BUENO Alexei Poesia Completa Rio de Janeiro Lacre

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BUENO, Alexei. Poesia Completa.

Rio de de Alexei Bueno se revela densamente


Janeiro: Lacre, 2013. moderna, porosa e permeável tanto aos
fluidos de cima quanto aos detritos do
Marcos Pasche* baixo. E é isso o que se verifica em Poesia
Completa (2013), lançada pela ocasião do
cinquentenário do autor. A publicação
Para a crítica literária avessa a maniqueís- reúne os doze livros de versos que Alexei
mos, a obra de Alexei Bueno denota um Bueno publicou e manteve em sua bi-
problema, referente à relação de pertenci- bliografia, aos quais se somam Cinco fu-
mento entre autor e época. Por mais que gas cromáticas, volume inédito.
se aponte a heterogeneidade para classifi- Uma quantidade considerável dos
car a poesia contemporânea, é possível títulos poéticos do autor de Uma história
verificar que os mecanismos de legitima- da poesia brasileira dá mostras do quanto
ção social da literatura – as grandes edito- sua arte evoca símbolos de requinte: As
ras, as feiras do ramo, os prêmios mais escadas da torre, Poemas gregos, A decompo-
badalados, os suplementos jornalísticos e sição de Johann Sebastian Bach, Lucerná-
as ementas universitárias – tendem a en- rio e A juventude dos deuses indicam o teor
dossar como representantes do presente de solene ancestralidade que perpassa a
autores e obras explicitamente herdeiros escrita de Alexei. Passando ao interior dos
do Modernismo (o mais festivo e icono- livros, poemas como “Helena”, de Lucer-
clasta). Por essa perspectiva, não há razão nário (1993), confirmam o que os nomes
para ver como “de hoje” um poeta que sinalizam:
em 1985 publica um volume intitulado
No cômodo onde Menelau vivera
Poemas gregos, que em tudo parece de- Bateram. Nada. Helena estava morta.
monstrar uma opção pelo passadismo. A última aia a entrar fechou a porta,
Mas não se trata de passadismo.
Trata-se de uma escolha pelo poético, e Levaram linho, unguento, âmbar e cera.
não pelos dogmas que se formam acerca
dele. Portanto, se olhada de perto, a obra Noventa e sete anos. Suas pernas
Eram dois secos galhos recurvados.
Seus seios até o umbigo desdobrados
* Professor adjunto de Literatura Brasileira da Uni- Cobriam-lhe três hérnias bem externas.
versidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e
crítico literário, autor de De pedra e de carne (Confra- Na boca sem um dente os lábios frouxos
ria do Vento, 2012). Murchavam, ralo pelo lhe cobria

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O sexo que de perto parecia nifesta o homem de uma era desprovida de


