente, o seu estilo artístico.
A oposição de todas as correntes modernas às tradições da li-
teratura e da teoria da literatura antigas, já quase inexistentes nos

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nossos dias, culmina ao mesmo tempo num protesto apaixonado


contra a arrogância de uma crítica que pretensamente as impede
de escrever “conforme lhes dá na telha” (“wie ihnen der Schnabel
gewachsen ist”). Com isso, os representantes dessas várias corren-
tes esquecem que a verdadeira liberdade, a liberdade em relação
aos preconceitos reacionários do período imperialista (e isto não
apenas no domínio da arte) nunca pode ser alcançada se se fundar
na espontaneidade e se circunscrever à imediaticidade. Já que o
desenvolvimento espontâneo do capitalismo imperialista produz e
reproduz, sem interrupção, precisamente estes mesmos preconcei-
tos reacionários, num nível cada vez mais elevado (para não falar
do fato de a burguesia imperialista fomentar conscientemente este
processo de reprodução). E torna-se imprescindível um trabalho
árduo, um abandonar e um superar da imediaticidade, um pesar
e medir de todas as vivências subjetivas – tanto do seu conteúdo
como da sua forma – tomando como referência a realidade social,
um perscrutar mais profundo da realidade, para se descobrirem as
influências reacionárias do mundo imperialista nas próprias vivên-
cias e ultrapassá-las criticamente.
Este trabalho árduo fizeram-no, sem interrupção, os realistas
significativos do nosso tempo, artística, filosófica e politicamente,
e ainda hoje o fazem. Basta pensarmos na evolução de Romain
Rolland, de Thomas e Heinrich Mann. Por mais que, sob qualquer
prisma, estas evoluções diferenciem – este traço é comum a todas elas.
Ao constatarmos que as várias correntes modernas se detive-
ram no nível da imediaticidade, não pretendemos com isso negar o
trabalho artístico que realizaram os escritores sérios, do naturalismo
ao surrealismo. De fato, a partir das suas vivências, eles criaram
um estilo, um modo de expressão consequentemente realizado,
muitas vezes artisticamente atraente e interessante. No entanto,
se tivermos em vista a sua relação com a realidade social, todo este
trabalho, seja filosófica seja artisticamente, acaba por não ir além
do nível da imediaticidade.
E, por essa razão, a expressão artística daqui resultante é abs-
trata, unilateral. (Neste caso é completamente indiferente se uma
teoria estética que acompanha a referida corrente é ou não contra
a “abstração” na arte. Aliás, desde o expressionismo, a abstração
tem sido cada vez mais acentuada, até mesmo teoricamente). Neste

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momento, alguns leitores pensarão possivelmente que existe uma


contradição naquilo que acabamos de expor: parece que a imediati-
cidade e a abstração se excluem mutuamente por completo. Todavia,
uma das maiores conquistas filosóficas do método dialético – já em
Hegel – é o ter revelado a conexão interna entre imediaticidade e
abstração e ter demonstrado que, com base na imediaticidade, só pode
surgir um pensamento abstrato.
Também neste ponto, Marx colocou a filosofia hegeliana, que
estava de ponta-cabeça, sobre os pés e na análise das conexões eco-
nômicas, demonstrou reiteradamente e de modo concreto “como”
esta correspondência de imediaticidade e abstração se revela no
reflexo dos fatos econômicos. Temos aqui de nos restringir a um
esclarecimento breve e meramente alusivo de um tal exemplo. Marx
mostra que as conexões entre circulação monetária e o seu agente,
o capital financeiro, representam a abstração máxima de todo
processo capitalista, a supressão de todas as mediações. Se as con-
siderarmos tal como elas aparecem, numa aparente independência
do processo conjunto, elas tomam a forma de uma abstração, sem
conceito, completamente fetichizada: “O dinheiro atrai dinheiro”.
Mas precisamente por essa razão, os economistas vulgares, que não
vão além da imediaticidade da manifestação de superfície do capita-
lismo, sentem-se corroborados na sua imediaticidade precisamente
pelo mundo dessa abstração fetichizada, sentem-se como peixe na
água e protestam apaixonadamente contra a “presunção” da crítica
marxista, que exige dos economistas que tenham em consideração
todo o processo social da reprodução. A “profundidade do seu
pensamento consiste, neste ponto, como sempre, em ver apenas as
nuvens de poeira à superfície e falar de toda esta poeira, arrogan-
temente, como se tratasse de algo de misterioso e de significativo”,
como Marx diz de Adam Müller. Tomando essas considerações
como ponto de partida, caracterizei, no meu ensaio anterior, o
expressionismo como “uma via de abstração para fora da realidade”.
Evidentemente, sem abstração não há arte – de outra forma,
como poderia surgir o típico? Mas o processo de abstração tem,
como qualquer movimento, um direcionamento, e é dele que pre-
tendemos falar aqui. Todo realista significativo elabora – também
com os meios da abstração – o material das suas vivências, para
alcançar as legalidades da realidade objetiva, as conexões mais

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profundas, ocultas, mediatizadas, não imediatamente perceptí-


veis, da realidade social. Como essas conexões não se encontram
imediatamente à superfície, como essas legalidades se concretizam
de forma intrincada, apenas tendencialmente, daí resulta, para o
realista significativo, um trabalho gigantesco, um duplo trabalho,
tanto artístico como filosófico, a saber: em primeiro lugar, desco-
brir intelectualmente e revelar artisticamente essas conexões; em
segundo lugar, porém, e inseparável da relação anterior, recobrir
artisticamente as conexões a que se chegou por meio da abs-
tração – a superação da abstração. Mediante este duplo trabalho
surge uma nova imediaticidade, artisticamente mediatizada, uma
superfície configurada da vida, a qual, embora em cada momento
deixe transparecer claramente a essência (o que não acontece com
a imediaticidade da própria vida), se apresenta, no entanto, como
imediaticidade, como superfície da vida. E, na verdade, como toda
superfície da vida em todas as suas determinações essenciais – não
apenas como um momento subjetivamente percebido e, por meio
da abstração, potenciado e isolado do complexo desta conexão
conjunta.
É esta a dialética artística da essência e da aparência. Quanto mais
variada e rica, intrincada e “astuta” (Lenin) ela for, quanto mais
intensamente ela abranger a contradição viva da vida, a unidade
viva da contradição de riqueza e unidade das determinações sociais,
tanto maior e mais profundo será o realismo.
O que significa, em oposição a isso, a “via de abstração para
fora da realidade”? A superfície opaca, refletida em estado de desa-
gregação, de aparência caótica, incompreendida, vivida apenas
imediatamente, é fixada como tal, num processo que elimina mais ou
menos conscientemente e não contempla as mediações objetivas,
sem qualquer tentativa de se elevar intelectualmente acima deste
nível.
Na realidade não existe em parte alguma um estado de imo-
bilidade (Stillstand). O trabalho intelectual e artístico deverá
movimentar-se, ou em direção à realidade, ou para fora dela. Este
último movimento surgiu já – aparentemente de modo paradoxal –
no naturalismo. A teoria do meio, a hereditariedade fetichizada em
mitologia, uma forma de expressão que fixava abstratamente os
aspectos exteriores da vida imediata e outros fatores impediram,

