Ponche Verde - Janer Cristaldo
Ponche Verde - Janer Cristaldo
Ponche Verde - Janer Cristaldo
PONCHE VERDE
Janer Cristaldo
eBooksBrasil
Ponche Verde (1980—1985)
Janer Cristaldo (1947—2014)
Primeira Edição (em papel)
Editorial Nórdica, Rio, 1986
Edição em eBook
eBooksBrasil.org
www.eBooksBrasil.org
Capa
foto online de Poncho Verde C.T.G.
http://poncheverde.sma.zaz.com.br/fotos.htm
Copyright
©2000-2006 Janer Cristaldo
Nota do Editor
Poncho Verde foi o local, em D. Pedrito,
cercanias de Santana do Livramento, nos pagos
gaúchos, onde os farroupinhas de David Canabarro,
após pelejas memoráveis, escrevendo páginas
heróicas da lutas pelas liberdades no Brasil,
exaustos, após 10 anos de resistência, renderam-se
aos imperiais do áulico Barão de Caxias. Foram
farroupilhas Osório, os Garibaldi, e o maior de todos
os heróis: o povo gaúcho.
Mas o espírito libertário, a República e as
liberdades não se renderam em Poncho Verde. E isto
está mais do que provado neste livro de Janer
Cristaldo, que a eBooksBrasil teve a honra de
editorar.
A obra fala por si. Boa leitura!
P.S. - Tive a honra de conhecê-lo, Janer
Cristaldo. De D. Pedrito para o mundo. E agora para
a Eternidade - São Paulo, primavera de 2014. -
Teotonio Simões
ÍNDICE
O Autor
PONCHE VERDE
10 — Chalé 80
9 — Na ilha
8 — Chez Krk
7 — Au bord’elle
6 — No fio de prumo
5 — Al mar!
4 — Nos passos de Pessoa
3 — No paraíso
2 — Lá na Linha
1 — Chalé 70
0 — Ponche Verde
SOBRE O AUTOR
Nasceu em 1947, em Santana do Livramento,
RS. Formou-se em Direito e Filosofia. Iniciou-se em
jornalismo no extinto Diário de Notícias, Porto
Alegre. Escreveu no Correio do Povo e Folha da
Manhã. Nos anos 71 e 72, exilou-se voluntariamente
em Estocolmo, onde estudou cinema e língua e
literatura suecas.
De volta ao Brasil, publicou suas primeiras
traduções: Kalocaína, de Karin Boye (do sueco), e
Crônicas de Bustos Domecq, de Jorge Luís Borges
e Adolfo Bioy Casares (do espanhol). Em 1973,
publicou O Paraíso Sexual Democrata, que teve
quatro edições no Brasil e uma em espanhol, em
Buenos Aires, proibida na Argentina. Em 1975,
passa a assinar coluna diária para a Folha da
Manhã, Porto Alegre. Em 77, recebe bolsa do
governo francês para um doutorado em Letras
Francesas e Comparadas. De Paris, mantém
correspondência diária para a Folha da Manhã. Em
1981, doutorou-se pela Université de la Sorbonne
Nouvelle (Paris III), com a tese La Révolte chez
Ernesto Sábato et Albert Camus, traduzida ao
brasileiro sob o título de Mensageiros das Fúrias,
que tem uma edição eletrônica em
eBooksBrasil.org. Ainda em Paris, iniciou a
tradução da obra ficcional e ensaística de Ernesto
Sábato, a pedido do próprio autor.
No Brasil, foi professor visitante de Literatura
Brasileira e Comparada, na Universidade Federal de
Santa Catarina, em Florianópolis, de 1982 a 1986.
Neste período, traduziu vários outros romances,
introduzindo no universo literário brasileiro autores
como Roberto Arlt, Camilo José Cela, José Donoso,
Michel Déon e Michel Tournier. Em 86, publica seu
primeiro romance, Ponche Verde, que tem como
fulcro a peregrinação dos exilados brasileiros por
Estocolmo, Berlim, Paris e Lisboa.
Estudou Língua e Literatura Espanholas em
Madri. Foi redator de Política Internacional da Folha
de São Paulo e do Estado de São Paulo. Suas
últimas crônicas podem ser lidas no blog Janer
Cristaldo
PONCHE
VERDE
JANER CRISTALDO
Aos amigos e amigas,
autores e livros,
vivos e mortos,
cujos rostos e vozes,
fecundam esta viagem.
** *
9. NA ILHA
“Im Kampf um Südamerika, ein Zukunftsbild”
— intitulava-se o livro. Na capa, um condor
carregando ao bico a bandeira ianque em farrapos,
traspassada por uma lança, e o pseudônimo sob o
qual se escondia o autor: Condor. João Geraldo
contemplou longamente a brochura, nada menos
que 262 páginas.
Ao alvorecer de 1920 estamos em vésperas do
conflito máximo que vai decidir a sorte das duas
Américas. O pensamento de uma liga ofensiva e
defensiva dos maiores países latino-americanos,
aventada já em começos do século XX pelo previdente
estadista Barão de Rio Branco, e que então
encontrava ainda forte e geral oposição, havia se
materializado em 1918, numa aliança entre o Brasil,
o Chile e a República Argentina, unidas para a defesa
da independência continental.
A progressiva realização da política
imperialista norte-americana já atingira então até a
Colômbia, abrangendo o protetorado do México e de
toda a América Central; o deslocamento do comércio
mundial, determinado pela abertura do canal de
Panamá, impusera ao Brasil a necessidade de dilatar
o seu território até o Oceano Pacífico, anexando o
Equador, vantagem esta logo neutralizada pela
ocupação norte-americana do arquipélago fronteiriço
dos Galápagos, temerosamente fortificado.
O Peru mantivera-se alheio à colisão,
completamente entregue à influência ianque desde
que, em 1910, tivera de ceder ao Chile as províncias
de Tacna e de Arica, reavivando-se por isso os
antigos ódios contra o rival triunfante.
A Bolívia continuava a progredir pacificamente
como país mediterrâneo, oscilando entre a ação
política da Europa e dos Estados Unidos, mas
propendendo já para esta ao peso dos imensos
capitais norte-americanos empregados na construção
de sua rede ferroviária.
A imigração de pretos desta nacionalidade,
inundando o Panamá e a Colômbia, derramara-se
também pelos estados brasileiros do Equador, Acre,
Mato Grosso e Amazonas, pelo norte do Grão Chaco,
complicando lamentavelmente o grave problema da
assimilação étnica de elementos raciais inferiores.
Interpretações sofísticas da famigerada
doutrina Monroe determinavam contínuas
intervenções da solerte diplomacia norte-americana
na política internacional e na vida econômica das
repúblicas menores, produzindo atritos e
complicações internacionais e acirrando ódios
crescentes contra a influência ianque.
A tensão chegara ao extremo de bastar uma
fagulha para atear o pavoroso incêndio continental.
Em dias de fevereiro de 1920 ocorreria em
Montevidéu o pleito presidencial e, segundo todas as
aparências, a vitória deveria caber ao candidato
patrocinado pelos agentes de Washington, quando
súbita revolução veio anular todas as combinações
eleitorais, elevando ao poder o chefe nacionalista
general Galarza.
Aproveitando a confusão, a irrequieta
população da capital uruguaia, no furor de
represálias contra os odiados adventícios, atirou-se à
legação norte-americana, saqueando e destruindo o
respectivo edifício.
Refugiado a bordo de um dos cruzadores
fundeados no porto, o ministro dos Estados Unidos
exigiu pronta e incondicional reparação, sob ameaça
de fazer bombardear a cidade.
Recusando-se os brios nacionais a curvar-se à
humilhação imposta, perpetuou-se o crime
monstruoso: em poucas horas de bombardeio, dirigido
com habilidade sinistra, a magnífica capital foi
transformada num imenso acervo de destroços
fumegantes e sangrentos.
No dia seguinte à notícia do inaudito atentado
levantava, em toda a América Latina, ruidosos
protestos de indignação e os ânimos populares,
superexcitados pela linguagem violenta da imprensa
nacionalista, reclamavam dos governos imediata
desafronta à mão armada: um grito unânime ecoava
em todos os ângulos do continente — guerra!
E a guerra foi resolvida pelos delegados da
Tríplice Aliança, reunidos em Buenos Aires.
Na mesma noite, uma divisão da esquadra
argentina conseguia surpreender e meter a pique, no
porto de Montevidéu, os cruzadores norte-americanos
autores do bombardeio. Ao mesmo tempo, no Brasil,
no Chile e no Prata, operava-se, com celeridade
admirável, a mobilização e a concentração de tropas.
