Psicanalise Saude Coletiva

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ESTUDO DIRIGIDO PSI

PSICANÁLISE & SAÚDE COLETIVA

Prof. Gisele Bandeira

1
Desde o advento da psicanálise, o pensamento freudiano tem alimentado
reflexões sobre cultura, sociologia e sobre inúmeros outros campos. Por
que não aconteceria no campo da saúde coletiva?

▪ Rosana Onocko Campos aponta que apesar de, em anos recentes, autores
do campo da Saúde Coletiva reconhecerem a relevância de se considerar o
sujeito e não apenas as estruturas sociais, ainda há poucas referências à
constituição subjetiva do sujeito - “o sujeito pode ser histórico, social e até
coletivo, mas não há referência a alguma estruturação que não seja racional.
Nada de inconsciente!”
▪ Aponta ainda que algumas polarizações excludentes precisam ser
desconstruídas para permitir a exploração dessa interface entre saúde
coletiva e psicanálise: atribui-se a uma “certa” psicanálise um trabalho no
individual, interior, das profundezas da pura singularidade; e se atribui à
saúde coletiva intervenções no exterior, na sociedade, no que é de muitos.
Psicanálise de práticas privadas e lucrativas X saúde coletiva de
problematizações do espaço público.

2
Rejeitamos essa dicotomia!

Assim como um sujeito do incs se desenvolvendo de forma isolada do


seu meio cultural e social (mito da pura interioridade)

▪ Abraçamos uma psicanálise preocupada por desvendar os


visão da autora mecanismos pelos quais o laço fraterno seria possível, e com ele a
criação e a cultura. Uma psicanálise que nos ajude a suportar um
“nós” fortemente investido e a tolerar-nos em nossas diferenças

3
Capítulo 1- Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos em
busca de políticas públicas potentes

▪ A autora começa com uma análise da tradição psicanalítica argentina em


relação à inclusão das problemáticas sociais e suas práticas e corpo
discursivo; algo que foi se perdendo durante a ditadura
▪ Aponta psicanalistas (pre)ocupados em/com o público recorrendo a textos
não psicanalíticos para pensar o que se referia a “pobreza/miséria”.
Identifica que isso pode decorrer, ao menos, de três fatores: a) No corpus
teórico tradicional da psicanálise, “pobreza” não é nem um conceito, nem
sequer uma noção; não tem estatuto algum. b) Em geral, os psicanalistas
que publicam não trabalham no público. c) Os psicanalistas que trabalham
no público quase não publicam.
▪ Pretende revisitar algumas categorias psicanalíticas e discutir sua
pertinência e seu valor de uso (utilidade),contrastados com certas categorias
clássicas da saúde coletiva. Colocando esses conceitos em relação, busca
propiciar o desenvolvimento de categorias para o estudo de questões
pertinentes ao sofrimento psíquico e às novas constituições subjetivas que
emergem nas regiões periféricas das grandes cidades na sociedade
contemporânea. Relação com o outro 4
De que se sofre na periferia e na cidade?
passagem ao ato

- Conformações sociais complexas, onde a violência de todo tipo substitui,


muitas vezes, a mediação simbólica ligada ao valor fundante da palavra
- Novas configurações familiares, de redes sociais, de grupos; modos de
“resolução” de conflitos que nos custam compreender; subjetividades frágeis,
precárias, violentadas e violentas (com modos migratórios complexos, com
territorialidades fragmentadas e sem redes ou com intercâmbios sociais
restringidos), configuram características do que chamamos setores Setores desvalidos
“desvalidos” e forçam a diferenciar estratégias em múltiplos planos: sanitário,
clínico, social, produtivo
- Múltiplas formas de expressão destas degradações do patrimônio simbólico
que levam as loucuras a se expressarem pela impulsividade, imediatez e, no
caso das mulheres, às vezes por um sofrimento silencioso, naturalização da
mortificação feita cultura; um sem palavras, muitas vezes, somente inscrito no
corpo, no próprio, no de seus filhos ou no corpo dos filhos de suas filhas
adolescentes (dos quais são avós-mães).
entrada no simbólico - Colapso geracional das funções maternas e paternas que deixam impotente sujeito é inserido
por via do outro no simbólico
a palavra e sua relação coma transmissão de uma história, uma novela pelos pais
familiar. Coisas que tiram o lugar da palavra
5
- [“Desterritorialização” e a questão dos imigrantes]:
• A mobilidade tornou-se praticamente uma regra e também os produtos, as
mercadorias, as imagens, as ideias;
• “Desterritorialização” é, frequentemente, uma palavra para significar
desculturalização Pessoas e produtos
• Ir para a cidade grande é deixar para trás uma cultura herdada para
Alienação
encontrar-se com outra - quando o homem se encontra com um espaço
que não ajudou a criar, cuja história desconhece, esse lugar é a sede de
uma vigorosa alienação
• Imigrantes se comportando como recém-chegados ou como se estivessem
ainda de passagem - como interferir em seu ambiente se este não lhe
pertence?
• Os imigrantes, em sua memória, trazem consigo recordações e
experiências elaboradas em função de outro meio, e que de pouco lhes MT
Importante!
servem para a luta cotidiana; obrigados a esquecer, seu discurso é menos
influenciado pelo passado e pela rotina, às vezes é nulo, um não discurso -
um sofrer silencioso, demasiada exigência para mecanismos de
representação e simbolização às vezes falidos.

6
▪ Desse modo, o reconhecimento dessas novas formas de sofrer e de Brilhante
adoecer, e a forte suspeita de que precisamos inventar estratégias potentes
para as novas crises subjetivas, leva a autora a retomar algumas tradições
da psicanálise e da saúde pública (coletiva). Que potencialidades
poderíamos extrair colocando em contraste referencial estas duas áreas do
saber?

CASTORIADIS
Resgatando algumas tradições da psicanálise

identificação -> ▪ Castoriadis fala em crise das identificações, das significações imaginárias
formação do eu
primitivo
(SI) sociais, que são as que mantêm qualquer sociedade unida.
▪ Para Castoriadis tais significações imaginárias têm três funções principais:
→ Estruturam as representações de mundo (a mais importante é a que a
Significaçao sociedade tem de si mesma). como o sujeitos se veem
Imaginäria
→ Designam as finalidades da ação (o que se deve e não se deve fazer). As regras/ a lei
→ Estabelecem os tipos de afetos característicos de uma sociedade. Formas de Afeto
Através de instituições mediadoras e dessas significações imaginárias, institui-
se um tipo de sujeito particular
7
Mote é o contrário da existência
▪ Essa identificação social tem uma função fundamental, posto que trata de
organizar uma defesa contra a morte. Mas essa defesa só opera se as
significações que ela instaura podem, por sua vez, ser consideradas
imperecíveis. Mas o que haveria hoje de imperecível nas sociedades
contemporâneas se a família não é o que era, nem as regras de
convivência, nem o espaço urbano?

[Crise do processo de identificação] Crise das democracias, por exemplo


Crise nas famílias

▪ Segundo Castoriadis, a sociedade de consumo tem criado um conformismo


generalizado e pegajoso, todo igual. Um conformismo tal que só pode existir individualidade frágil
-> não se aceita ou
ao preço de que não haja um núcleo de identidade importante e sólido: pensa o diferente
individualidades em frangalhos; as individualidades parecem uma colcha
pathwork: “Sou uma colcha de retalhos, todos da mesma cor”
▪ Nessa e por essa crise do processo de identificação, a sociedade perde a
possibilidade de autorrepresentar-se como centro de sentido e de valor. É
muito difícil construir assim um nós fortemente investido; sociedade somente
como uma entidade limitadora e de controle que lhes foi imposta - processo
de dessocialização. Outro como inimigo
8
Base do fascismo
▪ Freud e a condição de mal-estar como componente essencial da civilização.
▪ [Inconsciente]

- Na ética da psicanálise todo sujeito é mais que portador do cogito cartesiano;


descobrimento do inconsciente marcou uma das grandes rupturas da
modernidade segundo alguns autores; assumir que as pessoas, os pacientes e
os trabalhadores de saúde também atuam movidos por reações inconscientes,
que eles mesmos desconhecem e sobre as quais não têm de todo o controle,
muda nossa forma de abordar as equipes de saúde e as relações que aí se
desenvolvem.
- O reconhecimento da dimensão inconsciente altera nossas análises; nosso
inconsciente irrompe quando menos esperamos no meio de nossa ação mais
racional somos atravessados pelo que não podemos controlar -> ICS
- Não se trata, portanto, de uma polaridade consciente/inconsciente que se
corresponderia com outra racional/irracional, senão de que assumamos o ser
humano como um ser que nunca será absolutamente dono de si, um ser
“barrado” que não pode tudo, e que nunca terá a certeza de conhecer
perfeitamente o rumo de seu desejo.
9
▪ Essa característica de nossa condição de humanos também nos marca em
nossa condição de trabalhadores, sendo central no caso dos trabalhadores
de saúde