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Um capítulo da história da modernidade estética 255

neste caso, uma abertura artística para a dialética viva da aparência


e da essência. Ou, para ser mais exato: a ausência de uma tal aber-
tura nos escritores naturalistas produziu esta forma de expressão.
Ambas se encontram numa relação de reciprocidade viva.
Por essa razão, as superfícies da vida, tão fielmente reproduzidas
no naturalismo, seja fotograficamente seja fonograficamente, teriam
de permanecer mortas, sem dinamismo interior, estáticas. Daí o
fato de os dramas e romances naturalistas, exteriormente tão dife-
rentes, se assemelharem uns aos outros até se confundirem. (Neste
contexto, deveríamos tratar de uma das maiores tragédias da arte
dos nossos dias: as razões pelas quais Gerhart Hauptmann, apesar
de ter iniciado a sua atividade literária de forma brilhante, acabou
por não vir a ser um grande realista. Mas não é esta a ocasião para o
fazer. Limitar-nos-emos a mencionar que, para o autor de Die Weber
(Os tecelões) e de Der Biberpelz (A pele de castor), o naturalismo foi
uma inibição e não um estímulo; que, no seu caso, o naturalismo
foi ultrapassado sem que fossem abandonados os fundamentos de
sua visão de mundo).
As limitações artísticas do modo de expressão naturalista foram
rapidamente reconhecidas. Mas nunca foram criticadas a partir do
fundamento. A uma imediaticidade abstrata foi sempre contraposta
uma outra imediaticidade, de outro tipo, aparentemente contrária,
mas igualmente abstrata. É característico da teoria e da prática
da arte de toda esta evolução considerar que o passado, na sua
essência, se limita sempre à corrente que o precede imediatamente:
para o impressionismo, por exemplo, o naturalismo etc. Assim,
tanto a teoria como a prática permanecem presas nesta oposição
totalmente exterior e abstrata. Esta concepção faz-se sentir ainda
no nosso debate. Rudolf Leonhard deduz a necessidade histórica
do expressionismo igualmente desta forma: “Pois esta oposição ao
impressionismo que se tornara insuportável, impossível, é um dos
fundamentos do expressionismo”, afirma ele; e desenvolve clara-
mente esta opinião, sem, no entanto, entrar em pormenores quanto
às outras causas. Aparentemente, o expressionismo opõe-se frontal
e totalmente às correntes literárias anteriores. Ele acentua mesmo,
como ponto central do seu modo de configuração precisamente
o destaque dado à essência; a isso chama Leonhard o traço “não
niilista” do expressionismo.

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256 Carlos Eduardo Jordão Machado

Mas essa essência não é a essência objetiva da realidade, do pro-


cesso conjunto. Essa essência é precisamente o puro subjetivismo. Não
pretendo basear-me aqui nos velhos teóricos do expressionismo, tão
criticados. Ao distinguir o expressionismo autêntico do não autên-
tico, Ernst Bloch acentua precisamente o momento subjetivo: “o
expressionismo na sua versão original foi antes explosão de imagens,
foi superfície rasgada, a partir também do original, ou seja do sujeito,
que, violentamente, cindia e entrecruzava elementos dispersos”.
Uma tal determinação da essência leva necessariamente a uma
concepção que, conscientemente, recorre à estilização e à abstração
da conexão, separando-a de todas as mediações e isolando-a em
si mesma. O expressionismo consequente nega qualquer relação
com a realidade, declara a todos os conteúdos da realidade uma
guerra subjetivista. Não desejo intrometer-me aqui na discussão
sobre se e em que medida Gottfried Benn deve ser considerado
um expressionista típico; acho, no entanto, que aquele sentimento
vital, que Bloch descreve de forma tão pitoresca e fascinante nas
suas considerações sobre o expressionismo e o surrealismo, ganha
uma expressão mais direta, honesta e plástica na obra de Benn Kunst
und Macht (Arte e poder): “Entre 1910 e 1925 não havia na Europa
nenhum outro estilo que não fosse o antinaturalista. Também não
havia qualquer realidade – quando muito, apenas a sua caricatura.
Realidade, esse era um conceito capitalista ... O espírito não tinha
qualquer realidade”.
Também Wangenheim, na sua defesa puramente eclética do
expressionismo, chega – embora sob uma forma descritiva e não
refletida até o fim – a conclusões semelhantes: “Foi muito pouco
o que não fracassou, porque nenhuma realidade lhe (ao expres-
sionismo, G. L.) correspondia ... Muito expressionista pretendia
alcançar o solo de um novo mundo, na medida em que, perdendo
o chão debaixo dos pés, se alçava ao ar e se pendurava nas nuvens”.
Vamos encontrar este fato e as suas consequências clara e
decididamente formuladas na intervenção de Heinrich Vogeler.
A partir do conhecimento exato da abstração expressionista, ele
chega à conclusão correta: “Ele (nomeadamente, o expressionismo,
G. L.) foi a dança da morte da arte burguesa ... O expressionismo
julgava traduzir a “essência das coisas”, mas o que ele traduziu foi
a sua decomposição”.

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Como consequência necessária de uma atitude alheia ou até


mesmo hostil à realidade, surge, na arte “vanguardista”, uma
pobreza de conteúdo cada vez maior; a qual, no decurso do desen-
volvimento, se fortalece na ausência de conteúdo e na hostilidade
perante o conteúdo instituídas em princípios. Foi ainda Gottfried
Benn quem exprimiu este contexto de forma mais clara: “também o
próprio conceito de conteúdo se tornou questionável. Conteúdos –
que sentido têm hoje? Está tudo mais que lixiviado e desbotado! É só
enfeite – comodidades do coração, paralisia do sentimento, pequeno
rebanho de substâncias que sucumbiram à mentira –, mentiras
vitais, coisas amorfas”.
Essa descrição – como o próprio leitor poderá julgar – aproxima-
-se extraordinariamente da descrição que Bloch faz do mundo do
expressionismo e do surrealismo. Claro que Benn e Bloch extraem
destas observações consequências totalmente opostas. Em várias
passagens da sua obra, Bloch vê muito claramente a problemática
da arte atual, resultante da atitude perante o mundo por ele des-
crita: “Assim, o tratamento imediato dos materiais não basta já aos
poetas importantes, mas conduz ao fracasso. O mundo dominante
já não lhes oferece nenhuma aparência representável, fabulável,
mas apenas vazio e, nele, a ruptura indiscriminada”.
Em seguida, Bloch analisa o percurso do período revolucionário
da burguesia até Goethe e prossegue deste modo:

mas a Goethe, em vez de uma continuação do romance de formação,


seguiu-se o romance francês da desilusão; e hoje em dia, no perfeito não
mundo (grifado por mim, G. L.), no antimundo, ou também no mundo-de-
-destroços do vazio da grande burguesia, a “reconciliação não constituiu,
para cada escritor concreto, nem um perigo, nem uma possibilidade. Não
há aqui outro comportamento possível que não seja o dialético (?! G. L.),
ou como material para a montagem dialética, ou como para a sua experi-
mentação. Até mesmo o mundo de Ulisses foi transformado pelo inspirado
Joyce na galeria de passos perdidos em miniatura, na marcha diagonal do
hoje explosivo e que tudo explode. Uma marcha diagonal porque falta
algo aos homens, precisamente o principal...

