Ponche Verde - Janer Cristaldo

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eBookLibris

PONCHE VERDE
Janer Cristaldo

eBooksBrasil
Ponche Verde (1980—1985)
Janer Cristaldo (1947—2014)
Primeira Edição (em papel)
Editorial Nórdica, Rio, 1986
Edição em eBook
eBooksBrasil.org
www.eBooksBrasil.org
Capa
foto online de Poncho Verde C.T.G.
http://poncheverde.sma.zaz.com.br/fotos.htm
Copyright
©2000-2006 Janer Cristaldo
Nota do Editor
Poncho Verde foi o local, em D. Pedrito,
cercanias de Santana do Livramento, nos pagos
gaúchos, onde os farroupinhas de David Canabarro,
após pelejas memoráveis, escrevendo páginas
heróicas da lutas pelas liberdades no Brasil,
exaustos, após 10 anos de resistência, renderam-se
aos imperiais do áulico Barão de Caxias. Foram
farroupilhas Osório, os Garibaldi, e o maior de todos
os heróis: o povo gaúcho.
Mas o espírito libertário, a República e as
liberdades não se renderam em Poncho Verde. E isto
está mais do que provado neste livro de Janer
Cristaldo, que a eBooksBrasil teve a honra de
editorar.
A obra fala por si. Boa leitura!
P.S. - Tive a honra de conhecê-lo, Janer
Cristaldo. De D. Pedrito para o mundo. E agora para
a Eternidade - São Paulo, primavera de 2014. -
Teotonio Simões
ÍNDICE
O Autor

PONCHE VERDE
10 — Chalé 80
9 — Na ilha
8 — Chez Krk
7 — Au bord’elle
6 — No fio de prumo
5 — Al mar!
4 — Nos passos de Pessoa
3 — No paraíso
2 — Lá na Linha
1 — Chalé 70
0 — Ponche Verde
SOBRE O AUTOR
Nasceu em 1947, em Santana do Livramento,
RS. Formou-se em Direito e Filosofia. Iniciou-se em
jornalismo no extinto Diário de Notícias, Porto
Alegre. Escreveu no Correio do Povo e Folha da
Manhã. Nos anos 71 e 72, exilou-se voluntariamente
em Estocolmo, onde estudou cinema e língua e
literatura suecas.
De volta ao Brasil, publicou suas primeiras
traduções: Kalocaína, de Karin Boye (do sueco), e
Crônicas de Bustos Domecq, de Jorge Luís Borges
e Adolfo Bioy Casares (do espanhol). Em 1973,
publicou O Paraíso Sexual Democrata, que teve
quatro edições no Brasil e uma em espanhol, em
Buenos Aires, proibida na Argentina. Em 1975,
passa a assinar coluna diária para a Folha da
Manhã, Porto Alegre. Em 77, recebe bolsa do
governo francês para um doutorado em Letras
Francesas e Comparadas. De Paris, mantém
correspondência diária para a Folha da Manhã. Em
1981, doutorou-se pela Université de la Sorbonne
Nouvelle (Paris III), com a tese La Révolte chez
Ernesto Sábato et Albert Camus, traduzida ao
brasileiro sob o título de Mensageiros das Fúrias,
que tem uma edição eletrônica em
eBooksBrasil.org. Ainda em Paris, iniciou a
tradução da obra ficcional e ensaística de Ernesto
Sábato, a pedido do próprio autor.
No Brasil, foi professor visitante de Literatura
Brasileira e Comparada, na Universidade Federal de
Santa Catarina, em Florianópolis, de 1982 a 1986.
Neste período, traduziu vários outros romances,
introduzindo no universo literário brasileiro autores
como Roberto Arlt, Camilo José Cela, José Donoso,
Michel Déon e Michel Tournier. Em 86, publica seu
primeiro romance, Ponche Verde, que tem como
fulcro a peregrinação dos exilados brasileiros por
Estocolmo, Berlim, Paris e Lisboa.
Estudou Língua e Literatura Espanholas em
Madri. Foi redator de Política Internacional da Folha
de São Paulo e do Estado de São Paulo. Suas
últimas crônicas podem ser lidas no blog Janer
Cristaldo
PONCHE
VERDE
JANER CRISTALDO
Aos amigos e amigas,
autores e livros,
vivos e mortos,
cujos rostos e vozes,
fecundam esta viagem.

“Y mientras hacés gestiones para que la Embajada


Francesa te dé una de esas bequitas que luego sirve
para hablar mal de Francia...”
Ernesto Sábato, Abaddón, el Exterminador

“C’est le propre des grands voyages que d’en


ramener autre chose que ce qu’on allait chercher.”
Nicolas Bouvier
10. CHALÉ 80
Absurda carcaça oca de gente, o Boeing
estrugia rumo ao Sul. Tripulação e passageiros
contados, não chegava a quinze o número de
pessoas transportadas pelo mastodonte. A primeira
constrição, ele a sentiu ao erguer-se o monstro no
Charles de Gaulle. Gostaria de pensar em qualquer
coisa, menos na volta e voltava em pensar em nada
senão Brasil. Vôo noturno, um céu escondido na
escuridão, passageiros distantes quilômetros uns
dos outros, tudo o impelia a encerrar-s em si
mesmo. Em Dakar, a segunda constrição subiu-lhe
pela garganta. Desceu durante a escala, à uma da
madrugada, e um bafo morno de quarenta graus o
envolveu, o suor empapava camisa, calças, cuecas,
encharcava o espírito. Há séculos não transpirava.
Banhado pelo avaro sol parisiense, aquela sauna
senegalesa recordava a seus poros os tórridos verões
de Porto alegre. Meio caminho já fora feito e força
alguma o faria voltar, o mínimo que lhe concederiam
os deuses do Acaso, os únicos aos quais rendia
culto, seria talvez não chegar. Curiosamente, medo
algum.
Krk. Sljivovica. Neuschwanstein. Thazar.
Catherine. Lena-Lena. Bergman. Stockholm.
München. Paris. Sartre. Cannes. Prepecnica. Gamla
Stan. Quartier Latin. Schwabing. Ludwig. Algumas
haviam perdido a aura de mistério que as rodeava,
outras ganho um particular significado. Viajara
rumo a palavras, tinha de convir, em busca do
fascínio e exotismo cujas pronúncias evocavam.
Voltava agora rumo às velhas e fiéis palavras, das
quais um dia fugira como diabo da cruz. Rio. Porto
Alegre. Rua da Praia. Chalé. Ponche Verde. Canário.
Contados mortos e feridos, o saldo não era
brilhante. De qualquer forma, positivo. No velho
continente ficara o cadáver de Dalmácio de algumas
crenças.

Voava por entre ruelas antigas, a uns dez


metros do solo, jamais se sentira tão leve e jamais
lhe parecera tão fácil voar, as ruelas às vezes se
estreitavam de tal modo que os ombros roçavam
janelas e paredes. Não era a primeira vez que voava
assim tão suavemente, em outras viagens noturnas
vivera a mesma experiência, mas geralmente voava
sobre grandes extensões de campo. Parecia estar em
Gamla Stan. Mas um sol mediterrâneo e um intenso
alarido lá embaixo, nas ruas, lhe diziam estar em
país latino. A ruela ia se estreitando cada vez mais.
Apesar de seu corpo ter uma consistência de éter, se
perguntava se a largura ao final da ruela lhe
permitiria a passagem.
Permitiu. Uma paisagem longa e imensa se
abriu ante seus olhos. Estava em Veneza, no Grande
Canal. Por que Veneza, não tinha idéia alguma. Mas
aquele era, indubitavelmente, o Grande Canal. Viu-
se de repente no solo, e com humana consistência.
Frente a uma casa, que sabia cheia de quartos e
subterrâneos, pois nela já havias penetrado em
passadas deambulações do espírito. Sabia que sairia
por uma porta do lado oposto, e que naquela
passagem perderia algo de si mesmo. Entrava ou
não entrava? — se perguntava.
A primeira resposta tendia a ser negativa, já
que uma vez ali estivera, não sabia quando nem
como, mas o que a casa continha não lhe era
estranho. Segunda hipótese, entrar, pois se não
lembrava o que a antiga casa escondia, era como se
lá não tivesse estado. Tinha de pagar para entrar,
isso ele lembrava. Uma italiana esguia e de cabelos
negros, um vestido escorrendo até os pés, oferecia
aos transeuntes os bilhetes. Quanto? — quis saber
Cristiano. Quinze cruzeiros. Ora, não custava nada
rever o que não lembrava. A jovem, alta e
adolescente, o fez entrar em um vestíbulo, passou-
lhe um ingresso e cobrou: quinze francos. Puta que
o pariu! — resmungou intimamente, não se viaja à
Itália impunemente, nem mesmo em sonhos.
Já que era sonho, deixou-se esfaquear e
passou à morena uma nota de cem francos, ela lhe
devolveu vinte. Vinte mil liras. Mas não eram
quinze? Quinze cruzeiros? Nada disso, são oitenta
francos. Não se conteve. Não que o irritasse pagar
aquela quantia por uma viagem que sabia vital.
Pagaria até mais. Mas aquela vigarice lhe parecia
excessiva, mesmo para um sonho. Queria seu
dinheiro de volta. Não entraria naquela baiúca e dali
não sairia sem seus francos. A menina, charmosa e
cheia de carinho, bruscamente se transfigurou,
tornou-se ríspida e o olhou como se olhasse ao
último dos avarentos. Jogou-lhe no rosto a cédula de
cem francos: “imbecil, te recusas a pagar centavos
pelo que mais te vale na vida. Toma — e jogou-lhe
um pequeno baú — é de graça, pobre coitado!”
Cristiano abriu o bauzinho e logo reconheceu
o conteúdo: cadernos de deveres do primário, com
exercícios de caligrafia, conjugações, seus primeiros
bilhetes às namoradas, santinhos de primeira
comunhão, fotos de Clotilde e Canário, esboços de
rimas bobas, um bodoque, bolinhas de gude e, de
repente, os objetos deixavam de ser objetos, da
caixinha surgiam seres e paisagens, Canário e
Clotilde em carne e osso, emanando do baú como de
uma lâmpada de Aladim, um catavento, uma sanga
exalando um cheiro de sanga ao entardecer, uma
aranha atrelada a um tordilho, oceanos verdes de
alhos bravos ondulando aos caprichos do minuano,
uma perdiz enforcada em um mundéu, uma criança
chorando ajoelhada em um barranco, pedindo
perdão a um deus absurdo.
As lágrimas lhe rolavam aos solavancos,
encharcando papéis, fotos, pessoas, paisagens. A
italiana ria histericamente, qual bruxa divertida com
seu sofrimento.
Acordou. Uma voz anunciava a aterrissagem e
pedia para apertar cintos. Escala no Rio.

Porto Alegre havia mudado e no entanto


permanecia a mesma. A Rua da Praia tivera seus
bares e cafés tomados pelos bancos e financeiras.
Nada melhor que estes templos do capital para
assassinar uma rua. Seres tristes rumavam às
mesmas horas, pelos mesmos itinerários, para os
mesmos trabalhos, e nisso Porto Alegre não mudara,
os prédios antigos haviam sido destruídos mas seus
habitantes continuavam os mesmos. Toda vez que
voltava, Cristiano cofiava a barba, incrédulo: como é
que podem permanecer tanto tempo no mesmo
lugar?
Oitenta por cento da humanidade, dissera
alguém, jamais se distanciou vinte quilômetros além
do local onde vivia. A estatística era mais jogo de
números e palavras do que estatística, já que tal
pesquisa era inviável. Mas à medida que observava
os homens, sua tendência era concluir ser bem
menor a proporção dos que iam além dos vinte
quilômetros. Falta atroz de curiosidade! Invadia-lhe
a sensação de jamais ter saído daquela rua, suas
viagens teriam sido sonhos, sonhos bons ou
pesadelos, mas certamente tecidas com a matéria
inconsútil das viagens noturnas do espírito.
No centro, onde um dia houvera bares e cafés,
só restava o Chalé, solenemente cravado há quase
um século da Praça XV, et pour cause: a praça não
estava à venda, ficava a salvo da sanha imobiliária.
Ali estava sua pátria, a única paisagem imutável de
Porto Alegre. Ao abrir a porta, sentiu estar pisando
novamente a geografia de sua adolescência. Lá
estavam, também imutáveis, os garçons que o
receberiam como se tivesse tomado o último trago na
noite anterior.
E também lá estava, junto ao P. O. — posto de
observação, para os neófitos — o homenzinho
abominável, o que ficara para resistir e conscientizar
as massas, o que condenara como escapistas os que
partiam, o que traíra a todos, vivos ou mortos, o que
enriquecera ministrando doses diárias de ópio ao
povo que pretendia defender, o renomado cronista ...
de futebol. Gordo como um porco, estarrachado na
mesa privilegiada do Chalé, mal o viu largou o jornal
e abriu-lhe o abraço obeso e obsceno. Cristiano há
muito se preparara para aquele encontro, isto é,
preparar-se era força de expressão, só via uma saída
ao remoer o problema, cuspir-lhe na cara. Flanando
pelo Quartier Latin, ria sozinho antecipando a cena,
Soderman, vulgo Deusa Shiva, lhe abria os múltiplos
braços e em vez de um abraço recebia uma
cusparada.
Mas à medida que se aproximava o dia de
voltar, num movimento interior que não lhe era
surpreendente, seus ímpetos de agressão se
atenuavam, não sabia se era a alegria da volta, o nó
na garganta cada vez mais tenso, enfim, toda uma
gama de fatores emotivos o impelia a não agir como
guri de ginásio. De que lhe serviria a cuspida? Só os
dois, e mais ninguém, entenderiam o significado do
gesto, e além do mais só existia um Chalé em Porto
Alegre. Não iria criar tensões no bar que era ao
mesmo tempo lar e escritório.
Abriu largamente as defesas, deixou-se
abraçar pelas curtas patas do porco gordo, este
demorou-se em ruidosas efusões, quem os visse
entrelaçados imaginaria dois velhos amigos
comemorando o reencontro após muitos anos de
separação. Com o desagradável pressentimento de
que Deusa Shiva tomara posse definitiva do P. O. e
não poderia escapar àquele abraço adiposo se
voltasse ao bar, aceitou estoicamente o tributo.
Virou-se para o balcão, lá estava Speak Deutsche,
sempre o mesmo rosto avermelhado de alemão da
colônia, o garçom já o vira. Como se o tivesse visto
pela última vez no dia anterior, perguntou:
— Caipira, Doutor?
— Urgente. Pouco açúcar, por favor!
Era sua marca registrada, se alguém ouvia tal
pedido no balcão nem precisava perguntar por sua
presença. Mas além de senha, a caipira-pouco-
açúcar-por-favor tinha agora um sabor de volta aos
pagos, às tertúlias de adolescência. Voltava àquela
noite, uma década atrás, àquela mesma mesa, aos
entusiastas brindes à Europa. Logo voltaria João,
talvez com uma Karin à tiracolo, faltaria tão-só
Dalmácio, mas sua ausência pouco importava,
estaria ali sempre, mais presente que aquele monte
de banha e gases.
— Então, de volta ao caos?
— De volta ao caos?
O monte de banha talvez não tivesse
consciência, certamente não tinha consciência, da
propriedade da pergunta. Fora na Suécia, em suas
primeiras errâncias, que começara a sentir falta do
caos latino, logo ele que fugira do caos em busca de
um mundo ordenado. Olhava Deusa Shiva, tentava
ver nos traços balofos de seu rosto se ainda restava
algum resquício, uma fagulha que fosse, da antiga
chama, das noites em que discutiam madrugada
afora — sartreavam — sobre os destinos do homem
e do mundo. Quem criara mesmo a palavra? Talvez
João, com seu fascínio pelo mito Paris, Talvez
Dalmácio em um daqueles poemas inéditos ad
aeternum, sempre ambientados em cidades
longínquas. Sartrear era ler e escrever nos bares,
traçar mapas nas toalhas e percorrer com o palito da
caipirinha o avanço vietcongue pelos pantanais da
Ásia. Pois supunham — e quem duvidaria disso? —
que aquele era o cotidiano de Sartre. Parecia um
porco, Soderman.
— Quanto filé essa pança subtraiu às famosas
criancinhas do Terceiro Mundo? — gozou Cristiano.
— A propósito, estás convidado para um
churrasco em meu jardim, à beira da piscina. Vila
Assunção. Já deves saber que tenho uma casinha lá.
Já. Já sabia. Jotagê lhe falara sobre a grave
cisão ocorrida no PC gaúcho, havia o PCI e PCA, o
PC de Ipanema e o PC de Assunção. Quanto a PCs
em bairros operários, destes não se tinha notícia
alguma.
Um ser magriço se aproxima, Soderman o
apresenta, é seu jardineiro e sem sequer perguntar
“como foram teus anos de Europa?”, pergunta que
Cristiano faria a quem quer que estivesse voltando
de lá, Soderman vai desfiando um rosário de
considerações filosófico-ecológicas sobre a sabedoria
da natureza. A primavera despontava e os ipês logo
começariam a florir. Na semana anterior, em seu
passeio matinal pelo seu jardim, suspeitara de
fungos nas árvores, em verdade eram flores. As
acácias, que haviam começado a florir em agosto,
talvez por influência das quaresmeiras, que, como se
sabe — dizia, sabendo muito bem que Cristiano
ignorava tudo sobre as ditas cujas — florescem na
quaresma, pois bem, as acácias, continuavam
eternamente floridas. E seu gramado? Uma neurose,
entrara inverno adentro como se fosse verão. Passou
a lamentar o corte de um antigo salso-chorão,
louvou seus álamos italianos, que jamais mudavam
seus hábitos, floresciam como se estivessem na
Europa e Cristiano, o ateu, se tornava subitamente
místico, Deus, ó Deus, eu não mereço este cálice.
Exposta a luxúria de suas árvores, passou a
debulhar-se em queixas, aliás seu jardineiro não o
deixava mentir, o país continuava sendo caos,
corrupção, ditadura. Vinha de uma audiência no
Palácio de Justiça — “podes me imaginar junto a
marginais, ladrões, assassinos algemados?” — e
tudo por quê? Porque seu cãozinho mordera um
transeunte, o jardineiro fora à audiência como
testemunha do caráter bonachão de seu
cachorrinho. Cristiano, que após Paris só queria ver
cães de preferência na guilhotina, atalhou:
— Ah, o status de um morador em Assunção
exige um cãozinho?
— Status, coisa nenhuma. Segurança. Aliás,
tenho mais três, são três dobermans e um fila. Isto
é, tinha. Com essa porra de processo, vendi os
quatro. Estás vindo da Europa, meu caro. Não tens
idéia de como aumentou o desnível social e a
violência neste país nos últimos dezesseis anos.
Tenho de proteger o que é meu. Tenho mulher e
quatro filhos, não posso ficar sem segurança.
“Oigatelê, reprodutor!” — pensou Cristiano. Se
bem o conhecia, a mulher devia estar esperando
pela quinta foda.
— Com essa, vou eletrificar tudo em volta de
minha casa.
Não queria ser profeta:
— Já imaginaste um de teus filhos pendurado
na cerca?
Os olhos sumidos como que vieram à tona,
não esperava tal estocada.
— Pô, não sê agourento, tche! Em todo caso,
será uma voltagem leve. Só pra jogar longe o pé-de-
chinelo.
Cristiano olhou-o nos olhos. Ele adivinhava a
pergunta.
— E os ideais socialistas? A resistência?
— Que é que tem?
— Jardins, dobermans, cerca eletrificada,
mansão em bairro burguês, como concilias tudo isso
com a revolução?
— Não estou entendendo.
Cristiano repetiu lentamente, escandindo cada
palavra.
— Não vejo nada de errado. Sou o mesmo
homem de esquerda, contribuo para o Partido, e se
tenho de me proteger é justamente porque ainda não
chegamos a uma sociedade socialista. No regime
ideal, dobermans não são necessários.
“A não ser para guardar dissidentes nos
gulags”, ajuntou Cristiano, mentalmente. Não queria
discussões.
— Inclusive, o Velho deve jantar lá em casa,
na semana que vem.
Velho? Que Velho?
— Ora quem? O Cavaleiro da Esperança, meu
caro, o velho Prestes que volta do exílio e vem ao Sul
visitar as bases.
Ah, as bases...
Foi quando Speak Deutsche passou uma carta
a Cristiano. Pelos garranchos largamente
esparramados no envelope, nem precisava perguntar
pelo remetente. Deusa Shiva mergulhou na crônica
esportiva do jornal, enquanto Cristiano abria sôfrego
a carta. O jardineiro, mudo como um poste, servia-
se de cerveja olhando o vácuo.
Surpreendeu-o a fluência de João Geraldo, ele
que sempre sofrera com frases duras e tortas. A
Europa parecia ter-lhe feito bem, havia encontrado
uma linguagem. O começo da carta era a
continuação de um longo diálogo, tantas vezes
retomado nas ruas e parques de tantas cidades,
aquela memória de elefante certamente retivera uma
última frase e agora a respondia:
Paris, Natal 79
Não, Cristiano, a Europa não nos traiu.
Os europeus são o que são, tribos inteligentes
e predatórias. Nós é que alimentávamos mitos.
Na adolescência, nos louvaram a Revolução
Francesa, sem nos darem notícia das
quinhentas cabeças cortadas por dia, isso sem
falar na convicção de nossos professores, a de
que fora feita pelo povo. Jornalistas e turistas
sempre nos cantaram a riqueza e o bem-estar
das sociais-democracias, a perfeição do
Estado-providência. Ninguém nos falou da
mão-de-obra imigrante, jamais ouvimos falar
do iugoslavo, português ou árabe que quebra
pedras para edificar as sociais-democracias.
Lembras de nossas deambulações pela Praça
da Alfândega, quando discutíamos a
transcendental questão, se mulher tinha ou
não tinha cu. Eu não podia admitir a assertiva,
ser tão sublime não poderia estar submetido a
tal ônus. Lembro de teu sarcasmo: claro que
têm, e por muito pouco, coisa de um
centímetro, escaparam de uma cloaca. Pois
tinhas razão. Descoberta semelhante fiz em
relação à Europa. Dalmácio viu o poço. Desde
o fundo. Talvez pudesse ter sido salvo.
Estávamos longe, e talvez braceando
desesperadamente para não naufragar.
Sabes muito bem que já tive minha
concepção de sociedade ideal. Pois minha
utopia era — fui ver agora — um imenso
campo de prisioneiros. Já quis transformar o
mundo. Hoje estou cansado, prefiro
transformar-me eu mesmo. Tu também
sonhavas com uma sociedade onde não
houvesse sexo pago, não é verdade? Logo tu, o
Casanova dos Pampas, como gostava de
ironizar Dalmácio. Marxismo é como caxumba,
tche! Pelo menos foi a conclusão a que cheguei,
a duras penas. Ou dá na idade certa, ou
provoca esterilidade.
Eu me sinto um pouco estéril. Quarenta
anos é a metade de uma vida de homem, e
minha metade joguei-a ao vento. Meu projeto
de maior fôlego é hoje um filho. Sei, Cervantes
escreveu El Quijote aos sessenta, pelo menos é
o que diz todo escritor em fase de constipação
metal. Escrever, não sei. Dalmácio confiava em
ti. Em nossas peripatetices pela praça XV, me
confiou certo: aquele ainda vai escrever, ele
transpira revolta pelos poros. A ti, o bastão.
Acho que estou casando. Sei que a idéia
te provoca alergia. Não consigo esquecer uma
de tuas boutades, me asseguraste que um
casal só está apto para o matrimônio quando
um peida frente ao outro sem enrubescer. Em
suma, conseguiram atingir a falta de respeito
total intrínseca ao casamento. Aceito tuas
razões. Como sei que aceitarás as minhas.
Uma mulher linda, com emunctórios e tudo
mais, se atravessou em minha vida. Nela vou
embarcar e seja lá o que o Deus quiser. Em vez
de torceres a boca apiedado, te peço que
torças os dedos para que tudo dê certo.
Não ignoras como se chamava a Europa
antes de chamar-se Europa. Aprendi nestas
andanças que jamais são claros os motivos
que nos impelem a partir e, no fundo, no fundo
mesmo, não acredito que tenhas largado tudo
para buscar um paraíso onde mulher alguma
precisasse prostituir-se. Se bem te conheço,
velho putanheiro, te entediarias em tal
paraíso. Foste em busca da Res Publica
Christiana, em teu sangue corria a ojeriza a
teu nome, a recusa a teu passado, logo nós
que mal controlamos o presente e do futuro
nada sabemos. A Res Publica Christiana
mudou de nome mas conservou a essência
imperialista. Nos venderam uma religião
cansada e querem agora nos contrabandear
uma ideologia assassina, tudo em nome de
grandes ideais. A nós cabe filtrar o legado
europeu, separar a paranóia da saúde. Cá
entre nós, me permito parafrasear Voltaire: só
viveremos em paz no dia que o último padre
for enforcado nas tripas do último marxista.
Não passa adiante esta frase, não faltará
quem me acuse de sanguinário. Sei que
entendes minha metáfora.
Não quero passar por visionário,
também isto fica entre nós: a nova
Renascença, se futuro houver, será aqui, em
solo latino-americano. Viste, e viste de perto,
os europeus se entocando como ratos, com
medo à guerra nuclear. Rato não se engana.
Para a África não poderão fugir, já fizeram
muito sangue rolar por lá. Sem falar que Alá é
deus mais ciumento que Adonai. O crescente
quase já expulsou a cruz da Europa, não será
o Islã que acolherá os ratos em fuga. Os
States, além de os americanos serem ciosos de
seu território, constituem alvo nuclear. Só vai
sobrar Austrália, Canadá, Nova Zelândia... e
América Latina. Somos continuidade deles,
aqui eles se sentem bem. Já imaginaste a
Santa Sé instalada em torno ao Corcovado?
Eh! Eh! Eh!... (e Cristiano, lendo a carta, ouvia
o riso largo de galpão de Jotagê). Tenho
lástima é de ti, só de asco és capaz de voltar à
Suécia, se Suécia ainda houver.
Não estarei hoje, tche, presente à
reunião há tanto tempo marcada. Poderia
estar, como de certa forma estou. Doridos
pêsames à Deusa Shiva, não sei se poderei
ver-lhe a cara sem vomitar, depois que virou
cronista de futebol. Abraço a nosso homem de
Orion, que suas viagens cósmicas lhe sejam
sempre ricas. Ergue tua caipira in memoriam
de nosso querido e desesperado Dalmácio. Te
escrevo neste Natal gelado de Paris. Em minha
solidão, começo a te entender. Que os natais
não te pesem tanto como já te pesaram. Soube
que abandonas o jornalismo. Mês
compliments, M. Cristianô, verdade não é para
jornal. Sei que é mal visto entre nós, homens lá
da Fronteira, tratamentos por demais melosos.
Seja como for, recebe meu mais afetuoso
abraço.
Um JG esparramado rubricava o final da
página.
— Do João? — quis saber Soderman.
— É.
E mais não disse Cristiano. Uma paz
inesperada lhe envolvia o espírito. A carta era de
alguém ainda em luta consigo mesmo, não era
mensagem de quem houvesse encontrado
tranqüilidade. Nas entrelinhas havia um sabor de
trégua. Raiva alguma, ódio algum, em relação ao
pulha em frente. Apenas um desprezo vago. Ele
fizera sua opção, era como se não mais pertencesse
ao mundo dos vivos.
— O único descortês será Dalmácio. Não
suporto gente que falta a encontros marcados.
Poderia ter enviado um cartão! — disse Soderman.
Não entendia o que interiormente estava
ocorrendo consigo mesmo. Aquela piada metida a
besta, dadas as cordas emotivas que atingia, há
uma uma semana atrás lhe teria feito virar a mesa e
jogar Soderman porta afora.
E no entanto... Era como se não tivesse ouvido
nada. Sentia-se emocionalmente anestesiado.
Afirmasse Deusa Shiva que o sol girava em torno à
terra, que as estrelas eram pontos fixos no
firmamento, que o planeta estava apoiado numa
tartaruga gigante que por sua vez se apoiava em
quatro elefantes, ele concordaria imediatamente.
— Era um romântico — suspirou Soderman. E
arrematou — um sonhador.
— Era — concordou Cristiano, ajuntando
intimamente — mas tu também, filho da puta, tu
também tiveste teus sonhos.
O cronista de esportes encarnou em Deusa
Shiva, que começou com um longo discurso, a voz
empostada como se estivesse analisando um pênalti
à luz de Heidegger ou Hegel. Que de sonhos
ninguém vive neste mundo, esta porca sociedade
não dá a ninguém a chance que merece. Que Tolstoi
era conde, que Shakespeare escrevia para o rei e
suancorte, que Huxley era aristocrata, que Sartre,
afinal de contas, vivia em Paris. Um homem,
perorava o jornalista, precisa antes conquistar sua
independência econômica. Depois então, só então,
poderia pensar em poemas.
— Eu — e sua voz disciplinada sublinhava o
pronome — eu ainda não cheguei lá. Um dia chego.
E então me aposento, e vou poetar.
“Coitado” — ruminou Cristiano. Enquanto o
defunto amigo continuava a justificar-se, sob
pretexto de explicar Dalmácio, deu-se conta de que
naqueles dez últimos anos nele se havia operado
uma mudança terrível: mentia. Sim, mentia, era um
quando falava e outro quando ouvia. Dez anos
antes, cortaria Soderman a cada vírgula, dissecaria
cada palavra, desmancharia os sofismas e lhe
cobraria os projetos passados. Teria sido tal mania,
certamente, que lhe granjeara tantos inimigos.
Mas inimigos do porte daquela coisa sentada à
sua frente não valia mais à pena cultivar. Sentia
certa nostalgia dos dias em que seu pensamento
escorria instantaneamente dos neurônios para a
língua. Lembrou uma frase de Francisco Franco: “o
homem é escravo de suas palavras e senhor de seus
silêncios”. Dissessem o que quisessem do caudilho,
ninguém poderia negar-lhe sabedoria naquele
aforismo.
— Porque Dalmácio — continuava Deusa
Shiva — em sua ojeriza ao poder, só podia se
destruir. O poder só faz mal a quem não o tem.
Dinheiro é saúde, alegria, inteligência, sensibilidade.
Era o Bernard Shaw quem dizia isso. Citei certa vez
a frase a Dalmácio, no dia seguinte ele jogou no
Guaíba todos os livros do gringo. Os vencedores são
homens satisfeitos consigo mesmos, podem cultivar
a auto-estima, aprimoram-se espiritual e
fisicamente. Os derrotados não passam de uns
maníaco-depressivos. Saúde mental é para quem
está por cima. Eu — e nesse momento a voz
empostada sublinhou mais discretamente o
pronome — eu recém estou a caminho de conquistar
esta auto-estima. Quem conhece Dalmácio, ou seus
poemas sempre inéditos? Só nós. Mas Soderman é
nome conhecido nos últimos rincões do Rio Grande
do Sul, atinjo oito milhões de ouvintes. Dalmácio, se
tivesse oito leitores, talvez não se enforcasse. Se faço
um poema hoje, oito milhões de gaúchos saberão
que Soderman é poeta. Primeiro é preciso conquistar
o público, para depois lançar o poema.
— E para quando é o famoso poema?
— Ah! Para mais tarde. Sabes? — e sua voz se
tornou de repente íntima, persusiva — eu até que
nem gosto de futebol. Comentar futebol, qualquer
analfabeto faz, taí o Santana, o Quadros. Tenho
projetos maiores. No fundo, sou um homem de
Estado. Em 82, daqui a dois anos, portanto, teremos
eleições, se assim quiserem os militares. Ora, se
tenho oito milhões de ouvintes, uma deputação,
mesmo federal, está no papo. Povo é burro. O povão
me vê no vídeo defendendo ou condenando um
Pênalti e pensa: se ele é assim hábil para defender o
time, saberá também defender nossos direitos. Cem
mil votos é quota que faço sem campanha, sem
precisar mexer um dedo. Rádio é poder, meu caro,
televisão é poder, eu só leio jornal pra me informar
um pouco melhor.
“Desinformado total” — ruminou Cristiano. Se
João achava que verdade não era para jornal, ele,
Cristiano, considerava que jornalismo era a morte de
todo e qualquer conhecimento. Mas deixou o homem
falar.
— Lembras de quando eu escrevia artiguinhos
sobre Sartre? Sabes qual era minha paga? Enfim,
neste país de inflação galopante de nada vale falar
em números. Pois bem, escassamente pagava meia
hora com uma prostituta de nível médio. Após
quatro anos de curso superior, eu recebia, por uma
pesquisa que às vezes me tomava uma semana, o
mesmo que uma mulher sem instrução alguma pelo
gesto de abrir as pernas. Lá no fundo, talvez
inconscientemente, eu imaginava que um dia, a
mim, cultor da literatura francesa, me dessem uma
bolsa, uma viagem, sei lá o quê. Mas enfim um
possibilidade de curtir aqueles bares que tanto amei
em livros, La Coupole, Deux Magots, La Closerie de
Lilas. Talvez eu até conseguisse essa bolsa. Para
quê? Para viver como estudante fodido, tendo de
contar os trocados para beber um vinho de quinta
categoria, se bem que francês? Não sou besta, tche!
Não preciso te evocar aquela febre de viajar do
Dalmácio, o cara tinha um ar de quem estava
partindo amanhã. Ingênuo! Se quisesse viajar,
deveria dedicar-se ao futebol. Já virei o mundo todo.
Quando passo em Paris não preciso me angustiar
ante a perspectiva de encontrar vaga naqueles
hoteizinhos na rue Cujas: a Caldas sempre me
reserva uma suíte no Sheraton. Pena que Sartre
morreu, bem que me agradaria oferecer-lhe um
champanhe no La Coupole. E não seria inviável que
conquistasse o velhote, bastava bolar uma teoria em
torno do futebol como instrumento de libertação do
Terceiro Mundo, enfim, neste mundo das
comunicações, tudo é uma questão de linguagem.
Pois não é que tinha razão? O suíno retaco,
patas cravadas na terra, entendia melhor a Europa
que o viajado Dalmácio.
Cristiano girou o corpo à esquerda em busca
de Speak Deutesche e, olhar eternamente oblíquo,
ali estava, como que materializado no último
centésimo de segundo, o Homem de Orion. Como se
o houvesse visto no dia anterior, emitiu um tímido
alô pela fenda afunilada que lhe servia de boca.
Soderman levantou os olhos ao céu em gesto mudo
de desagrado, a presença do hominídeo o
desagradava. Atacou:
— E as mulheres, meu caro?
— Todas umas traidoras — suspirou o
serzinho estranho.
E passou a debulhar-se em queixas. Que
geralmente marcavam encontro e jamais a eles
compareciam. Que outro dia ficara seis horas na
chuva esperando por uma, tempo aquele roubado às
suas meditações, pesquisas e viagens. Que... e
Soderman, sabendo ter calcado o ponto sensível,
continuou, com sarcasmo de homem superior:
— Como é, já conseguiste liberar um só
espermatozóide? Se bem me lembro, era a única
forma de amar sem desperdiçar energias...
Não, o Homem de Orion ainda não chegara lá.
Havia tentado, continuamente, cotidianamente, só
Deus sabia quantas vezes havia tentado.
— Acho que é impossível — suspirou.
Pelos nervos de Cristiano começou a subir um
princípio de irritação, que direito tinha quem quer
que fosse de pôr em xeque o viajante espacial? Como
diria Dalmácio, acham absurdo que alguém
pretenda viajar de um planeta a outro, mas
acreditam em um deus nascido de uma pombinha e
ai de quem disser que Maria era uma pobre
prostituta judia que dava para os romanos.
Cortando a Deusa Shiva, quis saber por quais
planetas andara o homenzinho ultimamente.
— Por tantos... Não contei.
Enveredou por um longo solilóquio, expondo
as razões de suas andanças. Andava em busca de
Galactus, ser galático que odiava a vida e se
alimentava de planetas. Galactus fora, inicialmente,
uma ilação teórica. Com o correr do tempo, sua
existência passou a ser um imperativo de ordem
conceitual, única explicação plausível para o
desaparecimento de civilizações cósmicas
multimilenares. O jardineiro, que parecia não existir
naquela roda, olhava o estranho ser com espanto.
Mas suas preocupações não eram tão-somente
cósmicas. Ao final de sua exposição, passou aos
interlocutores várias páginas datilografadas com
seus últimos projetos. O primeiro era o esquema de
uma complexa máquina matapardais, o homenzinho
julgava que os ditos predadores tinham qualquer
ligação com os poderes do mal, sem falar que não
lhes suportava o chilreado. E os bichinhos eram
legião em torno ao Chalé, particularmente na
primavera. A máquina consistia basicamente em
uma metralhadora giratória acoplada a quatro
canhões sonoros e a um computador com gravação
dos sons de pardais em sua memória. Ao ouvi-los, os
canhões direcionais apontavam a arma para a fonte
de emissão de ruídos e a metralhadora era acionada
automaticamente. Havia pensado em uma arma à
base de raios laser, mas sua filosofia ecológica não
permitia sacrificar árvores.
O segundo documento, uma proposição para
viver com menos de um salário mínimo, com 33
itens, entre os quais se destacavam: não ter carro,
televisão, aspirador, batedeira, etc., coisas
perfeitamente dispensáveis; ser autodidata, evitar
pagar cursos; acostumar o estômago a exigir pouco
alimento; botar pouco açúcar no chá; fritar ovos com
água; não seguir a moda, coisa irracional que nos
impele a fazer compras; não fazer seguros, confiar
no cósmico e na fraternidade; ir de preferência a
espetáculos grátis; em caso de esgotamento nervoso,
ir ao campo (as clínicas são caríssimas); não fumar;
não comprar boné contra o sol — andar pela sombra
ou proteger-se com um jornal; não estragar os tênis
ou sapatos jogando futebol; não comprar quadros —
pintá-los; ter letra pequena, afim de economizar
papel. Etc.
O terceiro documento, uma crítica ao filme
“Guerra nas Estrelas” a partir de suas experiências
astrais. Vinte seriam as falhas do filme, entre elas o
fato de todas as estrelas aparecerem iguais,
desprezando-se as diferenças de tamanho, distância
e cor; mesmo em satélites, a gravitação é igual à da
Terra; entre os extra-terrestres há muitos tipos
monstruosos, cerca de oitenta por cento, quando o
normal seria quinze; a invisibilidade de naves e
pessoas, recurso muito usado por seres evoluídos,
jamais ocorre; pessoas supostamente evoluídas
alimentando-se com pratos e talheres, quando seres
adiantados ingerem só líquidos ou prana. Etc.
E finalmente o projeto UNAT — União das
Nações da Terra — com sede em Brasília, para
substituir a ineficiente ONU. Seu principal objetivo,
a busca inteligente e objetiva das soluções para os
problemas humanos, sendo uma das primeiras
tarefas resolver a questão palestino-israelita.
— Nada menos do que isto — resmungou
Soderman.
— E por que não? — objetou Cristiano. — Há
uma década queríamos salvar o mundo, nada menos
do que isso.
Lidos seus projetos, o hominídeo sumiu tão
discretamente como surgira. O jardineiro, parecendo
ter descoberto a palavra, emitiu seu juízo:
— Louco. Doido varrido.
Surpreso com o comentário incisivo surgido
daquele ser mudo, Cristiano interrogou-o com o
olhar.
— Imagine, Doutor, não ter televisão! Louco!
— Ah!

** *
9. NA ILHA
“Im Kampf um Südamerika, ein Zukunftsbild”
— intitulava-se o livro. Na capa, um condor
carregando ao bico a bandeira ianque em farrapos,
traspassada por uma lança, e o pseudônimo sob o
qual se escondia o autor: Condor. João Geraldo
contemplou longamente a brochura, nada menos
que 262 páginas.
Ao alvorecer de 1920 estamos em vésperas do
conflito máximo que vai decidir a sorte das duas
Américas. O pensamento de uma liga ofensiva e
defensiva dos maiores países latino-americanos,
aventada já em começos do século XX pelo previdente
estadista Barão de Rio Branco, e que então
encontrava ainda forte e geral oposição, havia se
materializado em 1918, numa aliança entre o Brasil,
o Chile e a República Argentina, unidas para a defesa
da independência continental.
A progressiva realização da política
imperialista norte-americana já atingira então até a
Colômbia, abrangendo o protetorado do México e de
toda a América Central; o deslocamento do comércio
mundial, determinado pela abertura do canal de
Panamá, impusera ao Brasil a necessidade de dilatar
o seu território até o Oceano Pacífico, anexando o
Equador, vantagem esta logo neutralizada pela
ocupação norte-americana do arquipélago fronteiriço
dos Galápagos, temerosamente fortificado.
O Peru mantivera-se alheio à colisão,
completamente entregue à influência ianque desde
que, em 1910, tivera de ceder ao Chile as províncias
de Tacna e de Arica, reavivando-se por isso os
antigos ódios contra o rival triunfante.
A Bolívia continuava a progredir pacificamente
como país mediterrâneo, oscilando entre a ação
política da Europa e dos Estados Unidos, mas
propendendo já para esta ao peso dos imensos
capitais norte-americanos empregados na construção
de sua rede ferroviária.
A imigração de pretos desta nacionalidade,
inundando o Panamá e a Colômbia, derramara-se
também pelos estados brasileiros do Equador, Acre,
Mato Grosso e Amazonas, pelo norte do Grão Chaco,
complicando lamentavelmente o grave problema da
assimilação étnica de elementos raciais inferiores.
Interpretações sofísticas da famigerada
doutrina Monroe determinavam contínuas
intervenções da solerte diplomacia norte-americana
na política internacional e na vida econômica das
repúblicas menores, produzindo atritos e
complicações internacionais e acirrando ódios
crescentes contra a influência ianque.
A tensão chegara ao extremo de bastar uma
fagulha para atear o pavoroso incêndio continental.
Em dias de fevereiro de 1920 ocorreria em
Montevidéu o pleito presidencial e, segundo todas as
aparências, a vitória deveria caber ao candidato
patrocinado pelos agentes de Washington, quando
súbita revolução veio anular todas as combinações
eleitorais, elevando ao poder o chefe nacionalista
general Galarza.
Aproveitando a confusão, a irrequieta
população da capital uruguaia, no furor de
represálias contra os odiados adventícios, atirou-se à
legação norte-americana, saqueando e destruindo o
respectivo edifício.
Refugiado a bordo de um dos cruzadores
fundeados no porto, o ministro dos Estados Unidos
exigiu pronta e incondicional reparação, sob ameaça
de fazer bombardear a cidade.
Recusando-se os brios nacionais a curvar-se à
humilhação imposta, perpetuou-se o crime
monstruoso: em poucas horas de bombardeio, dirigido
com habilidade sinistra, a magnífica capital foi
transformada num imenso acervo de destroços
fumegantes e sangrentos.
No dia seguinte à notícia do inaudito atentado
levantava, em toda a América Latina, ruidosos
protestos de indignação e os ânimos populares,
superexcitados pela linguagem violenta da imprensa
nacionalista, reclamavam dos governos imediata
desafronta à mão armada: um grito unânime ecoava
em todos os ângulos do continente — guerra!
E a guerra foi resolvida pelos delegados da
Tríplice Aliança, reunidos em Buenos Aires.
Na mesma noite, uma divisão da esquadra
argentina conseguia surpreender e meter a pique, no
porto de Montevidéu, os cruzadores norte-americanos
autores do bombardeio. Ao mesmo tempo, no Brasil,
no Chile e no Prata, operava-se, com celeridade
admirável, a mobilização e a concentração de tropas.

Não estava pior o ensaio — pensava João


Geraldo — como tentativa de ficção política,
considerando-se que Condor o publicara em 1908,
edições Herman Paetel. Só que, um século antes do
Barão de Rio Branco, Simon Bolívar sentira a
necessidade de união dos latinos e sonhava com a
Gran Colombia, a unificação das antigas colônias
espanholas. Com o que não estavam de acordo os
ingleses, que haviam dividido o continente para
melhor reinar criando os estados-tampões do
Paraguai e Bolívia, como aliás na mesma época
utilizavam na Europa a mesma política criando
artificialmente a Bélgica. Mas naquele ano de 80 o
general-presidente brasileiro não fora visitar o
general-presidente argentino? Só faltava o general-
presidente chileno descer a cordilheira. Com a
diferença de que a guerra, se guerra houvesse, seria
declarada contra os próprios sul-americanos.
O capitalismo tinha suas próprias defesas,
não era assim tão evidente sua auto-destruição,
como pretendera Marx. Mas Condor tampouco havia
previsto a fissão do átomo. E o foco da peleia no
continente fora deslocado para Havana. Quanto a
Montevidéu, os cruzadores argentinos podiam ficar
tranqüilos, os militares uruguaios haviam-se
encarregado com invulgar eficiência de afundar o
país.
Os militares ou os tupamaros? A dúvida lhe
roçou o espírito como uma lixa. Um homem em
convalescença pela perda de uma fé necessita
revisar todos os valores do passado — todos — antes
de qualquer afirmativa mais genérica. Em sua
última passagem pela ex-Suíça latina, mal saíra do
ônibus fora tomar uma cerveja no El Metejón.
Vontade de chorar. À sua esquerda quatro
mulheres, na mesa atrás cinco, a seu lado mais
duas, ao fundo um grupo de sete ou oito. Não que
lhe desagradasse a ambiência, muito antes pelo
contrário. Mas era triste constatar que o país havia
falido. Todo homem em força de trabalho havia
emigrado, no país só haviam ficado velhos, mulheres
e crianças. As meninas que não haviam conseguido
fugir do barco reuniam-se no restaurante ao lado da
rodoviária para contemplar aquele espécime cada
vez mais raro no país, um homem jovem.
Flanara mais tarde pela 18 de Julio, e o
cenário era o mesmo, desolador. Cá e lá, anciões de
ternos elegantes, porém remendados, estendiam-lhe
timidamente o chapéu, num gesto de quem sangra
por dentro ao ter de pedir. Fora jantar no Payazo e
pedira um filé, adorava os filés uruguaios,
satisfaziam sobejamente duas pessoas. Isto em
priscas eras, pois o bifinho que o garçom lhe
trouxera mal dava para tapar a cárie de um dente.
Não havia um almirante uruguaio declarado há
pouco que a Europa nada tinha a ensinar ao
Uruguai? Em compensação, muito tinham os
militares uruguaios a ensinar à Europa, por exemplo
como empobrecer em uma década um país outrora
próspero.
— Pátria existe — resmungou com seus botões
— quando meu país é o melhor país do mundo.
— Ruhe! — sussurrou asperamente uma
leitora ao lado. Merda! Há horas já não controlava
aquela maldita mania de pensar em voz alta.
Contraíra o hábito em Paris e sabia bem qual sua
origem: solidão. Meio que envergonhado, mergulhou
novamente no livro de Condor.

Enquanto as forças de terra eram assim


organizadas para a resistência, as frotas aliadas
seguiam rumo ao Norte, ao encontro da poderosa
esquadra norte-americana, partida das Antilhas; em
águas baianas travou-se a tremenda batalha naval,
resultando em estrondosa vitória dos aliados.
Ao mesmo tempo largavam de Baltimore os
transportes conduzindo o exército expedicionário,
primitivamente computado em 200 mil homens, mas
que não chegava a exceder 120 mil.
A fortificação sistemática de todo o litoral
brasileiro determinou o generalísssimo brasileiro a
operar o desembarque na costa da República
Argentina.
Conforme conjeturavam os aliados, a invasão
fez-se em solo platino, onde justamente estavam
agrupados os mais poderosos elementos de repulsa.
Depois de ocuparem La Plata e Buenos Aires,
evacuadas e desertas, os invasores marcharam ao
assalto do acampamento entrincheirado no Rio de las
Conchas, onde os aguardavam quatro corpos do
exército argentino e um chileno. Nas margens daquele
pequeno afluente do Prata decidiu-se o futuro da
independência sul-americana, em uma
encarniçadíssima batalha de quatro dias, em que os
os contendores rivalizavam na perfeição dos
armamentos e na perícia em utilizá-los.
Rechaçados com perdas enormes, perseguidos
tenazmente pelas reservas aliadas, os norte-
americanos recolheram os destroços de suas
dizimadas colunas a La Plata, ao abrigo dos canhões
da esquadra.

Um sonhador, nosso anônimo condor —


refletiu. Afastou o livro dos olhos e mergulhou em
divagações. Mas as coisas haviam-se acelerado de
uma maneira espantosa neste século. Condor jamais
suspeitaria que enquanto tentava um prognóstico
para os próximos dez anos, Lênin passeava pelo
parque Montsourris, em Paris, cofiando, cofiando
seu bigodinho asiático e Santos Dumont já estaria
sonhando com sua voltinha em torno à torre Eiffel,
que fora erguida apenas vinte antes da publicação
do ensaio. Com o avião, as esquadras de Condor se
tornavam obsoletas. Em Montevidéu estaria
fundeado o Midway, que aliás agora estava
policiando o estreito de Ormuz, atento às aiatolices
de Khomeiny.
Se bem que — continuava divagando, voando
de uma imagem à outra — se bem que, com os
mísseis intercontinentais e os submarinos
nucleares, os porta-aviões só serviriam para
almirantes saudosos da infância brincarem de
guerra. Ganharia o prêmio quem mais alto deixasse
subir a água pelo pescoço, enquanto sob seus pés
soçobrava a absurda carcaça de seu barco.
Decididamente, não mais era possível olhar a
História rumo futuro, já que nem se sabia se futuro
existiria.
Preferia uma tese insólita, tão insólita que
Papini a pusera na boca de um louco. O método
consistia em retroceder do presente ao passado, o
único que tornaria possível uma interpretação dos
fatos humanos, já que os acontecimentos só
adquirem sua luz e importância uma vez
transcorridos decênios ou séculos. O professor
Killalloe — que assim se chamava o historiador —
considerava que em 637 a entrada dos muçulmanos
em Jerusalém seria vista apenas como um detalhe
da expansão militar do Islã. Mas se partíssemos de
1095, por exemplo, o acontecimento tomava outras
dimensões. Os cristãos do Ocidente passavam a
tomar como ofensa intolerável que o sepulcro de
Cristo estivesse em mãos de infiéis. Abria-se então o
grande abismo entre Ocidente e Oriente e hoje lá
estavam, em Teerã, os diplomatas americanos reféns
do aiatolá.
Novo Sarajevo? Certamente não, apesar das
frases de efeito da imprensa internacional. Mas, no
ritmo em que marchavam as conversações, ao que
tudo indicava os reféns teriam tempo de aprender a
língua do profeta para ler o Corão no original. Ergo,
o primeiro capítulo de toda História, segundo o
professor Killalloe, deveria ser constituído pelas
últimas notícias e o último capítulo de toda História
Universal bem feita não poderia ser senão o Gênesis.
Com as pernas já túrgidas pelas horas
sentadas, decidiu trechear mais algumas linhas.
Depois pediria fotocópias.

Alcançada a preço de dolorosos sacrifícios, a


vitória dos aliados assegura aos países latinos do
continente o desenvolvimento normal de sua evolução
agora desassombrada das ameaças ianques. Para os
Estados Unidos, as conseqüências da derrota foram
tremendas: em Cuba, em Porto Rico, no México e na
Colômbia rebentavam movimentos nacionalistas e
triunfantes; nos estados do Sul, a numerosa
população negra, tiranizada até o desespero, agitava-
se ameaçadora e os japoneses, aproveitando-se da
emergência, lançavam-se sobre as Filipinas e dali
expulsavam as guarnições norte-americanas.
A grandiosa esquadra enviada para a
reconstrução do arquipélago é completamente
destruída junto às ilhas Hawai, deixando o litoral do
Pacífico aberto à invasão amarela; seguidos de 500
milhões de chineses, os nipões vão arrojar-se sobre a
América. Prevendo a conflagração culminante da
Humanidade e impelidos por um belo movimento de
solidariedade étnica, todos os povos americanos e
europeus, inclusive a Inglaterra, congraçam-se em
auxílio do inimigo e rival da véspera. Vai travar-se o
conflito supremo das duas raças em prol do domínio
planetário.

— Um tantinho racista, Herr Condor!


Pediu fotocópias, enquanto as esperava foi ao
guarda-roupa, apanhou o boné de bisão que
Cristiano lhe emprestara em Paris, vestiu o velho
gamulã comprado em Montevidéu, que até mesmo
na prisão o acompanhara. Oficialmente era
primavera, mas seu físico frágil suportava mal as
primaveras do Norte. Precisaria ter vindo a Berlim
para encontrar o relato de Condor?
Certamente não, devia existir na Bibliothèque
Nationale. Mas queria mudar de ares, ver outras
paisagens. Queria conhecer outra cidade antes de
despedir-se da Europa. Que mais não fosse, mais
dia menos dia, todo viajante que se prezasse teria de
atravessar o Muro. Conhecia os que se recusavam
terminantemente a fazê-lo, questão de não ver
ruírem ideais de juventude. Mas da juventude pouco
ou nenhum ideal lhe restava, sem falar que
Cristiano lhe havia recomendado efusivamente
aquela estranha ilha. A passos lentos, abandonou o
Ibero-Amerikanisches Institut.
A temperatura havia baixado ainda mais, mas
pelo menos não havia umidade. Preferia ter trazido o
poncho, mas desistira há muito de usá-lo. Nos
bistrôs de Paris, mas esparramava o pala, iam
caindo copos pelo chão, a exiguidade dos bares
quase o tornava claustrófobo. Gaúcho, sentia falta
de espaço. Mal havia entrado na Hauptbanhof se
surpreendeu alegremente com a cidade, imaginava
que o fato de sentir-se cercado de arames farpados e
campos minados o sufocaria.
Mas não! Ruas largas, abertas, bares que lhe
permitiriam muito bem portar o poncho, lastimava
não o ter trazido. E muito verde, sobre tudo.
Preferiria ter vindo no inverno, o álgido lençol da
neve o fascinava, lhe trazia a evocação da pampa
distante. Mas a idade e a saúde não mais lhe
permitiam arriscar o pelego por qualquer capricho.
Idade. Rumou ao Zoo, precisava espairecer.
Enquanto caminhava entre elefantes e rinocerontes
— estavam excitados os elefantes aquele dia, será
que aquela valeta de menos de metro os separava
mesmo dos visitantes? — ia fazendo um balanço de
sua vida. Estava em meio à segunda crise, a dos
quarenta, já que o bicho homem, com sua curiosa
fixação em números redondos, parecia pôr em xeque
a si mesmo uma vez aos trinta, outra aos quarenta.
Jamais antes dos trinta, que aos vinte o futuro está
em aberto. E aos cinqüenta já era por demais tarde,
inútil então tentar dar de rédeas rumo a outro norte.
A primeira crise, tirara de letra, estava tão
engajado na luta que lhe valera quatro anos de
prisão e tais picuinhas — sorriu irônico — impedem
qualquer homem de perguntas pelo sentido da
existência. Mas fora afinal libertado, antes mesmo
do fim da pena. Readquirira o direito de ir-e-vir, sem
o qual não conseguiria manter-se vivo por muito
tempo. Mas soube um dia que não tinha direito a
passaporte, isto é, teoricamente tinha direito, mas
na prática não o conseguiria. Até então, jamais
havia pensado em fazer a viagem de Cristiano e
Dalmácio. Mas quando soube que lhe proibiam a
Europa, aí é que se decidiu: “pois agora eu vou, nem
que tenha de morrer por lá”.
Entendia agora Stefan Zweig. Em sua
adolescência, pensava ser o homem composto de
dois elementos, corpo e alma. Com a idade e com as
guerras, Zweig descobrira que um homem, em
verdade, é corpo, alma e passaporte.
Conseguira afinal o terceiro requisito para
sentir-se homem e agora ali estava, já havia chegado
às jaulas dos símios, a criançada se divertia
beijando pelo vidro a boca de uma orangotango
barriguda.
— Bicho escroncho, benza Deus!
Contemplou por uma boa meia hora a macaca
velha, sua expressão humana lhe prendia os passos,
as crianças lhe faziam bilu-bilu e ela respondia com
o mesmo gesto, passando pelos beiços o dedão
enrugado e nodoso.
Mais alguns passos e parou frente à jaula do
gorila.

Salvo a subespécie Milicus


latinoamericanensis, jamais vira um gorila de perto.
Sua majestade o fascinava. Nobre, mais solene do
que um leão, a fera parecia olhar com desprezo para
o orangotango que na jaula ao lado se permitia
aquelas intimidades com os humanos. Mais dois
passos e defrontou-se com o chimpanzé, o bicho lhe
mostrou os dentes. Era irrequieto e nervoso, nada
tinha daquela indiferença quase divina do gorila.
João esboçou o gesto de um soco, melhor tivesse
ficado imóvel. O animal passou a dar patadas no
vidro que reboavam pelo recinto, as paredes tremiam
e a jaula parecia vir abaixo.
— Índio de faca na bota. Não gosta que lhe
pisem o poncho.
Quarenta anos, pois. Sem filho, sem livro, sem
árvore. Bons propósitos os alimentara por quatro
décadas, mas de bons propósitos Paris transbordava
há séculos e era aquele bordel. Como um bordel
também estava sua cabeça quando chegou au
bord’elle, la Seine, que agora estaria correndo com
tanta mansidão mas sempre debitando toneladas de
sangue em seu curso. Agora, vendo seu passado do
alto da alto da torre Eiffel, conseguira unificar
algumas linhas. No direito buscara a justiça. Não a
encontrando lá, fora perguntar à Filosofia. Os
pensadores haviam permanecido silentes e tivera de
estudar História para entender a Filosofia. Descobria
agora que sem a Geografia jamais entenderia a
História et le voilà, o erudito, careca e enregelado em
meio à avara primavera berlinense, com ar mais
abestalhado que aquele orangotango.
Mas alguma coisa havia restado de suas
campereadas, um mito havia morrido. Pensava em
voltar ao Sul e ao magistério, contar aos mais moços
o que seus olhos e ouvidos haviam visto e ouvido.
Não acreditava em ensino. Só existe aprendizado,
ninguém ensina nada a ninguém. Mas excitar os
sonhos de um adolescente, isto ele sabia, que
adolescente já o fora, e dos mais ambiciosos, sim
senhor!
O tempo passou sem sentir, os guardas já
convidavam os passeantes a saírem. Tinha fome e
no hotel lhe haviam recomendado o Hardtke, perto
dali, cozinha alemã, boa cerveja e preços humanos.
Saiu pela Budapester Strasse em direção à
Kudamm, logo avistou a Gedächtniskirche, o relógio
marcava sete da tarde, notava que passara quatro
horas no zoológico. Parado frente ao Zoo Palast,
contemplou longamente a torre compacta e angulosa
que ladeava o templo em ruínas. Duas épocas, duas
misérias. Na igreja semi-destruída pela guerra, via o
símbolo de um passado definitivamente passado, em
que o tempo era lento e pelo menos permitia espaço
ao requinte. Na torre e igrejas novas, cheias de
arestas, via o sintoma de uma civilização em que a
própria fé perdera a poesia.
No dia anterior, um homem havia tentado
saltar da torre, João não sabia se teria ou não levado
a cabo seu gesto. O que o surpreendera fora ver a
multidão passando, dignando-se apenas a um
rápido olhar, quando se sabe que todo candidato a
suicida no fundo não quer ir até o fim, porque o
suicida mesmo, este não acena com lenços para
ninguém. Mas só lhe haviam dado atenção os
bombeiros, e não é esta a atenção que pede um
homem solitário, afinal de contas os bombeiros eram
pagos por aquilo, seu humanismo era profissional.
Pensou entrar na igreja, estava ainda aberta e
lhe incitava a curiosidade ver suas naves. Que naves
poderia ter aquela caixa de fósforo estrambótica?
Queria ver se permitiam ao crente pelo menos a
suspeita de um deus. Visitara Notre Dame nos seus
primeiros dias de Paris, e tentava imaginar-se lá
dentro há seis séculos, quando a multinacional que
construíra a catedral sequer sonhava que muito em
breve teria de mandar à fogueira o homem que
ousaria dizer que a terra não é imóvel. Tentara pôr-
se na pele deste homem e não conseguia mensurar o
peso que devia oprimir-lhe os ombros sob seus
arcos. Mas tinha uma idéia muito precisa do senso
de manipulação da mente humana por parte dos
homens que a haviam erguido.
— Gigolôs do absoluto!
Mas não entrou. Lá dentro haveria homens de
fé menos exigente, não pretendia desviá-los de suas
preces com seus passos trôpegos de exausto turista
do espírito. Continuava parado frente ao templo,
contemplava-o, lembrava de repente que só o
homem do templo contempla, não era por acaso que
desde o Upamaruty a qualquer vilarejo na Europa os
padres erguiam os templos na primeira elevação que
encontravam. Gedächtniskirche só constituíria
exceção por Berlim ser plana e sua única elevação,
que datava da última guerra, era ironicamente a
Teufelsberg, construída com o lixo bélico da
convulsão que deixara em ruínas o antigo templo.
Ora, os homens de Deus não iriam instalar sua
butique na Montanha do Diabo.
Teria saltado o homem? Não duvidava que
sim. Lembrava de um distante episódio em Porto
Alegre, na praça da Alfândega, um homem subira
em um dos jacarandás que começavam a florir para
receber a Feira do Livro e uma multidão berrava:
“como é que é? Não vai saltar? Pula logo, eu tenho
de bater ponto. Ou então devolve meu dinheiro”.
Mas paradoxalmente havia algo de humano naquele
sadismo dos porto-alegrenses, era o fascínio ante a
morte, o candidato a suicida se sentia o centro das
atenções, fizera um pouco de teatro com os
bombeiros e acabara descendo pela Magirus.
Já naquela fria Berlim, que havia sido o QG
dos super-homens que da morte não tinham medo
— e por isso mesmo não podiam entender porque a
temiam os milhões de serezinhos enviados para as
câmaras de gás como bois ao matadouro — a morte
ou a eventualidade da morte de um homem não
merecia mais que uma torcidela de pescoço, o que
lhe fazia considerar que aquele candidato ao pulo
talvez não tivesse ficado na intenção. Voltou o olhar
ao templo em ruínas e um sorriso lhe aflorou aos
lábios.
— Que cagaço deve ter levado o padre.
Atravessou a Hardenbergstrasse, abriu o
mapinha que lhe dera o moço da portaria do hotel
para achar o restaurante, quando se viu face a face
com uma das filiais do império Beate Ushe, ex-piloto
da Luftewaffe. Mulher de visão estava ali, Herr
Condor era café pequeno em suas prospectivas
diante da velhota que erguera uma das mais sólidas
indústrias da Alemanha do pós-guerra.
Já ouvira falar da organização. Com o final da
guerra, a moça ficara sem emprego. Como os
nazistas estimulavam os nascimentos quando no
poder, as alemãs não tinham conhecimento de
praticamente nenhum método anticoncepcional.
Beate Rotermund, viúva Ushe, vira nesta lacuna um
mercado virgem, passara a editar o método Ogino e
mais tarde livros de educação sexual. Hoje, no 1 da
pornografia mundial, vendia imagens a quatro
milhões e meio de clientes do mundo todo, uma
modesta cifra de negócios de cem milhões de marcos
ao ano. Solidão, o mercado por excelência do século.
Afastou as cortinas vermelhas e entrou.
Um bem sortido supermercado do sexo! Ushe
tinha extraordinário senso empresarial, mal os
deputados discutiam a liberação da pornografia, já
tinha em estoque toneladas de livros e filmes. “As
bibliotecas — pensava — não deviam perder um só
desses livrinhos. Se após a hecatombe algum
eventual sobrevivente ou ser de outro planeta
visitasse tais museus, teria um registro fantástico
das doenças da época.”
Visitara não poucas sexshops em toda a
Europa. Razões? Em um primeiro momento, a
curiosidade de latino, já que a pornô ainda não
descera ao Sul. Depois — e isto era o mais doloroso,
mas tinha de admitir — a maldita solidão. Não tinha
maiores dados sobre a freqüência a tais salas, mas
via que em geral eram procuradas por homens sós.
Cada país, um estilo. Na Itália, o sexo era cômico,
literário na França, animalesco na Alemanha e
Holanda. Quanto mais se avançava rumo ao norte,
mais soturno e desesperado era o erotismo. Com o
transcorrer do anos, nem mesmo as partouses, nem
mesmo as introduções múltiplas, três homens
penetrando ao mesmo tempo uma mulher, nem
mesmo chicotes e gadgets mecânicos pareciam
satisfazer o espectador médio, sempre desejoso de
“algo mais forte”.
E a indústria dos prazeres solitários atendia a
nova demanda, filmava em primeiro plano mulheres
urinando no rosto do parceiro, e vice-versa, bocas
bebendo urina, homens recebendo dejeções sobre o
peito, e as imbecis das feministas continuavam sua
algaravia falando em mulher objeto, como se o
homem tivesse sua dignidade preservada naquela
selva de lobos. Como o distinto público pedia ainda
mais, entraram em cena os animais, mulher com
cachorros, sexos penetrados pelo membro em saca-
rolha de porcos, louras chupando garanhões e fora
em Amsterdã que vira o que não imaginava seus
olhos vissem um dia, uma mulher com elefante. Que
mais pediria o insaciável e solitário público? Elefante
com formiguinha?
Numa sala em Montparnasse, vira certa vez
alguns segundos de dignidade, a reação de uma
atriz que certamente não constava do roteiro.
Chupava um anão preto e disforme, o serzinho todo
dava a idéia de um batráquio e em meio à felação
cruzou os braços sobre o ventre que o tornava um
monstro. A mulher, sem cessar seu trabalho sob os
refletroes, com as mãos descruzou-lhe os braços, na
boca o pênis semiflácido e nos olhos um olhar de
asco. Um detalhe a anotar em suas observações:
jamais vira na pornô francesa mulher com cachorro.
Et pourtant...
O douto humanista — ruminava — habitué de
sexshops! Que pensariam os amigos se um dia o
flagrassem? Pensassem o que quisessem, seriam
senhores bem casados e de solidão pouco
entenderiam. Mas estava cansado, cansado e com
fome, queria apenas dar uma olhadela rápida na
butique de Frau Ushe, ver que oferecia de novo a
sofisticada indústria. O que o levava aos cinemas
não era propriamente sexo, mas... enfim, o homem
que viaja só tem de ter suas defesas para não
enlouquecer ou pular fora do planeta, vide
Dalmácio, que saíra mundo afora sem a precaução
de portar pelo menos uma âncora. Nas primeiras
vezes os filmes chegaram a excitá-lo, depois os via
como sociólogo — e lá intervinha de novo seu
maldito lado intelectual —, no comportamento dos
atores tinha uma idéia das obsessões dos povos.
Uma indústria que move bilhões de dólares no
mundo todo, teria um imenso significado sociológico,
ignorá-lo era recusar-se a aceitar que o homem
urbano contemporâneo é um bicho pavorosamente
só.
Mulheres em vinil com vagina térmica, falos
revestidos de protuberâncias contundentes, vaginas
apenas, em borracha, que afinal os consumidores
pouco se importavam com o resto do corpo, ou
mesmo cabeças infláveis, a boca aberta em esgar
trágico, tudo isto já vira. Em Amsterdã, no bairro
dos marinheiros, vira algo condizente ao ofício, um
peixe em plástico, garganta acolchoada por um
material resvaladiço. Mas não havia camponeses em
certas regiões dos Andes que arrancavam o pescoço
de uma galinha para que as contrações da cloaca os
fizessem ejacular? Galinha degolada, peixe em
plástico, a doença não tinha fronteiras. E Cristiano
não deixava de ter razão quando afirmava que a
culpa de tanta miséria devia ser tributada aos
cristãos e a sua triste mensagem.
Mas que teria de novo Frau Ushe? Com seu
faro comercial, estava importando gadgets do Japão,
Taiwan, Hong Kong e Coréia. Mão-de-obra 50 por
cento mais barata que a européia. Nem o mercado
da solidão escapava à divisão internacional do
trabalho. Percorria maquinalmente as mesas e
estantes e de repente, olha lá, aquilo sim era
absolutamente novo, um falo com uma bonequinha
oriental esculpida na glande. Esse ainda não
conhecia. Apanhou-o da estante, examinou-o
intrigado. Nada do que o homem faz deixa de ter
sentido — refletia. Mas qual seria o da bonequinha?
Uma balconista o aborda:
— É a última novidade, recebemos do Japão.
Uma performance. Esta borracha se torna
extremamente escorregadia com a umidade.
Viva o senso tecnológico-comercial nipônico,
pensou. Mas e a bonequinha?
— É que os gadgets eróticos não podem ser
fabricados legalmente no Jpaão. Então eles
desenham a bonequinha e exportam comok
brinquedo.
Pênis em punho, olhava incrédulo para a
moça. Tinha de rir, mas o riso lhe veio até a boca e
permaneceu como sorriso delicado sob o bigode.
Malandros, os japas! E quando os via em bandos
tirando fotos com a Notre Dame ao fundo pareciam
uns bobocas deslumbrados com o Ocidente.
— O senhor quer levar?
Queria sim. Ninguém acreditaria lá em Porto
Alegre, se não levasse. Esperava não fossem tão
rigorosos na aduana, não ia ser fácil fazer crer ao
policial que se tratava de um brinquedinho.
Já rumava ao restaurante, um luminoso
intermitente lhe desviou o olhar. Peep-show. As
mulheres que por um minuto e por um marco se
exibem nuas ao cliente. Entrou. Minuto mais,
minuto menos, seu estômago não reclamava.
Na entrada, foto das artistas, com o horário da
exibição de cada uma. Havia uma crioula
sensacional, há horas não via um daqueles produtos
que só o Brasil sabe exportar. Ao que tudo indicava
a mulata era patrícia, e João não se furtaria a mais
uma piadinha em português, seria mais uma
daquelas moças das quais se sabia lá no sul que
fazia “sucesso” na Europa. Mas a mulata só se
apresentava a partir da nove e meia, não ia esperar
duas horas por uma bunda. Preferia jantar. Fez a
volta do biombo onde cá e lá havia alguém preso a
uma janelinha. Antes da saída, esbarrou em uma
porta: Solo Cabine. Essa não conhecia. Entrou.
Uma saleta exígua, nua. Uma cadeira e um
rolo de papel higiênico. Frente à cadeira, uma
parede de vidro e atrás do vidro outra cadeira. à
Esquerda da porta um aparelhinho com uma fenda e
no chão gotas de esperma. Fechou a porta. Essa ele
pagava pra ver! Pôs a moedinha — cinco marcos e
sentou.
Uma lâmpada iluminou o outro lado da
vitrine, uma loura envolta em toalha de perguntou-
lhe algo.
— Ulla?
— Was?
Ulla?
...
Karin? Monique? Brigitte?
Ah, podia escolher? Qualquer uma minha
filha, ou todas. Todas, menos Karin. Como te
chamas? Ulla? Então vem tu mesmo.
A menina deixou cair a tolha, surgiu um corpo
frágil e branco, seios pequenos e flácidos, de Ulla
não tinha nada. Ensaiou uns passos de dança ao
som da música acionada pela moedinha, João
olhava imóvel, ela acaricia os murchos mamilos,
desce as mãos pelo ventre rumo ao sexo. Senta-se e
abre os grandes lábios, com um gesto insinua que
João abra a braguilha, em um inequívoco
movimento de pulso mostra a seqüência. Mas não
precisava insinuar, antes de entrar ele intuíra
aquela relação fria, distante, asséptica e baratinha.
Sentia-se um tanto velho para aquilo, além do mais
o ridículo da cena o divertia. Levantou-se, atirou um
beijo à menina, ela retirou as mãos do sexo e sorriu.
Tomou o rumo da Meineckerstrasse.