[Vida na instituição]
-Segundo Kaës, a instituição funciona para o psiquismo como asseguradora de
funções da vida social e psíquica (como a mãe)
- Ser um trabalhador da saúde, do serviço público, acreditar no valor positivo
do próprio trabalho, constituem funções estruturantes da subjetividade e
ajudam a suportar o mal-estar que deriva das tarefas coletivas
- Kaës chama a isso aderência narcísica à tarefa primária. Ou seja, os sujeitos
“necessitam” identificar-se favoravelmente com a missão do estabelecimento
no qual trabalham, acreditar que seu trabalho tem um valor de uso.
- Quando o contexto de trabalho põe obstáculos à tarefa primária, seja por falta
de recursos humanos, de materiais ou por excesso de autoritarismo gerencial,
os sujeitos se valem de estratégias defensivas para atenuar o próprio
sofrimento psíquico: o chamado excessivo à ideologização, somatização,
burocratização, desenvolvimento de estados passionais (paixão descrevendo o
intenso sofrimento psíquico, próximo aos estados psicóticos, que se
experimenta ali [na instituição] 10
▪ Equipes com dificuldades para trabalhar conjuntamente, com falhas de
DEFESAS da comunicação, o conteúdo ideologizado de modo fundamentalista, não
EQUIPE de SAÚDE
dialetizado, maniqueísta = defesas das equipes
▪ Parece-nos importante entender que esses sintomas institucionais são parte
da produção da própria realidade de trabalho; pelo próprio contato
permanente com a dor, a morte e a dificuldade de simbolização que
situações como a pobreza extrema e a segregação nos provocam.
▪ Processos de identificação imaginária entre trabalhadores e usuários: se a ----> Lidar com
população da área de cobertura é vista como pobre, desvalida, degradada, o extremo
sem valor, depois de um tempo, a própria equipe se sentirá assim

Mecanismos como este conduzem à produção de impotência em


série das quais padecem muitas equipes de saúde
▪ A equipe também pode defender-se desse espelho desagradável se ESPELHO
fechando e tentando uma discriminação maior entre o “nós” e o “outros” - DESAGRADÁVEL

barreiras que evitam pôr-se em contato com aquilo que tanto dói;
agressividade dos trabalhadores; função messiânica, colocando-se como
únicos salvadores dessa pobre gente; construção da passividade da
população. População passiva das políticas públicas
11
Padecimento => Sofrimento
[Dimensões do padecimento subjetivo]

▪ Lidar com estas dimensões do padecimento subjetivo atual requer


competência técnica
-.Oury: no trabalho não se trata simplesmente de relações individuais com
alguém, e que o trabalho em equipe precisará sempre levar em conta os outros
e a si mesmo; trabalho em equipe => olhar para o outro => olhar para as relações
- Kaës propõe criar dispositivos de trabalho que permitam restabelecer um
espaço subjetivo conjunto, uma área transacional comum, relativamente
operatória. gestão = construção da política
- Temos defendido que a gestão poderia exercer essa função, mas para isso
precisa constituir-se como instância, com um lugar e um tempo onde se possa
experimentar o tomar decisões coletivas e analisar situações com um grau de
implicação maior em relação ao que é produzido.

[Dimensão inconsciente nas relações de trabalho] há uma dimensão ICS operando


Não se trata somente de criar espaços de circulação da palavra e intercâmbios
autorreflexivos para democratização e um grau de análise maior sobre as
práticas, mas de poder compreender também que esses espaços são
frequentemente locus de apresentação de estados pulsionais inconscientes. 12
Resgatando algumas tradições da saúde coletiva

▪ A autora situa a crítica na medicina social latino-americana à forma


predominante de organização da prática médica; partindo da medicina social
latino-americana, a Saúde Coletiva brasileira se constituiu em uma linha
teórica original que produziu questionamentos sobre a clínica, a biologização
das práticas, e chamou a atenção sobre o processo de construção sócio-
histórica das categorias operatórias dominantes.
▪ Herdeira do referencial teórico estrutural-marxista, com posterior
incorporação de novas referências teóricas e metodológicas nos anos 70 e
80 - categorias como o cotidiano e as representações sociais; fins dos anos
90, o tema da subjetividade se destaca
▪ Começam a se destacar aspectos como as relações institucionais e as
produção
produções subjetivas nesses contextos, o que se produz no encontro com as subjetividade
práticas no território, e em seu trajeto histórico. Contudo, é preciso => pouco
explorada
reconhecer que esse conjunto referencial que ajuda a pensar as relações
entre as pessoas e as instituições, continua até hoje pouco explorado.
▪ No cruzamento de experiências, nos vários experimentos de intervenção
institucional, e nas histórias que aparecem desde o “território”, vão se
resgatando também categorias próprias deste campo: a saúde pública ou
coletiva 13
[Território e lugar]

▪ O território aparece tal como algo mais do que um espaço no mapa, um


lugar; enfatizar uma vez mais que o cotidiano tem uma dimensão espacial
é fazer dos lugares uma categoria operacional de território

[Vulnerabilidade e risco]

▪ Conceitualmente, a categoria de “vulnerabilidade” como sendo não um


aggiornamento da categoria de “risco”; o paradigma do risco abriu novas
possibilidades para o conhecimento epidemiológico e suas relações com a
medicina, e ao fazê-lo, restringiu a leitura sobre o espaço de saúde

➢ Nesse referencial, pensar em risco significa pensar em probabilidades de RISCO


eventos. Por isso, formular intervenções no campo da saúde com o
enfoque de risco significa deter-se apenas no que são medidas e
regularidades no território: um reducionismo olhar só para o risco = reducionismo
➢ O enfoque de risco não confere discernimento suficiente para realizar
intervenções reconhecendo as singularidades presentes no território.
➢ O conceito de vulnerabilidade possibilitaria a inclusão do sujeito/
singularidade nas ações de saúde. VULNERABILIDADE > Risco 14
▪ O uso do conceito de vulnerabilidade pode:

lado negativo - Sofrer capturas: promove uma discriminação negativa dos grupos mais TUTELA
afetados, já não através do estigma, senão através de sua vitimização e =
controle
consequente tutela, o que nega o essencialmente positivo no interesse do uso
do conceito; é perder de vista novamente seu caráter eminentemente relacional
- Fazer sentido quando se analisa a “síntese singular” à qual se aplica.

Se o risco é probabilístico e quantitativo, a vulnerabilidade é especulativa e


qualitativa. E como bem adverte Ayres, é relacional.

▪ Busca ativa - atividade clássica das “vigilâncias” sanitárias ou


vigiar e punir epidemiológicas; em geral são atividades de equipe de saúde que buscam
identificar casos (de enfermidades), focos de contágio e/ou contaminação;
atividades “vigilantes” de uma equipe sobre seu território, quase uma
espécie de grande olho epidemiológico sobre o lugar; pretende antecipar-se
à demanda (com tudo o que isso pode acarretar de bom e de problemático).
Por um lado, tende a desburocratizar as equipes que estariam mais
motivadas e imbuídas de sua tarefa, por outro, “o grande olho” pode ser uma
forma a mais de mecanismos de controle da população.
15
Autonomia ▪ Ampliação da clínica - conceito formulado buscando a superação do
paradigma biomédico; pressupõe a incorporação de outras avaliações de
risco (as fragilidades subjetivas ou de redes sociais); ligada à produção de
autonomia.
▪ A autora chama a atenção sobre o caráter do clínico como aquilo reprimido
nos discursos sanitaristas. A psicanálise nos ensina a estar atentos àquilo
sobre o que “não se fala”. Eliminar a problematização sobre qual é a clínica
que se faz nas equipes de saúde acarreta o risco de que banalizemos a
importância dos aspectos técnicos do trabalho. Mas, também, acarreta o
risco de que problematizemos a clínica como uma disciplina técnica e não
como uma prática social, de um sólido respaldo teórico, mas que não se
esgota na dimensão técnica clínica => prática
social

16
Entrecruzando conceitos: que políticas públicas produzimos e que
produzem nossas políticas públicas?

▪ Colocar em contraste os conceitos que vimos, deveria poder subsidiar


novos desenhos de políticas e a implementação de algumas estratégias de
intervenção mais apropriadas ao cenário atual e seus tipos de sofrimentos.
▪ Construção de combinações de conceitos potencialmente operacionais em
nossas políticas públicas para enfatizar a possibilidade de enriquecimento
de nossas práticas político/clínicas, diante da possibilidade de aproximar
esses conceitos provenientes de duas tradições diferentes. Psicanálise e
saúde coletiva tornam-se mais potentes juntas e ambas podem contribuir
para modificar-se.

17
▪ Considerar se aqui trata-se de valer-se da categoria de vulnerabilidade ou
do uso da categoria de risco em sua pior acepção: determinação da
condição de vulnerável exclusivamente por meio de valores e apreciações
Eu agente decido subjetivas dos agentes das políticas públicas; por exemplo, famílias
o que é melhor
para pct chamadas problemáticas nos territórios, em relação as quais se multiplicam
assistido esforços das equipes para vincula-las a programas sociais, subsídios
(bolsas) especiais, etc.; isso incide às vezes no cotidiano desses grupos
gerando algo identificável a uma espécie de entrega passiva, resignada, de
encarnação do lugar de objeto (objeto das políticas públicas); contribuímos,
assim, com a reprodução de figuras parentais destituídas, pais ineficazes
simbolicamente na hora de encarar a lei em seus lares, de mães
desqualificadas em sua ternura; famílias se estigmatizam e ficam fixadas
em sua impotência por causa de nossas intervenções, supostamente
responsáveis e bem intencionadas.