CARESSEZ-LES
DANS
LE SENS DU POIL
Tous les chiens éprouvent le besoin de se sentir
aimés, les chats plus discrets sont aussi avides
de caresses.
Tudo era um complexo jogo de impressões que
se superpunham em um negativo, resultando uma
imagem final confusa e imprecisa,
maniqueisticamente equacionada em dois termos: de
um lado havia um sistema que o aprisionara e
humilhara, ele identificava o sistema com o país e
Brasil era sinônimo de obscurantismo, ditadura,
barbárie, racismo, corrupção e de quantas mais
ignomínias houvesse. De outro lado havia o país que
o acolhera com carinho, pelo menos com uma
atenção que jamais tivera em seu próprio país, a
França surgira em sua trajetória como mãe amorosa
que pensa as chagas de todos os torturados e ficava
difícil, senão impossível, imputar defeitos àquela
Madona impoluta. Era humano, ora bolas!
Mas os fatos se acumulavam como bostas nas
ruas e o conduziam a dolorosas constatações que o
assaltavam nas ocasiões mais inesperadas.
Catherine. Fora sua enfermeira espiritual, poderia
dizer assim, e guia nos primeiros meses, Cristiano
podia ter as restrições que quisesse em relação à
moça, mas ele gostava dela e fim de papo. Mas... Os
fatos se mantinham à espreita. Catherine militava
na universidade e no bairro, vendia l’Humanité nas
esquinas e era solidária com os oprimidos do mundo
todo, já cortara cana em Cuba, ambos combatiam o
mesmo combate.
A dúvida surgiu quando, num fim de noite no
Select, a permanente começou a falar de problemas
de espaço, esses malditos studios parisienses,
quando têm banheiro se o sabão cai é preciso abrir a
porta para apanhá-lo, e descobrira — numa
iluminação — que o corredor contíguo a seu studio
era cego, se derrubasse uma parede e o anexasse a
seu território em nada seria lesado o condomínio. E
o anexou, para indignação do síndico e demais
moradores do prédio, preocupados com a
possibilidade de que o arranjo virasse moda, já que
em todos os andares havia idêntico canto cego de
corredor. Recebeu ordem formal de recuar sua
parede à posição original.
Droit
de visite...
du chien
ANGERS — Un juge des affaires matrimoniales
du tribunal d’Angers s’est donné quinze jours de
réflexion avant d’accorder un droit de visite dans une
procédure de divorce: il ne s’agit pas, comme c’est le
cas habituellement, d’un ou de plusieurs enfants,
mais d’un chien.
Si l’entente ne règne plus dans le couple, le
mari et femme étaient egalement attachés à l’animal.
Une demande officielle de droit de visites a donc été
introduite par celui des époux qui n’a pas la garde du
chien.
Droit de visite
à son chien
Un époux en instance de divorce a obtenu
vendredi du juge des affaires matrimoniales du
tribunal de Créteil (Val-de-Marne), un droit de visite
pour son caniche tandis que sa femme se voyait
confier la garde de l’animal.
Le couple ne s’entendait que sur deux points: la
rupture et l’envie de voir régulièrement le petit animal.
Le magistrat, après avoir officiellement constaté qu’il
y avait convergence de vues de la part du mari et de
la femme à propos de l’animal, a donné au mari le
droit de rendre visite à son chien à raison de deux
week-ends par mois et de le garder pendant une
partie des grandes vacances.
ET VIVE LA FRANCE!
LE CHRIST EST
MORT AUSSI POUR
LES CHIENS
Un livre sobre et pénétrant sur un thème trop
souvent traité avec une sensiblerie debridée et
superficielle. Il arrive que l’on écrive sur l’animal pour
le situer par rapport à l’homme, mais il est assez rare
que les chrétiens dépassent le stade de la poésie
franciscaine pour atteindre à une sorte de théologie
de la nature animée.
Laissons de côté les efforts menés actuellement
par une ligue internationale pour aboutir à
l’élaboration d’une charte des droits de l’animal:
l’ouvrage de Michel Damien déborde de toutes parts
cette tentative. Il se situe sur un plan spécifiquement
religieux et c’est ce qui fait son originalité.
La solidarité de l’homme avec l’animal n’est
pas seulement biologique, naturelle, elle est
ontologique, transcendantale, évangélique. Le Christ
est mort aussi pour les chiens. L’Eglise catholique est
malheuresement absente de ce débat. Les animaux
n’ont reçu aucun statut de sa part. Et pourtant, si
l’animal n’a pas la notion de Dieu il a en revanche
celle de l’homme qui est à l’image de Dieu. D’ailleurs,
les animaux nous ont précédés sur la Terre et nous en
sommes, d’une manière ou de l’autre, tributaires.
“Il nous attendent sur le chemin du
Christ”. Ils sont notre prochain. Leur souffrance
mystérieuse est une “participation aux
Béatitudes. Il y a un Evangile de l’animal, qui
lui aussi meurt dans les bras de Dieu”. L’animal
a ceci de commun avec le Christ qu’il meurt pour le
monde et que son sacrifice est indispensable à
l’équilibre de ce monde.
L’auteur n’a pas la naïveté de certains
végétariens. Le sort de l’animal est attaché à un
immense et nécessaire holocauste. La Bible affirme
que les animaux seront livrés entre les mains de
l’homme, qui les tuera, comme il l’a fait pour le Christ.
L’Arche de Noé est l’image du navire (l’Eglise) où nous
sommes tous embarqués.
Bref, l’animal est inseré dans un mouvement
religieux universel qui est une montée vers Dieu. Un
manuscript biblique copte — apocryphe — relate que
le Christ a pris la défense d’un animal de trait frappé
jusqu’au sang et qu’il a maudit ceux qui le frappaient.
Michel Damien conclut: “le temps de
l’excommunication de la nature est passé. Nous
sommes dans une ère où l’oecumenisme devient
planétaire. L’unité des vivants se réalise avec le
Christ”.
* L’ANIMAL, L’HOMME ET DIEU, de Michel
Damien. Editions du Cerf, 216p., 45 F.
Il tue son
fils, son chien
et se suicide
Technicien, domicilié à Bondy (Seine-Saint-
Denis), Bernard Wullus (42 ans) a tué, mardi, son fils
Marc, âgé de cinq ans, et son chien, avant de se
donner la mort à Saint André-en-Morvan (Nièvre). Il a
également mis le feu à as maison.
Dans un message adressé au juge
d’instruction, M. Wultus indique qu’il était “incapable
de vivre après un second divorce” et reproche à la
justice “de ne pas l’avoir compris”. Dimanche soir
dans la forêt de Senlis, il avait déjà tenté de tuer son
épouse et l’ami de celle-ci, en tirant plusieurs coups
de carabine contre leur voiture, sans les atteindre.
LES BACCHANALES
No 5
Brasil: Pelê, cafê, sambá, mulatá, Riô, butebol,
macumbá, donc, bacchanales. Seria insólito, para o
apresentador parisiense, conceber que um brasileiro
conhecesse Bach na primeira metade do século. Sem
falar em certos intelectuais da Sorbonne, que
quando viam em um romance a figura do “coroné”
nordestino, pensavam logo tratar-se de um autor
que atacava as Forças Armadas.
Imagens... Mas os brasileiros — refletia —
também competiam firme neste campeonato.
Lembrava a história da turista carioca que desceu
no metrô Bastille e não conseguia encontrar a
Bastilha, para o espanto de uma florista.
— Mais nous l’avons tombée, Madame, depuis
belle lurette!
Os franceses têm uma sensibilidade
extraordinária para o cinema, pensava furioso
Cristiano, lotam as salas mal entra filme inglês em
cartaz. Decidira ver “La Vie de Brian”, se algo o
interessava entre as centenas de filmes que Paris lhe
oferecia era precisamente o dos Monty Python e
mais nenhum e a cada cinema se deparava com filas
imensas. Tentou o UGC Odeon, pela multidão intuiu
que não conseguiria lugar. Baixou ao metrô, correu
ao UGC Opera, a caixa anunciava complet. Tentou o
Montparnasse Bienvenu, nada feito, e naquela
altura não conseguiria pegar uma última sessão.
Optou por uma esticada até o Select.
Raramente ia ao cinema, não por não gostar,
sem falar que como jornalista não pagava entrada.
Mas abominava uma instituição nacional, a
ouvreuse, tinha vontade de cuspir naquela mão
súplice que lhe pedia uma moedinha depois de
conduzi-lo à sala, mesmo com as luzes acesas, como
se o tomassem por cego. Pagaria o dobro da entrada,
desde que não tivesse de pagar um só centavo
àquele ser sem dignidade alguma. Poderia recusar-
se. Mas seria insultado de volta, e esta não era a
melhor disposição de ânimo para assistir um filme.