Um pergaminho antigo de tons roxos. deuses e amputada de helenismos. Nisso se
Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas, inscrevem os Poemas gregos, livro em que
Compuseram seus ossos quebradiços, mimesis e poiesis se dão em proporção
Deram-lhe à boca uns rubores postiços, equânime. Se nele tudo contribui para que
Envolveram-na em faixas perfumadas. seja percebida convictamente a escrita de
um autêntico aedo do período clássico ou
Então chamas onívoras tragaram
A carne que cindiu tantas vontades. helenístico, em nada, porém, deixará de
Quando sua sombra idosa entrou no Hades haver indícios de um poeta em particular:
As sombras dos heróis todas choraram (p. 279-80).
Eu, contrário ao geral dos outros homens,
Entretanto, não deixa de haver na Muito pouco respeito por vós, deuses,
confirmação uma nota dissonante. Num Tenho, e nem temo que em castigo um raio
Divida-me a cabeça (p.180).
poeta supostamente passadista, orgulhoso
da herança clássica, só é pensável encon- Aí não reside um protesto unilate-
trar devoção a essa herança, o que, nos ral ou mesmo a negação absoluta de con-
textos, se ratificaria pela total evitação do cepções culturais consagradas pelos anos.
que pudesse manchar estátuas e templos. A poesia de Alexei Bueno tem na coexis-
Em “Helena”, o discurso é plataforma de tência de contrários sua carne e seu espí-
uma protagonista mitológica (de uma mi- rito, dando ao termo “atualidade” um
tologia protagonista na cultura ociden- sentido tão amplo quanto intrincado. Se
tal), alicerçada em quadras decassilábicas é acertado constatar a inserção que o po-
e tomada por carga imagística de alta vol- eta faz da matéria clássica na poesia atual,
tagem. Mas, como se constata em cada não menos correto é apontar a maneira
uma das suas cinco estrofes, o poema tra- moderna como trabalha elementos ances-
ta do monumento em estado de ruína. trais, inserindo na dicção clássica elemen-
Helena, eternizada como a mais bela das tos próprios do homem contemporâneo,
mulheres, é apresentada nas duas pontas “Pois ser um é ser morto” (p. 175), como
de seu declínio: uma é a decrepitude do diz o primeiro dos Poemas gregos. Assim,
corpo e o fim da vida; a outra, a vida em se a estrutura padronizada foi suporte
estado de fim mesmo após a morte, com para a elegia de uma divindade, também
o choro das sombras dos heróis. Em “He- o será para a ode “Silvia Saint”, consagra-
lena”, portanto, o discurso é plataforma da à tcheca Silvie Tomčalová Stodowa
de antagonismos: o precioso apuro for- (1976 – ), espécie de Helena pós-moder-
mal relata o avesso do esplendor, e, por na, visto ser apresentada em seu site ofi-
extensão, o poeta, ao revelar uma Helena cial como “the most beautiful pornstar”2:
com destino até então desconhecido, in-
sere na tradição uma sombra corrosiva. Teu santo nome veste
Se em Alexei Bueno há nítida assimi- A quintessência bruta
lação de matrizes helênicas, há que se per-
ceber em sua poética a forma como se ma- 2
Cf.: http://www.silviasaint.com/en#

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Ler e depois 181

Da arquetípica puta, des, no autor de Os resistentes encontra-se


Vênus baixa e celeste. a unidade constituída e potencializada
Áurea cachorra, vaca,
por uma comunhão conflitante e pelo
Por que é que os lábios tremem conflito comungante das partes que dese-
Vendo em teu rosto o sêmen jam ser na companhia de suas antíteses.
Como uma vítrea laca? As sirenes da cartilha politicamente
(...) correta têm latejado incautas, e nesse sen-
Cadela de ouro, glória
tido o poeta revela outro modo de per-
Pueril, sórdida e santa, tencimento oponente ao seu tempo (o
Asco que envulta e encanta tempo do marketing ubíquo e das decla-
Deusa auto-entregue à escória. rações em tudo calculadas). O pronun-
(...) ciamento aberto e ríspido na direção do
Louro véu do universo,
que repreende não escolhe perfis, e ad-
Sacra estátua e cadela, moesta o que vê como estúpido e espúrio:
Pisa esta alma que vela “Cansei-me dos pobres/ Como antes dos
Teu sonho áureo e perverso (p. 589-90). ricos” (p.551), diz o irônico “Humanita-
rismo”.
Ao se radiografar a poesia brasileira A confluência de itens irreconciliá-
atual, é inevitável – e procedente – o veis também se processa na estruturação
diagnóstico de um quadro multifacetado. textual. Se Alexei Bueno é frequentemen-
O receio da rotulação numa camisa-de- te rotulado como “neoconservador”, é
-força estilística impulsiona os poetas a porque nele praticamente só se nota a
procurarem caminhos próprios, o que aparência tradicionalista. No entanto, há
encontra largo respaldo numa época de em sua escrita um sólido entrecruzamen-
apelo individualista, como é a presente. to de formas consagradas pela tradição e
Ao lado dos poetas, tem recebido maior pela modernidade. Em sua bibliografia,
prestígio a crítica que, ao visitar o passa- por entre os livros em que a forma fixa é
do, identifica a idiossincrasia em meio à dominante – As escadas da torre (1984),
massa convencional. Por extensão, essa Poemas gregos (1985), Livros dos haicais
crítica age para demonstrar as estreitezas (1989), Lucernário (1993), Em sonho
das tomadas de posição grupais, o que (1999), A árvore seca (2006) e As desapari-
chega aos contemporâneos como alerta e ções (2009) – apresentam-se outros inte-
impulso a um destino independente, gralmente compostos com versilibrismo e
isento de obrigações coletivas. Assim o polirritmia hegemônicos, caso de A de-
coro cede vez ao canto solo, e de diversos composição de Johann Sebastian Bach
cantos solos compõe-se o fragmentado (1989), A via estreita (1995), A juventude
repertório geral. Considerando isso, Ale- dos deuses (1996), Entusiasmo (1997), Os
xei Bueno empreende um adventício resistentes (2001) e Cinco fugas cromáticas,
modo de afirmação da contemporaneida- trazido ao público com a edição desta Po-
de. Se o panorama se faz diversificado esia Completa. Nesses volumes, de forte
pela assembleia (laica) das individualida- carga simbolista (a estabelecer entre eles