É necessário colocar em jogo uma escuta implicada com o retorno ao


rumo do próprio desejo desses pais e mães objetalizados, dessas crianças.
Devolver uma cota de responsabilidade a quem lhe cabe, dar valor à palavra,
tentar fazer contratos, combinados com essas pessoas e não dar tudo já
resolvido e normatizado.
18
▪ Saber que sim, que é possível que em momentos de muita fragilidade, uma
família (um pai, ou uma mãe) esteja em situação de não poder, mas tomar
isto sempre como uma condição provisória. Estar atentos aos sinais de
potência, estimular sua percepção. Ressignificar o que eles sim sabem ou
sim podem.
▪ Essa aposta com o outro em sua condição de ser humano, em sua
capacidade de fazedor de outra cultura, de reinventar o desejo com o outro,
(“o desejo é o desejo do outro” aponta em certo sentido à necessidade de
sua construção coletiva), é a oferta que desde uma certa ética e uma
escuta respeitosa podemos realizar, como praticantes da psicanálise, sem
necessidade de pensar todos os agentes de políticas públicas como
psicanalistas, nem todos seus usuários como pacientes.

19
Busca ativa sem reconhecimento dos lugares e de sua potência

▪ Qualquer que seja a condição-objeto da busca ativa é importante recordar


que por mais difícil que seja uma região, por mais empobrecida que possa
estar em qualquer de seus aspectos, os recursos materiais, culturais
(migrações recentes ou indesejadas, como no caso de novos bairros
criados para “erradicar” outros), educacionais (índices elevados de
Pobreza não
analfabetismo), serão sempre as pessoas que aí vivem, que ocupam esses
é ausência lugares, quem poderão dar-nos as pistas das potencialidades escondidas
de potência
(recursos) nessas comunidades. A pobreza não nos deve fazer supor a ausência total
de recursos
▪ Se se desconhece essa riqueza e variedade, não estaremos aí
coproduzindo saúde mas produzindo mero controle social, alimentando o
grande olho vigilante. . . Vigilância sanitária, controle de populações: uma
tradição que não nos interessa reeditar

20
Ampliação da clínica sem responsabilização do sujeito

▪ Propor-nos a realizar uma clínica ampliada significa que tentamos estirar as


bordas dessa clínica mais adiante do paradigma biomédico hegemônico
vigente. Incluir certas análises de vulnerabilidade, trazer a dimensão de uma
escuta que sirva de aporte a projetos negociados, compartilhados com os
usuários e as comunidades. Uma clínica menos prescritiva, que não desista,
por isso, dos avanços tecnológicos nem desconheça a importância de uma
boa qualificação técnica e de recomendações baseadas em evidências.
prevenção Mais ainda, uma clínica que assuma a avaliação de riscos, sua dimensão de
redução de
danos prevenção (secundária, terciária) e de negociação de redução de danos: o
que é possível neste caso, para esta paciente, neste contexto?
▪ Clínica que, em certo sentido, se ocupa do paciente em sua humanidade,
com capacidade de conseguir maior eficácia terapêutica, ou seja: curar,
melhorar, reabilitar, mais e melhor. Mas — por obra e graça da própria
ampliação — às vezes facilmente a clínica resvala na tutela e no
enquadramento.

21
▪ Muitas vezes, elimina-se o caráter processual desse apoio circunstancial: o
Ajudar => que era uma ajuda passageira, torna-se um modo de operar em relação a
OPRIMIR
determinado sujeito que fica omitido, assim, da responsabilidade que lhe
incumbe; espécie de cumplicidade da equipe com o usuário, contribuindo
para “fixá-lo” no lugar de pobre, necessitado, incapacitado, desvitalizado,
impotente; por outro lado, muitas vezes, para não cair nisso, não se ajuda, e
renegando essa contradição se produz desassistência
▪ Responsabilizar-se, de uma perspectiva psicanalítica, seria, aqui,
retomar a marca do desejo nas impossibilidades ou repetições das que
de tanto em tanto nos queixamos equipes e pacientes; certa direção até a
autonomia do sujeito se realiza mediante a responsabilização: busca de
saída da alienação, do gozo no sintoma, na construção de compromisso.
▪ Para além do princípio do prazer e dos ideais do bem comum, entender o
ser humano como movido por sua pulsão de vida mas também de morte é
fundamental. Em nossa experiência, só a aceitação dessa premissa teórica
já ajuda os profissionais a não se transformarem em juízes de seus
pacientes, a desistirem das abordagens meramente informativas

22
Significações imaginárias e subjetividade da equipe: uma gestão

[Dimensão da gestão]
▪ A entendemos não como mera administração dos seres e das coisas, senão
mais bem como um dos modos de produzir as necessárias articulações
clínico-políticas na ingerência do cotidiano.
▪ Tentar produzir laços, redes, novas possíveis significações imaginárias nas
comunidades (com educação, com cooperativas, com grupos de discussão
em centros de saúde), parece imperioso.Torna-se necessário conseguir
que as equipes façam práxis em sua própria prática, mantendo ativas e
abertas as perguntas: para quê serve?, o que estamos produzindo?
▪ Como conseguir isso se as equipes não têm um espaço onde possam
analisar suas próprias dores de trabalhar, de ver, de ter de saber —todos os
dias — que existe toda essa injustiça e essa desigualdade e essa pobreza
de todas as ordens? As equipes que trabalham nessas regiões periféricas e
desfavorecidas necessitam ativamente de dispositivos desalienantes.
▪ Precisamos de uma gestão que, produzindo articulações político-
clínicas, assuma-se em seu caráter de gestão incluindo a subjetividade
da equipe e que assuma, assim, sua cota de responsabilidade na
produção do mundo. 23
Capítulo 3 Humano demasiado humano: uma abordagem do mal-estar
na instituição hospitalar

- Dizer que um hospital deve ser humanizado parece óbvio se pensamos que a
instituição hospitalar na realidade, existe para atender pessoas e é criado por
pessoas.
- Em geral associamos humano a um valor positivo em si. Mas a violência, a

desigualdade social, o abuso de poder, não são fenômenos profundamente


humanos?

 Para pensar um lugar para o conceito “humanizado” no hospital, é


preciso desestabilizar a noção desse sentido comum (humano
associado a um valor positivo em si)

 O hospital moderno massacra seus sujeitos, de maneira diferente, segundo


sua inserção institucional: usuários foram reduzidos a objeto há bastante
tempo pela medicina, sendo mais forte e evidente na máquina hospitalar.

24
 As vidas que se jogam dia a dia nos hospitais modernos não são unicamente
as dos pacientes; são também as deles. Nossa vida se ganha e se perde
muito mais do que na tênue divisória entre a vida e a morte; morremos e
vivemos em numerosas situações nas quais não estão em jogo nossas
batidas cardíacas, senão o pulso do nosso desejo. Preterido, esquecido,
escondido embaixo de muitas camadas impossíveis.

IMPORTANTE - Esses impossíveis em boa medida são produzidos, material e subjetivamente


produzidos. A eles rendemo-nos, levantando o altar de nossa impotência.

- O possível consegue-se tensionando as fronteiras do impossível; num esforço


consciente e deliberado que para ter sentido deve ser agenciado por um grupo,
por um coletivo de humanos. Um esforço que pode, e deve, também, ser
produzido.

25
O que temos feito, hegemonicamente, na gestão, com nossa humanidade?
Expulsá-la do foco de nosso objeto? Trabalhamos durante anos como se uma Nestor Wagner
organização pudesse ser pensada vazia de gente. Ou somente ocupada por
pessoas domesticadas pela racionalidade gerencial hegemônica
 Se há um humano fragilizado, é o semelhante acometido por uma doença,
ou uma dor, ou qualquer sintoma que lhe produza um sofrimento que,
estando no corpo, ou além do corpo, sempre lhe evocará a fantasia da
própria morte.

Por isso defendemos uma verdadeira centralidade no usuário,


centralidade que tem que ver com o reconhecimento desse fato.

 Que fazemos com esse sofrimento na maioria das vezes? (banalização)


Quando trabalhamos em serviços de saúde, sofremos um desgaste diferente
do desgaste do operário: cansaço dos trabalhadores ligado à permanente
exposição ao sofrimento e à morte; se toda instituição nos causa mal-estar, os
serviços de saúde em geral, e o hospital em particular, põem-nos à beira do
sofrimento.
26
Mal-estar na cultura e sofrimento no hospital

Mal-estar e sofrimento institucional não são o mesmo, ainda que suas


fronteiras se pareçam - o sofrimento psíquico produzido pela vida institucional
é diferente do mal-estar, ainda que suas fronteiras se confundam muitas vezes,
é possível, e útil, diferenciar suas polaridades.
 As civilizações são construídas sobre uma renúncia ao instinto: a
substituição do poder de um indivíduo pelo poder de uma comunidade
constitui o passo decisivo de uma civilização. Há um mal-estar constitutivo
do viver em sociedade e indissociável de nossa condição de humanidade.
Os hospitais, como parcelas do social que são, não estão isentos dele.