Sem falar na mania infame das caixas, só vendiam
entrada cinco minutos antes da sessão, caísse neve
ou chovesse canivetes o espectador tinha de esperar
em meio à lama e à intempérie, uma velhota
tricotando e olhando o vácuo no guichê podia
vender-lhe o bilhete mas não vendia, impossível
entender de onde viria tal hábito, certamente
reivindicação do Sindicat des Vieilles Gouinnes
Tricoteuses.
O dia era 19 de abril, como esquecer aquele
sábado? No Select e no La Coupole o ambiente era
agitado, sentia-se no ar uma ausência, ou melhor,
talvez presença, a fauna local portava nos lábios ou
olhar a lembrança do homem que acabavam de
acompanhar ao cemitério de Montparnasse. Sartre
seria depois incinerado no Père Lachaise e nos
grupúsculos intelectuais a pergunta era uma só: que
restaria dele além de suas cinzas? A imprensa
internacional saudava sua glória, com o que nem
todos estavam de acordo, não faltava quem o
reprovasse por ter namorado as ideologias mais
mortíferas e ter pego sempre os últimos trens.
Queneau o considerava homem de coragem,
afinal precisava de não pouca coragem para
publicar, em 43, um livro de um quilo, se bem que
todos os vendedores de farinha ou batata por quilo
teriam de ter um exemplar à mão, já que o chumbo
escasseava em função da guerra. De qualquer
forma, se o pensador se enganara o mais das vezes,
era comovente seu esforço em mudar de rumos,
evocá-lo trazia à mente Camus: “um homem incapaz
de mudar de idéia é um homem que faz medo”. Fora
um confuso, pensava Cristiano, o que sempre era
melhor que ser dogmático. Enfim, a vida era um
pacote contínuo de ironias. No Chalé, em Porto
Alegre, há coisa de uma década, seus companheiros
de mesa sonhavam um dia tomar um calvá, ao lado
de Sartre, em um bistrô de Paris. Agora lá estava ele,
num dos bistrôs de Sartre, tomando um calvá,
enquanto à sua volta todos evocavam o cadáver de
Sartre, que há pouco passara ali ao lado.
Desencontro de agendas...
Sorte tivera Roland Barthes, partira um mês
antes. Tivesse o azar de morrer na mesma semana,
mal lhe sobraria um pé de página num jornal menor.
Em seu leito em Ljubljana, Tito parecia hesitar em
partir, questão de esperar mais alguns dias, até que
ficassem livres as primeiras páginas dos jornais.
Entra Catherine, a permanente atroz do
Partido. Certamente teria assistido de camarote ao
enterro, morava na Edgar Quinet, onde ele passara
conduzindo de dentro de esquife sua última manif
antes de ser enterrado. Mal sentou, antes mesmo de
qualquer saudação, Catherine lhe passa o Monde,
aponta um desenho de Konk, quatro senhores aos
prantos carregando o caixão: Giscard, Mitterrand,
Marchais e Chirac. É! O humorista havia captado
com garra o clima pré-eleitoral, só fazia
unanimidade naquela França de 80 o gesto que
significasse votos aos eternos aspirantes do Elysée.
— Aposto que ganha em 81 quem disser que
perdeu uma de suas maiores luzes — disse
Catherine. Foste ao enterro?
— Não, meu anjo, só escrevi sobre.
— Um jornalista que não persegue os fatos?
Como explicar-lhe que correra o tempo todo
atrás do filme dos Monty Python, que abominava a
idéia de correr atrás dos fatos e particularmente dos
cadáveres, que preferia esperá-los sentado para uma
posterior reflexão? Mas ela tampouco se interessava
pelo acontecimento. Le vieux con não havia
declarado há pouco no Nouvel Obs que era o PC
quem retardava a revolução? Ficasse calado por
mais algumas semanas, considerava Catherine, e
teria entrado com mais elegância na posteridade.
Mas era ele o único mito encarnado a morrer
naquele abril. Do outro lado do Atlântico agonizava
um outro, morte para Catherine bem mais dura de
encarar, ainda não conseguia acreditar no que lhe
traziam os jornais. O cadáver de seu vizinho da
Edgar Quinet, isto é, seu caixão, ela o havia visto de
sua janela, se não havia visto os despojos tudo
indicava que estavam lá dentro daquele furgão
sufocado de flores, lá estava Simone de Beauvoir, o
Petit Castor de Sartre, apoiada por Lanzmann. Na
turba conseguira identificar Simone Signoret, rosto
quase escondido por um gordo par de óculos, de
braços com Yves Montand e Costa-Gavras, vira
também Françoise Sagan envolta em um
impermeável bege, bolsa à tiracolo, não era possível
que tanta gente ligada à ficção estivesse sendo
cúmplice de uma outra, e esta fúnebre.
Sim, ele rumava ao Montparnasse naquele
carro, isto era inegável. Já os dez mil cubanos
abandonando a ilha, a foto dos primeiros a beijar o
solo em Costa Rica gritando “Libertad!”, isto era bem
mais difícil de engolir. Nos primeiros dias creditara
os despachos à má fé da presse pourrie, não haviam
até mesmo espalhado o boato que Raúl Castro
tentara assassinar Fidel? Mas as imagens de TV, o
número de vôos e travessias por mar confirmavam
pouco a pouco a cifra dos dez mil, tudo indicava que
lá no Caribe estertorava mais uma esperança.
Ironicamente, o Matin daquele sábado trazia uma
foto de Sartre com Castro, “a fascinação do
intelectual pelo revolucionário”, dizia o texto-
legenda, ele em gravata e mangas de camisa,
sufocado pelo sol dos trópicos, Castro ainda jovem e
em battle-dress. Em 69, ela abandonara Balthazar
ainda criança e fora cortar cana na ilha, voltara com
as mãos estropiadas pelo machete, quase esquecidas
de como acariciar. Descobrira um mundo novo, um
homem que como larva emergia de um ambiente
antes podre, e apostara naquele homem novo. E
agora...
Cristiano adorava aquela retórica parisiense,
era próprio de Catherine enfeitar com palavras bem
justapostas toda e qualquer realidade, mesmo a
mais sórdida. Mas, certamente por deformação
profissional, passara a ser dois ao falar com um
terceiro. No plano do bate-papo era o interlocutor
gentil que com diplomacia punha certas dúvidas que
para ele há muito não constituíam dúvida. Na caixa
de sua cabeça, mesmo falando com cordura, a mil
por hora trabalhava o analista feroz. Catherine
cortando cana em Cuba? Um fio de pentelho puxa
mais que vinte juntas de boi — costumava dizer
João Geraldo, com suas imagens de gaúcho
fronteirista. Sem falar em algum cubano no meio da
história, a coitada abandonara o triste universo
parisiense, aportara em uma ilha tropical, onde
apesar da penúria o povo mantinha seu bom humor.
Entregara-se à revolução quando o que a havia
fascinado era o lado latino da ilha, não a nova
ideologia. Cortar cana ombro a ombro com um
camponês, ou mesmo com um camarada de um
outro país, era bem mais saudável que lidar com um
burocrata parisiense com cara de computador, que
só sorri quando sai sol, e isso se seus músculos
faciais já não se haviam atrofiado pelo cinza
cotidiano da vida urbana.
Não era exatamente ela quem Cristiano
gostaria de encontrar naquele fim de noite. Vivia ao
sabor de impulsos súbitos, e a não-satisfação destes
lhe abalava o humor, só voltava à tona se
compensado por uma gratificação maior. Perdido os
Monty Python, só uma mulher lhe salvaria a noite,
notava agora que inconscientemente deixara o
Montparnasse Bienvenue como última opção, assim
já estaria próximo ao Select onde sempre havia
alguma esperança. Mas Catherine, como diria o
monstro sagrado que acabara de ser enterrado, era
uma paixão inútil. Já haviam tido boas horas de
cama, ela se situava entre as que Cristiano
denominava pornófonas, recheava o embate com as
mais quentes palavras. Se bem que... tinha de
admitir que putaria só o excitava na língua
vernácula, tinha saudades de uma foda em bom
português. Mas a barreira, no fundo, não era
lingüística. Que mais não fosse, gemidos não tinham
pátria.
Haviam-se encontrado pela última vez
quando? Cannes 78? O ritmo absurdo de Paris o
assustava, de repente se dava conta de que há
quase dois anos não a via e parecia tê-la encontrado
ontem. Ontem ou há dois anos, algo se havia
quebrado em algum lugar e qualquer tentativa de
conserto exigia um preço que nenhum dos dois
estava disposto a pagar.