Não queremos entrar aqui em discussão com Bloch por ninha-


rias. Portanto, nem em relação ao uso puramente individual da

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palavra dialética, nem à construção errada que situa o romance de


desilusão imediatamente a partir de Goethe (minha anterior Teoria
do romance é, em parte, culpada deste erro histórico de Bloch.).
Está aqui em jogo algo de mais importante. Precisamente o fato
de Bloch – embora com indícios valorativos de sinal contrário –
formular a ideia de que a fábula e a composição das obras literárias
dependem da relação do indivíduo com a realidade objetiva. Até
aqui, tudo certo. Mas, ao pretender comprovar o direito histórico do
expressionismo e do surrealismo, Bloch deixa de analisar as relações
objetivas entre a sociedade e o homem ativo do nosso tempo, as
quais, tal como Jean Christophe mostra, até possibilitam um romance
de formação; pelo contrário, a partir do estado de consciência de
uma determinada camada intelectual tomado isoladamente, ele
constrói à sua maneira o estado objetivo do mundo de hoje, mundo
esse que, muito consequentemente – e infelizmente muito próximo
da concepção de Benn –, lhe aparece como “não mundo”. Para mui-
tos autores que têm esta atitude diante da realidade, evidentemente
que não é possível nenhuma ação, nenhuma estrutura, nenhum
conteúdo, nenhuma composição no “sentido tradicional”. Para os
homens que sentem o mundo desta forma, o expressionismo e o sur-
realismo são, de fato, as únicas formas possíveis de expressão do seu
sentimento de mundo. Esta justificação filosófica do expressionismo
e do surrealismo falha “apenas” pelo fato de Bloch, em vez de apelar
para a realidade, transformar simplesmente, sem qualquer sentido
crítico, a atitude expressionista e surrealista diante da realidade
numa linguagem conceitual cheia de cores.
Apesar desta marcada oposição em todas as avaliações, consi-
dero correta e valiosa a constatação feita por Bloch de determinados
fatos. Ao apontar a evolução necessária que conduz do expressio-
nismo ao surrealismo ele é, na verdade, o mais consequente de todos
os “vanguardistas”. Neste aspecto, ele possui também o mérito de
ter reconhecido na “montagem” a forma de expressão artística
necessária para esta fase do desenvolvimento. (O seu mérito é ainda
acrescido por ter demonstrado, com grande perspicácia, a existência
da montagem, não só na arte de “vanguarda” atual, mas também
na filosofia burguesa do nosso tempo).
Mas precisamente por esta razão, a unilateralidade antirrealista de
todo este desenvolvimento manifesta-se nele mais claramente do que

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noutros teóricos desta corrente. Essa unilateralidade – e a isso Bloch


não se refere – já existe no naturalismo. O “refinamento” artístico
que o impressionismo apresenta em relação ao naturalismo, “puri-
fica” ainda mais a arte das complicadas mediações, dos intrincados
caminhos da realidade objetiva, da dialética objetiva do ser e da
consciência nos homens e nas fábulas configurados. O simbolismo é
já claro e conscientemente unilateral. Já que a heterogeneidade do
invólucro sensível do símbolo e do conteúdo simbólico passa já pela
via estreita e única da associação subjetiva da sua relação simbólica.
A montagem representa o ponto máximo deste desenvolvi-
mento, e por essa razão saudamos a forma decisiva como Bloch a
coloca, artística e filosoficamente, no centro da literatura e do pen-
samento dos “vanguardistas”. Naqueles casos em que a montagem,
na sua forma originária, como fotomontagem, pode ter um efeito
chocante e, assim, simultaneamente de agitação, a sua influência
deriva precisamente do fato de ela reunir, com um efeito de surpresa,
fragmentos de realidade efetivamente díspares, isolados, extraídos
de seu contexto. A boa fotomontagem tem o efeito de uma boa
anedota. Mas, no momento em que esta relação unilateral – no
caso da anedota, justificada e eficaz – se apresenta com a pretensão
de representar artisticamente a realidade (mesmo quando esta é
apreendida como irreal), o contexto coeso (mesmo quando este é
formulado como desconexão), a totalidade (mesmo quando esta
é vivida como caos), o resultado final não pode deixar de ser uma
profunda monotonia. Os pormenores poderão brilhar com as mais
variadas cores, mas o conjunto resulta num desconsolo de cinza
sobre cinza, tal como a poça de água, que não deixa de ser de água
suja, mesmo quando a sua borda apresenta as cores mais variadas.
Esta monotonia é a consequência necessária do abandono do
reflexo objetivo da realidade, do abandono do esforço artístico de
configurar a rica e entrelaçada diversidade e unidade das mediações
e da sua superação nas personagens. Já que este modo de sentir o
mundo não admite nenhuma composição, nenhum crescendo e
decrescendo, nenhuma estruturação a partir de dentro, da natureza
real da matéria viva configurada.
Quando essas tendências artísticas são denominadas de deca-
dentes, ouvem-se frequentemente, manifestações de indignação
pela “arrogância de mestre-escola de acadêmicos ecléticos”. Que

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260 Carlos Eduardo Jordão Machado

me seja permitido recorrer, portanto, a um especialista em assuntos


de decadência, e que os meus adversários consideram, também nou-
tras questões, como uma grande autoridade: Friedrich Nietzsche.
“O que caracteriza qualquer décadence literária?”, pergunta ele. E
responde:

o fato de a vida já não habitar o todo. A palavra torna-se soberana e salta


para fora da frase, a frase vem sobrepor-se e escurece o sentido da página,
a página ganha vida à custa do todo – o todo deixa de ser um todo. Mas
isto é a imagem para cada estilo de décadence: sempre anarquia dos áto-
mos, desagregação da vontade ... A vida, a mesma vivacidade, a vibração
e a exuberância da vida reduzidas às mais pequenas configurações, o
resto pobre de vida. Por toda parte paralisação, fadiga, entorpecimento,
ou hostilidade e caos: ambas as coisas saltando cada vez mais aos olhos,
quanto mais elevadas forem as formas de organização a que se ascende.
O todo já não vive; é composto (zusammengesetzt), calculado, um artifí-
cio – um artefato.

Essa caracterização feita por Nietzsche é uma descrição tão boa


das tendências artísticas de tais correntes como as feitas por Bloch
ou por Benn. E a Herwarth Walden, que repudia, como vulgari-
dade, toda e qualquer interpretação crítica do expressionismo, que
vê em cada exemplo da teoria e da prática do expressionismo um
“expressionismo vulgar” que não comprova nada, nos permitimos
pedir que dê o seu parecer sobre a seguinte utilização desta teoria
nietzscheana da decadência como teoria de uma elaboração formal
da linguagem que se generalizou:

Por que razão só a frase há de ter sentido e não também a palavra?


... E como os escritores gostam de dominar, sobrepõem logo uma frase à
palavra. Mas é a palavra que domina. A palavra desfaz a frase e a obra
poética é composição de fragmentos. Só as palavras estabelecem associa-
ções. As frases são sempre resultado de uma seleção.

Esta teoria linguística de um “expressionismo vulgar vem, pre-


cisamente, de Herwarth Walden.
Evidentemente, essas premissas nunca são realizadas de forma
absoluta e consequente, nem mesmo em Joyce. Já que um caos

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absoluto só existe na cabeça dos loucos, do mesmo modo que, como


Schopenhauer disse muito bem, só no manicômio se pode encontrar
um solipsismo absoluto. Mas, como o caos constitui o fundamento
filosófico da arte de vanguarda, todos os princípios que lhe dão con-
sistência têm que provir de um material estranho ao assunto. Daí
os comentários montados, daí o simultaneísmo etc. Tudo isso não
passa de um sucedâneo, tudo isso significa apenas a intensificação
da unilateralidade desta arte.