[Identificação entre a organização e seus agentes]

Kaes reconhece que as instituições são portadoras de um valor


constitutivo para a vida psíquica. “A instituição deve ser permanente: com
isso ela assegura funções estáveis e necessárias para a vida social e psíquica”

Ideia da aderência narcisista ao objeto institucional. Isso quer dizer


que nos estruturamos como humanos também (e fundamentalmente) por
nossa inserção institucional A gente se estrutura como humano dentro de uma instituição => identificação
com a instituição 27
 O objeto institucional a que se refere Käes, está constituído pelos objetivos
institucionais: a missão, diriam alguns planejadores; a tarefa primária, diriam
alguns institucionalistas; a produção de valor de uso, diria Campos; quando
definimos uma missão com um grupo de uma organização, ou suas tarefas
Aderir = primárias, estamos contribuindo para a aparição da aderência narcisista -
fazer sentido
mecanismo psíquico pelo qual as pessoas se autorizam a dizer, ou a
I pensar, ou a sentir que trabalhar aí vale a pena e tem um sentido. Através
I
I desse mecanismo, as pessoas sentem-se parte da organização.
V  MAS, Kaës também nos dirá que essa mesma aderência narcisista, tão
Discurso Ideologico
(palavras de ordem importante, é fonte de problemas: qualquer proposta de mudança ou
= que não permite
reflexão reformulação põe em xeque o processo de identificação entre a organização
Doença (ansiedade)
e seus agentes. Novos referenciais não estão ainda disponíveis para
identificar-se, e a angústia provocada pela mudança, geralmente, se
expressa por meio de reações psicossomáticas ou ideológicas - as
pessoas adoecem, ou renunciam, ou faltam muito ao trabalho, ou fazem
discursos cheios de valores ideologizados.

28
• Comportamento ideologizado: discursos prontos, cheios de palavras de ordem
que impedem sua problematização ou análise; uma coisa ou outra é boa ou má
em si, porque sim. Esse comportamento é um sintoma de sofrimento; como todo
sintoma, ele serve para alguma coisa e não pode ser retirado por decreto, nem
Possível sem consequências.
questão de prova:  Kaës identifica ademais quatro formas de sofrimento institucional:
-------->

1. Sofrimento do inextricável: ao mesmo tempo que se constitui uma aderência


narcisista necessária que traz junto com ela o benefício do vínculo, aparece a
indiferenciação e o que este autor chama de angústia de dissolução: o efeito de
vestir a camisa: ok, sou deste hospital, mas então quem sou?
2. Sofrimento associado a uma perturbação da função instituinte: ligado à
perda da ilusão; ilusão institucional que falha e debilita o espaço psíquico comum
dos investimentos imaginários que sustentam o projeto da instituição.
- Toda organização cria uma mitologia de sua origem; mitologia institucional que
será fonte de sofrimento; tendência do mito fundador a criar uma narrativa de
filiação fixa, em outras palavras: a história oficial.
- Toda instituição, por outro lado, administrará uma parte de seu próprio reprimido
PACTO
DENEGATÓRIO
nesse vínculo, o que Kaës chama de pacto denegatório: são essas as zonas
escuras, o lugar da utopia e o não lugar do vínculo.
- Se as instituições não se perguntam sobre essas questões, correm o risco de
inscrevê-las em seu funcionamento - quando isso não se fala, isso se atua). 29
3. Sofrimento relacionado a obstáculos para a realização da tarefa
primária: existe, nas instituições de saúde uma tendência a defender os
sujeitos de sua própria tarefa -. horas que se gastam em atividades não
destinadas à assistência Kaës diz que isso não é casual. A instituição acaba
criando mecanismos que protegem os agentes da própria tarefa. Outros
obstáculos à realização da tarefa primária são as carências básicas de
insumos, pessoal, etc. A ideia subjacente, o não dito, dessa forma, é que o
trabalho é pouco valorizado ou não vale a pena. Em contextos como esses, a
autoestima dos profissionais fica debilitada
• Diante das mudanças de gestão, com frequência os novos gestores
propõem mudanças na estrutura hospitalar degradada; desconhecem assim
esse momento psíquico particular e propõem reformas sem dar tempo, nem
espaço, para que seja possível a reconstrução de uma verdadeira aderência
narcisista.

Do ponto de vista subjetivo, isso é “insuportável”. Seria necessário, primeiro e


antes, dar aportes “suficientemente tróficos” para essa reconstrução narcisista
para depois, sim, poder trabalhar as propostas de reformas.

30
[Espaço intermediário]

4. Sofrimento associado à manutenção do espaço psíquico: para Kaës, o


espaço psíquico é o espaço do ser-conjunto. Espaço construído entre os
sujeitos, espaço intermediário que diminui com a prevalência do instituído, com
as estratégias de dominação, ou com a sensação de ameaça. Geralmente,
ideias inovadoras serão cooptadas pelo estabelecimento institucional e postas
ao serviço da “mentira institucional”
Projetos institucionais como fenômenos transicionais humanos
▪ Winnicott teoriza sobre os processos transicionais e objetos
transicionais: esse objeto que para as crianças não está dentro nem fora,
Objeto transicional e contém um paradoxo que não deve ser resolvido (nunca perguntaremos
ll
ll ao menino se esse objeto lhe foi dado ou se ele o inventou.
ll
V  Processos transicionais estão vinculados à região da experiência -
PROCESSOS espaço fortemente relacionado com o papel da ilusão . é com base em
Transicionais
= nossas ilusões comuns que nós adultos conseguimos agrupar- nos. Não
Região da Experiência
existe objetividade possível, nosso espaço cultural não está nem dentro
nem fora, senão no transicional. Aquilo que não está aqui, nem ali

31
trófico = que sustenta

A autora defende que os projetos humanos são tipicamente atividades


do espaço transicional, típicos processos transicionais. Como tais,
requererão um suporte suficientemente trófico para poderem ser
experimentados. Espaços protegidos, onde alguns paradoxos possam ser
tolerados e a ilusão institucional recriada.

 O papel de suporte (holding) necessário precisa, muitas vezes e durante


algum tempo, de alguém que o desempenhe - o próprio grupo pode
constituir-se nesse suporte, no entanto, inicialmente e com frequência,
uma ajuda externa ao grupo será fundamental para a criação desse
espaço protegido. Cada organização poderá resolver segundo suas
possibilidades quem desempenhe esse papel: um supervisor institucional,
HOLDING um assessor, ou até mesmo um gerente ou coordenador de outro grupo,
INSTITUCIONAL
segundo o caso. O importante será a postura dessa figura.

32
Gestão hospitalar: produzindo valor de uso e sujeitos

- Para Campos as instituições de saúde existem para produzir valor de uso e


realização pessoal dos trabalhadores dupla finalidade. Dessa maneira, a
gestão passa a incumbir-se de uma função complexa que já não é mais a
mera administração de recursos, nem pode mais reduzir seus sujeitos a
recursos humanos. A realização pessoal dos trabalhadores passa a ser
também um objetivo da instituição e não simplesmente um meio para
aumentar a produção. Uma instituição que produz, sim, mas produz valores
de uso e sujeitos Os espaços institucionais, as relações de trabalho e
de execução também produzem subjetividade o tempo todo

 Todo projeto só será possível num espaço transicional, de experiência,


que nunca será objetivo, que não está dentro nem fora. Por isso é
impossível recortá-lo objetivamente. Todo querer estará sempre nessa
região intermediária, marcado indefectivelmente pela percepção de
mundo, pela postura subjetiva e pela relação entre os sujeitos, que
assumem num dado lugar e tempo e pelos condicionantes do real
concreto

33
Eficácia x Eficiência
A ampliação da clínica: uma questão de eficácia
da instituição
-O valor de uso é permanente e socialmente produzido; muda o tempo todo
e sobre ele, como trabalhadores da saúde, também podemos influir; não é
natural, nem está dado a priori.
 De um referencial marxista, o não reconhecimento da produção de valor
de uso e de mais-valia é o que caracteriza a alienação - os trabalhadores
não sabem para que trabalham, ignoram que, no mesmo momento e ato
que produzem valor de troca, estão produzindo valor de uso, mais-valia e
seu próprio desgaste.
 No caso dos serviços assistenciais, como os hospitais, a autora defende
que o valor de uso estará sempre vinculado às modalidades clínicas
existentes de cada lugar e que isso é uma questão de eficácia.

[Eficácia e eficiência]
 A lógica da produção de procedimentos substituiu a de produção de saúde
- planeja-se a saúde entendendo (hoje hegemonicamente) que os
serviços precisam ser eficientes.
Eficiência  A eficiência é uma medida relacionada à produção no tempo, em relação a
=
Barato e Produtivo seu custo. Quanto mais produzo, em menos tempo e a menor preço, mais
eficiente sou. Produzo para quê? 34
Ensinaram-nos a produzir procedimentos, que são coisas fáceis de
contar, para mostrar produtividade, mas essas consultas produzem saúde?
Melhoram a vida das pessoas? Diminuem seu risco de morrer ou sua dor e
sofrimento?