— Madame? — pergunta o garçom.
Catherine também tomaria um calvá, em
homenagem à data. Não era a bebida predileta do
vulto que partia?
— E partiu a tempo, não?
— Que queres dizer com isso? — reagiu a
moça.
Decidiu colocar o único problema que não
devia colocar. Mas estava vagamente irritado, sentia
que naquela noite voltaria só para casa. Dividiria
então com Catherine seu mau humor incipiente,
assim seriam dois a deitarem-se mal-humorados.
— Morreu em boa hora. Com esses cubanos
todos abandonando o barco, teria mais uma vez de
mudar de rota.
Estava sendo propositadamente injusto.
Sartre já condenara Castro por ocasião do
encarceramento de Padilha. Se ela sabia do fato,
podia sair-se com elegância. Se não, que se lixasse.
Ele estava jogando e não pretendia mostrar as
cartas ao parceiro.
— Dez mil! — admitiu a permanente do PC. —
Mas se previa para hoje, sábado, um milhão de
cubanos manifestando em Havana a favor de Castro.
— O que só confirma, meu anjo, que algo de
errado está acontecendo por lá. Quem está firme no
poder não precisa do aval de passeatas-monstros.
Maior é a manifestação, mais fraco está o homem.
Voltava a lembrar o cadáver que há pouco
passara por ali. Uma foto sua, não a do Matin com
Fidel, mas uma outra, na capa de não lembrava qual
revista portuguesa, ele quase cego, metralhadora em
punho, derreado pelo peso da arma, apoiando em
Lisboa um regime que julgava muito bom... para os
portugueses.
— Desde quando ele sabe manejar uma
metralha? Pelo que sei — insistia Cristiano — era
um virtuose do megafone.
Em seu entusiasmo, se desviara da pergunta
inicial. Mas naquela noite Catherine não estava
preocupada com a marcha dialética da história e
seus caprichos. Os fatos de Cuba a abalavam, é
verdade, mas no fundo temia a segunda-feira, e até
lá restavam no mínimo trinta e seis horas de
angústia. Dominique entrara em juízo pedindo
direito de visita a Balthazar, a decisão fora protelada
para a semana seguinte, logo agora que Baltha
começava a desligar-se afetivamente do ex-marido,
na cama deitava no lugar do Ex sem manifestar
preocupações com sua ausência, logo agora que
vivia exclusivamente com ela, sem maiores traumas.
— E se Dominique tiver ganho de causa?
Baltha era extremamente intuitivo, apesar de
sua pouca idade sentia o que acontecia em torno a
si. Quando passara o féretro pela Edgar Quinet, da
janela olhava inquieto a multidão, manifestava com
latidos sua angústia, ele sabia lá no fundo — dizia
Catherine — que presenciava um momento
histórico. Permanecera excitado o dias todo, ela
arriscara uma posologia dupla, dezesseis drágeas de
Pils, quando o recomendável era oito, mas pelo
menos agora estaria dormindo tranqüilo.
“Acreditas em calma química?”, ia perguntar
Cristiano, mas não perguntou, seu propósito de
partilhar seu mau humor rolava lentamente águas
abaixo. Deixou Catherine em casa, pensou tomar o
último metrô, desistiu. Naqueles dias, nem clochard
se dignava a dormir nos subterrâneos, havia quem
já falasse nas estações Bonne Poubelle e Champs de
Merde por Bonne Nouvelle e Champs de Mars. Em
verdade, a imundície do metrô não o preocupava,
preferia pisar em papéis sujos do que em bostas de
cachorro. Lembrava Hugo a respeito do trocadilho:
c’est la fiente de l’esprit. Em todo caso, os franceses
haviam chegado a um bom achado, não mais
falavam em trottoir, mas em crottoir, e ele abominava
mais as crottes da superfície do que o lixo dos
subterrâneos.
Só vivendo em Paris, dizia para seus botões,
para se ter uma idéia da tragédia de suas ruas. As
cartilhas de língua francesa só falavam do amarelo
outonal, jamais do amarelo excremental — e eterno
— de sua geografia. O pior é que a merda chegara a
inundar-lhe as mãos e justamente chez Catherine.
Fora num 25 de novembro, tinha certeza da data por
ser o onomástico daquela criaturinha tão sensual e
ao mesmo tempo tão pudica, tão próxima e tão
distante, que agora o convidava ao brinde. Levara
um Saint Emillion, ao abrir a garrafa enchera as
mãos de merda, o que é no mínimo desagradável
quando se serve um vinho. Não entendia mais nada,
comprara o vinho de seu fornecedor na Amiral
Mouchez, não iriam lhe passar uma garrafa envolta
em tão emético invólucro, além disso a levara
debaixo do braço, no metrô, sem sentir odor algum.
O incidente lhe soava como piada de mau gosto,
houve quem pensasse em Balthazar, para escândalo
de Catherine.
Mas não. Precisou de uns bons dez minutos
para decifrar a charada. A rolha não cedia, apoiara a
garrafa entre os pés para abri-la e, entre a sola e o
salto do sapato se alojara uma crotte imensa, mole
ao mesmo tempo suficientemente consistente para
ficar aderida ao couro, caminhara o tempo todo sem
senti-la e agora lhe assaltava uma triste certeza: se a
bosta permanecera ali o tempo todo, o mau cheiro
não viria só de seus sapatos ou da garrafa, mas a
moquete devia estar toda manchada, como de fato
estava. Tirou o sapato mas a festa continuou o
tempo todo em meio a um clima escatológico, não
entendia porque em cidade tão linda a merda tinha
de ser tão onipresente.
Mas o que queria mesmo não era evitar o
metrô, e sim dar uma olhadela na Gaité e
adjacências, em uma última tentativa de mulher.
Nem sombra de puta naquela noite. Um tanto givré
pelos calvás, rumo ao 13o maldizendo “esta merda
de país, vai ver que o Sindicat des Putains
Respectueuses de Montparnasse havia decretado
luto naquela noite em homenagem a Sartre, os
sindicatos ainda vão levar a França à falência”. O
inferno são os outros — dissera o ilustre cadáver.
“Claro, ele vivia entre franceses”.
Rumava ao sul pelo Boulevard Raspail, não
eram ainda duas horas da matina e a cidade estava
morta, tão morta quanto o cemitério que agora
margeava, onde fora enterrado o guerrilheiro do
megafone, o conhaque começava a espalhar-se pelo
corpo todo, levando a cada célula uma mensagem de
mau humor. Cagões! Em matéria de crises estavam
melhor informados do que os jornalistas. Estivera
pela manhã no Commerce, o patron lhe pedira o
Monde, o ouro vai subir, dizia excitado. Os jornais
nem haviam noticiado o fiasco de Carter tentando
roubar de Khomeiny os reféns americano, o aiatolá
ainda nem fora informado da tentativa de assalto e o
Dupont incrível já sabia de fonte segura que o ouro
subiria em flecha, com medo da guerra investia em
metal. Estava imerso no suplemento Dimanche, o
patron apanhou o outro caderno e foi correndo às
páginas econômicos, “voilà, subiu dez por cento”, e
esfregava as mãos de contente, enquanto Cristiano
se perguntava que restaria de seus lingotes em caso
de guerra atômica. E mesmo que restasse uma pasta
informe, onde iria enfiar aquela massa fundida o
serzinho covarde a seu lado? — que se
entusiasmava com o fracasso do comando
americano no Irã e não ousava investir dois francos
em um jornal para saber quanto por cento havia
subido mesquinhez.
Que fazia em Paris? A pergunta várias vezes já
lhe fora jogada ao rosto, principalmente quando um
interlocutor se surpreendia com seu humor ácido.
América Latina capital Paris, dissera Carlos Fuentes
em uma entrevista para Antenne 2, o que muito
teria lisonjeado os franceses. Preferia ficar com Alejo
Carpentier — que aliás também estava por morrer,
80 entrava ceifando monstros sagrados, e teria mais
um cadáver em sua agenda — que talvez Paris
tivesse sido um dia a capital latina, mas hoje era
apenas rendez-vous. Cristiano equacionava a coisa
de maneira mais brasileira: pororoca de ideologias.
Catherine detestava a expressão, pororoca dava a
idéia de ponto onde as ideologias se chocam e
morrem.