No Hardtke, onde teve a sorte de encontrar


uma última mesa vaga, enquanto esperava o garçom
puxou da sacola uma carta, postada no rio. Queria
relê-la com calma, degustar cada palavra, deliciar-se
com as linhas e entrelinhas, principalmente com
estas. Junto à carta vinha uma reportagem do
“Estado de São Paulo” sobre o empobrecimento do
Rio Grande do Sul. Então a imprensa começava a
descobrir o que há vinte anos era evidente?
Jornalista é como marido traído, pensava, sempre o
último a saber das coisas. Mas o que lhe interessava
mesmo era reler aquelas letras fugidias da carta,
não propriamente pelo que elas diziam, já que ela
dificilmente se abria, mas o simples fato de escrever-
lhe, mesmo para o relato de banalidades, já lhe
parecia um aceno.
João lhe escrevera há pouco, falando das
conclusões a que chegara sobre “ser europeu” e “ser
latino-americano”, a partir de sua experiência de
dois anos em Paris. Citava como exemplo a
literatura européia contemporânea, particularmente
a francesa. O escritor francês apanhava um
microscópio e analisava o mundinho psicológico dos
personagens numa tentativa de couper les cheveux
en quatre. Os latinos também faziam esta análise
microscópica, mas depois apanhavam um avião e
sobrevoavam o planetinha, colocando o homem em
suas devidas proporções. Tinham uma visão de
conjunto que há muito o francês havia perdido, o
último a ver as coisas do alto parecia ter sido Proust.
Os novos escritores latinos pariam novelas de
quinhentas ou seiscentas páginas com uma aisance
absoluta. O parisiense, quando conseguia uma
novela de duzentas páginas, deixava entrever no
texto o esgar de uma galinha que acabara de pôr um
ovo. Parecia ter reduzido à fútil vida parisiense. Para
os latinos, Paris era apenas passagem. Com um pé
em cada continente, conseguiam ver as duas
culturas com um olhar comparativo. O francês não
conseguia dar esse passo. João Geraldo levara uns
bons vinte anos para dar-se conta do fato. E não é
que agora Karin linda o chamava de geógrafo?

Gostei muito de tuas filosofias. Isso de pegar


um avião e olhar as coisas do alto é pura análise
geográfica. O geógrafo francês, assim como o escritor,
se preocupa em analisar o homem dentro do quartier
em que vive. Encontrei muito pós-graduado que
defendeu tese sobre as pequeninas relações de
paisagem de uma única rua de Paris. Absurdo. O
geógrafo brasileiro, que tem todo um embasamento
teórico na escola francesa, vem procurando se libertar
dessa mentalidade que não se aplica ao Brasil nem
ao mundo de hoje. Não sabia que você levou quase
vinte anos para sacar que o importante não são as
fronteiras político-administrativas mas sim o conjunto
de interrelações, físicas e humanas. Parabéns por ver
isso, és um geógrafo.

Ímpetos de quebrar os ossinhos daquela guria


num demorado abraço. Ao final, em PS, lhe contava:
sabias que o João Paulo vai a Porto Alegre?
— Papa, go Rome! — exclamou. O polaco que
fizera construir, por 550 milhões de liras e para seu
lazer privado, uma piscina em Castelgandolfo, sem
falar nos 800 milhões da instalação de ar
condicionado nos apartamentos pontificais, levava
da Europa hóstias a uma América que pedia pão.
Sabia que João Paulo, em sua randonée místico-
política mundo afora, iria ao Brasil após sua visita a
Paris. (Não duvidaria que até o camarada Marchais
fosse apertar a mão do pontífice da igreja rival). Mas
a Porto Alegre, não sabia. Já imaginava a massa,
informe como todas as massas, empurrando-se e
pisoteando-se, erguendo os filhos nos braços para
um dia pudessem dizer “eu vi o papa em Porto
Alegre”. Na luta pelo continente, o marxismo
marcara não pouco pontos. O polonês sabia disso e
se deslocava ao Sul para fazer sua aposta.
Ignorando — ou fingindo ignorar — que quem
precisava mesmo ser evangelizado eram os ricos, os
pobres do Sul já ficariam contentes se os europeus
não mais roubassem suas matérias primas.
— Memória, memória, memória.
— Was wollen Sie, bitte?
De novo o maldito cacoete. Desta vez em
públcio, o garçom o flagrara pensando em voz alta.
Pediu logo o Schlachtplatte e uma Weissbier e de
novo mergulhou em si mesmo. Memória.
Cultivassem as gentes a memória e o mundo seria
menos infame. Em seu giro pela África, João Paulo
não dissera uma só palavra em defesa das cinqüenta
milhões de mulheres de clitóris cortados e vaginas
costuradas, sequer dera um pio a respeito da prática
do marido deflorar a mulher com uma faca e exibi-la
ao ombro, sangrando, aos demais membros da tribo.
Contentara-se em fazer uma defesa intransigente da
família, logo ele, o representante máximo da religião
que esfacelara a sólida família dos Antigos.
Gostava de falar a seus alunos dos Manes,
Lares e Penates. Quando os ancestrais, uma vez
mortos, passavam a ser adorados como deuses,
cabia aos descendentes cultuar o novo deus,
perpetuar a família para que o culto não se
extinguisse. Cada homem tinha interesse em
procriar para que os filhos lhe depositassem na
tumba as oferendas que alegravam os Manes. Cada
lar era um templo e cada família uma religião,
extinta a família morriam os deuses. O celibato — e
de repente pensava no seu — era danação em dose
dupla: impiedade, porque punha em perigo a
felicidade dos Manes de suas família, e maldição,
porque o celibatário não teria, uma vez morto, quem
o cultuasse. Com o mosaísmo se impusera o deus
único, e Cristo viera para separar o filho do pai e o
pai do filho.
Um outro deus, ciumento, possessivo,
decretava oficialmente a morte da família. Agora
vinha João Paulo, o maior traficante internacional
de drogas, seguro de que da História os africanos só
conheciam as conseqüências, vinha falar em família!
Em nome do Cristo, filho de puta e cultor do gênero!
Sem falar em Alexandre Vi, que entre uma suruba e
outra com a Lucrécia traçava uma reta no papel
determinando se a pampa pertencia à coroa de
Espanha ou Portugal. De repente, se dera conta de
que passara Tordesilhas, passara o Tratado de
Madri e o de São Ildefonso, e Livramento pertencera
sempre ao mundo hispânico, pelo menos até o
Tratado de Badajós. Viria daí seu amor por Martín
Fierro e sua relativa indiferença ao que ocorresse ao
norte do rio Uruguai. Na Rua da Praia apresentar-
se-ia o novo superstar, o esquiador, o lançador de
bebês ao alto, o ator e cantor, e lá se iam os
desmemoriados gaúchos ajoelhar-se ante o vice-
deus, o representante-mor do obscurantismo
medieval.
— Vade retro, Papanás!
A carta de Karin. Não era a primeira, e isto já
era um sintoma. Por experiência sabia que as
pessoas só escrevem quando se sentem sós e ao que
tudo indicava, Karin... Mas preferia não pensar no
assunto. Que tinha ele, já nos quarenta e talvez
perto do fim, enfermiço, careca e nem um pouco
atraente, que teria ele a oferecer a uma mulher linda
— e como! — linda, jovem e esportiva< Um filho?
Mas já era um pouco tarde para filhos. Se os tivesse,
teria de fugir da cidade, não admitia que suas crias
crescessem dentro de cubículos, expostos ao rádio e
à televisão.
Por enquanto, da cidade não podia partir. A
discussão era antiga, já nos Diálogos Sócrates se
queixava de que a vida em Atenas era por demais
agitada, que preferiria morar no campo. Acontece
que os amigos estavam em Atenas. Ela, mulher
urbana e cosmopolita, se submeteria a viver numa
fazenda longe da capital? Mas quê? Já devaneava
como se ela o houvesse eleito. O pior, o que não
queria admitir mas tinha de admitir, era que Karin
gostava dele. Já o ouvira encantada, durante horas,
ele a encontrara na Bibliothèque Nationale, punha o
queixo perfeito sobre suas mãos feitas para o
carinho e o escutava estática, um sorriso de Górgone
iluminando o rosto e o petrificando. Quando falava,
pelo menos quando ele falava impessoalmente,
quando digredia sobre história ou recitava poemas,
sabia que fascinava. Mas, tímido atroz, chegava a
sentir dores estomacais, suava e gaguejava apenas
em pensar na hipótese de uma investida afetiva.
Nem sempre, é verdade. Quando o
procuravam para uma relação que João sabia não
ultrapassar o nível da aventura, conseguia vencer a
timidez. Cá e lá tinha seus socorros que, se não
chegavam a atenuar sua solidão, pelo menos o
mantinham à tona. Mas Karin, aquela Karin linda
cujo rosto lindo tinha vontade de esmagar, diante
dela todo seu brilho intelectual restava inútil.
Insegurança física total.
Mas também pressentia o perigo. Naquela
idade, uma paixão gorada lhe serias mais fatal que
todos os bacilos de Koch do mundo. Si buscás vivir
tranquilo — dizia o velho Viscacha — dedicate a
solteriar. Cavalo arisco, em um instinto de
preservação prendia o freio nos dentes e fugia aos
corcovos daquele abismo. A safada sabia como tocá-
lo fundo, ainda mais agora que andava longe da
querência. Ao final da reportagem sobre o Rio
Grande do Sul, com um círculo vermelho destacara
uma quadrinha.
Oh! dona, seu eu lhe contasse
você diria que eu minto:
as moças de Livramento
usam pistola no cinto.
Mário Quintana expulso do Majestic! O recorte
da Folha da Tarde, datado de 23 de abril, ficara
dentro do envelope, só agora João o percebia. A
charge mostrava o poeta saindo do antigo hotel com
suas posses: uma estrela na mão esquerda
(Aldebarã?), sob o braço uma lua em quarto
minguante, flocos de nuvens e arco-íris, na mão
direita um sapato florido. Que estaria acontecendo?
O poeta pertencia ao hotel ao mesmo título que seus
móveis. Iriam derrubar o velho prédio? Não
duvidava. A Rua da Praia ia perdendo, dia a dia,
seus últimos encantos.
Hierático e ao mesmo tempo criança. Vinha de
longe seu fascínio por Mário. Quando saíra de
Livramento para fazer Direito em Porto Alegre, por
várias vezes cruzara com o nefelibata, sempre
flanando pela Rua da Praia. Mas os códigos lhe
roubavam o tempo para ler poesia e além do mais
um preconceito o afastava do poeta. Ele não escrevia
no Correio do Povo? Por certo pertenceria à elite dos
bem pensantes da capital. Foi quando lhe contaram
a história do busto em Alegrete. A cidade queria
homenagear o filho mais ilustre, erigiu-lhe um busto
e perguntou ao poeta se não queria gravar uma frase
no monumento. Quintana não se fizera de rogado:
UM ERRO EM BRONZE É UM ERRO ETERNO
Fora o coup de foudre. O homem estava ali,
sob seu nariz, e ele não o vira até então. Aproximou-
se do homem e da obra, desta com sofreguidão, do
homem com timidez, tentava adivinhar qual seria
seu lado melhor de montar. Chamá-lo de senhor? Se
as cãs de Mário impunham distância, seu jeitão de
menino grande eternamente deslumbrado com o
mistério das coisas o impelia ao tu. Via-o todas as
noites na livraria Coletânea, cumprindo o que
chamava de ronda das lombadas. Dispôs-se um dia
a abordá-lo. O tu se recusava a aflorar-lhe aos
lábios, investiu com senhor, O poeta reagiu, ferido:
— Não me chama de senhor. Vão pensar que
sou septuagenário.
Era típico de seu humor. O encontro ocorrera
em 76, quando toda a imprensa gaúcha celebrava
seus setenta anos. E agora o expulsavam de sua
eterna trincheira. Porto Alegre se tornava cada dia
mais triste. A charge da Folha ficara escondida no
envelope, como se Karin assim a dispusesse para
que a nota melancólica de sua carta só fosse
percebida no final.
Jantara maquinalmente, como sempre,
envolto em suas ruminações. Quinze para a meia-
noite. Pediu a conta e saiu. Vinte marcos não era
preço indigesto por aquele generoso Schlachtplatte,
mais duas cervejas. Quarenta e quatro francos, o
preço médio de uma refeição apenas razoável em
Paris. De repente, lembrou que hago 528 cruzeiros,
quando uma picanha no Chalé da Praça XV estaria
custando uns 90, pelo menos é o que lhe contavam
as cartas de Porto Alegre. Eta moeda vil! Merda de
memória. Com a última desvalorização do cruzeiro
decretada por M. Dix pour Cent, o ministro de
Economia, tornava-se cada vez mais duro para um
brasileiro viver na Europa.
Comprou alguns postais em quiosque ainda
aberto na Kudamm. Passou os olhos nas manchetes
dos jornais daquela segunda-feira. João Paulo
continuava seu proseletismo pela África. Cinqüenta
mil cubanos fugiam da ilha. Em Ljubljana, no dia
anterior, morrera Tito.
— A humanidade ficou mais pobre —
murmurou.
Tomou a direção da Kurfürstenstrasse, teria
uns bons vinte minutos de caminhada até o Berlin
Hotel. Ao passar novamente pelo largo da
Gedächtniskirche, o relógio marcava meia-noite.
— Igreja da Memória. A estes, não voltam a
enganar tão cedo.

Do mirador em meio à floresta, João Geraldo


olhava o muro que se erguia trezentos metros
adiante. Nas torres, entrevia vultos de soldados que
se cruzavam, binóculos e metralhadoras em punho.
Entre o mirador e as torres, Achtung, arame farpado,
campos minados, cercas eletrificadas, os obstáculos
de uma maratona suicida que poucos haviam
conseguido vencer. Nascer em fronteira aberta,
habituado a perambular por Livramento e Rivera
como quem troca de bar, só agora tinha uma
percepção concreta, concreta e brutal, do absurdo
vírus que separava as duas Berlins. Sua fé, a
perdera em Paris, na festa anual do Partido em La
Courneuve, e de uma vez por todas. Muitas vezes
tentara justificar o muro sem jamais tê-lo visto, e
agora estava ali, frente àquele cartaz que anunciava
morte a quem avançasse dez passos.
Já não acreditava em mais nada. Cá e lá,
cruzes e flores marcavam as poças de sangue dos
que haviam tombado. Desnecessário visitar qualquer
país para saber se lá existe justiça — considerava,
olhar fixo nas torres de vigilância — basta saber se
seus cidadãos podem dele sair sem serem
metralhados.
Desceu do mirador, fez o caminho de volta à
cidade, respirando fundo o histérico verde estival
que emanava do bosque. O outro lado, estava visto.
Mesmo assim, insistia em perambular por Berlim
Leste naquela manhã de sábado. Tinha além disso
uma encomenda de seu coiffeur em Paris, um
velhote bonachão que lhe contava histórias da
Segunda Guerra enquanto lhe raspava a cabeça.
Estivera há muito em Berlim, só lembrava da
Stalinallee, e pedira a João um postal da avenida.
Ao descer no setor oriental, já na estação, teve
uma primeira idéia das diferenças entre os dois
mundos. Ao tomar o trem no Tiergarten, picotara o
bilhete em uma máquina eletrônica, o aparelho lhe
tomara das mãos o tíquete por uma fenda e o
devolvera quase instantaneamente pela outra.
Agora, fazia força para picotá-lo, em uma espécie
rudimentar de alavanca, que não exigiria esforço
algum se não estivesse enferrujada.
Enfim, não seriam as sofisticações eletrônicas
que fariam a felicidade dos povos. Mas algo o
intrigava. Descera junto com turistas e alemães
ocidentais, o que era normal, compreensível. Mas
também faziam fila ante o controle de passageiros
uma estranha fauna de operários, turcos e árabes,
ao que tudo indicava, mais outros que pela língua
lhe pareceram iugoslavos. Seriam por certo
gastarbeiter, e João Geraldo não entendia que
estariam buscando do outro lado com suas parcas
economias.
Meia hora na fila para entrar no paraíso
socialista. A RDA cobrava cinco marcos pelo visto, se
turista busca exotismo que deixe divisas fortes. Mais
seis marcos de câmbio compulsório. Mais o policial
que olha um minuto para a foto do passaporte e
outro minuto para o rosto do portador — e como
custa passar minuto de policial olhando! — como se
alguém fosse se dar ao trabalho de falsificar um
passaporte para entrar naquele paraíso do qual não
se podia sair. Após uma caminhada por corredores e
mais corredores de concreto, policiais armados em
cada canto, João finalmente pisou no Leste.
Passeou sem rumo pela cidade, sentiu-se
perdido no vazio da Alexanderplatz, havia espaço e
espaço lhe fazia falta. Mas os imensos blocos de
concreto davam uma impressão de deserto. Ao meio-
dia assistiu uma troca de guarda ante um palácio,
sempre a massa imbecil de turistas tirando fotos
ante os soldados. Aos primeiros protestos do
estômago, tratou de procurar restaurante. Mas
antes tinha a encomenda de seu coiffeur, o postal da
Stalinallee. Queria também enviar postais a amigos,
ver como funcionavam os correios socialistas.
Ao sair do hotel, pusera na caixa uns sete ou
oito, enviaria agora outros aos mesmos amigos.
(Saberia mais tarde que os de Berlim Oeste haviam
chegado em quatro dias, os do Leste em três meses).
Nas cercanias da Alexanderplatz achou um
quiosque. Procurava algum com a Stalinallee e já no
primeiro olhar perdeu as esperanças, o quiosque só
tinha seis tipos de postais a oferecer, e em papel
vagabundo. Perguntou à menina se não haveria
outros. Não. Podia levar cinqüenta de cada um, mas
só existiam aquelas seis vistas. Vista por vista,
apanhou oito cartões iguais. Onde é que poderia
encontrar um da Stalinalleee?
A moça jamais ouvira falar da Stalinallee.
— Só se for na outra Berlim.
Não. Na outra, tinha certeza de que não era.
Mas também tinha certeza de que seu barbeiro,
homem de boa memória, não se enganara. Saiu
perguntando, ao azar, pela avenida. Um porteiro de
hotel, homem de idade, o esclareceu.
— O senhor está exatamente nela. Só que
agora se chama Karl Marx Allee.
Ah bom? Estes senhores também tinham
consciência da importância da memória, tanto que
procuravam apagá-la. Mais alguns anos e ninguém
saberia quem fora Stalin. Lembrou uma declaração
de Milan Kundera, lida talvez no Monde, recortada e
cortada em sua agenda: a luta do homem contra o
poder é a luta da memória contra o esquecimento.
Com muita pesquisa, conseguiu situar um
restaurante na Karl Marx Allee, o que lhe soava
como ironia: em minutos situava um texto antigo em
uma biblioteca e precisava de quase uma hora para
achar um restaurante em uma capital, e isso que
conhecia razoavelmente o alemão. O paradoxo o
fazia evocar o outro lado, com seus quatro mil
Kneipen de portas escancaradas e às vistas de todo
transeunte. Cristiano o alertara: comer em
restaurante socialista é tão sem graça como trepar
com feminista.
Mesmo assim, entrou no Moskau. Mais uma
hora de espera em uma fila. Se tivesse ao Oeste, já
estaria na sobremesa. Mas insistia em tentar um
restaurante daquele lado.
Especialidade da casa, frango à la Tabaka.
Vamos então degustar o frango à la Tabaka, pensou.
Pediu o prato, 4,75 marcos RDA, o que não era caro.
Wir haben keinen mehr, nicht mehr da!, respondeu
automaticamente o garçom. Foi passando em revista
omcardápio, para sempre ouvir o mesmo refrão,
nicht mehr da, nicht mehr da. Acabou comendo um
filé com fritas por 7,50, que parecia ser o prato ao
qual o garçom o conduzia com seus nicht mehr da.
— Só o que faltava — resmungou — sair de
Paris para comer bife com fritas em Berlim.
Ao voltar, reencontrou na fila de controle
alguns dos rostos que tanto o intrigavam. Na parte
Leste não havia nada que o Oeste não oferecesse,
fosse mercadorias, fosse lazeres. Entendia os
turistas que tinham curiosidade em dar uma
olhadela na parte comunista. Já não entendia os
imigrantes. No hotel, o porteiro lhe explicou o
fenômeno.
Do outro lado as mulheres eram muito mais
fáceis, entregavam-se sem muita hesitação, na
esperança de que algum eventual casamento com
um operário europeu lhes desse direito ao terceiro
atributo do ser humano, como dizia Zweig, um
passaporte. Os imigrantes, e mesmo os alemães —
salientou o porteiro — atravessavam o muro
exibindo esperanças.
— Às vezes dá certo — concluiu.
Não tinha grandes vontades de contatar o
pianista. Cristiano o recomendara com ressalvas.
Defendia a tese de que não pode ter raízes quem
nasce em cubículos elevados do solo. Se o Rio jamais
dera um escritor profundo à literatura brasileira — e
estava perfeitamente consciente do caráter herético
do que afirmava — muito menos daria grandes
musicistas. Preconceito de gaúcho contra carioca?
Talvez. A verdade é que as intuições de Cristiano
sempre acabavam se confirmando.
Mas seriam umas quatro horas da tarde.
Detestava permanecer o dia todo sentado em uma
biblioteca, precisava espairecer. No fundo
alimentava certa curiosidade, desde que o escutara
em um concerto no Instituto de Belas Artes, em
Porto Alegre. Gostaria de ver como o tratavam os
alemães. Segundo o jornalista, existiam não poucos
vírus que atacavam o brasileiro culturalmente
inseguro ao chegar na Europa. Conforme o país
onde aportava, tinha a convicção de ter chegado ao
melhor país do mundo.
Assim, a burguesia endinheirada mal chegava
a Paris tentava provar urbi et orbi que França era
sinônimo de civilização e o Brasil terra de botocudos,
enfermidade que Cristiano batizara de galicite.
Outros, ancorados naquela ilhota mais ao norte,
consideravam existir a Inglaterra e depois... o resto
do continente. Haviam sido contaminados pelo clima
insular e padeciam de anglicite. Outros teimosos,
estes mais raros, que haviam conseguido permissão
de estada na Suécia por terem feito um filho a uma
sueca, insistiam em provar a si mesmos que viviam
no paraíso social por excelência. Ardiam na febre da
escandinavite.
Para Cristiano, Artur estava desenganado, se
consumia em uma germanite crônica. Mesmo assim,
João iria visitá-lo. Se andava falando só pelas ruas
nos últimos dias, não lhe custava continuar falando
só frente a alguém. Telefonou ao pianista. Ele
respondeu primeiro em alemão, a contragosto
passou ao brasileiro. Pelo sotaque, João Geraldo
começou a arrepender-se de seu gesto. Sabia de
antemão que era carioca. Mas só agora se dava
brutalmente conta de que o carioca irremediável se
deixara germanizar. Falava com uma cortesia fria,
era como se falasse brasileiro em alemão.
Morava na Bochumerstrasse, em um prédio
antigo, quarto andar. Mal entrou, João foi tomado
por uma agradável sensação de espaço, as peças
lembravam galpões. Durante algum tempo
conversaram sobre generalidades, quis saber quais
os planos de Artur. Pretendia voltar? Não. Lecionava
e tinha seus concertos cá e lá, em geral promovidos
pela embaixada. “O que é zero à esquerda na
carreira de um pianista”, pensou João. Casara com
uma Deutsche e tinha passaporte alemão. Quis
saber o que fazia João Geraldo.
Morava em Paris. Mas por pouco tempo. Já
estava empacotando os livros para voltar ao Sul. O
pianista começou a manifestar os primeiros
sintomas da doença.
— Para viver entre índios?
— Graças a Deus, tche! Índio Jorge Amado
traduzido em mais de quarenta idiomas, só este ano
teve duas traduções na França. Índio Guimarães
Rosa, vende em livro de bolso aqui na Alemanha,
aliás índio João Cabral de Melo Netto vendeu nestes
país seus poemas em tiragens que fazem poeta
alemão sonhar.
Não que gostasse muito do escritor baiano.
Mas para o xingar o carioca, até baiano vinha bem.
Para cutucar a fera, rematou:
— Sem falar nos índios Szidon e Feliciatti,
gravam para a Deutsche-Gramophone e dão
concertos em tudo que é canto do mundo.
Havia cortado fundo.
— Fico com Borges. Esteve aqui e disse que se
orgulhava de seu avô, grande matador de índios.
João ouvira falar daquela entrevista, havia
causado alguma celeuma. Aventava três hipóteses:
a Jorge Luís Borges se orgulhava da coragem
física de seu avô, daquela coragem de Fierro lutando
com o índio, o que nada tinha a ver com genocídio;
b Borges dissera uma frase de feito para
chocar as esquerdas européias, ou
c com a idade, estava ficando caduco.
Mas o papo terminara ali. João já matara sua
curiosidade: o carioca viera à Alemanha executar
Bach e Beethoven para alemão ver.
“Veio ensinar o padre a rezar a missa”,
resmungou com seus bigodes, enquanto apanhava
casaco e chapéu. Ao sair, Artur pergunta se não
podia lhe enviar de Paris a partitura de Bacchianas
no 5.
— Posso sim. É do índio Villa-Lobos, não?
E como já havia declarado guerra, antes que o
pianista fechasse a porta, alertou-o:
— Cuidado com esse passaporte alemão. Os
índios andaram se organizando depois da chegada
do Cabral, agora estão pedindo visto de entrada. Na
hora da guerra nuclear, não esquece de dar uma
passadinha no consulado antes de voar para lá.
Terzo Mondo, a meio caminho da
Bochumerstrasse e do hotel. Encontrara o
restaurante por acaso e gostara da ambiência, havia
ruídos, canções, uma alegria latina. A cozinha em
verdade era grega, como também o proprietário, que
entre os posters de Che, Mao, Ho Chi Min, cantavam
canções de Theodorakis, enquanto uma caixa
registradora, em meio aos risos e prosits de jovens
de esquerda, fazia tlim tlim tlim.

Quem seria Condor — perguntava-se João no


trem Varsóvia-Paris — que ouvira o galo cantar mas
não sabia onde? Diplomata, certamente. Ou militar.
Em qualquer das hipóteses, não largava mão de
suas noções de raças inferiores e superiores. A
Europa unida “num belo movimento de
solidariedade étnica”! Essa era boa. Não conseguiam
sequer, naquele ano da graça de 1980, ampliar o
Mercado Comum! O autor enfocava o imperialismo
ianque em relação à América Latina e permanecia
silente em relação ao europeu, que há muito, bem
antes dos americanos, descobrira a mina. Com sua
ampla visão, sobrevoando os Andes, não percebera o
vírus que incubava sob seu nariz.
Quanto à América Central, meio século depois
do informe, suas previsões se efetivaram. O que não
lhe exigira certamente grande esforço de imaginação:
com o fortalecimento progressivo dos exércitos das
grandes potências, os fundadores de utopias
navegariam naturalmente rumo a ilhas.
Se bem que a luta hoje era um pouco mais
complexa — considerava. As nações não mais
dominavam, mas sim empresas com tentáculos em
todos os países. A América Latina, sugada pelos
capitais europeus e americanos, se via disputada
por duas igrejas, a católica e o PC. Que no fundo
eram uma, a primeira brandindo Deus no céu e a
outra o paraíso na terra. Fora sintomático aquele
artigo de Ernesto Cardenal, publicado em cinco
páginas de um jornal costarriquenho, um elogio
desbragado a Khomeiny, o que lhe valera o apodo de
aiatolá do Caribe. No fundo, a eterna luta pelo
poder, e os latinos não tinham — ainda não tinham
— um pensamento próprio para opor-se às duas
religiões.
Chegou na Gare du Nord no horário, às
6hs24min, precisamente. Mal desceu ao metrô deu
meia volta. Toneladas de lixo atulhavam os
corredores, o mau cheiro e a poeira lhe irritavam os
pulmões. Um acesso de tosse o deixou quase sem
fôlego ao voltar a subir as escadarias para chegar ao
ar livre. Procurou um táxi. Havia chegado no último
dia da greve dos lixeiros, segundo o chofer. Concluía
que o bravo povo francês seria absolutamente
incapaz de um genocídio dos bons. No primeiro dia
de cremação, os funcionários dos fornos cruzariam
os braços, pedindo mais um salário e menos
trabalho.
— O melhor da viagem é a volta —
resmungou.
— Pardon?
De novo, pego em flagrante. Disfarçou,
comentou qualquer coisa com o chofer sobre o
tempo. Mais uma semana e estaria tomando um
cafezinho na Rua da praia. O sorriso imenso de
Karin no Galeão, sorriso maior que a baía toda de
Guanabara, o faziam suportar sem muito esforço os
últimos dias em uma civilização em ritmo de
entropia.
Huit — DH — mercredi 12 juillet 1978
Tué à Châteauroux pour avoir écrasé le “bâtard”
de sa voisine
“Il avait déjà ‘eu’
mon premier chien”
a déclaré la meurtrière
De notre envoyé sp.
Guy DUPONT
CHATEAUROUX, 11 juillet.
Il a ecrasé de chien de sa voisine. Furieuse, elle l’a
tué d’un coup de carabine. Il était père de treize
enfants. Faut-il tant aimer son chien et hair son
voisin pour en arriver à cette fin tragique?

Pária do século, uma sensação de corno da


história, assim se sentia João Geraldo. Seus
quarenta anos, os via jogados ao lixo, na famosa lata
de lixo da História. Sentia-se qual cachorro
vagabundo tentando encontrar algo a salvar naquele
monturo.
Quando começara sua aposta? Não sabia
precisar, pois a fizera não por opção puramente
intelectual, mas por motivos vagos e indefiníveis,
entre os quais um se sobressaía: a revolta. Revolta
que só veio mesmo as tomar corpo quando se
mudou para Porto Alegre. Na estância, ainda
criança, notara que os homens não eram
exatamente iguais. Dois ou três fazendeiros
possuíam boas quadras de sesmaria em Livramento,
enquanto a maioria dos que habitavam no campo
possuía nada ou quase nada. A verdade é que
ninguém passava fome, sempre havia changas nas
fazendas da redondeza. Quem se dispusesse a
trabalhar sempre teria o de comer e poderia até
mesmo, com diplomacia e paciência, adquirir alguns
hectares de terra e criar algum gado.
Foi na capital que, um belo dia, como quem se
vê em meio a um pesadelo, descobriu que o suposto
pesadelo era a realidade. E a realidade, pelo menos a
que ele imaginava como tal, era sonho.
Não haviam sido as crianças famintas de Porto
Alegre, enroladas em cartões nas noites de inverno,
abrigadas do Minuano no vão da Borges de
Medeiros, não, não foram aquelas crianças que o
revoltaram. Frio, ele passara na pampa, a geada lhe
cortara os pés nas manhãs de julho e, em seu
íntimo, alojada em um canto qualquer, ficara
adormecida a idéia de que afinal uma criança
passando frio não é exatamente uma acusação a
Deus ou à sociedade.
Mas um dia vira aquele velho engraxate, já
trêmulo e sem forças para lustrar, debruçar-se na
sarjeta da Borges e beber a água podre que corria
pelo fio da calçada. Sua primeira reação fora,
surpreendentemente, de raiva, teve vontade de
esbofetear o velho, segurá-lo pelo pescoço e erguê-lo,
gritando: “água é de graça, velho relaxado, em
qualquer bar ninguém te negará um copo de água”.
Mas o problema não era a água, boa ou podre. O
que lhe acelerava o coração era ver um ser, não no
começo, mas no crepúsculo da vida — quando tudo
deveria ser paz e preparação para a morte — sem
mais um pingo de dignidade.
As crianças que se aqueciam corpo a corpo na
solidão das ruas batidas pelo minuano ainda tinham
uma chance, chance vaga, é verdade, mas tinham,
desde engraxar sapatos ou trabalhar em qualquer
biscate, até ganhar o seu como ladrão ou assassino,
era irônico chamar tais opções de chance, mas nada
impedia que uma criança, mais dia menos dia,
tivesse um ou mais dias que não fossem só de
humilhação e fome. Mas aquele pobre diabo não
tinha mais esperança alguma. Quando, ao entrar na
Faculdade de Direito de Porto Alegre, um professor o
cumprimentara pela brilhante opção, retrucou
furioso:
— Grande bosta, o Direito.
Pois a lei era em si iníqua, impossível conceber
uma ordenação jurídica que se pretendesse justa e
que ignorasse aqueles pedaços de seres humanos
curvados sobre latas de lixo. Como advogado, se
conseguisse fazer cumprir a lei, estaria fazendo
cumprir a ignomínia. Não. Direito não era o
caminho. O caminho seria outro, se é que existia.
Quando ainda vivia em Livramento, recebera
de Gérson como presente de aniversário aquele
livrinho de Amado, uma denúncia candente da
injustiça pátria e, ao mesmo tempo, anúncio de
tempos novos, de uma sociedade onde não havia
nem crianças encarangadas nas ruas nem velhice
infamante nas cidades. Gérson, o funileiro do qual
os santanenses fugiam como o diabo da cruz, o
homem visto quase como leproso — “não fala com
ele, meu filho, é um comunista” — o velho Gérson
com sua bicicletinha ciando aos pedaços, apóstolo
que não tinha domingo livre.
Estocava jornais, revistas e livros em Rivera e,
nos fins de semana, fazia seu trabalho de formiga.
Mas contrabandeava matéria nobre, o funileiro.
Pouco lhe interessavam as variações do cruzeiro ou
do peso, já que sua mercadoria não tinha preço.
Eram idéias. Com seu sorriso amigo e desdentado
enchia a boca com a fórmula célebre entre gaúchos:
— Idéias não são metais que se fundem.
“O Mundo da Paz”, seu presente de quinze
anos. Baita 1o de abril! — dava-se conta agora. Mas
corno é sempre o último a saber das coisas e,
naqueles dias, o livro o inflamara e lhe dera
esperanças: a utopia era factível!
Por muitas e muitas noites as frases
apaixonadas do baiano lhe embalaram o sono. Não
havia sentimento mais nobre no coração do homem
que o amor pela União Soviética, onde a vida das
crianças decorria como em um paraíso, onde não
havia velhice desabrigada e infeliz, onde os salários
subiam e os preços baixavam, onde se podia
comprar tudo na quantidade em que se desejasse,
onde os camponeses comiam caviar ou lagostas, não
que João soubesse qual gosto teriam caviar e
lagostas, mas devia ser algo muito especial.
Tampouco lhe interessava comer caviar ou lagostas.
Mas saber que naquela sociedade nenhum homem
passava fome, já lhe bastava.
No entanto, o que mais lhe tocara fora aquele
amor e sofrimento do homem soviético, das crianças
soviéticas, em relação a seus irmãos brasileiros.
Jorge Amado contava que criancinhas de uma escola
primária em Moscou choravam ao ouvir como viviam
as crianças no Brasil. E um camponês, em um
kolkoze da distante Sibéria, chorava também ao
saber como viviam os camponeses no Brasil. As
mulheres também choravam.
E aquele ímpeto de transformar não só o
homem, mas também o planeta! O Ob, o Ienessei e o
Lena corriam para o Oceano Glacial Ártico? Pois
aquela anomalia geográfica deveria ser corrigida, as
águas dos rios de nada serviam correndo naquela
direção, quando podiam muito bem irrigar as terras
ávidas de água do Usbequistão e da Ásia Central.
Enquanto os ianques pesquisavam a energia nuclear
para espalhar destruição e morte — “ó, pensava
João, a Santa Madre Rússia jamais pensaria na
bomba atômica” — o novo homem soviético cindia o
átomo para inverter cursos fluviais e espalhar vida.
Era a energia atômica a serviço da vida.
Sem falar daqueles testemunhos colhidos por
Amado, os gestos individuais de heróis só
concebíveis em um mundo novo. O piloto que tivera
seu avião atingido e, sem poder saltar, o jogara
contra um tanque inimigo, servindo a pátria até o
último segundo de sua vida. O outro que, após ter
ambas pernas amputadas, voltara a voar e abatera
ainda onze aviões. Schipachev, o mendigo que se
tornara poeta. Se no Brasil, como reconhecimento de
sua obra, Amado só recebera o cárcere, no mundo
novo recebera um castelo para trabalhar.
Moscou era, decididamente, a nova Jerusalém
para a qual os homens de voa vontade voltavam
suas esperanças. E Stalin, o novo guia, o maior
cientista do mundo, o maior estadista, o maior
general, aquilo que de melhor a humanidade
produzira. Gérson, ao empinar uma birita em fim de
tarde na oficina, recitava com gestos largos aquela
ode de Amado:
Seu nome tira o sono aos imperialistas, amarga
os dias dos senhores feudais. Mas traz o riso à boca
— e o funileiro gargalhava antevendo o dia da
desforra — do negro de Madagascar a quem ele
indica o caminho da liberdade, faz mais firme na
pontaria a mão do soldado da República do Vietnã
em luta contra o colonialismo francês. Seu nome é
grito de águia contra os senhores das fábricas, é doce
gorjeio de pássaro para os trabalhadores das
fábricas. Sua presença está onde quer que o homem
lute contra a opressão e a miséria. Onde quer que se
eleve uma bandeira da liberdade, do socialismo e da
paz, ali está Stalin comandante, guia, mestre, pai.”
Não que Gérson morresse de amores por
Stalin. Mas aquela convicção dos stalinistas como
Amado, de que o Paisinho dos Povos faria explodir
as bases do capitalismo, só aquilo já o deixava feliz.
Muito safado, o funileiro lhe havia remexido fundo.
João passou então a freqüentar o apóstolo da
bicicleta, que não se fazia de rogado em passar-lhe
mais informações. Veio depois “Viagem”, do velho
Graça. Mais cinco gordos volumes dos irmãos Webb.
Mais um relato de viagem de Gide, com a prudente
observação de Gérson:
— Esse aí, não sei não. Parece que é maricón.
Mais pilhas e pilhas de revistas, “China” e
“Unión Sovietica”, onde camponeses aravam suas
terras cantando. E mais outros livros que nada
tinham a ver com o mundo da paz, mas o deixavam
mais revoltado em relação à “sifilização” ocidental e
cristã.
Assim que, por ocasião do XX Congresso,
mesmo Kruschev sendo o autor das denúncias,
ninguém conseguia convencê-lo de que tudo não
passava de calúnias da imprensa podre capitalista.
Uma fé não se derruba da noite para o dia, ainda
mais quando a adotamos ontem. Em última
hipótese, fossem verdadeiras as denúncias, restava-
lhe a defesa: não se faz omelete sem quebrar ovos.
Puro conto de fadas. Custara-lhe sangue e
luta interior chegar a tal conclusão. Isso que se
considerava homem de sorte. Ou talvez mais sorte
tivesse tido Gérson. Morrera sob tortura, mas não
deixara de acreditar no sonho. Suspeitaria Amado
quantos estudantes e operários haviam sido mortos
e torturados em função do livro com que pagou suas
mordomias no Leste? Talvez não, andaria agora
muito preocupado em paparicar um Nobel, como
aliás já o conseguira aquele seu outro compagnon de
route. “Tarde se apaga a luz de seu gabinete” —
dissera Neruda de Stalin. — “O mundo e sua pátria
não lhe dão repouso”.
Enfim, pelo menos isso a Europa
proporcionara àquele gaúcho de Livramento:
acabara o mito. Mas o que os europeus já sabiam
em 50, antes ainda, em 35, os brasileiros ainda
ignoravam, ou fingiam ignorar, em 1950. Daí sua
sensação de corno, de último a saber, e pouco ou
nada saberia se não tivesse mergulhado nas
bibliotecas de Paris. A inteligentsia tupiniquim se
esmerava em esconder documentos sobre a história
de ontem e os europeus que haviam ousado
denunciar em primeira mão os crimes de Stalin
haviam entrado no index proibitorum da imprensa
ocidental. Enquanto ele levava pau por defender
palavras de ordem vindas de Paris, louvando
Moscou, os parisienses cavavam abrigos quais ratos,
para si e para seus cães, com medo do vizinho
russo, do novo regime que não poucos intelectuais
europeus haviam saudado como a esperança da
humanidade.
— Corno, mil vezes corno — se auto-
recriminava. Mas o pior havia passado. Melhor
voltar, reerguer a cabeça, esclarecer os novos
candidatos a corno.
— Mas não fui corno sozinho — consolava-se,
lendo uma edição do “Nouvelles Littéraires” sobre o
centenário de nascimento do assassino. Nomes
ilustres haviam caído no mesmo engodo. O trágico é
que determinadas notícias divulgadas na Europa só
chegavam ao outro lado do Atlântico — se é que
chegavam — dez anos depois.
— Que barbaridade! — resmungou, enquanto
lia e recortava o Nouvelles.
Era um 15 de dezembro, sábado sem luz e
sem graça de 1979. Naquele entardecer fodido de
Paris no inverno, regado por um chuvisco medíocre
que umedecia sapatos e almas, João via mais uma
década escoar-se, sombriamente, como soem escoar-
se as décadas. Isto é, talvez as décadas não se
escoassem assim melancolicamente, a melancolia
estaria nele e não na data. O problema era que
nascer em ano múltiplo de dez tornava mais difícil a
passagem, com a mania que tem o bicho-homem
ante os números exatos. A década de 70 só seria
encerrada no último dia de 80, e não naquele
dezembro. Mas tais nuanças pouco importavam, o
fato era que ali adiante o esperava seu
quadragésimo 1o de abril. Quem iria marcá-lo na
paleta? Karin? Estremecia por dentro ante a
lembrança daqueles dentes lindos...

Em nome do povo brasileiro, eu te saúdo,


Joseph Vissarionovitch Stalin, chefe dos povos
soviéticos, educador de todos os povos do vasto
mundo. Nossos presentes para ti são as greves, as
lutas camponesas, os comícios pela paz, nossa
resistência encarniçada ao imperialismo ianque, o
heroísmo de nossos camaradas em prisão, a
progressão constante e segura do movimento de
massa anti-imperialista e nossa luta difícil e vitoriosa
pela paz. Eis aqui o que podemos te dar, a ti que nos
deste a revolução de Outubro, a edificação do
socialismo, a vitória sobre o fascismo, a marcha ao
comunismo, a ti que aceleraste o curso do tempo e
que fizeste do que nós sonhávamos para o futuro uma
realidade de hoje.
(Jorge Amado, 21 de dezembro de 1949)
E milhares e milhares de irmãos portaram Karl Marx
E milhares e milhares de irmãos portaram Lenine
E Stalin para nós é presente para amanhã
E Stalin dissipa hoje a desgraça
A confiança é o fruto de seu cérebro amoroso
A colheita é razoável tanto ela é perfeita
Graças a ele vivemos sem conhecer outono
O horizonte de Stalin é sempre renascente
Nós vivemos sem dúvidas e mesmo no fundo da
sombra
Nós produzimos a vida e regulamos o futuro
Não há para nós dia sem amanhã
Aurora sem meio-dia de frescor sem calor.
(Paul Eluard, dezembro, 1949)
Quantas centenas e centenas de milhões de
meus camaradas têm pelo marechal Stalin o mesmo
amor lúcido! Quantas centenas e centenas de meus
camaradas sorriem da vaidade e da ignorância
daqueles que criticam este amor lúcido! Lúcido, vocês
ouviram, e isto não quer dizer que o coração esteja aí
para nada, que nós somos — ou queremos ser —
stalinistas à maneira como vocês são
swedenborgianos ou existencialistas, isto não quer
dizer que nós dedicamos à pessoa do marechal Stalin
uma fria admiração. Um amor lúcido, isto quer dizer,
um amor do qual nós nos orgulhamos.
(André Wurmser, 1949)
Existem hoje dois tipos de homens políticos.
Churchill e Jules Moch de um lado, Stalin e Maurice
Thorez do outro. De um lado, a armadilha; de outro, a
clarividência. De um lado, a arte sutil e mentirosa das
combinações falhas; de outro, a justa e larga
consciência do movimento da história. De um lado, o
mau humor de um cão de polícia; de outro, a firmeza
clara e simples dos verdadeiros educadores.
(Jean T. Desanti, 1949)
Dois dias são passados após a morte de Stalin.
Produziu-se uma espécie de torpor. Outra manhã, com
a notícia em mim como uma faca, eu havia chegado a
Gennevilliers, na sala de conferências nacionais do
Partido Comunista, onde todos esperavam, quase
mudos. Cada vez que um me apertava a mão, ele e
eu, fosse Fernand ou François, ou Daniel, nós
tínhamos como que medo dos olhos uns dos outros,
de neles ver as lágrimas que tornariam impossível
conter as nossas.
(Louis Aragon, 1953)
Quantos naquela manhã (a manhã de sua
morte) fomos estas crianças. De repente, despojados,
excessivamente órfãos para compreender, nós
queríamos reencontrar sua voz. Pela primeira vez na
história da humanidade um homem tinha um Estado
de homens livres a conduzir. Marx e Engels haviam
descoberto sua possibilidade e natureza. Lenine o
havia parido. Ele precisava educar a criança. Ele
ensinava aos criadores a criar homens livres.
(Pierre Daix, março, 1953)
Porque recortava aquilo tudo? Não sabia. Só
sabia como era fácil enganar homens livres ou pelo
menos homens que assim se pretendiam. Jogou os
recortes em seu baú de assuntos caninos, memória
nunca é demais preservar.
8. CHEZ KRK
No avião para Belgrado, Cristiano reconheceu
vários rostos de outros eventos, onde há desgraça lá
está um jornalista. Tinha um medo pânico de aviões
e por longa que fosse a viagem não descolava do
assento, salvo para alguma necessidade imperiosa.
Caminhava então com prudência, sentia por dentro
que qualquer movimento seu mais brusco poderia
desestabilizar o aparelho. Quem não tem medo de
avião — dissera um poeta — não tem imaginação.
Mas isto era o que não lhe faltava, só ao imaginar-se
com Krk uma ereção lhe estufava as calças.
Precisava investigar aquilo, não era a primeira
vez que o fato ocorria quando voava. Desconforto
duplo: a ereção provocava uma necessidade de
urinar e para urinar tinha de desatar o cinto e, pior,
caminhar pelo aparelho. Era jornalista e tinha medo
de voar, o que no fundo lhe fazia crer ser homem
dotado de uma coragem extraordinária, já que só
um homem corajoso enfrenta seus medos mais
profundos.
Palavras que consolavam. Mas não lhe
atenuavam a tensão constante, que só o
abandonava com aquela sensação maravilhosa de
rodas tocando a pista. A cada vôo, sua vida passava
em câmara lenta, por curta que fosse a viagem fazia
obsessivamente a si mesmo a pergunta: se cair
agora esta carroça voadora, minha vida terá valido a
pena? Nisto residia, tinha certeza, as bases de seu
medo.
Sem comiseração alguma, que teria todos os
defeitos menos esse, Cristiano Moreira responderia
pela afirmativa. Livros e mulheres, seus prazeres
mais diletos, os tivera em profusão. Amigos, ave
mais rara, que se os contasse nos dedos sobraria
um monte de dedos, também os tinha. Inimigos,
estímulo que precisa todo homem para superar a si
mesmo, os alimentava aos lotes.
Adorava seus inimigos. Os amigos são
perigosos, pensava, por amizade são capazes até de
relevar nossas falhas. O inimigo, não. É fiel,
constante, está sempre a nossos pés buscando a
menor brecha para investir. Todo homem que se
propõe algo, diria, devia cultivar um inimigo dos
bons, desses obcecados que são capazes de ir a
nosso enterro na esperança de constatar pouca
gente. Seu consolo era que, se naquele o avião
explodisse, só os inimigos desta fibra já lhe
garantiam uma generosa multidão acompanhando o
que dele restasse.
Não que os buscasse de propósito. Mas em
uma época dominada por ideologias e religiões, ao
grafar uma palavra todo livre-pensador cria um
séquito de desafetos. Desconfiava inclusive que sua
coluna era mais procurada por estes do que pelo
leitor que o estimava.
Livros. As mulheres, não insistia em conhecê-
las todas. Mas continuavam semivirgens em sua
biblioteca algumas páginas às quais gostaria de um
dia voltar. Garantissem-lhe uma prisão especial no
Brasil, com livre entrada de todo e qualquer livro,
pensaria até mesmo em cometer um desses crimes
sem vítimas, algo que lhe permitisse um ano de
isolamento. Poderia então retomar Proust, que
abandonara em Côté de Guermantes. Concluir
Casanova, que acompanhara até a prisão dos
Chumbos, avançar nas “Mil e Uma Noites”, que
dependesse dele Xerazade havia perdido a cabeça no
centésimo relato. Não que suas histórias o
entediassem, nada disso. Mas jornalista que não
concluiu suas leituras antes de entrar no ofício,
melhor deixar de lado a esperança de um dia chegar
à página final. Pensava descansar na volta da
Iugoslávia, mas logo havia a coroação de Trix em
Amsterdã, mal teria tempo de apanhar roupas
limpas em Paris.
As “Mil e Uma Noites” curiosamente evocavam
o marechal, das cem noites que lera lhe restavam
algumas chispas de poesia: loado sea el hombre que
no tiene semejantes! Ao mesmo tempo lhe evocavam
Krk: loado sea el hombre que te tiene por debajo! Mas
viajava, pelo menos teoricamente, para cobrir Tito,
não Krk. Os últimos dias do marechal o comoviam, a
perspectiva de que o avião caísse não o assustava
tanto quanto o destino destes preciosos utensílios do
Estado, cuja vida era cruelmente espichada pelas
sofisticações da medicina. Sentisse um dia que se
aproximava sua hora, fugiria de cidades e hospitais,
se imaginava sentado sob um umbu olhando o mar
verde da pampa, esperando qual cavalo a visita da
Moira Torta.
Enfim, tinha de tirar o chapéu aos iugoslavos.
A agonia de Tito havia sido relativamente curta se
comparada com a de Franco ou Boumedienne, e
nenhum comunicado de Ljubljana falara em gripe.
Pois quando se noticiava que um homem de Estado
estava com gripe era porque uma metástase já era
senhora de sua carcaça. A propósito, para quando
seria a gripe de Brejnev? Não lhe desagradaria uma
viagem a Moscou.
As hemorróidas de Carter. Ou a Casa Branca
tinha um extraordinário senso de relações públicas,
ou os americanos não eram dados a cultivar certos
mitos. A intervenção cirúrgica fora anunciada ao
mundo, os terminais de telex de todos os países
haviam recebido notícias do ânus presidencial. O
que dotava Carter de uma surpreendente
humanidade, era um ser como os demais, capaz de
ranger os dentes ao sentar, o rabo ardendo com a
dilatação das veias.
Sobre os Alpes o avião cai alguns quilômetros
e Cristiano se agarra instintivamente ao cinto. De
onde viria aquele medo todo? Entrevistara certa vez
um faixa preta em taikwondô, o homem com apenas
um olhar punha a correr dez assaltantes. Mas ao
voar sentia medo qual criança no escuro. Era um
medo absolutamente idiota, sempre que o admitia
publicamente não faltava quem lhe jogasse uma
saraivada de estatísticas, que o automóvel matava
mais, no que Cristiano estava absolutamente de
acordo. Mas o que lhe fazia medo era estar com os
pés longe da terra. Ou melhor, estar no ar. Adorava
viajar de navio, mesmo tendo a consciência de que,
para o homem solitário e desesperado, a travessia do
Atlântico num barco de milhares de toneladas era
risco maior do que varar os Alpes em asa delta.
Lembrava Schneider. De onde saíra aquele militar
que lhe estendera a mão em meio à pior
tempestade?

A mi llegada de navegar recibo la invitación al


diálogo más importante de mi vida, diez días de
reflexión y de repente, las ganas de responder brotan
casi sin sentirlas, creo que esta es la forma más
honesta de responder a un amigo, dejando que corra
la pluma, silenciosamente (en el fondo el diálogo
epistolar lleva siempre el peso de la mudez) y
agolpando las palabras contra la punta de la
lapicera, unas veces ordenadamente, otras veces en
tropel, otras veces perezozamente pero estableciendo
una identidad entre la acción y la decisión de
comunicarse, creo que en esto reside el secreto de la
comunicación, en dos acciones o, para no confundir,
hechos, o capacidades: la capacidad de decisión y la
capacidad de acción.
Ambas están entremezcladas y ambas
requieren el uso de la inteligencia y de la voluntad, si
cualquiera de estas capacidades falta, el silencio se
establece inmediatamente, así creo que debe
comenzar esta respuesta, estableciendo
racionalmente las bases sobre las cuales te escribo y
debes interpretarme, despues podrá venir o no el
toque mágico de artista; la entrega de Moisés a la
humanidad por Miguel Angel puede ser un ejemplo de
lo que te quiero decir, voy a intentarlo, tengo la
decisión de hacerlo y la pluma está en mi mano.
¡Adelante!

Ao receber a carta, não acreditara muito no


que lia, da mesma forma que até hoje se perguntara
se o encontro no Eugenio C fora um fato ou não
passara de um sonho. Tinha sido sua pior viagem, a
estrutura cansada do barco rangia em seu avanço
pelas ondas, mas pelo barco Cristiano não nutria
temores. Tinha medo, isto sim, do Atlântico e de si
mesmo, todas as noites suas águas o convidavam
para o salto. Estava em Lisboa quando soube da
morte de Canário e a impossibilidade de falar-lhe de
suas andanças, a impossibilidade desta vez
definitiva de um diálogo entre homens — desse
diálogo que sempre vamos deixando para amanhã
até o incerto amanhã em que não mais é possível —
tudo aquilo o impelia a pular na noite e no infinito,
ver as últimas luzes do navio se afastando enquanto
o abismo o engolia. Aquele militar tão pouco militar,
uma barriga imensa de civil resvalando das calças,
fora o único a poder dizer-lhe algo. Cristina ao
violão, um sorriso só, cantando canções que lhe
afastavam do espírito as tentações de autodestruir-
se, e de uma vez por todas.
— Las tempestades del oceano no són nada
delante las del alma.
A frase soava a tango argentino, é verdade.
Mas não tinha o tango uma metafísica profunda? As
angústias de um cantor arrabalero — como se
perguntava Sábato — não eram tão legítimas quanto
as de um Kierkegaard?

Creo que Cristiano debe abandonar influencias


y dedicarse a Cristiano, así cesarón sus
preocupaciones y sus angustias, Cristiano debe
apoyarse en Cristiano, el roble ya ha crecido, la fruta
ha madurado, esta resplandece ante el sol, su misión
es exibir su belleza hasta el momento en que
muriendo deje fecunda la semiente, no puedo
entremesclar entre mi pulpa la semilla de otra fruta, a
lo sumo puedo decir que me estoy alimentando con la
misma savia.
Asi como escribo en esta hoja rota, imperfecta,
digo que esta hoja es mia y en ella van mis ideas,
obscuras, insignificantes, ¡¡pero mías!! Ese otro yo
que esta dentro nuestro espiritu se escapa a traves
de la pluma y constitue la respuesta al interrogante
que uno viene se haciendo sobre uno mismo. ¿Quien
soy? Alguien que escribe, alguien que tiene deseos de
trascender de uno mismo, alguien que puede darse el
lujo de grabar para otros su experiencia.
Yo quiero que esto que digo ahora trascienda.
¿Que debo hacer? Continuar escribiendo en paz o no,
en desesperación, en alegria, en abtimiento, en
angustia, en euforia, transmitiendo todos los estados
del alma con la misma y brutal intensidad. Desechar
a esta altura la efectividad del pasionismo y
transformarse en un rio plácido que va entregando
sus aguas al mar. ¿Y por que al mar? Porque allí se
encuentra la desesperación y la placidez, la calma, la
tormenta, el miedo y el valor, es decir, la definición
más humana de la humanidad.