 O reinado da eficiência institui-se a partir do pressuposto — jamais


questionado — de que os serviços de saúde precisam ser baratos. Quem
precisa de que sejam baratos? Os serviços de saúde vieram ao mundo
para produzir saúde, não para serem eficientes. Se para serem viáveis
precisam de uma eficiência mínima, essa é outra questão
 Campos propôs utilizar o conceito de clínica ampliada para designar uma
clínica que resgata as dimensões subjetiva e social dos pacientes:
uma clínica do sujeito (que sempre será biológico, subjetivo e social.)
• Uma clínica que se preocupe com a produção de saúde e a defesa da vida
e não simplesmente com a produção de procedimentos.
• Uma clínica que avalie os riscos não só biológicos de morrer ou adoecer,
mas também os riscos subjetivos e sociais de cada sujeito.
• Uma clínica que incorpore uma dimensão de prevenção secundária e de
reabilitação quando seja necessário.

35
• Clínica ampliada X clínica tradicional; clínica ampliada X clínica
degradada (essa é a clínica predominante nos serviços de urgência e em
muitos outros, onde somente se trata de sintomas sem sentido: queixa-
conduta).

• Transformar prática em aplicação de técnicas; deixar de fazer práxis em


nossa própria prática; submeter-se ao reinado da eficiência; deixar de
perguntar-nos para quê; perde se de vista o sentido de nosso trabalho - é
então que começamos a viver nossa pequena morte cotidiana,
transformamos os usuários em objetos, que serão submetidos a
intervenções técnicas e deixamos de lado nossa própria humanidade

• É impossível humanizar um hospital sem repensar nossa própria posição


institucional, sem recriar nossa região de experiência, sem voltar a tomar
Importante procurar
o sentido, os pé em nossa prática para transformá-la em práxis reflexiva. Para recriar a
significados ilusão, para refundar um espaço psíquico do ser-conjunto, para envolver-
nos ludicamente em nosso próprio espaço intermediário, devemos
começar por abrir espaço a essas perguntas

36
Gerenciando no intermediário: alguns conceitos, arranjos e
dispositivos institucionais

-Não assumir uma posição técnico-centrada de ter todas as respostas não


quer dizer que estejamos desarmados - lugar dos conceitos, arranjos e
dispositivos institucionais de que se pode lançar mão para reformar a
estrutura hospitalar.

• Campos coloca a formação de compromisso e a formulação de


contratos como duas categorias centrais para o entendimento das
relações entre a organização e seus sujeitos:
formação sintomática
Formação de compromisso: indica articulações em que predominam
processos inconscientes.
Construção de contratos: indica o predomínio de movimentos
deliberados, mediante processos de análise seguidos de intervenção sobre
os diferentes planos de existência

37
• Para esse autor, uma forma de trabalhar com essas duas categorias é
incorporar à gestão os conceitos de oferecimento e demanda.

- Nos encontros com as pessoas, trabalhar temas demandados pelo grupo,


entendendo essa demanda como uma síntese dialética e transitória de
valores, desejos e interesses das pessoas.
- Quanto aos oferecimentos, trabalhar com temas propostos ou levantados
pelo apoiador institucional ou agente externo, tendo como objetivo a
produção de novas sínteses, incorporando novas informações e
desestabilizando crenças e valores já “naturalizados” pelo grupo

 Podemos reconhecer nos espaços organizacionais os preços pagos por nós


para a vida social; a organização produz ativa e estruturalmente dominação,
alienação e controle. Como produzir outros sentidos? Criação,
solidariedade, amizade, etc. com dispositivos e arranjos que estimulem a
produção de autonomia, criatividade e desalienação de maneira
permanente.

Dispositivos e arranjos
38
1. Arranjos

Há certa estruturação e permanência: a máquina de produzir controle não


opera pulsando (de modo intermitente), opera como fluxo contínuo. Por isso,
trabalhamos tentando desenvolver arranjos que têm a potencialidade de
produzir esse fluxo na direção contrária.

→ Colegiados de Gestão e Unidades de Produção:

- Impõem uma mudança estrutural nas linhas formais de comando onde


eliminam-se todas as coordenações, gerências, ou direções verticais
especializadas, e se instituem as Unidades de Produção
- Unidade é nova estrutura organizacional onde todos os que trabalham com
um mesmo objeto (que em saúde sempre são sujeitos) estão “obrigados” a
trabalhar juntos sob o mesmo comando gerencial.
- Toda Unidade de Produção deve ter um espaço colegiado de deliberação e
discussão clínica; os coordenadores dessas Unidades, todos juntos,
constituem o Colegiado Gestor da organização que delibera sobre diretrizes
gerais, rumos da organização, etc.

39
- Chegam questões sobre as quais a própria Unidade não tem autonomia para
decidir, em forma de demandas que desencadeiam deliberações. Exemplo:
necessidade de ampliar a infraestrutura, contratação de pessoal, etc. Na
medida do possível, todas as outras decisões são tomadas pela equipe na
unidade de produção, ou em comunicação lateral com as outras Unidades, e
só chegam ao Colegiado se não conseguiram entender-se. I

Efeito SETTING

Isso cria um efeito setting, institui as reuniões periódicas e abre


a possibilidade de recriar processos intermediários entre os membros da
equipe.

• É onde inicial e preferencialmente um apoio institucional pode ser


desenvolvido no papel de suporte (holding) do grupo.
• A discussão sobre a tarefa primária ou objetivos nesse espaço centra-se na
discussão do campo comum de trabalho da equipe, o que todos devem ter
como compromisso grupal, a produção de saúde ou de clínica ampliada de
maneira geral.

40
→ Apoio Matricial:

▪ Neste formato, o suporte especializado (técnico) continua existindo como


um apoio matricial e desvinculado das linhas de comando. Assim, pode
haver uma enfermeira que ensina técnicas de enfermaria, faz formação em
serviço, etc., só que agora ela não manda, não elabora os horários de
trabalho, nem organiza os plantões, nem recursos…Esse apoio técnico
matricial é essencial para mitigar a angústia de dissolução, uma vez que
proporciona um estímulo permanente da identidade profissional ameaçada
pelo desenvolvimento do espaço da equipe multiprofissional. Esse apoio
alimenta o desenvolvimento técnico profissional no núcleo disciplinar de
cada um.

→ Equipe de referência, adscrição do usuário:


- Esse arranjo está fundamentado na importância do vínculo entre
pacientes e profissionais. À medida que os profissionais conhecem os
pacientes e estes os técnicos, é possível criar graus de confiança maiores, os
usuários autorizam-se a perguntar e participar mais de seu próprio tratamento
e as respostas profissionais deixam de ser estereotipadas. (dar lugar ao outro
como ser singular) 41
- Produz-se um efeito desalienante e aumenta o compromisso com o paciente e
seu tratamento. Esse arranjo consiste em que todo usuário tem um profissional de
referência, responsável por seu tratamento, que ele conhece e de quem sabe o
nome - isso cria vínculo com o usuário, estimula a responsabilização, e amplia a
clínica.

2. Dispositivos

- Segundo Baremblitt, “um dispositivo caracteriza-se porque o importante nele é


seu funcionamento, sempre simultâneo a sua formação e sempre a serviço da
produção, do desejo, da vida, do novo”

dispositivo => • Um dispositivo, portanto, seria, sempre o contrário a um equipamento, ou seja:


subversivo
trabalha para subverter as linhas de poder. O que caracteriza um dispositivo é
seu funcionamento, nunca poderemos definir um a priori, só teremos evidências
de que é, aliás, dispositivo ao analisar como está funcionando.
 Exemplos que daremos podem ser atividades transitórias, que são postas em
ação segundo necessidade ou demanda, que depois de um tempo cessam e
dão lugar a outras: cursos/capacitações/formação; análise/supervisão
institucional; assembleias; planejamento de projetos; grupos-tarefa: destinados a
desenvolver projetos pontuais e específicos.
42
Planejamento analítico institucional: papel do apoiador

• Vigora na América Latina uma concepção de planejamento onde se


considera que os fins já estão definidos a priori: começava-se um processo
de planejamento com o projeto já definido (os fins). Dada essa situação, o
planejamento podia constituir-se num terreno tecnológico, em que, com este
método ou com aquele, se operacionalizavam meios e fins.

