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o mito de apolo e dafne

Sobre o autor
Louis de Silvestre (1675-1760)

Louis de Silvestre nasceu em Sceaux, cidade ao sul de Paris, França, no dia 23 de


junho de 1675. Filho de Israel Silvestre, pintor e gravador oficial do Delfim Luís da
França. Teve suas primeiras lições de pintura com o pai, sendo depois treinado por
Charles Le Brun e Bon Boullogne. Parte para Roma, a fim de terminar seus estudos,
onde é acolhido por Carlo Maratta, que terá imensa influência em sua pintura.
Especializa-se na pintura histórica e de retratos.
Retorna a Paris em 1702, sendo aceito na Academia Real de Pintura e Escultura
logo em seguida. Torna-se professor dessa instituição em 1706. Destacam-se desse
período a cena bíblica do paralítico do templo e o retrato do rei francês Luís XV, de
1715, mantido na Galeria de Dresden (Duissieux, 1876).
Recebe convite do príncipe Frederico Augusto da Saxônia para trabalhar em
Dresden, na corte de seu pai, o rei Augusto II da Polônia.1 Silvestre aceita a oferta e
recebe dispensa da corte francesa, chegando em Dresden em 1718. Tanto Augusto II,
quanto seu filho, admiravam o trabalho de Silvestre sobremaneira, concedendo-lhe
as maiores honras disponíveis para o artista. Foi escolhido pintor oficial da corte,
depois diretor da Academia de Dresden, em 1727. O príncipe Frederico, agora Augusto
III da Polônia, concede-lhe um título nobiliárquico em 1741, fazendo o mesmo com

1 Entre os séculos XVI e XVIII, a Polônia e a Lituânia formavam uma monarquia dual e eletiva, chamada de
Comunidade Polaco-Lituana. Os nobres poloneses e lituanos elegiam o monarca a partir da Sejm, o parlamento
polonês. O rei eleito também acumulava o título de Grão-duque da Lituânia, e a única exigência era que o
candidato fosse católico. À época de Louis de Silvestre, Augusto II da Polônia era também Eleitor da Saxônia, e
sua corte ficava em Dresden.
Maurice Quentin de La Tour (1704-1788)
Retrato do pintor Louis de Silvestre, c. 1753
Pastel sobre papel
Museu Antoine Lecuyer, Saint-Quentin (FR)

seu irmão, o também pintor Charles-François de Silvestre. Nesse período, executa


inúmeros trabalhos, tanto em Dresden, quanto em Varsóvia, juntamente com sua
esposa, Marie-Catherine Hérault.
Destacam-se, desse período na corte polonesa, os diversos retratos da família
imperial, como também diversas cenas mitológicas. Destacam-se dessas os painéis
que adornam a Sala do Trono do Palácio Moritzburg, nos arredores de Dresden,
com cenas das Metamorfoses, de Ovídio (Fulco, 2016). Silvestre formou diversos
discípulos em Dresden, destacando-se entre eles Johann Eleazar Schenau, pintor que
mais tarde assumiria a direção da Academia de Dresden, e também da manufatura de
porcelanas de Meissen. Sua filha, Marie-Maximilienne, também se tornou pintora.
Alcançado o prestígio na corte polonesa, de Silvestre acumulou tanto fortuna
crítica, quanto material. Decidiu então aposentar-se do serviço em Dresden, obtendo
permissão para regressar à França por volta de 1752. Nesse ano é nomeado diretor
da Academia de Paris, recebendo uma pensão anual do rei Luís XV e morando em
cômodos no Palácio do Louvre. Ali morre no dia 11 de abril de 1760.
O Mito de Apolo e Dafne

A pintura Cena mitológica com Apolo e Dafne, atribuída a Louis de Silvestre, e


que se encontra em exposição na Casa Museu Eva Klabin, obedece a iconografia
clássica estabelecida pela narrativa do poeta romano Ovídio, a partir de sua obra
Metamorfoses, em seu livro I. Ovídio cria uma narrativa das transformações ocorridas,
primeiramente, na natureza para a criação do mundo a partir do caos primordial, para
depois recontar os mitos clássicos que envolvem diversas transformações, como
homens que se tornam animais ou objetos inanimados.
O mito de Apolo e Dafne, assim reunido por Ovídio (1844, 1 v, pp. 34-37),
desenrola-se da seguinte forma. Apolo, deus romano da beleza, da música e da
caça, desdenha do Cupido, deus do amor, filho de Vênus, e de sua capacidade como
arqueiro. Cupido argumenta que, embora não use suas flechas para caça, nem mesmo