La semilla de otra fruta. Aquela âncora surgira


no momento exato, ou talvez o Eugênio C tivesse
aportado no Rio com um passageiro a menos. Aquele
encontro absurdo lhe insinuava que algum sentido
havia nas viagens e na angústia do carbono vivo.
Perguntava-se onde entraria Krk em sua vida e onde
entrava ele na vida de Krk. Oficialmente, viajava
para cobrir a morte do marechal. Mas, de fato, iria
encontrar-se com Krk. A cobertura jornalística
poderia fazê-la perfeitamente de Paris, era o que
fazia a maioria de seus colegas, mesmo os que
viajavam naquele avião acabariam lendo o Nouvel
Obs ou o times para saber o que de fato acontecia
em Ljubljana, já que das línguas iugoslavas não
falavam bolhufas.
Viajavam para tomar trago, conhecer mais
uma cidade e transmitir a famosa cor local. A partir
da ótica dos jornais europeus, enviariam traduções
de textos à América Latina, os jornais do Rio e São
Paulo reproduziriam aquela ótica européia e, lá
emPorto alegre, um monoglota atroz leria o Estadão
ou o JB e faria “sua” crônica política, sem ter muita
certeza se Tito era búlgaro ou albanês. Era isto que
tornava os latino-americanos culturalmente tão
inseguros — concluía Cristiano — ao analisarem
qualquer acontecimento, pediam socorro a um modo
de pensar europeu.
Mas não pretendia esquentar banco em
Belgrado. Tomaria o primeiro trem rumo a Skopje.
Sem esquinas e, conseqüentemente, sem botecos
nas esquinas, a cidade lembrava Brasília, a mais feia
cidade do mundo. Mas lá vivia a mais linda das
iugoslavas e toda cidade é linda quando nela há
alguém que nos ama. Onde lera isto? Não lembrava
mais, mas fazia sua a frase. Krk lhe traduziria o que
diziam os jornais do país, o que pelo menos o
deixava mais próximo da realidade do que a
imprensa latino-americana.

Es que tenemos de escribir siempre en tensión,


alcoholizados, mutilados, lastimados, enfermos, o
debemos tratar a la humanidad en forma humana,
donde todo tiende siempre al equilibrio, donde
siempre alguien encuentra su otro yo, la paz allí
donde está la guerra, el amor donde está la lujuria, la
sobriedad donde se debate la ebriedad, esta es tu
responsabilidad, el roble ha crecido, ha comenzado a
ver desde su altura el empequeñecimiento de este
mundo que creyó haber descubierto y las sorpresas
se suceden, hocanadas de aire puro le hacen por
primera vez abandonar la atmosfera viciada de los
bajo níveles y encuentra los otros robles que se
levantan, lejanos, casí perdidos en la bruma, pero
que los siente hermanos suyos, esta es la carta de
Cristiano, el primer golpe de viento en altura lo
confunde porque porque en el fondo quiere sostenerse
en lo que hoy son solo estacas, benditas sean en
valor relativo para ti, los libros que leíste y escribiste
son ya estacas.
Yo aspiro a ser una de ellas porque creo que mi
mayor mérito es haber llegado tarde y haber gritado
al roble haciendo mover sus hojas, eso es suficiente,
los hombres toman conciencia de su grandeza
siempre comparando, no valor[andose, así debe ser,
quizá esta carta te resulte de un nível inferior al que
imaginaste, estoy seguro y esa será mi mayor
felicidad!!
La fruta resplandece ante el sol, yo la
contemplo como una bella obra de la creación, sé que
guarda la semilla del mañana. Yo he ayudado a que
madure, soy el viento, la ráfaga que llegado traída
por el Eugenio C y que se ha transformado en una
debil brisa que se mantiene constante sobre ti para
quitarte el polvo que pueda cubrir tu perfección. Soy
viento, estaca, agua, pero no sol...

A aeromoça pede que os passageiras


mantenham os cintos atados, aviso redundante para
Cristiano. Cretinas — pensava — têm um jeitão
profissional, a nave pode estar vindo abaixo e elas
sempre sorrindo, mulher alguma conseguiria
dissimular melhor do que elas. Estava tenso, um
desespero qualquer lhe invadia o corpo. Krk que se
preparasse, iria inundá-la com aquela eletricidade
que lhe eriçava pêlos e cabelos.
Conhecera Krk na Sorbonne. Ela intuíra algo,
perguntara já no primeiro dia: “Tu escreves?”. Tento
escrever, respondera, e agora lembrava que fora esta
a mesma resposta que dera ao militar no convés do
Eugenio C. Depois, aqueles quiproquós e confusões
de duas pessoas que mal dominam uma terceira
língua, queremos ser sutis e a precariedade de
vocabulário acaba obrigando a menos sutilezas e
mais concretude, o que afinal fora muito bom.
Lembrava de uma gaúcha, distante no tempo
e no espaço, ela sofrera uma traqueotomia e não
conseguia enunciar palavra alguma, fora este o
período mais idílico de seus dias de Porto Alegre.
Mas a medicina tinha suas performances, uma dia
ela acabou tapando aquele buraquinho na garganta
e readquiriu a fonação, com o dom da palavra foi
ungida pela estupidez. Começara a discutir questões
femininas e duas semanas de voz haviam sido
suficientes para destruir uma relação de quase um
ano. A palavra complica, pensava Cristiano.

¿Que respondo a lo que preguntas? ¡No bajes


de nível! Wn ti, a esta altura en que puedes llamar el
mundo y el responderte debes aceptar naturalmente
la paz y la guerra, el sí y el no, es decir, ¡el hombre!
Usa todo que viviste, usa a mí, usa a todos. Sácales
su mensaje y transforma todo esto en algo tuyo, y ese
es el tema de esta reflexión, escondida, dura, pero
magnífica; aí como el concierto se juega sobre un
tema en sus diversos movimientos, he tratado otra
vez de retrotaerte a tí mismo, de ponerte en crisis, de
hacerte ver que debes abandonar todo para gritar: ¿si
yo no me he destruído, porque Ustedes?
¿Que hacer con esta humanidad? Creo que
nuestras tarea es inventar nuevos métodos de
comunicación, provocar una revolución intelectual que
vaya más allá de escribir y soñar, sino que hable
enseñando, esta es tu obra, en el fondo creo que
recién hoy podias recibir el mensage que preparé
para tí hace meses...

Os prepecnicos lábios de Krk. A aeromoça


anunciava os procedimentos de aterrissagem e
Cristiano já antegozava os dentes da iugoslava, ela
tinha um jeitinho muito seu de secar os dentes ao
ar, descobrira isto na ponte Saint Michel.
Atravessavam rumo a Chatelet e justo em cima da
ponte Krk começara a roçar-se nele como cadela no
cio, me abraça e me lambe, ele a abraçou e lambeu-
lhe o pescoço, via seus dentes cada vez mais secos e
ao fundo Notre Dame, Krk estremece toda, coxas
coladas às suas e surrura “J’y viens”. Vai ser de
orgasmo fácil assim no inferno — pensara Cristiano
— e mesmo sentindo as rodas do avião tocarem a
pista não conseguia controlar sua ereção. Apelou a
um velho macete, apanhou o Monde e cobriu seu
sexo, não ficava bem a um correspondente
internacional descer no país em momento tão grave,
com tal disposição — como diria? — de espírito.
Em Belgrado, antes de tomar o trem, deu um
giro pela Knez Mihajlova e degustou sua primeira
Šljivovica na terra do marechal. O aeroporto da
cidade abominável para onde ia estava interditado, o
que lhe poupava bons quartos de hora de tortura.
Alguns colegas haviam descido em Zagreb para
rumar a Ljubljana, como se daquele hospital
pudesse filtrar algo mais além dos comunicados de
imprensa cuja redação dependia de Belgrado.
Macaco velho, Cristiano considerava que a melhor
cobertura nem sempre é feita no foco da notícia. Não
lhe desagradaria uma subida até Ljubljana, em
outras andanças descobrira um convento
cistercense em Sticna, lá se encharcara em Krk e
nos mais travosos vinhos. E depois há quem diga
que os homens viajam para comer. Ele, se quisesse
ser honesto consigo mesmo, viajava para beber e, no
caso, rumo a duas magníficas filas de dentes.
Krk o esperava na estação, o prédio
semidestruído pela última guerra e assim
conservado para a memória das gentes. Sem
palavras, tomaram às pressas o rumo do
apartamento.
Sentia-se extremamente bem, uma alegria
inusitada lhe invadia as células. Fugira dos fatos e
se refugiara no cálido regaço de Krk. Tinha uma
estranha sensibilidade, a de sentir na carne as
surpresas — boas ou más — de sua vida. Lembrava
Lisboa 75, todo seu lado esquerdo tremia, com a
canhota mal conseguia segurar o bagacinho, só
conseguira controlar-se quando soube o que de fato
havia ocorrido. Vivia agora sensação contrária, uma
felicidade animal, vegetal quase, lhe percorria os
neurônios, o que não era exatamente normal,
mesmo com Krk a seu lado. Algo estava por
acontecer e até lá pretendia entregar-se àquela
euforia somática.
— Estás excitado como nunca — se lambia
Krk.
Tinha de convir que sim. Uma prosopopéia
qualquer o dominava, era como se um outro, que
ainda mal conhecia, lhe tomasse a palavra e falasse
por sua boca. Pela primeira vez não o invadia aquela
tensão intrínseca ao ofício, a de perder o registro dos
fatos. Tomara intimamente a decisão de trabalhar
com a mesma irresponsabilidade de seus colegas
brasileiros, se Krk não lhe deixasse tempo para
algumas laudas acabaria traduzindo e fundindo o
noticiário francês. Mais algumas piadas cá e lá — e
os iugoslavos eram pródigos na matéria — uma
consulta ao Guide Bleu ou Michelin et voilà: dava
um resumo da história do país e não faltaria, no
Brasil, quem o imaginasse um especialista em
assuntos iugoslavos.
— Acabaste por fazer concessões — objetava
Krk —. Estás cedendo à irresponsabilidade do
jornalista?
Sim e não. Correspondentes internacionais
não eram oniscientes, a própria dinâmica da
profissão os obrigava à superficialidade. Fossem
citar todas as fontes, a bibliografia tomaria mais
colunas do que o artigo. Estava em um pequeno país
com dois alfabetos, três religiões, seis línguas e não
seria em uma semana que iria aprender sua
história. Preferia entregar-se ao sabor de álcoois e
vinhos e com Krk degustou boas safras de Grk e
Zilavka, sem falar de um antigo sonho, a Uzicka
Šljivovica, desde Porto Alegre sonhara um degustar
aquela cachacinha. Fora em “O Silêncio”, assistido
no Ópera, que vira a garrafinha, e se perguntava
como é que Bergman havia deixado passar aquele
rótulo em seu filme. “Um dia irei a Estocolmo para
beber uma Uzicka Šljivovica”, prometera a si mesmo.
Ao chegar lá, descobrira que a bebida era iugoslava.
Ciente de suas preferências em matéria de cultura
cinematográfica, Krk lhe reservara uma Šljivovica
prepecnica.
— Vocês parecem abutres. Onde há cadáver,
lá estão em revoadas — comentou Krk.
— Il faut nuancer, ma chère, só onde há
cadáveres ilustres. Cadáveres anônimos só nos
interessam quando em pilhas.
De repente percebia existir algo de necrófilo
em seu ofício. Há poucos dias, enterrara Sartre em
Paris. Enquanto o homem vivia ninguém lembrara
— nem ele mesmo, tinha de convir — de entrevistá-
lo. Vaselina lhe pedira, isto sim, uma entrevista com
o Falcão, em Roma. Mas quem era Falcão —
perguntara ao telefone — era algum pensador,
terrorista, estadista? Para ouvir Vaselina esbravejar
do outro lado do oceano: “vai te foder, Cristiano,
piada via satélite custa caro e não tem graça”. Mas
mal tivera Sartre a idéia de morrer e de repente, em
Porto Alegre, as imprensa lembrava que ele havia
existido. Agora esperava, impaciente, a passagem de
Tito para correr ao posto mais próximo de telex e
enviar sua matéria, a rigor já tinha tudo escrito,
daria ao marechal a honra de apor-lhe o ponto final.
A morte transfigura os grandes, fossem heróis
ou assassinos, cadáver de estadista que tivesse feito
milhões de outros cadáveres sempre interessaria
mais ao jornalista do que o cadáver de quem não
tivesse feito nenhum outro, naquela sinistra bolsa
de valores as carcaças de um Hitler ou Stalin ou
Mao sempre estariam melhor cotadas que a de um
Dag Hammarskjöld, por exemplo. Já pensara não
poucas vezes, para apressar sua demissão, em
cobrir o nascimento de um bebê qualquer em uma
maternidade e correr ao telex:
PARIS URGENTE — HOJE NASCEU ALGUÉM. NÃO SE SABE
BEM. MAS NASCEU. E PASSA BEM. AINDA NÃO MATOU
NINGUÉM. MAIS NADA A DIZER SE TEM. E SE ISTO
COMO NOTÍCIA NÃO VALE UM VINTÉM, VASELINA QUE A
ENFIE ONDE ENTENDER BEM.
Não, não tinha por missão específica a
cobertura de funerais de ilustres carcaças. Mas
estes, caso ocorressem, se sobrepunham a qualquer
outro acontecimento. Leitores pedem mortes —
repetia o secretário Vaselina, com ares de arcano —
depois tudo o mais é notícia, mas só depois. Tinha
razão, Krk. Mas tomara intimamente a decisão de
não permitir que nada empanasse sua euforia
celular. Puxou-a contra si e deixou-se molhar pela
prepecnica que lhe molhava os lábios. Mais um
terremotozinho, de débil intensidade, fez tremer
aquela terra de frágil equilíbrio sísmico.

Usava Krk como um espelho. Conseguia abrir-


se, junto a ela, com facilidade, entregava-se sem
reservas, se mostrava como jamais se mostrara a
nenhum amigo ou conhecido. Seria certamente a
distância o que os aproximava, já que sempre se
sentia distante das pessoas que lhe eram próximas.
— Tuas tardes no Dragon? — perguntava Krk.
Le Dragon. Há tempos não freqüentava aquele
cinema do Saint Germain. Promiscuidade excessiva.
Três ou quatro orgasmos por tarde, sempre no
escuro, até o dia em que se deu conta de que
preferia talvez jamais ver o rosto dos parceiros. Krk
não o entendia. Não conseguia concebê-lo
homossexual.
— Tens razão, ma chérie. Sou apenas um ser
sexual. Acontece que sexo não tem sexo.
As feministas, ou melhor, os católicos, sim,
certamente os católicos, já que as feministas eram
umas desmioladas que se deixavam utilizar por uma
paranóia milenar, os católicos haviam colocado um
impasse intransponível entre o homem e a mulher.
Se o homem tomava a iniciativa, era machão,
falocrata, porco-chauvinista. Se não tomava a
iniciativa, não conseguia mulher alguma. Tinha
desagradáveis lembranças de não poucas noites em
Paris. Colegas e amigas o procuravam, conversavam
até o amanhecer em seu apartamento. Se esboçava
um gesto para tocá-las, lá vinha a objeção: machão
latino. Se não esboçava, mais dia menos dia surgia a
dúvida: será que ele gosta de mulher? Às vezes não
sabia se devia chorar ou rir. “Tenho vontade de fazer
amor contigo”, dissera uma permanente do PCF.
Tentara abraçá-la entusiasmado, a menina prometia
festa das boas, para ser repelido: “não me toca, eu
me sinto violentada”. Ah, vão pra puta que as pariu!
— Toda mulher quer ser conquistada aos
poucos — defendia-se Krk.
— Mas eu não tenho tempo para teatro —
defendia-se Cristiano.
Fim de semana seguinte, teria de estar em
Amsterdã, coroamento da rainha, pelo menos não
era um cadáver que o chamava. Fim do mês, João
Paulo estaria em Paris, já nem queria pensar na
massa de pobres de espírito que iriam cercar o
polaco. E o pior é que teria de mandar para o Brasil
um texto edificante, na base do Sua Santidade e
calhordices que tais. Precisava também de tempo
para si mesmo. Sem falar que não conseguia
conviver com uma só mulher. Preferia então pagar
profissionais. Ou confraternizar com homens, eram
mais objetivos e menos metafísicos. Além disso, não
queria conquistar ninguém.
— Tu não entendes as mulheres.
Se para isso precisasse jogar o eterno jogo de
caçador e caça, preferias morrer sem entendê-las do
que participar daquela comédia. O que o atraíra em
Krk — e não fosse isso não estaria ali — fora seu
gesto espontâneo, sua decisão sem hesitações,
numa distante, e tão próxima, noite em Paris. Suas
orgias em cinemas e saunas às vezes lhe
provocavam uma certa náusea, não física, mas
mesmo assim náusea, ou talvez piedade, sentia
profunda pena por aqueles seres que se ajoelhavam
nas brumas como que em cachos diante de um
pênis. Recordava certas colônias de minhocas de
seus dias de guri, anelídeos violáceos que só podiam
locomover-se uns por cima dos outros. Os de cima,
após rastejar sobre os que ficavam em baixo, os
ultrapassavam e faziam ponte para que de baixo
continuassem a marcha. Rumo a quê? Mas naquelas
colônias havia um instinto, um objetivo preciso, ou
jamais andariam em cachos.
— São vocês que me empurram aos homens.
— Eu não — excluiu-se Krk, enroscando-se
em Cristiano.
O Vardar rolava em silêncio rumo ao Egeu,
cortando em dois a cidade silente e sem graça, a
noite era fresca e imóvel, tensão alguma no ar
confirmava as manchetes alarmistas da imprensa
européia, “existirá uma Iugoslávia depois de Tito?”
ou talvez tensão houvesse, mas lá nos centros
nervosos do poder, de qualquer forma não chegava a
invadir as quatro paredes daquele apartamentinho,
atapetado de pequenos objetos comprados em Roma,
Paris, Londres. Para uma mulher solteira em um
país socialista, era uma conquista invejável, no
carinho de Krk pelos souvenirs que a envolviam
sentia-se que aquele diminuto território ela o
defenderia com a vida se preciso fosse, era o seu
espaço, área vital, onde podia isolar-se ou não,
entregar-se à sensualidade que incendiava seu corpo
frágil e esguio, frágil mas furioso quando excitado.
Naquele território livre, cercado por países inimigos,
Cristiano divagava, semibêbado, sobre sua
concepção de sociedade sadia.
Sonhava — e recitava seu sonho — com uma
sociedade onde as visitas, ao estender as mãos aos
anfitriões, não lhes apertassem as mãos, mas
acariciassem os sexos. À guisa de saudação, uma
apalpadela nos genitais. Antes mesmo do aperitivo,
ou à guisa de, uma cópula rápida entre visitantes e
visitados, o que tornaria a conversa mais amena e
isenta de tensões. Antes das despedidas, mais uma
confraternização erótica, mais curtida desta vez. As
vistas serias mais freqüentes, mais calorosa a
amizade, os crimes sexuais inexistiriam, como
também os ciúmes, as mentiras entre os cônjuges, a
pornografia, o comércio sexual, as neuroses e a
psicanálise.
— Isso não existe — atalhou Krk, com ar de
quem repreende uma criança.
— Mas existiu. Ou deve ter existido. Ouves o
Vardar?
— E daí?
— É só seguir o rio, a jusante. Alguns
quilômetros e vais cair no país onde os homens
viviam mais ou menos assim, antes que o
cristianismo entristecesse a Europa.
Antes que ela objetasse, como fazia menção
de, ajuntou:
— E a América Latina também.
— Reduzes tudo a sexo?
Não. Pensasse apenas em sexo, não teria
enfrentado os horrores de uma viagem aérea. Sexo
jamais lhe faltara. Mas quase sempre pago, e
quando gratuito escondia, em geral, segundas ou
piores intenções. Quando uma colega ou conhecida
oferecia o calor daquela preciosa concha entre as
pernas, via de regra cobrava, ou tentava cobrar, mil
vezes mais caro do que uma profissional.
— Não. Só penso em sexo quando não estou
exercitando o meu.
— E quando vais parar de me chamar de Krk?
— Provavelmente nunca.
Era fascinado por palavras longínquas,
amontoados de consoantes sem vogais para suavizá-
las. E não só ele. Lembrava as noitadas nos bares de
Porto Alegre, quando ele, João e Dalmácio
perturbavam os críticos de cinema, já que dos filmes
só colhiam minúcias, detalhes imperceptíveis,
nomes de bebidas, cidades, ilhas, desde que
impronunciáveis. De Krk, ouvira falar na Suécia,
serias uma ilha do Leste europeu. Quando a situou
na Iugoslávia, só poderia chamar de Krk a primeira
iugoslava a conhecer.
Voltou a Paris no domingo, 27 de abril. O
marechal continuava lutando contra a morte. Talvez
estivesse morrendo quando Cristiano aterrissava em
Orly, quem sabe exalaria seu último suspiro quando
a reportagem estivesse sendo composta em Porto
Alegre. Mas não escrevera sobre morte, deixava isto
para as agências de notícias. Traçara um perfil do
homem sobre o qual Stalin dissera bastar um
piparote para jogá-lo ao Adriático, da nação pequena
mas cheia de brios que resistia à barbárie instalada
mais ao Leste. E concluía com seus botões que,
excetuando França e Inglaterra, nutria profundo
carinho pelos pequenos países.
O avião chegou com atraso, só conseguiu táxi
já passando de meia-noite. Como sempre, ao voltar
de viagens, uma inquietação difusa o corroía por
dentro, imaginava encontrar o edifício em chamas, o
apartamento arrombado, os arquivos destruídos.
Não era homem ameaçado, mas jamais conseguira
libertar-se daquela síndrome.

Estava na ducha quando tilintou o telefone.


Duas da madrugada, a chamada só poderia ser do
Brasil. Era. Do Secretário Vaselina.
— Tudo bem, Cristiano?
— Tudo.
— Aqui são nove da noite, aí deve ser uma da
madrugada, não?
Com água e sabão pingando na moquete,
intuiu que saberia agora o que pressentira chez Krk.
— Não, meu caro. Estamos agora em horário
de verão. São duas e cinco.
Conversa pra boi dormir. Que queria
Vaselina?
— Escuta, Cristiano, estou telefonando para te
dizer que a empresa dispensa teus serviços.
Ah! Gratíssimo, meu anjo, mas não era
necessário esse intróito todo a respeito de fuso
horário, tampouco precisavas falar assim
impessoalmente em empresa, não é de hoje que te
chamam Vaselina, o que enraba sem doer, só arde
depois.
Mais cedo ou mais tarde aquilo teria de
acontecer, Porto Alegre se tornara pequena demais
para suas provocações. Vaselina não precisaria mais
jogar suas matérias ao cesto e quanto ao material
sobre Tito, Cristiano mesmo lhe pouparia o trabalho,
havia greve de lixeiros em Paris e mais laudas menos
laudas pouco influiriam naquela imensa poubelle.
— Obrigado, Vaselina. Um abraço.
— Abraço pra ti também, Cristiano. E bom
dia.
Enfim, homem livre. Talvez pudesse agora
concluir as “Mil e Uma Noites”, roubar ao rei
Schrahriar a cabeça de Xerazade. Pôs no toca-fita
um cassete, Makedonski Narodni Pesni i Ora, e
terminou a ducha embalado pelas canções com
cheiro de terra daquele povo estranho, nada
entendia do que ouvia, mas sentia gente de campo
dançando, comento e bebendo, cantando a vida.
Vontade de beijar Vaselina, pensava
certamente que o estava enrabando, em verdade o
libertava de um vício que o destruía mais que o
álcool. Há séculos se propunha a largar o ofício,
afinal muitas outras maneiras existiam de ganhar a
vida, o fato é que aquela frase corrente nas redações
era de uma verdade profunda: jornalismo é cachaça.
E os donos dos jornais sabiam disso. Tentando
forçar um desfecho, nos últimos despachos passara
a hostilizar deliberadamente a filosofia do jornal e
não errara o alvo de suas ironias, disto era prova
aquela chamada noturna. Entre irritado pela
deselegância do gesto de Vaselina e entusiasmado
pela perspectiva de vida nova, sem viagens
inesperadas nem a obrigação de análises feitas nas
coxas de fatos do momento, tentou dormir.
Mas não dormiu.
7. AU BORD’ELLE
Se ser livre era bom, bem melhor era ser livre
em Paris. João Geraldo conseguira uma bolsa
através do Partido, em paga tinha de fazer palestras
em sindicatos e universidades, mais a vaga
obrigação de defender uma tese em torno a um tema
que preferia não mexer, prisões políticas no Brasil.
Um pudor íntimo, paralelo ao sexual, o fazia calar
quando lhe perguntavam sobre seus dias de cárcere.
Tortura era algo tão ou mais íntimo que o ato
sexual, que dizia respeito apenas a duas pessoas: ele
e o torturador. Conhecia brasileiros que adoravam
exibir suas chagas aos espantados olhos europeus,
mas ele não conseguia e se não podia escapar ao
tema, falava impessoalmente, como se jamais tivesse
visto de perto os horrores que descrevia.
A vida era uma caixinha de surpresas,
sonhara um dia ir a Paris e fora parar na prisão.
Quando já perdera as esperanças de dali sair vivo,
saíra para Paris. Nos primeiros meses, fora palestras
em uma cidade e outra, dedicou-se ao singelo e
fundamental prazer de ser livre. Liberdade era como
saúde, só a sentimos quando a perdemos.
Degustava Paris com moderação, tinha medo de um
choque anafilático psíquico, consumia a cidade com
as precauções de alguém que, após uma longa greve
de fome, é convidado para um banquete. Mas se
havia algo que custava a morrer no bicho-homem
eram as ilusões. Cristiano não lhe confessara ter
necessitado de vários anos para entender seus dias
de Suécia? “Vais assistir” — dizia — “e muito em
breve, a um fenômeno curioso. Esses exilados,
espalhados pela Europa toda, que dizem só voltar ao
Brasil de metralha em punho, mal surja uma anistia
vão voltar chorando. E sem metralha alguma.”
Cristiano devia saber do que falava.
João se entregara a Paris com a inexperiência
e sofreguidão de um seminarista que entra em um
bordel, a mulher que lhe abre a porta é a eleita, seja
anão ou corcunda. Nada mais lento que o
desencanto. Via apenas o que queria ver, não via o
que não queria ver mas via. Percebera este recurso
de defesa só após um bom ano de Paris, e
acidentalmente.

ELLE TUE LE MEURTRIER DE SON


CHIEN
Un automobiliste qui avait accidentellement
heurté un chien a été tué d’un coup de fusil par la
propriétaire de l’animal, à Châteauroux (Indre).
Czselaw Dymarkowski, 52 ans, regagnait son
domicile en voiture, après une partie de péche,
lorsqu’il heurta un jeune chien-loup appartenant à
as voisine. Celle-ci, Françoise Montel, 42 ans, est
aussitôt allée chercher une carabine et a abattu M.
Dymarkowski à bout portant.
Numa roda de gaúchos, alguém manifestava
seu espanto por ter visto um casalzinho se
gratificando mutuamente nos corredores do metrô, o
que o fez atalhar mecanicamente: “isso não é nada,
tche!, já vi um negrão barranqueando uma estátua”.
Mal havia concluído a frase, pensou em voltar atrás,
certamente havia sido sonho, mesmo assim
continuou. Fora durante suas primeiras semanas de
Paris, quando se dedicava a explorar a cidade.
Tomara o La Patache para até Montmartre pelas
eclusas do San Martin. A manhã era gloriosa, Paris
recém despertava, além dele o eautobus
transportava algum turistas sonolentos fotografando
o Pont des Arts, Notre Dame, Conciergerie quando,
após a ilha Saint Louis, pouco antes de entrarem no
San Martin, na pracinha frente a Jussieu, qualquer
coisa se movia onde não devia existir movimento
algum, uma escultura modernosa e cheia de curvas
pareceu adquirir vida, o conjunto era todo cor de
ébano e parte do ébano, também curva, parecia
mover-se e contorcer-se e acariciar, os turistas todos
olhavam perplexos numa tentativa de entender o
que estava acontecendo naquele setor do universo
quando, após um bom minuto de estupefação o
episódio adquiriu — ou pareceu adquirir — sentido:
um negro nu, lança em riste, confundia-se em
formas e cor fazendo amor com o bronze. C’est drôle!
— disse a guia, e mais não disse.
O fato era nada menos que insólito, mas
insólito mesmo era não o ter guardado na memória,
ou melhor, tê-lo colocado em um canto escuro das
lembranças para só um ano depois nele tropeçar.
Decididamente não fora sonho, o tíquete do La
Patache, esquecido dentro de um Larousse,
continuava lá como muda testemunha do evento,
era algo assim como aquela reação típica de
burocrata francês ao deparar-se com algo não
encartável em seu espírito lógico: “je n’ai jamais vu
ça!” e se não havia visto é porque certamente não
existia no universo embora o estivesse vendo. Seu
cérebro não conseguira classificar o fato e o jogara
na pilha de lembranças sem registro, mal uma delas
voltara à tona a pilha toda passava a adquirir um
outro significado.
Havia um outro negro, bem mais recente e
mais real, tão real a ponto de deixar uma mancha de
sangue em seu sobretudo. Acontecera no 21, o
ônibus mais latino de toda Paris, o corredor estava
repleto de pessoas em pé, um africano imenso
tentava aproximar-se da saída, João apenas ouviu
uma frase mal-humorada de uma velhota, “ces
noirs!” e ato contínuo um ruído surdo de soco e uma
madame voando rumo ao fundo do corredor, o negro
ainda a perseguiu e a brindou com dois violentos
murros na nuca, a velhota lhe caiu nos braços, a
boca sangrando e tremendo de medo, em meio ao
silêncio indiferente e mesmo cúmplice dos demais
passageiros, estrangeiros em sua maioria. Olhos
injetados de sangue, o negrão desceu na parada
seguinte, berrando qualquer coisa numa língua
inidentificável. Teria suas razões. Como também
teria aquele outro, na fila da padaria, de novo um
confronto velhota versus negrão, madame lhe
tomara a frente na fila e não contente passara a
xingá-lo, “ces sales naoirs”. O africano, sem poder
expressar-se em francês, tremia de ódio, prisioneiro
de seu idioma, as mãos foram-se armando em bote e
saltaram ao frágil pescoço de madame, salva pela
gritaria toda em torno. O negro, assustado talvez
com o próprio gesto, largou-a no chão como um saco
de papel. Tais cenas, jamais as imaginara em Paris,
pátria de homens livres, e sua memória parecia
querer escondê-las em seus mais recônditos
escaninhos, como para não perturbar suas palestras
quando apresentava o Brasil como país onde o negro
era visto como raça inferior.

CARESSEZ-LES
DANS
LE SENS DU POIL
Tous les chiens éprouvent le besoin de se sentir
aimés, les chats plus discrets sont aussi avides
de caresses.
Tudo era um complexo jogo de impressões que
se superpunham em um negativo, resultando uma
imagem final confusa e imprecisa,
maniqueisticamente equacionada em dois termos: de
um lado havia um sistema que o aprisionara e
humilhara, ele identificava o sistema com o país e
Brasil era sinônimo de obscurantismo, ditadura,
barbárie, racismo, corrupção e de quantas mais
ignomínias houvesse. De outro lado havia o país que
o acolhera com carinho, pelo menos com uma
atenção que jamais tivera em seu próprio país, a
França surgira em sua trajetória como mãe amorosa
que pensa as chagas de todos os torturados e ficava
difícil, senão impossível, imputar defeitos àquela
Madona impoluta. Era humano, ora bolas!
Mas os fatos se acumulavam como bostas nas
ruas e o conduziam a dolorosas constatações que o
assaltavam nas ocasiões mais inesperadas.
Catherine. Fora sua enfermeira espiritual, poderia
dizer assim, e guia nos primeiros meses, Cristiano
podia ter as restrições que quisesse em relação à
moça, mas ele gostava dela e fim de papo. Mas... Os
fatos se mantinham à espreita. Catherine militava
na universidade e no bairro, vendia l’Humanité nas
esquinas e era solidária com os oprimidos do mundo
todo, já cortara cana em Cuba, ambos combatiam o
mesmo combate.
A dúvida surgiu quando, num fim de noite no
Select, a permanente começou a falar de problemas
de espaço, esses malditos studios parisienses,
quando têm banheiro se o sabão cai é preciso abrir a
porta para apanhá-lo, e descobrira — numa
iluminação — que o corredor contíguo a seu studio
era cego, se derrubasse uma parede e o anexasse a
seu território em nada seria lesado o condomínio. E
o anexou, para indignação do síndico e demais
moradores do prédio, preocupados com a
possibilidade de que o arranjo virasse moda, já que
em todos os andares havia idêntico canto cego de
corredor. Recebeu ordem formal de recuar sua
parede à posição original.

650 BÊTES SAUVÉES


POUR NOËL
Ni le mauvais temps ni les emboutellaiges n’ont
empêché les Parisiens de se rendre en masse au
Noël des bêtes abandonnées à la porte de
Versailles. 450 chiens et 200 chats ont ainsi
trouvé un maître.
— Aí eu tive uma idéia — contava Catherine
vitoriosa — insisti em minha necessidade de espaço,
que se tivesse de recuar a parede teria de vender o
studio, aliás um certo M. Mohamed já havia
manifestado interesse em comprá-lo...
O que revelou ser um santo remédio: ante a
perspectiva de um árabe habitar o prédio, em vez da
parede recuou o condomínio. Seria o Brasil um
modelo de país racista? Ganas não lhe faltavam de
dizer a Catherine: “mas isso é racismo!” Mas não
dizia. Dizê-lo significava renunciar à mulher em
bloco, o que não estava dentro de seus projetos, o
fato é que ela não era em nada original, nem
constituía segredo em Paris que a presença de um
árabe desvalorizava um imóvel, que mais não fosse
lá estava a Goutte d’Or para confirmá-lo. Mas suas
palestras começavam a ser pontilhadas por
reticências, sim, havia racismo no Brasil, mas —
sempre havia um mas — não em nível tão agudo
como em outros países, por exemplo... os Estados
Unidos, afinal não podia, não conseguia, dispor-se a
ferir suscetibilidades dos companheiros que o
recebiam.
Mas o alvo era outro e, lentamente, em seu
espírito, um novo movimento começava a tomar
corpo, as acusações ao Brasil passavam a ser
entremeadas de “se bem que”, “não podemos
generalizar”, “nem todos os militares serão
corruptos”, como se a distância do país o fizesse
considerá-lo com menos passionalismo.
Simultaneamente, um outro movimento, paralelo e
de repulsa, passava a exigir seu espaço e poderia ser
resumido numa equação tipo “Paris é uma festa,
mas...” Em suma, a maldita conjunçãozinha
alternativa infestara sua alma como erva daninha e
não via como podá-la.

Droit
de visite...
du chien
ANGERS — Un juge des affaires matrimoniales
du tribunal d’Angers s’est donné quinze jours de
réflexion avant d’accorder un droit de visite dans une
procédure de divorce: il ne s’agit pas, comme c’est le
cas habituellement, d’un ou de plusieurs enfants,
mais d’un chien.
Si l’entente ne règne plus dans le couple, le
mari et femme étaient egalement attachés à l’animal.
Une demande officielle de droit de visites a donc été
introduite par celui des époux qui n’a pas la garde du
chien.

O fato é que, de repente, começou a abominar


— gratuitamente — as pálidas velhotas parisienses e
a vibrar com os pequenos pontos marcados pelos
estrangeiros humilhados e ofendidos, uma de suas
últimas alegrias lhe seria propiciada na agência de
Correios da rue Cujas, a velharada estéril se
aglomerava junto a um guichê para receber a
pensão devida a seu ócio quando uma africana,
enorme e parruda, saiu da fila para apanhar um
formulário qualquer. As velhotas abomináveis não a
deixaram voltar a seu lugar e a crioula, com uma
nonchalance admirável, com um gesto de cotovelos
empurrou a fila toda rumo ao fundo. João, que
acabara de entrar na agência, não conseguiu
impedir que lhe escapasse, alto e bom som, um
entusiasta “bravo!”.
E os fatos teimavam em acumular-se. Morava
também no 13o, Cristiano era o único gaúcho que
ele conhecia em Paris. Como não gostava de
chimarrear sozinho, buscara um studio nas
proximidades de Montsouris. A vidinha de província
da Amiral Mouchez constituía seu dia-a-dia,
conseguia sentir-se quase como em Livramento,
dissessem o que bem entendessem os amantes do
Quartier Latin, ele preferia aquele universo onde
dizia bom dia ao carteira, cavaqueava com o
barbeiro, discutia o custo de vida com os feirantes
da Tolbiac, tudo não passava de um relacionamento
superficial, mas a verdade é que lhe propiciavam
uma agradável sensação de estar chez soi. Só não
conseguia entrar na mesma faixa de sintonia do
açougueiro, o homem o olhava com certo
estranhamento, logo ele que constituía um elemento
essencial na vida de João Geraldo, pois se dava ao
luxo, uma vez por semana, de comprar um mísero
quilo de carne para um simulacro de churrasco
entre amigos, M. Dupont sempre o olhava incrédulo
até o dia em que, fugindo àquele modo de ser
parisiense que veta em princípio qualquer pergunta
pessoal, o açougueiro não se conteve e quis saber:
Monsieur tem um hotel? Não entendeu o porquê da
pergunta, talvez tivesse um sósia, isto sim. Mas a
resposta à sua confusão não tardaria em se
apresentar.
Pouco ou nenhum interesse suscitavam suas
palestras quando falava do que conhecia,
agricultura e pecuária gaúchas. Muito menos
quando falava do que conhecia mais ou menos,
parque industrial paulista, a construção de Brasília
ou Itaipu. Estudantes e operários, argelinos ou
franceses, gregos ou troianos, todos queriam
informações sobre dois temas que ele ignorava
completamente: Nordeste e favelas, ou ainda sobre a
Amazônia. Era como se Brasil só despertasse
interesse pelo seu lado avesso. Fazer fama na
França era fácil, bastava falar de fome.
Havia ainda outro ponto de interesse, mas
sobre esse se recusava a falar, embora o conhecesse
mais do que ninguém: seus dias de cárcere. Era
humano — ironizava João — eles só gostam do que
não conhecem. Isso ele entendia. O que não
entendia era a mensagem que Catherine tentava,
meio sem jeito, comunicar-lhe nas últimas semanas.
Não que suas palestras desagradassem, nada disso,
mas seria preferível falar mais de Nordeste e menos
de Sul, o francês entendia melhor miséria no Brasil
do que fartura no Brasil, mas o problema era outro e
devia ser muito delicado, pois a permanente
gaguejara não poucas vezes antes de explodir:
— Le churrasco! — e pronunciou a palavra
como quem pronuncia uma maldição, para espanto
de João, que se considerava um churrasqueiro
emérito.
Assava uma picanha como poucos, seu drama
em Paris era o corte diferente do boi, gostava de
brindar os companheiros que o hospedavam durante
suas palestras com um churrasco de lei, era a forma
de retribuir a hospitalidade francesa. Vegetariana
Catherine não era, nada disso, já haviam percorrido
não poucos restaurantes juntos, ela militava pela
extinção da fome no mundo, mas nem por isso
dispensava o culto à boa mesa e fora inclusive sua
guide culinária pelo emaranhado da cozinha
francesa. Não havia gostado do churrasco?

Il ne supportait plus l’absence de son maître

Sultan, le chien fidèle,


s’est jeté du 14e étage
Marc BRABONSKI
Sultan n’a pas supporté l’absence de son
maître: il a préféré mourir. Sultan, c’est un magnifique
colley, un berger d’Ecosse de 5 ans à la silhouette
élégante, robe noire à longs poils bruns sur collerette
blanche. Dimanche, vers 18 heures, ce chien de 35 kg
s’est jeté dans le vide du 14e étage de la tour
Mahnes, à Hagondange (Moselle).
Dimanche, on jouait aux cartes avec les gosses
dans la salle à manger. Sultan était allongé sur le
canapé, dans la pièce à côté. “Soudain, on a
entendu comme um cri etouffé. Je me suis levé.
J’ai cherché Sultan. La fenêtre était grande
ouverte: l’animal a dû escalader son rebord
avant de sauter...”
Le chien c’est l’animal le plus proche de
l’homme. Comme lui, il est en proie au cafard, il
n’échappe pas à la déprime. Sous le ciel gris
d’Hagondange, cette commune ouvrière entre Metz et
Thionville, dans la tristesse des “cités-clapiers”,
pourquoi Sultan le chien n’aurat-il envie de mourir?
Cette solution n’est pas réservée qu’aux hommes.
— Oh que si, mon cheri! — respondeu com
uma entonação que ele já sabia anteceder uma
censura —. Mas tu estás aqui para contar histórias
tristes.
Começava a entender. Dele esperavam relatos
de miséria, multidões ameaçadas pela fome,
nordestinos saqueando supermercados, retirantes,
greves, prisões, torturas, temas que ele jamais
evitara, o fasto é que o churrasco, apresentado como
um prato típico do sul do Brasil, se podia
perfeitamente agradar a um pálato cartesiano, não
era digerido com a mesma facilidade por um cérebro
cartesiano.
— C’est un scandale! — chiava Catherine,
mais parecia Marchais xingando Giscard.
Entendia agora o espanto do açougueiro,
acostumado a fornecer a cada cliente um bifinho
transparente: pedir um quilo de carne era incidir no
je n’ai jamais vu ça, e portanto ininteligível. Se o
Brasil era um país de famintos, como assegurava a
imprensa européia, feria os postulados da Razão,
fosse Pura ou dialética, admitir que lá se comesse
mais fartamente do que no país dos gastrônomos.
Catherine não descria da existência do churrasco,
mas sua existência palpável, tangível — e pior —
degustável, a conduzia a uma aporia, exigia-lhe
desconfortável remanejamento de conceitos. Mas
alegava razões de outra ordem:
— É preciso comover o burguês — insistia —
senão perdemos apoio e contribuições. Não
pretendes que um burguês se comova com um país
onde se come esse tal de churrasco.
Que não oferecesse mais churrascos, pelo
menos após as palestras.
— Ainda te levo a um espeto corrido em Porto
Alegre — resmungou João.
Queria saber o que era espeto corrido.
— Esquece. Uma espécie de, como direi, uma
espécie de amuse-gueule de chez nous.

Uganda em agonia, titulava a capa daquele


suplemento dominical. Sob a foto de um homem
acocorado, o filho entre as pernas, ambos mais
parecendo esqueletos animados com um fio de vida
que propriamente seres humanos. “Este homem e
seu filho — dizia um telegrama da AP, impresso
também na capa — que tem o peito coberto de
chagas, estão sentados dentro da missão católica
Kaabong no nordeste de Uganda. A missão está em
falta de alimentos e os membros da tribo
Karamajong passam fome”. Nas páginas internas do
suplemento, fotos ainda mais dramáticas, crianças
sugando seios sem nenhum leite, caídos como
orelhas de elefante, crianças subnutridas e
descarnadas, mais pareciam fetos fora do útero,
adolescentes em treinamento militar com arcos,
flechas e fuzis de pau, crianças doentes e cheias de
feridas esperando em fila, tigelas na mão, uma ração
de sopa. “A fome — dizia uma legenda — faz todos
os dias centenas de mortos. Hoje, quatro milhões de
pessoas estão ameaçadas. A desordem e a
insegurança política tornam a situação ainda mais
dramática”. A reportagem era aberta com as
declarações de uma religiosa italiana: “Não se
consegue caminhar cinqüenta metros sem tropeçar
em um cadáver”.

João lia o artigo com uma cava desconfiança,


Catherine lhe passara o jornal para dar-lhe uma
idéia do que se esperava de suas palestras. Parecia
que francês gostava mais de falar de fome do que de
comer. Ou talvez as digressões sobre a fome —
alheia, bem entendido — tivessem por função excitar
o apetite. A hipótese não deixava de ter seu
fundamento pois logo adiante, no mesmo
suplemento, na coluna dedicada semanalmente ao
bem-estar físico e psicológico dos cães, João Geraldo
leu uma inteligente approche da culinária canina.

O artigo era ilustrado por um cardápio do


transatlântico “France” e considerava que, sendo o
cão um carnívoro e por isso mesmo guardando uma
nítida preferência pela carne, mesmo assim havia
adquirido o gosto de toda espécie de alimentos.
Falava dos numerosos estudos dos fabricantes de
patês para situar as opções gastronômicas dos cães.
Segundo suas sondagens, o fígado vinha em
primeiro lugar, seguido de carne de frango e das
achuras. A pesquisa concluíra ainda que o cachorro
detesta a monotonia culinária, daí a grande
variedade de patês e croquetes postas no mercado,
sendo que três quartos da cachorrada se alimentava
de conservas, manifestando nítida preferência por
determinadas marcas. A articulista aconselhava
ainda alternar o regime do cão com alimentos
frescos, para não submeter o animalzinho a uma
nutrição a partir de conservas.
Em defesa da cozinha francesa, considerava
ser ridículo compor pequenos pratos elaborados ao
estilo dos menus gastronômicos dos restaurantes
caninos em moda em Nova York ou Tóquio. As
partes menos nobres do boi, de sabor mais intenso
que o contrafilé, restos de arroz ou de massas,
cenouras, feijões verdes, tudo isso temperado com
um pouco de alho ou cebola, poderiam satisfazer até
mesmo ao pálato de um Kador, o cão-filósofo das
bandes dessinées francesas. Alertava os donos de
cães para um perigo inerente a um bom regime
alimentar, a obesidade. E os advertia para não se
preocuparem excessivamente se o cãozinho se
jogava com fúria (assim como as criancinhas do
Terceiro Mundo? — se perguntou João?) em restos
de carne ligeiramente putrefata encontrados em
uma lata de lixo, afinal isto era normal, o cachorro
não deveria ser considerado um depravado e além
disso não corria maiores riscos de contaminação de
parasitas. Certos pesquisadores haviam chegado à
conclusão de que os cães buscavam no lixo vitamina
B, encontradiças nesses restos de carne. Que
também não fosse motivo de preocupação ao dono
se seu cãozinho bebesse com delícia águas
estagnadas (como abandonados seres do Terceiro
Mundo — lembrou João), mas que sempre lhe
deixassem à disposição um prato de água fresca e
limpa — o que, segundo pesquisadores suecos, teria
para o animal um sabor particular, desconhecido
dos humanos. E se o cãozinho fosse dado a uma
cerveja ou a um branco seco — atenção! — não era
pequeno o número de cães alcoólatras vitimados
pela cirrose hepática.
Certos alimentos deveriam ser banidos dos
regimes: batatas, totalmente indigestas, os
farináceos, o pão, a charcutaria, os peixes crus, os
molhos. O açúcar, ao contrário do que se pensava —
continuava a articulista — só agradava aos cães
urbanos, atraídos mais pelo susucre-récompense que
propriamente por seu gosto. Já o cão camponês, este
era raramente atraído por tal alimento, aliás
desaconselhado aos obesos e diabéticos. Um bom
osso de terneiro fazia trabalhar os dentes e
constituía um excelente derivativo para o cão com
problemas de solidão. Concluindo, a moça alertava
para certos problemas psicológicos do cão urbano: o
cachorro que se tornava abúlico ou se recusava a
comer, sofria de uma sede inextinguível e
manifestava certas anomalias de comportamento —
moía madeiras, comia panos ou mesmo os
excrementos de seus congêneres — por meio de tal
comportamento compensaria o tédio, a solidão e a
frustração sexual à qual era condenado.

COLLISION EN CHAÎNE sur l’autoroute du


Sud. Trois voitures y sont impliquées. De celle du
millieu, la plus endommagée, sort le pilote qui se
précipite aux places arrière où se trouve sa femme et
leur petit Teckel: “Rita, Rita, tu n’as rien ma chérie?”
La question angoissée ne s’adresse pas à l’épouse
mais à l’animal. Et, tout en caressant la toutoune
adorée qu’il a pris dans ses bras, il précise, sans la
moindre gêne à toux ceux qui l’entourent: “Elle vaut
200.000 anciens francs et elle n’est pas assurée...
elle!”

João lia perplexo aquele suplemento literário


do “Matin”. Era demais para um gaúcho,
considerando ainda que gostava de cachorros, tivera
não poucos em sua adolescência. Agora começava a
entender melhor aquele estranho relacionamento de
Catherine e Balthazar, estranho pelo menos para
ele, que pouco a pouco descobria os parâmetros
afetivos da sociedade que desde o berço o fascinara.
Mas o que via em Paris ultrapassava sua
capacidade imaginativa. Manifestara um dia suas
observações a Stoyan e Maria, dois bons amigos da
Costa Rica, e ambos o aconselharam a nada falar
sobre o assunto em sua volta, os latinos que não
conheciam a Europa jamais acreditariam no que
explanava. Quanto aos franceses, estes se
perguntariam perplexos: et pour quoi pas?
Um de seus objetivos na França, a elaboração
de uma tese, bem logo se revelara inviável. Mal
começara suas pesquisas, chegara a algumas
conclusões que o afastaram definitivamente da
defesa de qualquer tese:
1 — tese igual a crime ecológico. Derruba-se
milhares de árvores para a publicação de
baboseiras, o thèsard faz uma síntese destas e
sacrifica outras mais para publicar suas próprias
besteiras.
2 — submeter-se a um júri parisiense que dirá
se é aceitável ou não o que um latino diz sobre a
América Latina, mais que humilhação era complexo
de inferioridade cultural.
3 — a exigência de um método não passava de
um recurso editorial para desencalhar livros que,
sem a cumplicidade de professores amigos dos
autores, seriam irremediavelmente condenados ao
pilon. “Pas de posterité sans un chouchou à la
Sorbonne”.
E, em vez de eruditas análises em torno a um
tema, João Geraldo resumiu-se a colecionar recortes
que, juntos, revelavam uma França que entronizara
o cão bem acima do ser humano. Seu dossiê em
torno aos cães talvez nada dissesse a um europeu,
mas para um latino constituía uma obra-prima
surrealista. Às vezes, não fosse estar lendo o Monde,
se julgaria vítima de alucinação ou trote. Mas era o
Monde, ele o tinha nas mãos, não estava sonhando e
lia uma reportagem de página inteira sobre uma
psicanalista de cães, uma francesa com seis anos de
especialização na Inglaterra — onde a psicanálise
canina está um século à frente em relação à França
— falavas dos traumas que poderiam acometer os
animaizinhos. Um dos graves problemas do cão
parisiense era a crise de identidade, de tanto andar
entre humanos o cão acabava esquecendo que era
um cão, assim — dizia a especialista — era bom que
de vez em quando ele saísse com seus semelhantes.
Um outro problema, e este dos mais graves, era o
fato de que, sendo o cão muito sensível, seus
problemas psíquicos muitas vezes não decorriam de
seu próprio psiquismo, mas dos problemas vividos
pelos proprietários. Se havia atritos no casal, estes
eram imediatamente intuídos pelo cão, de modo que
a psicanalista se via forçada a sugerir ao casal uma
boa análise, pelo menos em nome da saúde psíquica
do cão.
Era demais para um latino.

Droit de visite
à son chien
Un époux en instance de divorce a obtenu
vendredi du juge des affaires matrimoniales du
tribunal de Créteil (Val-de-Marne), un droit de visite
pour son caniche tandis que sa femme se voyait
confier la garde de l’animal.
Le couple ne s’entendait que sur deux points: la
rupture et l’envie de voir régulièrement le petit animal.
Le magistrat, après avoir officiellement constaté qu’il
y avait convergence de vues de la part du mari et de
la femme à propos de l’animal, a donné au mari le
droit de rendre visite à son chien à raison de deux
week-ends par mois et de le garder pendant une
partie des grandes vacances.

Passou depois a colecionar livros em torno ao


cão, se bem que colecionar era modo de dizer, se
fosse juntar a bibliografia disponível não teria
dinheiro sequer para transportar os livros ao Brasil.
Não colecionava propriamente, apenas adquiria os
mais buñuelescos, como aquele “Guide du Chien en
Vacances”, mapeando a rede hoteleira destinada aos
cães, com hotéis divididos em um, dois e três ossos,
sendo que nesta última categoria os cuscos eram
postos à mesa com guardanapos e servidos, na
sobremesa, com crêpes au Grand Marnier. Sem falar
no “Recettes pour Chiens et Chats”, best-seller que
em seu prefácio oferecia às donas-de-casa a
alternativa de, em vez de utilizar enlatados, cozinhar
para o prazer de seus fiéis companheiros. O livro
dava uma série de receitas à base de carnes e
peixes, mais manteigas caninas, para animais
carnívoros ou vegetarianos, mais bebidas e molhos,
tudo aquilo como entrada para depois sugerir pratos
de resistência, onde se previa também um regime
sem ossos, mais bolos e doces, mais cosméticos e
remédios, onde se especificava desde pastas
dentifrícias com mel e óleos de massagem pós-
banho.

ET VIVE LA FRANCE!

LE CHRIST EST
MORT AUSSI POUR
LES CHIENS
Un livre sobre et pénétrant sur un thème trop
souvent traité avec une sensiblerie debridée et
superficielle. Il arrive que l’on écrive sur l’animal pour
le situer par rapport à l’homme, mais il est assez rare
que les chrétiens dépassent le stade de la poésie
franciscaine pour atteindre à une sorte de théologie
de la nature animée.
Laissons de côté les efforts menés actuellement
par une ligue internationale pour aboutir à
l’élaboration d’une charte des droits de l’animal:
l’ouvrage de Michel Damien déborde de toutes parts
cette tentative. Il se situe sur un plan spécifiquement
religieux et c’est ce qui fait son originalité.
La solidarité de l’homme avec l’animal n’est
pas seulement biologique, naturelle, elle est
ontologique, transcendantale, évangélique. Le Christ
est mort aussi pour les chiens. L’Eglise catholique est
malheuresement absente de ce débat. Les animaux
n’ont reçu aucun statut de sa part. Et pourtant, si
l’animal n’a pas la notion de Dieu il a en revanche
celle de l’homme qui est à l’image de Dieu. D’ailleurs,
les animaux nous ont précédés sur la Terre et nous en
sommes, d’une manière ou de l’autre, tributaires.
“Il nous attendent sur le chemin du
Christ”. Ils sont notre prochain. Leur souffrance
mystérieuse est une “participation aux
Béatitudes. Il y a un Evangile de l’animal, qui
lui aussi meurt dans les bras de Dieu”. L’animal
a ceci de commun avec le Christ qu’il meurt pour le
monde et que son sacrifice est indispensable à
l’équilibre de ce monde.
L’auteur n’a pas la naïveté de certains
végétariens. Le sort de l’animal est attaché à un
immense et nécessaire holocauste. La Bible affirme
que les animaux seront livrés entre les mains de
l’homme, qui les tuera, comme il l’a fait pour le Christ.
L’Arche de Noé est l’image du navire (l’Eglise) où nous
sommes tous embarqués.
Bref, l’animal est inseré dans un mouvement
religieux universel qui est une montée vers Dieu. Un
manuscript biblique copte — apocryphe — relate que
le Christ a pris la défense d’un animal de trait frappé
jusqu’au sang et qu’il a maudit ceux qui le frappaient.
Michel Damien conclut: “le temps de
l’excommunication de la nature est passé. Nous
sommes dans une ère où l’oecumenisme devient
planétaire. L’unité des vivants se réalise avec le
Christ”.
* L’ANIMAL, L’HOMME ET DIEU, de Michel
Damien. Editions du Cerf, 216p., 45 F.

A decepção de João Geraldo, em verdade, não


se relacionava com a cidade, muito menos com os
cães. Claro que o status canino o irritava e
confundia, mas o problema era mais dos franceses
que seu. Era maduro suficiente para saber que país
algum é absolutamente inferno ou paraíso. Sua
decepção tinha raízes lá em Porto Alegre, o que, de
um modo ou outro, implicava Paris, já que como em
toda capital brasileira seus intelectuais continuavam
dançando ao ritmo dos prêt-à-pensers importados da
Gália. Sua decepção, no fundo, era uma dura
constatação de seu próprio fracasso, ou melhor, de
seus erros. Um homem, se honesto, sempre tinha
tempo de reerguer-se. Mas lhe custava sangue
admitir o vazio de seu passado.
Fora torturado então por nada? Verdade que
não o haviam testado ao extremo, seu organismo
frágil o havia preservado do pior, já em 68 eram
conhecidos na Europa os porões da ditadura e os
militares não queriam mais cadáveres, pelo menos
não os queriam expostos à curiosidade pública.
Apesar dos suplícios e humilhações não chegou
àquele extremo limite em que entregaria sua própria
mãe. Mas foi duro e ainda hoje se perguntava, em
meio aos pesadelos que o acometiam, como havia
resistido e permanecido silente.
Porque homem algum conseguia manter a
dignidade ante a tortura. Havia os que pouco
ligavam à dor por mais intensa que fosse, desde o
primeiro gesto haviam-se dispostos à morte e a
aceitavam como o preço da revolta. Dor física é o de
menos, pensava João, homem que aceita a morte
não recusa a dor. Mas bastaria que o torturador
ameaçasse valor mais alto que sua doentia carcaça,
pusessem à sua frente a mãe ou o pai, um amigo ou
amiga querida, sem hesitar ele diria tudo o que lhe
pediam e mais um pouco.
A burguesia que havia financiado a luta
continuava tomando cafezinho na Rua da Praia,
intocável, bebericando um scotch à beira de suas
piscinas em Ipanema e Assunção, escutando Chico
Buarque e Neruda enquanto degustava castanhas,
azeitonas e queijinhos. No pau-de-arara haviam
entrado os estudantes que um dia acreditaram em
um ideal maior e principalmente operários e filhos
de operários. Pois filho de burguês, pelo menos de
início, sempre tivera padrinho para salvá-lo da
polícia política, como se naquela entre burgueses
pelo poder o grande crime fosse, não a aspiração ao
poder, mas o fato de um filho de operário ter
conseguido furar as barreiras da universidade.
Ao evocar os “líderes” que, entra-general-sai-
general-de-Brasília permaneciam incólumes,
degustando um cafezinho no Rian e lendo as
crônicas da Deusa Shiva — outro pulha, passava
dinheiro aos militantes e usufruía as delícias do
sistema — ao evocar estes senhores que
continuavam, lá do outro lado do oceano, jogando
jovens aos funcionários do poder para satisfazer
suas ambições, lembrava os poemas de Silva Rillo,
poeta gaúcho demais, que por tão gaúcho tinha
audiência mínima nos salões da capital. Por muitos
dias lhe minou o cérebro, numa dessas evocações
repetitivas de música que não sai da cabeça, a saga
de um seu xará, o João da Gaita:
Lá um dia percebeu
para o seu entendimento
de índio meio bagual,
que o que chamavam “ideal”
era apenas, bem pensando,
ambição pura de mando
dos chefões da capital,
daqueles que concitando
a gauchada ao combate
ficavam tomando mate
peleando só por jornal.
Peleando só por jornal... Não fosse o mate, e o
Silva Rillo, lá no distante Nhú-Porã, teria definido
com maestria os círculos parisienses.
— Cidade assassina — se repetia.
Porque as palavras de ordem vinham de lá, lá
se haviam formado os intelectuais que o haviam
levado à aposta. Não foram eles que o haviam
amarrado ao pau-de-arara, é verdade, mas o que lhe
revoltava o estômago era saber que os mentores do
assalto ao poder continuavam usufruindo suas
delícias. Se não detinham fisicamente o poder,
continuavam enchendo a pança com as migalhas da
classe dirigente. Em Paris também se haviam
educado os khmers vermelhos, em Paris se abrigara
Khomeiny, o aiatolá fanático de Qom.
Nos dias em que tentara inutilmente escapar à
polícia, fora abrigado por Gérson, funileiro
anarquista que o iniciara em teorias revolucionárias
e dele recebera uma profunda lição de humanismo,
bem mais marcante do que qualquer discussão
sobre luta de classes. O funileiro era um desses
homens sem pátria, sempre lutando
quixotescamente por algo, e fora um dia consertar
uma geladeira na casa de seus pais. Ao ver seus
livros espalhados pela sala, livros a duras penas
amealhados em viagens a Santa Maria e Porto
Alegre, Montevidéu ou Buenos Aires, foi dizendo: “o
senhor tem uma bela biblioteca”. João discordava,
nem podia falar em biblioteca, seriam apenas uns
trezentos volumes, mas aqueles trezentos os havia
lido e sublinhado, eram livros que o haviam
transformado e disse a Gérson que aquilo, afinal de
contas, não podia ser considerado uma biblioteca.
— Não me refiro à quantidade — protestara o
franzino Gérson — falei de qualidade.
Conteve sua surpresa e, tentando não parecer
erudito, perguntou-lhe se era chegado a livros.
— Só leio os clássicos — respondera Gérson.
Nos dias que antecederam sua prisão, quando
tentava chegar a Paris via a fronteira sempre aberta
de Livramento/Rivera, ao sentir-se perseguido não
buscou nenhum amigo, seria gesto suicida.
Lembrou-se do anônimo funileiro e foi buscá-lo em
sua oficina em Livramento, com ele estaria
protegido, duvidava que os serviços de informação
tivessem fichas do Gérson. O operário o acolheu com
uma advertência:
— Te escondo hoje porque és perseguido. Se
amanhã estiveres no poder, vou esconder os que
fogem de ti.
Não conseguira entender a áspera advertência
de Gérson, mas não tinha tempo para discutir. Seus
dois rápidos anos de França pareciam agora
esclarecer a frase do funileiro. Uma coisa era o
revolucionário lutando contra o poder, outra o
revolucionário instalado no poder. Havia uma
distância profunda entre a mítica França defensora
dos mais nobres ideais e a França real, avara e
aguerrida defensora das mais vis necessidades. Os
intelectuais franceses defendiam o socialismo na
Ásia, União soviética, América Latina, jamais na
França. Abriam o tarro quando Pinochet precisava
fazer uma escala técnica numa ilhota francesa
qualquer, pediam boicote à Copa do Mundo porque
Videla era o presidente do país-sede. Mas Dassault
vendia Mirages para Videla e Pinochet e, ao
considerar as centenas de milhares de horas de
trabalho que a indústria bélica significava para um
país com problemas crônicos de desemprego, João
Geraldo então entendia porque sindicato algum
protestava contra tais vendas, afinal o bem-estar do
cidadão francês dependia em boa parte de relações
comerciais estáveis com tiranetes do Terceiro
Mundo. Ridicularizavam em seus jornais o general-
presidente brasileiro que declarava gostar mais do
cheiro de cavalos que do cheiro de povo, chamavam
o próximo general-candidato de dauphin, no que não
ia impropriedade alguma.
Mas quando Chadli Bendjeid era “eleito” às
pressas, seu nome sequer constando das cédulas
impressas, enquanto Boumedienne agonizava,
naquelas circunstâncias a grande imprensa
parisiense não falava em ditadura, muito menos em
farsas eleitorais, já que o contencioso franco-
argelino era uma chaga ainda aberta. Se os regimes
do assim chamado Cone Sul constituíam, ipso facto,
ditaduras, a casta Argélia parecia viver o auge da
democracia. Os universitários franceses faziam
estudos profundos sobre a figura do ditador latino-
americano, tanto que as duas palavras passaram a
andar sempre juntas. Mas João jamais vira estudos
sobre ditadores russos, árabes ou argelinos.
Falava-se em anistia no Brasil. Enquanto
esperava os dias de voltar, João carregava seu
desconforto pelas ruas de Paris, desviando-se das
bostas de cães e discursando mentalmente.
Perguntava-se:
— Por que Paris nos irrita tanto?
Era como se descobrisse um aleijão
imperdoável em uma mulher que julgara perfeita.
Mas a culpa não era de Paris. Percebia agora que a
França que o fascinara era a França de Arleti, Piaf,
Jean Gabin, Mistinguette. Ou ainda a França de
Sue, Balzac, Rabelais. Chegara tarde. Havia
desembarcado no país de Sartre e das lutas
ideológicas. E dos cães.

Il tue son
fils, son chien
et se suicide
Technicien, domicilié à Bondy (Seine-Saint-
Denis), Bernard Wullus (42 ans) a tué, mardi, son fils
Marc, âgé de cinq ans, et son chien, avant de se
donner la mort à Saint André-en-Morvan (Nièvre). Il a
également mis le feu à as maison.
Dans un message adressé au juge
d’instruction, M. Wultus indique qu’il était “incapable
de vivre après un second divorce” et reproche à la
justice “de ne pas l’avoir compris”. Dimanche soir
dans la forêt de Senlis, il avait déjà tenté de tuer son
épouse et l’ami de celle-ci, en tirant plusieurs coups
de carabine contre leur voiture, sans les atteindre.