Diferentemente

Experiência de assessoramento em planejamento da autora mostra


que geralmente o projeto não está pronto e as finalidades não estão
definidas, ou existem disputas e controvérsias sobre elas no grupo.
• A autora pensa que um grupo só consegue embarcar num projeto comum
quando desenvolveu um espaço intermediário conjunto. Para sonhar um
futuro conjunto é necessário recriar a ilusão num território intermediário

tarefa que requer, segundo o referencial winnicottiano, suporte (holding) IMPORTANTE!


e manejo (handing)

43
• Esse suporte, quando o pensamos em relação ao planejamento, tem
relação com o componente subjetivo dos grupos que planejam.
• Nesse novo papel, os planejadores de ontem precisam menos de técnicas
de planejamento, e mais de conhecimentos e formação para tratar com
pessoas, considerando o que está em jogo: identificações, ameaças
narcísicas, etc.
• O deslocamento do eu ao nós é paradigmático do mal-estar freudiano: todos
terão de pagar um preço para que a ilusão do trabalho comum possa ser
recriada.
• Como não se faz isso sem dor, é necessário criar espaços suficientemente
tróficos que alimentem o grupo - espaços protegidos, mediados inicialmente
por um terceiro, em que os temores possam ser explicitados e o não dito
possa ter um lugar em palavras; espaço no qual as questões de poder
possam ser formalmente suspendidas por alguns momentos.
• O que se propõe é que, durante esse espaço de tempo e encontro, a
qualidade de ser chefe possa ser experimentada de maneira diferente. Só
quando o lugar do chefe é destituído formalmente do poder por algumas
horas é que esse lugar pode aparecer em suas dimensões mítica e
simbólica. Sem análise sobre essas dimensões, nunca se operarão
mudanças na estrutura formal do poder institucional
44
• O papel de manejo, da forma que o pensamos quando aplicado ao planejamento
de projetos, tem relação com os oferecimentos. E nunca se exercerá separado
do de suporte. Quem entra nesse tipo de proposta deverá ter o que oferecer.
No caso dos serviços assistenciais que nos ocupam, as questões derivadas dos
modelos clínicos, suas formas de operar, as formas de organizar o trabalho que
lhe dão sustentação, etc. serão centrais. Portanto, deveremos saber o que fazer,
ter caminhos para mostrar.

[Projeto e plano]
- Um plano corresponde ao momento técnico de uma atividade, quando os
recursos podem e devem ser operacionalizados; mas é necessário contar primeiro
e antes com um projeto.
- Atribuímos o caráter de fenômeno intermediário (transicional) ao projeto,
não ao plano. E defendemos que o projeto e sua possível existência sempre terá
relação com os sujeitos envolvidos em seu desenvolvimento e suas relações
intersubjetivas; o projeto é guiado por um sentido. É no momento do projeto que
posso desejar projetar(me) com os outros para transformar o mundo
- Proposta da autora é de sair dos formatos de métodos de planejamento
prescritivos, técnicos, com estímulo a fazer práxis na prática de apoiador
institucional. Tarefa complexa, diferente da que ensinaram na formação dos
especialistas, e que só pode ser possível diante da abertura a outros referenciais
disciplinários - defesa da interdisciplinariedade 45

.
Capítulo 5 Clínica: a palavra negada sobre as práticas clínicas nos
serviços substitutivos de saúde mental

def de Clínica ➢ Clínica para a autora são as práticas de todas as profissões que lidam no dia a
dia com diagnóstico, tratamento, reabilitação e prevenção secundária. Isto
reforça o argumento sobre a especificidade do Planejamento em Saúde: quem
quer contribuir para planejar mudanças em serviços de saúde deve dispor de um
certo leque de modelos clínicos, e isso é uma questão de eficácia; precisa,
necessariamente, de interlocução com a clínica
➢ Serviços de saúde com dupla finalidade (Campos): produzir valores de uso
(práticas produtoras de saúde, curadoras, cuidadoras e preventivas) e sujeitos
trabalhadores mais autônomos e prazerosos. A autora pensa o Planejamento
como dispositivo e, assim sendo, ele se constitui como uma práxis que visa à
produção e não somente à ação, e defendemos que essa produção pode, muito
bem, ser compromissada com essa dupla finalidade.
➢ É preciso resgatar para o Planejamento em Saúde uma preocupação
fundamental com os sujeitos que trabalham nos serviços de saúde, com a
finalidade de subsidiar um exercício profissional que estimule novas maneiras de
subjetivação, e também, nos preocupar com o desenvolvimento de uma reflexão
sobre as modelagens clínicas que possa se constituir em suporte para novas
práticas. 46
➢ A tradição dessa área tem tratado a clínica como uma prática que não interessa
ao campo dos nossos saberes efetivos prévios; por vezes aparece como oposta
e estruturalmente contraposta à prevenção e à promoção da saúde (visões
reducionistas predominantes no campo)

[Planejamento e serviços assistenciais]


➢ Mas, como a área de Planejamento, mesmo no interior da Saúde Coletiva, tem
se ocupado dos serviços de saúde? Como se fossem estabelecimentos e
organizações passíveis de serem submetidos a técnicas gerenciais, de maneira
semelhante às fábricas de sapatos – uma evidência é a contratação de
“gerentes” sem nenhuma vinculação prévia com a saúde para dirigir grandes
estabelecimentos assistenciais.
➢ No melhor dos casos, os planejadores têm tratado os serviços de saúde como
organizações de tipo profissional, em cujo caso tratar-se-ia de intervenções em
nível da cultura organizacional, ou comunicativa; tratar-se-ia de “enxertar” novos
valores na organização (como se isso pudesse ser conseguido
independentemente das formas de subjetivação aí vigentes), e de limitar-nos a
reconhecer o poder diferenciado que os médicos detêm nas organizações de
saúde (o que acaba por reforçar o patrimônio exclusivo dos médicos sobre a
clínica, e sustenta a degradação das práticas clínicas sob a forma de
procedimentos médicos). 47
➢ Na tradição da saúde coletiva, a clínica tradicional opera
predominantemente no setting individual, do encontro singular. Se a área da
CRÍTICA Saúde Coletiva estruturou-se contrapondo as práticas coletivas às
individuais, é, portanto, compreensível, que o tema da clínica tenha ficado
fora de foco para a maioria dos sanitaristas

➢ Campos propôs as seguintes categorias para repensar a clínica:

❖ Clínica degradada: queixa-conduta, não avalia riscos, não trata nem a


doença, trata sintomas; mais comum nos Prontos-Atendimentos; é esta a
clínica da eficiência: produz muitos procedimentos (consultas), porém, com
muito pouco questionamento sobre a eficácia (de fato, que grau de
produção de saúde acontece nessas consultas?).
❖ Clínica tradicional: trata das doenças enquanto ontologia, na sua
serialidade, o que há de comum nos casos. Nem sempre trabalha com
riscos, ainda que devesse; está focada no curar, não na prevenção, nem na
reabilitação. Intervir sobre o prognóstico dos casos é cada vez menos
frequente. O sujeito é reduzido a uma doença, no melhor dos casos, ou a
um órgão doente.
48
❖ Clínica tradicional: podemos reconhecer esta como a clínica dos
especialistas, que estritamente protegidos nos seus corpus profissionais já
não podem fazer práxis na própria prática e interrogar a eficácia do que
produzem. Toda vez que a clínica fica fortemente amarrada a prescrições
técnicas, restringe-se sua possibilidade de ampliação.

Clínica ❖ Clínica ampliada: (clínica do sujeito) a doença nunca ocupando todo o


Ampliada=> lugar do sujeito; nem na pior das doenças, nem à beira da morte,
clínica do poderíamos, nunca, ser totalmente reduzidos à condição de objeto. O sujeito
sujeito
é sempre biológico, social, e subjetivo. O sujeito é também histórico: as
demandas mudam no tempo, pois há valores, desejos que são construídos
socialmente e criam necessidades novas que aparecem como demandas.
-
Assim, clínica ampliada seria a que incorporasse nos seus saberes e
incumbências a avaliação de risco, não somente epidemiológico, mas
também social e subjetivo, do usuário ou grupo em questão.
Responsabilizando-se, não somente pelo que a epidemiologia tem definido
como necessidades, mas também pelas demandas concretas dos usuários.
49
- Campos entende as demandas como manifestação concreta de
necessidades sociais produzidas pelo jogo social e histórico, que foram se
constituindo, e que aparecem na sua singularização. É evidente que para
desenvolver esse tipo de clínica a formação do superespecialista fica estreita,.
pois esta proposta gera tensão nas barreiras disciplinares, estimulando o
trabalho em equipe; trabalho esse que vem acontecer como uma nova práxis e
não mais como aquele lugar idealizado, utópico e que ninguém teria visitado
jamais, da equipe transdisciplinar perfeita

A autora defende que é preciso que os planejadores da Saúde Coletiva


não continuem surdos às questões relativas aos modelos clínicos - a
clínica deveria ser sempre interrogada à luz da sua produção, da sua
eficácia

50
O espaço da clínica na organização de serviços substitutivos de saúde
mental: um conjunto vazio?

➢ Após a criação do SUS, fortaleceu-se a crítica ao modelo de tratamento


asilar. O ímpeto da Luta Antimanicomial criou focos de cegueira, espaços
recalcados, nossos próprios pactos denegatórios (formação intermediária
genérica que, em qualquer vínculo, conduz irremediavelmente ao recalque,
à recusa...)
➢ Na inspiração basagliana a doença é colocada entre parênteses - é o
doente, é a pessoa o objetivo do trabalho, e não a doença - dessa forma a
ênfase é posta no processo de “invenção da saúde” . Mas, nos diz
Amarante: “a operação «colocar entre parênteses» é, muitas das vezes,
entendida como a negação da existência da doença, o que em momento
algum é cogitado [. . .]”