Que fazia mesmo em Paris? Já estava próximo
a Denfert, o pensamento divagava em todas as
direções, menos rumo à resposta. Tout le monde va à
Paris, dissera Krk, com o que ele não concordava,
embora a estivesse abraçando em plena Champs
Elysées. Estava em Paris como estaria em qualquer
outro lugar, já não começara suas errâncias por
Estocolmo? Se olhasse mais detidamente no mapa,
não deixava de lhe dar razão. Paris era meio
caminho entre Oriente e Ocidente, Norte e Sul,
recebia os ex-colonizados da África, dissidentes da
URSS, fugitivos da Ásia, turistas dos States e Japão,
curiosos e exilados latino-americanos. Encruzilhada
do mundo. Que fazia em Paris? Viera dar uma
olhadela na encruzilhada após sua decepção com a
Suécia.
Sihanouk, o príncipe: se tivesse de mandar os
cambojanos estudar no exterior, os mandaria a
Moscou. De Paris, eles voltavam marxistas. Se se
referia a décadas passadas, tinha razão. Pois agora,
na pororoca parisiense, começavam a sossobrar as
mais sólidas crenças. João Geraldo viera à França
para aprofundar-se no marxismo, tinha quarenta
anos e perdera a fé. “Que fazer agora? — se
perguntava —. Acho que vou ler Guimarães Rosa”.
Para Cristiano, Rosa era um tanto barroco, mas
tinha de convir que era boa terapia para uma
convalescença ideológica.
A brasileirada que passava em seu studio. A
gaúcha que fora a Moscou, louca para conhecer o
paraíso. (Mas ele também não saíra um dia em
busca de um?). Pena que a gauchinha fizera uma
escala naquela sucursal do inferno capitalista. Fora
na época da inauguração do Forum des Halles, e
antes de rumar a Nova Jerusalém a revolucionária
tomou um banho fatal de consumo, lavou a alma
comprando sac-à-dos, tênis coloridos, óculos,
canetas, abrigos esportivos, foie gras, fines herbes.
“Que vou fazer — se explicava — se a sociedade
capitalista me condicionou assim desde o berço?”
Em Moscou não encontrara nem OB de calibre
conveniente, os disponíveis não conseguia abarcá-
los em seu diâmetro com o polegar e o indicador em
círculo — mas afinal, tudo não era grande na nova
sociedade? O fato é que o poço de consumo do
Halles, em uma tarde, a fizera renunciar
definitivamente ao internacionalismo proletário.
Ou a carioquinha que viajara a Pouna em
busca de um guru, Rajneesh ou coisa que o valha.
Após três meses de meditação transcendental em
um ashram terapêutico, sem álcool nem foda,
aterrissara no Charles de Gaulle, seca por um bom
cacete ocidental. “É — pensava Cristiano — Paris é
sempre passagem”. A frase, a ouvira de João
Geraldo. Mas era como se fosse sua, já que deveria
ter nascido na cabeça de todo latino em Paris.
Mas naqueles dias seu studio andava vazio de
gauchinhas, carioquinhas e no bulevar deserto não
havia sombra de putinhas. Aquela atração
imperiosa, de onde viria? Olhasse para trás, sua
vida toda girava em torno a elas. Em função delas,
havia sido expulso de sua primeira cidade. Através
delas havia se encontrado consigo mesmo. Para não
mais vê-las — sim, no fundo era isso o que o levara
ao Paraíso, fora a Estocolmo, e lá estavam elas. E
graças à existência delas, mantinha intacta sua
revolta. Decididamente, as profissionais ocupavam
um espaço inexpugnável em sua vida.
Fora conhecê-las na cidade, com a mente já
torturada pela maquininha ali instalada por Doña
Chichi e Padre Antônio. Agora, só agora, via
brutalmente a violência cometida pelos padres em
crianças sem defesa alguma, instalavam em seus
cérebros uma maricota, a noção de pecado, a ser
acionada pelo portador. Ao menor sinal de prazer,
um orgasmo e um choque psíquico, outro orgasmo,
outro choque e assim indefinidamente até a
sexualidade virar doença e tristeza da carne tornar-
se sinônimo de sanidade mental. Uma masturbação
e passava a noite toda em atos de contrição para
escapar ao fogo eterno. Se, após masturbar-se, por
desgraça ocorria uma tempestade, antes de se ter
confessado e voltado ao estado de graça, a tortura
era múltipla, sentia que os raios tinham um só alvo,
ele. Tremendo de frio, de joelhos no cimento áspero e
úmido, encolhido qual verme, chorava confuso entre
o remorso de ter ofendido a divindade e o medo da
perdição eterna, esforçando-se por fazer prevalecer o
primeiro, já que o segundo, sua salvação, lhe parecia
de um egoísmo atroz. E não é que o demônio o
assalta quando menos esperava? Por vários anos
não esqueceria a sexta-feira fatídica.
Conseguira varar a quaresma toda sem uma
punheta sequer, tentando matar o sexo com banhos
frios e exercícios violentos que o levavam à exaustão
física. Quarenta dias de castidade lhe parecia uma
enorme conquista, talvez tivesse chegado ao domínio
total de si mesmo, sentia-se leve e sem dívida
alguma para com Deus. Iria nadar no Santa Maria, o
que vinha fazendo há semanas, ao sair d’água mal
tinha força para um aceno. O demônio atocaiou-o,
então, antes mesmo de entrar no rio.
Praia deserta. Atravessou o rio a vau, deixaria
as roupas em alguma árvore, ganharia a parte mais
funda nadando contra a corrente. Quando cansava,
passava a nadar de costas. Aproveitava a ocasião
para um diálogo face a face com o criador de tudo
aquilo, agradecer-lhe a magia daquela momentânea
fusão com os elementos. Mas naquela tarde não teve
tal chance.
Do mato explodiam gargalhadas, risos
convulsos de quem não consegue parar de rir.
Inexoravelmente, foi rumando ao ponto de onde
emanavam aqueles sons histéricos de alegria, qual
pássaro hipnotizado por serpente. Era quase uma
clareira, duas mulheres e um homem, finando-se de
rir, derrubavam um litro de cachaça. Um sexto
sentido o alertara para voltar, mas alertou tarde.
Uma negra imensa, as banhas caindo sobre a
cintura da calcinha que lhe cingia o ventre,
lambendo os lábios com a língua lhe passou a
cachaça.
Balbuciou um não sem forças, isto é, parecia
ter balbuciado algo, talvez a negativa não lhe tivesse
atravessado a barreira dos lábios, quando se viu em
seu regaço, mamando na garrafa que a mulher lhe
oferecia por entre as tetas enormes, enquanto uma
mão ávida lhe buscava o sexo que perfurava o calção
qual estaca de ferro. Olhou ao lado, o casal já estava
atracado como cão e cadela, ele se sentia cada vez
mais mole, exceto em uma extremidade, era como se
o pênis, rijo, sustentasse um corpo feito manteiga. A
mulher carregou-o nos braços para um tapete de
grama próximo, já não mamava na garrafa, mas um
mamilo túrgido banhado de cachaça. A mulher
deitou-se, pernas abertas, e o puxou contra o corpo.
Mas antes queria vê-la.
Tremia. Como seria? Tinha idéia de algo preto,
cabeludo, mas que haveria sob os pelos? Rasgou as
calças da mulher, uma racha descomunal se abria
sob a pelaçama negra. Cristiano abriu os lábios da
rachadura e uma buceta sangrenta, pulsante, lhe
piscava em contrações que faziam escorrer sangue
pelas coxas pretas.
Mergulhou. Ejaculou em segundos, limpou
com capim o pênis envolto em uma baba vermelha,
nas mãos um odor inominável. Fugiu correndo, a
risada histérica da mulher sempre grudada a seus
passos. Suas roupas ficaram esquecidas no mato,
queria urgente quatro paredes para esconder-se e
rezar. Mas não rezou. O tempo era firme, sinal
algum de tempestade no ar. A ira divina ainda não
se manifestara. Condenado, condenado e meio:
masturbou-se com desespero, contou sete
ejaculações na tarde (sempre as contava para sua
contabilidade confessional), mais algumas à noite,
que o estado entre a vigília e o sono não lhe permitiu
registrar com precisão. Olheiras profundas,
ressuscitou com o Cristo no dia seguinte, pela
comunhão. Mas havia sido marcado na paleta.
Uma puta menstruada em uma sexta-feira
santa. O remorso ante o pecado abominável, o saber
que o mesmo ser que se purificava com o corpo e
sangue de Cristo no dia anterior se conspurcara com
o corpo e o sangue da negra, a sensação interior de
ser um verme, o sangue escorrendo pelas coxas
como uma antecipação dos horrores do inferno, tudo
o levaria mais tarde a organizar uma campanha
contra a prostituição naquela cidadezinha. Mas nem
padre Antônio — que, entre sussurros, lhe
recomendava castidade — aceitava a idéia de
expulsá-las da comunidade, que será de nossas
empregadinhas, das filhas de boa família? E
preferira expulsar Cristiano, da escola e da cidade.