Chez Lipp, os deuses do Acaso colocam


Cristiano ao lado de mais um — entre tantos —
parisienses que a falar com seu próximo preferia
falar com seus botões. Segundo uma tese de João
Geraldo, o parisiense, ao falar sozinho, não falava
exatamente consigo próprio, mas com seu cão. Como
nem sempre podia andar com o animal, continuava
a falar com ele mesmo em sua ausência. Mas aquele
francês parecia querer sair de si mesmo, há muito o
olhava como que esperando o bom momento de
abordá-lo.
— Perdão, o senhor permite que eu
interrompa meu monólogo? — ousou finalmente o
rapaz.
— Mas claro, meu jovem, você é dono de seu
monólog, nem precisava pedir.
O francês queria saber se Cristiano não era o
diretor de “Apocalipse Now”. Era ator, tinha
ambições cinematográficas e Cristiano (só agora o
jornalista dava-se conta disto) parecia-se fisicamente
com Coppola.
— Desolé, jeune homme, não sou o Coppola,
tampouco concebi ainda meu apocalipse.
Mas de onde viria então, já que não era o
Coppola? — quer saber o conversador solitário. E
convida Cristiano a um diálogo. Confessa que não
sabia se estava ali ou lá, que discutia consigo
mesmo para saber onde estaria, e o pior é que
estava se confundindo, não conseguia concluir se
estava ali — o que era evidente — mas interiormente
se sentia lá. De onde vinha Cristiano? América
Latina?
— Ah! Meu sonho é a América Latina, quero
um dia conhecer esse país.
Cristiano, a irritação vagamente tomando
corpo em seu íntimo, esclarece que a América Latina
não é exatamente um país, há mais diferenças entre
Quinto e Montevidéu do que sonha sua vã
bebedeira, mas ao ator isto não importa, ele quer ser
ator na América Latina, faria qualquer coisa para
viver lá. Cristiano então informa que a América
Latina é um país muito rico, cujos cidadãos vivem
em tal fausto que podem dar-se ao luxo de dedicar-
se exclusivamente às artes.
— Atores, temos para dar e vender. O que
precisamos é de mão-de-obra, lá não temos árabes
para erguer nos ombros nossa economia.
— Não interessa — insiste o ator — faço
qualquer coisa para viver naquele país.
Cristiano insiste que apesar do alto nível de
vida dos latino-americanos, lá-bas se vive em plena
selva, os homens rodeados por índios e cobras.
— Cobras? Eu já ouvira falar...
— Algumas com mais de vinte metros.
Em sua última tentativa de desencorajá-lo,
Cristiano fala de São Paulo, a maior cidade da
América Latina, onde os paulistas convivem
perigosamente com os ofídios.
— Você já ouviu falar do Bois de Butantã?
Não? Pois é. Um Perigo. Naquele bosque você não dá
um passo sem pisar em boas e cascavéis.
Mas o homem não desiste. Quer saber se a
carta de estada é muito difícil de ser obtida naquele
país.
— Nada disso, mon gars, chez nous todo
mundo é bem-vindo. O que nos tem causado não
poucas dores de cabeça. Se os índios tivessem uma
rígida política de imigração, se exigissem visto de
entrada e meios de manutenção a portugueses e
espanhóis, bem outra seria nossa história.
Apesar das cobras, apesar dos índios —
adoram matar os brancos com sarabatanas
embebidas em curare, sabia? — o solitário cliente do
Lipp continuava insistindo em ser ator na América
Latina.
— E os bares de lá, como é que são?
— Tranqüilos — responde Cristiano —. Pelo
menos não abrigam tantos chatos.
O francês volta a seu monólogo, enquanto
Cristiano se pergunta que imagens teria reforçado
em sua mente. Imagens... A um homem
medianamente ilustrado não mais era permissível,
na era do cinema e da televisão, certas concepções
primárias de outros continentes. Et pourtant... Saïd,
economista egípcio, lhe perguntara um dia se no
Brasil se costumava comer cérebros de sábios.
Surpreso, Cristiano apressou-se em responder que
não. Os sábios, os militares simplesmente os
expulsavam, aliás a Europa tinha uma grande dívida
para com os militares latino-americanos: graças a
estes, haviam tomado contato com a mais pujante
literatura do século, trazida pelos escritores
exilados. Sem falar nos cientistas e técnicos que
agora enriqueciam as universidades e empresas
européias, sem que estas gastassem um vintém na
formação destes profissionais. “Não, meu caro Saïd,
os sábios, pelo menos por enquanto, apenas os
expulsamos, não me consta que já se comece a
comer seus cérebros”.
Tudo não passara de um equívoco. Dada a
escassez de sons vocálicos do árabe, ao falar francês
Saïd não fazia maiores distinções entre sage e singe.
Queria saber se na América Latina se comia
cérebros de macacos. Mas se um parisiense
imaginava que América Latina era um país, pouca
era a distância em conceber seus habitantes
comendo cérebros de sábios. Aliás, haviam chegado
perto. Lembrava um programa dominical da TF3,
ouvira os primeiros acordes das Bacchianas e
interrompera o trabalho para ver o que acontecia no
vídeo. Ao final da interpretação, em gordos títulos,
viu:

LES BACCHANALES
No 5
Brasil: Pelê, cafê, sambá, mulatá, Riô, butebol,
macumbá, donc, bacchanales. Seria insólito, para o
apresentador parisiense, conceber que um brasileiro
conhecesse Bach na primeira metade do século. Sem
falar em certos intelectuais da Sorbonne, que
quando viam em um romance a figura do “coroné”
nordestino, pensavam logo tratar-se de um autor
que atacava as Forças Armadas.
Imagens... Mas os brasileiros — refletia —
também competiam firme neste campeonato.
Lembrava a história da turista carioca que desceu
no metrô Bastille e não conseguia encontrar a
Bastilha, para o espanto de uma florista.
— Mais nous l’avons tombée, Madame, depuis
belle lurette!
Os franceses têm uma sensibilidade
extraordinária para o cinema, pensava furioso
Cristiano, lotam as salas mal entra filme inglês em
cartaz. Decidira ver “La Vie de Brian”, se algo o
interessava entre as centenas de filmes que Paris lhe
oferecia era precisamente o dos Monty Python e
mais nenhum e a cada cinema se deparava com filas
imensas. Tentou o UGC Odeon, pela multidão intuiu
que não conseguiria lugar. Baixou ao metrô, correu
ao UGC Opera, a caixa anunciava complet. Tentou o
Montparnasse Bienvenu, nada feito, e naquela
altura não conseguiria pegar uma última sessão.
Optou por uma esticada até o Select.
Raramente ia ao cinema, não por não gostar,
sem falar que como jornalista não pagava entrada.
Mas abominava uma instituição nacional, a
ouvreuse, tinha vontade de cuspir naquela mão
súplice que lhe pedia uma moedinha depois de
conduzi-lo à sala, mesmo com as luzes acesas, como
se o tomassem por cego. Pagaria o dobro da entrada,
desde que não tivesse de pagar um só centavo
àquele ser sem dignidade alguma. Poderia recusar-
se. Mas seria insultado de volta, e esta não era a
melhor disposição de ânimo para assistir um filme.
Sem falar na mania infame das caixas, só vendiam
entrada cinco minutos antes da sessão, caísse neve
ou chovesse canivetes o espectador tinha de esperar
em meio à lama e à intempérie, uma velhota
tricotando e olhando o vácuo no guichê podia
vender-lhe o bilhete mas não vendia, impossível
entender de onde viria tal hábito, certamente
reivindicação do Sindicat des Vieilles Gouinnes
Tricoteuses.
O dia era 19 de abril, como esquecer aquele
sábado? No Select e no La Coupole o ambiente era
agitado, sentia-se no ar uma ausência, ou melhor,
talvez presença, a fauna local portava nos lábios ou
olhar a lembrança do homem que acabavam de
acompanhar ao cemitério de Montparnasse. Sartre
seria depois incinerado no Père Lachaise e nos
grupúsculos intelectuais a pergunta era uma só: que
restaria dele além de suas cinzas? A imprensa
internacional saudava sua glória, com o que nem
todos estavam de acordo, não faltava quem o
reprovasse por ter namorado as ideologias mais
mortíferas e ter pego sempre os últimos trens.
Queneau o considerava homem de coragem,
afinal precisava de não pouca coragem para
publicar, em 43, um livro de um quilo, se bem que
todos os vendedores de farinha ou batata por quilo
teriam de ter um exemplar à mão, já que o chumbo
escasseava em função da guerra. De qualquer
forma, se o pensador se enganara o mais das vezes,
era comovente seu esforço em mudar de rumos,
evocá-lo trazia à mente Camus: “um homem incapaz
de mudar de idéia é um homem que faz medo”. Fora
um confuso, pensava Cristiano, o que sempre era
melhor que ser dogmático. Enfim, a vida era um
pacote contínuo de ironias. No Chalé, em Porto
Alegre, há coisa de uma década, seus companheiros
de mesa sonhavam um dia tomar um calvá, ao lado
de Sartre, em um bistrô de Paris. Agora lá estava ele,
num dos bistrôs de Sartre, tomando um calvá,
enquanto à sua volta todos evocavam o cadáver de
Sartre, que há pouco passara ali ao lado.
Desencontro de agendas...
Sorte tivera Roland Barthes, partira um mês
antes. Tivesse o azar de morrer na mesma semana,
mal lhe sobraria um pé de página num jornal menor.
Em seu leito em Ljubljana, Tito parecia hesitar em
partir, questão de esperar mais alguns dias, até que
ficassem livres as primeiras páginas dos jornais.
Entra Catherine, a permanente atroz do
Partido. Certamente teria assistido de camarote ao
enterro, morava na Edgar Quinet, onde ele passara
conduzindo de dentro de esquife sua última manif
antes de ser enterrado. Mal sentou, antes mesmo de
qualquer saudação, Catherine lhe passa o Monde,
aponta um desenho de Konk, quatro senhores aos
prantos carregando o caixão: Giscard, Mitterrand,
Marchais e Chirac. É! O humorista havia captado
com garra o clima pré-eleitoral, só fazia
unanimidade naquela França de 80 o gesto que
significasse votos aos eternos aspirantes do Elysée.
— Aposto que ganha em 81 quem disser que
perdeu uma de suas maiores luzes — disse
Catherine. Foste ao enterro?
— Não, meu anjo, só escrevi sobre.
— Um jornalista que não persegue os fatos?
Como explicar-lhe que correra o tempo todo
atrás do filme dos Monty Python, que abominava a
idéia de correr atrás dos fatos e particularmente dos
cadáveres, que preferia esperá-los sentado para uma
posterior reflexão? Mas ela tampouco se interessava
pelo acontecimento. Le vieux con não havia
declarado há pouco no Nouvel Obs que era o PC
quem retardava a revolução? Ficasse calado por
mais algumas semanas, considerava Catherine, e
teria entrado com mais elegância na posteridade.
Mas era ele o único mito encarnado a morrer
naquele abril. Do outro lado do Atlântico agonizava
um outro, morte para Catherine bem mais dura de
encarar, ainda não conseguia acreditar no que lhe
traziam os jornais. O cadáver de seu vizinho da
Edgar Quinet, isto é, seu caixão, ela o havia visto de
sua janela, se não havia visto os despojos tudo
indicava que estavam lá dentro daquele furgão
sufocado de flores, lá estava Simone de Beauvoir, o
Petit Castor de Sartre, apoiada por Lanzmann. Na
turba conseguira identificar Simone Signoret, rosto
quase escondido por um gordo par de óculos, de
braços com Yves Montand e Costa-Gavras, vira
também Françoise Sagan envolta em um
impermeável bege, bolsa à tiracolo, não era possível
que tanta gente ligada à ficção estivesse sendo
cúmplice de uma outra, e esta fúnebre.
Sim, ele rumava ao Montparnasse naquele
carro, isto era inegável. Já os dez mil cubanos
abandonando a ilha, a foto dos primeiros a beijar o
solo em Costa Rica gritando “Libertad!”, isto era bem
mais difícil de engolir. Nos primeiros dias creditara
os despachos à má fé da presse pourrie, não haviam
até mesmo espalhado o boato que Raúl Castro
tentara assassinar Fidel? Mas as imagens de TV, o
número de vôos e travessias por mar confirmavam
pouco a pouco a cifra dos dez mil, tudo indicava que
lá no Caribe estertorava mais uma esperança.
Ironicamente, o Matin daquele sábado trazia uma
foto de Sartre com Castro, “a fascinação do
intelectual pelo revolucionário”, dizia o texto-
legenda, ele em gravata e mangas de camisa,
sufocado pelo sol dos trópicos, Castro ainda jovem e
em battle-dress. Em 69, ela abandonara Balthazar
ainda criança e fora cortar cana na ilha, voltara com
as mãos estropiadas pelo machete, quase esquecidas
de como acariciar. Descobrira um mundo novo, um
homem que como larva emergia de um ambiente
antes podre, e apostara naquele homem novo. E
agora...
Cristiano adorava aquela retórica parisiense,
era próprio de Catherine enfeitar com palavras bem
justapostas toda e qualquer realidade, mesmo a
mais sórdida. Mas, certamente por deformação
profissional, passara a ser dois ao falar com um
terceiro. No plano do bate-papo era o interlocutor
gentil que com diplomacia punha certas dúvidas que
para ele há muito não constituíam dúvida. Na caixa
de sua cabeça, mesmo falando com cordura, a mil
por hora trabalhava o analista feroz. Catherine
cortando cana em Cuba? Um fio de pentelho puxa
mais que vinte juntas de boi — costumava dizer
João Geraldo, com suas imagens de gaúcho
fronteirista. Sem falar em algum cubano no meio da
história, a coitada abandonara o triste universo
parisiense, aportara em uma ilha tropical, onde
apesar da penúria o povo mantinha seu bom humor.
Entregara-se à revolução quando o que a havia
fascinado era o lado latino da ilha, não a nova
ideologia. Cortar cana ombro a ombro com um
camponês, ou mesmo com um camarada de um
outro país, era bem mais saudável que lidar com um
burocrata parisiense com cara de computador, que
só sorri quando sai sol, e isso se seus músculos
faciais já não se haviam atrofiado pelo cinza
cotidiano da vida urbana.
Não era exatamente ela quem Cristiano
gostaria de encontrar naquele fim de noite. Vivia ao
sabor de impulsos súbitos, e a não-satisfação destes
lhe abalava o humor, só voltava à tona se
compensado por uma gratificação maior. Perdido os
Monty Python, só uma mulher lhe salvaria a noite,
notava agora que inconscientemente deixara o
Montparnasse Bienvenue como última opção, assim
já estaria próximo ao Select onde sempre havia
alguma esperança. Mas Catherine, como diria o
monstro sagrado que acabara de ser enterrado, era
uma paixão inútil. Já haviam tido boas horas de
cama, ela se situava entre as que Cristiano
denominava pornófonas, recheava o embate com as
mais quentes palavras. Se bem que... tinha de
admitir que putaria só o excitava na língua
vernácula, tinha saudades de uma foda em bom
português. Mas a barreira, no fundo, não era
lingüística. Que mais não fosse, gemidos não tinham
pátria.
Haviam-se encontrado pela última vez
quando? Cannes 78? O ritmo absurdo de Paris o
assustava, de repente se dava conta de que há
quase dois anos não a via e parecia tê-la encontrado
ontem. Ontem ou há dois anos, algo se havia
quebrado em algum lugar e qualquer tentativa de
conserto exigia um preço que nenhum dos dois
estava disposto a pagar.
— Madame? — pergunta o garçom.
Catherine também tomaria um calvá, em
homenagem à data. Não era a bebida predileta do
vulto que partia?
— E partiu a tempo, não?
— Que queres dizer com isso? — reagiu a
moça.
Decidiu colocar o único problema que não
devia colocar. Mas estava vagamente irritado, sentia
que naquela noite voltaria só para casa. Dividiria
então com Catherine seu mau humor incipiente,
assim seriam dois a deitarem-se mal-humorados.
— Morreu em boa hora. Com esses cubanos
todos abandonando o barco, teria mais uma vez de
mudar de rota.
Estava sendo propositadamente injusto.
Sartre já condenara Castro por ocasião do
encarceramento de Padilha. Se ela sabia do fato,
podia sair-se com elegância. Se não, que se lixasse.
Ele estava jogando e não pretendia mostrar as
cartas ao parceiro.
— Dez mil! — admitiu a permanente do PC. —
Mas se previa para hoje, sábado, um milhão de
cubanos manifestando em Havana a favor de Castro.
— O que só confirma, meu anjo, que algo de
errado está acontecendo por lá. Quem está firme no
poder não precisa do aval de passeatas-monstros.
Maior é a manifestação, mais fraco está o homem.
Voltava a lembrar o cadáver que há pouco
passara por ali. Uma foto sua, não a do Matin com
Fidel, mas uma outra, na capa de não lembrava qual
revista portuguesa, ele quase cego, metralhadora em
punho, derreado pelo peso da arma, apoiando em
Lisboa um regime que julgava muito bom... para os
portugueses.
— Desde quando ele sabe manejar uma
metralha? Pelo que sei — insistia Cristiano — era
um virtuose do megafone.
Em seu entusiasmo, se desviara da pergunta
inicial. Mas naquela noite Catherine não estava
preocupada com a marcha dialética da história e
seus caprichos. Os fatos de Cuba a abalavam, é
verdade, mas no fundo temia a segunda-feira, e até
lá restavam no mínimo trinta e seis horas de
angústia. Dominique entrara em juízo pedindo
direito de visita a Balthazar, a decisão fora protelada
para a semana seguinte, logo agora que Baltha
começava a desligar-se afetivamente do ex-marido,
na cama deitava no lugar do Ex sem manifestar
preocupações com sua ausência, logo agora que
vivia exclusivamente com ela, sem maiores traumas.
— E se Dominique tiver ganho de causa?
Baltha era extremamente intuitivo, apesar de
sua pouca idade sentia o que acontecia em torno a
si. Quando passara o féretro pela Edgar Quinet, da
janela olhava inquieto a multidão, manifestava com
latidos sua angústia, ele sabia lá no fundo — dizia
Catherine — que presenciava um momento
histórico. Permanecera excitado o dias todo, ela
arriscara uma posologia dupla, dezesseis drágeas de
Pils, quando o recomendável era oito, mas pelo
menos agora estaria dormindo tranqüilo.
“Acreditas em calma química?”, ia perguntar
Cristiano, mas não perguntou, seu propósito de
partilhar seu mau humor rolava lentamente águas
abaixo. Deixou Catherine em casa, pensou tomar o
último metrô, desistiu. Naqueles dias, nem clochard
se dignava a dormir nos subterrâneos, havia quem
já falasse nas estações Bonne Poubelle e Champs de
Merde por Bonne Nouvelle e Champs de Mars. Em
verdade, a imundície do metrô não o preocupava,
preferia pisar em papéis sujos do que em bostas de
cachorro. Lembrava Hugo a respeito do trocadilho:
c’est la fiente de l’esprit. Em todo caso, os franceses
haviam chegado a um bom achado, não mais
falavam em trottoir, mas em crottoir, e ele abominava
mais as crottes da superfície do que o lixo dos
subterrâneos.
Só vivendo em Paris, dizia para seus botões,
para se ter uma idéia da tragédia de suas ruas. As
cartilhas de língua francesa só falavam do amarelo
outonal, jamais do amarelo excremental — e eterno
— de sua geografia. O pior é que a merda chegara a
inundar-lhe as mãos e justamente chez Catherine.
Fora num 25 de novembro, tinha certeza da data por
ser o onomástico daquela criaturinha tão sensual e
ao mesmo tempo tão pudica, tão próxima e tão
distante, que agora o convidava ao brinde. Levara
um Saint Emillion, ao abrir a garrafa enchera as
mãos de merda, o que é no mínimo desagradável
quando se serve um vinho. Não entendia mais nada,
comprara o vinho de seu fornecedor na Amiral
Mouchez, não iriam lhe passar uma garrafa envolta
em tão emético invólucro, além disso a levara
debaixo do braço, no metrô, sem sentir odor algum.
O incidente lhe soava como piada de mau gosto,
houve quem pensasse em Balthazar, para escândalo
de Catherine.
Mas não. Precisou de uns bons dez minutos
para decifrar a charada. A rolha não cedia, apoiara a
garrafa entre os pés para abri-la e, entre a sola e o
salto do sapato se alojara uma crotte imensa, mole
ao mesmo tempo suficientemente consistente para
ficar aderida ao couro, caminhara o tempo todo sem
senti-la e agora lhe assaltava uma triste certeza: se a
bosta permanecera ali o tempo todo, o mau cheiro
não viria só de seus sapatos ou da garrafa, mas a
moquete devia estar toda manchada, como de fato
estava. Tirou o sapato mas a festa continuou o
tempo todo em meio a um clima escatológico, não
entendia porque em cidade tão linda a merda tinha
de ser tão onipresente.
Mas o que queria mesmo não era evitar o
metrô, e sim dar uma olhadela na Gaité e
adjacências, em uma última tentativa de mulher.
Nem sombra de puta naquela noite. Um tanto givré
pelos calvás, rumo ao 13o maldizendo “esta merda
de país, vai ver que o Sindicat des Putains
Respectueuses de Montparnasse havia decretado
luto naquela noite em homenagem a Sartre, os
sindicatos ainda vão levar a França à falência”. O
inferno são os outros — dissera o ilustre cadáver.
“Claro, ele vivia entre franceses”.
Rumava ao sul pelo Boulevard Raspail, não
eram ainda duas horas da matina e a cidade estava
morta, tão morta quanto o cemitério que agora
margeava, onde fora enterrado o guerrilheiro do
megafone, o conhaque começava a espalhar-se pelo
corpo todo, levando a cada célula uma mensagem de
mau humor. Cagões! Em matéria de crises estavam
melhor informados do que os jornalistas. Estivera
pela manhã no Commerce, o patron lhe pedira o
Monde, o ouro vai subir, dizia excitado. Os jornais
nem haviam noticiado o fiasco de Carter tentando
roubar de Khomeiny os reféns americano, o aiatolá
ainda nem fora informado da tentativa de assalto e o
Dupont incrível já sabia de fonte segura que o ouro
subiria em flecha, com medo da guerra investia em
metal. Estava imerso no suplemento Dimanche, o
patron apanhou o outro caderno e foi correndo às
páginas econômicos, “voilà, subiu dez por cento”, e
esfregava as mãos de contente, enquanto Cristiano
se perguntava que restaria de seus lingotes em caso
de guerra atômica. E mesmo que restasse uma pasta
informe, onde iria enfiar aquela massa fundida o
serzinho covarde a seu lado? — que se
entusiasmava com o fracasso do comando
americano no Irã e não ousava investir dois francos
em um jornal para saber quanto por cento havia
subido mesquinhez.
Que fazia em Paris? A pergunta várias vezes já
lhe fora jogada ao rosto, principalmente quando um
interlocutor se surpreendia com seu humor ácido.
América Latina capital Paris, dissera Carlos Fuentes
em uma entrevista para Antenne 2, o que muito
teria lisonjeado os franceses. Preferia ficar com Alejo
Carpentier — que aliás também estava por morrer,
80 entrava ceifando monstros sagrados, e teria mais
um cadáver em sua agenda — que talvez Paris
tivesse sido um dia a capital latina, mas hoje era
apenas rendez-vous. Cristiano equacionava a coisa
de maneira mais brasileira: pororoca de ideologias.
Catherine detestava a expressão, pororoca dava a
idéia de ponto onde as ideologias se chocam e
morrem.
Que fazia mesmo em Paris? Já estava próximo
a Denfert, o pensamento divagava em todas as
direções, menos rumo à resposta. Tout le monde va à
Paris, dissera Krk, com o que ele não concordava,
embora a estivesse abraçando em plena Champs
Elysées. Estava em Paris como estaria em qualquer
outro lugar, já não começara suas errâncias por
Estocolmo? Se olhasse mais detidamente no mapa,
não deixava de lhe dar razão. Paris era meio
caminho entre Oriente e Ocidente, Norte e Sul,
recebia os ex-colonizados da África, dissidentes da
URSS, fugitivos da Ásia, turistas dos States e Japão,
curiosos e exilados latino-americanos. Encruzilhada
do mundo. Que fazia em Paris? Viera dar uma
olhadela na encruzilhada após sua decepção com a
Suécia.
Sihanouk, o príncipe: se tivesse de mandar os
cambojanos estudar no exterior, os mandaria a
Moscou. De Paris, eles voltavam marxistas. Se se
referia a décadas passadas, tinha razão. Pois agora,
na pororoca parisiense, começavam a sossobrar as
mais sólidas crenças. João Geraldo viera à França
para aprofundar-se no marxismo, tinha quarenta
anos e perdera a fé. “Que fazer agora? — se
perguntava —. Acho que vou ler Guimarães Rosa”.
Para Cristiano, Rosa era um tanto barroco, mas
tinha de convir que era boa terapia para uma
convalescença ideológica.
A brasileirada que passava em seu studio. A
gaúcha que fora a Moscou, louca para conhecer o
paraíso. (Mas ele também não saíra um dia em
busca de um?). Pena que a gauchinha fizera uma
escala naquela sucursal do inferno capitalista. Fora
na época da inauguração do Forum des Halles, e
antes de rumar a Nova Jerusalém a revolucionária
tomou um banho fatal de consumo, lavou a alma
comprando sac-à-dos, tênis coloridos, óculos,
canetas, abrigos esportivos, foie gras, fines herbes.
“Que vou fazer — se explicava — se a sociedade
capitalista me condicionou assim desde o berço?”
Em Moscou não encontrara nem OB de calibre
conveniente, os disponíveis não conseguia abarcá-
los em seu diâmetro com o polegar e o indicador em
círculo — mas afinal, tudo não era grande na nova
sociedade? O fato é que o poço de consumo do
Halles, em uma tarde, a fizera renunciar
definitivamente ao internacionalismo proletário.
Ou a carioquinha que viajara a Pouna em
busca de um guru, Rajneesh ou coisa que o valha.
Após três meses de meditação transcendental em
um ashram terapêutico, sem álcool nem foda,
aterrissara no Charles de Gaulle, seca por um bom
cacete ocidental. “É — pensava Cristiano — Paris é
sempre passagem”. A frase, a ouvira de João
Geraldo. Mas era como se fosse sua, já que deveria
ter nascido na cabeça de todo latino em Paris.
Mas naqueles dias seu studio andava vazio de
gauchinhas, carioquinhas e no bulevar deserto não
havia sombra de putinhas. Aquela atração
imperiosa, de onde viria? Olhasse para trás, sua
vida toda girava em torno a elas. Em função delas,
havia sido expulso de sua primeira cidade. Através
delas havia se encontrado consigo mesmo. Para não
mais vê-las — sim, no fundo era isso o que o levara
ao Paraíso, fora a Estocolmo, e lá estavam elas. E
graças à existência delas, mantinha intacta sua
revolta. Decididamente, as profissionais ocupavam
um espaço inexpugnável em sua vida.
Fora conhecê-las na cidade, com a mente já
torturada pela maquininha ali instalada por Doña
Chichi e Padre Antônio. Agora, só agora, via
brutalmente a violência cometida pelos padres em
crianças sem defesa alguma, instalavam em seus
cérebros uma maricota, a noção de pecado, a ser
acionada pelo portador. Ao menor sinal de prazer,
um orgasmo e um choque psíquico, outro orgasmo,
outro choque e assim indefinidamente até a
sexualidade virar doença e tristeza da carne tornar-
se sinônimo de sanidade mental. Uma masturbação
e passava a noite toda em atos de contrição para
escapar ao fogo eterno. Se, após masturbar-se, por
desgraça ocorria uma tempestade, antes de se ter
confessado e voltado ao estado de graça, a tortura
era múltipla, sentia que os raios tinham um só alvo,
ele. Tremendo de frio, de joelhos no cimento áspero e
úmido, encolhido qual verme, chorava confuso entre
o remorso de ter ofendido a divindade e o medo da
perdição eterna, esforçando-se por fazer prevalecer o
primeiro, já que o segundo, sua salvação, lhe parecia
de um egoísmo atroz. E não é que o demônio o
assalta quando menos esperava? Por vários anos
não esqueceria a sexta-feira fatídica.
Conseguira varar a quaresma toda sem uma
punheta sequer, tentando matar o sexo com banhos
frios e exercícios violentos que o levavam à exaustão
física. Quarenta dias de castidade lhe parecia uma
enorme conquista, talvez tivesse chegado ao domínio
total de si mesmo, sentia-se leve e sem dívida
alguma para com Deus. Iria nadar no Santa Maria, o
que vinha fazendo há semanas, ao sair d’água mal
tinha força para um aceno. O demônio atocaiou-o,
então, antes mesmo de entrar no rio.
Praia deserta. Atravessou o rio a vau, deixaria
as roupas em alguma árvore, ganharia a parte mais
funda nadando contra a corrente. Quando cansava,
passava a nadar de costas. Aproveitava a ocasião
para um diálogo face a face com o criador de tudo
aquilo, agradecer-lhe a magia daquela momentânea
fusão com os elementos. Mas naquela tarde não teve
tal chance.
Do mato explodiam gargalhadas, risos
convulsos de quem não consegue parar de rir.
Inexoravelmente, foi rumando ao ponto de onde
emanavam aqueles sons histéricos de alegria, qual
pássaro hipnotizado por serpente. Era quase uma
clareira, duas mulheres e um homem, finando-se de
rir, derrubavam um litro de cachaça. Um sexto
sentido o alertara para voltar, mas alertou tarde.
Uma negra imensa, as banhas caindo sobre a
cintura da calcinha que lhe cingia o ventre,
lambendo os lábios com a língua lhe passou a
cachaça.
Balbuciou um não sem forças, isto é, parecia
ter balbuciado algo, talvez a negativa não lhe tivesse
atravessado a barreira dos lábios, quando se viu em
seu regaço, mamando na garrafa que a mulher lhe
oferecia por entre as tetas enormes, enquanto uma
mão ávida lhe buscava o sexo que perfurava o calção
qual estaca de ferro. Olhou ao lado, o casal já estava
atracado como cão e cadela, ele se sentia cada vez
mais mole, exceto em uma extremidade, era como se
o pênis, rijo, sustentasse um corpo feito manteiga. A
mulher carregou-o nos braços para um tapete de
grama próximo, já não mamava na garrafa, mas um
mamilo túrgido banhado de cachaça. A mulher
deitou-se, pernas abertas, e o puxou contra o corpo.
Mas antes queria vê-la.
Tremia. Como seria? Tinha idéia de algo preto,
cabeludo, mas que haveria sob os pelos? Rasgou as
calças da mulher, uma racha descomunal se abria
sob a pelaçama negra. Cristiano abriu os lábios da
rachadura e uma buceta sangrenta, pulsante, lhe
piscava em contrações que faziam escorrer sangue
pelas coxas pretas.
Mergulhou. Ejaculou em segundos, limpou
com capim o pênis envolto em uma baba vermelha,
nas mãos um odor inominável. Fugiu correndo, a
risada histérica da mulher sempre grudada a seus
passos. Suas roupas ficaram esquecidas no mato,
queria urgente quatro paredes para esconder-se e
rezar. Mas não rezou. O tempo era firme, sinal
algum de tempestade no ar. A ira divina ainda não
se manifestara. Condenado, condenado e meio:
masturbou-se com desespero, contou sete
ejaculações na tarde (sempre as contava para sua
contabilidade confessional), mais algumas à noite,
que o estado entre a vigília e o sono não lhe permitiu
registrar com precisão. Olheiras profundas,
ressuscitou com o Cristo no dia seguinte, pela
comunhão. Mas havia sido marcado na paleta.
Uma puta menstruada em uma sexta-feira
santa. O remorso ante o pecado abominável, o saber
que o mesmo ser que se purificava com o corpo e
sangue de Cristo no dia anterior se conspurcara com
o corpo e o sangue da negra, a sensação interior de
ser um verme, o sangue escorrendo pelas coxas
como uma antecipação dos horrores do inferno, tudo
o levaria mais tarde a organizar uma campanha
contra a prostituição naquela cidadezinha. Mas nem
padre Antônio — que, entre sussurros, lhe
recomendava castidade — aceitava a idéia de
expulsá-las da comunidade, que será de nossas
empregadinhas, das filhas de boa família? E
preferira expulsar Cristiano, da escola e da cidade.
Lera mais tarde, em jornais e livros, relatos de
viajantes que falavam de uma sociedade de homens
livres, próxima ao Pólo Ártico, onde ninguém
precisava vender ou comprar sexo. E fora até lá. E lá
estavam elas, frias e impassíveis. E vira: mais frias e
impassíveis do que qualquer puta endurecida pela
vida nas cidades do Sul. E voltara: o cu do mundo é
em toda a parte.
Nelas havia um mistério qualquer, que o fazia
estremecer interiormente mal decidida procurá-las.
Nelas residia a grande contradição, o nó górdio de
toda civilização, nelas depositavam os homens suas
angústias, doenças e neuroses. Conhecer a fundo
uma prostituta — imaginava Cristiano — seria como
ler Dostoievski, nela estaria depositada a experiência
de milhares de homens. Assim pensou por vários
anos, até concluir que o melhor mesmo era ler
Dostoievski, era mais profundo e mais barato. E lá
estava ele, naquela Paris deserta, empenhado na
caça vã. Na capital das putas, conforme fama
milenar, e nenhuma puta à vista. Sempre havia o
Pigalle. Mas não se dispunha a atravessar o Sena
por um capricho de fim de noite.

Sempre abominara o jornalismo. Em sua


primeira crônica assinada, numa reação instintiva
de defesa, citara Gide: “jornalismo é o que amanhã
interessa menos do que hoje”. Lembrava um diálogo
de Borges com Sábato, este defendia a idéia de que
se deveria publicar um só jornal cada ano, ou talvez
a cada século. Ou quando sucedesse algo
verdadeiramente importante: “o senhor Cristóvão
Colombo acaba de descobrir a América”. Borges, que
confessava jamais ter lido um jornal, considerava
que não sabemos quando um fato é transcendente
ou não, a crucificação do Cristo só se tornaria
importante mais tarde, não quando acontecera.
Chegou na esquina da Glacière com Tolbiac,
carrefour des adieux, como dissera certa noite
Catherine, quando diferenças ideológicas ainda não
lhes perturbavam os embates, e percebeu que todas
suas noites terminavam ali, pelo menos com as
parisienses, que não eram de dormir empernadas,
dia seguinte remoçava o metro-boulot-dodo, merda de
cidade, pensou, está pronta para o socialismo. Em
casa abriu um Beaujolais, ou não conseguiria
dormir, a irritação o excitava e a excitação o irritava,
e o rouge o fazia dormir. Abril, o Beaujolais já estava
ácido, mas da bebida não pedia data, apenas que o
anestesiasse.
Quanto tempo de Paris precisaria um latino
para contagiar-se de mau humor? Chegara há três
anos, com a experiência de Estocolmo nas costas, e
sua natural disposição de espírito ia sendo aos
poucos minada. J’en ai marre, j’en ai ras-le-bol, era o
que mais ouvia em torno a si, e não há bom humor
que resista a um bombardeio assim sistemático por
muito tempo. Uma observação de Mme. Pund, da
crêperie da Amiral Mouchez, o havia intrigado.
Sempre sorridente, esbanjando bom humor, Mme.
Pund participava de suas opiniões quanto à
carranca cotidiana do parisiense, mas nada lhe
abalava o brilho do olhar.
Um dia, o choque. Recebeu as palavras de
Mme. Pund como um tapa na cara. Ela estava, como
sempre, em animado papo com sua clientela, a
exigüidade da crêperie tornava mais íntimo o
ambiente, e mal entrara o apontou aos demais:
“vejam Monsieur, passa todos os dia aqui, sempre
sorridente e feliz com o mundo”. A frase lhe caiu
como gelo pelo pescoço. Mme. Pund, sempre tão
gentil, estaria agora sendo sarcástica? Mas antes
que se desencadeasse uma reação interna, deu-se
conta de que de fato sempre sorria ao passar pela
crêperie, sorria porque gostava de ver o rosto cheio e
sorridente de Mme. Pund, oásis de bonomia naquele
deserto de caras fechadas.
Nas últimas semanas, entregar-se a um
processo contínuo de balanço de vida. Chegara aos
33 anos, sentia estar vivendo um ponto de não-
retorno: ou mudava de rumos, ou nunca mais. Os
homens faziam e aconteciam, traçavam seus
itinerários com sangue ou com obras e o jornalista,
com seu caderninho em punho, lá ia correndo atrás
dos homens que faziam e aconteciam, quando não
de seus cadáveres. Era humilhante. A irritação que
lhe singrava as veias passara a impregnar seus
últimos despachos. Há duas semanas, mandara
extensa reportagem sobre o Salão do Prêt-à-Porter.
Os tempos eram de abertura política là-bas, fim de
censura em jornais? Pois pagava para ver.
Comentou a greve dos “turcos sem papéis”, os
imigrantes que aliás não eram só turcos, que na
humanista Paris de 1980 trabalhavam até 17 horas
por dia, em ateliês escuros, por um salário de fome,
sem sequer poder reclamar: não tinha permissão de
trabalho, muito menos de estada. Tinham medo até
de sair às ruas, já que suas permanências eram
ilegais na França. Escravos da alta costura,
confeccionavam ao preço final de trinta francos os
vestidos que eram vendido a mil e mais francos nas
butiques do Saint Germain. Outros costureiros,
mais diplomatas, instalavam suas indústrias em
Hong Kong ou mesmo em Hanói, pagando centavos
a uma mão-de-obra faminta. Comentara
demoradamente o caso e, ao final do despacho,
assinou seu epitáfio:
“Assim é a alta costura parisiense, tão
revolucionária que até joga algumas migalhas aos
famintos do Terceiro Mundo. O que talvez propicie
um exótico prazer às editoras de páginas femininas
de nossos jornais: ao louvar o último lançamento
parisiense, estão sentando no esqueleto de um pobre
coitada lá nas antípodas”.
Mexia com a editora de frescuras — como
costumava chamar as meninas que editavam os
suplementos femininos —, com costureiros locais e
mais a burguesia deslumbrada, que saía de um país
infestado de mendigos para comprar no Quartier
Latin os “modelos exclusivos” confeccionados em
massa por homens famintos.
O vinho já não o anestesiava. Precisava parar
de beber. Entre um sorvo e outro, se pôs a preparar
malas. Viajava no dia seguinte para a Iugoslávia,
parecia que desta vez o marechal embarcava mesmo,
e a perspectiva de rever Krk o fazia emergir daquele
porre. Sentia o corpo como um pudim de álcool,
exalava um odor acre até pelo dedão do pé.
Conhecera a iugoslava em Paris, com carinho
lembrava seu gesto de recusa delicada quando, ao
tentar despi-la, ela o afastara com as mãos e
passara sozinha a desabotoar-se, tu sais,
l’autogestion...” Embalado pela lembrança dos uivos
da autogestionária, já quase ao amanhecer,
conseguiu dormir. A noite era cálida, mas preferiu
fechar a janela para não ser acordado pelo velhinho
do realejo que aos domingos percorria a Amiral
Mouchez.

Domingo, 9 de setembro de 1979, mais outra


data a abalar João Geraldo. Há muito observara que
os acontecimentos capitais de sua vida teimavam em
ocorrer em datas marcadas, ou pela história ou por
determinadas festas, o que no fundo era uma
tremenda lapalissade, afinal não havia dia do ano
que não estivesse ensangüentado por esta ou aquela
revolução, e os vencedores só comemoravam o que
lhes convinha. Fossem juntadas ao calendário oficial
a lembrança dos vencidos, os eventos históricos
seriam multiplicados por dois. Se bem que,
pensando melhor, não é que os momentos decisivos
de sua vida teimassem em cair em tais e tais datas:
em verdade, era ele quem estabelecia tal relação,
como professor de história, ao tentar um sistema
mnemônico recorrendo a fatos históricos. Dia 9 de
setembro, segundo fim de semana do mês, Fête de
l’Humanité. A grande festa do PC francês caíra
naquele ano dois dias após o famigerado 7 de
setembro, que sempre acabava provocando as mais
contraditórias reações em brasileiros no exílio. E se
o 7 João o atravessara sem maiores comoções, o 9
fora a gota d’água. Pois uma coisa é recusar
intelectualmente uma crença. Outra é extirpá-la
definitivamente da alma, arrancar-lhe as raízes de
uma vez por todas, para que não voltassem a vicejar
em seu novo modo de ver o mundo.
Cristiano lhe recomendara a festa com um
sorrisinho irônico aflorando em sua carranca
sempre fechada. “Vai, vê e volta”, dissera, e de forma
a insinuar que não seria o mesmo homem na volta.
Já no metrô sentiu uma atmosfera diferente
na cidade, à medida que se aproximava da periferia
norte de Paris o número de passageiros engrossava,
M. Dupont ostentava um sorriso de festa, coisa rara
naquelas plagas. Aliás, Cristiano sustentava mais
uma de suas teses absurdas — ou talvez nem tão
absurdas, afinal tinha mais anos de Paris nas costas
— garantia que não era assim tão difícil encontrar
um parisiense alegre, bastava observá-los nos dois
únicos dias do ano em que sorriam, o primeiro fim
de semana de setembro. Era quando a carneirada
voltava de férias e naqueles dois dias inundavam
bares e restaurantes com uma algaravia estridente e
inusitada, contando as aventuras de là-bas, quem
chegasse a Paris naqueles dois dias pensaria estar
em Roma ou Barcelona. Uma vez esgotados os
relatos de férias, as lembranças de Rodes, Mykonos
ou Mallorca, o parisiense não via mais razões para
rir e confraternizar — que mais não fosse já tivera
tempo de ver os novos preços, sempre levantados na
calada do verão — e enfiava estoicamente o pescoço
na canga, mergulhando na rotina para voltar a rir
dali a exatamente um ano.
João tivera ocasião de confirmar uma semana
antes a tese de Cristiano. Mas naquele segundo fim
de semana restava ainda nos rostos algo de alegria,
o que não era assim tão surpreendente, afinal se
dirigiam a uma festa, a confraternização dos que
lutavam pelos oprimidos do mundo todo. Desceu em
Porte de Clignancourt e entrou em uma das muitas
filas que esperavam os ônibus para La Courneuve.
Paris inteira se fazia presente e solidária aos
famintos da Terra.
Os estandes se espalhavam por 24
quilômetros e seu físico lhe implorava breves pausas
para repouso e restauração. E restaurantes era o
que nãoltava naquele modesto encontro proletário,
João sentia-se esnobando o que chamava de
esquerdas do Pagoda, os intelectuais de Porto Alegre
que faziam a revolução desde uma lauta mesa no
chinês da Protásio Alves. Sempre escorados no
poder, estivesse quem estivesse no poder — no
fundo, não deixavam de ser coerentes — sempre
imunes a qualquer perigo, de fome e torturas só de
longe haviam ouvido falar. Estivessem em La
Courneuve, naquele domingo sem sol de setembro,
seriam amplamente reconfortados em seus ideais.
Já na entrada do parque uma faixa em vermelho
saudava os comensais, convidando-os a associar-se
às lutas proletárias e a degustar ostras e mariscos,

RESTAUREZ-VOUS POUR
FAIRE
LA RÉVOLUTION!!!
Defensor incondicional dos oprimidos e dos
frutos do mar, Monsieur Dupont começava a regar
com limão suas ostrinhas, já era quase meio-dia e o
estômago lhe exigia um mínimo de consciência
cívica.
João acompanhava o fluxo da multidão. Tinha
duas opções ao entrar no parque, e ambas à
esquerda: cozinha francesa nos pavilhões erigidos
pelos diversos setores provinciais e parisienses do
PCF, ou cozinha do mundo todo na área
internacional da feira.
Tenda da Argentina, las locas de Mayo, Villa
Devoto, os desaparecidos, abajo Videla, churrasco,
chorizos, vinos y canciones, olala, c’est magnifique le
churrasco. Chile. Abaixo Pinochet, viva Allende,
manifesto contra a visita de um ministro a Paris,
pescado frito, empanadas, vino, pisco. Uruguai?
Abaixo quem? O Uruguai parecia estar tão por baixo
que já nem se sabia a quem gritar abaixo. Pastéis do
Vietnam, patê imperial, abaixo o expansionismo
chinês. Irã, manifesto contra Khomeiny, caviar do
Cáspio, viva o partido Tudé, mais ao fundo tapetes
persas — e um cartaz insistia — legítimos. Tudo pela
revolução. E o problema curdo? É ali na tendinha ao
lado, Monsieur, o senhor pode assinar um manifesto
e tomar um chazinho do Curdistão.

Vive le Parti Communiste Brésilien!


Brasil. Barraca do “Voz Operária”. Samba e
decalcos em verde-amarelo, manifesto ao
embaixador brasileiro em Paris pela legalização do
PC. João assinou sem hesitar e, logo acima da sua,
está a assinatura de Cristaldo, o homem passara
então por ali? Quanto ao de comer... nada. Só
batidas de coco — cocô, como pronunciavam
algumas francesas frente à barraca — e maracujá.
“Desse jeito — pensou João — Prestes, o bravo
Cavaleiro da Esperança, não dura muito na
secretaria do Partido”.
Tendinha da Tunísia. Manifesto contra a
prisão de sindicalistas, abaixo Bourguiba — que por
sinal estava por vir abaixo sem que ninguém o
empurrasse — castiras, briques e cuscuz. Argélia.
Viva o mechuí, glória a Chadli. Mais mechuí na
tendinha do Frente Polisário. O Marrocos não quer
dar uma saída para o Atlântico? Pois abaixo o
Marrocos.
Fila na barraca da União Soviética. E lá se vai
Monsieur Dupont, sabe que em país socialista onde
há fila há algo interessante. Qual é o manifesto?
Mais non, Monsieur, na URSS não há problemas, os
operários estão no poder, pas question de
manifestes. Quinze dias de turismo aos camaradas
franceses, basta acertar uma rifazinha, aceitamos
dólares, marcos, iens — e cruzeiros, não?
perguntava João — ou, non, non, mon cher, nos
excuses — viva Lenine. E essa Moscovskaia? Pas
mal comme vodka, n’est-ce pas? Que tal um
caviarzinho de beluga? No Fauchon, não se compra
por menos de 200 francos os cem gramas. Profitez-
en, tovaritch!
Vagava incrédulo em meio àquele obsceno
festival. Era então assim que que o PC se
solidarizava com os proletários do mundo todo?
Entendia agora o riso irônico de Cristiano. E não
podia deixar de evocar Gérson. Mal entrara no
Partido, a lembrança do velhote lhe invadira a
mente, era como se não estivesse morto e sepultado,
parecia senti-lo a seu lado, a boca aberta, pasma e
sem dentes, maravilhado e perplexo com aquela
confraternização dos revolucionários todos do
planeta. Enquanto zanzava pelos meandros daquele
parque invadido por centenas de milhares de
comensais, falava mentalmente com o funileiro:
— Que baita trampa, tche! Morreste em vão.
Com fome — aqueles odores todos provocavam
o pálato mais incorruptível — perambulou por entre
as mais diversas opções, não diria ideológicas, mas
gastronômicas, e dirigiu-se por fim ao setor francês.
Pantagruélico, nada menos. As cédulas de
cada região da França ofereciam aos desprendidos
simpatizantes das lutas proletárias os mais
requintados pratos de suas cozinhas. Um cartaz ao
lado de cada barraca — que já eram barracas, mas
imensos restaurantes precariamente montados —
um cartaz anunciava desde crêpes da Bretanha,
saladas niçoises, bouillabaisses de Provence, os
frutos do mar prometidos na faixa na entrada do
parque, coquilles Saint-Jacques, haddok poché, filés
de linguado, dourado ao forno ao Chablis, sole à la
meunière, caranguejos gigantes à l’eau de mer,
robalos au court-bouillon, mais carnes de todas aves
e animais, blanquettes de veau, gigot à l’anglaise,
poulet à l’estragon, petit-salé aux lentilles, canard
rôti dans son jus, faisan truffé, lapin en crépine, rôti
de porc aux pruneaux, pot-au-feu, daube à la
provençale, mais as centenas de patês e queijos de
França, não é fácil governar um país com mais de
quatrocentos tipos de queijo — dizia de Gaulle —
mais os vinhos e champanhes, mais delicadíssimas
sobremesas, entre elas as profiterolles, como dizia
Cristiano — e para isso devia ter suas razões —, la
France n’est que des profiterolles, belas aparências,
uma fina crosta de chocolate... e o vácuo.
Era assim então que os camaradas europeus
manifestavam sua solidariedade aos torturados e
famintos do Terceiro Mundo? Assinaria embaixo de
todos os manifestos, apoiaria todas as lutas, mas lhe
parecia obsceno, se não cruel, misturar a gravidade
de uma luta política ao clima festivo de uma orgia
culinária. Porque no fundo as centenas de milhares
de Duponts que lá estavam não haviam deixado
seus lares burgueses para apoiar esta ou aquela
outra luta deflagrada nas antípodas. Estavam lá
para comer, locupletar o estômago, embotar os
sentidos e, ao mesmo tempo, preservar a consciência
tranqüila, pois a orgia passava a ter um significado
social.
Tinha vontade de entoar a Internacional.
Como reagiriam aqueles pacatos burgueses ao ouvir
o “levantai-vos vítimas da fome”? Preferiu ficar
calado, mas não conseguiu evitar ouvir a si mesmo
resmungando:
— Gastrônomos de todo mundo, uni-vos!
Já bastante cansado, conseguiu ainda dar um
giro pelos estandes das multinacionais presentes na
festa do proletariado. Barracas de acampar de alto
luxo, modestas camas proletárias com caixas de som
embutidas na cabeceira, complexos sistemas HF,
Mercedes, BMWs, Porschs, botes infláveis, iates,
videocassetes, enfim, toda a parafernália tão
abominável quando objetos do desejo nas sociedades
de consumo.
Enauseado, deu meia volta e buscou a saída
do parque.
Não conseguia deixar de evocar Gérson.
Estivesse vivo, trataria de pagar-lhe uma passagem
para tê-lo presente ali, naquela festa em Paris, onde
comiam à tripa forra os que lutavam ou pretendiam
lutar para que nenhum homem no mundo passasse
fome. Parecia ser algo muito francês — ou talvez
europeu — aquela facilidade dialética com que
eliminavam os opostos, a nenhuma daquelas
centenas de milhares de pessoas pareceria
contraditório chafurdar nas ofertas do mundo
capitalista com o propósito de colher fundos para as
lutas proletárias no mundo, ou melhor, no Terceiro
Mundo, já que nenhum francês insistia em viver sob
o socialismo. Enquanto caminhava por entre a
multidão, talvez falando sozinho — nunca distinguia
entre pensar e pensar em voz alta — voltava a uma
outra data, distante dez mil quilômetros no espaço,
treze anos no tempo. Mais um dos tantos primeiros
de abril de sua vida. Aliás, caíra também num
domingo.

João chimarreava na varanda da casa,


contemplando aquela vida miúda que fluía entre
Santana e Rivera, o peso uruguaio estava baixo e os
santanenses atravessavam a fronteira até para
tomar sorvetes, as famílias iam de bolsas vazias e
voltavam carregadas quais formigas, de pão, carne,
cobertores. Os comerciantes riverenses, cientes de
que a sorte poderia em breve mudar de lado, abriam
suas casas mesmo aos domingos e feriados, mais dia
menos dia seria chegado aquele em que suas lojas
ficariam às moscas e os comerciantes de Santana
viriam à forra. Chimarreava sozinho, o que não lhe
agradava muito, o chimarrão só tinha sentido em
roda, quando mateava sem companheiros logo
sentia o estômago verde por dentro e por fora.
Mateava então despacito, o que o impelia a ruminar
qual boi no pasto, remoer difusas sensações,
observar aquele contrabando manso e a matutar
sobre os obscuros destinos daquelas formigas
laboriosas e sobre a incerteza de seus dias futuros.
Em suas primeiras viagens de trem a Porto
Alegre, aboletado na traseira do último vagão,
hipnotizado por aquelas paralelas que contra toda
geometria acabavam se encontrando na distância,
quedava-se a imaginar o que pensariam do mundo
aqueles seres estáticos que habitavam toscos
ranchos quinchados à beira das ferrovias. Saberiam
que a terra era redonda? Que o mar existia? Que a
terra girava em torno ao sol? Que, algumas horas
adiante, havia uma grande cidade onde o tempo se
escoava em ritmo mais rápido e tenso?
Em seu entusiasmo de guri fascinado ante o
mundo, perguntava-se como podia alguém viver toda
uma vida sem jamais ter saído do mesmo lugar. A
vida era movimento. A velocidade do trem, a
curiosidade ante a próxima cidade, por oposição
àqueles seres imóveis e portanto mortos, lhe dava
uma orgíaca sensação de vida. Pensava nestas e
noutras coisas, quando Gérson silenciosamente
boleou a perna da bicicleta velha e enferrujada. João
chupou o último sorvo da cuia, deitou água de novo
à erva e sem palavras estendeu-a ao operário-
apóstolo, que também em silêncio lhe bateu
afetuosamente as paletas com seu braço magro e
rijo.
— Bom aniversário!
“Puta que o pariu!”, disse João para si mesmo,
nem seus pais — aliás, nem ele mesmo — haviam
lembrado a data e o velho Gérson não a esquecera.
Mas havia uma certa secura na saudação, o que não
era de espantar, Gérson andava de um mau humor
atroz naqueles primeiros meses de 1956. Março lhe
fora particularmente aziago, a imprensa burguesa
fora açulada para uma campanha em massa contra
Stalin, financiada no mínimo pelo Vaticano e Wall
Street, segundo a ótica do funileiro. O Correio do
Povo dava longas colunas a supostos crimes
praticados pelo Pai dos Povos, e Gérson rangia os
escassos dentes vomitando pragas:
— Oligarcas de merda! Têm os dias contados e
reagem fazendo calúnias. Mas ri melhor quem ri por
último — e sua boca, de dentes há muito tapera —
se alargava antegozando o dia do levante dos povos
contra o inimigo comum. Não era stalinista, mas
tudo que contribuísse para destruir o mundo
capitalista lhe parecia bom, digno e justo.
Mas naquele dia o funileiro não parecia estar
disposto a mostrar as canjicas. João passou-lhe a
cuia, Gérson a apanhou com sofreguidão, era como
se não soubesse o que dizer e o chimarrão lhe
permitisse o tempo necessário para pôr em ordem
suas idéias. Após alguns sorvos, largou:
— Tá osca a situação, guri.
— Que situação, companheiro? — e João
sentia-se bem, em seus dezesseis anos, chamando
por companheiro o velho operário, que renunciava
aos domingos e ao repouso para fazer seu
particularíssimo contrabando de formiguinha.
— O camarada Stalin... essas calúnias todas...
— Não liga, tche! Que se pode esperar da
imprensa burguesa? — e a tranqüilidade com que,
do alto de sua adolescência, falava em imprensa
burguesa, parecia torná-lo irmão de lutas daquele
homenzinho franzino e seguro de si.
— Mas agora as calúnias estão até na nossa
imprensa.
E puxou um jornal da maleta presa ao
portacargas, dentro do qual existia de tudo, menos
as ferramentas de seu ofício. Era um jornal de três
dias atrás, de Porto Alegre.
— Segundo A Hora — continuou Gérson, com
a voz embargada — agora é o Pravda que começou a
atacar o Velho.
Gérson apanhou a garrafa térmica para servir-
se de mais um mate, enquanto João lia, sem
conseguir acreditar no que lia. A CIA teria se
infiltrado no Kremlin? Ou na Hora? Claro, havia
agente infiltrado no jornal gaúcho, não seria em
Moscou que os ianques teriam fincado as patas. Mas
assim sendo, que fazia o Partido que não tomava
posição ante o fato? E Gérson, sempre tão seguro de
si, sempre tendo na ponta da língua resposta para
tudo, interrogava mudamente o adolescente que, por
sua vez, estava mais confuso que o funileiro.
Enfim, Stalin passara e a ilusão persistira, e
ali continuava ele perambulando em meio ao festival
de consumo do mais burguês proletariado do
mundo. Perdera completamente seu senso de
orientação, não conseguia encontrar a saída,
quando uma voz mais que conhecida gritou-lhe:
— Soyez le bienvenu, jeune-homme de la
pampa!
Era Catherine, o amor de Balthazar, o horror
de Cristiano. Olhou para a faixa que encimava a
entrada da barraca, estava frente à célula de
Montparnasse. E lá estava a permanente incrível,
eternamente colada ao Baltha, controlando o caixa,
arrebanhando moeda vil capitalista para a saúde
financeira do Partido. Era uma bela mulher, tinha
de convir, mas tampouco podia discordar de
Cristiano, impossível conviver com ela e mais aquele
animal, aliás o imbecil já lhe saltara ao peito, queria
lambê-lo no rosto. João, sem jeito, tentava afastar o
cachorro sem ferir suscetibilidades.
— Thazar, aqui! — ordenava Catherine
inutilmente. Acabou afastando o bicho com uns
tapinhas carinhosos e abraçou João, pressionando-
lhe o sexo com o regaço, tinha malandragem de
latina a francesinha. Mas não seria João quem a
disputaria com o Baltha. Se Cristiano, o putanheiro,
não conseguira tomar o lugar do cachorro no leito da
permanente, não seria, desajeitado atroz antes as
mulheres, que chutaria o cusco da cama. Catherine
serviu-lhe um kir. A bebida, suave e fresca, era o
aperitivo que sua garganta pedia. Já seriam quatro
da tarde, o movimento era mínimo no restaurante,
Catherine abandonou o caixa e convidou João para
almoçar. Lembrou de repente que estava com fome,
não havia comido nada em suas deambulações, e
não resistiu ao convite. Catherine cruzou
rapidamente os braços sobre a grande mesa de
madeira ao mesmo tempo que, em sincronia com os
gestos dos braços, abria um largo sorriso e sacudia
a cabeça revolvendo os cabelos, gesto tipicamente
seu, uma espécie de travessão que sublinhava a
pausa entre dois momentos distintos de seu dia.
— Alors, jeune-homme, les nouvelles de là-bas?
João sentiu como que um balde de água
gelada nas costas, desejava um diálogo manso e,
inadvertidamente, Catherine mexia em suas feridas.
Em sua adolescência, França era algo
particularíssimo, o país talvez mais próximo do
Brasil, pelo menos para ele era o mais próximo,
pátria de Rousseau e Voltaire, a nação mais íntima e
mais presente e, apesar das léguas de oceano que o
separavam de Paris, ele desenhava de olhos
fechados o mapa do país almejado, suas fronteiras e
províncias, tinha até mesmo decorado o traçado das
ruas de Paris, mesmo sem jamais tê-las visto as
conhecia com mais intimidade que as ruas de
Livramento. Em contrapartida, para o parisiense, a
França tinha uma única e imensa fronteira: là-bas.
O país todo era circundado pelos países de là-bas,
fossem estes a Manchúria ou o Paraguai, era como
se a França se situasse no mais elevado promontório
do planeta e contemplasse do alto até mesmo o
Himalaia. Mas, tinha de convir, a coitada da
permanente não tinha consciência de tal presunção,
nem a menor intenção de provocá-lo. Era francesa,
simplesmente. João engoliu o là-bas e depôs as
armas.
— A última é a anistia!
— Olala! — explodiu Catherine. Explodiu em
vão, já que seu interlocutor não correspondia à
efusão do gesto. — Então, vais poder voltar?
“Santa desinformação!” — resmungava João,
enquanto a fitava perplexo. Para todo francês um
latino-americano de esquerda era, ipso facto, um
exilado. Não voltaria não, pelo menos não voltaria
tão cedo, para começar ele estava chegando, e já
pagara até o último centavo, sem tugir nem mugir, o
preço que os militares lhe haviam cobrado por seus
ideais de juventude. Podia voltar a qualquer hora,
era o que gostaria de dizer, mas teria tanta coisa a
explicar àquele cerebrinho oco, que preferiu jogar o
jogo.
— Posso voltar. Mas ainda não vou voltar.
— Em todo caso, uma bela notícia! —
continuou a permanente, estalando os dedos e
pedindo uma demi-pression a um colega, com aquele
gesto tão parisiense de pedir chope, polegar
distendido na vertical e voltando à horizontal em um
movimento rápido —. O Partido vai ser legalizado,
não?
Vontade de chorar. Ou de sumir. Como
explicar Pindorama àquele serzinho cartesiano? —
perguntava-se João. Que o partido talvez
continuasse na ilegalidade, mas seus membros
davam entrevistas a torto e a direito na condição de
dirigentes do partido ilegal, discutiam linhas e
disputavam cargos hierárquicos publicamente? Ou
imaginaria Catherine que os militantes do Partido,
naquele ano de 79, viveriam a condição de
maquisards sob a ocupação alemã? Sentia-se mal,
desagradavelmente cansado, quando, ao tentar
responder uma pergunta rápida sobre o Brasil, tinha
de introduzir a resposta com um ensaio sobre a
idiossincrasia das gentes de là-bas.
Balthazar o lambia pelos pés e pernas,
cheirava-lhe o sexo, e ai dele se desse um chute no
animal. Afastava-o com certo nojo, o cachorro
insistia, tentou lamber sua cerveja.
— Thazar, aqui! — ordena Catherine, e o cão
abominável passou a beber no mesmo copo da dona.
João sugere atá-lo fora da barraca.
— De jeito nenhum. Ele entra em crise.
Entenderia aquele cerebrinho parisiense que,
fora os exilados com reais motivos para o exílio, uma
massa considerável de brasileiros roía as unhas de
apreensão com a perspectiva da anistia? Na Maison
du Brésil o clima era de pânico, “não é possível, é
jogada da direita, é armadilha do SNI”, etc. Toda
uma malta de irresponsáveis que, sob pretexto de
perseguição política, gigoleavam francesas e
instituições francesas, não tinham agora pretexto
algum para permanecer em Paris. Este fora um de
seus primeiros choques, recebido já em sua
chegada, e choque bem mais contundente que os
elétricos. Se estes cicatrizavam mais cedo ou mais
tarde na memória, aqueles outros significavam mais
um pedaço de crença que desmoronava em sua
carcaça já tão judiada. Lá estavam os militantes do
Partido, MR-8, Var-Palmares, AP, JUC, enfim, das
dezenas de organizações clandestinas que haviam
proliferado após 64, mas o grande contingente
militava mesmo no FMP, certamente a maior força
política instalada às margens do Sena: Fodidos Mas
em Paris.
Explicar à francesa que o FMP era contra a
anistia? Que preferiam envelhecer lavando pratos ou
trabalhando como garçons ou porteiros de hotel a
voltar para o Brasil? A menos que fossem
convidados para um ministério, é claro... Catherine
não entenderia. Enquanto isso, Baltha enfiava o
focinho molhado de cerveja por entre seus seios
soltos e rijos e João considerava que, se
reencarnação houvesse, pediria para ser cachorro
em Paris, bem que não lhe desagradaria, mesmo na
pele de Baltha, tirar uma cria com aquela potranca.
Catherine desculpou-se, precisava passear
com Baltha, tu sais, il a ses besoins. Convidou-o a
acompanhá-la, João recusou educadamente,
horrorizado por dentro. Um ano de Paris já lhe fora
suficiente para sentir arcadas de vômito quando via
nas ruas um cão evacuando, ao lado de uma
velhota, que virava as costas para o animal e olhava
ao longe como se nada estivesse acontecendo. Não
lhe era difícil entender as velhotas parisienses e
suas solidões... Mas aquele espécime soberbo de
mulher, jovem, esportiva, cosmopolita e ativista, que
fazia com aquele cusco fedorento?
Como tampouco entendia os “militantes” do
FMP. A caminhada de Catherine com Baltha o fazia
evocar Zilá, gauchinha burguesa que decidira fazer
Paris por conta própria. Conseguira uma boca como
jeune-fille-au-pair, o que lhe garantia pelo menos
cama e comida. Mas não durou muito no emprego,
na ausência de Madame seu patrão interpretava sua
função como jeune-fille-au-père, serviços que
decididamente se negava a prestar, preferia jogar
bolsinha no Pigalle. Logo após conseguira um
trabalho de sonho, pelo menos para um latino, uma
viúva milionária lhe pagava mil francos mais casa e
petit déjeuner para passear com seu caniche duas
horas por dia. Detestava cães, mas como Madame
vivia peregrinando entre suas residências em
Chamonix, Mallorca e Marrakesh, só tinha de
assistir Loulou uma semana por mês, o que lhe
permitia tentar um doutorado em Paris III.
Loulou era um chihuahua, mais parecia bibelô
do que cão, acompanhá-lo não era tarefa irritante. O
duro era enfrentar Madame, mal se atrasava cinco
minutos lá vinha reclamação: Vous êtes en retard,
Mademoiselle. Loulou il est nerveux. O pior era a
volta: Il a bien fait son caca? Il a bien fait son pipi? Se
as coisas ficassem por ali, até que os mil francos
eram ganhos sem maiores sacrifícios. Mas Madame
exigia outros detalhes de ordem escatológica: son
caca, est-il de bonne couleur? Madame parecia
insistir em que contemplasse as dejeções de seu
cãozinho. O que também passava, além dos mil
francos tinha cama e café da manhã. Mas Zilá
deveria ter pecado muito em outras vidas, senão
como explicar a insistência de Madame em
apresentá-la a seu círculo de macróbias:
Mademoiselle da Silva, elle fait un doctorat à la
Sorbonne et se charge de mon chien.
Gaúcho, João não entendia como uma gaúcha
podia submeter-se a tais humilhações. Mas o FMP
gozava de um carisma poderoso, parecia ser mais
prestigioso estar em Paris sem fazer nada do que
estar em Porto Alegre fazendo um trabalho sério.