Essa influência, em muitos casos mal interpretada como abolição da


doença e da clínica, tem contribuído para um certo esvaziamento da discussão
sobre a clínica nos serviços substitutivos de saúde mental.

51
➢ Autora traz a experiência de que a doença não foi posta entre parêntesis,
PERIGO para recolocar o foco no doente, a doença foi negada, negligenciada, oculta
por trás dos véus de um discurso que, às vezes, e lamentavelmente,
transformou-se em ideológico. Nessa linha, é possível reconhecer no
discurso de alguns membros da comunidade antimanicomial certa
idealização da loucura, negação das dificuldades concretas e materiais do
que significa viver como portador de sofrimento psíquico e minimização do
verdadeiro sofrimento que se encarna nesses pacientes, por exemplo, no
surto psicótico
➢ Opera-se uma certa “neurotização” do psicótico (por parte de analistas):
nada se sabe, o sujeito tem de demandar, tomar decisões e advir. Ora, se
um psicótico pudesse fazer isso não precisaria de serviços especiais. Sem
dúvida, existem concepções clínicas embasando essas práticas. O que
desejamos ressaltar é a necessidade de ampliar o debate sobre a clínica
possível no serviço público de Saúde Mental. Particularmente sobre uma
clínica das psicoses.

52
Alguns eixos para pensar a clínica na organização dos serviços substitutivos na rede
pública Eixos: (1) crise, (2) família, (3) grupo, (4) trabalho e a (5) equipe e o projeto

✓ A autora propõe eixos como núcleos temáticos, em volta dos quais agrupam-se inúmeras
práticas que acontecem em serviços dos mais variados. Ressaltá-los como eixos tem a
intenção de criticar a naturalização dessas práticas, resgatar seu valor de uso do ponto de
vista do que, de fato, pretende ser produzido. Destaque que fundamentamos na
necessidade de nos interrogarmos sobre o sentido de nosso trabalho, sobre o valor de
nossas práticas, sobre a eficácia.

→ A crise
➢ Na maioria dos casos os serviços de atenção à saúde mental vem se definindo com uma
vocação especial para o atendimento de psicóticos e neuróticos graves. Na maioria deles,
também, colocando-se com maior ou menor ênfase a necessidade de serem — de fato —
substitutivos à internação psiquiátrica integral.
➢ A autora constata que não há taxa zero de internações, mas a redução da frequência de
internações é muito importante depois que se vinculam a algum serviço substitutivo, e
considerados o montante de pacientes e a quantidade de encaminhamentos feitos para
unidades de internação a taxa é relativamente baixa
53
➢ Autoriza-se a dizer que os serviços substitutivos são definitivamente eficazes em prevenir
internações
➢ Usuários que acabam sendo internados vivem, diante deste episódio, uma quebra de sua
Quando
há a vinculação com o serviço, que resulta, após ela, que ele volte a ficar fragilizado e exposto ao
internação risco de novas internações.
➢ Se assumirmos que o momento do surto é, para pacientes e técnicos, momento de
fundamental importância, poderemos escapar da simples reiteração do valor ideológico (“não
internarás”!) e propor outras saídas entendermos esse momento apontará para nós
a necessidade de qualificar os serviços substitutivos para intervir na crise.
➢ E deveremos reconhecer que em alguns usuários e em algumas situações a necessidade de
resguardo, proteção e contenção serão fortemente colocadas pelo aparecimento do surto.
Assim, quando o serviço não dispõe nem mesmo do espaço físico (às vezes também não do
psíquico, nem do técnico) para acolher a crise, a única saída que pode ser enxergada pela
equipe é encaminhar para internação

54
➢ No seu momento de maior sofrimento e fragilidade, o paciente é exposto a uma quebra extra
de seus referenciais e vínculos; irá parar em um espaço que, de fato, ele não conhece, entre
pessoas que ele nunca viu, e ser “tratado” por uma equipe que não conhece sua história;
possibilidade de produzir da crise uma passagem para alguma outra coisa fica prejudicada.
➢ No melhor dos casos, se o usuário consegue no episódio da internação ligar-se de alguma
maneira a alguém da equipe de internação, logo ele será submetido a uma nova perda. O
sistema coloca o imperativo (antimanicomial) de essas Unidades de Internação trabalharem
na lógica de uma porta giratória: entrou, melhorou, saiu experiência se transforma em
mais um episódio banalizado
➢ A possibilidade de acompanhar a crise dos usuários está colocada para grande parte dos
serviços. Um compromisso com essa questão exigirá da equipe a possibilidade de sustentar
sua própria crise. Transformar o surto em passagem, em algo que pode ser tratado e
acompanhado e não somente abafado por grande quantidade de remédios. Para isso ser
suportável a própria equipe precisará de cuidados. Sabemos que tal não é sempre fácil no
setor público.
➢ Sustentada nessa posição clínica, pensamos ser possível uma primeira diretriz para a
organização de um sistema de saúde mental: a da necessidade de trabalhar com
equipamentos não intermediários, mas verdadeiramente substitutivos
55
➢ Fugindo da lógica do entra-e-sai e substituindo-a pela da responsabilização. Para isso
acontecer deveria ser possível contar com um apoio institucional para a própria equipe.

→ A família

➢ Muitas das famílias de psicóticos têm uma relação culposa com a institucionalização do
parente - entre querê-los de volta (para mitigar a culpa) e o medo e o incômodo concreto e
terrível de ter um louco em casa
➢ Assim, no caso dos serviços substitutivos, o objetivo declarado de evitar as perdas de
laços sociais e familiares aponta o imperativo de tratar também as famílias.

Na maioria dos serviços que conhecemos existe algum espaço destinado a trabalhar com
famílias, porém, muitas vezes, é um espaço esvaziado de sentido: informação da evolução do
paciente, como uma degradação eficiente do direito à informação; usuário visto como objeto do
qual há de se ter informação ou sentindo-se ameaçado; a história não é mais do sujeito
Não ser esvaziado de sentidos

56
➢ A autora atribui a uma parte dessa dificuldade à falta de formação; é difícil trabalhar com
famílias, e há na rede pública poucas pessoas com essa capacitação específica; também está
relacionada à perda de sentido das nossas práticas, com o véu produzido nas equipes, que
imprime sua marca acrítica no dia a dia dos trabalhadores de saúde. Esquecemos o valor da
pergunta “para quê ” assumirmos essa posição nos permite aceder a um para quê tratar
essas famílias

➢ Podemos assim sugerir uma outra diretriz para o sistema público: ao se pensar na população-
sugestão alvo de um dado serviço, talvez seja necessário redimensionar a oferta de atendimento
da autora incrementando aos usuários potenciais, reservando uma percentagem para as famílias.
Sabendo disso, avaliar também a necessidade de aprimorar a formação dos profissionais que
trabalham na rede pública de maneira específica.

57
→ O grupo

➢ O grupo pode ser um espaço privilegiado para vivenciar-se de uma nova maneira as
transferências maciças dos psicóticos; um espaço que possa constituir-se em passagem:
um lugar no qual algumas coisas possam ser reparadas, as invasões à própria subjetividade
não sejam vividas como mortíferas, e a dificuldade de viver possa ser acompanhada.
➢ Contudo, gostaríamos de salientar o peso da estruturação do serviço público sobre esse
dispositivo de tratamento: espaço é banalizado sem a clareza clareza de para quê o fazem;
os usuários são “encaminhados” para o grupo e “devem” ir, nunca ninguém se perguntando
sobre o quê esse espaço significa para esse usuário em particular.
➢ O grupo transforma-se assim, às vezes, em um véu sobre o mandato de fazer eficiente o
serviço: atende-se oito ou dez pessoas em uma hora (garantindo produtividade), mas se
degrada a singularidade dos casos

58
→ O trabalho

➢ Outra questão que mereceria ser resgatada na clínica e explorada com psicóticos é o uso de
outros mediadores que não a palavra. Desenhos, tintas, argila. . . Há coisas de que os loucos
não falam
➢ Diferença básica entre fazer alguma coisa (ou qualquer coisa), e fazer coisas que possam vir a
ter sentido para cada usuário: oficinas que — chamando-se de terapêuticas — se estruturam
Crítica somente em base do produzido (em produto para a cooperativa vender, por exemplo) e não do
que produzem concretamente sobre a singularidade de cada usuário que se encontra inserido
na “linha” de produção
➢ Claro que, na direção de pôr a doença entre parênteses, o fato de estar inserido em uma
produção que lhe traz algum pagamento produz efeitos: o usuário pode vir a desempenhar
outros papéis, que não somente o de enlouquecido da casa. Essa é a parte da intervenção
psicossocial que pode e deve ser preservada; o que gostaríamos de ressaltar é que o espaço da
produção, com tudo o que ele tem potencialidade de produzir no usuário, é frequente e
lamentavelmente banalizado; quais as consequências para um psicótico de trabalhar numa linha
de produção na qual ele só enxerga um pedaço do produto?; risco, de a ação social prevalecer
sobre a interlocução precisa fazer sentido
para o pct
59
➢ Mais uma consideração sobre as consequências que poderíamos extrair disso para a
estruturação dos serviços públicos: pensarmos espaços nos quais possam se “fazer” coisas
além de se dizer coisas.
➢ E pensarmos no trabalho também como produção do sujeito em si, não somente como
reprodução material. Procurando sempre que possível a construção de sentido dessa
reprodução social, para ela não vir a ser simples adaptação social.