Folha de rosto do livro Metamorfoses, de Ovídio


Edição holandesa de 1566
Cenas do mito de Apolo: Apolo e a serpente de Delfos (esq.);
Apolo e Cupido (centro); Apolo e Dafne (dir.)
Ilustração do livro Metamorfoses, de Ovídio
Veneza, c. 1522

os deuses são capazes de escapar de seu ferimento. Para provar o que disse, Cupido
voa até o Parnaso, uma montanha perto da cidade de Delfos, na Grécia, onde se
reuniam as ninfas, e ali encontra Dafne, filha do deus-rio2 Peneu (divindade atribuída
aos rios da região da Tessália). Cupido então desfere suas flechas: a de ponta aguda
e feita de ouro contra Apolo, e a rombuda de chumbo contra Dafne. Apolo então se
apaixona instantaneamente pela ninfa, mas esta lhe rechaça de todas as formas,
recusando seus avanços. Cansada da perseguição, Dafne implora que o pai lhe ajude
a escapar do seu infortúnio. Sem poder insurgir-se contra um deus, Peneu transforma
a própria filha em um loureiro. Isso, entretanto, não diminui o ímpeto de Apolo. O
deus decide, então, adornar-se com os galhos e as folhas do loureiro, em sinal de seu
amor por Dafne.3

2 Os deuses-rio (do grego Ποταμοi, “rios”), são divindades atribuídas aos rios e riachos da terra, filhos de Oceano
(o rio primordial) e de Tétis, sua irmã. Por serem descendentes dos titãs, são divindades mais antigas que os deuses
do Olímpo (Cf. HESÍODO. Teogonia. Cambridge, MA.,Harvard University Press; London, William Heinemann Ltd, 1914).

3 De acordo com Bulfinch (2002), a partir de Ovídio (1844), a coroa de louros seria dada como prêmio aos generais
romanos vitoriosos em batalha. Ovídio, a fonte original, acrescenta que, antes dos generais vitoriosos, os poetas
seriam os primeiros agraciados com a coroa de louros – sendo Apolo também o deus consagrado às artes. Será
em Heródoto (1899) que encontraremos a referência a uma coroa de ramos como prêmio para os vencedores dos
esportes olímpicos, mas é uma coroa de ramos de oliveira.
Louis De Silvestre (1675-1760)
Cena mitológica com Apolo e Dafne, séc. XVII-XVIII
Óleo sobre tela
Rio de Janeiro, Casa Museu Eva Klabin (BR)

Conforme narrado por Ovídio, vemos, no alto da pintura de de Silvestre, o


responsável pela querela, Cupido, carregando as flechas do amor (de ponta aguda e
feita de ouro) e a do ódio (de ponta rombuda e feita de chumbo). Ele parece observar
a cena convulsiva que se desenvolve abaixo dele. Vindos da direita para esquerda,
em flagrante perseguição, Apolo, ostentando sua aljava, tenta agarrar a ninfa Dafne
com o braço direito. Dafne, em gesto de extremo terror, afasta-se da tentativa, ao
mesmo tempo em que olha para o pai, implorando por seu auxílio. Recostado em uma
estrutura de características clássicas, Peneu estende a mão em direção à filha, como
que atendendo seu chamado. Ele já ostenta uma coroa de louros sobre a cabeça, em
antecipação ao seu gesto. Por fim, pode-se notar as mãos de Dafne, já iniciando sua
metamorfose em loureiro, onde galhos e folhas crescem no seu lugar. Em um único
quadro, de proporções medianas, de Silvestre consegue a proeza de sintetizar um mito
complexo, permeado de camadas e simbolismos.
Daniel Fulco (2016, p. 119) atesta que o rei Augusto II encomendou à de Silvestre
um grupo de painéis, baseados nas Metamorfoses de Ovídio, que adornariam a Sala
do Trono do Castelo de Moritzburg. Essa encomenda teria sido feita entre 1726 e 1730
e consistia de quatro painéis, com os seguintes mitos: Diana e Acteon, Diana e Calisto,
Diana e Endimião e Diana e Apolo assassinando os filhos de Níobe. Muito embora
o mito de Apolo e Dafne não faça parte desse conjunto, o quadro da Casa Museu Eva
Klabin aproxima-se dele pela afinidade ao tema, podendo ser datado do mesmo período.
O sucesso do tema das Metamorfoses entre a aristocracia germânica talvez se
explique pelo seu caráter transitório. As metamorfoses são aplicadas ao capricho dos
deuses, direta ou indiretamente, e por isso são inescapáveis. A lembrança dessas
metamorfoses transmite ao espectador a sensação de que nada é feito para durar, e
que todas as coisas estão em constante mudança. No entanto, o trabalho laborioso, os
grandes feitos históricos destinados aos monarcas, isso pode garantir imortalidade.
O próprio Ovídio traz essa metáfora ao final de sua obra, ao afirmar:

O trabalho está concluído, e não teme a fúria


Das tempestades, do fogo, da guerra, ou do tempo;
Vindo, cedo ou tarde, o dia inevitável da morte,
Este ser mortal pode apenas sucumbir.
Minha parte mais nobre, minha fama, esta chegará aos céus,
E em tempos vindouros surgirá com honra floreada.
Como o que obedece ao poder ilimitado de Roma,
Todas as tribos e nações entoarão o seu canto.
Se isso permite ao poeta a divindade,
Então uma parte da eternidade será minha.
(Ovídio, 2 v, 1844, p. 183, trad.)4

Também é atribuída a Louis de Silvestre uma outra cena mitológica relacionada a


Apolo e Dafne, localizada no Museu Magnin, de Dijon, França. A cena é bem mais clara
que a versão da Casa Museu Eva Klabin, onde se pode notar, ao fundo, um céu azul
com nuvens e, talvez, a base de uma montanha à esquerda da cena. Os personagens
principais da cena se mantêm, com o Cupido acima de todos, Apolo perseguindo
Dafne também da direita para a esquerda, e Peneu logo abaixo de todos. Uma ânfora
de timbre neoclássico ao seu lado, como representação das águas do rio que lhe
é atribuído. Detalhe curioso do quadro é que Dafne não é retratada no momento
de sua metamorfose. Aliás, não há indicativo disso no corpo da ninfa. A alusão da
transformação vê-se ao fundo da imagem, onde se observa um loureiro ao natural.

4 The work is finished, which nor dreads the rage / Of tempests, fire, of war, or wasting age; / Come, soon or late,
death’s undermined day, / This mortal being only can decay. / My nobler part, my fame, shall reach the skies, / And to
late times with blooming honours rise. / Whatever the umbounded Roman power obeys, / All climes and nations shall
record thy praise. / If this allowed to poets to divine, / One half of round eternity is mine.
Louis De Silvestre (1675-1760)
Cena mitológica com Apolo e Dafne, séc. XVIII
Óleo sobre tela
Dijon, Museu Nacional Magnin (FR)
Atribuição

O mito por outros artistas

No século XV, Antonio del Pollaiuolo executa uma pintura baseada no mito de Apolo
e Dafne. O deus está prestes a finalmente capturar a ninfa, mas a metamorfose já é
bastante visível: ambos os braços de Dafne já se transformaram completamente em
galhos de loureiro, e a perna esquerda já se encontra rija como tronco de madeira.
Pollaiuolo localiza as personagens em sua Florença natal, visto que o vale do rio
Arno é visível na paisagem ao fundo. As vestes dos personagens, também, em nada
lembram os drapeados atribuídos à tradição clássica. E como expressão, a cena se
desenrola de forma pacífica e resoluta. O que se observa na obra de Pollaiuolo é sua
maestria na técnica do desenho, e a complexidade com que desenvolve a perspectiva
aérea da cena (Freedman, 2011/2012, p. 213).
No século XVII, Gian Lorenzo Bernini executa seu grupo escultórico Apolo
e Dafne, por encomenda do cardeal Scipione Borghese. É, talvez, a obra mais
emblemática do mito. Vemos Apolo em completo encantamento por Dafne, pronto
para consumar sua paixão. Ele toca os últimos resquícios de humanidade da ninfa,
apalpando seu ventre em uma tentativa vã de um último abraço. Em contraste, temos
a expressão contrariada de Dafne, já em seu processo de metamorfose. Ela ergue
os braços, como que afastando essa última tentativa de contato físico. Suas mãos
já se tornaram galhos com folhas, e o resto do corpo segue o mesmo caminho. A
transmissão dessa dramaticidade, em sentimentos tão conflitantes, fazem de Bernini
um mestre na “suprema arte da ornamentação teatral” (Gombrich, 2013, p. 333), tão
característica do Barroco europeu.

Antonio del Pollaiuolo (1432-1498)


Apolo e Dafne, c. 1470/80
Óleo sobre madeira
Londres, National Gallery (GB)
Gian Lorenzo Bernini (1598-1680)
Apolo e Dafne, 1622-1625
Mármore
Roma, Galeria Borghese (IT)

Bibliografia
DUSSIEUX, Louis-Étienne. Les Artistes français à l’étranger. Paris; Lyon, Jacques Lecoffre, 1876.
FREEDMAN, Luba. Apollo and Daphne by Antonio del Pollaiuolo and the poetry of Lorenzo de Medici.
In: Memoirs of the American Academy in Rome, Vol. 56/57 (2011/2012), pp. 213-242.
FULCO, Daniel. Exuberant Apotheoses: Italian Frescoes in the Holy Roman Empire: Visual Culture and
Princely Power in the Age of Enlightenment. Boston: Brill, 2016.
GOMBRICH, E.H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013.
HERÓDOTO. Histórias. Nova Iorque: D. Appleton and Company, 1899.
OVÍDIO. Metamorfoses. 1 v. Nova Iorque: Harper & Brothers, 1844.
OVÍDIO. Metamorfoses. 2 v. Nova Iorque: Harper & Brothers, 1844.

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