Catherine nadava rumo ao iate de Niarkos, da


praia mal se via o ponto escuro de sua cabeça,
boiava agora para descansar. No horizonte,
onipresente, as silhuetas de um cruzador e a do
barco do grego, este fundeado na baía de Cannes
naqueles dias de festival talvez para insinuar a
algum eventual idealista do Terceiro Mundo que
entre um filme e a Croisette há mais coisa do que
sonha a vã cinegrafia. Enquanto Catherine boiava ao
largo, Cristiano meditava sobre as tortas trajetórias
que os haviam juntado naquele mesmo ponto
geográfico. Gostava de retraçar no mapa o itinerário
dos reencontros e se pôs maquinalmente a marcar
na areia as cidades pelas quais havia passado antes
de aportar naquela praia.
Tudo começara — se é que não havia
começado antes — naquele distante réveillon no
Chalé, quando três universitários, a mente repleta
de sonhos, haviam abandonado Porto Alegre para
conquistar o mundo. Dalmácio, talvez em pânico,
talvez por cansaço, abandonara o combate. João,
que naquela noite já se imaginava em paris, estava
na prisão. E ele, que toda a vida tentara fugir do
Brasil e do jornalismo, que se refugiara em uma
glacial capital nórdica por julgá-la — ó santa
ingenuidade! — uma sucursal do paraíso, ele lá
estava, espichado numa medíocre praia do Midi,
cobrindo o festival de Cannes para a Folha. Não era
fácil fugir do Brasil.
Ao longe, no mar, começava a bracear de volta
a parisiense insólita, seus pulmões pareciam ter
cansado, remava agora de costas, lentamente, rumo
à areia, enquanto Cristiano ruminava sobre os
estranhos e aparentemente casuais encontros e
desvios de sua vida. Atingira a idade em que um
homem descobre — se é que um dia se propôs a
descobrir algo — que seus rumos, fracassos ou
vitórias, em um momento qualquer dependeram de
segundos ou metros, se tivesse apanhado esta rua
em vez daquela, se tivesse saído de casa à tarde e
não ao meio-dia, tudo poderia ter sido assim ou
exatamente o inverso.
Via-se em Ponche Verde atrelando um cavalo
a uma aranha, já descia a coxilha do Grupo Escolar,
em seu último ano de curso primário, voltando
definitivamente a seu universo rural, quando Dona
Ivone pula a cerca de alambrado e grita: “pára,
Clotilde, pára, teu filho tem de ir para a cidade”.
Mais trinta segundos e o tordilho teria desaparecido
no lançante da coxilha. O que o havia impelido a
Suécia e, uma vez lá, que deuses o haviam
apresentado a Lena-Lena? Que razões o haviam
levado a tomar o Eugenio C em Lisboa? Voltasse de
avião não teria encontrado Schneider, o marujo
providencial que o apanhara pela gola enquanto
namorava o mar qual um Hart Crane, e no momento
crucial lhe jogara no rosto a mais dura das
perguntas: “gostas de ti?”.
Voltasse de avião, mais cedo ou mais tarde
talvez tivesse sucumbido ao naufrágio que engolira
Dalmácio. Hesitara na resposta à pergunta de
Schneider e a hesitação o tornara consciente do
perigo que corria. Não fosse aquela viagem em meio
ao álcool e ao desespero, partido em dois pela morte
de Canário, talvez não estivesse agora deitado
olhando Catherine que emergia do Mediterrâneo, os
bicos dos seios agora eretos pelas águas frias de
maio, eretos e salgadinhos.
Mas era por demais orgulhoso para arriscar-se
a receber um não. Há mais de uma década não
ouvia de mulher este advérbio e seu segredo não
tinha mistério algum: salvo nos dias perturbados de
adolescente, jamais pedira qualquer coisa a uma
mulher. Talvez fosse aquele orgulho monstruoso,
barreira que o isolava do outro sexo, o que o impelia
a aproximar-se dos homens. Não que os preferisse
às mulheres, elas eram sempre mais quentes, mais
úmidas e funcionais, mas entre homens bastava um
olhar e seria ridículo qualquer discussão ou
confronto antes de se chegar às vias de fato. Os
solitários que vagavam à noite pela Croisette, sem
falar dos travestis soberbos da Antibes, com seios
que nada ficavam a dever aos de Catherine, mais
complementos outros que dispensavam largement a
ausência de clitóris, enfim, aquelas opções que
permaneciam sempre ao alcance de sua mão lhe
davam uma larga vantagem sobre a francesinha a
seu lado, seios pingando sal.
— Então?
— Cansei.
Cristiano também cansara. Mas outro era seu
cansaço.
Sentia que se afastava cada vez mais das
mulheres. Se olhasse para trás, tinha de admitir
dever-lhes tudo. Deixando de lado o famoso amor
materno, incondicional por definição, os anos o
haviam feito concluir que mulher alguma investia
um centavo em um homem sem esperar uma larga
compensação de volta. A calculista incrível que
arquejava ali a seu lado, pentelhos gotejantes,
estava em vias de separar-se de um certo Dominique
e já lhe exibia seus encantos, não que os quisesse
ofertar pelo simples prazer da oferta, mas através
deles estaria selecionando seu novo cônjuge, pois os
marxistas apesar de se pretenderem materialistas
não largavam mão do mais católico modelo de
matrimônio.
Depois, a experiência com as amigas que
haviam ficado em Porto Alegre. Nos primeiros meses,
uma, duas ou mais cartas por semana, a amarga
constatação de que todo gaúcho era um machão,
“sabes, nunca imaginei que o Fulano, tão
irreverente, era no fundo um moralista”, a
descoberta — oh! — de que só ele, Cristiano, não era
possessivo, que só ele as aceitava com suas
aventuras e infidelidades. Com o passar dos dias as
cartas começavam a rarear, o que não era
imprevisível, afinal a vida continuava seu ritmo lá do
outro lado do oceano. Até o dia em que recebia a
fatídica cartinha “olha, meu marido (te contei que
casei?) não está gostando de nossa correspondência,
te peço que não escrevas mais”, ou ainda a variante
“não manda mais carta para minha casa, te deixo o
endereço do escritório”, em suma, as meninas
haviam atingido a meta suprema, uma vez casadas
repeliam qualquer ameaça ao mesquinho dia-a-dia
de suas fortalezas de egoísmo.
Mas o tempo continuava implacavelmente a
passar, e em toda mulher que tocara ele deixara
uma marca difícil de apagar, a nostalgia da
perversão. Tinha certeza de que, depois dele, não
seria qualquer marido que abafaria os ocultos
incêndios ativados. Mais alguns meses, mesmo
anos, lá voltavam as cartinhas, “oi, como vais?, há
tanto tempo a gente não se escreve”, e depois de
banalidades várias, comentários inócuos em torno
aos acontecimentos do país, à política kamikase de
Monsieur Dix pour Cent, como era conhecido o
Ministro da Economia, inflações, greves, lá no
finalzinho vinha a frase decisiva, a que justificava
toda a carta, a que dispensava qualquer intróito:
“olha, estou tentando salvar meu casamento,
consertar o que ainda pode ser consertado”. Mas
elas pensavam o quê? Que casamento, uma vez
quebrado, se conserta com cola-tudo?
Catherine o acusava de dogmatismo:
— Há pessoas para as quais o casamento é
uma solução. Nem todos pensam como pensas.
Claro que não, não pedia isso a ninguém.
Cada um com seu cada qual. Outra era sua queixa,
não lamentava as mulheres em geral, apenas as que
conhecera de perto, e não haviam sido poucas. Elas
o admiravam por sua liberdade, jamais pedira
fidelidade a ninguém, podiam falar-lhe de seus casos
e fantasmas sem o temor de perdê-lo. Ele? Gostava
delas não só por ter chegado a este relacionamento
aberto, mas por sentir que encontrava a nova
mulher, a que não se submetia a um macho, a que
ganhava seu sustento e fazia de seu corpo o que
bem entendia. A que, em vez do solene propósito de
assumir seu lugar na História, assumia sua conta
nos bares, o que era bem menos abstrato e mais
necessário. E de repente, não mais que de repente, a
mulher que um dia o julgara livre, lhe escrevia:
“olha, meu marido não quer que eu continue a te
escrever”. Já não bastava a censura estatal, mais a
censura do jornal, tinha agora de submeter sua
correspondência à censura marital. Era só o que
faltava!
— Acontece que tu trocas de mulher como
quem troca de camisa — objetou Catherine.
Cristiano gostou da imagem, gostaria de poder
tratar as mulheres como cuidava de suas camisas,
conservá-las todas, mesmo as mais surradas e
poídas, com aquele carinho que nutrimos com
relação às roupas que acabaram tomando a forma
de nosso corpo. Mas a intenção da pergunta era
outra, a permanente queria luta.
— Não, senhorita. As camisas, eu as conservo.
Mulher, respeito muito: uso uma vez só.
Ria por dentro imaginando a tempestade que
estaria se formando no cerebrinho a seu lado. De
sua experiência dos últimos anos, extraíra uma
leizinha, que não pretendia tivesse validade
universal, mas lhe servia para consumo doméstico:
mulher quando escreve é porque está só, quando
deixa de escrever é porque encontrou homem,
quando volta a escrever é porque voltou a ficar só.
Era com ironia que abria as cartas das que voltavam
a escrever, sempre a frase fatal na primeira linha,
“oi, como vais?, faz tanto tempo...”, já pulava o
entrecho todo noticiando o que se passava no país
para chegar ao final, onde de uma maneira ou outra
a missivista insinuava que agora não mais havia
censor para uma eventual resposta. Ele respondia
sempre, isto é, pelo menos até o dia em que se deu
conta de sua abissal ingenuidade, de que elas
queriam exercer sobre ele exatamente aquilo cuja
ausência nele louvavam, o senso de exclusividade.
A horizontal daquela nesga do Mediterrâneo, o
débil sol do Midi que começava a aquecer-lhe a pele
mortalmente branca, tudo lhe incitava a baixar
armas, sugerir armistício, sem falar que sua relação
com Catherine nada mais tinha de amistoso. Por que
a convidara para o Festival? A mulher o atraía, sem
dúvida alguma, era um festival de curvas, uma
promessa de êxtases inefáveis ao afortunado a quem
ela houvesse por bem doar-se. E ali estavam, lado a
lado na areia, ela seminua confundindo-se com as
vedetinhas também nuas em busca de fotos, à noite
estaria completamente nua a seu lado, como estivera
na noite anterior, o púbis úmido e eriçado após a
ducha, lendo compenetradamente Le Monde,
enquanto Cristiano tentava apreender o sentido de
pelo menos uma linha de um prospecto qualquer,
ambos juntos, dia e noite, ao mútuo alcance das
mãos, e ao mesmo tempo infinitamente,
irremediavelmente distantes. Que praga os
separava? E se esboçava um gesto de carinho, lá
vinha pedrada: soit pas con, ne me touche pas!
Ao lado, uma malta de fotógrafos assalta um
serzinho toda curvas e trejeitos que começa a despir-
se.
— Pouca vergonha — comenta Catherine —.
Um diretor se mata fazendo um filme e a imprensa
se amontoa em torno a uma bunda.
— Bunda é mais vendável que inteligência —
ponderou Cristiano, olhando para a militante e não
propriamente para sua inteligência. — Ou
imaginavas o contrário?
Catherine começou a vestir-se. Irritação?
Despeito? Como saber o que se passa na cabeça de
uma mulher, particularmente quando ela pertence a
outra cultura, nutre outros fantasmas e mitos?
Sugeriu uma cerveja na terrasse do Carlton.
Cristiano topou.
— Então, te veste.
Vestir-se? Sentia-se bem de calção. Não
entendia.
— Vous êtes en France, Monsieur! Paganismo
só é permissível cá deste lado da Croisette, na praia.
Cem metros adiante, a civilização.
Vestiu-se. Il sont fous, ces Français!, pensou
com seus botões. Mal haviam sentado, duas
macróbias na mesa ao lado corroboraram as
considerações de Catherine. Evocavam uma viagem
à África. São uns primitivos, comenta excitada uma
madame, vivem sempre à poil. Divertida, Catherine
piscou-lhe um olho cúmplice.

O relacionamento entre ambos se deteriorava


dia a dia. Cristiano concebia dormir ao lado de uma
mulher nua, sem tocá-la, desde que pelo menos uma
vez na vida já houvessem se relacionado fisicamente.
O que o excitava em uma fêmea, fundamentalmente,
era o desconhecido, o ardor com o qual reagiria a
seus estímulos, os gemidos, a entrega, e ali estava a
seu lado, intocada, desconhecida, nua e inacessível,
aquela promessa de bacanal. E não contente de ler
impassivelmente o jornal, ainda o desafiava:
— Quoi, tu bandes?
E como poderia ser de outra forma? Mas
Catherine parecia não se satisfazer com a mera
provocação, parecia querer massacrá-lo:
— Vas-y, branle-toi!
Não, tudo menos masturbar-se, especialmente
quando tinha uma mulher a seu lado. Masturbação
era como maconha, tornava-se ridículo a partir de
uma certa idade. Como antídoto, antes de voltar
para o hotel, servia-se dos travestis da Antibes. Mas
a lembrança do travesti, mais Catherine nua,
voltavam a torturá-lo. Não havia ainda terminado a
primeira semana do festival, após alguns
telefonemas misteriosos, a permanente decidiu
voltar a Paris. Missão do Partido? Cristiano levou-a
até a gare, agora pelo menos dormiria em paz.
Catherine perdera o trem da manhã, tinham duas
horas pela frente até a próxima partida. Amolecida
por alguns chopes, abriu-se:
— Sei que não fui correta contigo.
Sabia? Mas soubera tarde.
— É que estou vivendo uma crise.
— Crise de foi?
— Mais non, le foie est OK.
Ah! o francês e seus homófonos. Cristiano não
falava de fígado, falava de fé. Aliás, julgara ter-lhe
tocado fundo no dia anterior. Haviam visto “Acidente
de Caça”, de Lutianov. Catherine saltitava de
contente ante a perspectiva de ver uma produção
soviética, sem falar que era inspirada em um conto
de Tchecov. Em meio ao telúrico casamento de
Olenka — interpretada por Galina Belaieva, que fora
aliás proibida de vir a Cannes, certamente para não
se deixar tentar pelo charme capitalista da Croisette
—, bodas luxuriantes em cores e sons, Cristiano
olhou à sua esquerda e viu a militante chorando a
cântaros, lágrimas rolando pescoço abaixo, rumo
aos seios, ombros tremendo, convulsos. Não teve
piedade:
— Te peguei, catolicona!
Foi como se duplicasse o efeito lacrimogêneo
produzido pela cerimônia. Catherine grunhiu de
ódio, deu-lhe um forte cotovelaço nas costelas,
chorava agora de raiva e comoção. Cristiano, com o
flanco dorido pela cotovelada, ria divertido. Todo
marxista, no fundo, era um catolicão, onde se viu
um materialista dialético chorar ante a mais
hipócrita das celebrações cristãs? Mas não era esta
a crise da moça. Seria Dominique?
— Não, nada disso. Dominique pertence ao
passado.
Hesitava. Cristiano pediu mais dois demis,
nada como o álcool para abrir corações magoados.
— Sabes, telefonei ontem para Paris...
Sim, ele sabia.
— Para Thazar.
Ah!
— Ficou no apartamento de minha irmã.
Telefonei e Thazar estava angustiado. Ele está
vivendo um momento muito delicado...
Sim...
— Ele era muito apegado a Dominique. E
ainda não se recuperou do trauma de nossa
separação. Recém agora estava se habituando a
dormir em minha cama.
Cristiano olhava-a perplexo. Quem estaria
bêbado, ele ou ela? “O pior de tudo, pensou, é que
são apenas onze da matina, e ninguém está de
porre”.
— E daí?
— Daí que não posso abandonar o Baltha em
um momento destes. Ele precisa de mim, entendes?
Estava desesperado quando ouviu minha voz. Il peut
faire une crise...
Chorava. As lágrimas se misturavam à cerveja.
— Entendes agora porque eu não conseguia
fazer amor contigo? Eu não podia. Thazar está só,
terrivelmente só...
O trem partiu lentamente, como partem todos
os trens. Da janela, chorosa, Catherine lhe acenava.
Era a própria imagem da França, como diria João
Geraldo: esquerdista e cachorreira.

É sábado e Paris parece morta, um sol débil


de primavera aquece o parque Montsouris. Cá e lá,
louras branquelas abrem os peitos àquele astro
impotente, o que lembrou a Cristiano seus dias mais
ao norte, quando ria das suecas que abriam blusas e
saias mal aparecia uma nesga de luz, expondo suas
carnes brancas à bolina dos raios. Não ri, lhe
advertira um dia Lena-Lena, basta que passes um
inverno aqui e vais te tornar um soldyrkare.
Adorador do sol! Jamais se imaginaria prestando tal
culto, e no entanto... Lena sabia do que falava.
Havia novas no universo do lago, pesava sobre
a superfície das águas um clima de tragédia, apesar
da alegria animal das carpas que adejavam se
refestelando ao sol. Cristiano escolhera o Chalet du
Parc como seu ponto privilegiado para observar os
homens e o mundo, não só pelo nome que lhe
evocava um outro Chalé, como também pelo lago à
sua frente, o verde lânguido dos chorões, aquela
vida mansa que fluía e o fazia sentir-se como que em
uma cidadezinha de província, sem falar da
proximidade de seu studio na Amiral Mouchez, em
suma, se alguém conhecesse seus hábitos e
soubesse que morava no 13, também saberia que ali
iria encontrá-lo.
Mas havia novas no lago, e más novas.
Desolado, encostado no muro que cercava a terrasse
do Chalet, um dos guardas do parque interrompe
sua leitura para contar que haviam roubado a
mulher de Arthur, e os cisnes, insiste o guarda, são
estritamente monógamos. A fêmea havia posto sete
ovos, o máximo para sua espécie, ovos que agora
haviam gorado. Arthur, pudico e humilhado, nem
mais navegava pelo lago, preferia esconder do
público o chagrin que dentro em pouco o iria matar.
Cisne. Newschwanstein. Dalmácio.
Cristiano partilhava da desolação do guarda,
mas não do chagrin de Arthur. Ou melhor, entendia
sua tragédia, mas não aceitava sua filosofia. Preferia
a nonchalance dos pombos, o macho estufava o peito
e trepava qualquer fêmea em meio a um festival de
arrulhos, se não acertava esta, mudava de rumos e
montava em outra. Claro, Arthur teria sempre mais
nobreza aos olhos daquela demoiselle que exibia
coxas e peitos, perto do coreto, aos raios de um
astro brocha. Arthur não veria como “objeto” a
companheira que lhe haviam roubado — vandalisme
des bougnoulles! dizia o guarda — enquanto aquele
pombo era o próprio latino, encarnava o que
doentias teorias haviam tido por bem batizar
falocrata. E aquela algaravia feminista fazia com que
ele, falo ambulante, preferisse as latinas.
Algum vírus, não sabia onde nem quando,
havia-se infiltrado no cérebro das européias, e toda
tentativa de aproximação ao estilo do pombo lhes
soava como ofensa. Seriam capazes de infernizar a
vida do monógamo Arthur com suas ofertas, desde
que no íntimo se sentissem cortejadas. O objetivo
era a cópula, claro. Mas Catherine, para não ir mais
longe, se pretendia civilizada e portanto diferente
das espécies animais, seres ditos inferiores — exceto
Balthazar, bem entendido —, enquanto Cristiano era
acometido por uma súbita vontade de inferiorizar-se,
de arrastar as asas em torno àquelas branquelas
com a mesma impunidade dos pombos. Gesto que
as cretinas tomariam como ofensa, se queixariam
talvez ao guarda, tão orgulhoso da fidelidade de
Arthur, mas o fato era que o cisne estava morrendo
a olhos vistos com toda sua monogamia, enquanto
que os pombos, naquele mês de maio, viviam uma
plena orgia primaveril.
O guarda foi embora, em busca talvez de
outros ouvintes a quem narrar o drama de Arthur,
Cristiano mergulhou em seus jornais. Não conseguia
concentrar-se. Cisne lembrava Ludwig, Ludwig
lembrava Newschwanstein e Neuschwanstein
lembrava Dalmácio. E assim continuava, lendo sem
ler, os olhos captando mecanicamente as palavras
sem conseguir estabelecer entre elas um nexo,
quando ouviu o que jamais imaginaria ouvir em um
sábado em Montsouris:
— Buenas, Doutor!
Não se moveu. Seria alucinação. Mas a voz era
inconfundível, aquele “buenas!” era lá da fronteira, o
sotaque de Livramento, a entonação, a pronúncia
clara, tudo indicava que o vulto a seu lado era João
Geraldo. Ergueu lentamente, incrédulo, o olhar. Era
João, mas ao mesmo tempo não era. O jeito de
encarar alguém, o pescoço semi-curvo, a cabeça
imóvel, o rosto que só ganhava vida após a resposta
do interlocutor, tudo aquilo era João. Mas que fora
feito das melenas hirsutas, da juba negra que não
conseguia esconder-lhe o sorriso aberto? Restava
um bigodinho fino semeado de fios brancos e a
calvície conquistara um largo território de sua
cabeça. Cristiano controlou-se para não demonstrar
surpresa, mesmo sabendo que o amigo que há seis
anos não via percebera interiormente seu pasmo.
Não podia ser verdade. E no entanto era. Não sabia
como reagir. Tratou-o impessoalmente, como às
vezes fazia, quando queria gozá-lo:
— Mas o senhor não devia estar na cadeia?
— Dever, devia. Mas acontece que estou aqui.
Faltava ainda algo para que o universo
retomasse seu sentido. Que estivesse em liberdade,
entendia-se. Mas como chegara ao Chalet?
— Bueno, passei na tua casa, não estavas. A
comadre concierge me falou que devias estar aqui.
Abraçaram-se. João sentou-se e começou a
falar como se aquela noite, no outro Chalé, tivesse
ocorrido na noite anterior. Ria de sua ingenuidade,
reunira todo seu escasso francês para informar-se
com a concierge, quando suspeitou que a dita era
portuguesa. Cristiano esclareceu:
— Concierge francesa, tche, só nos livrinhos
da Aliança Francesa.
Tinha vontade de perguntar-lhe pelos anos de
prisão. Como lhe haviam tratado os homens. A
pergunta se impunha, mas interrogá-lo significava
evocar tortura e Cristiano conhecia não poucos ex-
torturados que alimentavam um pudor quase
sagrado ao se tocar no assunto. Não perguntou.
Preferiu notícias de Porto Alegre.
— O Homem de Orion?
— Sempre às voltas com os extra-terrestres.
Encontrei o ser na Rua da Praia, os ouvidos
protegidos por uma espécie de capacete. Cansado de
ouvir besteiras dos terráqueos.
— Mário Quintana?
— Sempre nefelibata.
De repente, estavam na Rua da Praia. O lago,
os pombos, Arthur, as carpas, as branquelas
tomando sol, tudo desaparecera, não fosse o garçom
falar francês jamais se dariam conta de estar em
Paris. Por Soderman e Dalmácio, pergunta alguma.
Havia tempo de sobra para assuntos delicados.
No studio, os regalos. João poderia esquecer o
passaporte em uma viagem, jamais os presentes.
Cachaça — e por mais que um brasileiro
pretendesse não gostar da branquinha, em Paris
uma cachaça era sempre bem-vinda, era uma
espécie de reencontro com o passado. Limões
galegos — “ouvi dizer que aqui não tem destes”,
explicou João. Charque para o carreteiro ou feijoada.
Mais erva mate.
— Só não trouxe cuia e bomba.
Cristiano as tinha. Tentara pôr as francesas
no vício e a meninas não o aceitavam, não pelo
amargo da bebida, mas não admitiam chupar na
mesma bomba, era anti-higiênico, o normal seria —
reclamavam — que cada um tivesse a sua. Logo as
francesas: chupavam tanta coisa e alimentavam tais
pudores! A única a aceitar uma roda de chimarrão
fora Catherine, Cristiano lhe mostrara uma foto do
Che amargueando. Se o Che chimarreava,
chimarrear deveria ser bom. João habilitou-se a
cevar o mate, vomitando as novidades, com seu
vozeirão de estentor, à medida que lhe viam à
lembrança.
A conversa fluía em meio ao chiado da cuia
seca, Cristiano preparou uma salada de endívias
mais dois filés, quando o telefone tilintou. Seriam já
onze da noite, a chamada deveria ser do Brasil, ou
eventualmente de latinos, que franceses jamais
ousavam chamar alguém àquela hora. Não era. Era
a vizinha do andar inferior, a parisiense começou se
apresentando, não conseguiam dormir com a
conversa dos dois. Merda! — exclamou interiormente
Cristiano, não era a primeira vez que tinha
problemas com aquelas paredinhas de estuque,
tinha a impressão que se folheasse o jornal
acordaria o vizinho ao lado. As brasileiras sofriam
com o problema mas já haviam encontrado um
jeitinho, não havia patrícia que não tivesse o seu
radinho, ligavam-no a todo volume quando tinham
de abafar outros sons menos ortodoxos. Mas
considerava que a vizinha exagerava. João falava
alto, é verdade, mas não a ponto de perturbar o sono
de alguém. Seria uma crise de solidão, um pretexto
da vizinha para ouvir alguém.
— Desolé madame. Estou reencontrando um
velho amigo, vamos conversar até amanhã de
manhã. Sem falar que não tenho cachorro, sou
obrigado a falar com meus semelhantes. Et bonne
nuit.
6. NO FIO DE PRUMO
Naquele outono de 77, já tendo tomado pé
como correspondente em Paris, Cristiano fez as
malas e preparou-se intimamente para a viagem
dolorosa e obrigatória. Dolorosa, pois por linda que
fosse Munique, só lhe evocaria tristeza. Aliás, só
lugares tristes constavam de seu itinerário, os
castelos de Ludwig e os bares do Schwabing, não
que fossem tristes em si, pelo contrário. Dalmácio
fora incinerado. Mesmo que não o tivesse sido, não
iria visitar seu cadáver. Querias rever os bares sobre
os quais ele dissertara durante horas naquele
encontro absurdo em Lisboa, ver os castelos do rei
louco e particularmente aquele que, desde uma
longínqua noite em Porto Alegre, os fascinara
através do filme de Visconti, Newschwanstein.
Queria imaginá-lo em sua eterna gabardina bege,
gestos lentos e olhar duro, o também eterno
cachimbo pendendo do queixo. Tinha certeza de que
Dalmácio tinha certeza de que mais dia menos dia
ele faria aquele percurso. Enquanto perambulava
como fantasma em meio à alegria e efusão dos
bávaros, as impressões exteriores lhe perpassando o
espírito sem deixar marca alguma, tentava entender
que razões teriam levado o bom parceiro de mesa —
de cama e mesa, poderia dizer, já que partilhavam
inclusive mulheres, sem atrito algum — àquele gesto
estúpido.
Em sua angústia, Dalmácio pisava uma
questão que deveria estar resolvida, para qualquer
candidato a escritor, antes mesmo do primeiro
rabisco: para que escrever, se tudo já foi dito?
Centenas de vezes haviam retomado o assunto nas
deambulações pela Rua da Praia ou tertúlias no
Chalé e Oásis, Dalmácio se entusiasmava com belas
estruturas de contos e novelas, trabalhava-as por
alguns meses, para logo concluir, desolado: isso já
foi escrito. Tinha especial carinho por um projeto de
ficção, talvez escrito em forma de ensaio, “O
Protocolo dos Sábios Anciões”, onde via em cada
detalhe da cultura humana os traços de uma
gigantesca conspiração secreta para impedir a
emersão do novo na História. Os agentes maiores de
tal complô seriam os dignitários de todas as nações,
secretários de Estado, reitores de universidade,
diretores de instituições culturais, escritores
premiados, as igrejas e seitas, isso sem falar em um
exército imenso de funcionários menores pagos para
lutar contra o novo, sem sequer saber porque
estavam lutando.
Como todos seus demais projetos, este
também caíra no limbo das gavetas, não que já
tivesse sido escrito — Dalmácio julgava-o
originalíssimo — mas o fato é que a conspiração era
tão vasta e tão complexos seus mecanismos, que
não se sentia com braços para enfrentar um ensaio
com tais ambições. Já havia mesmo anunciado a
publicação de um outro, “A Célula-Mártir”, projeto
que contava com a total simpatia de Cristiano, já
que situava a prostituta como o nervo vivo e exposto
de toda sociedade: também o jogara de lado ao final
de poucas laudas. E muitos outros...
E mesmo que chegasse ao término de seus
projetos, a luta para editá-lo — e pior, divulgá-lo —
seria tão desesperadora, tão exaustiva, que o
escrever se tornava café pequeno. Era curioso: ao
caminhar pelos salões e corredores de
Neuschwanstein, Cristiano permanecia cego às telas
e móveis, às explicações do guia e ao burburinho de
turistas, seu passeio era em verdade um silencioso
diálogo com o distante companheiro, distante e ao
mesmo tempo muito próximo, pois o sentia a seu
lado, cachimbando ceticamente ante os sonhos e
angústias do perturbado Ludwig.
E numa daquelas noites em que uma nevada
extemporânea o fazia afundar cada vez mais em si
mesmo — não dominava o alemão nem tinha
conhecidos em Munique — para espairecer procurou
algum espetáculo. Joan Baez visitava a cidade, ele
gostava de sua voz e de suas canções, iria pois ver
Joan Baez. Apresentava-se no Olympiahalle.
Naquele baita galpão, como diria João Geraldo,
construído para as Olimpíadas de 72, Cristiano só
via ao longe uma mulher minúscula enfrentando dez
mil bávaros com seu violão. Para ver seu rosto, teve
de pedir binóculos a um vizinho. Gostava de ouvi-la,
embora preferisse possuí-la pela voz entre as
paredes de seu quarto. Pena que Joan Baez, em vez
de cantar, decidiu falar.
Dedicou uma de suas canções aos prisioneiros
políticos do Chile, e isso era bom, lembrava aos
europeus que havia homens sofrendo no Chile por
pensar diferente dos que os faziam sofrer. Dedicou
outra aos dissidentes soviéticos, o que também era
bom, por idênticas razões. Cantou ainda em
homenagem a Bangladesh, lembrando aos alemães
que havia homens sofrendo pelo simples fato de
terem nascido em Bangladesh.
Dez mil bávaros haviam saído de seus quartos
aquecidos para enfrentar a neve em seus Mercedes
flamantes. Cristiano multiplicou dez mil por doze
marcos, o preço da entrada, o que dava 120 mil
marcos por hora da apresentação no Olympiahalle
(onde havia ouvido aquele nome?), e lhe pareceu
magnífico ganhar 120 mil marcos por hora para
defender os oprimidos do mundo todo. Por um
salarinho daqueles, até mesmo ele, o descrente de
todas as lutas, seria bem capaz de empunhar uma
bandeira qualquer. Ao mesmo tempo, pelo preço de
duas ou três cervejas, os ricos e rotundos bávaros
solidarizavam-se durante uma hora com os
perseguidos do Leste e Oeste, Oriente e Ocidente.
Assobios, urros histéricos, punhos erguidos, gestos
de vitória: we shall overcome!
Baez atira beijos à multidão, acabara a grande
psicanálise de grupo. Logo depois seria a volta ao lar
aquecido, em um aconchegante útero metálico — e
por que não, se a neve caía tão densa, apesar do
outono? Quando Baez ou algum outro cantor da
moda voltasse a cantar no Olympiahalle (que lhe
dizia, afinal, aquele nome, evocando algo nada
agradável?), os superdesenvolvidos europeus
voltariam a lembrar Chile, URSS ou Bangladesh.
Antes que cessassem os urros daquela platéia
que parecia estar partindo para combater em plagas
longínquas, a idéia hedionda lhe veio à mente,
Dalmácio pulando do centro da imensa cúpula com
uma corda ao pescoço, balançando grotescamente
em meio ao vazio, sob os aplausos ensandecidos dos
corajosos social-democratas. Descobrira finalmente
onde se localizava o mal-estar que lhe percorria o
estômago: Olympiahalle, Dalmácio o ajudara a
construir em seus primeiros meses de fome e
humilhação no país em que um dia esperara ser
recebido como poeta.
Alguma pedra, alguma parede, um pedaço
qualquer de sua estrutura tinha o seu toque,
“era ele que erguia pedras,
onde antes só havia chão...”,
e se efetivamente se houvesse jogado ao
vácuo, suspenso por uma corda, em meio àquelas
manifestações de solidariedade universal, seria
considerado apenas um gastarbeiter exibicionista,
um louco reacionário, um estraga-prazeres, incapaz
de entender qualquer coisa de revolução. Porque os
alemães — como aliás os europeus em geral,
descobria Cristiano — adoravam solidarizar-se com
oprimidos de terras distantes, jamais com os que
lhes limpavam as ruas ou lhes erguiam as casas.
Pela primeira vez, riu em Munique. Ria
histericamente, às golfadas, em meio ao estrondo
ensurdecedor dos aplausos. Fora falta de
imaginação, ou talvez excesso de pudor, afastar-se
da multidão para se enforcar discretamente em uma
árvore hirta em meio ao bosque. Melhor teria feito se
balançasse qual pêndulo sinistro por sobre as
consciências social-democratas, extinguindo-se à
medida que se extinguiam as ovações. Talvez seu
gesto pudesse dizer algo de novo a alguém, ele que
julgava que tudo o que tinha a dizer já fora dito.

Se até 74 os anos haviam sido relativamente


gentis com Cristiano, 75 lhe dividiu a vida em dois e
o espírito em pedaços. Três anos de paraíso haviam
sido mais que suficientes para perceber que na terra
não havia paraíso algum e este fora o menos
contundente dos acontecimentos daquele ano, eixo
sobre o qual girava toda a década. O mundo
asséptico, organizado e frio dos Sveas não
conseguira sensibilizar seu ser latino. Percebeu estar
com saudades de tudo quanto abominara no
distante Sul, ao sentir vontade de ver de perto,
conversar, trocar considerações inócuas, não com
aqueles seres angelicais, saudáveis e perfeitos, que
mesmo vestidos de andrajos resplendiam beleza,
falar não com aqueles arquétipos ambulantes do
homem ideal, mas com uma negra velha e
desdentada, quem sabe com uma trouxa na cabeça,
ou vendendo acarajé ou jogo do bicho numa
esquina, enfim, aquele mundo tão perfeito o
entediara tanto a ponto de fazê-lo concluir que o
homem perdia sua beleza ao perder sua imperfeição.
Que mais não fosse pelo contraste...
Tudo começara com um desejo idiota de ver
uma negrona balançando grotescamente as ancas,
talvez o velhote que bebia água nas sarjetas de Porto
Alegre, que tanto mexia com o espírito de Jotagê — e
tanto mexera que ele continuava no cárcere —
vontade de conversar com Soderman, Quintana, o
Homem de Orion, enfim, sentia um vazio atroz, uma
falta faminta — läntgan, como diziam os suecos —
da Rua da Praia e seus habitantes.
Que fizera naquela terra de homens tristes?
Um cursinho de cinema do qual saíra sem saber
como abrir uma lata de negativos. O cinema fora a
grande ilusão de sua geração, tanto dos que não se
pretendiam mais do que espectadores quanto dos
que se sonhavam cineastas. Nos dias de Brasil, via o
mundo como uma projeção em uma tela, os países
longínquos tão perfeitos quanto o desenrolar das
histórias que neles se passavam. Não,
decididamente era um absurdo. Sentia-se um latino
miserável mendigando as sobras de seres ricos.
Com o espírito contaminado por uma amarga
sensação de fracasso, começou a fazer as malas.
Voltar ao Brasil, logo ele que, ao sair, pensara dizer
aos botocudos adeus para nunca mais! Voltar era
algo assim como descobrir que a vida não tinha
sentido algum. E se isso já havia descoberto, num
dia distante em Ponche Verde, redescobri-lo era pior
ainda.
O homem que chegara a Estocolmo fugindo do
Brasil e dos brasileiros fora soterrado pelos invernos
boreais. Já não se recusava a uma feijoada com a
colônia tupiniquim e notou que, com o correr dos
meses, se punha a batucar com dedos ou pés
quando ouvia um samba. Concedia até mesmo
conversar sobre futebol. E aquele outro radical que
nele coabitava, que fora em busca do país sem
putas, fora também soterrado pelo peso da
realidade: se elas se faziam presentes até mesmo
nas terra do sexo livre, por certo desempenhavam
um papel insubstituível na sociedade humana. As
colegas de universidade, suecas ou estrangeiras, já
lhe haviam aberto braços e pernas, não era mais o
fugitivo desesperado que se jogara em uma mulher
dormindo, bêbada, em seus primeiros dias de
paraíso. Mesmo assim, vez que outra, buscava
recurso junto às profissionais.
Mas a Suécia perdia seu sentido. Suas
reservas haviam chegado a zero, ficar significava
entregar-se à diska, lava pratos. Os austeros
condôminos do paraíso jamais cogitariam aceitá-lo
como um de seus pares. Aceitariam-no como diskare
ou em função semelhante. E Cristiano não se sentia
especialmente dotado para lavar louças, mesmo que
fossem as louças dos deuses. A volta se impunha e a
viagem perdera toda sua significação.
Era como se tivesse mentido a si mesmo:
certo, a vida não tem sentido, mas finjo que tem e
vou vivendo. Estava admitindo aquilo pela segunda
vez, o que implicava admitir a mentira anterior: há
tanto tempo sei que a vida não tem sentido, que
estou então fazendo nela? Lembrava um dia, ou
melhor, três dias que passara encerrado em seu
quarto na casa hoje tapera. Se enfurnara com uma
Bíblia e um monte de livros, desde o pensador
positivista argentino José Ingenieros ao matemático
Bertrand Russel e, ao final daqueles três dias e três
noites, praticamente sem comer, recebendo apenas
água por uma janelinha que dava para a cozinha,
pelas mãos assustadas dos pais, após aquela
passagem pelo deserto concluíra que a Bíblia era
uma antologia fantasiosa muito mal costurada, as
contradições não existiam apenas entre os seus
diversos livros, mas dentro de um mesmo livro.
Saíra daquele jejum com estômago e alma vazios,
sua única fé desmoronara. Que lhe importava então
morrer?
Foram dias de pavor para os camponeses. Nas
noites de tempestade saía nu e a cavalo, sofrenava o
animal frente aos ranchos e em meio aos raios
berrava, olhos ao céu e punhos batendo no peito:
“manda outro, grande Filho da Puta, manda outro e
vê se melhora a pontaria, Ceguinho de Merda”. Os
coitados se benziam entocados em seus casebres, as
mulheres cobriam espelhos e tesouras e facas de
ponta com lençóis e puxavam terços pedindo a Deus
que perdoasse o herege. Se não se suicidara
naqueles dias de desespero, não seria agora que
partiria voluntariamente.
Os dias finais de Estocolmo lhe evocavam
duramente as angústias de adolescente. Mas se
Deus não existia, era lógico que tampouco existisse
o paraíso. Com desolação tão intensa quanto o
entusiasmo com que fizera as malas quando fugia
do Brasil, fez as malas para voltar.
Mas 75 reservava outras surpresas. Há muito
perdera contato com Dalmácio, sabia vagamente que
trabalhava em um jornal, o que já não era mau,
ambos haviam chegado à Europa sem lenço nem
documento, nem ponto algum de encontro. Talvez
sentissem bem lá no fundo, ingênuos atrozes, que
em poucos anos dispensariam endereços, o
celebrado poeta brasileiro na Alemanha não teria
dificuldade alguma em contatar o celebrado cineasta
brasileiro na Suécia, e vice-versa, claro que jamais
haviam formulado, sequer para si mesmos, tal
hipótese, mas talvez não a tivessem formulado
porque a julgavam tácita. Acabaria encontrando
Dalmácio ao sabor do acaso — acaso? — em Lisboa,
voltando não da Alemanha para o Brasil, mas em
sentido inverso, em sua segunda e última viagem,
teimosia que lhe seria fatal.
Mal se despedira de Dalmácio, desesperado
com seu próprio fracasso e temeroso pela volta sem
sentido do amigo — voltas a quebrar pedras para a
social-democracia?” — o corpo todo lhe anunciou o
pior, a morte de Canário. A angústia foi se
consolidando, como cimento fresco que aos poucos
vai adquirindo peso e concretude, peso tal que quase
o puxava ao fundo do mar e, quando tudo parecia
perdido, quando se dilacerava intimamente por estar
voltando ao país que lá no fundo — mas em um
fundo muito raso — continuava a abominar, para
encontrar o pai que até então não entendera,
Canário morria. Tudo ia perdendo sentido, dia a dia,
hora a hora, sistemática e inexoravelmente, quando
surge um obeso exemplar do Milicus
latinoamericanensis, como diria João, e o puxa pela
gola e o confronta consigo mesmo, salvando-o da
sinistra tentação das águas turvas das noites do
Atlântico. Decididamente, a vida tinha tudo, menos
lógica.
Natal 75. Lá estava ele novamente, no país
que abandonara para não mais voltar, exercendo a
profissão que pensara ter abandonado para sempre,
sentado em uma redação semideserta, embalado
pelo ritmo lento de um telex que parecia
espreguiçar-se. Naquela manhã tórrida, quando de
novo as formiguinhas apressadas consumiam
desesperadas nas lojas da Rua da Praia e
adjacências, como que se abastecendo ante a
previsão de um temporal, ao entrar no Rian para seu
cafezinho matinal, viu nitidamente Dalmácio nos
traços de um indivíduo louro e magro encostado no
balcão.
Evidentemente não era Dalmácio, deixara-o
em Lisboa dois meses atrás, ele agora estaria em
Munique, mas algo estava por acontecer. Tinha neve
no meio, pois os cabelos daquele anônimo cliente do
Rian estavam brancos de neve, pelo menos no átimo
de segundo em que Cristiano viu em seu rosto um
outro rosto. Sua certeza de que logo teria notícias de
Dalmácio era absoluta, seu primeiro pensamento ao
despertar fora para ele, e estes sinais não o
enganavam. Tinha percepções insólitas ao acordar,
se assustara um dia dizendo ao sair da cama:
“merda, a vida é linda e um dia vou morrer”. Mas
naquele Natal, seu pensamento primeiro fora bem
outro.
Na noite em que se haviam despedido no
Oásis — e lá já iam quatro anos — naquela noite em
que expunham seus projetos de conquista, primeiro
da Europa e depois do mundo, Dalmácio lhe
depositara um voto de confiança, “tu tens
sensibilidade e revolta, Cristiano, espero que um dia
contes a história de nossas andanças”. Até ali
Cristiano só conhecia, se quisesse ser franco consigo
mesmo, a história de seu próprio fracasso. Acabara
voltando ao jornalismo, via recomendações de Deusa
Shiva, cujos ímpetos revolucionários haviam
murchado na proporção inversa em que seu ventre
inchara. O secretário Vaselina insistia em readmitir
“os jovens valores que voltavam com experiência de
Europa”, e a discreta tribuna já lhe satisfazia como
trincheira. Se não podia falar de andanças, poderia
pelo menos tentar expressar, na medida da
autocensura do jornal, as angústias de sua geração.
Despertara com uma vontade premente de
urinar e ao mesmo tempo de enviar um telegrama a
Munique, “olha eu aqui, ó Dalmácio, temos de novo
uma seteira de onde alvejar o mundo”, e não sabia
como lhe invadira a cabeça a palavra seteira, que só
empregara quando guri em palavras cruzadas. Mas
não mandaria telegrama algum, o que gostaria
mesmo era de ouvir a opinião de Dalmácio sobre seu
trabalho.
Acordara pensando no homem e o vira, branco
de neve, no Rian. Um medo qualquer lhe perpassava
o espírito e fugia pelos dedos, tremera ao erguer a
xícara e tivera de apoiá-la discretamente com a
outra mão, ou não conseguiria beber o café.
Apreensivo, rumara até a redação para sua leitura
matutina de jornais. Era uma quinta-feira, mas
Natal, e nos natais os terminais de telex
desaceleravam seus ritmos, os homens haviam feito
uma rápida pausa em suas matanças cotidianas.
Nada de novo, pois.
Voltara novamente ao jornal às sete da noite,
quando as formiguinhas consumistas já se haviam
enfurnado em suas células, exibindo às
formiguinhas outras as primícias de sua faina.
Lembrava um outro Natal, o de Adriana, e com
desalento levava sua coluna do dia seguinte, qual
formiguinha carregando uma partícula de seu
sustento (a imagem o irritava), quando Cappa, olhar
esbugalhado, entrou correndo na redação, ele
também formiga com uma folha nas mãos. Vinha da
sala de telex. Pegou Cristiano pelos ombros:
— O homem se enforcou. Numa árvore. Em
Munique.
Cristiano não se abalou. Tinha uma
esperança:
— Deve ser mais uma piada dele.
Agarrou-se naquela esperança como um
náufrago a uma tábua, embora saiba que em breve
irá morrer de sede. Disse qualquer coisa ao Cappa e
saiu, com ar de homem habituado a brincadeiras de
mau gosto. Não se dispunha a ir ao Chalé. Subiu a
Rua da Praia até o Oásis, onde haviam-se despedido,
e pediu ao português um uísque, dose dupla para
começar. Sentia que beberia não poucas naquela
noite e, à medida que bebia, relembrava os dias que
haviam vivido e bebido juntos. Aquela TNT atada ao
sexo. Seria um blefe, ou ele se disporia mesmo a
acender o pavio? No dia em que a haviam achado no
morro Santana, no alto da pedreira, ele cavara uma
cana entre os interstícios da rocha e pulara na cana,
que se envergava perigosamente sobre um precipício
de uns cinqüenta metros. Estaria fazendo uma
aposta? O telex de Munique seria talvez mais uma
piada ao estilo da TNT, se é que esta fora piada? Na
terceira dose, tomou uma decisão: se o filho-da-puta
voltasse, lhe quebraria a cara.
Alguém lhe bate ao ombro. Diúga,
oftalmologista, velho companheiro de noitadas,
quando coincidiam no mesmo ponto geográfico.
— Que olhar tétrico é esse?
Só o que faltava. Para Cristiano, oftalmologista
não devia arriscar-se a ir além da córnea. Que
necplusultrasse a íris, por favor. Não queria falar.
Mas acabou falando.
— Um filho-da-puta. Amigo meu. Me despedi
dele neste boteco, faz quatro anos. Pois mandou um
telex da Alemanha anunciando que se enforcou.
— Quebra a cara dele, na volta.
Sensato, o oftalmologista.
— Exato, é isso que ele vai levar.
“Se voltar”, ajuntou mentalmente.
Não lembrava do que dizia o Diúga a um
minuto de distância. Resistia bem ao uísque, mas
uma tensão interior lhe diluía a resistência. Uma
certeza se avolumava como bola de neve — neve?
Vira neve nos cabelos de Dalmácio, no Rian, e era
inverno na Europa! — e então teve certeza: o telex
não era blefe. Um choro convulso lhe embargou a
voz, jogou-se nos ombros de Diúga e chorou como
uma vaca.
76, ano bissexto, era ano de Dalmácio sorrir.
Mas não mais o veria sorrir. Nem teria a chance de
quebrar-lhe a cara.
Diúga sumiu rumo a seus rumos na noite, o
português do Oásis deixou-se contaminar por sua
tristeza e com voz embargada evocava o suicida que
há poucos meses estivera em seu bar, naquela
mesma mesa, “pensei que tivesse voltado para ficar,
estou quase a vê-lo cachimbando”. A madrugada já
ia alta, o luso só não fechava o bar por solidariedade
ao sofrimento de Cristiano, quando um pivete
anunciou a Folha na Rua da Praia deserta. Vaselina
teria feito uma nota sobre Dalmácio? Comprou o
jornal, folheou-o às pressas. Nada. A empresa
julgava ser gesto de extremo mau gosto tal tipo de
protesto e não os noticiava. Apenas Cristaldo, em
sua coluna, republicara discretamente o único texto
édito de Dalmácio, publicado em uma obscura
revista marginal, ainda em seus dias de Porto Alegre.
Vinha de longe seu cansaço e sua febre de viagens e
ele, cego atroz, não vira naquelas linhas o S.0.S. de
um suicida potencial, e sim mera literatice. Ó Deus,
escabelava-se Cristiano, quando vamos a aprender a
acreditar nas palavras e propósitos dos que não são
mais próximos?

Hoje estou cansado. Não que tenha feito um


grande esforço para sobreviver, mas cansado de
olhar a paisagem que se repete nesta viagem infinita.
A tranqüilidade que o passageiro ocasional encontra
em mim é apenas um equívoco seu: não sabe ver as
coisas, como acontece com a maioria. Já pensei que
um dia acabaria desembarcando numa pequena vila
de um país desconhecido. No fundo, sou como os
outros e gosto de acariciar ilusões, mas não me
entrego totalmente a elas. Sei que o próximo lugar
será como aquele em que vivi minha infância porque
meus olhos sabem ver apenas através da memória.
Sou cego a tudo que não vivi anteriormente. Meu olhar
é equivocado como o do passageiro que desembarca
na próxima gare. Mas eu sei que a memória das
coisas é maior que meu olhar. Então abraço o próximo
sonho nesta viagem conturbada e deixo-me ficar
embalado pelo comboio que começa a desaparecer
nas trevas. Mas o túnel não apaga a sede desta vida.
Velho-novo-velho. O primeiro livro que li foi uma
estória das Mil e Uma Noites. Simbad, o marujo. Não
sei se é de então esta minha ânsia pelo movimento,
ou bem mais antigas são as raízes desta inquietação?
Meu único desespero é permanecer. Penso que já em
sangue ancestral corria mistério e novos mundos. E
eu sou escravo de minha imaginação. Ir para: o objeto
indireto carece de importância. Ir apenas. E não se
diga depois que me encontrava fascinado por
paisagens estranhas. Todas as paisagens são tristes
se o homem é triste. Toda viagem é desesperada se o
homem é desesperado!... E é preciso estar tranqüilo
para descobrir que o mundo é diferente da
inquietação humana.
Nunca tive permanecido... Sim, algumas vezes
encalhado, mas o fascínio de ir nunca morreu em
mim. Tudo era tão certo que estava destinado a ir!
Mas a certeza do imensamente desejado destrói o
fascínio da chegada. Nunca são definitivas as nossas
“chegadas”. São apenas mais um ponto dentro da
trajetória vital. E eu não alcancei ainda o “imóvel
ponto onde tudo é dança”. Quando isto acontecer
morrerei tranqüilamente desesperado só para não
perder a graça das coisas. Burlar um pouco a vida,
alegra. Ser continuamente sério, cansa. Palhaço e
Monge. Eis duas coisas que junto têm sentido. Lá fora
chove. Seria isto também uma trapaça?
O que eu não daria para estar um momento
contigo!... Abraçar-te e sair pelos espaços míticos de
nossa memória. Vencer o branco-cinzento do dia de
hoje. Depois reviver a nossa solidão e a nossa
infelicidade!... E partir para que o nosso desejo
insatisfeito não torne pesada a nossa presença.
Somos de uma raça que se sente de longe. A
proximidade enfastia e oprime, e a nossa liberdade
está nas paisagens inconcebidas. Pintar o real com o
sangue de uma estirpe rara, e somos talvez os
últimos, não loucos, mas obcecados por novas terras.
Um lugar onde se possa aniquilar as carências do
homem. E onde o vazio não é tão profundo.
Estou tranqüilo e minhas sensações gozam de
uma harmonia estranha. Lá fora ainda chove. Uma
chuvinha reticente, atmosfera gris, enfim, um lugar
onde as coisas só podem reviver pelo pensamento.
Sentir é pouco aqui, a não ser quando há sol. Então
pensar não tem sentido, mas hoje é necessário
imaginar o nosso universo interior. Cantar
desvairadamente as fantasias eslavas. O fim está
perto e a porta deve ser aberta.
Nenhum homem é tão sublime que não
comporte o desespero.
Nenhum mundo é tão sublime que não
contenha insatisfação.
Se tal mundo existir, lá não existe o homem.
Apenas a rocha abrupta cresce. E também não existe
Deus, porque somente o homem cria Deus. Deus é a
insatisfação, a nossa imaginação desviada do real.

A carta, perdida entre uma pilha de festivos,


esperançosos, alvissareiros cartões de Natal —
sempre a maldita data envolvendo alguma coisa
ruim — chegou alguns dias mais tarde. Mesmo que
chegasse antes, já seria tarde — pensou Cristiano.
Munique, 15 dezembro 75
Cristiano:
realmente não tenho muita coisa para te
escrever. Isto é, assim como me encontro, o nosso
papo não seria dos mais interessantes. Claro que
estou rebentado. Tinhas razão, eu não devia ter
voltado à Alemanha, não havia perdido nada aqui.
Mas sabes como é, enchemos o cérebro de ilusões e,
de repente, o impossível nos parece tão ao alcance da
mão... E deve ser assim mesmo, caso contrário
ninguém ergueria um dedo tentando apanhar uma
estrela. Deves ter vivido isso em tua adolescência,
gostamos de uma menina, consideramos que basta
um olhar para conquistá-la e durante a noite, quando
tudo nos parece fácil, tomamos a decisão de abordá-
la no dia seguinte. Amanhece, e com a luz nossa
audácia e segurança desaparecem, quais morcegos
tementes do dia. Vivi isso, depois de velho, meu caro.
Minha disposição, naquelas nossas noites em Lisboa:
era a coragem das trevas, a que some quando
amanhece. Ao chegar aqui, despertei e despertei em
meio às brumas do inverno, mal pus o pé na
Hauptbanhof, percebi que jamais deveria ter voltado.
Estava voltando, migrante fodido, à terra dos super-
homens. Para quê? Talvez para morrer, respondia eu
a mim mesmo, rindo por dentro.
Meus contatos haviam partido — todo mundo
está de passagem nestas terras — e me senti velho
demais para esmolar de bar em bar a chance de
lavar pratos. Tive certeza de que o único lugar seguro
para mim seria uma clínica. Resolvi então voltar para
o Brasil, humilhação pro humilhação era preferível
humilhar-me entre os meus. Saí por aí. Fui para a
Itália, tentei achei um barco para voltar. Não havia
mais passagens até janeiro. E em janeiro eu já não
teria mais dinheiro para uma passagem. Para avião,
no dia seguinte, muito menos. Fui então para
Barcelona, a cidade que tanto te fascina, e que para
mim foi um inferno. Acho que não sabes o que é se
estar numa cidade de sonho sem um centavo no
bolso, tendo de se buscar nos mictórios um almoço ou
sanduíche para manter o esqueleto na vertical.
Mas minha vida não se normalizava. Então
resolvi ir a Paris, lá sempre há lugar para mais um
latino com fome. Ou havia. Fiquei lá apenas um dia e
voltei novamente a Munique, com o resto de meus
trocados. (Para quê? Acho que já sei para quê). Não
agüentava mais. Quinze dias sem tomar banho,
dormindo mal ou não dormindo e na cabeça
crescendo apenas uma vontade de me aniquilar de
uma vez por todas. Quando saí do Brasil não estava
bem. Mas com a experiência que tenho de minha vida
problematizada, as viagens sempre me fizeram bem,
ou ao menos permitiram que eu retomasse o
compromisso de continuar vivendo. Acho que foi por
isso que voltei a viajar. Vim para cá cego a tudo e
apenas buscando uma forma de liquidar com este
desespero. Desci muito. Perdi o senso das coisas e
acabei num estado a que antes nunca havia chegado.
Agora aqui outra vez. Não sei ainda o que vou
fazer. Por outro lado, gastei quase todo o dinheiro de
que dispunha. Não tenho vontade de fazer nada. Não
me importa fazer nada. O que acontecer está bem. Se
tu te encontras bem, acabas sempre achando um jeito
e a vida continua. Quem não tem jeito sou eu e tudo
vai mal.
Escreve-me logo, estou precisando disso. Conta
como estão as coisas por aí. Dalmácio
De Munique, Dalmácio desceu a Gênova, não
tinha mais dinheiro para uma passagem aérea, mas
os marcos que lhe restavam eram suficientes para
turística B em navio de passageiros, se bem que,
conforme a data de partida, necessidade de comer e
dormir, sabia que acabaria viajando em um
cargueiro, e quem sabe varrendo o convés. Não
importava como, o que lhe importava era voltar. A
Europa toda se lhe tornara um pesadelo, sentia-se
só e com frio, não tinha mais nem mulher nem
amigos nem dinheiro. Lembrava com ironia uma
frase de Henry Miller, nos seus dias de Paris, falava
dos tempos felizes em que não tinha nem amigos
nem dinheiro, sentia-se livre, o que talvez fosse
possível nos anos 30. Mas a Europa havia mudado,
cada país praticamente fechara as fronteiras, no
continente não havia mais lugar para poetas
vagabundos, apenas para mão-de-obra, e olhe lá!
Nevava em Munique quando partira, um
conjunto de bávaros tocava acordeão e cantava sob
os flocos que caíam, bem nutridos e abrigados
alemães compravam, passeavam e escutavam-nos,
ingerindo de vez em quando uma taça de quentão.
Dalmácio contou seus Pfenningen, bem que podia
dar à sofrida carcaça o bálsamo de um vinho
quente. Tudo era alegria naquele sábado que partia,
mas apenas em torno a si, já que ele, no fundo, se
sentia fracassado. O vinho desceu-lhe cálido pelas
tripas, esquentou-o por dentro, mas por fora
continuava gelado, a coriza lhe escorria pelos
bigodes ruivos e a neve limpava um pouco a
gabardina surrada e suja.
Tentaria chegar a Gênova sem comer, depois
que entrasse num barco qualquer pensaria no
assunto. Embarcar era sinônimo de salvar-se, nem
que fosse como clandestino. Se se mantivesse oculto
até o último porto europeu, podia considerar-se no
Brasil. Gibraltar poderia ter sido símbolo de medo e
incerteza para os primeiros navegadores, mas para
ele era augúrio de bons dias futuros, assim que
deixasse para trás as duas colunas estaria
tecnicamente salvo.
Havia sempre a hipótese de pedir
repatriamento. Ou alguns dólares a Cristiano, talvez
lhe enviasse algo para resistir mais alguns dias, mas
já não tinha seu endereço. Tinha o de João Geraldo,
era fácil de guardar e sequer necessitava de grandes
especificações: Presídio da Ilha, Porto Alegre, Brasil.
Mas naquela altura aquele gaúcho de Livramento,
última encarnação de uma raça extinta, estaria
necessitando, bem mais do que ele, de uma mão
estendida. E havia, é claro, velhos colegas, amigos
ocasionais da Rua da Praia, tinha certeza de que
algo lhe arranjariam caso enviasse uma mensagem
dramática.
Mas detestava mensagens dramáticas. Sem
falar que estava cansado, tanto de viagens quanto de
humilhações. Um orgulho abissal o impedia de
esboçar qualquer SOS. Certa vez, ainda guri,
nadando contra a corrente estivera a ponto de
afogar-se e tivera vergonha de pedir auxílio aos
companheiros que estavam próximos em um bote,
lhe soava como suprema humilhação admitir que
estava em maus lençóis. Arriscara a pior saída,
deixara-se levar pela correnteza e saíra na outra
margem, distante, para espanto dos companheiros
que lhe louvavam a proeza. Quando, em verdade,
estivera a poucos minutos da morte. Não, não iria
pedir coisa alguma a ninguém.