→ A equipe e o projeto como processo intermediário Projeto= permanência


plano = fragmentos

➢ Um projeto em um serviço de saúde deve incluir uma proposta clínica


➢ Todo projeto só será possível se explorado a partir da subjetividade da própria equipe em
questão
➢ Se pensamos o Planejamento em Saúde como dispositivo, ele se torna mais uma exploração do
dado do que uma aplicação de receitas tecnológicas prontas.
➢ Enfatizamos que o subjetivo é próprio do projeto, como o técnico o é do plano.
➢ O projeto tem permanência, o plano é uma figura fragmentária e provisória. Se tenho um
projeto, passar dele ao plano resulta, aí sim, de uma aplicação técnica, depende de um saber
prévio e é relativamente fácil de conseguir

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➢ Para Kaës, a instauração do espaço psíquico do ser-conjunto se sustenta na possibilidade de
recriar a ilusão institucional, oferecendo referencias para a aderência narcísica de seus
membros, pois a falha de ilusão institucional priva os sujeitos de uma satisfação importante e
debilita o espaço psíquico comum dos investimentos imaginários que vão sustentar a realização
do projeto da instituição
➢ E essa não é uma tarefa fácil nos serviços públicos, muitos dos quais se encontram
burocratizados ou submetidos ao gerenciamento autoritário. A compreensão dos aspectos
subjetivos envolvidos pode contribuir para repensar nosso papel como apoiadores das equipes.

[Ideologia]

➢ Umas das saídas institucionais ao sofrimento é o apelo exagerado ao ideológico. Ideologia que
funciona aí como falsa consciência, véu, obturando a possibilidade de se interrogar sobre o
sentido das próprias práticas
➢ Deveríamos criar uma rede de sustentação, de suporte, na qual os pacientes possam
experimentar, de novo, suas transferências maciças, com resultados diferentes. Mas destacamos
que, para isso, a própria equipe deve ter suporte, holding - função faz parte do novo papel do
apoiador institucional.
➢ Nos serviços de saúde mental a análise da situação institucional estará sempre fortemente
entrelaçada com a discussão clínica. Não é possível discutir casos sem pôr em análise o
funcionamento da equipe. A natureza do que ali é tratado faz essa separação indesejável. 61
➢ Planejadores devem aprimorar o entendimento em relação às modelagens clínicas: tomar
posição, não ser mais “neutros”, em relação às propostas clínicas nisso consiste nosso
handing: manejo, e já não mais apenas no domínio de técnicas para preencher planilhas de um
plano, que talvez nunca venha a ser executado.

➢ Precisamos assumir declaradamente a necessidade de ampliação da clínica nos serviços


públicos de saúde, sob risco de trabalhar a favor da proposta hegemônica: a degradação da
clínica, a criação de serviços pobres para pobres, e a inviabilidade do Sistema Único de Saúde
no que se refere aos custos crescentes derivados do alto consumo de técnicas diagnósticas e
terapêuticas que acabam sendo caras, ineficazes, e, às vezes, até iatrogênicas.

➢ Sustentamos que o Planejamento em Saúde estará sempre ligado às questões advindas das
modelagens clínicas e da subjetividade dos grupos que estão em ação

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Capítulo 6 Elas continuam loucas: de que serviria aos serviços públicos de saúde uma releitura
dos textos de Freud sobre a histeria?

➢ Freud propôs a escuta do sofrimento das histéricas, devolvendo-lhes a possibilidade da palavra ali
onde faltava

➢ Para ele, não é o trauma o agente provocador que desencadearia o sintoma, é sua lembrança;
interessava a ele detalhar como, mostrar como esses afetos poderiam estar em jogo na histeria e,
também, sua relação “simbólica” com os sintomas apresentados
Usuárias dos CAPS
➢ Aspectos que aparecem com bastante frequência em consultas de mulheres nos serviços públicos
de saúde - mulheres chefes de família da periferia, dotadas de inteligência, sensibilidade e
“chegadas em um exagero”; com uma capacidade de doar-se ao outro que faz parte da estratégia
de sobrevivência de muitas comunidades – expressos através de alguns casos atendidos e
associados a casos clínicos de Freud

➢ Representação é separada do afeto (excitação) que a acompanha, de tal modo que a


representação forte se transforme em inofensiva, sendo a excitação referida ao corpo, o que
caracteriza a defesa por conversão (Psiconeuroses de defesa [1894])
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➢ Teoria da etiologia sexual das neuroses: a sexualidade é a chave do problema das psiconeuroses,
bem como das neuroses em geral.
➢ Em “Dora”, Freud brinda-nos com os detalhes de como trabalha. Apresenta alguns princípios que
vigoram até hoje na psicanálise e que poderiam ajudar em muito as práticas clínicas nos serviços
de saúde. Aquela senhora poliqueixosa, que vem todo santo dia à UBS, diz a verdade?

[Transferência]

➢ Freud desenvolve a questão da histeria como um modo de funcionamento que organiza a


transferência e não mais como um conjunto de sintomas que se deveriam desmontar uns após
outros, como na época dos Estudos sobre a histeria. (caso Dora)
➢ O que são as transferências? Uma série de experiências psíquicas prévia é revivida, não como algo
passado, mas como um vínculo atual com a pessoa do médico. No caso Dora, Freud afirma que
errara ao não compreender completamente o que estaria levando à interrupção do tratamento.
Quanto não aprenderiam inúmeros profissionais da área da saúde fazendo a si mesmos essa
pergunta? Quantos teriam a coragem de formulá-la e não simplesmente culpar o paciente porque
não retornou ou não “adere” ao tratamento, como se gente fosse band-aid?
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➢ Teríamos saúde pública para domesticarmos a neurose? E será que isso seria possível? Centros de
Saúde e Centros de Atenção Psicossocial (Caps) que frequento e conheço ficam sempre às voltas
com o tratamento moral. Nada injuria mais a equipe de um Caps que ousar sugerir o diagnóstico de
uma histeria
➢ Aos Caps cabe o tratamento das psicoses e das neuroses graves, mas essas equipes,
acostumadas a lidar com a psicose e sua falta de pragmatismo, irritam-se com pacientes mais
conservadas do ponto de vista pragmático ou cognitivo. Assim as histéricas aí não teriam lugar!
Elas, que já encheram asilos e manicômios, teriam negado o lugar substitutivo de atendimento que
supostamente lhes foi destinado. Onde o ter então na rede pública?
➢ Nas Unidades Básicas de Saúde também não, já que nem todas têm pessoal destinado à saúde
mental e, quando têm, a demanda impede que se pense em tratamentos longos e individualizados.
Mas haveria outras formas de mantermos a psicanálise viva e continuar a ajudar a tantas mulheres
perdidas em sua própria identidade?
➢ Se não, como tirar do círculo vicioso a produção em massa da pobreza brasileira, de sua
desigualdade que é reproduzida também pelas formas de subjetivação a que têm acesso milhares
de pessoas - muitíssimas mulheres repetindo geração após geração o conflito com suas mães, a
maternidade precoce ou “indesejada” como saída que as leva direto para a armadilha do
ressentimento ou da doação
(*) O tratamento clínico não cria a transferência e sim revela
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➢ Precisamos oferecer uma escuta que provoque dúvidas, que responsabilize, que implique essas
mulheres com seus próprios sintomas, para não acabar oferecendo o álibi para a cronificação,
muitas vezes em forma de remédios - recriar e inventar novas formas de acesso a essa escuta que
nos ensinou Freud; escuta da suspeita, do simbólico, da falha ou do branco na linguagem. . . Uma
intervenção no momento da queixa que possa “organizar” uma demanda aí onde aparecem
somente sintomas soltos (e isso impõe estar presente ali na hora certa, não um mês depois!).
➢ Intervenções “preventivas” no sentido de fortalecer os laços parentais e culturais e não da
usurpação falsa e inconstante desses papéis – equipes contribuindo para a desqualificação
simbólica perante os filhos - usurpação falsa e inconstante.
➢ Trabalhar por políticas públicas que tornem isso possível parece-me uma atividade de relevância
ética e clínico-política.
➢ Pretendemos com essas notas chamar a atenção para a articulação entre psicanálise e histeria
hoje, para o valor da retomada dos estudos clássicos — os estudos de Freud — e a “utilidade”
dessa abordagem nos serviços públicos de saúde. A autora acha importante retomar essas ligações
para contestar muitos que pensam que a histeria já acabou ou que é uma categoria psicopatológica
obsoleta, sem levar em conta a complexidade do feminino, da sexualidade, da fantasia, da cisão
entre sexo e amor, etc.

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ESTUDO DIRIGIDO PSI

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