O fato de todas essas correntes terem surgido explica-se a partir


da economia, da estrutura social, das lutas de classes do período
imperialista. Por isso, Rudolf Leonhard tem toda razão quando vê
no expressionismo um fenômeno histórico necessário. Mas só parcial-
mente tem razão quando, aplicando o célebre postulado de Hegel,
prossegue da seguinte forma: “o expressionismo existiu; e, uma vez
tendo existido, nesse momento ele foi racional”.
Nem mesmo em Hegel a “razão da história” é tão simples
assim, embora o seu idealismo introduza esporadicamente no
conceito de razão uma apologia do existente; e para o marxismo a
“racionalidade” (a necessidade histórica) é ainda menos simples.
No marxismo, o reconhecimento da necessidade histórica não é
nem a justificação do existente (nem mesmo na época de sua exis-
tência), nem a expressão de uma necessidade fatalista na história.
Novamente a melhor forma de podermos representar, isto é, por
meio de um exemplo extraído da economia. Não há dúvida de
que a acumulação primitiva, a separação dos pequenos produtores
dos seus meios de produção, a criação do proletariado com todas
as suas atrocidades desumanas, constituíram uma necessidade
histórica. Apesar disso, não passará pela cabeça de nenhum mar-
xista enaltecer a burguesia inglesa desse tempo como portadora
hegeliana da razão. E a um marxista muito menos ocorreria ver
neste fato a necessidade fatalista de uma evolução que passa pelo
capitalismo para alcançar o socialismo; Marx protestou repetidas
vezes contra o fato de, até para a Rússia do seu tempo, a via da
acumulação primitiva para o capitalismo ter sido considerada,

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fatalisticamente, como a única possível; e hoje, nas condições em


que o socialismo se realizou na União Soviética, a ideia de que
as nações primitivas só poderão atingir o socialismo percorrendo
a via da acumulação primitiva para o capitalismo, e só por meio
deste para o socialismo, é precisamente um programa da contrar-
revolução. Se, portanto, aceitamos, com Leonhard, a necessidade
histórica do aparecimento do expressionismo, isto não significa de
forma alguma o reconhecimento de que ele artisticamente está
certo, o reconhecimento de que ele é uma pedra necessária na cons-
trução da arte do futuro.
Por essa razão, não podemos dizer que estamos de acordo com
Leonhard, quando considera que o expressionismo “fixa a imagem
do homem e dá consistência às coisas de modo a possibilitar o novo
realismo”. Neste ponto, Bloch, ao contrário de Leonhard, tem toda
razão quando vê no surrealismo, no predomínio da montagem, a
continuação necessária e consequente do expressionismo. E o nosso
caro Wangenheim, que procura no debate sobre o expressionismo
uma possibilidade de salvar e de manter, subtítulo de uma concepção
ampla e não dogmática do realismo, as tendências formalistas da
sua anterior produção que tantas vezes inibiram, até mesmo repri-
miram o seu realismo originário, tem necessariamente de chegar a
consequências bastante ecléticas. No expressionismo pretende ele
salvaguardar, para o realismo socialista, uma herança valiosa, que
não se pode perder. Esta sua tentativa procura ele fundamentá-la
da seguinte forma: “Fundamental é: o teatro do expressionismo,
mesmo quando tinha um efeito intenso, refletia o mundo em esti-
lhaços. O teatro do realismo socialista, em todas as multiplicidades
das suas formas, reflete a unicidade”.
E por essa razão deverá o expressionismo ser um elemento es-
sencial do realismo socialista? Em Wangenheim não encontramos
também um único argumento estético ou lógico que o justifique;
apenas um biográfico: a tentativa de não romper radicalmente com
a sua anterior maneira formalista.
A partir da minha apreciação histórica do expressionismo, que
já fora expressa com toda clareza no meu ensaio anterior, formula
Bloch agora a seguinte acusação contra mim: “Não existe, portanto,
vanguarda dentro da sociedade capitalista tardia, nem se reconhece
a existência de movimentos antecipadores na superestrutura”.

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Esta acusação deriva do fato de Bloch ver o caminho da arte


de hoje exclusivamente naquela via que conduz ao surrealismo e à
montagem. Se se contesta o papel de vanguarda dessas correntes,
então, segundo Bloch, põe-se forçosamente em questão a possibi-
lidade de toda e qualquer antecipação ideológica das tendências do
desenvolvimento social.
Mas isso não é correto. O marxismo reconheceu sempre esta
função antecipadora da ideologia. Se quisermos permanecer no
domínio da literatura, basta recordar o que Paul Lafargue diz sobre
a apreciação de Balzac por Marx: “Balzac não foi apenas o histo-
riador da sociedade do seu tempo, mas também o criador de figuras
proféticas que, sob Louis Philippe, se encontravam ainda em estado
embrionário e só após a sua morte, com Napoleão III, se desenvol-
veram plenamente”. (grifado por mim, G. L.)
Mas será que esta concepção de Marx é válida também para o
nosso tempo? Evidentemente, é válida. Só que tais “figuras proféti-
cas” encontramo-las exclusivamente nos realistas significativos. Nos
romances, novelas e dramas de Máximo Górki existem tais figuras
em abundância. Quem tiver acompanhado, atenta e desapaixo-
nadamente, os últimos acontecimentos na União Soviética, verá
que Górki, no seu Karamora, no seu Klim Sanguim, em Dostigaiev,
entre outros, antecipou “profeticamente”, no sentido de Marx,
uma série de tipos que só agora nos desvendaram por completo
a sua verdadeira essência. Podemos encontrar também exemplos
semelhantes na literatura alemã. Basta pensarmos nos primeiros
romances de Heinrich, por exemplo em Der Untertan (O súdito),
no Professor Unrat e em outros mais – quem pretenderá negar que
nessas obras se encontra, como antecipação “profética”, uma série
de traços repugnantes, bestiais e mesquinhos da burguesia alemã
e da pequena burguesia ludibriada pela demagogia, que só sob o
fascismo se viriam a revelar totalmente? Observemos ainda nesta
perspectiva a figura do seu Henrique IV. É uma figura bem real,
historicamente autêntica; ao mesmo tempo, é também uma ante-
cipação daqueles traços humanistas que só poderão manifestar-se
plenamente nos lutadores da frente antifascista, no decorrer da
evolução, no decurso do triunfo sobre o fascismo.
Tomemos um contraexemplo, igualmente do nosso tempo. A
luta ideológica contra a guerra foi um tema central dos melhores

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expressionistas. Mas o que resta desta literatura como antecipação


na nova guerra imperialista, que com sua fúria ameaça todo o
mundo civilizado? Julgo que ninguém negará que essas obras estão
hoje completamente desatualizadas e não são, de modo algum, apli-
cáveis ao presente. (Entretanto, o realista Arnold Zweig, nos seus
romances Sergeant Grischa e Erziehung vor Verdun (Lição de Verdun),
descreveu de tal forma a relação entre a guerra e a interlândia, o
prosseguimento e a intensificação social e individual da bestialidade
capitalista “normal” na guerra, que, por este meio, antecipou uma
série de momentos essenciais da nova guerra.).
Não há em tudo isso nada de secreto e de paradoxal – é preci-
samente a essência de qualquer realismo verdadeiro e significativo.
Como um tal realismo, desde Dom Quixote, passando por Oblomov,
até os realistas de nossos dias, tem em vista a criação de novos
tipos, deve procurar nos indivíduos, nas relações dos indivíduos
entre si, nas situações em que eles atuam, aqueles traços perduráveis
que, como tendências objetivas do desenvolvimento da sociedade, até
mesmo de todo o desenvolvimento da humanidade, se repercutem
ao longo de vastos períodos.
“Tais escritores constituem uma verdadeira vanguarda ideo-
lógica”, pois eles dão forma às tendências vivas, mas à primeira
vista ainda ocultas, da realidade objetiva, de um modo tão pro-
fundo e tão verdadeiro que as suas criações são confirmadas pelo
desenvolvimento posterior da realidade, não no sentido da corres-
pondência simplista de uma fotografia obtida com o seu original,
mas precisamente como expressão de uma apreensão múltipla e
rica da realidade, como reflexo das suas tendências ocultas sob a
superfície, que apenas em uma fase posterior da evolução se revelam
plenamente e são perceptíveis a todos. No grande realismo toma
forma, portanto, uma tendência duradoura da realidade, não ime-
diatamente evidente mas objetivamente muito mais importante:
ou seja, o homem nas suas múltiplas relações com a realidade,
mais exatamente o que há de perdurável nesta rica multiplicidade.
E, para além disso, é reconhecida e toma forma uma tendência da
evolução que, na altura da sua evolução artística, existia apenas
em germe e não podia desenvolver ainda, social e humanamente,
todas as suas características objetivas e subjetivas. A grande missão
histórica da verdadeira vanguarda na literatura é a de apreender e dar