Mal entrou na Itália, a neve mansa


transformou-se em chuva torrencial, com raros
estios, da estação foi direto ao porto, entrou em um
imenso hall pingando água nos tapetes, sentia-se
encharcado até os ossos. Não, não havia barco
algum de linha nas próximas duas semanas.
Cargueiros? Vários, mas nenhum rumo ao Brasil. Se
queria reservar passagem no Eugenio C para
meados de dezembro? Não, não queria, seria tarde
demais. E pingando água, qual náufrago
desencantado com uma praia que não era praia mas
miragem, abandonou o hall, percorreu o cais
habitado pelos guindastes que também pingavam
água, encontrou um nicho seco entre dois
containers, encolheu-se qual cachorro com frio e
dormiu, sem vontade alguma de acordar.
Mas acordou. Chovia sempre. Não imaginava
quanto tempo havia passado, supunha que uma
noite, mas o dia era sempre escuro. Tinha de agir
rápido se quisesse sobreviver. Tinha ainda como
chegar a Barcelona, sentia-se como um general que
encontrara uma brecha para uma retirada segura.
Uma vez lá, talvez caísse do céu algum cargueiro, em
todo caso Lisboa estava mais perto, e lá estavam os
brasileiros fugidos do Chile, apostando em mais
uma revolução. O problema estômago estaria
resolvido e depois... depois veremos. Com novo
ânimo, rumou à estação pela Antonio Gramsci, em
outras circunstâncias aquela via lhe evocaria toda
uma gama de emoções, mas agora era apenas uma
imensa avenida poluída de carros e lavada por
aquela chuva demencial. E como mais tempo ou
menos tempo, mais fome menos fome, mais chuva
menos chuva, começavam a importar-lhe cada vez
menos, perdeu-se pelas ruelas sombrias e
aguacentas da parte velha da cidade.
As horas (ou dias?) que passara deitado entre
os containers, mais o calor do corpo, haviam secado
suas roupas, e a chuva de certa forma o purificara, a
imundície se esvaíra pelo menos da gabardina, mas
continuava a chover sempre, procurava agora
abrigar-se sob as paredes úmidas e envelhecidas de
Gênova. Em um dos bolsos o cachimbo inútil, que
às vezes sugava hipoteticamente, já que há muitos
dias não tinha mais fumo. E o estômago, que fora
anestesiado pelo frio e pela exaustão, recomeçava a
reclamar o seu. Perdido naquela cidade pluvial,
pluvinhenta, pluvimedonha — recordar Bandeira
naquelas circunstâncias não deixava de ter seu
toque irônico — vagando como um sonâmbulo,
sempre rumo à esquerda, que mais cedo ou mais
tarde acabaria na estação ferroviária, descobriu-se
de repente olhando a vitrine de um restaurante, a
italianada se embriagava chupando macarrões e
talharins, com aqueles gestos orgíacos de um
italiano à mesa. Olhou para a tabuleta:
O acrílico, não, não era um acrílico, mas um
anúncio em madeira, acima de sua cabeça, lhe
soava como realidade distante e inatingível,
enquanto que os suculentos fios de massa que
babavam das bocas constituíam uma realidade
próxima, embora onírica, já que entre ele e as
massas havia a vitrine e sua indigência. Descobriu-
se salivando intensamente, jamais imaginara que
reagiria um dia assim ante a comida, quando um
braço, cálido e afetuoso sobre seus ombros, ordenou
em tom de convite:
— Vieni!
Era Franco, soube depois, e pelo jeito e pelo
gesto, sabia muito bem o que era fome. Fê-lo sentar,
ofereceu uma grapa, o buquê já o entontecia, com o
estômago sem nenhum lastro. E iniciou-se uma
daquelas longas refeições à italiana, quando pensava
ser hora de pedir o café recém começava o segundo
momento da entrada. Dalmácio devorou pratos de
sopa, de massa, de arroz, saladas, para depois
chegar às carnes, continuando com queijos e frutas,
mais sobremesa, mais um panetone, que diminuía
magicamente de volume sob as estocadas rápidas de
Franco. Com uma fome de semanas, sentiu-se
absurdamente repleto, perguntava-se como podia
um italiano bem nutrido ingerir tudo aquilo em uma
refeição.
Franco era um desses operários anarquistas
que tudo que se possa fazer com as mãos já havia
feito, e nos intervalos andara lendo autores
explosivos, de Nietzsche a Trotsky, citando idéias e
livros com erudição desorganizada, é verdade, mas
de botar muito universitário no bolso. Entre a
sofreguidão com que comia e os vapores de álcool
que começavam a invadir-lhe os miolos, Dalmácio
gravou algumas frases, Franco falava de terremotos
e de Deus, que Roma decretara a decadência do
Ocidente ao optar pelo deus único dos judeus, que
agora qualquer terremotozinho ocorria no sul da
Itália e as comadres já se punham a acusar Deus,
quando na época pagã, se havia um deus a quem
culpar pelos estragos havia vinte a quem agradecer
pelas vidas poupadas. Que um terremoto era algo
providencial, a Itália toda ganhava, o Vaticano fazia
seu proseletismo com esmolas, os comunistas
faturavam eleitoralmente acusando a imprevidência
da social-democracia e a Máfia embolsava os
donativos enviados pelos generosos governos
europeus.
Sem falar que resolvia muitos problemas de
patrimônio, jovens recebiam heranças consideráveis,
livravam-se comodamente dos velhos sem ter de
assisti-los quando inúteis. E após um terremoto,
dizia Franco, podemos chorar uma semana ou um
mês, encharcar um lenço ou um lençol, mas
ninguém vai chorar a vida toda, que os mortos
enterrem seus mortos e a vida continua, melhor rir e
continuar vivendo, salute!
Dalmácio, que minutos antes sentia-se um
trapo, de repente recobrou um certo ânimo, sentiu-
se como se estivesse discutindo sobre deus e o
universo, no Chalé, com João e Cristiano, sem
preocupação maior que a de saber se a vida tinha ou
não um sentido. No entanto, quando a fome
apertava, tal pergunta que tanto inquietava os
homens era de uma importância ridícula, as razões
do estômago manifestavam-se então imperiosas.
Estômago saciado, até aventou com Franco algumas
hipóteses suas em torno à divindade, e aquela pausa
em meio à guerra, armistício inesperado sob a
tempestade, o comoveu até as lágrimas, tinha uma
vontade de abraçar e beijar aquele operário de idade
indefinível, mas se conteve, foi ao banheiro e secou
as lágrimas que se confundiam com as gotas que
ainda lhe pingavam dos cabelos e — notaria bem
mais cedo do que esperava — aquele otimismo pagão
do amigo inesperado lhe seria paradoxalmente
funesto. Pois afinal, se a vida continuava mesmo
após os terremotos, que mudaria na face da terra
após o passamento de mais um escritor fracassado?
Tudo era importante e tudo não importava coisa
alguma.

Entrou no Schwabinger Brett justo quando


um cantor, barba e cabelos brancos, no rosto as
rugas de muitos mares, cantava em sotaque
carregado de charme olê mulê rrenderra, olê mulê
rrendá. O bar estava repleto, conseguiu lugar em
uma mesa tomada por bávaros. Dalmácio
constatava, agradavelmente surpreso, que aos
bávaros não era necessário muita coisa para que se
alegrassem. Sentou-se e puxou o cachimbo. Como
ambiência de sua última noite, o clima o satisfazia.
Uma rara calma interior o invadia, aquela mesma
calma que o fascinara certo dia ao assistir “Le Feu
Follet”. O personagem de Louis Malle, com a mesma
tranqüilidade de quem decide ir ao barbeiro na
manhã seguinte, dizia para si mesmo ao espelho:
“amanhã vou me matar”. Apesar de seus cabelos e
traços germânicos, seus vizinhos de mesa o
pressentiam estrangeiro e tentavam adivinhar sua
nacionalidade:
— Schwede?
Não, não era sueco.
— Däne?
Não, muito menos dinamarquês.
— Pole?
Não, não vinha da Polônia. Estavam perto da
verdade, mas honestamente não podia se dizer
polonês. Não conhecia a pátria de seus pais e dela só
guardava algumas palavras ouvidas na infância. Os
Deutschen foram descendo rumo ao Sul, aventaram
França e Itália, tentaram até mesmo Nova Zelândia e
Austrália — e de repente Dalmácio se dá conta de
que não tinha idéia nenhuma, sequer uma imagem,
da Nova Zelândia. Na era das comunicações tinha-se
imagens da mais remota ilha do Pacífico, mas da
Nova Zelândia, pelo menos ele não sabia o que
pensar, o que aliás o fascinava, não dissera alguém
que os povos felizes não têm história? Só então
resvalaram para o continente sul-americano.
— Brasilianer?
Brasileiro? Sim, havia nascido no Brasil, mas
daí a dizer-se brasileiro ia uma longa distância.
Gostava daquele cálido espírito de confraternização
do brasileiro, das aproximações sem protocolo, ao
mesmo tempo em que não suportava aquela
fatalidade cabocla, o homem que aceitava condições
indignas de existência desde que o time tal ganhasse
um campeonato qualquer. Não podia nem mesmo,
como Cristiano, dizer-se gaúcho, apesar de ter
nascido em Erechim. Sentia mistérios correndo em
seu sangue e a ânsia de novas paisagens. Tinha de
admitir: era um deraciné. Mas como explicar aquilo
tudo, aquela pergunta para a qual ele mesmo não
tinha resposta, como explicá-la ao bávaro que
afavelmente o interrogava? Preferia facilitar as
coisas:
— Jawohl. Brasilien.
Melhor permanecesse calado.
— Brasilien? Já so, Pelê?
— Já, Pelê.
— Chairssinho!
— Chairssinho!
— Garincha?
Sim, Garincha, e Dalmácio tinha vontade de
chorar não fossem os ímpetos de rir ao ouvir a
palavra Garincha, sem o erre gutural. Que maldição
era aquela a persegui-lo por onde andasse? Nem na
Alemanha conseguia livrar-se da imagem do país do
futebol, fugia dos delírios coletivos tupiniquins e lá
naquele bar perdido do Schwabing um bávaro o
fazia voltar ao passado abominável. Não podia deixar
de evocar Cristiano, que abandonara o Brasil mais
por nojo de futebol e carnaval do que por qualquer
outra razão. Mas em sua última noite não queria
guerra, mas trégua, armistício, um pouco, que mais
não fosse, um pouco de paz. Por curiosidade, quis
saber que outras imagens ocorriam a seu vizinho de
mesa ao ouvir Brasilien.
— Matança de índios.
— E depois?
— Energia nuclear.
“Da barbárie à decadência sem passar pela
civilização”, pensou Dalmácio. Cristiano tinha razão:
quem viaja leva a pátria nas costas e não havia
como desembaraçar-se daquele fardo, nem mesmo
ele que pensava não portar fardo algum. Mas não
queria entrar em discussões nem em explicações,
naquela noite tais problemas lhe pareciam
pequenos, longínquos, mesquinhos. Se Erechim
jamais lhe significara algo — saíra pequeno da
cidade, rumo a Porto Alegre, porto ilusório de todo
jovem inquieto do interior — agora mesmo Porto
Alegre lhe parecia zero à esquerda, o próprio Brasil
não era mais do que titica de mosca na unha de seu
mindinho.
Chegara a um nível de higidez fronteiriço à
loucura, tudo lhe parecia grande e ao mesmo tempo
ínfimo, era como se a consciência se expandisse em
ondas que rolavam sobre o universo conhecido e
desconhecido, como se o cérebro latejasse chegando
às raias de uma compreensão além de sua
capacidade, jamais conseguiria pôr em palavras
aquela embriaguez de uma sobriedade absoluta,
tinha a impressão de que esferas de raio infinito
rolavam num plano mais infinito ainda, como se
infinito pudesse admitir gradações. Olhava o bávaro
com um sorriso divertido, por certo ele o veria como
o brasileiro sempre sorridente, feliz mesmo na
miséria, e o alemão insistia em escalar a seleção
toda, logo a ele, cuja erudição futebolística
terminava no Garincha, imaginasse o Fritz a seu
lado o que lhe passava nos escaninhos do cérebro
por certo o olharia com medo e terror.
Curiosamente, naquela noite sem esperança,
suas lembranças eram todas ternas. Vontade de
beijar Cristiano, não queria feri-lo, mas a decisão
estava tomada e voltar atrás seria ridículo. Gostaria
de tê-lo ali naquela noite. O jornalista que não era
jornalista e que se destruiria se continuasse a fingir
que o era, bem que tentara dissuadi-lo de voltar
naquelas noites tépidas de Lisboa, tão próximas e ao
mesmo tempo tão irremediavelmente passadas, “já
quebraste pedras uma vez na Alemanha, queres
voltar para quebrar mais pedras?”
Cristiano o gozara afavelmente, lembrando os
falanstérios de Fourier, onde este previa até mesmo
um ofício para os jovens cujos ímpetos eram
dirigidos à destruição da sociedade em suas próprias
bases: trabalhariam em serviços de demolição.
“Voltas para demolir o Olympiahalle?” Mas Cristiano
havia voltado ao país de onde fugira amarrotado por
dentro. Seria um gesto inteligente? Idiota ele não era
— considerava Dalmácio, triste, atrozmente triste,
em meio à euforia do vinho e das canções, o velho
cantor de rosto com rugas de muitos mares agora
cantava “vou-me emborra, vou-me emborra, prrenda
minha, tenho muito o que fazerrr”, e ele, que de fato
ia embora, ia exatamente por não ter mais nada a
fazer — e sua atitude dava o que pensar.
Mas já não conseguia pensar, senão lembrar.
Jotagê ainda estaria nas grades e sua libertação era
tão incerta quanto os humores dos militares, o
Brasil havia resvalado naquele perigoso declive onde
as leis não passam de papéis pintados com tinta.
Dalmácio até mesmo o invejava por estar atrás das
grades, fora preso por crer em algo e era bem melhor
estar no cárcere acreditando em qualquer coisa do
que estar livre sem crer em nada. Generoso como
era, mesmo na cadeia acabaria assumindo parte da
culpa ao saber da notícia. Dalmácio esperava que
amigos e conhecidos comuns tivessem o tato de lhe
poupar a má nova.
— Mulatas?
Finalmente o Deutsche falava de algo sério.
Sim, no Brasilien mulatas é o que não faltava, donde
sabia Herr Fritz que mulatas era outra imagem de
marca do Brasilien? Num português certamente
aprendido na cama, seu vizinho tentava fazer-se
poliglota:
— Eu gosta mulatas. Mulatas muito bom
corrazón. Eu amo mulatas bom corrazón.
“E que coração!”, se dizia Dalmácio, tentando
explicar ao Fritz que mulatas provocavam crises
cardíacas ao desfilar nas ruas gingando o corrazón,
o alemão não entendia patavinas de sua metáfora e
ele se divertia interiormente com aquela carência
absoluta de humor, vai ver que o Fritz gostava
mesmo era do coração das mulatas. No fundo,
estava tranqüilo, como é tranqüilo todo homem que
sabe o que vai fazer.

Tudo quanto fosse bom ou belo parecia fazer-


lhe mal. A generosidade e a bonomia de Franco em
Gênova, seu amor facti, como diria Nietzsche, aquele
festival de sensualidade e cores em Barcelona,
aquela Paris de braços e pernas abertas, onde
zanzou como um zumbi pelo espaço de um dia,
como para despedir-se, cuidando de ficar com os
vinténs suficientes para chegar ao término de seu
desastrado itinerário — talvez entendesse agora
porque gostava de hotéis chamados Terminus —
toda aquela orgia oferta a quem tivesse um trabalho
ou dinheiro o empurrava cada vez mais e mais ao
“imóvel ponto onde tudo era dança”.
Difícil se fazer entender quando se vive e se
pensa gangasrotogati — dizia Dalmácio a seus
botões naquela glacial tarde de dezembro, enquanto
subia o escorregadio aclive rumo ao castelo de
Neuschwanstein. Principalmente quando se vive
entre homens que vivem e pensam kurmagati, ou no
máximo, madeikagati. Ao ler pela primeira vez este
aforismo se perguntara se Nietzsche já não
começava a mergulhar na grande noite da loucura.
Ainda não. O homem não falara em sânscrito toda
sua vida? De fato, não era fácil viver e pensar do
tamanho do Ganges, entre homens que viviam e
pensavam como tartarugas, quando não a saltos de
rãs.
Quando imaginava aquela alma do tamanho
do Ganges implorando uma migalha de afeto a Lou
Salomé, propondo casamento a Mathilde
Trampedach, apenas três dias após conhecê-la,
Dalmácio sorria amargamente por dentro:
“Senhorita, tomai vosso coração com as duas mãos
para não vos espantar com a proposta que vos quero
fazer: desejaríeis ser minha esposa?” Mas o mesmo
não parecia a Mathilde. E a raça infame das
feministas pretendia ver em Lou Salomé uma
precursora, a mulher que exigia ser tratada pelo
poeta como igual. Mas como poderia Nietzsche tratar
alguém como igual?
Vinha-lhe à mente aquela introdução
majestosa do livro que se apressara em acabar,
prevendo a aproximação das trevas: “Ouvi-me! Eu
sou alguém e sobretudo, não me confundais com
qualquer um”. No entanto, haviam-no confundido. O
homem mais sublime do século acabara contraindo
sifílis em um prostíbulo, numa relação que para
muitos de seus biógrafos fora a única de sua vida.
Não era fácil ser gangasrotogati.
Ludwig o teria conhecido? Talvez Wagner lhe
tivesse falado do obscuro professor de Bale. O rei
louco, como diziam os bávaros, teria talvez
entendido o poeta que rumava à loucura. Mas
Nietzsche tivera um príncipe a protegê-lo, e ele não
tinha sequer pai ou mãe ou amigo ou salvação à
vista.
A altura e a neve lhe pesam nos pés e
pulmões. O dia é luminoso, embora sem sol, em
virtude do lençol branco que cobre os galhos
despidos da floresta. Cá e lá, um ruído surdo de
neve — o límpido instante da queda? — quebra o
silêncio abissal da montanha. Após meia hora de
lenta ascensão, encimando as copas encanecidas
pelo inverno, emerge difuso o donjon de onde Ludwig
contemplava o vale em que se refugiara. O momento
era mágico, as linhas da torre pareciam partir dos
galhos hirtos e se confundiam com o cinza do
firmamento. “Chique — pensou — acabar em
Neuschwanstein não é para qualquer pé-de-chinelo”.
O castelo o fazia evocar Porto alegre, o filme de
Visconti no cine Vitória, e naquela noite tomara a
decisão de não morrer sem antes visitá-lo. Lembrava
uma discussão no Chalé com Soderman, que na
época além de crítico literário se pretendia crítico
cinematográfico — fora Cristiano quem o apelidara
de deusa Shiva, tinha braços para tudo — e
Soderman, apoiado no balcão, com a xícara de
cafezinho imóvel ante a boca, fora definitivo: “obra
menor, decadente”. Mas quem pensava ser aquele
critiquinho, homenzinho de vida e hábitos regulares,
que mais não lhe permitiam os magros centavos
pagos pelo Suplemento Rural das Letras, quem
julgava ser para, do alto da tribuna do Chalé,
condenar peremptoriamente como decadente e obra
menor a análise feita por um dos mais lúcidos
cineastas da época, em torno à vida de um homem
sensível, desesperado — e o pior — detentor do
Poder? Imaginasse Visconti o ar superior e tranqüilo
com que Soderman, entre um cafezinho e outro,
condenava o seu filme, talvez nem ousasse distribuí-
lo no Brasil, aquele país maravilhoso em que um
intelectual que jamais abrira uma lata de negativos
se arvorava — árvore? Onde uma árvore? — em juiz
de Suprema Instância na condenação ou absolvição
de uma obra de arte.
Entrou no castelo. Antes de começar o
passeio, pensou em mandar um postal para
Cristiano, aquele distante papo em Lisboa lhe
trouxera paz. Mas agora postal algum, frase alguma
teria sentido, só serviria para intensificar sua dor.
Apalpou com carinho a sacola. Mais algumas horas
de angústia, ainda.
Ao percorrer as salas de Neuschwanstein, não
conseguia sair do filme de Visconti, há tanto tempo
visto lá no Sul. Talvez seus pés estivessem pisando
pela primeira aqueles tapetes, mas há muito seu
espírito já adejara por entre aquelas paredes,
caminhando ao lado do rei louco, consolando-o da
incompreensão de seus ministros e de sua época.
Ludwig se recusava aos prazeres oferecidos pelas
damas da corte paras buscá-lo entre seus criados. O
país estava em guerra e o rei ignorava solenemente o
fato. “Diga aos generais que desconheço esta
guerra”. Não havia anestésico nos campos de
batalha por falta de dinheiro, enquanto o rei se
preocupava com uma sala para os concertos de
Wagner e com o pagamento das dívidas do
compositor. Suspirou com alívio quando seu exército
capitulou. Isola-se aos poucos da corte, encerrando-
se com seus criados, solícitos a qualquer capricho
seu.
Na sala de jantar, Dalmácio contempla a mesa
que descia até a cozinha e depois voltava para que o
rei não visse — ou se escondesse de — seus
semelhantes. Desejava sumir da memória das
homens, quisera inclusive evitar o assassinato, reis
assassinados permaneciam sempre vivos na
História. Quisera permanecer um enigma, para si e
para outros. Parecia tê-lo conseguido. Ludwig
recordava a Dalmácio aquele momento soberbo de
Ney Messias, o Construtor de Mistérios, o genial e
solitário pensador solenemente ignorado pelos donos
da cultura gaúcha: “A identidade é um pélago, um
abismo, uma verticalidade em que se cai
continuamente, porque não tem fundo: o nome é um
momento da queda, um limpo instante do
despenhadeiro”.
O momento da queda. O limpo instante do
despenhadeiro. Dalmácio entendia agora porque a
frase o tocara tão fundo. Premonição? Desconhecia
seu íntimo, mas às vezes recebia avisos, frases que
lhe vinham ao cérebro não sabia de que abismos,
como se um outro interferisse nele, Dalmácio, e o
impelisse a desocupar a carcaça para deixar, ao
outro, espaço. Porque a identidade, como dizia o
Ney, não estava no nome, nem mesmo na pessoa:
chorava e cantava na incógnita eterna do “quem é?”,
a mais tremenda pergunta que um homem podia
fazer a respeito de si próprio e a respeito dos outros.
Permaneceu longo tempo na sala destinada a
Wagner. Ludwig não chegara a vê-la concluída, não
tivera a ventura de nela ouvir seu protegido.
Músicas estranhas começavam a invadir seus
pensamentos, que em verdade nada tinham a ver
com Ludwig ou Wagner, ou talvez tivessem, sim,
certamente teriam, porque os homens que haviam
ousado mergulhar no pélago da identidade eram no
fundo todos iguais, não havia diferença alguma
entre Swift ou Nietzsche, Wagner ou Pessoa.
Melodia vaga
para ti se eleva.
E, chorando, leva
o teu coração,

já de dor exausto,
e sonhando o afaga.
Os teus olhos, Fausto,
não mais chorarão.
Pessoa. Outro gangasrotogati. Arma escolhida:
cirrose hepática. Apertou novamente a sacola contra
o corpo, e o universo lhe pareceu uma obra prima de
ironia. Homem algum conhece alguém, já que sequer
conhece a si mesmo. Os raros turistas que visitavam
o castelo naquele frio dezembro imaginariam estar
roçando com um viajante que intimamente já
dissera adeus à raça humana?
Ou vice-versa. Quem sabe aquela espanhola
solitária que percorria as salas em ritmo vagabundo,
uma sombra de tristeza nos olhos, daquelas
tristezas que prometem uma ternura imensa, quem
sabe ela não o estaria procurando, quem sabe ela
não o traria de volta à vida? Como abordá-la, como
dizer-lhe tudo em uma palavra? Deveria existir um
código universal — padres e psicólogos, estes
senhores tão preocupados em resgatar vidas,
deveriam pensar mais no assunto — um código
discreto de fácil interpretação que indicasse a
qualquer cidadão que seu portador navega sem leme
nem âncora e o barco já começa a fazer água.
Ele já tomara sua decisão. Uma espécie de
preguiça mortal — e o mortal ali não era figura de
estilo — o impedia de retomar a dolorosa escalada
de retorno ao mundo dos vivos. Ela, a turista
melancólica, talvez jamais tivesse pensado no
assunto. Se a abordasse: “queres salvar um homem?
Então fica comigo esta noite, uma noite me é
suficiente para recobrar meu orgulho. Se ficas, não
me enforco”. Se assim a abordasse, ela
provavelmente chamaria a polícia ou, na melhor das
hipóteses, lhe daria alguns marcos para comprar a
corda, esmola que aliás já era desnecessária, sentia
nos cotovelos, dentro da sacola, as rodilhas daquela
víbora inerme que em breve seria fio de prumo,
cortando verticalmente o silêncio glacial do vale.
Não, não valia a pena qualquer tentativa de
abordá-la. A chance de um gesto de compreensão
era de um em um milhão, e muito vasta, vasta
demais, a possibilidade de mais humilhação e
ridículo. O mesmo deve sentir, imaginava, um
canceroso sem esperança alguma de cura: todo e
qualquer diálogo com pessoas sadias era impossível,
ele vivia numa outra dimensão, num universo
paralelo que apenas por acaso interpenetrava o
mundo dos vivos. Eram duas linguagens
absolutamente intraduzíveis uma à outra...
Por experiência própria sabia que, quando
desesperado, todas suas tentativas de aproximação
redundavam em desastre, já que raramente o
interlocutor seria um desesperado. Mesmo assim,
um débil instinto de vida o impeliu a fazer uma
aposta. Ainda na sala de Wagner, deu volta alguns
passos, dirigiu-se a um quadro além da espanhola,
queria cruzar com seus olhos. “Acho que acabo de
inventar a roleta espanhola”, pensou, com um
sorriso que lhe rasgou as entranhas e escorreu pela
barba em duas lágrimas secas. Se ela o olhasse,
talvez ele...
Ela não o olhou nos olhos. A aposta estava
definitivamente perdida. Saiu do castelo. Não trazia
sapatos adequados, a descida do declive foi feita em
uma boa dezena de tombos, caía de bunda e
levantava para cair de novo, de bunda, dez metros
adiante, o que lhe dava vontade mais de chorar do
que de rir, aquilo não era circunstância digna de
qualquer suicida que se prezasse. Abandonou a
trilha e embrenhou-se pela floresta, deserta e
imóvel.
5. AL MAR!
O Eugênio C chegou a Lisboa com dois dias de
atraso. Caindo de bêbado pelas tascas do Rossio,
Cristiano temia por sua volta. As contrações
musculares haviam cessado como por milagre após
o telefonema, mas por outro lado triplicara sua cota
habitual de álcool. Normalmente, mesmo bêbado,
não perdia o controle do mundo que o cercava, seus
instintos de preservação permaneciam sempre
alertas, recuava intuitivamente ante o menor sinal
de perigo. Mesmo assim chafurdava nas prostitutas
de Lisboa, muitas vezes acordando no hotel sem
saber o que fizera na noite anterior. Situação
semelhante o obrigara a uma pausa na bebida,
quando ainda em Porto Alegre. Acordara em seu
apartamento, na cama havia uma mulher nua, ele
também nu, mas não tinha a mínima idéia de quem
se tratasse. O rosto não lhe dizia nada, os seios
muito menos, o que o fez dar uma olhadela no sexo,
detalhes dos lábios, clitóris ou pelos talvez lhe
lembrassem alguém, mas tampouco reconheceu-a
por tais sinais. Enfim, estava ali a seu dispor,
lambeu-a e penetrou-a, aos poucos a mulher foi
acordando, após o orgasmo ela perguntou: “e tu
quem és?”
Foi necessário reconstituir pacientemente o
itinerário da noite anterior para descobrir que se
haviam encontrado em um bar da Salgado Filho,
logo a moça deveria ser uma profissional. Vestiu-se e
pagou-a, prometendo a si mesmo sequer cheirar
álcool nos meses seguintes, o que aliás não lhe
custara muito, o susto de ter dormido junto a
alguém que nem imaginava quem fosse fizera bem a
seu fígado.
Naqueles dias conturbados de Lisboa, nos
quais vagava como um fantasma por entre passeatas
e discursos, sempre rumo às putas, sentia-se em
situação de perigo, só esperava que o navio chegasse
antes de qualquer acidente. Enquanto os lisboetas
vibravam com a Revolução dos Cravos, Cristiano se
preocupava com sua salvação, chegava mesmo a
pensar na idéia de enfrentar seu medo de aviões
antes que fosse tarde.
Qualquer coisa obscura o impelia a ficar. Ao
saber do atraso do navio, impôs-se um mínimo de
disciplina, lia nos parques durante o dia (gostava de
inebriar-se com o verde histérico da Estufa Fria),
permitia-se apenas um bagacinho introdutório no
almoço e só à noite, quando já com sono, fazia a
ronda das tascas. Se não ultrapassasse sua dose
diária habitual, não correria o risco de cometer
besteiras.
Não que estivesse condicionado pela bebida.
Mas a morte daquele camponês que jamais
imaginara pudesse ocupar tal espaço em sua vida,
diante daquele fato definitivo, irreversível, ele, o
lógico, o seguro de si, o racional, não sabia o que
fazer senão beber e dar rédeas soltas à sua luxúria.
Acalmou-se nos últimos dias. O simples fato de não
mais lhe tremer a mão esquerda já o tranqüilizava,
mas sabia ser aparente aquela calma, era a calmaria
anunciadora de tempestade e, por vezes, ao passear
pela zona do porto, detinha-se perplexo ante a Torre
de Belém, dali haviam partido os navegadores para
viagem bem mais segura do que a sua. Temia o mar
e seu chamado.
Malas postas no camarote, girou pelas pontes
buscando rostos — qual seria, onde estaria, como
gemeriam os lábios da companheira de viagem? — e
entregou-se à beleza do Tejo.
O Tejo é mais belo que o rio que corre
pela minha aldeia.
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre
pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha
aldeia.
Aquela partida evocava fortemente Dalmácio.
Haviam partido um dia, cheios de esperanças, no
mesmo navio, há quase quatro anos, rumo a uma
Europa mítica onde todos os homens seriam felizes e
inteligentes, onde o talento era valorizado e a
mediocridade colocada no devido lugar. Quanto a
Pessoa, aquele poema o haviam recitado juntos
caminhando pelas ruas da Baixa, empinando um
bagacinho em cada um dos botecos do poeta, numa
espécie de via crucis etílica, que acabara no
Martinho da Arcada.
Detestava os salões do barco. Na primeira
classe imperava um fausto ao gosto de nouveau-
riches e nas classes turísticas, salvo modestos
imigrantes que iam ou viam de um país para outro,
dominava a abominável classe média. Refugiava-se
no convés, zanzava de uma ponte a outra, sempre
marginal, sempre fora do mundo social, ali pelo
menos havia pessoas contemplando a noite e o mar.
Há séculos não via a luz das estrelas em sua
plenitude, as luzes das cidades onde vivera
ofuscavam aquelas noites límpidas de Ponche Verde.
Cá e lá, grupinhos degustando uma canabis, casais
se acarinhando, outros tocando violão. Aproximou-
se destes. Eram latinos, cantavam canções da
pampa e da cordilheira.
Para seu espanto, ela surgiu naquela primeira
noite. “É esta — pensou —, é esta e mais nenhuma
outra”. Enganara-se redondamente. Aquela mulher
linda, olhos deslumbrados de camponesa que sonha
com o vasto mundo, lábios fortes e túmidos, corpo
cheio e bem modelado, de uma sensualidade que
curiosamente lhe trazia paz, aquela mulher que
reunia em si espírito e carne, era apenas uma isca.

— Le gusta nuestra música, ¿verdad?


Desesperado e excitado pelo álcool, aquela voz
que mais parecia música soou como bálsamo a seu
espírito em frangalhos. Era como se de muito longe,
de uma região remota de sua infância, uma mãe lhe
falasse com carinho e ele, que sempre vivera em
combate, quando não atacando pelo menos
preparando suas defesas, ele como poucos sabia
reconhecer o valor de uma abordagem desarmada.
Virou-se para a mulher, dois olhos imensos e uma
dentadura magnífica o desafiavam a uma reação.
“Si, si, me gusta mucho”, conseguiu gaguejar.
Os ímpetos de puxá-la de lado brotaram em
torrente, vontade de contar-lhe tudo, reconstituir
sua trajetória. As ganas de confessar-se mais a
euforia do final de um período em sua vida o
impeliam a jogar tudo numa carta só. Mas se
conteve. Sabia por sofrida experiência que um
homem angustiado só assusta as mulheres, e
discorreu sobre amenidades. As canções que
conhecia, acompanhou-as com gosto. Mais tarde,
aquela mulher surgida do país dos sonhos solaria
algumas canções que o encheriam de uma paz
interior que há muito seu ser não experimentava.
Cerca de meia-noite, a roda já restrita a poucos
noctâmbulos, ela levantou-se e sussurrou-lhe ao
ouvido:
— Muchos son los llamados, pocos los elegidos.
Pânico. Subitamente voltou a seus primeiros
meses de Estocolmo, à sueca nua que lhe afirmava
convictamente: o sexual é sagrado e pertence ao
matrimônio. Até onde o perseguia a peste cristã?
Conseguiu balbuciar:
— Usted conoce la Bíblia, ¿no?
— Si, mucho. Hasta mañana.
E se foi. Com medo, mas invadido por uma
paradoxal esperança, dormiu bem aquela noite. Raio
de mulher. Era linda, isto, embora os superlativos
não lhe agradassem, tinha de admitir: era belíssima.
E vinha recitando os evangelhos. Algo não fechava
naquele episódio, mas pelo menos a insuportável
tensão interior que o atormentava em Lisboa lhe
dera finalmente uma trégua. Amanhã seria outro
dia, o barco constituía um território limitado,
encontrá-la não seria acaso, mas necessidade.
Sonhou estar em pleno deserto, viu-se dentro
de uma espécie de fortificação circular, semi-
soterrada pela areia. Ventos tórridos lhe queimavam
a pele como fogo e descobriam aos poucos as ameias
da fortaleza, logo adiante viu outra elevação em meio
à tempestade. À medida que o vendaval soprava
descobriu ser aquela elevação parte de um mesmo
corpo. Amainada a tempestade, uma esfinge
desmesurada emergiu das areias, o lugar onde
estava e que supunha ser as ruínas de uma fortaleza
era na verdade uma espécie de coroa da esfinge. Lá
de baixo, de sua boca, uma voz terna lhe chamava
imperativamente: “eu sou a única deusa, longe de
mim não encontrarás porto”.

No dia seguinte, não a encontrou no


restaurante. Estaria na primeira classe? O Eugênio
era uma beleza de amostragem para um sociólogo.
Na ponte mais alta, milionários que jantavam em
black tie e comiam à la carte e, envoltos pelo tédio,
acabavam descendo às classes turísticas para ver
um pouco de vida. Na turística A, uma burguesia
classe média que julgava estar vivendo vida de
milionário pelo simples fato de estar atravessando o
Atlântico, embora não tivessem sequer opção de
cardápio e fossem regados com um vinho aguado de
quinta categoria. Mais abaixo, viajando não mais de
navio, mas em submarino, imigrantes e estudantes
sem recursos em busca de sonho, uns abandonando
um continente, outros voltando ao continente um
dia abandonado, apertados em cabines de quatro ou
seis pessoas, muitas vezes sem banho privado.
As piscinas também tinham seu status. Na
ponte Lido, a melhor piscina, quase sem trepidação,
para os eleitos da primeira classe. Mais abaixo, na
ponte Sole, uma piscina razoável, mas entupida pela
hedionda classe média. E bem mais abaixo, na
ponte Soggiorno, a piscina habitada pelos que
viajavam não por lazer, mas por necessidade
econômica ou interior, a piscina de melhor fauna,
mas perpassada por uma trepidação de rebentar
tímpanos por sua proximidade das hélices.
Lá estavam as três classes eternas, a alta no
alto, como sempre, a média no meio, como sempre, e
a baixa embaixo, como sempre. Mas a peculiaridade
do Eugenio C, o charme sociológico que fascinaria
um ficcionista em busca de soluções fáceis, era a
estrutura social interna do barco. Descer, todos
podiam descer. Subir era proibido. Cristiano viajava
em turística A, o reino viscoso da classe média. Se
aquela mulher irreal surgida em meio ao mar
estivesse na turística A ou B, poderia procurá-la.
Estivesse no Olimpo dos black ties, teria de esperar
por sua descida.

Por um desses acasos que de acaso nada têm,


comprara num antiquário da Baixa o livro que
poderia ter comprado em qualquer outra ocasião,
menos aquela, “O Jardim dos Suplícios”, de
Mirbeau. Escrito em estilo soberbo, de suas páginas
exalava um odor lúgubre de flores podres. No fundo,
o livro era uma ode à vida, mas isto só se revelava ao
leitor após uma extensa apologia da morte e, para o
espírito enfermo de Cristiano, apresentava-se como
um desses medicamentos que eliminam não só a
doença como também o paciente. Curiosamente,
aquela viagem que acabava em um jardim oriental
de torturas, começava em um navio.
“Chegar a qualquer sítio é morrer”, dizia um
dos personagens, e Cristiano, lá no fundo, sem
mesmo sequer ousar formular o pensamento, se
deixava enamorar pela recíproca. Por outro lado,
certas observações de Clara, o mais sinistro
personagem feminino que jamais conhecera,
acabavam lhe conferindo um mínimo de auto-
estima, por si e pelos sentimentos que o minavam:
“Quando se é alegre é porque não se ama... O amor é
uma coisa grave, triste e profunda...” Clara, em meio
a ratos podres, cães afogados, pedaços de bezerros e
cavalos, passeando por um mercado chinês,
“aspirava a podridão com avidez, como se fosse um
perfume”.
Amor e morte, para aquele personagem que só
na realidade mesmo poderia existir, já que
dificilmente um cérebro humano, por enfermo que
estivesse, o conceberia a partir do nada, amor e
morte eram palavras sinônimas, e a podridão era a
eterna ressurreição da vida. Outras opiniões de
Clara, Cristiano as lia com uma piscadela cúmplice:
era na luxúria que todas as faculdades cerebrais do
homem se revelavam e se aguçavam. No entanto,
desde que vira aquela argentina caída do céu, seu
sexo cessara suas exigências. Espantava-se consigo
mesmo ao descobrir que seu maior desejo era
passear com ela pelas pontes, ouvi-la cantar, olhar
peixinhos voadores.
Clara passeando excitada no jardim das
torturas: “Na nossa sinistra Europa, que há tempo
tempo ignora o que é a beleza, tortura-se
secretamente no fundo das prisões ou nas praças
públicas, entre uma multidão de ébrios ignóbeis...
Aqui é no meio das flores que se erguem os
instrumentos de tortura e morte, os cadafalsos, as
forcas e as cruzes”. O carrasco explicando a Clara
seu ofício: “A arte, milady, consiste em saber matar
segundo ritos de beleza que nós, chineses, somos os
únicos a conhecer o segredo divino. Saber matar!
Nada é mais raro, e tudo reside nisso. Saber matar!
Significa trabalhar a carne humana como um
escultor a argila ou um bocado de marfim... Obter o
máximo, todas as capacidades de sofrimento que ela
encerra no fundo de suas trevas e mistérios... É
preciso ciência, variedade, elegância, imaginação...
Enfim, gênio!”
E o verdugo-esteta concluía que o esnobismo
ocidental, com seus couraçados, canhões de tiro
rápido e explosivos tornavam a morte coletiva,
administrativa, burocrática... “Enfim, todas as
sujeiras do vosso progresso destroem, pouco a
pouco, as nossas belas tradições do passado”. O
suplício do rato: um rato faminto que era posto em
um vaso com um pequeno orifício, fixado às nádegas
de um condenado. Com um ferro em brasa
assustava-se o rato para que buscasse uma saída e
o animal acaba por encontrá-la, abrindo passagem
com unhas e dentes.
Clara excitada ante o relato do verdugo. O
suplício do sino: em meio a um jardim paradisíaco,
ornado de pavões, faisões, galos da Malásia, um sino
imenso sob o qual era atado um homem, até morrer
com suas vibrações. Clara radiante. De onde
Mirbeau arrancara, de que inferno ainda não
concebido pela mente humana, de onde saíra aquele
relato infame? — perguntava-se Cristiano. E os
miasmas daquele poema negro lhe inundavam o
espírito já asfixiado por uma rarefeita vontade de
viver.

Encontrou-a na piscina da ponte Sole, no dia


seguinte, o segundo de navegação. Um sol dos bons
— nada a ver com aquele simulacro de sol que
avaramente iluminava os suecos — queimava-lhe a
pele. A luminosidade do dia, a ausência de
horizontes próximos, o sabor de sal, mais a
perspectiva de reencontrá-la, todos estes fatores
diurnos o afastavam dos pavores estimulados pela
noite. Lia qualquer coisa em uma preguiçosa, mas
Cristiano preferiu não abordá-la, não queria estragar
tudo com precipitações. Cumprimentou-a com um
gesto de cabeça e, antes de tirar os óculos para
mergulhar ainda viu, a estibordo, aquela cortina de
lábios carnudos se descerrando, expondo os dentes
lindos ao sol e ao sal, num sorriso que fez Cristiano
deixar-se envolver pela água em estado de graça,
quase esquecendo de vir à tona.
— Lindas, tus gafas. ¿Donde las comprastes?
A voz esperada acordou Cristiano, ou melhor,
fê-lo abrir os olhos, em verdade não dormia, o sol
que há quase quatro anos não sentia no corpo agora
o deixara em uma espécie de nirvana, o cérebro
agradavelmente vazio de pensamentos.
— Em Estocolmo.
— Ah! ¿Usted viene entonces de Estocolmo?
Vinha. Ela sentou-se na cadeira ao lado.
— Es que mi hijo es míope, y me gustó el molde
de sus gafas.
Conversaram algum tempo sobre coisa
alguma, comentando o dia e o mar, quando uma
sombra corpulenta roubou o sol a ambos.
— Mi marido — disse ela, e lembrou-se de
repente — en verdad, nosotros tampoco nos
conocimos.
Cristiano levantou-se, disse um muito prazer
sem prazer algum, muito antes pelo contrário. Ela
chamava-se Cristina — sempre o maldito nome! —
ele, Schneider. Não sorria e seu olhar era duro,
penetrante, o que em princípio não desagradava a
Cristiano, não fosse aquele ser imenso, e com uma
barriga razoável a transbordar do cinto, cortar-lhe as
perspectivas de uma aventura. Quando já se rendia
à fatalidade de mais uma conversa sobre tempo, o
homem perguntou-lhe em tom não áspero, mas
incisivo:
— ¿Que hace Usted?
O estraga-prazeres era então um homem
objetivo? Pois Cristiano também. Mas...
Precisamente naquele dia recebera em pleno rosto
talvez a única pergunta a respeito de si próprio que
não conseguiria de forma alguma responder com
objetividade. Entendia a intenção do argentino. Um
homem se define pelo que faz, e o brutamontes
queria encurtar caminho. Como explicar-lhe que um
dia pretenderia... e de repente se dava conta de que
jamais pretendera algo definido, fora o vago desejo
de fazer cinema, isto é, sua vida toda fora mais um
não-fazer do que um fazer. Seu impulso mais forte
havia sido fugir do inferno para o paraíso e agora,
fodido e mal pago, voltava do paraíso para ver se
ainda restava alguma vaguinha no inferno.
Projetos e desprojetos à parte, o fato era que
não estava fazendo nada, nada mesmo, naqueles
dias em que derivava sem leme ao sabor dos ventos
e marés. Dizer-se jornalista era uma meia-verdade,
por um lado detestava o ofício, por outro não estava
ligado a empresa alguma. Sem falar que a pergunta
do mastodonte era outra, pelo tom de voz e pelos
olhinhos duros e escondidos no fundo do rosto
gordo, o homem queria saber não o que ele fazia
para comer, mas o que fazia fundamentalmente na
vida. A pergunta era grave. E no momento não tinha
resposta. Pretendendo encerrar o assunto,
respondeu:
— Navego.
Os olhinhos duros e fixos pareceram se tornar
ainda mais penetrantes, a cabeça pendeu num gesto
de quem reprova silenciosamente uma criança.
—No me vengas con cuentos, Cristiano. ¿Que
haces?
O estraga-prazeres não se contentava com
respostas vagas. Qual um interrogador ante sua
vítima, fitava Cristiano do alto de seus quase dois
metros. A cena deveria ser cômica vista de fora,
pensou, dois barbados de braços cruzados sobre a
barriga olhando nos olhos um do outro.
Surpreendeu-se ao se ver dizendo o que até então
não admitia sequer para si mesmo.
— Tento escrever.
— ¿Y como haces para vivir?
— Faço jornalismo.
O que não era exatamente verdade. Fizera
jornalismo. Agora vivia de free-lancers, traduções.
Mas não pretendia entrar em detalhes. Com um
princípio de simpatia, percebeu no canto esquerdo
dos lábios do gigante que lhe roubava o sol um
esboço de sorriso interior, lhe agradara aquela
distinção entre ser jornalista e tentar escrever.
Parecia ser homem inteligente, o que afastava de seu
espírito a sensação inicial de quase desagrado.
Passou à ofensiva:
— E você, o que é que faz?
Com a tranqüilidade dos justos o homem
respondeu, um forte acento de orgulho na voz:
— Soy militar.
Puta que o pariu, se amaldiçoou Cristiano,
bem que merecia, com sua mania infame de correr
atrás de saias. Jamais os vira face a face.
Imaginava-os seres de outra raça, animais de coluna
sempre ereta quando sentados, que se identificavam
por tapas automáticos na testa ao cruzarem uns
pelos outros, que não freqüentavam bares e viviam
em casernas, longe de mulheres e civis. Deles só
tinha a lembrança de paradas e eventuais
declarações, quase sempre iguais: reina a mais
completa ordem no país, o perigo vermelho que
ronda a nação, manteremos a legalidade a qualquer
preço. No entanto, mal viam uma Constituição, não
resistiam à tentação de cagar em cima.
Le voilà, como diria João, o Milicus
latinoamericanensis, com sotaque e tudo, o espécime
que roubava a luz aos seres pensantes. Dalmácio,
em um de seus costumeiros contos inacabados,
colocara quatro generais numa banheira brincando
com barquinhos de papel, feito com as páginas da
Constituição, fazendo-os naufragar com
chumbinhos soprados por um canudo, tudo isso em
meio a uma atmosfera de alegria infantil. Como
metáfora, o conto era de uma indulgência
extraordinária, se os homens se contentassem em
afundar barcos, fossem de papel ou de aço, a
humanidade até que poucas queixas teria da raça.
Mas adoravam afundar nações, o que era mais
delicado. Não contentes em afundar nações, nutriam
especial vocação para torturar e exterminar seus
melhores rebentos.
No ser disforme que lhe fazia sombra,
Cristiano via a síntese dos carcereiros de João
Geraldo, dos torturadores de uma geração, dos
corruptos que torpedeavam um continente todo.
Viva a América Latina! — disse para si mesmo —
impossível dar-se um passo, mesmo em meio ao
Atlântico, sem tropeçar com um gorila. E aquela
mulher linda, na qual se dispunha a jogar até o
último centavo, era então mulher de milico! Vivendo
e aprendendo. Bem feito para não nutrir
entusiasmos súbitos.
Mudou de tom, voltou a falar do belo tempo
que fazia, que há muitos anos não via sol assim, que
seus óculos... etc. Falaram inconseqüentemente
sobre viagens e, de repente, impelido por um humor
incontrolável — afinal, estava em águas
internacionais — passou a discutir critérios de
mensuração de inteligência. Disse não aceitar o Q.I.,
coisa de americanos que não conseguiam caminhar
e mascar chicletes ao mesmo tempo, sem falar que
já era sabido por todos que o método era muito
relativo, no que o animal platino concordava.
Preferia a descoberta de um cientista inglês, Lord
Tarr — ele ainda não ouvira falar de Lord Tarr, um
inovador? — que a partir de uma série de pesquisas,
cujos critérios no momento não interessava explicar,
havia elaborado uma nova escala e, fato
surpreendente em um pesquisador inglês, baseada
no sistema métrico-decimal.
— ¿Sí? — fez o gorila franzindo o cenho.
— Sim — continuou Cristiano —. E deu seu
próprio nome à unidade de inteligência média,
estabelecida após exaustiva amostragem. Assim, um
homem de inteligência média teria um tarr.
— ¿Y qué? — quis saber o primata.
— Daí que um homem cuja inteligência é dez
vezes superior à média, é um decatarr. Cem vezes,
um hectotarr. E mil vezes a inteligência média,
medida meramente teórica, sequer alcançada pelo
gênio, um quilotarr.
— Nada de nuevo — grunhiu o argentino.
— Acontece que a escala também desce.
Temos então que — e uma ligeira taquicardia
começou a acometê-lo — dez vezes menos a
inteligência média, um decitarr. Cem vezes menos,
um centitarr. E mil vezes menos...
— Un militarr — concluiu Cristina, enrolando
os erres na ponta da língua.
O gigante barrigudo olhou-o intensamente nos
olhos, e Cristiano teve de convir que naquele olhar,
se não havia senso de humor, pelo menos não havia
animosidade alguma, como esperava. Qual ator que
conclui um número, fez uma reverência ao casal,
repôs os óculos que Cristina gostava tanto e que, por
precaução, retirara do rosto, e saiu rindo por dentro
rumo à proa. Navegava sob bandeira italiana, estava
em águas internacionais e não iria se furtar a uma
piada com a raça intocável.

Encontrou-o na manhã seguinte, apoiado


sobre a barriga, lendo um pequeno livro na ponte
Soggiorno. O barco, de estruturas já cansadas,
rangia da proa à popa, em balanço regular e suave.
Cristiano iniciara sua caminhada pela passeggiata e
ele já o havia visto, voltar era inútil. O processo,
afinal, já fora desfechado. Decidiu levá-lo até as
últimas conseqüências, cumprimentou-o e sentou-se
a seu lado.
— Mira — começou Schneider sem mais nem
menos — si me hubieras hablado ayer de la funcción
social del arte y cosas por el estilo, no volveria a
hablarte. Pero dijiste que intentas escribir, lo que es
distinto. Yo soy un hombre preocupado y no tengo
tiempo para personas despreocupadas.
Incisivo, o milico, pensou Cristiano. Que
estaria pretendendo?
— Oí lo que decias, ayer a la noche, a los
jovenes. Ellos te escuchaban tensos, te buscabán. Es
que tienes algo a decir.
Uma sensação desconfortável começou a
corroer-lhe o estômago. Bêbado, com uma garrafa de
uísque em punho, iniciara uma discussão no salão
Opala, mais palestra que discussão e, finda a
música, o grupo que se fora formando o
acompanhara até a proa, falara o tempo todo sem
permitir que alguém dissesse qualquer coisa, salvo
rápidas perguntas, quando um sol violento tropical
passou a queimar-lhe as costas, a garrafa estava
vazia e uma dezena de jovens o contemplava como
quem espera ouvir mais. Cristiano, que nada mais
lembrava do que havia dito, nem podia entender
como falara oito horas sem pausa, jogou a garrafa ao
mar e foi dormir. Então o gorila havia escutado
tudo? Teria como missão vigiá-lo? Seriam mesmo
seguras as águas internacionais?
— Ah, sim? E que é que eu dizia? — quis
saber Cristiano.
Schneider olhou-o sem espanto.
— Hablaste mucho sobre sexo y muerte. ¿Que
pasa contigo?
O tom com que lhe falava, quase fraterno,
revelava um homem desarmado, sem animosidade
alguma. Começou a sentir um vago remorso pela
piada do dia anterior, afinal não deixava de ser um
preconceito carimbar todo e qualquer militar com a
pecha de imbecil. Como necessitava mesmo falar,
vomitar pelo menos parte da angústia que o
encharcava, impelido por um rosto duro e bonachão
que o convidava a falar, falou.
— Meu pai... — e respirou fundo para para
poder controlar a voz — morreu.
— ¿Y lo querias mucho?
— Pois parece que sim. Mas agora é tarde para
tais descobertas.
Schneider o interrogava mansamente, dando-
lhe tempo para formular uma frase, o que a ele,
jornalista, não era lá muito fácil, já que não sabia
muito bem o que ocorria consigo mesmo. Sim, de
um lado aquele estado psíquico fora desfechado pela
notícia, mas a morte de Canário não explicava tudo,
afinal todo mundo tem pai e todos os pais acabam
morrendo, sem falar que se julgava dono de uma
forte personalidade e era avesso a lamentações. Não,
aquele fato biológico não explicava tudo. Havia
ainda, o que talvez fosse pior, aquela desilusão de
tudo em que acreditara um dia, a sensação de uma
viagem inútil e de uma volta rumo ao nada. Mas o
insólito interlocutor, livro apoiado sobre a pança,
insistia em voltar ao tema:
— ¿Hablabas mucho con tu padre?
Ali o militar tocara o ponto mais estranho e
sensível do poder. Jamais falara com Canário, nos
campos de Ponche Verde havia um silêncio abissal
entre pai e filho, uma quase vergonha de falar um
com o outro. O que não significava ausência de
comunicação. Esta se efetuava mudamente, uma
espécie de telepatia combinada a jeitos de olhar os
tornava mutuamente cientes do que ia por dentro,
em um e outro. Falar era visto mais ou menos como
coisa de mulher. Mas nem todas as idéias e
sensações eram passíveis de transmissão sem
palavras, e justo naqueles dias em Cristiano voltava
para tentar exorcizar o silêncio, contar a Canário,
entre um chimarrão e outro, o que vira mundo afora,
falar-lhe do sol da meia-noite e da neve, das cidades
e do deserto, o homem partira.
Enquanto falava, interiormente evocava a
última vez que o vira. Fizera uma visita rápida à
Casa e, quando juntava os trapos para aquela
viagem que julgava sem volta — e dela agora estava
voltando — a figura retaca daquele gaúcho mudo lhe
apareceu na soleira do rancho e falou, logo ele que
raramente falava, “não vai hoje, meu filho, eu sinto
que não vou te ver mais”. Cristiano notara o tremor
na voz, virou-se e viu, pela primeira vez na vida,
aquele rosto talhado em pedra chorando. Não
conseguia concebê-lo chorando, onde se viu homem
chorar? Rangendo os dentes, terminou de emalar as
poucas coisas que trouxera e, silencioso, como todas
as vezes que partia, lhe deu as costas e saiu rumo à
porteira. Era-lhe duro lembrar tudo aquilo, parecia
sentir um secreto prazer em autopunir-se, quando
— enfim! — surgiu Cristina, luminosa, sorrindo na
passegiata, sua alegria iluminando um pouco mais o
Atlântico. Daquela mulher, de sua presença física,
emanava um poder estranho que o acalmava.
Saudou-o, cheia de dentes, como se há séculos o
conhecesse.
— Dime una cosa — continuou Schneider —
¿crees en Diós?
Não. Sua fé ficara jogada à poeira num canto
qualquer da adolescência. Acreditasse em Deus, ou
num outro mito qualquer, seria um homem
tranqüilo, ora bolas.
Aquelas charlas no tombadilho ou nas pontes
inferiores, com o passar dos dias, tornaram-se um
encontro obrigatório ao qual ambos se entregavam
com prazer, em geral após o café da manhã e ao
entardecer. Para espanto de Cristiano, Schneider o
procurava como se tivesse algo importante a ouvir,
logo dele que, naquele atoz estado de espírito, sentia
nada ter a dizer a ninguém. Mais espantado ficou
ainda ao perceber que chegara até mesmo a
abandonar a paquera matutina das fêmeas nas
piscina, para longas caminhadas com aquele militar
de barriga tão civil. “No doy importancia alguna a mi
apariencia física”, dissera um dia.
Quando sentavam, Cristina descia (dos céus?)
com um violão, como se esperasse uma pausa na
discussão dos dois senhores preocupados com o
universo e, com uma voz de mãe ninando filho, dois
olhos negros imensos a subjugá-los, cantava antigas
canções, que Cristiano jamais ouvira, mas que lhe
soavam absurdamente familiares. Para ele, naqueles
dias de travessia, a vida a bordo tinha duas faces,
uma noturna, de álcool e sexo, e outra diurna,
peripatética, de discussões filosóficas e canções,
mais os dentes e os olhos de Cristina, mais a cálida
amizade de Schneider. Não o entendia.
Para começar, Cristiano fugira de uma
América Latina que se tornara o habitat ideal
daquela raça que parecia emergir das trevas, o
militar, aquele estranho funcionário do Estado que
julgava ser a baioneta o instrumento mais adequado
para combater uma idéia. Militar, para Cristiano, era
palavra que se associava a três ou quatro outras,
não mais que três ou quatro, mas suficientes: golpe
de estado, tortura, queima de livros, corrupção. E o
homem tivera a desfaçatez de afirmar-lhe, com a
convicção dos justos:
— El militar es el más puro entre los hombres:
lucha por la más abstrata de las ideas.
Cristiano, sempre comedido, na manifestação
de seus estados de espírito, caiu na gargalhada.
Faria então parte dos currículos dos mais puros dos
homens passar por cima da lei, prender na calada
da noite quem pensasse direferente e jogá-lo em
celas imundas, alquebrar-lhe o moral e depois pisar
o rosto ou chutar os ovos com coturnos? Quem
estaria delirando? Ele sonhando que ouvia aquilo em
meio a um pesadelo de mau gosto? Ou o monstro,
num ímpeto de humor negro? Faria parte do
treinamento para o mais puro dos homens jogar de
aviões civis em alto mar, sem experimentar a mais
ligeira comoção ante o desespero do homem que via
ante si o abismo? Perplexo, Cristiano surpreendeu-
se ao notar que passara a tuteá-lo:
— Não entendo mais nada, tche! Qual é
mesmo tua função neste bordel?
— Soy militar. Mi oficio es matar...
Enfim, pelo menos um homem franco. E se
aquele era seu ofício, ao pensar na América Latina
Cristiano poderia negar-lhe tudo, menos eficácia.
Mas a frase ficara no ar, tinha seqüência:
— ... rápido y con elegancia, si posible.
Agora a reconhecia. Estava em Mirbeau.
Passara o livro a Schneider, e o monstro gostara da
frase. Mas sua pergunta era outra. Por bordel
entendia aquele barco cabotando toneladas de
angústia, migrantes abandonando um passado,
outros voltando a seus passados, com algum ou sem
nenhum futuro pela frente, todos mergulhados em
uma espécie de suspensão da História, pois ali os
dias não corriam, nenhum fato ocorrido no
planetinha afetaria a rotina de bordo. As notícias
eram selecionadas, o telex só trazia eventos
sublimes. Estourasse uma guerra nuclear, os
incautos navegantes por certo manifestariam
surpresa ao ver que onde havia um continente não
havia mais continente. Sua pergunta era outra. Que
fazia naquele barco aquele animal e por que fora
procurá-lo?
Não era ingênuo a ponto de julgar possível a
paz entre os homens e tinha de admitir que, no
fundo, não podia negar certa admiração ao militar,
era o homem que na hora da guerra fazia a guerra,
enquanto os civis buscavam as tocas. Teoricamente,
Schneider não deixava de ter razão, ele lutava pelo
mais abstrato e vago dos ideais, a tal de pátria. Se
homem honesto, era quase um sacerdote, com a
diferença de que pagaria com a vida suas
convicções, enquanto os padres, estes sempre
levantavam a saia ao detentor do poder, e assim
atravessara a Igreja os séculos. Mas no Brasil e
América Latina só via militares usando suas divisas
para aumentar fortunas familiares, perpetuando no
poder castas que beliscavam caviar em cima da fome
de multidões. Ao que Schneider objetava:
— El ejército es un medio de muerte. Cuando se
vuelve medio de vida, es que está corrupto. Y cuando
el ejército está corrompido, la nación está pudrida.
Assim sendo, o diálogo era viável. O fato era
que, se exército corrupto igual nação podre, seria
melhor tapar o nariz à medida em que o Eugenio C
se aproximava da América Latina.
— Mira, te voy hablar de cosas que tal vez, en
princípio, no te digan nada. Te voy a hablar de
estrategia.
Falou de guerras, movimentos de tropa,
teorias em torno à Terceira Guerra, troca de alvos,
eu destruo uma cidade tua, te ofereço uma minha
para que não percas a cara e depois tratamos de
paz.
— Se tivesses de disparar teus canhões contra
uma cidade de dois milhões de habitantes, dois
milhões de civis...?
— Como militar, desobediencia es palabras que
no conozco.
— Uma rápida ordem, a morte impessoal e
executada à distância, com vítimas sem rosto nem
nome, se possível mortas rapidamente e com
elegância.
— Sí, sé lo que quieres decir... Pero si un dia te
invito a mi casa de campo, o en alguna embajada en
Paris, es porque no pudo obedecer.
Passou a desenvolver sua teoria da crise. Que
o homem só surge na crise, sendo este o mais grave
problema dos exércitos. A quem passar o comando,
em tempos de paz, se o homem se reconhece na
guerra? Uma das hipóteses era gerar uma crise
dentro do próprio exército, para que então o homem
emergisse.
— Pero no es que te quiera hablar de
estrategia. Quiero hablar de ti, de nosotros. En este
buque, todos estamos en crisis. Y si es verdad que los
hombres solo se manifiestan en las crisis, es por eso
que estamos hablando.
Aquele messianismo inesperado, manifesto
num barco rangente em meio ao oceano, mexia com
um esquecido e profundo substrato de Cristiano,
uma robusta confiança em si próprio. Em seus dias
de cristão, e mesmo em seu rápido namoro com o
marxismo, acreditava em si e na possibilidade de pôr
uma pedra no edifício humano. Mas desmoronados
os pressupostos do cristianismo e marxismo, se via
só no deserto, e de mãos vazias. Há muito lhe
perseguia a hipótese de que um homem, a partir de
si mesmo, sempre podia dizer algo ao mundo. Mas
estava voltando de um fracasso. Buscara uma
sociedade onde imaginava que poderia expandir
suas possibilidades criativas e nela só o viam como
potencial lavador de pratos. Os anos de Suécia lhe
haviam minado o moral — e talvez ali, certamente
ali, residia seu desalento — e não é que agora surgia
em meio ao mar aquela estranha mescla de
guerreiro e sacerdote para lembrar que nele havia
um resíduo, original e único, que talvez servisse
para algo?
Naqueles dias de alta tensão, quando se
perguntava se não teria como interlocutor um louco,
Cristina os interrompia com suas canções e,
enquanto afinava o violão, sorria com um gesto
desanimado:
— ¡Los dos son locos!
Numa tarde abafada, em pleno Equador,
Schneider passou-lhe o livrinho que nos primeiros
dias Cristiano vira em sua mão. “Zen en el arte del
tiro con arco”, de Eugen Herrigel.
— No rias. Tal vez pueda tener alguna
respuesta a tus preguntas.
Naquela noite, fugiu das Bovarys no cio que
zanzavam pelos salões e corredores, cada vez mais
angustiadas ante a perspectiva de chegada e de volta
à monotonia do lar. Mergulhou naquele relato
estranho, tão sereno e tão oposto ao sinistro livro de
Mirbeau. Herrigel era um militar ocidental que
durante um estágio no Japão se iniciara no tiro de
arco e flecha. Já no primeiro capítulo advertia que
tal esporte os japoneses não o consideravam como
esporte, mas como ato ritual, não significando uma
habilidade que exigisse domínio primordialmente
físico, mas uma mestria cuja origem devia buscar
em exercícios espirituais, “no fundo, o atirador
aponta para si mesmo e talvez consiga acertar em si
mesmo”.
Puta que o pariu — resmungou — o homem
iria decepcioná-lo logo agora, quando começava a
aceitar sua lógica? Seria mais um ocidental perdido
no mar dos valores de cá que se refugiava no
fascínio do Oriente? O livro era excepcionalmente
bem escrito e o autor não se permitia piegas
metáforas budistas em torno a um tema qualquer.
Penetrando na obra, foi aos poucos concluindo que
era um daqueles livros cuja leitura estava ao acesso
de todos, mas a compreensão era privilégio de
poucos.
“O confronto consiste em o arqueiro para si
mesmo — e no entanto não para si mesmo — de
forma que será ao mesmo o que assesta e o que é
assestado, o que acerta e o que é acertado. É preciso
que ao atirador, apesar de todo seu fazer, se converta
em centro imóvel. Então surge o último e mais excelso:
a arte deixa de ser arte, o tiro deixa de ser tiro, será
um tiro sem arco nem flecha; o mestre volta a ser
discípulo; o hábil, principiante; o fim, começo; o
começo, consumação”.
Herrigel, quando tentava concentrar-se para
um disparo, tinha piores resultados quando tendias
espontaneamente o arco, sentia-se então como uma
centopéia que se punha a meditar para saber em
que ordem devia mover as patas. Quanto mais se
empenhava em aprender a atirar para acertar o alvo,
menos conseguia o primeiro intento e mais se
afastava do segundo. Que devo fazer? — perguntava
o discípulo. Teria de aprender a esperar, como era
devido, respondia o mestre, desprendendo-se de si
mesmo, deixando para trás tão decididamente a si
mesmo e a tudo que era seu, que dele não restasse
outra coisa senão o estado de tensão, sem intenção
alguma.
Ao ler aquelas reflexões, a princípio absurdas,
em torno ao arqueiro que para acertar o alvo jamais
devia mirá-lo, Cristiano foi aos poucos reconhecendo
o espírito do que lhe dizia Schneider naquelas
caminhadas pelo convés. Em um apólogo que datava
do século XVII, transcrito por Herrigel, chegou ao
que talvez o militar estivesse tentando transmitir-
lhe.
Um grande mestre da espada ensinava sua
arte ao xógum Tokugawa Jyemitsu. Certo dia, um
dos guardiões do xógum aproximou-se do mestre e
pediu que lhe ensinasse. “Segundo vejo — disse o
mestre — já sois mestre da espada. Dize-me, te
peço, a que escola pertences, antes que entremos
numa relação de mestre e de discípulo.”
O guardião contesta:
“Envergonho-me em confessar que jamais
aprendi tal arte.”
“Te divertes comigo? Sou o mestre do
venerável xógum e sei que meu olho não me
engana.”
“Lamento ofender vosso honor, mas a verdade
é que não tenho nenhum conhecimento dessa arte.”
Frente a tal negativa, o mestre vacilou e disse:
“Se assim afirmas, assim será. Mas certamente és
mestre em alguma outra disciplina, embora eu não
veja bem qual é”.
“Como insistis nisso, vos direi. Há uma única
coisa da qual posso considerar-me mestre
consumado. Quando ainda era moço, ocorreu-me
que, sendo Samurai, não devia temer a morte em
caso algum e desde então — já faz alguns anos —
lutei continuamente com a questão da morte, até
que deixei de me preocupar. Talvez seja isso que
Vossa Mercê observa?”
“Exatamente — exclamou o mestre — é isso.
Alegro-me que meu juízo tenha sido acertado, pois o
último segredo da arte da espada reside também em
estar liberado da idéia de morte. A centenas de
alunos mostrei estas meta, mas até agora nenhum
alcançou o grau supremo na arte da espada. Tu não
necessitas nenhum exercício, já és mestre.”
Libertar-se da idéia de morte, sorriu com
ironia Cristiano. Como se fosse fácil! Ainda mais
quando a velha senhora lhe surgia de forma tão
indelicada, estava tranqüilo em Lisboa esperando
um navio e...
No dia seguinte, em meio às caminhadas
matutinas, interpelou Schneider.
— Quem és, afinal de contas?
— Schneider, capitán de fragata.
Isso ele sabia. Sua pergunta era outra.
Filosoficamente, onde se situava?
— Soy cristiano.
Não resistiu ao trocadilho:
— Cristiano sou eu.
O gigante barrigudo, que jamais sorria — no
que lembrava Dalmácio — olhou-o com firmeza, com
um humor de quem não está para piadas. Cristão,
aquele sacerdote oficiante da morte?
— Como si en la Bíblia solo hubiera vida.
Schneider, que abominava filosofias pouco
concretas, concluía que um pequeno código, de no
máximo dez linhas, era suficiente para mitigar as
angústias humanas: os dez mandamentos. Cristiano
olhou-o divertido e foi sua vez de devolver:
— No me vengas con cuentos, hombre!
Schneider insistia em seus princípios. Se
todos os homens do mundo...
— Se... — sublinhou ironicamente o jornalista
—. Códigos existem aos milhares.
O milico não se deixou abalar. Reafirmava
suas convicções cristãs, assinando embaixo do
antigo e novo Testamentos, e Cristiano já não
entendia mais nada, como podia um homem culto
assumir ao pé da letra a transcrição de mitos? Via a
Igreja como a institucionalização de uma paranóia,
pregada por um fanático que tivera a sorte de ser
crucificado. Os romanos, mais vivos que os judeus,
haviam recuperado o esquecido mártir, dando-lhe
como mãe uma virgem, afinal religião alguma se
fundamenta na razão. E aquele desconhecido, já
quase íntimo, ao qual Cristiano conferia inteligência
— distinção que não conferia a qualquer um —
acreditava naquelas patacoadas? Quem era, afinal, o
louco?
— Mira, Cristiano, no voy a darte razones de mi
fé, para empezar que fé no tiene razones, como
tambien es inutil que me expliques las razones de tu
descrencia.
No que estava certo, mulher e religião não se
discute, se abraça, pensou Cristiano. Pensou mas
não disse. O homem não tinha lá muito senso de
humor, falava o tempo todo com uma gravidade de
quem suporta nos ombros o peso do mundo. Num
daqueles diálogos que aos demais passageiros do
Eugenio C passaria como paranóia total, Schneider
lhe perguntara o porquê de sua obsessão sexual, o
falo sempre à caça, pronto a disparar contra tudo o
que se mexia, por que, afinal, aquela fúria erótica?
Ele não sabia como explicar. Tentou:
— Fazer a carne cantar.
— O monstrinho de olhos miúdos o
repreendeu com asperidade:
— No me vengas con frasis hechas.
Naquele dia em que enveredaram por
discussões bizantinas, o militar dispôs-se a falar de
si mesmo. Voltava da Europa de um seminário sobre
estratégia e houvera uma confusão na reserva de
camarote. Devia viajar em primeira classe, dada sua
condição de oficial da Marinha, e o haviam posto na
classe turística. Ao tomar conhecimento do
equívoco, a companhia lhe oferecera um camarote
de sonho na ponte Sole, e o capitão-de-fragata o
recusara.
— Pués si fué la voluntad de Diós que yo
viajara en turística, que se haga la voluntad de Diós.
O jornalista o olhou como quem, acordado,
tenta analisar um pesadelo.
— Solo hay dos hombres en este buque,
Cristiano. Y Diós me puso en la turística para que te
encontrara.
O dilema era elementar: ou o Sumo Filho-da-
Puta existia e lhe estava preparando uma peça, ou
não existia, e um deles, talvez Cristiano, talvez
Schneider, estava pronto para o manicômio.
O pior era que o homem o fascinava, nele se
via como um espelho.
Mais o Eugenio se aproximava da costa
brasileira, mais Cristiano bebia e com mais carinho
namorava o mar. Sentia-se voltando rumo ao nada.
Ninguém o chamava no Brasil, nenhuma carta,
nenhum aceno, nenhuma insinuação lhe dizia:
“volta, precisamos de ti”. Voltava com a mesma
gratuidade com que partira, afinal ninguém o
expulsara do país e muito menos alguém o chamara
na Suécia e nisto parecia residir o perigo, para um
homem solto no espaço não era fácil viver sem ser
chamado a tanto.
De bêbado brilhante passou a bêbado chato,
bebia a ponto de não mais controlar-se. Em uma
noite de tempestade, viu-se caído na área de
operações da proa, em meio a cordas e máquinas
rastejava no chão buscando os óculos, o temporal
que açoitava o navio não o deixava ver um palmo à
frente, ou encontrava os óculos pelo tato ou não os
encontrava nunca mais, logo os óculos que tanto
agradavam a Cristina, que diria a portenha, que
diria Schneider se o vissem naquele estado
deplorável, bêbado de não poder erguer-se,
rastejando qual verme sobre o convés alagado,
quando um oficial de bordo, talvez providencial, lhe
deu um chute nas costelas e o esbofeteou com
energia, entregou-lhe os óculos — “ecco, disse ao
italiano, era justo o que procurava!” — e o jogou aos
empurrões nos corredores da ponte Passegiatta.
Encharcado até os ossos, Cristiano desmoronou em
uma cadeira de lona, em seu porre teve a impressão
de ter visto um casal de noctâmbulos que o
abordava, “por que não dormes?”, como também lhe
restou a lembrança também vaga de ter respondido:
“dormir é morrer um pouco”, tudo era muito vago,
menos a resposta de um deles: “pobre coitado!”
Tudo, menos comiseração. Voltava
desempregado e fodido, mas tinha suficientes
reservas de orgulho para não aceitar piedade. Voltou
à sobriedade num repente. O casal já sumia ao final
do corredor, Cristiano não sabia se atribuía sua
recuperação ao banho na proa ou à frase dos dois,
sim, de ambos, pois se apenas um falara havia uma
unanimidade entre os dois, não era apenas uma
pessoa que dele se apiedava, mas duas, e
provavelmente mais outras duas se o tivessem visto
sendo chutado por um serviçal. Urgia reerguer-se.
Beber se tornava perigoso. No estado em que
há pouco estava, que ou quem o teria impedido de
dar mais alguns passos e cair na noite e na
tempestade? Pingando água, calças e camisas
coladas à pele, mas em pé e lúcido, “sou lúcido,
merda!”, percorreu a solitária Passegiatta rumo ao
camarote. Serias melhor cuidar um pouco mais de si
próprio se quisesse voltar a charlar com Schneider
na manhã seguinte, se quisesse voltar a ver os olhos
negros e calmos de Cristina e tinha de convir que
ambos constituíam uma boa razão para se viver
mais um dia.
Acordou tarde, algo lhe dizia ser perto de
meio-dia, mal abriu a porta de acesso à piscina foi
golpeado por um sol equatorial implacável.
Excitação a estibordo. Os passageiros aglomeravam-
se nas passarelas em uma agitação inusual, ao
longe branquejavam as praias de Recife. Um arrepio
lhe percorreu os poros. Ali estava, ao alcance de
seus olhos, deitado eternamente, o continente do
qual fugira como diabo da cruz.
Um medo sub-reptício começou a perfurar-lhe
o espírito como verruma. Lá estava, visível, a
plataforma continental, a linha suave do litoral.
Estaria salvo? Não sabia. Seria o supra-sumo da
ironia se chegasse, náufrago, à praia, e o jogassem
atrás das grades. Se há bem pouco sua tentação era
jogar-se ao mar, o dilema agora era outro: descia ou
não descia? Pois o Milicus latinoamericanensis
continuava vigilante, coturnos sempre prontos a
esmagar qualquer manifestação de pensamento, e
seu passaporte tinha vistos de países por onde não
era saudável passar.
Estivera na Argélia, onde fora conhecer o
deserto, sugestão imperativa de uma amiga muito
querida, Federica de Cesco, suissesse com a qual
tropeçara em Estocolmo, mas até que explicasse ao
torturador de plantão que fora ao Saara apenas para
ver o Saara, até então já estaria morto ou mutilado.
Tinha vistos ainda da Romênia, Bulgária, Alemanha
Oriental, países por onde passara rapidamente e que
lhe haviam banido do cérebro qualquer veleidade
socialista, mas como convencer disto os homens?
Vivia um estranho paradoxo. Na Suécia, a
polícia de imigração lhe oferecera asilo por julgá-lo
militante de algum movimento de esquerda, apenas
por ser jornalista e estar chegando do Brasil Já a
colônia brasileira o julgava de direita, certamente
agente do SNI ou DOPS, afinal não militara em
grupo algum de esquerda. E ao voltar, vazio de seus
sonhos, corria novamente o risco de ser confundido
com um militante de esquerda. Os dias não eram
definitivamente os melhores para um livre-pensador.
Mais dois dias de navegação e o Eugenio
atracaria no Rio. Descer ou não descer? — estas era
a questão. Tinha quarenta e oito horas para
respondê-la, sempre havia a chance de desembarcar
em Montevidéu ou Buenos Aires, tomar um ônibus
até Rivera e atravessar — al pasito no más, como
dissera um dia João Geraldo — a Calle
Internacional, sem mostrar passaporte a milico
algum. E foi pensar no burro, este apontou as
orelhas. Uma sombra imensa mais uma vez roubou-
lhe o sol, seria aquela forma de chegar uma espécie
de estilo em Schneider?
— ¿Tuviste miedo, ayer?
Medo? Medo de quê?
— La tempestad! Yo tenia miedo por ti.
O homem o desconcertava. Como entender
aquilo tudo? As coisas pareciam desenvolver-se
como em um romance, não conseguia conceber
Schneider como um ente da vida real, aquele
orangotango obeso só podia ser fruto da imaginação
de algum ficcionista desvairado. Há muitos anos se
perguntava, ao olhar-se ao espelho, se existiria um
outro Cristiano, igual ao da imagem refletida. A
resposta era sempre negativa, “sou um ser único,
como únicos são todos os seres”, pensava. Mas ali
estava, em carne e osso, o outro ser feito à sua
imagem e semelhança. Não que fossem fisicamente
iguais, Schneider teria uns bons vinte quilos a mais,
sem falar em traços faciais, o que pouco importava,
pois no fundo constituíam uma mesma pessoa.
— Não te entendo — dissera em uma de suas
charlas no convés —. Estou perplexo. Somos iguais.
Mas tu vais para o sul e eu continuo sem norte.
— Los extremos se tocan — reagiu o militar,
concluindo ante seu olhar de pasmo — pero hay que
ser extremista.
Mas agora a pergunta do militar era outra.
Sem muita convicção, respondeu:
— Não tenho medo de nada.
— ¡No es verdad!
Não era mesmo. O homem não se deixava
enganar.
— Siempre tenemos un miedo cualquiera. Yo
tenia miedo a las tempestades...
E contou-lhe histórias do mar onde todos seus
conhecimentos de navegação resultavam inúteis,
seu cruzador dançava nas ondas como folha ao
vento.
— Pero siempre he tenido confianza en Diós, en
este Diós que hizo que te encontrara!
Ali se estabelecia um nó górdio. Schneider
apostava tudo em uma abstração de covardes, em
um mito criado por homens com medo da morte.
Não que ele, Cristiano, tivesse chegado ao grau de
sabedoria do arqueiro do xógum. Não que ele não a
temesse. Mas melhor morrer enfrentando seus
medos do que viver com muletas metafísicas.
Schneider não deixava de ter razão: ele tinha medo...
e Deus nenhum!