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evidente conexão), a voz lírica, “Como de Mais que os egípcios, mais que os sumérios,
uma criança que não se conforma de não Num lapso o tempo nos fez distantes.
São língua arcaica vossos ditérios,
ter os mundos” (p. 233), traduz a convul- Homens modernos. Todo hoje é antes
são de um espírito que, aflito pelos limites (p. 555).
da unidade, em tudo se vê e a tudo deseja
tocar: “Roçam-se em mim, incontadas, as Mas a poesia é recusa e reação: re-
vidas todas – e as vidas de cada vida –/ cupera para a comunidade o que não
Como um turbilhão de pássaros que o pode se perder, e pelo já havido reinventa
vento assopra ao mar queixoso” (p. 391). os modos de permanecer e de falar aos
A poética de Alexei Bueno opõe-se homens, convidando-os à evasão e con-
às diversas maneiras com que a cultura vocando-os à presença. O dizer inaugural
ocidental estabelece segregações acerca se reporta à interpenetração dos tempos,
do pensar e do ser. Especificamente na e dá a dimensão ativa do que se mostra
era do apogeu tecnológico, a celeridade estático, pois o isso guarda em si algo de
impõe-se como valor e modelo, e suas ra- aquilo:
mificações ideológicas alcançam os ho-
mens da arte. Potentado último e ubíquo, Deito-me ao lado da estátua marmórea,
o mercado dissemina a mensagem da tro- Alva, branca, lavada de alegria,
ca imediata e irrefreável, e mesmo na po- É a alba, a alvorada, a aurora, o dia,
Que se abre já, desnudo e sem história.
esia, a barrada no baile das grandes ven-
das, o tácito decreto se instala e por vezes Ela é de hoje, saqueada de memória,
baralha-se ao lema da originalidade e da Esta deusa, ela nasce, limpa, fria,
renovação. Nesse estado de coisas, não Agora, e, ao lado meu, pura, inicia
poderia ser outra a (repelente) recepção O mundo neste alvor, o instante, a glória.
da poesia que se conecta a um pretérito
Beijo-a virgem na relva, aqui, a vida,
tão morto quanto ainda enigmático e sa- Só tem hojes, abraço-a, nova, clara,
bedor de novidades – algumas de caráter Secularmente pétrea e ora nascida.
duvidoso, a ponto de não despertarem
qualquer olhar de surpresa fora dos que Sorrindo na manhã, gelada, ampara
as anunciam: Meu corpo extático, álgida, estendida
No sempre, no surgir que urge e não para
(p. 446).
É no passado que caminhamos.
Somos história, somos histórias.
Já faz milênios que aqui passamos
Tais nossas roupas, tais nossas glórias.

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