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forma a tais tendências. Só o próprio desenvolvimento pode atestar


se um escritor pertence realmente à vanguarda, na medida em que
demonstre que reconheceu corretamente e deu forma duradoura a
qualidades importantes, a tendências do desenvolvimento, a fun-
ções sociais de tipos humanos. Depois do que acabamos de expor,
esperamos que não seja necessário voltar a apresentar argumentos
que demonstrem que a tal verdadeira vanguarda na literatura só os
realistas significativos a poderão constituir.
O que importa não é, portanto, a experiência subjetiva, por
mais sincera que seja, de se sentir como escritor de vanguarda e de
se esforçar por marchar à frente do desenvolvimento artístico, nem
também de ter sido o primeiro a introduzir inovações técnicas, por
mais ofuscantes que tenham sido – o que importa é antes o conteúdo
social e humano do vanguardismo, a amplitude, a profundidade e a
verdade daquilo que é “profeticamente” antecipado. Em resumo:
o ponto de discórdia não é aqui a negação da possibilidade de um
movimento antecipador na superestrutra, mas outras questões:
quem antecipou o desenvolvimento? Em que é que antecipou? O
que é que antecipou?
Acabamos de demonstrar, por meio de alguns exemplos que
poderíamos facilmente multiplicar, aquilo que os realistas signifi-
cativos do nosso tempo anteciparam artisticamente, criando tipos.
Mas, se agora voltarmos a pôr essa questão em outros termos – o
que é que o expressionismo antecipou? –, então apenas podemos
receber – também de Bloch – a seguinte resposta: o surrealismo
(portanto, outra corrente literária, cuja incapacidade fundamental
de antecipar desenvolvimentos sociais na criação de figuras hu-
manas resultou claramente das características que os seus maiores
admiradores lhe atribuíam). O “vanguardismo” não tem, nem
nunca teve, nada a ver com a criação de “figuras proféticas”, com
uma antecipação real de desenvolvimentos posteriores.
Se, dessa forma, está esclarecido o critério do “vanguardismo”
na literatura, também não é difícil responder às perguntas con-
cretas. Quem é, pois, vanguardista na nossa literatura? Criadores
“proféticos” do tipo de Górki, ou do falecido Hermann Bahr, que,
do naturalismo ao surrealismo, se pavoneou à frente de cada nova
moda como tambor-mor para “ultrapassar” cada corrente um ano
antes de ela passar de moda? O senhor Bahr é evidentemente uma

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266 Carlos Eduardo Jordão Machado

caricatura e não está de modo algum nas minhas intenções colocá-


-lo no mesmo nível que os defensores convictos do expressionismo.
Ele é, no entanto, a caricatura de algo de real: precisamente do van-
guardismo formalista, sem conteúdo, afastado da grande corrente
de todo o desenvolvimento social.
É uma velha verdade do marxismo que se deve julgar cada
atividade humana conforme o que ela representa objetivamente em
relação à conexão conjunta, e não segundo aquilo que o próprio
sujeito atuante pensa da sua própria atividade. Portanto, por um
lado, não é necessário pretender ser deliberadamente “vanguar-
dista” em todos os aspectos (basta pensar no royaliste Balzac); por
outro lado, até mesmo a vontade mais entusiasta, a convicção mais
ardente de revolucionar a arte, de ter criado algo de “radicalmente”
novo, quando não passam de pura vontade, de pura convicção, não
podem fazer de nenhum escritor um antecipador de tendências do
desenvolvimento futuro.

Podemos traduzir esta velha verdade de uma forma bem popu-


lar: o inferno está cheio de boas intenções (der Weg zur Hölle ist mit
guten Vorsätzen gepflastert). Qualquer um de nós, se tomar a sério o
seu próprio desenvolvimento, e, por essa razão, o submeter a uma
crítica despiedosa e objetiva, chegará a esta velha verdade. Come-
çarei precisamente por explicar o modo como ela se aplica a mim
mesmo. Inverno de 1914-1915: subjetivamente, um protesto apai-
xonado contra a guerra, contra a sua absurdidade e desumanidade,
contra o seu aniquilamento da cultura e da civilização. Todo um
estado de espírito desesperadamente pessimista. Crítica do presente
capitalista como a “época da total e perfeita pecaminosidade”, para
usar a formulação de Fichte. O querer subjetivo é, consequente-
mente, um protesto empenhado em avançar. O resultado objetivo:
Die Theorie des Romans (A teoria do romance) – uma obra sob todos
os aspectos reacionária, cheia de misticismo idealista, incorreta em
todas as apreciações que faz do desenvolvimento histórico. 1922:
estado de excitação, cheio de impaciência revolucionária. Ainda
ouço à minha volta o zunir das balas da guerra vermelha contra

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os imperialistas, ainda treme em mim a agitação da ilegalidade


na Hungria; nenhuma fibra do meu ser quer aceitar o fato de que
a primeira grande onda revolucionária já passou, que a vontade
revolucionária decidida da vanguarda comunista não está em
condições de derrubar o capitalismo. Portanto, base subjetiva:
impaciência revolucionária. Resultado objetivo: a obra Geschichte
und Klassenβewuβ tsein (História e consciência de classe) – reacionária
em razão de seu idealismo, de sua concepção deficiente da teoria
do reflexo, de sua negação da dialética da natureza etc. Evidente-
mente, eu não sou o único, neste período, a quem isso sucedeu.
Pelo contrário, trata-se de um acontecimento que atingiu massas. E
aquela concepção exposta no meu antigo ensaio sobre o expressio-
nismo, que pôs em oposição tantos participantes no debate, ou seja,
a ligação estreita entre o expressionismo e a ideologia do USPD,
baseia-se, na sua essência, precisamente na velha verdade a que me
referi anteriormente.
Em nosso debate sobre o expressionismo são colocados frente
a frente – de uma forma bem expressionista – a revolução (o
expressionismo) e Noske. Na realidade, será que Noske poderia
ter vencido sem o USPD, sem as hesitações que impediram a
tomada do poder pelos conselhos, que permitiram a organização e
o armamento da reação e outras coisas? O USPD foi precisamente
a expressão organizada, no âmbito de partido, do fato de que até
mesmo as massas emocionalmente radicais dos trabalhadores ale-
mães ainda não se encontravam ideologicamente equipadas para
a revolução. A separação lenta da Liga Espartaquista a partir do
USPD, a insuficiente crítica de princípios, por ela feita a este, tra-
duzem uma faceta importante da fraqueza e do atraso representados
pelo fator subjetivo da revolução alemã, que Lenin, desde o início,
tão acertadamente criticou na Liga Espartaquista.
É evidente que toda esta situação não é simples: também no
meu antigo ensaio fiz uma distinção bem clara entre dirigentes e
massas no USPD. As massas eram instintivamente revolucionárias.
Mas também eram objetivamente revolucionárias, na medida em
que fizeram greves nas fábricas de armamento, na medida em que
desmoralizaram a Frente e na medida em que o seu entusiasmo
revolucionário conduziu à Greve de Janeiro; mas em tudo isso não
deixaram de ser vacilantes e pouco esclarecidas, deixando-se levar