Os dias até o Rio passaram como areia por


ampulheta, em um fluir constante, sem horas nem
datas. Cristiano já não conseguia distinguir com
precisão o sono da vigília, tampouco a realidade da
fantasia. Estaria enlouquecendo? Ou a vida era
assim mesmo? Apoiada na amurada da ponte Sole,
uma francesinha se perguntava:
— Ce pays ne finit jamais?
Não, não acabaria tão cedo, do Rio de Janeiro
a Rio Grande havia ainda boas léguas de litoral, mas
se para ela, que ia rumo ao Chile, o Brasil acabaria
acabando, o mesmo não ocorria a Cristiano, para
quem o Brasil era fim de linha, fim de ilusões, fim de
conversa.
Não desceu no Rio. Teve medo. Respirou
fundo a baía da Guanabara, o navio atracou no
porto mas do navio ele não saiu, do Brasil só sentiu
o calor das coxas de uma mulata que tomara o
Eugenio de assalto em busca de dólares. Mergulhou
no regaço quente da carioca, seus chiados e gemidos
pareciam enunciados em uma língua estranha, tão
suave e acariciante que quase o fazia chorar. “Estou
no Brasil”, concluiu, enquanto a cavalgava com a
alegria de criança que ganhou doce.
O barco zarpou, voltou a atracar em Santos e
Cristiano permaneceu a bordo. Mais dois dias e
chegariam a Montevidéu, uma vez em terra
queimaria o passaporte e entraria no Rio Grande do
Sul com carteira de identidade, esta pelo menos não
tinha visto de país algum. Temia voltar ao país para
o qual queria voltar. O medo, ou melhor, talvez não
fosse o medo, apenas um instinto de sobrevivência
mais aguçado, enfim, fosse o que fosse, aquela
apreensão lhe expulsara do espírito os pensamentos
funestos que o faziam namorar o mar. E aquela
mulata ciciante, era como se a própria pátria tivesse
rompido a vigilância dos militares e tivesse ido
recebê-lo a bordo, de braços e pernas abertas. A vida
recuperava pouco a pouco seu sentido.
No porto de Montevidéu, quando já fazia fila
para apanhar o passaporte, Cristina e Schneider
foram abraçá-lo. O gigante barrigudo olhou-o com
um olhar duro, olhar de chefe que transmite uma
ordem vital a um soldado:
— Una derradera pregunta, Cristiano...
— Sim?
— ¿Gustas de ti?
Foi como se recebesse uma paulada. Olhou-o
nos olhos, em pânico, aquilo não era pergunta que
se fizesse, Schneider poderia perguntar qualquer
coisa, devassá-lo em seus recantos mais íntimos se
quisesse, nada tinha a esconder — “solo tengo
secretos militares”, como diria o argentino —.
Perguntasse tudo, menos aquilo, não que tivesse
qualquer em dizer sim ou não, o fato é que não sabia
qual era a resposta. Permaneceu longos segundos
perplexo, o policial já lhe entregava o passaporte,
Schneider o abraçou fraternalmente, puxou-o contra
o peito e segredou-lhe ao ouvido:
— Porque si algun dia te asaltar la menor duda
cuanto a esto, llamame. Si no estoy en guerra, te iré
buscar donde esteas. Adiós, ¡hermano!
“Filho da puta”, pensou Cristiano, as lágrimas
forçando as janelas dos olhos. “Que vão pensar estes
policiais de fronteira se me ponho a chorar?” Rangeu
os dentes, apanhou o passaporte de um safanão e
virou rapidamente as costas ao militar,
murmurando entre dentes um embargado adeus.
4. NOS PASSOS DE PESSOA
“Quantos anos são necessários para um
homem derrubar, dentro de si, um mito?” —
perguntava-se Cristiano. Deveria existir uma média
como resposta, da qual ele não tinha a menor idéia,
mas de algo estava certo: dependia da distância em
relação ao mito. Poderia até mesmo esboçar uma lei:

a crença em uma utopia é inversamente


proporcional à distância que dela mantemos

Por muitos anos, quando lhe jogavam à cara a


pergunta primária e inevitável — Rússia ou Estados
Unidos? — brandia a utopia ártica: é na Suécia que
os homens são livres. No entanto, naquele 1875
sobre o qual girava toda a década, a miragem
nórdica estava há muito enterrada, embora há uma
semana estivesse perambulando pelas ruelas de
Gamla Stan. A Suécia era maravilhosa... para os
suecos. Jamais para um latino, por divinas que
fosse as louras nórdicas. “Bort bra, hemma bäst”,
costumavam dizer os Svenssons: no estrangeiro é
bom, em casa melhor.
Outono 75, bateu o banzo. Quanto tempo
duram as utopias, quando moramos nelas? Para ele,
três anos e pouco. E isso porque era teimoso. Não
iria negar, com um ano de Estocolmo, dez anos de
aguerridos discursos, e nisso parecia residir algo de
comovente no bicho-homem: quando põe uma idéia
na cabeça, foda-se a realidade.
Desceu rumo ao Sul, sem muita pressa.
Revisitaria Barcelona — que adorava, mais ou
menos a contragosto, pois não conseguia entender,
em sua fuga obstinada, como podia ter charme uma
cidade latina — e em Lisboa tomaria o Eugenio C, a
idéia de uma travessia aérea do Atlântico o
apavorava, não entendia como podiam existir
insensatos capazes de tal proeza. À medida que se
aproximavam os dias de descida, começou a
manifestar-se o fenômeno. Mal via um vulto magro e
louro em gabardina, barba ruiva e óculos claros —
tipos que abundavam em Estocolmo — corria quase
a saudá-lo, só ao chegar perto via não ser Dalmácio
o transeunte.
Ocorresse o equívoco apenas uma vez, tudo
estaria dentro do cálculo das probabilidades. Mas o
fenômeno teimava em repetir-se, algo estava por
acontecer. Em Barcelona, flanando pelo Barrio
Gótico, chegava quase a puxar turistas pelo braço
para ver-lhes o rosto, a imagem do amigo se tornava
quase uma obsessão. Considerava que, de
transeuntes magros e louros com gabardinas e
óculos claros as capitais européias deveriam ter alta
incidência, o problema é que só naqueles dias
passara a observá-los. Interiormente perturbado,
procurava ignorar os turistas magros e louros e
barbudos, mas o seguinte sempre parecia, mais que
os anteriores, Dalmácio. Nem a embriaguez do
flamenco, nem a alegria das catalãs que dançavam
pelas ruas nas madrugadas, conseguiam desviá-lo
do Poeta, como o chamavam, em um misto de
carinho e ironia.
Nem mesmo a venda livre de bebida nos bares
e supermercados. De repente, a iluminação: “meu
Deus, vivi quase quatro anos em um país onde é
proibido beber em bares”. O mito o havia
anestesiado de tal forma que sequer se dera conta —
repetia para si mesmo perplexo — que na Suécia era
proibido beber em bares! Uma utopia em lei seca
permanente! Qual cãozinho de Pavlov, só bebera em
Barcelona em restaurantes. Iluminado, entregou-se
de corpo e alma aos vinhos de Espanha, à alegria
das gentes que buscavam os bares, antes de mais
nada, para beber e cantar. Em uma tasca, um aviso
em uma tabuleta de madeira:

¡ES TERMINANTEMENTE
PROHIBIDO CANTAR!
“Que bom!” — pensou com seus botões — “isto
é sinal de que todo mundo vive cantando”.
Desceu a Lisboa. Tinha dez dias livres até a
chegada do navio. Refestelar-se-ia — gostou da
mesóclise e repetiu para si mesmo: — refestelar-se-
ia nas tascas e casas de fados, peregrinaria pelos
bares de Pessoa, bebendo quando e onde quisesse,
sem o olhar da censura das velhotas dos
systembolag. Só agora, na península ibérica, sentia
nas veias o absurdo de um país onde as pessoas
bebiam às escondidas. Largou âncoras em um
pequeno hotel da Avenida da Liberdade, infestada
pelas palavras de ordem da Revolução dos Cravos,
das quais só guardou uma:

PENSA EM LIBERDADE
SEM SUJARES A CIDADE
Como QG escolheu a Brasileira do Chiado.
Nada de saudades do Brasil, mas em homenagem ao
Pessoa. E os versos daquele beberrão genial e
obscuro lhe perpassavam os nervos.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do
mundo.
Dalmácio, Dalmácio, sempre Dalmácio. A
“Tabacaria” era sua bíblia, conforto e alimento
espiritual nas horas de descrença em si mesmo, o
poema parecia insinuar-lhe que mesmo o mais
miserável dos homens tinha acesso à grandeza se
bem cantasse sua miséria:
E vou escrever estes versos
para provar que sou sublime.
O bagacinho mais o poema, mais aquela
obsessiva evocação do amigo errante, perdido em
alguma cidade alemã, o levaram aos poucos a uma
dolorosa revisão de vida. Surpreendeu-se rabiscando
um guardanapo e o resultado era sempre o mesmo.
Por mais que somasse e diminuísse, dava 29. Vinte e
nove anos e um vazio antes e outro vazio à frente.
Jornalismo era um ofício que parecia rumar ao
vazio, e rumo ao vazio teria de ir ao voltar ao Brasil,
se quisesse comer e — mais que tudo — garantir o
trago nosso de cada dia.
Uma frase que encimara um poema de
juventude, publicada por Deusa Shiva no
Suplemento Rural das Letras, como chamava
Dalmácio (sempre Dalmácio) o caderno literário do
Correio do Povo, aquela frase parecia projeto imbecil
de adolescente sonhador: “Cristiano, conforme suas
próprias palavras, valoriza tão-somente o labor
artístico, considerando-o o único capaz de justificar
uma existência”.
Labor artístico! Ridículo abrir a boca quando
se é adolescente, pensava. Vinte e nove anos e só
conseguira alguns contos e crônicas. Aos trinta,
Napoleão já conquistara o Egito e ele sequer havia
reunido seus exércitos. Foi então que, rabiscando
sempre maquinalmente no guardanapo, descobriu o
erro da subtração. 75 menos 47 era 28, não 29.
Raras vezes se sentira tão eufórico. Tinha mais um
ano para reunir seus exércitos. Quantos mortais
teriam tido a felicidade de ganhar um ano em uma
noite?
Em comemoração ao ganho inesperado,
brindou com um Dão. Seriam talvez onze horas da
noite quando deixou a Brasileira, rumo ao Rossio.
Frente ao Pic-nic, parou. Transeuntes conversavam
na noite cálida, havia algo de familiar na rua e no
café, parecia estar na Rua da Praia. Se Dalmácio
pensasse em degustar um cafezinho, por certo
escolheria o Pic-nic. Entrou.
Levantava a bica aos lábios quando,
sorridente e cachimbando, ele o olhou divertido.
Virou as costas, já cometera não poucas gafes
confundindo desconhecidos com o Poeta. Sentiu
então um abraço afetuoso envolvendo-lhe os
ombros. Não havia mais margem a erros.
Abraçaram-se demoradamente, qual homem e
mulher que há muito não se vêem, para espanto dos
lisboetas que os cercavam, ambos com os dentes
cerrados para não chorar.

Vinha do Brasil, Dalmácio. Cristiano o


imaginava na Alemanha. Vinha do Brasil e voltava à
Alemanha. Que fizera na terra dos Deutschen?
— Trabalhei em jornal.
E antes que Cristiano o gozasse, ajuntou:
— Eu entregava jornais, na madrugada.
No espírito de Cristiano saltara um tigre
adormecido, aquele ímpeto que tão antipático o
tornava, o de cair em cima de qualquer frase que
soasse falsa. O tigre despertara e mal arreganhara
as garras, ante a brutal confissão de fracasso,
voltara a embainhá-las, envergonhado. Quando
acabaria com aquela maldita mania de cobrar de
todos toda a verdade?
Percorriam agora a rua da Baixa, repisavam os
passos de Pessoa, silentes. Dalmácio, o lacônico,
falava pelos cotovelos, as palavras lhe vinham aos
chorros, nele se via o homem de muitas vivências
que passara longo tempo sem falar com amigos. Foi
vomitando. Em poucas semanas de Alemanha, seus
míseros dólares haviam-se evolado. Fizera um curso
intensivo de alemão, não encontrara um só
estrangeiro com quem falar, os colegas eram todos
imigrantes desesperados em busca de moeda mais
forte. Pelo menos lhe haviam servido de ponte
quando a fome começara a roer-lhe as entranhas.
Um turco lhe indicara um bico, colher o lixo de um
hospital, e durante meses subsistiu carregando
fetos, tripas e cânceres.
Até o dia em que, sem poder conter-se,
esperou em um corredor a chefe do serviço e
lambuzou-lhe o rosto de placenta. “É bom pra pele”,
dizia, enquanto lhe esfregava os restos sangrentos
pelo pescoço e seios, a alemoa perplexa perdera a
voz, “sirva-se, não precisa mais importar
cosméticos”, por certo nenhum ser primitivo do
Terceiro Mundo jamais ousara tratar assim sua
cútis. Logo conseguiu emprego mais bem pago, lavar
cadáveres em uma morgue. Do salário não podia se
queixar, ganhava mil vezes mais por cadáver lavado
do que por um poema entregue à Deusa Shiva, mas
não era exatamente aquilo que fora buscar no país
de Nietzsche, Hölderlin, Kleist.
Sempre através de contatos com imigrantes,
encontrou algo mais limpo, se assim podia dizer, um
bico como servente de obras na construção do
Olympiahalle, a todo momento lembrava Vinicius de
Morais empinando seu uísque e louvando a vida
operária, “era ele que erguia casas, onde antes só
havia chão”, e para espanto de turcos e iugoslavos e
árabes, a cada vez que os encontrava, repetia
monocordicamente o poema, em brasileiro, bem
entendido, e os pobres diabos que erguiam as casas
dos olímpicos europeus julgavam tratar-se de uma
prece qualquer.
— Fomos enganados pelos poetas, Cristiano.
Nos jogaram nos braços do operariado, mas iam
dormir com a burguesia.
Mais tarde, conseguira algo pelo menos mais
leve, entregava nas madrugadas brancas de neve o
“Süddeutsche Zeitung”, o jornal fazia defesa
incondicional dos pobres do Terceiro Mundo, a
ponto de dar-se ao luxo de ter como entregador um
intelectual brasileiro. Dalmácio falava com uma fúria
contida, calmo e sem mudar de tom, as palavras
pingando revolta.
O poeta quebrara pedras e comera fogo na
terra dos poetas e para lá queria voltar. Cristiano
não entendia. Dalmácio falava rápido e aos
borbotões, parecia sentir o tempo curto e nele
precisava encaixar o máximo de suas descobertas.
Interrompendo a fala apenas para chupar o
cachimbo, desembuchava:
— Não sei se te deste conta de uma coisa.
Acho que não. Vivemos tão dentro de nós mesmos
que não conseguimos nos ver. Percebeste algum dia
que raramente entramos numa casa de família? E
não é por falta de convite. E se entramos, ficar uma
hora entre as pessoas ditas normais é paras nós
uma tortura. Te perguntaste um dia qual é a nossa
geografia? Nós vivemos em ruas, bares, trens,
bibliotecas. Se temos quatro paredes, nelas só
entramos para trepar ou dormir, tudo que se
assemelha a um lar nos horripila. Já deves ter
sentido isto.
Pretenderia o Poeta ensinar o padre a rezar
missa?
— Até aí, nada de novo. Passo a uma segunda
pergunta. Já imaginaste um psicólogo, psiquiatra ou
psicanalista, enfim, um desses psicanalhas
qualquer, nos interrogando? Clinicamente, somos
loucos, não acreditamos em ficção nenhuma
daquelas que fundamentam a sociedade. Não temos
filhos, não temos esposas, nem casa própria nem
cartão de crédito. Nem rádio, nem TV, nem
automóvel. Nosso patrimônio é afetivo, dois ou três
amigos, uma ou duas mulheres mais queridas,
outras tantas nem tanto, livros e vivências, enfim,
coisas sem valor algum em uma sociedade que
cultua posses e aparências. Tampouco somos
hippies ou clochards. Vivemos numa faixa de
marginalidade própria, entre o stablishment e os
marginais propriamente ditos. Somos embaraçosos
ao Estado e sequer possuímos o charme dos
mendigos. E se os mendigos, de um modo geral,
perderam o senso de dignidade, nós ainda o
conservamos, seja para não pedir pão ou sinecuras.
Somos daquela estirpe que Platão expulsou de sua
República. O Estado só nos dá colher de chá se
renunciarmos ao que nos é mais caro, a revolta.
Caminhavam por ruelas sem nome, os passos
chiavam na noite silente. Cristiano não queria olhar
para Dalmácio, tinha a impressão de que ele
chorava. Se a Alemanha o tratara tão mal, porque
voltava?
Cristiano evitava a pergunta, seria mais ou
menos como perguntar a um alcoólatra por suas
razões de beber. Se perguntasse, talvez não ouvisse
resposta. Dalmácio parecia padecer de um orgulho
empedernido, talvez não fosse exagero formulá-lo
mais ou menos assim: “se o Brasil não me quer, azar
do Brasil”. Uma editora lhe oferecera eventuais
traduções do alemão, pagas a preço humilhante,
uma monoglota qualquer recebia cinco vezes mais
para datilografar uma página. E sem que Cristiano
cobrasse, o Poeta foi largando suas razões de
revolta. Na Alemanha, as perspectivas não seriam
melhor do que haviam sido, mas em sua mágoa
havia um desejo de punir o país que não o
respeitava.
Cristiano ponderava que afinal nem todas as
portas haviam sido procuradas. Que autor inédito
não podia esperar que o editor o fosse procurar em
seu quarto pobre. Que tinha de pôr a cabeça para
fora, para que o vissem. Mas o teimoso e esquálido
interlocutor não se deixava convencer. Sentia-se por
demais para mendigar eventuais publicações de
poemas em suplementos e tinha vergonha de
financiar uma edição. Emprego público? Teria de
pedir, e detestava pedir, sem falar que abominava a
raça dos funcionários, o avanço na carreira
dependia da flexibilidade da espinha. Um ex-colega
quisera contratá-lo como redator de publicidade,
“tens um bom texto e senso da palavra, sem falar no
curso de filosofia”. De novo, a humilhação.
Solicitavam-no, nada mais nada menos, a utilizar
seus conhecimentos de Platão ou Shakespeare para
vender eletrodomésticos. Via-se em um beco sem
saída.
— Conheces aquelas famílias que adoram
educar os filhos lendo Shakespeare, ouvindo Mozart,
Vivaldi? Claro que conheces. Pois bem, se um filho
inventa de fazer teatro ou piano, os solenes imbecis
arrancam os cabelos, as mães olham-se ao espelho e
choram, que foi que eu fiz para ter um filho assim?
E assim somos tratados. Poeta bom é poeta morto.
Nosso amigo, o Pessoa, certamente sentiu até o
fundo esta tragédia, não terá sido por acaso que
morreu de cirrose. Hoje, morto e sepultado, é gênio.
Vivo, era insuportável para sua época. Duvido que
os lisboetas vissem nele algo mais do que um
beberrão.
Cristiano aventou uma objeção. Dalmácio
tinha consciência do tributo a ser pago. Ou não
tinha?
— Tenho. Mas o problema é outro.
— Qual?
— Há países que apostam em seus criadores.
Acho que os europeus alcançaram isto. Meu calvário
em Munique não invalida isto, afinal cheguei lá pela
porta dos fundos. Jamais publiquei algo, só tinha a
oferecer meus braços, este foi meu erro. Mas reflete
bem sobre nossa situação, gaúchos de Porto Alegre.
Sequer somos considerados brasileiros. Se alguém
escreve no Rio ou São Paulo, é escritor nacional. Se
publicamos em Porto Alegre, somos escritores de
província. Somos Terceiro Mundo de Terceiro
Mundo. Vê o Mário Quintana. Só passaram a
considerá-lo poeta após mais de meio século de
poetar. Qual é o homem de trinta anos que faz
projeto para os setenta?
Não seria Cristiano a negar-lhe razão.
— Tentei trabalhar por lá antes de voltar à
Europa. A universidade me rechaçou. Conheces o
lema atribuído à universidade da Basiléia? Tinha
três vias de acesso: per bucam, per anum, per
vaginam. As universidades brasileiras em nada
diferem dela, pertencem a castas. Tentei jornalismo.
Me cortaram, hoje só é jornalista o analfabeto
egresso de um curso de jornalismo. Só no Brasil
mesmo, essa exigência não existe em lugar nenhum
do mundo. Sabes quem está bem de vida e famoso?
Nosso amigo Deusa Shiva. De crítico de artes virou
cronista de futebol.
A frase caiu pesada naquela noite quente em
Lisboa. Soderman? O que nos acusava de fugir à
luta?
— É! No fundo, não o condeno. Ganhava doze
pilas para escrever um ensaio literário, hoje ganha
milhões para escrever boçalidades em torno à unha
quebrada de um analfabeto qualquer.
Soderman fizera ao poeta a proposta obscena,
começar como redator de esportes, “tu tens curso de
Filosofia, poderias dar um bom comentarista de
futebol”. No fundo queria gabar a si mesmo,
Soderman também passara, a vol d’oiseau, pela
Filosofia, o que lhe permitira em uma locução falar
em gol metapsíquico, o que não queria dizer nada,
mas deixava o povão boquiaberto. Quanto ao
registro como jornalista, dava-se um jeito, que se
matriculasse em Comunicações, era pegar ou largar.
Dalmácio sequer se dignara à menor ironia, o
diálogo fora definitivamente rompido. O convite o
apavorava. Chegara-se a um ponto no Brasil em que
fora impingida a idéia de que para comentar futebol
era exigida cultura superior.
— Se mantivesse uma postura cínica, tipo
“ganhando bem que mal tem?”, ele até contaria com
meu apoio. Mas o pulha se pretende honesto.
O tempo definia os homens. Cristiano tentava
imaginar o intelectual que tecia sutis considerações
sobre “O Ser e o Nada”, tecendo vazios comentários
sobre futebol, isto é, sobre nada.
— É um ganha-pão como qualquer outro —
continuou Dalmácio —. Temos de convir que não é
crime ser comentarista de futebol.
Crime não era, disso Cristiano estava
consciente. Mas não o considerava ofício adequado a
um homem que se pretendesse íntegro.
— É. Mas há piores. Há quem seja publicitário
e continue se apresentando como homem de
esquerda.
A frase encerrou por algum tempo a cadeia de
reflexões. O que mais dissessem em torno ao
assunto, seria tautológico. Sem saber como,
encontraram-se de repente na Avenida da Liberdade,
frente ao Paladium. Teriasm caminhado em círculos.
— Cafezinho, para encerrar? — sugeriu
Dalmácio.
— Uma bica, queres dizer?
Haviam esquecido que estavam em Lisboa.
Pois em verdade estavam em Porto Alegre, ou Porto
Alegres estava neles. O fato de se descobrirem na
Avenida da Liberdade parecia ser uma vulgar ilusão
dos sentidos. Ao erguer a taça, Cristiano sentiu fixo
em sua mão o olhar do Poeta. Que havia?
— Eu é que te pergunto — reagiu Dalmácio. —
Te observo desde o Pic-nic. Tua mão está tremendo.
Estava mesmo. Desde o dia anterior, tentara
ignorar o fato, mas não conseguia escondê-lo a si
mesmo. O que era pior, um tique nervoso começara
a invadir-lhe a pálpebra do olho esquerdo.

Mas os dias em Lisboa não eram exatamente


propícios a angústias existenciais. As esquerdas
portuguesas haviam descoberto os delírios da
Revolução e tudo estava impregnado de nobres
propósitos sociais. Foi ver um filme de Lelouch,
“Toute une Vie”, e nas legendas finais anunciava-se:
“Este filme acabou de ser rodado no dia 23 de abril
de 1974, dois dias antes do movimento antifascista
em Portugal”. Pensou rever Alexandre Nevski mas
desistiu, o cineclube anunciava o grande cineasta
antifascista Eisentein, quando o homem sequer
tivera tempo de ser antifascista, morrera antes da
emersão de Mussolini. Dalmácio tentar publicar
alguns poemas elaborados sofridamente na
Alemanha, talvez os portugueses lhe fossem mais
propícios do que os brasileiros, mas já o primeiro
editor consultado despiu-o de qualquer ilusão:
— Depois da Revolução dos Cravos, em
Portugal só se publica P & P.
— P & P?
— Exato. Política & Putaria.
Nos quiosques, Cassandra Rios e Harold
Robbins posavam orgulhosamente ao lado de Marx,
Trotski ou Che Guevara. Mesmo nas tascas o clima
era tenso, a costumeira bonomia dos lusos era
substituída por duras lembranças de guerra. No
Palladium, bêbado, um oficial berrava, as lágrimas
lhe rolando sem muita cerimônia pela face:
— Combati na África. Combati e matei muitos
gajos. Como soldado, obedecia ordens e defendia os
interesses de Portugal. Matei muita gente, estava lá
para isso. E agora, cá em Lisboa, gajos que nunca
arriscaram a pele, me acusam de fascista. Se me
recusasse a combater na África, teria de fugir do
país. Ou ir para a prisão.
Os dias passavam e o que antes era um ligeiro
tremor na mão esquerda de Cristiano passou a
contaminar-lhe face, lábios, pernas, os próprios
peitorais, mas sempre do lado esquerdo. Delirium
tremens não podia ser, seria tudo menos delirium,
que em estado de carência alcoólica não estava,
muito antes pelo contrário.
Os fados haviam sido banidos de Lisboa, tanto
Pessoa quanto Amália Rodrigues eram agora
fascistas. (Lembrava Deusa Shiva, solene, acusando
Visconti de decadente). Ouvia-se, mesmo sem se
querer ouvir, as pérolas revolucionárias:
Operários, camponeses, hão-de um dia
arrebatar o poder à burguesia.
Abaixo a exploração!
Pelo pão de cada dia!
Pois claro!

Pela terra que nos rouba essa canalha


dos monopólios e grandes proprietários.
Camponeses, lutem pela reforma agrária
para dar a terra àquele que a trabalha.
Reforma agrária faremos!
A terra a quem trabalha!
Pois claro!
E tudo aquilo em sotaque luso! Cristiano ria
sozinho pelas ruas de Lisboa. Dalmácio, por sua vez,
partia. Não imaginava que o Poeta partia para nunca
mais.
O hemisfério esquerdo todo tremendo.
Dalmácio lhe sugerira uma boa massagem, serias
talvez tensão nervosa. Cristiano procurou uma
sauna, os deuses do Acaso o jogaram nas manoplas
de Mão-de-Pilão, um gigante negro que não só vivera
em Porto Alegre, como fora massagista de um time
gaúcho. Evocações da Rua da Praia, que fazia aquele
brilhante cronista de futebol, o Soderman?,
enquanto dois bíceps descomunais lhe trituravam as
costelas.
Ó Deus, Ó Deus, exclamava-se Cristiano,
quando vou me libertar do país do futebol? Mas os
tremores continuavam. Procurava esconder-se no
hotel, passara a sair apenas à noite, pelo menos lhe
restava a mão direita para erguer um copo sem dar
vexame. Já pensava em procurar um médico,
quando qualquer intuição lá no fundo de si mesmo o
levou a telefonar para Clotilde. Do outro lado do
oceano, duas palavras sem predicado algum lhe
disseram tudo:
— Teu pai...
— Já sei — conta as outras novidades que
dessa eu já sei.
Posto o fone no gancho, chorou
convulsivamente alguns minutos. Não mais tremia.
No porto, atracara o Eugenio C.
3. NO PARAÍSO
No dia 7 de setembro de 1972, Cristiano
jantava com Lena-Lena no Fem Sma Hus. Ela
chamava-se apenas Lena, mas com sua mania de
rebatizar as gentes, ele a chamava de Lena-Lena.
Len, em sueco, era doce, adjetivo, e passara a
chamá-la de min lena Lena, minha doce Lena.
Passara não poucos meses desejando aquele
momento, sentia-se finalmente aceito como ser
humano. Recusara-se a pagar profissionais, logo ele,
o putanheiro militante. Não queria comprar, queria
ganhar, não se sentiria em casa enquanto não
possuísse uma sueca.
Tivera, é verdade, algumas colegas de aula,
entre as russas, polacas, gregas, iugoslavas e
finlandesas que pediam entrada no paraíso,
fascinava-o ouvir orgasmos nas mais diversas
línguas, mas lhe faltava a única que desejava e que
se lhe fugia, a sueca. Segundo outros latinos, na
década de 60 a luta era menos árdua, estrangeiro
era raridade no país e as adoráveis louras nórdicas
os caçavam com gula. Com o aumento da imigração,
estrangeiro não só passara a ser rotina como ainda
constituía um peso morto à assistência social, sem
falar nos que engravidavam as adoráveis louras
apenas para conseguir cidadania no céu e fugir à
miséria de seus países.
Na década dos 70, justo aquela em que lá
chegara, estrangeiro já estava em baixa. Havia as
adolescentes da T-Centralen, por alguns gramas de
haxixe entregavam-se a quem os fornecesse, com a
nonchalance de quem agradece uma gentileza. Mas
ele buscava uma mulher que o aceitasse como igual,
sem álcool, sem haxixe nem paga. Na universidade
— onde fora estudar cinema, para de alguma forma
justificar a si mesmo e ao serviço de imigração sua
estada no país — lá encontrara Lena.
Uma certa decepção ao ouvir seu nome, Lena
soava por demais latino, bem que preferiria uma
Ingrid, Ulla ou Gudrun, mas naquela altura não
podia mais dar-se ao luxo de escolher parceira em
função do exotismo do nome. Rebatizou-a Lena-
Lena, e ela agora ali estava, na atmosfera macia e
aconchegante do Fem Sma Hus, olhos azuis
imensos, cabelo louro e quase rente à cabeça, nuca
nua pedindo afagos, o rosto todo transfigurado pela
levande ljus, ela adorava luz viva e Cristiano passara
até mesmo a perguntar-se se conseguiria um dia
voltar a comer ou beber com luz elétrica. Lena-Lena,
que por vezes ficava bons quartos de hora absorta
em uma chama que se contorcia, tinha uma lareira
em seu pequeno apartamento e muitas noites
conversaram nus, aquecidos pelas chamas, pela
carne e pela akvavit.
Mas naquele Sete de Setembro — e por isso
lembrava a data — Lena-Lena trazia novas que o
faziam retornar a um passado do qual fugia. Já
haviam jantado, quando ela puxa da sacola um
Expressen. Abriu as páginas centrais. À esquerda,
em foto que ocupava uma página toda, uma mulher
de rosto aterrorizado, língua de fora, nua, pendia de
um pau-de-arara. À direita, a manchete:

DETTA ÄR TORTUR!
Cristiano não precisava daquelas garrafais
nem daquele ponto de exclamação para saber que
aquilo era tortura. Mas algo o intrigava. Foto
daquelas, assim tão expressiva e teatral, por certo
não teria saído dos porões de tortura. Vinha
assinada por Günes Karaboudas.
— Claro que não! — disse Lena —. A foto é
posada. Mas isso acontece lá no Brasil, não?
De fato, acontecia. Cristiano apanhou o jornal,
passou a ler a reportagem de Hammarberg.

HOJE O BRASIL COMPLETA 150 ANOS


E GABA-SE DE SEU
DESENVOLVIMENTO
— MAS SILENCIA SOBRE A TORTURA
Hammarberg fazia um paralelo entre o
crescimento econômico do país nos últimos anos e o
aumento das maiorias marginalizadas, concordava
com a afirmação de que o Brasil estava por tornar-se
o maior poder latino-americano e acusava o regime
militar de suas pretensões de expansão econômica
rumo ao Uruguai e Bolívia e de colocar na prisão
doze mil pessoas, em nome da segurança nacional.
Comentava ainda as famosas leis secretas. Que
brasileiros podiam ser presos por crimes contra leis
que, por definição, não podiam ser conhecidas: “nem
mesmo Papadopoulos na Grécia ou Vorster na África
do Sul chegaram a tais requintes”. Terminava o
artigo mencionando aquele contributo brasileiro à
técnica de torturas, den sa kallade papegojpinnen, o
pau-de-arara. Descrevia a nova técnica tupiniquim,
o que para Cristiano era redundância. Entregou o
jornal a Lena.
— Det är det! — exclamou, lacônico, tentando
expressar em sueco o brasileiríssimo “é isso aí!” Não
tinha procuração alguma para defender seu país,
aliás saíra de lá para nunca mais voltar. Para nunca
mais voltar? A verdade é que era duro não poder
afirmar: “não é nada disso, não. Essas coisas são
ficções de jornalistas”.
Não saberia precisamente quando começara
sua desilusão com o paraíso. Relendo antigas cartas,
Cristiano observava como, aos poucos, fora se
desintegrando a imagem de país ideal. Primeiro,
descobrira brutalmente a realidade do imigrante.
Quase todos seus colegas de aulas de sueco
aprendiam dois meses de idioma para depois
trabalhar em cozinhas de hotéis ou restaurantes,
quando não na construção civil ou limpeza de ruas.
Aquele ar de eterna festa do paraíso dependia do
suor e da humilhação de estrangeiros famintos. Por
outro lado, ninguém os chamava à Suécia, todos
vinham espontaneamente, chegavam mesmo a pagar
somas consideráveis para atravessar ilegalmente a
fronteira. Para depois viverem isolados em uma
sociedade fria e hostil, prisioneiros do idioma e da
cultura.
Um filme — sempre o cinema — jogou-lhe na
cara, com brutalidade, o absurdo mundo em que
vivia: “O Ônibus”, de Bay Okan. Lembrava “Eu me
chamo Stellios”, de Bergenstrale, e o fazia voltar com
amargura aos dias em que bastia pernas, só,
mortalmente só, pela Sergeltorget.
Um grupo de operários turcos, guiados por um
chofer de ônibus, também turco, são jogados na T-
Centralen, sem dinheiro nem documentos.
Amedrontados com o país estranho e hostil, os
imigrantes fecham as cortinas do ônibus e se
escondem. A vida continua em plena T-Centralen, o
centro nervoso de Estocolmo, os suecos vão e vêm
rumo a seus lazeres e trabalhos, os adolescentes
filhos da sociedade do bem-estar curtem suas
cervejas mornas e aguadas ou drogas,
perambulando sem rumo pelos subterrâneos da
central de metrô. Um policial, julgando insólito um
ônibus estacionado naquele largo, cola uma multa
no pára-brisa. Bay-Okan pusera parte de sua
história em uma quarta-feira, dia em que os
estocolmenses, na Sergel Torget, discutem
acirradamente as injustiças cometidas em lugares
longínquos do globo, já que na Suécia não ocorrem
injustiças. A poucos metros das esquerdas
preocupadas com a tortura no hemisfério sul, os
turcos esperam, enregelados, o chofer que naquele
momento gastava suas economias com duas
prostitutas em Hamburgo.
O cineasta situara sua história no inverno,
quando a noite desce fria e sepulcral em Estocolmo.
T-Centralen está deserta e os turcos ousam sair do
ônibus em busca de um mictório. Numa cabina
telefônica um casal de adolescentes se trata, seus
gemidos reboam pelas paredes desertas do
subterrâneo. Na toalete, um dos turcos recebe um
primeiro gesto de simpatia de um espécime do
tunnelbanafolk, povo dos metrôs, é um dos párias
das sociedade de abundância que lhe pede um
pouco de haxixe.
Desfile sinistro dos imigrantes pela paisagem
vítrea da Sergeltorget. Lojas de moda, agências de
turismo, sexshops, manequins lúgubres que se
oferecem estáticos ao espanto dos imigrantes. Um
deles se perde do grupo, berrará em vão correndo
pelos geométricos e frios desenhos de Sergeltorget.
Não mais encontra o ônibus, que no entanto está ali,
a poucos metros de seu desespero. Amanhece a
quinta-feira, os estocolmenses dirigem-se tranqüilos
a seus trabalhos, sem sequer dignar-se a olhar para
aquela cariátide de carne enregelada a poucos
centímetros de seus narizes. A carne enregelada
desequilibra-se e cai num dos canais do arquipélago.
A crosta hibernal abre-se para recebê-la e de novo se
fecha. No ônibus, continuam os turcos esperando o
guia, que nesta altura teve seus últimos roubados
na espelunca de Hamburgo.
Na T-Centralen, que tantas vezes Cristiano
atravessara em cusca de companhia na Kulturhuset,
Maria Enmans Orchester, a Maria-orquestra-de-um-
homem-só entretinha os bêbados com seus cânticos
religiosos. No ônibus, ao lado de Maria, os
imigrantes famintos continuam à espera. À noite,
nova incursão aos mictórios, onde um turco recebe
mais um gesto de solidariedade: um homossexual o
convida para um sexparty. Enquanto um casal trepa
num estrado, o turco, que não pode mais conter-se,
passa a mão no filé de uma mesa próxima. É um
bárbaro, um porco, não sabe comportar-se em
sociedade. É enxotado e espancado até a morte.
O ônibus acaba por intrigar os policiais que
rondam T-Centralen. Um guincho o reboca até uma
delegacia, onde um policial descobre surpreso que
dentro dele havia seres humanos, seres que se
encolhem como bichos assustados quando a porta é
aberta. Do ônibus são levados para o cárcere.
Acabou a viagem e com ela o sonho.
Era um filme. Uma ficção. Mas não podia
deixar de sentir-se mortalmente ridículo. Tudo agora
se tornava claro. Todo aquele bem-estar, toda aquela
assepsia, todo aquele standard, tudo dependia da
exploração e humilhação dos pobres diabos do
Terceiro Mundo. Julgava-se adulto em seus 25 anos
e continuava sendo o mesmo ingênuo atroz dos
dezessete ou dezoito.
Mas a gota d’água nada tivera a ver com os
desníveis sociais do paraíso. Ao fugir do Brasil,
estava fugindo da incultura, da mediocridade
empoleirada em altos cargos, e sua primeira
impressão da Suécia foi de que ali não havia lugar
para picaretagens culturais. Lembrava de uma carta
escrita a Soderman após uma visita ao Museu de
Arte Moderna, observara que naquelas plagas até a
empulhação de vanguarda mantinha um nível
estético mínimo. Pouco durou seu otimismo. Ao
chegar, alojara-se precisamente na residência da
“artista” que lhe espanaria do cérebro os últimos
mitos alimentados durante anos.
Fru K., uma senhora de meia-idade, que
morava frente à Karlaplan, foi sua primeira logeuse.
Madura e cheia de carnes, prometia belas fodas,
mas Cristiano não queria envolvimentos com a
hospedeira. Fora bailarina — “dancei nos palcos
como tenho dançado na vida” —, atriz e agora se
dedicava à pintura. Tão logo se quebrara aquela
quase gélida cortesia com que os superiores seres do
Norte tratam os inferiores homens do Sul, Fru K.
começou a falar de sua vida e passou a mostrar-lhe
sua produção, dezenas de quadros sempre em torno
da praça, era Karlaplan no inverno, Karlaplan com
neve, Karlaplan com flores, Karlaplan deserta,
Karlaplan com gente e Cristiano achou-os todos
lindos, não iria manifestar seu horror ante os
quadros da anfitriã.
Para uma senhora na menopausa, nada
melhor como laborterapia. Assim que não entendeu
muito bem quando a casa começou a ser invadida
por fotógrafos, jornalistas e cinematografistas.
Alguns dias mais tarde, Fru K. o convidava para seu
vernissage, iria finalmente estrear como pintora.
Boquiaberto, Cristiano não sabia se ria ou
agradecia. Aquilo tudo não era então mera
laborterapia? Destinavam-se a uma exposição? E
um mal-estar interior, cujas razões mal intuía, o
invadiu irremediavelmente. Seria Estocolmo uma
versão melhorada de Porto Alegre? Uma imensa
tertúlia à la Eva Sopher? Pior ainda foi quando. Com
ar misterioso, a coroa pediu-lhe que, ao voltar da
universidade, lhe trouxesse um Dagens Nyheter. E
lá estava, em rodapé de primeira página, em cinco
colunas, a manchete:

K., KONSTNÄRINA MED MANGA


TALANGER
Artista com muitos talentos, então? Mesmo
naquele país, naquela capital aparentemente culta e
cosmopolita, mediocridade era manchete? E no mais
importante jornal do país? A estupidez era então
universal?

— Profissão?
— Jornalista.
— Nacionalidade?
— Brasileira.
— Ah! Então o senhor quer asilo político?
Oh não, jag ska tacka nej, como pode muito
bem ver Herr Konstapel, nesse formulário peço
apenas uma permissão de estada, agradeço a
generosa oferta, que aliás é pertinente. Meu país vive
uma ditadura, sei disso, os dias não são os melhores
para quem pensa e escreve o que pensa. Mas antes
de fugir de ditaduras, Herr Konstapel, estou fugindo
do país todo, fujo exatamente daquilo que para
vossos patrícios é sinônimo de charme e exotismo,
fujo do carnaval e do futebol, do samba e da miséria,
da indigência mental e da corrupção, quero tirar
umas férias do subdesenvolvimento, viver em um
território onde o homem sofre os problemas da
condição humana e não os da condição animal.
Muito antes de os militares tomarem o poder, min
Herr, eu já não suportava os civis.
Veja o Sr., meu povo morre de fome e todos
sorriem felizes e desdentados quando um time de
futebol bate outro, se bem que a coisa não é assim
tão tétrica como a pinto, veja bem, lá também existe
luxo, requinte, hotéis que talvez fizessem inveja aos
de vosso rico país, mansões de sonho isoladas da
miséria que as envolve por arames farpados,
guardas e cães, há cronistas sociais que acendem
charutos com notas de cem dólares e homens
catando no lixo restos de podridão para comer. E
não fujo só do Brasil, Sr. Policial Superdesenvolvido,
fujo também de minha condição de jornalista,
pertenço a uma classe que se pretende de esquerda
e entorpece multidões com doses cavalares de ...
futebol.
Em minha cidade — não sei se o chateio com
estes dados — há questão de uma década um
sociólogo calculou em trinta mil o número de
prostitutas, só não sei se havia repertoriado em suas
estatísticas meus colegas de ofício. Penso até mesmo
que a profissional de calçada tem mais dignidade,
ela aluga por instantes o corpo, mantendo o espírito
livre, enquanto nós vendemos corpo, alma e
opiniões, o mais livre dos jornalistas não é livre coisa
alguma, o jornal pertence ao chefe, nossos
pensamentos também, os mais nobres ele os joga na
cesta de lixo, publica os lugares comuns
humanísticos na página dos editoriais e posa de
liberal. Sim, sei que isto não vem caso neste pedido
de permissão de estada, bosätningstillstand como
dizem os senhores, é que para expor minhas razões
tenho de dar-lhe uma idéia do Brasil, pretensão
aliás inviável, já que nem eu entendo aquele país.
Foi lá pelos amos 60, Herr Konstapel, nos
carros e vitrines lia-se
AME-O OU DEIXE-O!
— Love it or leave it?
Exato, isso mesmo, estávamos copiando
vilmente os macartismos ianques, nem em matéria
de totalitarismo somos originais. Tomei a coisa como
indireta, fiz as malas e deixei-o. Nada nem ninguém
me obrigava a sair, senão minha íntima disposição
de trocar a barbárie pela civilização. Trouxe de meu
apenas um livrinho, o Sr. quer ver?
Mão, não é nenhum tratado do Marighela,
aliás o manual de guerrilha urbana dele está aí nas
livrarias, em sueco mesmo, talvez como insinuação
aos jovens Svenssons que um dia pretendam
rebelar-se contra esta tirânica social-democracia que
financia até mesmo sua própria contestação, não,
não é nada disso, são os poemas de Fernando
Pessoa, não sei se o conhece, em caso negativo é
uma pena, Pessoa é um grande poeta, até mesmo
Herr Konstapel há de convir. Sei, os senhores
deixam bíblias nos quartos de hotel para homens
solitários, mas bíblias me dizem cada vez menos,
min Herr, e que mais não seja me reservo o direito de
escolher as minhas. Zanzei de sul a norte por este
continente, Sr. Policial Poliglota, já que não
pretendia voltar a meus pagos queria saber onde
seria melhor ficar. Talvez o paraíso não exista, li em
algum lugar, mas a Suécia era sua mais perfeita
aproximação. Vamos pois ficar perto do paraíso.
Não, Herr Konstapel, não quero asilo político.
Saí de meu país pela porta da frente, jamais lutei
contra o regime, pelo simples fato de jamais tê-lo
aceito. Não pertenço nem pertenci a igrejas políticas
ou ideológicas e como sozinho não poderia mudar
regime algum, mudei de país. Concordo que se exige
uma certa coragem para lutar contra um exército,
mas mais coragem é preciso, e nisso Her Konstapel
mais uma vez há de convir, para falar de si mesmo.
Lutando contra o obscurantismo empunhamos um
ideal nobre, em todo e qualquer lugar do mundo
alguém nos dará apoio, o senhor mesmo não está
sendo tão solícito em me oferecer asilo?
Falar de si mesmo não comove International
Amnesty nenhuma, a menos que o assunto seja
tortura. Angústias existenciais não catalisam
movimentos de opinião, e ainda passamos por
narcisos. Não quero, repito, asilo político. Sua
Generosidade pode reservar esta cota do humanismo
sueco ao que dela realmente precisam. Eu peço
muito mais, quero asilo cultural e espiritual, não
estou fugindo do DOPS ou SNI, quero é fugir de meu
país e de meu passado, não consigo mais respirar
em um território, ainda que imenso, onde um
analfabeto que chuta uma bola ganha milhões e um
pesquisador tem de fazer bicos para comprar livros,
quero fugir dos jornais que fazem uma tragédia em
torno à unha quebrada de não sei qual vedete de
não sei qual time, enquanto clero e governo se
locupletam às custas de uma massa faminta.
Quero fugir dos negros, Herr Konstapel, sim,
dos negros, não é que tenha preconceitos, aliás fujo
também dos brancos, refiro-me a pretos e brancos
que passam fome o ano todo para comprar
lantejoulas e paetês que ostentarão por alguns dias
de carnaval onde cantam as saudades de um
império que os escravizava, quero deixar para bem
longe de mim, quero enterrar para sempre aquele
imenso bordel gerido por canalhas, e se fossem
apenas canalhas não era nada, é que além de
canalhas são incompetentes, não sei se o Sr.
entende as razões que me trouxeram a
humildemente pedir acolhida em vosso paraíso.
— If you have money, you are welcome!
Quanto a isto não se preocupe, Sr.
Controlador do Frágil Equilíbrio do Mercado de
Trabalho, essa frase já ouvi, se jamais lavei pratos
para meus patrícios, se nem mesmo como em casa
para não ter de lavar o que sujo, não serão os
Svenssons que terão os seus pratos limpos por
minhas mãos. Não pertenço à Confraria
Internacional dos lavadores de pratos, e não por
preconceitos quanto a trabalhar com as mãos, nada
disso, em minha infância mãos sem calos sempre foi
estigma de vergonha. Mão de vigarista, dizia
Canário, quando via uma mão de pele fina e bem
tratada, assim como as suas ou as minhas.
Herr Konstapel jamais ouviu falar de Canário?
Claro que não. Pois é um homem admirável, lhe
asseguro, ainda não disse isso a ele, mas um dia
talvez volte à minha terra só para fazer isto. Mas,
voltando aos pratos, penso que vosso reino, min
Herr, tem algo melhor a oferecer-me do que o nobre
ofício de diskare, e não vai nenhuma ironia neste
nobre, todo trabalho dignifica, sei disso, e se os
suecos se recusam a lavar o que sujam não será por
preconceito, certamente, mas talvez porque
iugoslavos e turcos e árabes e latinos têm vocação
inata para o ofício, senão jamais viriam buscar
vossas divisas.
Neste meu giro pela Europa, e nestes poucos
meses que vivi em vosso país, fiz observações
rápidas, é verdade, mas creio que pertinentes, sobre
os grandes destinos das nações. Noto que os
austeros e dignos homens do Norte são desde o
berço inclinados às ciências e às artes. Já os
homens do Sul parecem sentir-se mais à vontade
empunhando uma britadeira ou limpando as ruas
das bostas de vossos cães. Não poderíamos
conceber, e nisto mais uma vez há de convir Herr
Konstapel, um Svensson da gema lavando pratos
para iugoslavos ou marroquinos, não que estes seres
do Sul não mereçam comer em pratos limpos, nada
disso, mas os homens do Norte são antes de tudo
atraídos pelas preocupações maiores do espírito e
como também desde o berço sou inclinado a tais
abstrações, Herr Konstapel pode ficar tranqüilo, não
estou aqui para perder meu tempo lavando vossa
louças, nem clandestina nem legalmente, no dia em
que sentir fome junto meus trapos e vou passar
fome junto aos meus.