Lera mais tarde, em jornais e livros, relatos de
viajantes que falavam de uma sociedade de homens
livres, próxima ao Pólo Ártico, onde ninguém
precisava vender ou comprar sexo. E fora até lá. E lá
estavam elas, frias e impassíveis. E vira: mais frias e
impassíveis do que qualquer puta endurecida pela
vida nas cidades do Sul. E voltara: o cu do mundo é
em toda a parte.
Nelas havia um mistério qualquer, que o fazia
estremecer interiormente mal decidida procurá-las.
Nelas residia a grande contradição, o nó górdio de
toda civilização, nelas depositavam os homens suas
angústias, doenças e neuroses. Conhecer a fundo
uma prostituta — imaginava Cristiano — seria como
ler Dostoievski, nela estaria depositada a experiência
de milhares de homens. Assim pensou por vários
anos, até concluir que o melhor mesmo era ler
Dostoievski, era mais profundo e mais barato. E lá
estava ele, naquela Paris deserta, empenhado na
caça vã. Na capital das putas, conforme fama
milenar, e nenhuma puta à vista. Sempre havia o
Pigalle. Mas não se dispunha a atravessar o Sena
por um capricho de fim de noite.
RESTAUREZ-VOUS POUR
FAIRE
LA RÉVOLUTION!!!
Defensor incondicional dos oprimidos e dos
frutos do mar, Monsieur Dupont começava a regar
com limão suas ostrinhas, já era quase meio-dia e o
estômago lhe exigia um mínimo de consciência
cívica.
João acompanhava o fluxo da multidão. Tinha
duas opções ao entrar no parque, e ambas à
esquerda: cozinha francesa nos pavilhões erigidos
pelos diversos setores provinciais e parisienses do
PCF, ou cozinha do mundo todo na área
internacional da feira.
Tenda da Argentina, las locas de Mayo, Villa
Devoto, os desaparecidos, abajo Videla, churrasco,
chorizos, vinos y canciones, olala, c’est magnifique le
churrasco. Chile. Abaixo Pinochet, viva Allende,
manifesto contra a visita de um ministro a Paris,
pescado frito, empanadas, vino, pisco. Uruguai?
Abaixo quem? O Uruguai parecia estar tão por baixo
que já nem se sabia a quem gritar abaixo. Pastéis do
Vietnam, patê imperial, abaixo o expansionismo
chinês. Irã, manifesto contra Khomeiny, caviar do
Cáspio, viva o partido Tudé, mais ao fundo tapetes
persas — e um cartaz insistia — legítimos. Tudo pela
revolução. E o problema curdo? É ali na tendinha ao
lado, Monsieur, o senhor pode assinar um manifesto
e tomar um chazinho do Curdistão.
já de dor exausto,
e sonhando o afaga.
Os teus olhos, Fausto,
não mais chorarão.
Pessoa. Outro gangasrotogati. Arma escolhida:
cirrose hepática. Apertou novamente a sacola contra
o corpo, e o universo lhe pareceu uma obra prima de
ironia. Homem algum conhece alguém, já que sequer
conhece a si mesmo. Os raros turistas que visitavam
o castelo naquele frio dezembro imaginariam estar
roçando com um viajante que intimamente já
dissera adeus à raça humana?
Ou vice-versa. Quem sabe aquela espanhola
solitária que percorria as salas em ritmo vagabundo,
uma sombra de tristeza nos olhos, daquelas
tristezas que prometem uma ternura imensa, quem
sabe ela não o estaria procurando, quem sabe ela
não o traria de volta à vida? Como abordá-la, como
dizer-lhe tudo em uma palavra? Deveria existir um
código universal — padres e psicólogos, estes
senhores tão preocupados em resgatar vidas,
deveriam pensar mais no assunto — um código
discreto de fácil interpretação que indicasse a
qualquer cidadão que seu portador navega sem leme
nem âncora e o barco já começa a fazer água.
Ele já tomara sua decisão. Uma espécie de
preguiça mortal — e o mortal ali não era figura de
estilo — o impedia de retomar a dolorosa escalada
de retorno ao mundo dos vivos. Ela, a turista
melancólica, talvez jamais tivesse pensado no
assunto. Se a abordasse: “queres salvar um homem?
Então fica comigo esta noite, uma noite me é
suficiente para recobrar meu orgulho. Se ficas, não
me enforco”. Se assim a abordasse, ela
provavelmente chamaria a polícia ou, na melhor das
hipóteses, lhe daria alguns marcos para comprar a
corda, esmola que aliás já era desnecessária, sentia
nos cotovelos, dentro da sacola, as rodilhas daquela
víbora inerme que em breve seria fio de prumo,
cortando verticalmente o silêncio glacial do vale.
Não, não valia a pena qualquer tentativa de
abordá-la. A chance de um gesto de compreensão
era de um em um milhão, e muito vasta, vasta
demais, a possibilidade de mais humilhação e
ridículo. O mesmo deve sentir, imaginava, um
canceroso sem esperança alguma de cura: todo e
qualquer diálogo com pessoas sadias era impossível,
ele vivia numa outra dimensão, num universo
paralelo que apenas por acaso interpenetrava o
mundo dos vivos. Eram duas linguagens
absolutamente intraduzíveis uma à outra...
Por experiência própria sabia que, quando
desesperado, todas suas tentativas de aproximação
redundavam em desastre, já que raramente o
interlocutor seria um desesperado. Mesmo assim,
um débil instinto de vida o impeliu a fazer uma
aposta. Ainda na sala de Wagner, deu volta alguns
passos, dirigiu-se a um quadro além da espanhola,
queria cruzar com seus olhos. “Acho que acabo de
inventar a roleta espanhola”, pensou, com um
sorriso que lhe rasgou as entranhas e escorreu pela
barba em duas lágrimas secas. Se ela o olhasse,
talvez ele...
Ela não o olhou nos olhos. A aposta estava
definitivamente perdida. Saiu do castelo. Não trazia
sapatos adequados, a descida do declive foi feita em
uma boa dezena de tombos, caía de bunda e
levantava para cair de novo, de bunda, dez metros
adiante, o que lhe dava vontade mais de chorar do
que de rir, aquilo não era circunstância digna de
qualquer suicida que se prezasse. Abandonou a
trilha e embrenhou-se pela floresta, deserta e
imóvel.
5. AL MAR!
O Eugênio C chegou a Lisboa com dois dias de
atraso. Caindo de bêbado pelas tascas do Rossio,
Cristiano temia por sua volta. As contrações
musculares haviam cessado como por milagre após
o telefonema, mas por outro lado triplicara sua cota
habitual de álcool. Normalmente, mesmo bêbado,
não perdia o controle do mundo que o cercava, seus
instintos de preservação permaneciam sempre
alertas, recuava intuitivamente ante o menor sinal
de perigo. Mesmo assim chafurdava nas prostitutas
de Lisboa, muitas vezes acordando no hotel sem
saber o que fizera na noite anterior. Situação
semelhante o obrigara a uma pausa na bebida,
quando ainda em Porto Alegre. Acordara em seu
apartamento, na cama havia uma mulher nua, ele
também nu, mas não tinha a mínima idéia de quem
se tratasse. O rosto não lhe dizia nada, os seios
muito menos, o que o fez dar uma olhadela no sexo,
detalhes dos lábios, clitóris ou pelos talvez lhe
lembrassem alguém, mas tampouco reconheceu-a
por tais sinais. Enfim, estava ali a seu dispor,
lambeu-a e penetrou-a, aos poucos a mulher foi
acordando, após o orgasmo ela perguntou: “e tu
quem és?”
Foi necessário reconstituir pacientemente o
itinerário da noite anterior para descobrir que se
haviam encontrado em um bar da Salgado Filho,
logo a moça deveria ser uma profissional. Vestiu-se e
pagou-a, prometendo a si mesmo sequer cheirar
álcool nos meses seguintes, o que aliás não lhe
custara muito, o susto de ter dormido junto a
alguém que nem imaginava quem fosse fizera bem a
seu fígado.
Naqueles dias conturbados de Lisboa, nos
quais vagava como um fantasma por entre passeatas
e discursos, sempre rumo às putas, sentia-se em
situação de perigo, só esperava que o navio chegasse
antes de qualquer acidente. Enquanto os lisboetas
vibravam com a Revolução dos Cravos, Cristiano se
preocupava com sua salvação, chegava mesmo a
pensar na idéia de enfrentar seu medo de aviões
antes que fosse tarde.