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pela demagogia dos seus dirigentes. Os dirigentes eram em parte


(Kaustsky, Bernstein, Hilferding etc.) conscientemente contrarrevo-
lucionários, atuavam objetivamente, repartindo tarefas com a antiga
direção do USPD, para – como esta própria confessou – salvar a
dominação burguesa. Os dirigentes subjetiva e honestamente revo-
lucionários mostraram-se, contudo, no período de crise incapazes de
opor a esta sabotagem da revolução uma resistência eficaz; apesar da
sua honestidade subjetiva, apesar da sua resistência, eles acabaram
por ficar atrelados aos dirigentes de direita até que, finalmente,
a sua oposição se concretizou numa ruptura, na desagregação
do USPD e, assim, no seu fim. Verdadeiramente revolucionários
foram, no USPD, os esforços que, depois dos acontecimentos de
Halle, forçaram a dissolução do USPD, a superação da ideologia
do USPD.
E os expressionistas? São ideólogos. Encontram-se entre os
dirigentes e as massas. Subjetivamente, na maior parte dos casos
com convicções honestas, embora geralmente imaturas, vagas e
confusas. Simultaneamente, porém, profundamente imbuídos não
só das mesmas hesitações a que igualmente estavam sujeitas as
massas revolucionárias, imaturas, mas também de toda a espécie
de preconceitos reacionários da época, que os tornaram mais do
que abertos a toda uma fraseologia antirrevolucionária (pacifismo
abstrato, ideologia da não violência, crítica abstrata da burguesia,
extravagâncias anarquistas etc.). E, como ideólogos, fixam então
esse estado de transição ideológica, tanto conceitual como artistica-
mente; um estado de transição ideológica que – de uma perspectiva
revolucionária – é, em muitos aspectos, muito mais atrasado do que
aquele em que se encontravam as massas vacilantes do USPD. Mas
o significado revolucionário de um tal estado de transição ideológica
consiste justamente na sua fluidez, de procurar avançar, de não se
fixar. A fixação expressionista, tanto conceitual como artística,
desta ideologia de transição impediu os próprios expressionistas e
aqueles que se encontravam sob sua influência ideológica de pros-
seguirem na direção revolucionária. Este efeito pernicioso, inerente
à sistematização de ideologias de transição hesitantes, adquire um
matiz especificamente reacionário no expressionismo. Em primeiro
lugar, em razão da pretensão altissonante de assumir um papel
de chefia e de revelação sob a forma de verdades eternas, que foi

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uma característica do expressionismo nos anos da revolução. Em


segundo lugar, como consequência da tendência especificamente
antirrealista do expressionismo, que tornou impossível controlar e
ultrapassar as tendências falsas, por meio de uma realidade artisti-
camente apreendida em toda a profundidade. Na medida em que,
como vimos, o expressionismo se mantém agarrado ao ponto de
vista da imediaticidade e lhe pretende atribuir, artística e filosofica-
mente, uma profundidade e uma perfeição aparentes, ele aumenta
todos os perigos que a fixação de uma tal ideologia de transição
necessariamente implica.
Portanto, na medida em que teve de fato uma influência
ideológica, o expressionismo impediu, mais do que fomentou, o pro-
cesso de esclarecimento revolucionário daqueles que influenciou.
Também este seu efeito acompanha a ideologia do USPD: não é
por acaso que ambos se desagregam ao se chocarem com a mesma
realidade. Trata-se de uma simplificação expressionista das conexões
da realidade, quando se afirma que a vitória de Noske destroçou o
expressionismo. Por um lado, o expressionismo desmoronou-se com
o fim da primeira vaga da revolução, de cujo insucesso a ideologia
do USPD foi enormemente culpada; por outro lado, desmorona-se
em consequência do esclarecimento da consciência revolucionária das
massas, que começaram a ultrapassar, cada vez mais energicamente,
a fraseologia revolucionária dos primeiros tempos da imaturidade.
Não devemos esquecer que não foi apenas a derrota da primeira
onda revolucionária que, na Alemanha, destronou o expressio-
nismo, mas também a consolidação real da vitória da revolução
proletária na União Soviética. Quanto mais firme se tornou o
domínio do proletariado, quanto mais extensa e profundamente o
socialismo impregnou a economia da União Soviética, quanto mais
ampla e profundamente as massas dos trabalhadores foram abran-
gidas pela revolução cultural, tanto mais enérgica e decididamente
a arte “de vanguarda” na União Soviética foi sendo repelida pelo
realismo que se tornava cada vez mais consciente. A derrota do
expressionismo é, afinal de contas, o resultado do amadurecimento
das massas revolucionárias. Precisamente a linha de evolução de
autores como Maiakovski ou, no nosso país, Becher, mostra que é
aqui que devemos procurar, e havemos de encontrar, a verdadeira
razão da morte do expressionismo.

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Será o nosso debate uma discussão puramente literária? Creio


que não. Acho que a luta entre correntes literárias e a sua fun-
damentação teórica não teria levantado tanta celeuma, não teria
provocado um interesse tão grande, se as últimas consequências
dessa discussão não fossem tidas como importantes para uma ques-
tão política que diz respeito a todos nós, que nos move do mesmo
modo: a questão da Frente Popular.
Bernhard Ziegler lançou na discussão, de uma forma muito
extrema, a questão do caráter popular da arte. Sente-se por todo
lado a excitação que esta problemática provoca, e este vivo inte-
resse é, sem dúvida, algo de positivo. Ora, Bloch quer salvar no
expressionismo este caráter popular. Ele afirma: “O expressionismo
não teve qualquer atitude de alheiamento arrogante em relação ao
povo, antes pelo contrário: o ‘Blauer Reiter’ reproduziu os vitrais
de Murnau, foi o primeiro a debruçar-se sobre esta comovente e
inquietante arte dos camponeses, sobre os desenhos das crianças e
dos presos, sobre os documentos impressionantes dos loucos, sobre
a arte dos primitivos”.
Todavia, uma tal concepção do caráter popular da arte vem
lançar a confusão. Esse caráter não consiste em retomar os produtos
“primitivos” de um modo ideologicamente indiscriminado, estili-
zante, refinado. A arte verdadeiramente popular não tem nada a
ver com isso. Caso contrário, qualquer ricaço que coleciona vitrais
ou escultura africana, qualquer esnobe que saúda na loucura uma
libertação dos indivíduos dos grilhões da razão mecanicista seria
também um defensor do caráter popular da arte.
Hoje, não é certamente fácil chegar a uma noção correta do
popular. Já que a destruição, em si mesma economicamente pro-
gressiva, das antigas formas de vida do povo pelo capitalismo, cria,
no próprio povo, uma insegurança na sua visão de mundo, nos seus
anseios culturais, no gosto, no juízo moral – cria possibilidades de
envenenamento demagógico. E o recorrer, simplesmente e sem
qualquer critério, e antigos artigos da produção popular, não é, de
modo algum, em todas as circunstâncias ou em todos os contextos,
progressista, nem significa um apelo aos instintos vivos do povo, os
quais, apesar de todos os obstáculos, são forças impulsionadoras.

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Um capítulo da história da modernidade estética 271

Pelos mesmos motivos, também a ampla difusão de um produto lite-


rário ou de uma corrente literária não representa, em si mesma, um
critério para definir o caráter popular da arte. Tanto o tradicional
atrasado (por exemplo certa “arte regional”) como o moderno de
má qualidade (o romance policial etc.) alcançaram grande divulga-
ção entre as massas, sem terem, sob qualquer aspecto, características
verdadeiramente populares.
Apesar de todas essas reservas, não deixa de ser importante
saber o quê, da literatura autêntica do nosso tempo, penetrou nas
massas, e em que medida. Qual escritor de toda a “vanguarda” das
últimas décadas poderá, todavia, sob este aspecto, ser comparado
com Górki, Anatole France, Romain Rolland ou Thomas Mann?
A tiragem de milhões de exemplares de um livro de nível artístico
tão elevado e sem compromissos como Os Buddenbrooks é motivo
de reflexão para todos nós. O desenrolar de toda problemática
do caráter popular da arte é aqui “um campo demasiado vasto”,
como costuma dizer o velho Briest no romance de Fontane. Res-
tringir-nos-emos a dois momentos, sem ter também neste ponto a
pretensão de os tratar exaustivamente.
Em primeiro lugar, a relação com a herança. Em qualquer
relação viva com a vida do povo, a herança significa o processo
dinâmico do progresso, um autêntico aproveitar, superar, conservar,
aperfeiçoar das forças vivas e criadoras, nas tradições da vida do
povo, dos seus sofrimentos e alegrias, das suas revoluções. Possuir
uma relação viva com a herança cultural significa ser um filho do seu
povo, ser impelido pela corrente de desenvolvimento do seu povo.
Assim, Máximo Górki é um filho do povo russo, Romain Rolland
do francês, Thomas Mann do alemão. O conteúdo e o tom de seus
escritos – apesar de toda a originalidade individual, apesar de todo
um afastamento de um primitivismo artificial, estilizante, eclético e
falsamente requintado – provêm da vida, da história do seu povo; são
um produto orgânico da evolução do seu povo. Por essa razão, apesar
do elevado nível artístico de suas obras, há nelas um tom que pode
ter, e realmente tem, repercussão junto às vastas massas populares.
Em oposição total a tudo isso encontra-se o “vanguardismo”,
na sua atitude para com a herança cultural; ele age em relação à
história do seu povo como se se tratasse de uma grande venda de
refugos. Se folhearmos os escritos de Bloch, veremos que se fala de

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herança cultural e dos seus herdeiros apenas em termos de “peças


aproveitáveis” dessa herança, “pilhar” etc. Bloch é um pensador e
um estilista demasiado consciente, para que estas palavras possam
ser deslizes ocasionais de sua pena; elas exprimem antes uma atitude
geral em relação à herança cultural. Essa herança é para ele uma
massa morta, na qual se pode remexer à vontade, à qual se podem
ir buscar, de acordo com as necessidades do momento, não importa
que elementos, para os montar depois, de uma forma arbitrária e
ainda em função de necessidades ocasionais.
Esta concepção exprimiu-a Hanns Eisler de uma forma bem
incisiva num artigo que escreveu em colaboração com Bloch.
Estava – e com razão – entusiasmado com a representação do Dom
Carlos, em Berlim. Todavia, em vez de refletir naquilo que Schiller
realmente era, no que tinha sido a sua verdadeira grandeza, em
que residiam as suas limitações, no que ele significou e ainda hoje
significa para o povo alemão, na quantidade de entulho constituído
por preconceitos reacionários, acarretado pelos ideólogos da reação,
que é necessário remover para fazer da influência progressista e
popular de Schiller uma arma da Frente Popular, da libertação do
povo alemão – em vez disso, ele organiza, no que se refere à herança
cultural, o seguinte programa de ação para os escritores emigrados:
“Mas qual é a nossa tarefa fora da Alemanha? É evidente que ela
apenas poderá ser a de ajudar a selecionar e preparar material clássico
que sirva para essa luta” (grifado por mim, G. L.).
Eisler propõe, portanto, que dos clássicos sejam extraídas as cita-
ções, de modo a obter-se uma espécie de “Büchmann” antifascista,
para depois se fazer uma montagem dos “elementos adequados”.
Não é possível tomar uma atitude mais alheia, pretensiosa, negativa
em relação ao glorioso passado literário do povo alemão.
Mas a vida do povo é objetivamente qualquer coisa de con-
tínuo. Uma teoria como a dos “vanguardistas”, que nas revoluções
vê apenas rupturas e catástrofes, que pretende destruir tudo o que
é passado e romper toda a relação com o passado grande e glorioso,
é a teoria de Curvier e não a de Marx e de Lenin. Trata-se de um
pendant anarquista à teoria da evolução do reformismo. Este apenas
vê continuidade, aqueles apenas rupturas, abismos e catástrofes.
Mas a história é a unidade dialética viva da continuidade e da descon-
tinuidade, da revolução e da evolução.

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Neste ponto, como em todas as coisas, tudo depende da correta


apreensão do conteúdo. Lenin diz o seguinte acerca da concepção
marxista da herança cultural: “O marxismo alcançou o seu signifi-
cado universal como ideologia do proletariado revolucionário, na
medida em que não repudiou de modo algum as valiosas conquistas
da época burguesa, mas, pelo contrário, se apropriou de e reelabo-
rou tudo o que de válido existiu na evolução, de mais de dois mil
anos, do pensamento e da civilização humanos”.
Portanto, tudo depende de se reconhecer claramente onde se
deve procurar o que é realmente válido.
Se a questão estiver corretamente formulada, ou seja, em es-
treita conexão com a vida do povo e suas tendências progressistas,
ela nos conduzirá organicamente ao nosso segundo complexo de
problemas, à questão do realismo. As concepções modernas da arte
popular, fortemente influenciadas pelas teorias “vanguardistas” da
arte, relegaram para um segundo plano de interesses o realismo
original, patente na atividade artística do povo. Também em relação
a esta questão não nos é possível expor aqui o problema em toda a
sua amplitude; temos de nos limitar a chamar a atenção para um
fator essencial.
Estamos falando aqui de literatura com escritores. E é necessário
recordar que, em consequência do curso trágico da história alemã, a
corrente realista popular da nossa literatura nunca teve tanta força
como na Inglaterra, na França ou na Rússia. Mas precisamente este
fato deve ser para nós um incentivo que nos leve a concentrar toda
nossa atenção sobre a literatura realista popular do passado alemão,
de que nos dispomos, a conservar as suas tradições produtivas e
vivificadoras. E se nos orientarmos nesta direção, verificaremos que,
apesar de toda a “miséria alemã”, esta literatura realista popular
produziu obras-primas de tão grande impacto, como por exemplo o
Simplizissismus de Grimmelshausen. Deixemos aos Eislers a depre-
ciação do valor de montagem dos elementos fragmentados desta
obra-prima – para a literatura alemã viva ela permanecerá, na sua
grandeza (e com as suas limitações), como um todo vivo e atual.
Já que só quando observamos como um todo as obras-primas
do realismo passado e do presente, e delas aprendemos, quando
cultivamos a sua difusão e fomentamos a sua difusão correta é
que o valor atual, cultural e político da grande criação realista se