Qualquer coisa obscura o impelia a ficar. Ao
saber do atraso do navio, impôs-se um mínimo de
disciplina, lia nos parques durante o dia (gostava de
inebriar-se com o verde histérico da Estufa Fria),
permitia-se apenas um bagacinho introdutório no
almoço e só à noite, quando já com sono, fazia a
ronda das tascas. Se não ultrapassasse sua dose
diária habitual, não correria o risco de cometer
besteiras.
Não que estivesse condicionado pela bebida.
Mas a morte daquele camponês que jamais
imaginara pudesse ocupar tal espaço em sua vida,
diante daquele fato definitivo, irreversível, ele, o
lógico, o seguro de si, o racional, não sabia o que
fazer senão beber e dar rédeas soltas à sua luxúria.
Acalmou-se nos últimos dias. O simples fato de não
mais lhe tremer a mão esquerda já o tranqüilizava,
mas sabia ser aparente aquela calma, era a calmaria
anunciadora de tempestade e, por vezes, ao passear
pela zona do porto, detinha-se perplexo ante a Torre
de Belém, dali haviam partido os navegadores para
viagem bem mais segura do que a sua. Temia o mar
e seu chamado.
Malas postas no camarote, girou pelas pontes
buscando rostos — qual seria, onde estaria, como
gemeriam os lábios da companheira de viagem? — e
entregou-se à beleza do Tejo.
O Tejo é mais belo que o rio que corre
pela minha aldeia.
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre
pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha
aldeia.
Aquela partida evocava fortemente Dalmácio.
Haviam partido um dia, cheios de esperanças, no
mesmo navio, há quase quatro anos, rumo a uma
Europa mítica onde todos os homens seriam felizes e
inteligentes, onde o talento era valorizado e a
mediocridade colocada no devido lugar. Quanto a
Pessoa, aquele poema o haviam recitado juntos
caminhando pelas ruas da Baixa, empinando um
bagacinho em cada um dos botecos do poeta, numa
espécie de via crucis etílica, que acabara no
Martinho da Arcada.
Detestava os salões do barco. Na primeira
classe imperava um fausto ao gosto de nouveau-
riches e nas classes turísticas, salvo modestos
imigrantes que iam ou viam de um país para outro,
dominava a abominável classe média. Refugiava-se
no convés, zanzava de uma ponte a outra, sempre
marginal, sempre fora do mundo social, ali pelo
menos havia pessoas contemplando a noite e o mar.
Há séculos não via a luz das estrelas em sua
plenitude, as luzes das cidades onde vivera
ofuscavam aquelas noites límpidas de Ponche Verde.
Cá e lá, grupinhos degustando uma canabis, casais
se acarinhando, outros tocando violão. Aproximou-
se destes. Eram latinos, cantavam canções da
pampa e da cordilheira.
Para seu espanto, ela surgiu naquela primeira
noite. “É esta — pensou —, é esta e mais nenhuma
outra”. Enganara-se redondamente. Aquela mulher
linda, olhos deslumbrados de camponesa que sonha
com o vasto mundo, lábios fortes e túmidos, corpo
cheio e bem modelado, de uma sensualidade que
curiosamente lhe trazia paz, aquela mulher que
reunia em si espírito e carne, era apenas uma isca.
¡ES TERMINANTEMENTE
PROHIBIDO CANTAR!
“Que bom!” — pensou com seus botões — “isto
é sinal de que todo mundo vive cantando”.
Desceu a Lisboa. Tinha dez dias livres até a
chegada do navio. Refestelar-se-ia — gostou da
mesóclise e repetiu para si mesmo: — refestelar-se-
ia nas tascas e casas de fados, peregrinaria pelos
bares de Pessoa, bebendo quando e onde quisesse,
sem o olhar da censura das velhotas dos
systembolag. Só agora, na península ibérica, sentia
nas veias o absurdo de um país onde as pessoas
bebiam às escondidas. Largou âncoras em um
pequeno hotel da Avenida da Liberdade, infestada
pelas palavras de ordem da Revolução dos Cravos,
das quais só guardou uma:
PENSA EM LIBERDADE
SEM SUJARES A CIDADE
Como QG escolheu a Brasileira do Chiado.
Nada de saudades do Brasil, mas em homenagem ao
Pessoa. E os versos daquele beberrão genial e
obscuro lhe perpassavam os nervos.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do
mundo.
Dalmácio, Dalmácio, sempre Dalmácio. A
“Tabacaria” era sua bíblia, conforto e alimento
espiritual nas horas de descrença em si mesmo, o
poema parecia insinuar-lhe que mesmo o mais
miserável dos homens tinha acesso à grandeza se
bem cantasse sua miséria:
E vou escrever estes versos
para provar que sou sublime.
O bagacinho mais o poema, mais aquela
obsessiva evocação do amigo errante, perdido em
alguma cidade alemã, o levaram aos poucos a uma
dolorosa revisão de vida. Surpreendeu-se rabiscando
um guardanapo e o resultado era sempre o mesmo.
Por mais que somasse e diminuísse, dava 29. Vinte e
nove anos e um vazio antes e outro vazio à frente.
Jornalismo era um ofício que parecia rumar ao
vazio, e rumo ao vazio teria de ir ao voltar ao Brasil,
se quisesse comer e — mais que tudo — garantir o
trago nosso de cada dia.
Uma frase que encimara um poema de
juventude, publicada por Deusa Shiva no
Suplemento Rural das Letras, como chamava
Dalmácio (sempre Dalmácio) o caderno literário do
Correio do Povo, aquela frase parecia projeto imbecil
de adolescente sonhador: “Cristiano, conforme suas
próprias palavras, valoriza tão-somente o labor
artístico, considerando-o o único capaz de justificar
uma existência”.
Labor artístico! Ridículo abrir a boca quando
se é adolescente, pensava. Vinte e nove anos e só
conseguira alguns contos e crônicas. Aos trinta,
Napoleão já conquistara o Egito e ele sequer havia
reunido seus exércitos. Foi então que, rabiscando
sempre maquinalmente no guardanapo, descobriu o
erro da subtração. 75 menos 47 era 28, não 29.
Raras vezes se sentira tão eufórico. Tinha mais um
ano para reunir seus exércitos. Quantos mortais
teriam tido a felicidade de ganhar um ano em uma
noite?
Em comemoração ao ganho inesperado,
brindou com um Dão. Seriam talvez onze horas da
noite quando deixou a Brasileira, rumo ao Rossio.
Frente ao Pic-nic, parou. Transeuntes conversavam
na noite cálida, havia algo de familiar na rua e no
café, parecia estar na Rua da Praia. Se Dalmácio
pensasse em degustar um cafezinho, por certo
escolheria o Pic-nic. Entrou.
Levantava a bica aos lábios quando,
sorridente e cachimbando, ele o olhou divertido.
Virou as costas, já cometera não poucas gafes
confundindo desconhecidos com o Poeta. Sentiu
então um abraço afetuoso envolvendo-lhe os
ombros. Não havia mais margem a erros.
Abraçaram-se demoradamente, qual homem e
mulher que há muito não se vêem, para espanto dos
lisboetas que os cercavam, ambos com os dentes
cerrados para não chorar.
DETTA ÄR TORTUR!
Cristiano não precisava daquelas garrafais
nem daquele ponto de exclamação para saber que
aquilo era tortura. Mas algo o intrigava. Foto
daquelas, assim tão expressiva e teatral, por certo
não teria saído dos porões de tortura. Vinha
assinada por Günes Karaboudas.
— Claro que não! — disse Lena —. A foto é
posada. Mas isso acontece lá no Brasil, não?
De fato, acontecia. Cristiano apanhou o jornal,
passou a ler a reportagem de Hammarberg.
— Profissão?
— Jornalista.
— Nacionalidade?
— Brasileira.
— Ah! Então o senhor quer asilo político?
Oh não, jag ska tacka nej, como pode muito
bem ver Herr Konstapel, nesse formulário peço
apenas uma permissão de estada, agradeço a
generosa oferta, que aliás é pertinente. Meu país vive
uma ditadura, sei disso, os dias não são os melhores
para quem pensa e escreve o que pensa. Mas antes
de fugir de ditaduras, Herr Konstapel, estou fugindo
do país todo, fujo exatamente daquilo que para
vossos patrícios é sinônimo de charme e exotismo,
fujo do carnaval e do futebol, do samba e da miséria,
da indigência mental e da corrupção, quero tirar
umas férias do subdesenvolvimento, viver em um
território onde o homem sofre os problemas da
condição humana e não os da condição animal.
Muito antes de os militares tomarem o poder, min
Herr, eu já não suportava os civis.
Veja o Sr., meu povo morre de fome e todos
sorriem felizes e desdentados quando um time de
futebol bate outro, se bem que a coisa não é assim
tão tétrica como a pinto, veja bem, lá também existe
luxo, requinte, hotéis que talvez fizessem inveja aos
de vosso rico país, mansões de sonho isoladas da
miséria que as envolve por arames farpados,
guardas e cães, há cronistas sociais que acendem
charutos com notas de cem dólares e homens
catando no lixo restos de podridão para comer. E
não fujo só do Brasil, Sr. Policial Superdesenvolvido,
fujo também de minha condição de jornalista,
pertenço a uma classe que se pretende de esquerda
e entorpece multidões com doses cavalares de ...
futebol.
Em minha cidade — não sei se o chateio com
estes dados — há questão de uma década um
sociólogo calculou em trinta mil o número de
prostitutas, só não sei se havia repertoriado em suas
estatísticas meus colegas de ofício. Penso até mesmo
que a profissional de calçada tem mais dignidade,
ela aluga por instantes o corpo, mantendo o espírito
livre, enquanto nós vendemos corpo, alma e
opiniões, o mais livre dos jornalistas não é livre coisa
alguma, o jornal pertence ao chefe, nossos
pensamentos também, os mais nobres ele os joga na
cesta de lixo, publica os lugares comuns
humanísticos na página dos editoriais e posa de
liberal. Sim, sei que isto não vem caso neste pedido
de permissão de estada, bosätningstillstand como
dizem os senhores, é que para expor minhas razões
tenho de dar-lhe uma idéia do Brasil, pretensão
aliás inviável, já que nem eu entendo aquele país.
Foi lá pelos amos 60, Herr Konstapel, nos
carros e vitrines lia-se
AME-O OU DEIXE-O!
— Love it or leave it?
Exato, isso mesmo, estávamos copiando
vilmente os macartismos ianques, nem em matéria
de totalitarismo somos originais. Tomei a coisa como
indireta, fiz as malas e deixei-o. Nada nem ninguém
me obrigava a sair, senão minha íntima disposição
de trocar a barbárie pela civilização. Trouxe de meu
apenas um livrinho, o Sr. quer ver?
Mão, não é nenhum tratado do Marighela,
aliás o manual de guerrilha urbana dele está aí nas
livrarias, em sueco mesmo, talvez como insinuação
aos jovens Svenssons que um dia pretendam
rebelar-se contra esta tirânica social-democracia que
financia até mesmo sua própria contestação, não,
não é nada disso, são os poemas de Fernando
Pessoa, não sei se o conhece, em caso negativo é
uma pena, Pessoa é um grande poeta, até mesmo
Herr Konstapel há de convir. Sei, os senhores
deixam bíblias nos quartos de hotel para homens
solitários, mas bíblias me dizem cada vez menos,
min Herr, e que mais não seja me reservo o direito de
escolher as minhas. Zanzei de sul a norte por este
continente, Sr. Policial Poliglota, já que não
pretendia voltar a meus pagos queria saber onde
seria melhor ficar. Talvez o paraíso não exista, li em
algum lugar, mas a Suécia era sua mais perfeita
aproximação. Vamos pois ficar perto do paraíso.
Não, Herr Konstapel, não quero asilo político.
Saí de meu país pela porta da frente, jamais lutei
contra o regime, pelo simples fato de jamais tê-lo
aceito. Não pertenço nem pertenci a igrejas políticas
ou ideológicas e como sozinho não poderia mudar
regime algum, mudei de país. Concordo que se exige
uma certa coragem para lutar contra um exército,
mas mais coragem é preciso, e nisso Her Konstapel
mais uma vez há de convir, para falar de si mesmo.
Lutando contra o obscurantismo empunhamos um
ideal nobre, em todo e qualquer lugar do mundo
alguém nos dará apoio, o senhor mesmo não está
sendo tão solícito em me oferecer asilo?
Falar de si mesmo não comove International
Amnesty nenhuma, a menos que o assunto seja
tortura. Angústias existenciais não catalisam
movimentos de opinião, e ainda passamos por
narcisos. Não quero, repito, asilo político. Sua
Generosidade pode reservar esta cota do humanismo
sueco ao que dela realmente precisam. Eu peço
muito mais, quero asilo cultural e espiritual, não
estou fugindo do DOPS ou SNI, quero é fugir de meu
país e de meu passado, não consigo mais respirar
em um território, ainda que imenso, onde um
analfabeto que chuta uma bola ganha milhões e um
pesquisador tem de fazer bicos para comprar livros,
quero fugir dos jornais que fazem uma tragédia em
torno à unha quebrada de não sei qual vedete de
não sei qual time, enquanto clero e governo se
locupletam às custas de uma massa faminta.
Quero fugir dos negros, Herr Konstapel, sim,
dos negros, não é que tenha preconceitos, aliás fujo
também dos brancos, refiro-me a pretos e brancos
que passam fome o ano todo para comprar
lantejoulas e paetês que ostentarão por alguns dias
de carnaval onde cantam as saudades de um
império que os escravizava, quero deixar para bem
longe de mim, quero enterrar para sempre aquele
imenso bordel gerido por canalhas, e se fossem
apenas canalhas não era nada, é que além de
canalhas são incompetentes, não sei se o Sr.
entende as razões que me trouxeram a
humildemente pedir acolhida em vosso paraíso.
— If you have money, you are welcome!
Quanto a isto não se preocupe, Sr.
Controlador do Frágil Equilíbrio do Mercado de
Trabalho, essa frase já ouvi, se jamais lavei pratos
para meus patrícios, se nem mesmo como em casa
para não ter de lavar o que sujo, não serão os
Svenssons que terão os seus pratos limpos por
minhas mãos. Não pertenço à Confraria
Internacional dos lavadores de pratos, e não por
preconceitos quanto a trabalhar com as mãos, nada
disso, em minha infância mãos sem calos sempre foi
estigma de vergonha. Mão de vigarista, dizia
Canário, quando via uma mão de pele fina e bem
tratada, assim como as suas ou as minhas.
Herr Konstapel jamais ouviu falar de Canário?
Claro que não. Pois é um homem admirável, lhe
asseguro, ainda não disse isso a ele, mas um dia
talvez volte à minha terra só para fazer isto. Mas,
voltando aos pratos, penso que vosso reino, min
Herr, tem algo melhor a oferecer-me do que o nobre
ofício de diskare, e não vai nenhuma ironia neste
nobre, todo trabalho dignifica, sei disso, e se os
suecos se recusam a lavar o que sujam não será por
preconceito, certamente, mas talvez porque
iugoslavos e turcos e árabes e latinos têm vocação
inata para o ofício, senão jamais viriam buscar
vossas divisas.
Neste meu giro pela Europa, e nestes poucos
meses que vivi em vosso país, fiz observações
rápidas, é verdade, mas creio que pertinentes, sobre
os grandes destinos das nações. Noto que os
austeros e dignos homens do Norte são desde o
berço inclinados às ciências e às artes. Já os
homens do Sul parecem sentir-se mais à vontade
empunhando uma britadeira ou limpando as ruas
das bostas de vossos cães. Não poderíamos
conceber, e nisto mais uma vez há de convir Herr
Konstapel, um Svensson da gema lavando pratos
para iugoslavos ou marroquinos, não que estes seres
do Sul não mereçam comer em pratos limpos, nada
disso, mas os homens do Norte são antes de tudo
atraídos pelas preocupações maiores do espírito e
como também desde o berço sou inclinado a tais
abstrações, Herr Konstapel pode ficar tranqüilo, não
estou aqui para perder meu tempo lavando vossa
louças, nem clandestina nem legalmente, no dia em
que sentir fome junto meus trapos e vou passar
fome junto aos meus.
LUNCH
SEX
KRONOR
Seis coroas, o lanche. Matuto, caíra na
arapuca. Fora sua primeira má impressão do país,
logo diluída pelos ônibus que cumpriam horários
com precisão de segundos, mulheres dirigindo
metrôs, louras oníricas fazendo parte de seu dia-a-
dia. O acesso a elas não estaria distante. Seu inglês
era sofrível, melhor nada tentar antes de conseguir
um domínio pelo menos operacional do sueco.
Em três meses, aprendera o suficiente para
comunicar-se eficazmente. Conseguia entender o
que ouvia e fazer-se entender. Mas todas suas
tentativas de aproximação com mulheres haviam
fracassado.
— Anus Mundi.
— Envolvei-nos!
— Vulgívaga Noctâmbula.
— Eli Eli, lama sabachtani?
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