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revela: a sua inesgotável diversidade em oposição à unilateralidade – na


melhor das hipóteses, espirituosa – do “vanguardismo”. A Cervantes
e a Shakespeare, a Balzac e a Tolstói, Grimmelshausen e a Gottfried
Keller, a Górki, a Thomas e Heinrich Mann têm acesso os leitores
das amplas massas do povo, a partir das mais diversas facetas da sua
própria experiência da vida. A repercussão vasta e duradoura do
grande realismo reside precisamente no fato de existir um número
ilimitado de portas – assim o poderíamos formular – que possibilita
este acesso. A riqueza da criação artística, a apreensão profunda e
correta de fenômenos duradouros e típicos da vida humana está
na origem da grande repercussão progressiva dessas obras-primas;
no processo de apropriação, os leitores dessas obras clarificam as
próprias vivências e experiências, alargam o seu horizonte humano
e social e, através de um humanismo vivo, são preparados para
assimilarem as opções políticas assumidas pela Frente Popular
e apreenderem o humanismo político dessas obras; mediante a
compreensão das grandes épocas progressistas e democráticas na
evolução da humanidade, que a obra de arte realista nos propor-
ciona, é preparado, no íntimo das grandes massas, um solo fértil
para a democracia revolucionária do novo tipo representado pela
Frente Popular. Quanto mais enraizada neste solo se encontra
a literatura de combate antifascista, tanto mais profundamente
enraizados serão os tipos exemplares e odiosos que ela cria – tanto
maior será a sua ressonância no povo.
A Joyce ou a outros representantes da literatura “vanguardista”
conduz apenas uma passagem muito estreita: é necessário “descobrir
certos truques” para se conseguir compreender o que aí se passa. E,
enquanto no caso do grande realismo o acesso mais fácil propicia
também uma grande riqueza de produtos humanos, com a literatura
“vanguardista” as grandes massas do povo não podem apreender
nada. Precisamente porque nesta literatura falta a realidade, a
vida, ela impõe (para utilizar a linguagem política: sectariamente)
aos seus leitores uma concepção estreita e subjetivista da vida,
enquanto o realismo, pela riqueza de aspectos a que dá forma,
responde às perguntas que o próprio leitor põe – respostas da vida
a perguntas que a própria vida colocou! A compreensão da arte de
“vanguarda”, só alcançável à custa de um grande esforço, propor-
ciona, pelo contrário, reminiscências tão subjetivistas, deturpadas

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e deformadas da realidade, que o homem do povo jamais as poderá


traduzir para a linguagem das suas próprias experiências.
A relação viva com a vida do povo, o desenvolvimento pro-
gressista das próprias experiências das massas – é esta precisamente
a grande mensagem social da literatura. Não é por acaso que o
jovem Thomas Mann, ao criticar acerbamente nas suas obras a
problemática e a incoerência com a vida da literatura ocidental e
ao colocá-la, mediante uma profunda crítica criativa, no seu devido
lugar no contexto da literatura, denomina a literatura russa do
século XIX de “santa”. O que ele aqui tinha em mente era precisa-
mente este progressismo estimulante e popular.
Frente Popular significa: luta por um autêntico caráter popular
da arte, uma solidariedade múltipla com toda a vida de cada povo,
tornada histórica – historicamente peculiar; significa encontrar
diretrizes e opções que, a partir desta vida do povo, despertem
as tendências progressistas para uma nova vida politicamente
ativa. Esta compreensão viva da peculiaridade da vida do povo
não exclui, naturalmente, uma crítica a sua própria história –
pelo contrário: uma tal crítica é a consequência necessária de um
conhecimento autêntico dessa história, de uma compreensão
autêntica da vida de cada povo! Já que as tendências democráticas
progressistas não conseguiram impor-se por completo e sem atritos
em nenhum povo, e muito menos na história do povo alemão. A
crítica deve, porém, partir do conhecimento exato e profundo da
verdadeira história. E, como os obstáculos mais fortes ao progresso
e à democracia (tanto no campo político como cultural) foram
trazidos precisamente pelo período imperialista, uma crítica incisiva
das manifestações de decadência política, cultural e artística deste
período é um elemento necessário quando se pretende abrir cami-
nho para uma arte verdadeiramente popular. As manifestações
essenciais de decadência no campo da arte pertencem à luta –
consciente ou inconsciente – contra o realismo e o consequente
empobrecimento e isolamento da literatura e da arte. Verificamos, ao
longo dessas considerações, que este processo de decadência não
deve ser de modo algum tomado como uma fatalidade, que por
todo o lado se manifestaram, e ainda hoje se manifestam, forças
vivas, forças que combatem esta decadência, não só política e
teoricamente, mas também por meio da criação artística. A nossa

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tarefa é a de nos orientarmos pelas forças positivas do realismo


autêntico, profundo e significativo.
A emigração, as lutas da Frente Popular na Alemanha e noutros
países reforçaram necessariamente essas tendências férteis. Bastaria,
talvez, reportarmo-nos aqui a Heinrich e a Thomas Mann, que,
partindo de premissas diferentes, atingiram precisamente nesses
anos, no plano filosófico e literário, um nível ainda mais elevado do
que anteriormente. Mas, neste caso, trata-se de uma ampla tendência
de desenvolvimento na literatura antifascista. Basta compararmos o
romance Die Söhne (Os filhos) de Feuchtwanger com a sua outra
obra Der jüdische Krieg (A guerra judia) para se verificar como ele
se esforça, com todo o empenho, por ultrapassar certas tendências
de um subjetivismo histórico desligado do povo e apropriar-se dos
problemas relacionados com a verdadeira vida do povo e dar-lhes
forma artística. Não há muito tempo, Alfred Döblin pronunciou
nos SDS (Schutzverband Deutscher Schriftsteller [Associação de
Proteção dos Escritores Alemães]) de Paris uma conferência na
qual se confessou partidário da presença da atualidade político-
-histórica na literatura e do caráter exemplar do realismo gorkiano,
o que tem, para a evolução da nossa literatura, um significado que
não se pode menosprezar. E Brecht publicou, no terceiro número
da revista Das Wort, uma pequena peça em um ato, Der Spitzel (O
delator), em que trava uma luta contra a desumanidade do fascismo,
de uma teoria realista, polifórmica, matizada, de um modo novo na
sua obra; ele nos dá nessa pequena peça uma imagem viva, media-
tizada por destinos humanos, do terror fascista na Alemanha, mostra
como este desagrega todos os alicerces humanos da vida familiar, a
confiança entre marido, mulher e filho, como a desumanidade do
fascismo desfaz e destrói, nas suas bases elementares, aquilo que
diz proteger, a família. E para além dos autores que acabamos de
mencionar existe ainda um grande número – precisamente os mais
significativos e talentosos – que já trilhou este caminho ou começa
precisamente a trilhá-lo.
Com esta afirmação não se deve, porém, julgar que a luta contra
as tradições antinaturalistas do período imperialista já se encontra
encerrada. A nossa discussão mostra, pelo contrário, que estas tradições
se encontram ainda fortemente enraizadas em alguns importantes e
fiéis adeptos da Frente Popular, politicamente progressistas. Daí vem

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precisamente a grande importância assumida por uma tal discussão,


que tem decorrido em tom de camaradagem, mas intransigente.
Já que não só as massas, também os ideólogos (os escritores e os
críticos) aprendem à custa das suas próprias experiências na luta
de classes. Seria um grande erro não ver aquela tendência viva e
crescente para o realismo que, justamente em consequência das
experiências da luta da Frente Popular, se apoderará até mesmo
daqueles escritores que, antes da emigração, tinham uma atitude
completamente diferente perante essas questões.
Demonstrar a conexão íntima, múltipla, multilateralmente me-
diatizada, entre Frente Popular, caráter popular da literatura e autêntico
realismo, foi a função destas considerações.

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