Estava já há cinco meses em Estocolmo. Se


nos primeiros dias tivera a impressão de ter chegado
em Plutão, aquela região do planeta parecia agora
assemelhar-se à Terra, uma Terra inchada de cio e
prestes a explodir em um orgamso estival. Havia
deixado para trás, com um oceano de permeio, toda
aquela fauna abjeta de mendigos, indigentes e
aleijões que infestavam as ruas imundas das
cidades que abandonara. Na capital européia de
mais alto padrão de vida, seu único contato com a
América Latina era alguma reportagem do Time ou
L’Express, Nouvel Obs ou Monde. Via como algo
distante, totalmente alheio a seu passado, os relatos
irônicos dos comentaristas internacionais sobre os
golpes e contragolpes, convulsões e fuzilamentos,
carnaval e futebol, miséria e ostentação.
No Chile, generais haviam libertado a pátria
dos tentáculos da hidra vermelha, a Bolívia estaria
no 108º golpe. Ou 180º? A diferença não fazia
diferença alguma. No Paraguai, mais um criminoso
de guerra havia sido descoberto por um caçador de
nazistas. Na Argentina, a nação toda chorava a
morte de Perón, no Brasil um povo inteiro estava de
luto por ter perdido uma partida de futebol para a
Holanda. Perdera o título de campeão mundial de
futebol, mas não havia há pouco conquistado o
primeiro lugar no mundo em desastres de
automóveis? Viadutos continuavam caindo
regularmente no Rio, arranha-céus queimando em
São Paulo, a seca matando no nordeste, as
enchentes no sul. Em Recife, alguém descobrira um
modo eficaz de ganhar seu pão: cortava o corpo com
uma lâmina desde que lhe jogassem dinheiro. O
corpo sangrava, as moedas choviam.
Nos ombros lhe pesava a vergonha de um
continente inteiro.
Cinco meses de solidão quase total, numa
cidade que parecia situar-se em outro planeta que
não a Terra. Chegara em pleno inverno, de uma
Porto Alegre de 40 graus, para aterrissar em Arlanda
sob menos 20, o dia se resumia a um cinza-escuro
carregado, das nove da manhã às quatro da tarde.
Sol, só em cartazes de agências de turismo. O
contraste brusco o fascinara, na primeira semana
achara tudo lindo, o frio seco, a neve caindo em
flocos, o céu plúmbeo oprimindo-lhe a cabeça. Já na
segunda, o snösörja, aquela neve lamacenta que
grudava nos sapatos, passou a irritá-lo, não sentia
mais no rosto com o prazer dos primeiros dias as
nevadas mais violentas.
Cinco meses sem mulheres nem amigos.
Poderia tê-los buscado entre brasileiros, mas
recusava-se ao recurso fácil. Estava lá para tomar
um banho de civilização, repelia a idéia de conviver
com a colônia latina. Fugira do samba, futebol e
miséria, não iria aturá-los só por sentir-se solitário.
Mas amigos não era a maior carência. Sempre vivera
relativamente só, sua viagem fora em parte uma
fuga da loquacidade estéril e do maldito espírito de
camaradagem e calor humano de um país quente,
onde o grande drama não era a solidão, mas sim a
possibilidade cada vez mais rara de ficar-se só. Às
favas os latinos e suas expansividades. Lembrava
Pessoa:
Todo mal do mundo
vem de nos importarmos uns com os outros,
quer para fazer o bem, quer para fazer o mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.
Os espécimes que encontrara! No primeiro dia,
fazendo um reconhecimento na Sergeltorget, ouviu
sons familiares em uma esquina. Abraçado em
violão, alguém se esganiçava, enregelado, barbudo e
com ar faminto. Eu tenho uma nêga chamada
Teresa, cantava. Ou melhor, implorava. No chão, um
chapéu esperando uma moedinha supérflua dos
bolsos mais ricos da Europa. Enfim, não deixava de
ser uma forma de difusão da cultura tupiniquim no
exterior. Olhou-o de longe, não quis se aproximar
temendo ser reconhecido pela roupa ou traços.
Uma semana depois, num supermercado,
quando tentava descobrir o que seria leite em meio a
pacotes com inscrições em sueco, ouviu duas
mulatas do outro lado da gôndola planejando
carreteiros e feijoadas. Abordou-as, pediu que lhe
mostrassem o que era leite. Abraços, efusões afro-
latinas, perguntas, convite para visitas, caipirinhas,
trocas de endereços. E ele só queria uma
informação. Mania insuportável do brasileiro de
mostrar-se amigo quando em terra estranha.
Apanhou os endereços, mais por cortesia, nem de
longe pensava em visitá-las. Estavam há vários anos
na Suécia. Ao chegar em casa, descobriu que lhe
haviam indicado iogurte em vez de leite. Ao que tudo
indicava, as moças não se haviam interessado muito
em aprender o idioma do país onde viviam...
E os outros! Maconheiros que se achavam no
paraíso por não existirem proibições ao haxixe,
aventureiros (gostava de chamá-los de Lavadores
Internacionais de Pratos) que haviam trabalhado nas
cozinhas e latrinas de hotéis e restaurantes de todas
as capitais da Europa, sempre carregando uma
mochila e uma mentira: estou provisoriamente nisto,
volto logo para meu curso em Roma, meu estágio na
Patrice, para meu doutorado na Sorbonne. No
entanto, lavariam pratos até o fim de seus dias,
embalados pela ilusão de estar conhecendo a
Europa, quando na verdade dela só conheciam os
porões, o submundo latino, árabe ou eslavo, que
implorava aos europeus as migalhas de suas
farturas...
E mais os “revolucionários”. Os exilados de 64,
gigolôs da ingenuidade da juventude européia, que
planejavam a retomada do poder nos salões da ABF,
no bar da Filmhuset, em aconchegantes
restaurantes em Gamla Stan ou nos aposentos nada
austeros do hotel Anglais.
Não. A tais amigos, preferia estar só. Disto não
tinha queixas. Mas o sexo já lhe subia à cabeça.
Cinco meses de jejum. Em Estocolmo. Não fosse
estar vivendo o drama, não acreditaria. Para seu
espanto, as prostitutas lá estavam, eternas e
onipresentes. Mas não fugira do Brasil, entre outras
coisas, para não ter de pagar mulheres?
Quando fora pedir algumas informações na
embaixada, fizera um rápido contato com o porteiro.
Esguio, moreno, elegante, físico diariamente
exercitado, chamava-se Lira. Dele recebeu algumas
informações que lhe economizaram um bom
dinheiro e, ao sair, puxou-o à parte:
— E não esquece: órgão sem uso se atrofia.
Não te constrange em apelar pra mão. Melhor que
ficar brocha.
A frase o acompanhara a tarde toda. Não
entendia. Piada? Lira não tinha senso de humor
para tanto. Conselho de amigo? Absurdo, estamos
na Suécia. Drama pessoal? Certamente. Que
sensibilidade teria um boxeador (Lira lutara como
peso leve), latino, preconceituoso e inculto, para
enfrentar uma sueca, independente e cosmopolita?
Coitado do Lira.
Lembrou o sorriso orgásmico de Soderman, o
que ficara, enfrentando miséria, mortes e militares.
“Ah! Conhecer as suecas... e depois morrer!” Pois cá
estamos para conhecê-las.
Vieram-lhe ainda à memória as declarações de
uma atriz nórdica, lidas em alguma revista qualquer:
“Meu país é escuro e frio. Quando o sol, que raras
vezes aparece, cai abruptamente por trás dos
fiordes, só nos resta voltar para casa e fazer amor”.
Agora, entendia Lira.
Desistira inclusive de escrever a amigos. Não
era dado a mentiras, mas tampouco lhe era fácil
escrever que depois de cinco meses na Suécia...
nada feito. Mesmo que não tocasse no assunto, as
perguntas seriam inevitáveis.

Em seus primeiros dias, sentira-se finalmente


entre seres humanos. Não mais a fauna caótica e
miserável — que não pretendia mais rever — mais
pessoas que mantinham a dignidade mesmo na
velhice. Todos bem vestidos, sóbrios nas cores,
taciturnos, superiores. Sem problemas materiais,
seus únicos sofrimentos seriam os da condição
humana, pelo menos era o que insinuavam os filmes
de Bergman. Sofreriam como homens, não como
animais. Policiais, funcionários, garçons, todos
bilingües. Pela primeira vez na vida vira um policial
sorrir e tratar pessoas com gentileza. Não lhe
desagradou não ter encontrado carregador para a
bagagem. Como tampouco engraxates. Nem mesmo
considerou indelicadeza a insistência de um policial
do Invandrareverket em examinar-lhe os cheques de
viagem: “If you have money, you are wellcome”.
Pois bem-vindo sou.
Na Central Station, ao fundo do saguão, a
palavra SEX, imensa e vermelha, lhe chamara a
atenção. Sentiu-se vagamente ludibriado ao chegar
mais perto e ler:

LUNCH

SEX
KRONOR
Seis coroas, o lanche. Matuto, caíra na
arapuca. Fora sua primeira má impressão do país,
logo diluída pelos ônibus que cumpriam horários
com precisão de segundos, mulheres dirigindo
metrôs, louras oníricas fazendo parte de seu dia-a-
dia. O acesso a elas não estaria distante. Seu inglês
era sofrível, melhor nada tentar antes de conseguir
um domínio pelo menos operacional do sueco.
Em três meses, aprendera o suficiente para
comunicar-se eficazmente. Conseguia entender o
que ouvia e fazer-se entender. Mas todas suas
tentativas de aproximação com mulheres haviam
fracassado.

A primeira fê-lo sentir-se ridículo até os ossos.


Lera em livros e reportagens sobre a Suécia — e não
haviam sido poucos os que devorara — que bastava
apanhar-se um jornal e procurar nas últimas
páginas os classificados sexuais. Com duas semanas
de aprendizado, dicionário em punho, deitou-se em
cima do Expressen e Aftonbladet. De fato, lá
estavam os anúncios:
SOZINHO? SEM PRECONCEITO?
38 000 MULHERES DO MAIOR
CLUBE SEXUAL DA ESCANDINÁVIA
ESPERAM POR VOCÊ.
REMETEMOS CATÁLOGOS COM ANÚNCIOS
MEDIANTE O ENVIO DE 100 COROAS.
TROCA-SE FOTOS NUAS.
Ou ainda:
CONTATOS SEXUAIS?
MULHERES MADURAS PROCURAM
HOMENS JOVENS E DESINIBIDOS.
ENTRE AS 20 000 MULHERES DE NOSSO CLUBE
ESTARÁ CERTAMENTE A DE SEUS SONHOS.
CONTATOS HONESTOS.
CATÁLOGO COM CERCA DE 400 ANÚNCIOS
É REMETIDO POR 25 COROAS.
E vários outros. Uma cava desconfiança ante
os que falavam em contatos honestos. Preferiu pagar
mais e pediu a remessa do primeiro. Duas semanas
transcorreram de olhadelas diárias à caixa de
correspondência. Chegou enfim um gordo envelope.
Páginas e mais páginas em sueco. Na
primeira, adivinhou uma carta comercial de cortesia,
deixou de lado. Na segunda, um questionário onde
deveria assinar com uma cruz suas preferências
sexuais. Nenhuma dificuldade maior de tradução, as
mais interessantes práticas tinham nomes
universais, em geral de raízes gregas ou latinas. Foi
anotando. Tribadismo, sexo grupal, oral, anal, etc.
No fim do questionário, um item mais específico a
ser preenchido: qual sua particular exigência que
desejava ver satisfeita? Meticulosos, os suecos.
Nas páginas seguintes, o catálogo. Mulheres
identificadas por números informavam suas práticas
eróticas preferidas, como também pequenos
interesses especiais. Mulheres solitárias buscavam
parceiros de outro ou do mesmo sexo, ou de ambos,
alternada ou simultaneamente. Uma gostava de
espancar, outra de ser espancada. Esta insistia em
alguém que lhe permitisse urinar sobre o corpo,
outra queria apenas masturbar-se enquanto o
parceiro a olhava. Algumas pediam dois homens e
sugeriam posições que permitissem visão e ação
simultâneas. Algumas interessavam-se por espelhos,
outras por livros e filmes. Botas e roupas de couros
eram bastante solicitadas, como também chicotes e
aparelhos de massagem. Havia cardápios para os
mais distintos paladares.
Escolheu as que por suas preferências mais o
excitavam. No final do catálogo, era-lhe conferido
seu número de sócio, ao mesmo tempo em que o
lembravam de remeter mais 100 coroas para a
identificação dos membros femininos cujos números
escolhera. Trinta dias mais tarde, convenceu-se de
ter sido ludibriado como o mais imbecil dos turistas.
Caíra num conto do vigário nórdico: recebera
respostas, é verdade, mas todas de prostíbulos ou de
prostitutas, com uma tabela extremamente precisa
de preços, sendo uma prosaica punheta o mais
barato dos serviços oferecidos, enquanto sexo anal
ficava lá no topo do cardápio. Enfim, em pelo menos
uma coisa Brasil e Suécia se identificavam.

A segunda tentativa, desconcertante.


No subsolo da residência estudantil onde
morava havia uma sauna. Na primeira visita, foi
dominado por algo próximo ao temor. Sauna
deserta. No vestiário, um cartaz alertava:
NINGUÉM O VIGIA.
VOCÊ É O ÚNICO RESPONSÁVEL
POR SUA VIDA.
SAUNA MISTA COM ÁLCOOL
PODE SER FATAL.
Não tinha problemas de saúde, mas sentiu-se
um pouco nervoso. Lera certa vez no mural da
residência o recorte de um jornal onde se noticiava a
morte de um estudante. O cadáver só fora
descoberto quatro semanas depois. Em uma
república, em um apartamento onde viviam outros
três. Encimando o recorte, um apelo:
QUE ISTO NÃO ACONTEÇA
NESTA CASA.
FALE COM SEU COLEGA.
Em certas circunstâncias, o maldito calor
humano era até mesmo oportuno. Já cansado e
descrendo de que chegasse mais alguém, dispunha-
se a ir embora quando ouviu ruídos de chave na
porta. Saiu do vestiário e voltou à sauna. Vai ver que
era macho. Esperou por mais de dez minutos, a
temperatura já próxima dos 90 graus, quando a
porta abriu-se e entrou ela, a Sueca.
Nua.
Loura, alta, esguia, escultural, o protótipo
nórdico tantas vezes visto em filmes ou fotos. Seu
nome seria Ula, a loba. Ou talvez Gudrun, filha de
deuses. Com a respiração já opressa, tentou
suportar mais alguns minutos naquele forno, de
repente mais sufocante com a proximidade daquele
animal perfeito. Teria entre 25 3 30 anos, um ar
tranqüilo de quem se sente à vontade junto ao outro
sexo. Sentou-se à sua frente, os joelhos erguidos
servindo de apoio aos cotovelos, pernas
entreabertas. Desviou o olhar. Já no limite da
exaustão, saiu.
Depois o sutil jogo de calcular o tempo para
entrar e sair, de modo a demonstrar total
indiferença. Perguntou-lhe a temperatura, alegando
estar sem óculos. Trocou algumas palavras fúteis,
tentando captar um olhar ou gesto que lhe
permitisse um avanço. Não se comportaria como o
macho latino que se aproxima da Sueca com a
sutileza de um touro no cio. Embora, se quisesse ser
honesto consigo mesmo, estivesse se sentindo
exatamente assim.
Pensou em falar — ou fazê-la falar — em algo
mais pessoal, mas a insegurança no domínio do
idioma tornava-o hesitante. Era estrangeiro, podia
permitir-se gaguejar e usar de circunlóquios. Mas
temia a primeira frase. Balbuciasse nela, se
reduziria à dolorosa condição de latino
subdesenvolvido, flácido, carente e monoglota. Ante
uma mulher perfeita, bela, esportiva, segura de si,
expressando-se com desembaraço em vários
idiomas.
Preferiu o silêncio.
O tempo passava, os banhos de ducha se
sucediam e a possibilidade de um contato se tornava
cada vez mais distante. Teria perdido mais de um
quilo, resolveu desistir. Quando já se vestia, a mítica
loura nórdica entrou na saleta, gotejante, sorriso
afável:
— Queres tomar um café comigo?
Durante quase três horas mantivera,
violentando-se a si próprio, um ar indiferente. Para
perdê-lo em segundos. Balbuciando palavras
atropeladas, aceitou. Ela sorriu e, de um salto,
voltou à sala de banho para secar-se. Por sorte já
estava vestido, uma ereção incontrolável talvez o
tivesse feito sofrer um vexame. Ou não: quem sabe o
que se passa na cabeça de uma sueca?
A Suécia começava a tomar sentido. Naquela
época — seriam já três meses de jejum — sentia-se
radicalmente estrangeiro no país. Diga-se o que se
quiser, teçam-se considerações sociológicas ou
metafísicas, mas não é o domínio do idioma,
conhecimento da cultura nacional ou relações de
camaradagem que fazem um homem integrar-se em
um solo novo. Só uma mulher, só o conhecimento
da mulher, velho e bom sentido bíblico da palavra —
faz com que nos sintamos aceitos pelo novo país. A
mulher não está aceitando então o amigo, o
estrangeiro exótico, o conhecido de uma reunião —
mas o homem todo. E o resto é poesia.
No elevador, sentindo-se obrigado a dizer algo,
perguntou-lhe estupidamente se gostava muito de
café, eu venho do Brasil, país do café — Ô, Brasilien,
cafê, Pelê, sambá! —, embora os nacionais só tomem
a borra, o melhor café é exportado, enfim, coisas de
republiquetas latinas. No apartamento, ela levou-o
para o quarto, perguntou-lhe se já queria o café, logo
a ele, que mais que café só detestava o Pelé. Disse
preferir antes algo para beber, os vapores do álcool
aproximam, mais que os da sauna, as pessoas,
pensou.
No quarto, algo estranho. Um terço pendia da
parede, sobre a cama.
Resumindo: despira a sueca, estava também
despido e quase próximo ao orgasmo para, após
quatro horas de luta, ouvir:
— Det sexuella är heligt och hör till
äktenskapet.
Não acreditava no que ouvia. Disse que não
dominava muito bem a língua, pediu para repetir
lentamente. Ela repetiu várias vezes, havia algo
errado, seria talvez a entonação, quantas vezes a
entonação não dá um sentido exatamente contrário
a uma frase? Só se convenceu do que ouviu quando
ela escreveu em uma folha, com todas as letras, sem
entonação alguma:
DET SEXUELLA ÄR HELIGT OCH HÖR TILL ÄKTENSKAPET.
Muito bem. O sexual é sagrado e pertence ao
matrimônio! Atravessara um oceano para ouvir
aquilo. De uma mulher com quem passara horas
sem roupa alguma. Vestiu-se sem mais palavras.
Quando a sueca lhe perguntou se ainda queria o
café, quase explodiu em choro convulso. Procurou
um restaurante e compensou-se sem medir gastos.
A solidão começava a pesar-lhe. Freqüentava
diariamente a cinemateca, sinal inequívoco de que
estava só e nada melhor tinha a fazer. Tentou
alguma turista desgarrada em busca de aventuras
nas pornoshops e sexklubbar. Santa ingenuidade.
Quando iam, sempre levavam macho a tiracolo.
Prostitutas lhe ofereciam all sexservice. Mas não lhe
interessava comprar, tudo então seria muito fácil.
Queria ganhar. E continuava recusando-se a buscar
socorro na colônia latina. Que continuassem
encerrados em seus sambas e reminiscências,
porres de cachaça, a duras penas obtida, e
imprecações contra a Suécia e os suecos.
Vagou noites pelas ruas cheias de neve. Em
um cemitério, se sentiria mais acompanhado. Só nos
subterrâneos do metrô existiam sinais de vida.
Adolescentes esculturais, lindas, bêbadas e
vomitando nas escadarias, se entregariam por
alguns gramas de marijuana. O recurso lhe
repugnava. Além do mais, nada tinha a dizer,
tampouco a ouvir, daqueles párias da opulência.
Surpreendeu-se certa noite buscando o
convívio da confraria universal dos mictórios
públicos. Olhares gulosos de senhores respeitáveis,
de chapéu, gravata e pasta executivo, lhe percorriam
o membro enquanto urinava, os primeiros sinais de
interesse que lhe demonstravam os suecos. Não foi
fácil resistir à tentação. Calor humano não lhe
interessava, queria agora calor animal, e de um
animal de qualquer sexo.
Lembrou um conto de Dalmácio. Conto um
tanto ingênuo, cheio de laivos românticos, não
publicado como todos seus contos e poemas. Mas
com uma imagem poderosa: um homem caminha só
pela noite. Ouve passos e segue atrás. Os passos se
apressam, o homem também se apressa. Vê um
vulto. O vulto corre, o homem também corre. E
passa a falar: pára, me espera, quero falar contigo,
não quero te fazer mal, te quero bem. O vulto não se
detém, se afasta cada vez mais, sobem por uma
ladeira. O homem corre desesperado, grita, pára, eu
te amo, e cai fulminado por uma síncope. O vulto
era de um cavalo.
Havia ainda aquele seminarista que fora
dilacerado por um touro, tema de tantas piadas no
Chalé da Praça XV. Na época, considerava o episódio
como apenas um caso de homossexualismo
reprimido, um gesto temerário. Hoje, entendia a
tragédia íntima do seminarista. No sexo havia algo
além de puro sexo.

O inverno foi aos poucos passando, Estocolmo


se transfigurava. A grama brotou milagrosamente de
onde antes só havia neve, as árvores exibiam-se
envoltas em folhas, o que lhe parecia difícil de crer.
Homens e bichos ressuscitavam de suas tocas. Ao
menor raio de sol, suecas sentavam-se em um banco
ou no chão, abriam as blusas, saias ou pantalonas
e, de olhos cerrados, adoravam-no. A atmosfera
febril das ruas o contagiava.
Valborgsmässoafton, entrada oficial do verão
para os suecos. Foi saudá-lo em torno a uma imensa
fogueira em Skansen. A neve lhe caía no rosto,
refrescando-o do calor do fogo. Num estrado, aqueles
seres antes calados e taciturnos dançavam como
loucos, como se vivessem a última noite de suas
vidas. Enquanto os olhava, uma moça sem par
convidou-o para o estrado. Tentou acompanhar o
ritmo dos bailarinos, em meia hora estava
destroçado. A sueca largou-o, agradeceu, disse
qualquer coisa sobre sua forma física.
Os dias foram se alongando, o sol tornou-se
paranóico, saía às duas da madrugada, deitava às
22. Uma claridade macia substituía a noite. Os
suecos em delírio quase não dormiam, caminhavam
dia e noite pelas ruas, florestas e ilhas. Tampouco
Cristiano conseguia dormir. A luz lhe invadia o
quarto, o verão duraria pouco, depois tudo seria
neve e escuridão. Às quatro já estava em alguma
piscina ou passeando pelos parques que circundam
Estocolmo. A temperatura chegava a 28, 29 graus,
manchetes anunciavam a “onda de calor”, os jornais
noticiavam mortes por insolação. Um clima
orgiástico pairava no ar.
Mas um homem só não faz uma orgia. Estava
na Suécia há cinco meses. Já quase a ponto de fazer
concessões. Buscar a profissional, o homossexual
ou, na pior das hipóteses, a colônia brasileira. Num
encontro casual, Lira lhe falara de uma crioula,
quebra-galho dos patrícios. Lira tivera certa vez de
recorrer a ela, não via mulher há séculos, a crioula
fora mais solícita que uma mãe. Havia ainda aquele
telefone, aquele número que lhe parecera ridículo
quando o vira pela primeira vez — afinal quem iria
sentir-se deprimido no paraíso? — transcrito em um
discreto cartaz na sala de aula. “Se você se sente só
e deprimido e deseja falar com alguém, telefone para
o no tal”. O cartaz tornava-se agora compreensível.
Os suecos, que antes julgava conhecer por
antecipação, lhe surgiam ininteligíveis. Haviam
erguido uma sociedade que protegia o cidadão, qual
placenta, do berço ao túmulo. Mendigos não
existiam, ninguém passava frio ou fome, o Estado
garantia saúde a todos. Para chegar aonde?
A uma sociedade onde as pessoas, sadias e
bem alimentadas, apodreciam sozinhas em seus
quartos, onde era necessário pôr um telefone à
disposição dos suicidas potenciais. Confundia-se. Já
não sabia se preferia morrer de doença e
subnutrição, entre amigos, ou ser bem nutrido e
saudável na sociedade perfeita, mas só,
irremediavelmente só, até o último alento.
Mas nenhuma voz metálica de algum
psicólogo ou padre teria algo a dizer-lhe. Não queria
palavras. E sim carne, calor animal, festejar um
outro corpo, perfurá-lo com amor e raiva. Ouvir
gemidos, sentir nos dedos convulsões, ver olhos
cerrados, lábios em espasmos, sorrisos, contorções.
Temia por sua sanidade mental.

Gostaria de escrever as Canário, mas não vias


como. Nos anos em que vivera a seu lado se
mantivera sempre silente. Andavam juntos pelo
campo, trabalhavam a lavoura ombro a ombro,
plantavam e colhiam, mas sempre mudos. Canário
só se soltava quando voltava à meia-guampa do
bolicho do Jacinto, mas então falava demais e
Cristiano, que não bebia, continuasva mudo como
um poste. Se jamais haviam falado, como falar-lhe
agora?
Os silêncios e a vastidão da pampa — e isso só
notava agora, em meio aos silêncios daquele mundo
hirto e congelado — pareciam convidar o bicho-
homem à introspeção, o que muitas vezes era
confundido com tristeza. Contar alguma coisa ao pai
lhe soava ainda como uma certa fraqueza. Mas a
comunicação epistolar era silente. Começasse a
primeira linha, talvez chegasse até o final. Sem falar
que outras razões o impediam de abrir-se, as cartas
da mãe. Eram cheias de carinho, como toda carta de
mãe, mas eivadas de jaculatórias ao estilo de “que
Deus te acompanhe sempre, Deus que sempre te
ajudou, que Nosso Senhor Jesus Cristo esteja
sempre conosco”, etc., e Cristiano — merda de
nome! — que sempre se virava por si mesmo sem
jamais virar a bunda para deus nenhum, irritava-se
interiormente quando as mãe atribuía ao tal de Deus
o mérito de suas magras vitórias.
Mas carta de mãe é carta de mãe. Acabava
abstraindo os intróitos para deliciar-se com aquela
ternura ingênua, “filho querido, te abriga bem ou
vais pegar uma pneumonia nesses invernos
terríveis, te cobre direitinho à noite”. Cristiano sorria
comovido. Imaginasse ela o que era um inverno de
15 ou 20 graus negativos, um metro de neve nas
ruas, por certo não teria mais sono em suas noites.
Seguia uma lista dos parentes doentes e dos que
haviam morrido, mais abraços de amigos que de
repente se diziam amigos e votos que voltasse logo,
logo ele que não mais pretendia voltar. O que mais o
irritava naquelas cartas era o passado a persegui-lo.
Fizera um esforço tremendo para cortar suas raízes,
esquecer tudo, recomeçar de zero, e lá vinham
aquelas linhas lembrá-lo do que não queria lembrar.
Respondia então com frases curtas e impessoais, só
para dizer-lhe que estava bem e que qualquer dia
voltaria. Mentira piedosa, pois a Ponche Verde
jamais voltariam seus pés, não fora por acaso que
pusera mais de dez mil quilômetros entre sua
infância e si próprio.
Mas nenhum destes era o motivo mais grave
de seu silêncio. Logo na chegada, em pleno inverno,
fizera uma viagem absurda a Kiruna, em época em
que só subia ao norte quem tivesse motivos
imperiosos paras ir até lá. Queria ver e viver o dia
sem sol, a noite eterna. E a viu e a viveu, sob 30
graus negativos. Ao meio-dia, ou pelo menos quando
deveria ser meio-dia, um vago palor no horizonte
deixava adivinhar um sol com medo de mostrar-se.
Ao chegar o verão, não satisfeito com a magia das
noites brancas de Estocolmo, subiu de novo ao
norte, não desacreditava do sol da meia-noite, mas
queria vê-lo e senti-lo.
Foi, viu e sentiu. À meia-noite, o sol que girava
quase horizontalmente fez menção de se pôr mas
não se pôs, elevou-se imperceptivelmente mais um
pouco e continuou seu giro paranóico em torno ao
pólo. E ali residia o impasse: como contar a Canário,
que jamais engolira aquela patacoada de que a Terra
era redonda, como contar-lhe que do outro lado da
dita Terra — mas que outro lado, se as Terra era
plana? — do outro lado havia uma noite de seis
meses e um dia igual? Falasse sobre o sol da meia-
noite, só o deixarias angustiado, ficaria lastimando o
filho que amava tanto e havia enlouquecido.
Preferia não escrever. Um postal impessoal, de
mês em mês, para dizer que estava vivo, e só.
Quanto às cartas da mãe, com medo das
jaculatórias usuais, não tinha pressa em abri-las.
Exceto aquela que chegou precisamente no primeiro
verão que vivia em Estocolmo. A Karlaplan, que era
apenas neve em sua chegada, enverdecera
milagrosamente, de um verde pujante e histérico, a
suecalhada zanzava embriagada de luz pelos
bosques de uma cor macia, irreal. Cristiano tinha de
render-se à magia daquelas noites e, justo naqueles
dias — ou noites? — recebe a carta pressaga, a
caligrafia rápida e inconfundível da mãe no
envelope, selo desconhecido e carimbo de Rivera.
Que foras fazer no Uruguai? Doença? Uma vaga
apreensão começou a tomar corpo em seu corpo.
Abriu-a com medo. João estava preso e
incomunicável. Não chegaria tão cedo a Paris, se é
que algum dia chegasse.
“Mais uma razão para não voltar” — disse a
seus botões —. “Meu querido Ponche Verde, adeus
para nunca mais”.

Pequenas coisas o faziam dizer para si mesmo,


cada vez com mais convicção: nunca mais boto os
pés no Brasil. Episódios banais, que talvez nada
dissessem aos seres daquele planeta cinza, mas que
o tocavam bem lá no fundo. Fora certa vez apanhar
selos em um distribuidor automático, pusera duas
coroas na máquina, puxara a gavetinha dos selos. E
nada. Havia um telefone para reclamações e
Cristiano pagou para ver, não conseguia acreditar
que o Estado sueco se dispusesse a devolver-lhe
duas coroas.
Com ceticismo latino, resolveu telefonar. Do
outro lado da linha uma voz, paciente e pedagógica,
o auxiliou a fornecer seu endereço. “Muito bem” —
disse a voz — “o senhor receberá seus selos
amanhã, às onze horas, em sua casa. Pode ser com
a efígie do Rei ou o senhor prefere um selo com as
pontes de Estocolmo?”
Era demais para um brasileiro, país assim só
poderia existir no país da lenda. Teve de rir
interiormente quando, no dia seguinte, às onze
horas e dois minutos, recebeu do carteiro um
envelope com duas coroas em selos mais um pedido
de desculpas dos Correios. Depois daquilo. Como
voltar a viver no Brasil? Impossível. O fato é que
começava a miná-lo, subrepticiamente, o câncer da
dúvida.
Mas as notícias do Sul lhe expulsavam do
espírito qualquer veleidade de voltar. João Geraldo
no cárcere, sem processo formado nem possibilidade
alguma de defesa, sua libertação dependia do
arbítrio de misteriosas instâncias. Os jornais
submetidos a uma lei que enquadrava como crime
contra a Segurança Nacional qualquer crítica ao
governo, sem falar nas famosas leis secretas, o que
não ocorrera nem mesmo a Kafka.
O Milicus latinoamericanensis — como dizia
João — poderia ser acusado de tudo, menos de
carente de imaginação. Jovens morrendo sob tortura
e o bravo povo brasileiro vibrando em peso com a
escalada de seus heróis rumo à Copa do Mundo.
Voltar era uma impossibilidade. Sua solidão em
terra estranha seria provisória, mais cedo ou mais
tarde de algum lugar surgiria uma parceira, e com
ela mais outras, os Svenssons não seriam assim tão
impenetráveis como pareciam. Calma — pediu
Cristiano a Cristiano.
Aos poucos foi descobrindo o que significava
pátria. Mal declinava sua nacionalidade, logo
queriam saber de Pelé, o que o deixava desarmado,
abordavam-no com uma rara alegria para saber da
Seleção, logo a ele que fugira do Brasil na tentativa
de, entre outras coisas, nunca mais ter de ouvir
falar sobre futebol. “Estou aqui para não ter de falar
disso” — respondia. “Então não temos nada mais
sobre que conversar” — lhe disse alguém.
A pátria aderia à pele, como lepra. Pátria é a
cruz que carregamos ao fugir dela, pensou. Mais
tarde modificaria seu ponto de vista. Nos primeiros
meses de Suécia, tudo era novidade, mesmo as
tribulações. Mas certas perguntas brutais se
impunham, insolentes: como viver em um país onde
é proibido beber nos bares? O Chalé passava a
adquirir um outro significado.
Além disso, algo havia de errado naquela
beleza insuportável dos suecos em geral, todos
fisicamente bem construídos, saudáveis e bem
vestidos, polidos e eficientes, faltava algo naquele
universo, que mais não fosse por necessidade de
contraste. Por exemplo, uma negras velha, gorda e
desdentada com uma trouxa na cabeça, desdentada
mas com um sorriso enorme a rasgar-lhe a face.
Pátria — concluiria mais tarde — é o que nos
falta quando estamos longe dela.

Caminhava pela Vänsterlanggatan. Gostava da


rua e de Gamla Stan, o casco velho da cidade.
Quando se perguntou por quê, descobriu já não ser
o mesmo homem que há cinco meses chegara na
Suécia. A arquitetura asséptica e funcional de
Farsta ou Hässelby lhe haviam fascinado, detestava
cidades velhas e sujas. Começara agora a encontrar
um certo encanto em Gamla Stan. Não na rua em si,
mas nas pessoas que a percorriam. Ou nos sinais
impregnados nos portais e escadarias de pessoas
que ali haviam passado. A calçada estreita e íntima,
os séculos incrustados nas fachadas, o ambiente
cálido das caves do Fem Sma Hus, a efusão quase
latina do Kaos (certa noite, o acordeonista do café
começou o espetáculo com um “baião francês”, o
Tico-tico no Fubá), a alegria coletiva do Ängelen,
tudo o reconciliava mais e mais com a Cidade Velha.
Passava pelo Old Town, alguém o chamou de
dentro. Arne, um de seus professores de sueco.
Entrou. Arne convidou-o a sentar-se.
Apresentou-lhe uma colega, Gudrun. Mesmo
bêbado, Arne continuava pedagógico, falava
pausadamente, auxiliava-o a completar uma frase. À
medida que os skal se sucediam, ele falava com
mais fluência, dominava até mesmo certas nuanças
do idioma. Gudrun, afável, falava-lhe
carinhosamente, como a um bom amigo.
Se os suecos eram frios, o álcool os aquecia.
Não bebiam para conversar, mas para cair.
Acostumado a longas noitadas de trago, ele
fraquejava ao enfrentar ao estilo nórdico de beber:
iam da cerveja ao ponche, passando pelo uísque,
conhaque e akvavit, com alguns cafezinhos de
permeio. Quanto mais bebiam, mais Gudrun
tornava-se meiga, passou a roçar-lhe a nuca com
mão suave. Arne convidou-o para uma pequena
festa em sua casa naquela noite. Como estaria
envolvido com os convivas, em grande parte
estrangeiros que mal arranhavam o sueco, lhe
sugeria fazer companhia a Gudrun. Dois olhos
verdes e uma boca cereja pediam que aceitasse.
Arne morava em Saltsjö-Duvnäs, a alguns
quilômetros de Estocolmo, numa casa velha e
simpática de dois andares, com piscina e muitas
árvores. Apesar de seu status, só andava de metrô
ou em uma bicicleta caindo aos pedaços. E de novo
a pátria lhe pesou nos ombros. O Brasil começava a
descobrir o automóvel, quando a Europa já o
dispensava como meio preferencial de transporte.
Reunidos ao lado da piscina, os grupos se
elegeram conforme idiomas. Ele afastou-se de
eslavos, gregos e outros grupos, por instinto buscou
Gudrun e outros suecos. Era ouvido com interesse,
todos esperavam encontrar num brasileiro um
homem extrovertido, cheio de sol e ritmos, viam um
conhecedor de Swift, Nietzsche e Sterne. Não lhe foi
fácil desmontar a imagem mítica de um Brasil
grotesco, que Glauber Rocha exportara
cabotinamente a um mercado sedento de coisas
exóticas. Então não existiu um herói nacional, o
Lampião? Como iria existir um herói nacional, se
nem heróis estaduais ou municipais existiam na
história toda do país?
Um grupo maior foi aos poucos se formando,
alguém já havia caído vestido na piscina, uma loura
fora buscá-lo com roupa e tudo, estava agora
enrolada em uma toalha exígua, a noite que não era
noite não escurecia nunca, as velas queimavam sem
pressa, todos falavam alto, ninguém ouvia nada,
todos se entendiam, a atmosfera — stämningen, pois
não? — tornava-se mais e mais calorosa. Alguém
apanhou um violão, as primeiras canções foram
Cielito Lindo, Adelita, La Paloma. Todos as
conheciam e as cantavam nos mais estranhos
sotaques. Ele acompanhou-os com gosto. Lembrou
então que fariam não cinco meses, mas cinco ou
talvez mais anos que não cantava. A última e triste
década que vivera em sua terra, marcada pela
violência e barbárie escondidas em estatísticas
lindas, onde pesadelo e realidade se confundiam,
não lhe davam razões para cantar.
...ese lunar que tienes,
Cielito Lindo,
junto a la boca...
Passaram a uma sala. Gudrun arrastou pelo
braço, queria dançar. Uma eletrola pulava ao ritmo
de sambas. Não. Tudo, menos samba. Cielito Lindo,
Adelita, passava. Nada tinha contra o México, pelo
contrário. Mas samba! Aquela batucada trazida pelo
negro escravo que nela se embriagava para afogar o
cativeiro, a miséria, a humilhação? Não.
Além disso, jamais dançara samba em sua
vida.
Concedeu em segurar Gudrun pela cintura,
que se requebrava em passos de todas as danças do
mundo, menos de samba. Ele movia lentamente os
pés. Mas o ritmo ingênuo da sueca, os olhos que
fechados o convidavam, o ventre que se oferecia e
fugia, seios trêmulos, o álcool, o ruído, tudo fez com
que, sem saber nem querer, acabasse sambando.
Pela primeira vez na vida. Em Estocolmo.
Não via mais ninguém na sala, só os olhos,
braços e boca daquele animal que debatia a seu
lado, já quebrara um imenso vaso de porcelana,
uma mesa ficara torta, teve de puxá-la com energia
para salvar o toca-disco. De repente, desceu os olhos
além da boca de Gudrun, sem crer viu-a nua, só de
calcinhas. Olhou em roda, não poucos já estavam
nus, um par de seios saltitava a sua frente, viva la
Suecia, viva el paradiso del amor, lever Sverige, per
omnia secula seculorum, amen!
Despiu-se pulando, já ia tirando as cuecas,
lembrou-se que talvez não ficasse lá muito elegante
pulando sem cuecas. Arne convidou para a sauna,
da sauna pularam na piscina, ele sempre rente aos
pés de Gudrun. Da piscina saiu a perseguí-la,
ambos nus por entre as árvores, sob aquele sol irreal
que jamais se escondia. Derrubava-a, apertava-a
sobre a grama, Gudrun ria e fugia, escorregadia e
molhada, ele fauno caçava Gudrun ninfa por
bosques onde o sol jamais se escondia.
Perdeu-a não soube como, vagou sob o sol
branco por entre as árvores, gritava Gudrun jag
älskar dig, kom hit, var är du, eu te amo, vem cá
onde estás? Volta, eu te quero, pára, me espera, não
quero te fazer mal, te quero bem.
Ninguém voltou. Nu e já com frio, rumou para
a casa.
Todos já haviam partido ou dormiam. Alguém
saindo do banheiro perguntou-lhe se queria uma
cama, disse não, continuou procurando. Numa peça
dormia alguém, apertou-a, beijou-lhe o rosto, quem
és tu, nenhuma resposta, não conseguiu reconhecê-
la, pelo menos estava certo não era Gudrun, não
eram seus seios.
Subiu ao primeiro andar. Tudo também
deserto. A casa, onde há pouco tudo era vida, de
vida nada mais tinha. Quando já desistia de
encontrar alguém, quando lembrou-se de que estava
nu e nem imaginava onde estariam suas roupas,
num sofá, viu Gudrun.
Deitada de bruços, esperava.
Jogou-se nela como náufrago buscando tábua,
qual criança encontrando outra que se escondera.
Corpo perfeito e nu, aberto, sem defesas. Penetrou-a
com amor e raiva, eu te adoro, te quero, vou te
rasgar, não podes mais fugir, te peguei, toma todo
eu, até o fim, até o fundo, imbecil querida, idiota
amada, vingança.
Gudrun dormia. Bêbada, dormira sempre. Sua
primeira sueca fora uma espécie de cadáver ainda
quente.
2. LÁ NA LINHA
A cem metros, o Uruguai e a liberdade. Viva
Santana do Livramento! Por aquela avenida que
dividia dois países, centenas de perseguidos políticos
haviam abandonado o Brasil. O suor frio lhe
empapava a camisa naquela mormacenta
madrugada de janeiro, as gotas lhe brotavam de
repente e aos borbotões, rolavam em filetes do
pescoço pelo peito e pelas costas, chegava quase a
sentir pequenos córregos lhe descendo pelo corpo.
Seria aquilo o medo? Talvez fosse, talvez
inconscientemente seu organismo reagisse ante as
suspeitas do que o esperava. O fato é que, pelo
menos conscientemente, não sentia medo, mas sim
o que seu cérebro qualificaria como uma apreensão.
Temia, isto sim, tomar uma atitude estúpida, tentar
vencer os cem metros que o separavam da Calle
Internacional, enveredar pela Sarandi e só parar em
Paris. Cem metros o separavam de Paris e, por cima
da capota do fatídico Fusca sem placas, parecia
divisar, no fim da Sarandi, inatingível, a Torre Eiffel.
Estava perdido.
Nada mais temível naqueles dias do que um
carro sem placas. E ali estava o dito a seu lado,
como se tivessem marcado encontro. João tentava
prender os pés ao chão, resistir à veleidade de
correr, fugir ao tiro nas costas. Do inocente Fusca
saiu um rapazote de jeans, tudo conferia, carro sem
placas, policiais à paisana, o rapaz contornou o
carro, ar despreocupado de quem olha os pneus,
aproximou-se gingando, olhou-o profissionalmente,
dos pés à cabeça. Era baixinho. Rosto erguido para
João, mas olhar baixo, vigiando seu corpo, mão
roçando a anca:
— O senhor está convidado a nos
acompanhar.
Eram gentis, naquela época. Ou talvez aquilo
fosse cortesia de cidade do interior, que nas capitais
já chegavam encostando o revólver nos miolos. Com
a mesma fidalguia, respondeu:
— Os senhores me desculpem, mas vou
declinar do convite.
A Sarandi, a sua frente, longa e iluminada,
parecia estar a léguas de distância. A camisa, colada
ao corpo por uma sopa gelada. Mesmo que chegasse
do outro lado da fronteira, eles não hesitariam em
avançar Rivera adentro. Fronteira aberta poderia ter
suas vantagens, mas também tinha seus
inconvenientes.
— Acontece que não é exatamente um convite.
E o homem que descria do Direito, sentindo
uma vaga cólica lhe percorrer os intestinos, tentou
uma última cartada:
— Onde é que está a ordem judicial?
Como única resposta, o policial levantou a
camisa e deu um tapinha na coronha do revólver.

Permaneceu na cela nua e escuras um tempo


que não sabia precisar. Além do relógio, haviam-lhe
tomado cinto, cadarços e tudo quanto havia nos
bolsos. De que lhe valia agora o passaporte pelo qual
tanto lutara? Espichou-se no catre sem colchão.
Uma sensação de pânico que não chegava a ser
pânico o impedia de raciocinar com clareza. Que
saberiam dele? Os homens procuravam
guerrilheiros. Salvo falsas denúncias, pouco ou nada
saberiam, já que não participara de nenhum
movimento armado. Mas até prová-lo, quanto pau ia
levar?
Por pensamentos não era que o estavam
prendendo. O pior é que conhecia gente armada.
Conseguiria manter-se em silêncio? Pelo cérebro
desgovernado passavam-lhe rostos e pedaços de
conversas, não conseguia deter-se em nenhum,
falhava mesmo a memória que lhe dava fama.
Aquelas prisões na calada da noite, sem mandado
nem flagrante de qualquer crime, lhe produziam um
efeito inesperado: estava isento de qualquer culpa e
quase se sentia réu.
Tenso, não conseguia dormir. Muito menos
raciocinar. Tentou masturbar-se para relaxar, mas o
parceiro não respondia aos estímulos. Ansiava pelo
ruído de passos, levassem para onde o levassem,
mas que o levassem logo. Ou seria aquela espera
uma preliminar da tortura? Os homens por certo
entenderiam do assunto. Se pudesse dormir...
O interrogatório ocorreu em uma madrugada,
não saberia dizer se a segunda ou a terceira após a
detenção. Nem fome, nem sono. A sede, a saciava
num lavabo imundo, e agora chegava a invejar o
velhote da Borges de Medeiros, a água da sarjeta
podia ser mais suja, mas o velhote tinha total
liberdade de escolher a sarjeta que mais lhe
agradasse.
Seguro por dois policiais, estes fardados, foi
conduzido a uma sala ampla. À frente, uma
escrivaninha e o oficial que o interrogaria. À
esquerda, atrás de uma pequena mesa que mal
sustinha a máquina de escrever, um datilógrafo.
Pensou em dizer boa noite, ou talvez bom dia, mas
qualquer cortesia lhe pareceu inútil naquelas
circunstâncias. Passaram-lhe uma cadeira. Ao
sentar-se divisou, acima da cabeça do oficial, o rosto
sorridente do presidente Médici, a faixa verde-
amarela lhe cortando o peito. Era o único sorriso no
ambiente.
— Nome?
— João Geraldo Garcia da Fontoura.
— Idade?
— Trinta e um.
— Data de nascimento?
— 1940.
— Dia, mês.
— No dia da Gloriosa Revolução.
O escrivão hesitava em como registrar. O
oficial traduz:
— 31 de março de 1940.
— 1o de abril — corrigiu João.
O oficial não entendia. Ou começava a
entender, pois erguera-se da cadeira. Não dissera ter
nascido no dia da Revolução?
— Pelo que entendo de História — aventurou
— as revoluções tomam a data do dia da tomada do
poder. Eu nasci em 1940, nesse dia, 1o de abril.
A bofetada soou seca pela sala silenciosa,
João Geraldo caiu ao chão com cadeira e tudo. O
interrogador parecia não gostar de precisões
históricas.
Quatro horas de interrogatório, perguntas ora
precisas, ora idiotas. Que achava da filosofia
católica? Não achava nada. Que filosofia era filosofia
e religião era religião. Qual o regime ideal? Aquele
onde crianças tivessem direito à infância, e por
direito à infância entendia pão, brinquedo, escola,
despreocupação com a comida do dia seguinte. Onde
os homens envelhecessem com dignidade e onde os
velhos não precisassem beber a água das sarjetas.
Você quer um regime comunista? Não
necessariamente, mas se nele as crianças tivessem
direito à infância e os velhos a um envelhecer
tranqüilo, por que não?
— Dia cinco do mês passado, em Porto Alegre,
você lia uma revista de capa verde, sentado na Praça
da Alfândega. Na capa dessa revista havia as iniciais
CCCP. Que revista você estava lendo, naquele dia, às
dez da manhã, ao lado da banca de revistas do
Martins?
Sua vida — dava-se conta agora — fora
vasculhada de alto a baixo, dia a dia, hora a hora.
Que revista estaria lendo dia cinco de dezembro de
1971? Para revistas, sua memória era nula. Poderia
lembrar de um artigo, jamais de uma capa. Sabia
para onde o interrogador queria conduzi-lo. Quando
em Livramento, Gérson costumava passar-lhe
exemplares de “Unión Sovietica”, chegados via
Montevidéu, mas o título era em garrafais que
pareciam latinas, o oficial boçal confundia o S e o R
cirílicos com o C e o P latinos. Jamais voltara a ler
aquela revista em Porto Alegre, e tampouco o faria
em uma praça pública. De fato, costumava ler na
Praça da Alfândega, a República Popular e
Democrática da Praça da Alfândega, como a
chamavam, que tinha como Assessor de Assuntos
Culturais o velho Martins, do quiosque de revistas.
Com mais calma — a violência, pelo menos até ali,
não passara de um tapa — reorganizou suas
lembranças. Era uma revista paulista — Realidade
—, tinha como matéria de capa uma reportagem
sobre futebol ou olimpíadas ou algo do gênero e a
ilustrava com a foto de um atleta russo, na camiseta
a sigla CCCP. “Que barbaridade!”, pensou.
— Dia 31 do mesmo mês — réveillon passado,
se isto lhe refresca a memória — no Chalé da Praça
XV, após conversar com dois jornalistas
notoriamente comunistas, com um indivíduo sem
profissão e com um maluco, você abraçou numa
mesa próxima um indivíduo também desocupado e
subversivo, um tal de Janer Cristaldo. Quem é esse
indivíduo?
Estouraria numa gargalhada, não fossem as
circunstâncias. Colocar no rol dos subversivos o
Cristaldo? Sua tese era de que a guerrilha estava
fadada ao insucesso no país porque na selva não
havia cerveja nem banho morno.
— Você também acha isto?
Recuou. No fundo, acreditava que aquela luta
toda não seria inútil, mas tampouco sabia o que
poderia acontecer no futuro. Preferiu recuar:
— Não acho nada.
— Domingo passado, na Rivadávia Correia,
esquina com Uruguai, à tardinha, aqui em
Livramento, o senhor discutia animadamente com
Gérson Prabaldi, notório agitador comunista. Qual
foi o teor da conversação?
Que Gérson era notório agitador, isso não
havia como negar. Quanto a ser comunista, como
explicar ao bronco o abismo que medeia entre um
comunista e um anarquista? Pelo jeito não sabiam
que Gérson o abrigara. Como achara que não havia
muitas razões para esconder-se a não ser as ditadas
por seu medo, haviam saído à rua, João queria
respirar os ares da cidade que tão cedo não voltaria
a ver, comer uma parrillada em Rivera, tomar um
café cortado na Sarandi. E ali o haviam visto.
Em todo caso, não tinha inconveniente algum
em narrar o “teor da conversação”, como dizia o
oficial. Discutiam, lembrava agora, frente à casa de
José Hernández, ou melhor, não discutiam. Gérson
adorava ouvi-lo recitar o “Martín Fierro”, vibrava,
com a boca escancarada com seus dentes podres, ao
escutar o relato das lutas, fugas e sofrimentos
daquele gaúcho perseguido. No fundo, apesar de vir
de uma outra geografia e cultura, os penares de
Fierro nada diferiam das atribulações do funileiro.
— Duas horas recitando um poema?
O oficial não era homem daqueles pagos.
Aliás, notara isso desde o início, quando o homem
começara tratando-o por você. Seria um daqueles
animais urbanizados da capital, ou de mais longe.
Pelo jeito, nem imaginava o que fosse Fierro. O que
em nada lhe favorecia. Não respondeu.
— Você sabia estar frente a um perigoso
subversivo?
Ah, o jargão! Subversivo vá lá, o funileiro
queria um mundo novo. Orgulhava-se até mesmo de
ter vindo cair em Livramento, cidade onde, em 1918,
surgira a primeira célula comunista no Brasil. Mas
perigoso, o humilde Gérson, o operário sonhador?
— Aliás, já foi preso. Por enquanto, teima em
não falar. Mas acaba falando.
O calafrio e os suores que lhe haviam
percorrido o corpo nos minutos que antecederam a
prisão voltaram a descer-lhe pelos nervos e células.
Gérson queria ganhar tempo, dar a si a chance de
atravessar a fronteira, de chegar a Paris, ou de pelo
menos decolar do Brasil.
O interrogatório terminou ali. Ao ser
reconduzido à cela, sentiu no corpo um calor de sol
alto. Pensava ter-se saído bem, quando o carcereiro
deixou escapar que pouco tempo ficaria ali. Seria
enviado a Porto Alegre, e de novo aquele suor gelado
pareceu brotar-lhe dos poros. Em Livramento,
sentia-se mais ou menos imune a maus tratos. As
cidades pequenas tinham uma virtude especial,
nelas as pessoas tinham nome, família, uma
situação definida, não constituíam uma massa
anônima. Era inviável que o filho do padeiro
torturasse o filho do fazendeiro, ou vice-versa, que o
compadre do fulano chutasse os bagos do filho do
sicrano, o fato de ter sido preso, só este fato, já
estaria provocando todo um mal-estar em
Livramento e Rivera.
Na capital, era filho de ninguém, era tão
anônimo quanto o torturador. Não seria mais um
homem, de rosto e passado definidos, massacrando
outro, também com rosto e passado. Seria um frio
funcionário de uma idéia tentando obter informes do
anônimo funcionário de outra idéia. Tremeu por
dentro. Antes de despachá-lo, o oficial perguntara,
tentando exibir conhecimentos gerais do vernáculo:
— Sabia que a sua estética externa suscita
antipatias?
“Estética externa”, rosnava João por dentro, “
o filho da puta queria bancar o culto e dizia uma
besteira daquelas”. Sentiu que a barba e cabelos
hirsutos tinham seus dias contados. Os cubanos
haviam tornado todo barbudo suspeito.
Em Porto Alegre, bofetada seria gesto de
carinho.
1. CHALÉ 70
A década havia sido pobre e 72 se anunciava
medíocre. Os americanos haviam chegado à lua e na
terra haviam liquidado Che Guevara. Cristiano
tentara publicar artigo onde dizia nada ver de
heróico numa viagem de astronautas programados e
guiados por computadores e mais uma vez Vaselina
praticara basquete com suas laudas, “como ousar
negar o evento do século?” Não queria negar coisa
nenhuma, a chegada à lua o comovia, mas não tanto
quanto a saga de Colombo ou Magalhães, quando o
tempo era marcado por um grumete sonolento
virando e revirando uma ampulheta.
Já Dalmácio tinha outro enfoque do fato, não
conseguia admitir que Armstrong tivesse dormido ao
tocar solo lunar, como estava previsto em seu
programa. Só mesmo uma nação de bárbaros podia
enviar um homem à lua e trazê-lo incólume.
Estivesse Dalmácio naquela nave poetaria em delírio
deixando de lado qualquer precaução necessária à
sobrevivência. Quanto ao outro feito ianque, o
fuzilamento do Che, a ironia residia no fato de o
guerrilheiro ter recebido o tiro de misericórdia de um
latino, de um irmão pelo qual lutara, e não de um
ianque.
E no Brasil acontecera 64.
A época era de partir. Aquele último dia de 71
tinha um sabor de viagem rumo ao ignoto, os que
partiam não pretendiam voltar e os que ficavam não
sabiam até quando continuariam livres ou vivos.
Cristiano, emergindo de seu último Natal, com a voz
agoniada de Adriana ainda nos tímpanos, o que o
afastara de toda e qualquer profissional naquela
semana, não via a hora de sentir o oceano sob seus
pés, e só acreditaria mesmo na existência do Velho
Mundo quando o pisasse.
Pela janela do Chalé divisou o vulto magro de
Dalmácio, eternamente envolto em uma gabardina
bege, fizesse sol ou chuva, inverno ou verão. A noite
era quente, mas o Poeta — mais por derrisão do que
por reconhecimento, assim o chamavam — se
queixava sempre em seus rabiscos de um frio
ancestral e, a imagem impunha, talvez sentisse
mesmo frio.
— Merda de país! — explodiu antes de sentar.
Cristiano quis saber das últimas, espantado
ante sua fúria, logo Dalmácio que cultivava uma
reputação de homem fleugmático.
— Cornos! Filhos da puta! Pregam por toda a
parte “ame-o ou deixe-o”, não há carro de burguês
que não seja uma insinuação ao exílio, e quando
quero deixar esta bosta de país não querem deixar
que a deixe.
— Calma — pediu Cristiano — primeiro um
trago. Tão cedo não vais sentir cheiro de cachaça.
Speak Deutsche já o servia, mais fácil ruir o
Chalé que trocarem de hábitos etílicos. Os
passaportes não constituíam, naqueles dias, um
direito de todo e qualquer cidadão. Dalmácio tivera
de desembolsar uma grana que lhe faria falta na
Europa, passara a grana num discreto envelope ao
funcionário perguntando se aqueles papéis — e
sublinhara o “papéis” — complementavam a
documentação e o passaporte surgira como por
magia.
— Então, à conquista da Europa.
Ergueram os copos, gesto raro entre ambos,
só um fato excepcional explicaria aquele
entusiasmo.
— Cornos! À Europa.
Cristiano optara por Estocolmo. Oficialmente,
ia estudar cinema e para isso escolhera o país de
Bergman, sequer imaginava que todo brasileiro que
vai para qualquer cidade que não Paris acaba
fatalmente caindo em Paris. Já se via degustando
uma Uzicka Sljivovica, trocaria finalmente a cachaça
por aquele néctar nórdico. Vira uma garrafa em “O
Silêncio” e, mais que pela bebida, se fascinara pelo
nome, as palavras longínquas o puxavam
inexoravelmente.
Mas outros impulsos, vagamente intuídos, o
levavam ao Norte. Lera certa vez entrevista de uma
atriz nórdica, “em meu país os dias são curtos, o sol
cai abruptamente atrás dos fiordes e nada mais
resta senão refugiar-se em casa e fazer amor”. E na
Suécia não existia amor pago, e mais que cinema,
mais que Bergman, o excitava a perspectiva de no
mês seguinte aterrissar naquela pátria de homens
livres.
— À conquista do mundo! — repicou
Dalmácio.
O Poeta elegera a Alemanha. Goethe, Rilke,
Hölderlin, Nietzsche. Pouco falava de si e de seu
passado, sabia-se que vinha de zona de colonização
polonesa, Erechim ou adjacências, era mais um dos
tantos desgarrados do interior que buscavam em
Porto Alegre uma janela com vista para o mundo.
Em seu currículo, como no de Cristiano, havia uma
expulsão de sua cidade, por motivos que variavam
segundo as fontes e sobre os quais ele preferia
cultivar mistério, mas por certo seria algo em torno a
sexo, escândalos em cidade interiorana sempre têm
algo a ver com sexo. “Seres que não valem um peido”
— costumava repetir em seus dias de mau humor —
“não sabem se Kafka era açougueiro ou alfaiate e
brigam há décadas querendo saber se o nome
daquele anus mundi deve ser escrito com x ou com
ch”.
Viera para a capital e a cidade também o
rejeitava, nem a imprensa nem a universidade lhe
abriam as portas. Soderman lhe dava às vezes
colher de chá no Suplemento Rural das Letras, como
ironizava Dalmácio. Segundo critérios que Deusa
Shiva dizia serem da Casa, um ensaio valia doze
cruzeiros, um conto dez e um poema oito. Em outras
palavras, em dez minutos uma prostituta lhe tomava
dez vezes o que lhe custara semanas, meses e
mesmo anos de hesitação e sofrimento. Para viver,
Dalmácio vendia livros abomináveis, enciclopédias
para forrar paredes a metro, quase enrubescendo
quando passava a menininhas desejosas de cultura,
por um preço absurdo, quilos de estupidez.
Seus melhores trabalhos, Soderman os perdia
em gavetas, ora alegando que o Big Boss não os
permitiria em seus domínios, ora resmungando itens
de uma apologética realista-socialista, tipo faslta de
conteúdo social, ótica individualista burguesa, etc.
Permaneciam inéditos seus berros de animal
acuada, Soderman sepultara em suas gavetas,
“Triste Porto sem Casais”, “Poema do Poeta Pobre na
Rua dos Sete Momentos”, enfim, era o mais célebre
poeta inédito gaúcho, se é que gaúcho era adjetivo
que se poderia apor ao temperamento soturno de
um deraciné jogado pelos ventos do acaso no Rio
Grande do Sul.
“Individualismo exacerbado, não tem
mensagem social”, era o comentário mais freqüente
do editor do Suplemento Rural das Letras. Não eram
tais críticas — as quais Dalmácio sequer refutava,
refugiando-se em seu silêncio e, como pouco falava,
o calar não era agressivo — não eram aqueles
chavões o que o incitava a viajar, mas uma gota e
outras e mais outra e o balde transborda. Sua
angústia nada tinha de social? O que sofria por
dentro era por acaso sensibilidade de marciano
jogado em planeta estranho? O que um homem
sensível sente é, por acaso, algo que nada tem a ver
com o planeta social que o envolve? Pois iria então
buscar outras terras onde pudesse dialogar com
homens de sua estirpe, buscaria a pátria daquele
individualista tremendo que enlouquecera na
tentativa de lutar com Cristo.
Fugia do país do futebol, viveria agora em país
onde um poeta não morria de fome. Mais respeito
com quem sabe, dissera Nietzsche, escondendo
naquela frase aparentemente trivial uma
profundidade de louco. Fora um solitário, é verdade,
só conseguira distribuir sete exemplares de
Zaratustra. Mas fora gênio, e Dalmácio não se
pretendia tanto. Sua magra renda, a investia em
aulas de alemão no Goethe Institut, cujo patrono lhe
comprava sobejamente ser a Alemanha um país
amante das artes e de homens sensíveis. Goethe não
fora conselheiro de Estado? Poeta mais, poeta
menos, sua presença não iria pesar na economia dos
Deutschen.
— À conquista de Paris!
A voz e cansada de Jotagê caiu sobre ambos
com um duplo abraço. Mais do que as de ninguém,
eram prementes suas razões de partir.
— A Paris, Monsieur! — brindaram, enquanto
João puxava cadeira.
Seria certamente o único naquela mesa a não
suscitar antipatias à primeira vista. Seu gesto largo
e incondicionalmente amistoso, as melenas hirsutas
cercando um rosto de alegria comedida, tudo era
indício de um enigma que Cristiano não conseguia
entender: havia os que dividiam águas, mal abriam a
boca e tanto amigos como desafetos brotavam como
cogumelos após a chuva. E havia os que, sem muito
falar, apenas com um certo jeito de ser, afetividade
emanando da epiderme, uniam as gentes. Não sabia,
naquele fim de ano, que mais alguns dias e aquele
gauchão universalmente generoso estaria, não no
Quartier Latin, mas sofrendo na carne já frágil por
natureza os tormentos de um profissional da
tortura, frio e sem ódio, em busca de informações
que ele, João, não tinha.
Rosto inundado por um sorriso raro, já que
não era de mostrar os dentes, João parecia portar
uma aura qualquer. Partiria na manhã seguinte, a
única distância entre Porto Alegre e Paris era uma
visita aos seus, em Livramento. Se lhe perguntassem
de onde vinha seu fascínio por Paris, talvez não
soubesse responder. De um lado havia antigos livros
coloridos, que falavam das águas azuis do Sena,
romances de e espada, Hugo, Sue, Dumas,
fantasmagorias de criança. De outro, palavras como
revolução, liberdade, igualdade, fraternidade,
palavras que o chamavam, e não só a ele, como a
qualquer homem que se pretendesse digno de tal
nome. E se não soubesse responder que mais o
impelia rumo à França, se as leituras da infância ou
os ideais da juventude, sabia muito bem porque
deixava o Brasil.
Os tempos eram duros, a imprensa se
mantinha amordaçada, reivindicações operárias ou
estudantis eram reprimidas a patas de cavalo e gás
lacrimogêneo, sem falar na tortura, nas prisões
arbitrárias e na extinção do habeas corpus para
crimes políticos. Se um policial — que sequer se
dignava a identificar-se como tal — lhe desse voz de
prisão e se ele perguntasse pela ordem judicial,
receberia como resposta um chute nos ovos. Ora,
raciocinava João Geraldo, país onde um cidadão, ao
exercer um direito seu, recebe de um agente da lei
um chute nos bagos, tal país não era o seu,
recusava-se a aceitá-lo como sua pátria. Dizer que
se vivia em plena lei da selva era pretender enfeitar a
realidade, afinal na selva os animais lutavam e
matavam, mas jamais se tivera notícia de um animal
torturando outro. O Milicus latinoamericanensis,
como gostava de chamá-los, não se distanciara
culturalmente, apesar dos milênios transcorridos, de
seu primo, o Pitecantropus erectus. Ao brindar Paris,
brindava a cidade onde policial algum espancava
estudantes, onde jamais se imaginaria prisões por
delitos de opinião, nem eliminação do habeas corpus
para prisioneiros políticos, brindava a sociedade
onde não havia racismo nem discriminação de
classes, onde os homens eram iguais,
independentemente de cor ou vestes, onde nenhum
ancião precisaria debruçar-se nas calçadas para
beber um lodo infecto.
— A nós! — voltou Cristiano a erguer o copo —
já chamando Speak Deutsch para o
reabastecimento. Era o garçom preferido do grupo.
Se havia turistas no bar sequer precisavam puxar a
carteira, “nada disso, Doutor, gringo tem moeda
forte, sua despesa já tá na conta deles”.
— Teu passaporte? — quis saber Dalmácio.
Aquele documento, que jamais os preocupara,
de repente assumia importância vital para quem
apostava tudo na partida, sonhos e ambições, a vida
mesmo.
— Tá aqui! — bateu Jotagê no bolso do casaco
—. Mesmo com ele, levo medo.
Havia ainda o famoso visto de saída.
Passaporte era o documento necessário para viajar,
mas além disso havia a permissão para viajar,
permissão dependente de imprecisas instâncias,
algo assim como: primeiro tiras o passaporte, depois
veremos se vais viajar. João iria a Paris via
Livramento, era mais prudente.
— Tomo um trago em Livramento e, como
quem não quer nada, al pasito, salgo a mirar las
chicas por la Calle Internacional, mal boto o pé em
Rivera mando os milicos à puta que os pariu.
Era um itinerário sensato, ninguém garantia
que lhe dariam o visto de saída. E o Uruguai não o
exigia. O passaporte, virgem de carimbos, passou
pelas mãos de todos, naqueles dias valia mais do
que qualquer diploma. Aquela carteirinha verde,
apesar de um timbre transversal — não é válido
para Cuba — era sinônimo de vida nova. Quanto a
Cuba, uma vez na Europa, dar-se-ia um jeito. Os
tempos eram duros, particularmente para João.
Entusiasmara-se pelo estudo da Filosofia e tivera de
assistir e sofrer o desmantelamento do curso da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. De uma
só penada — o Ato Institucional no Caralho — o
curso havia sido castrado de seus melhores
cérebros, sendo promovidos ao mesmo tempo os
delatores e incompetentes.
O clima geral era hostil a qualquer atividade
pensante, louvavam-se Pelés e Copas do Mundo, o
general-presidente de plantão insistia em prestigiar
grandes prélios, quanto mais Fleury torturava mais
prestigiado era, o momento era ideal para a
ascensão de montanhas de músculos desprovidas de
cérebro. Mais o medo, a insegurança gerada pelo
arbítrio, quando o Milicus latinoamericanensis,
julgando ser civilizado limpar a bunda, confundia
Carta Magna com papel higiênico. Com o fim do
habeas corpus para crimes políticos, só circulavam
tranqüilas as meninas que giravam bolsinha nas
calçada, quem quer que ousasse pensar podia ser
premiado com o cárcere no seguinte pelo subversivo
gesto de ter tido idéias.
Foi quando surgiu Soderman, o radical.
Soderman não partia, intimamente julgava covardia
partir. O momento era de resistência. O Partido
conseguira introduzi-lo na Casa de Caldas, fora aos
poucos galgando posições, dirigia agora o
Suplemento Literário, uma das raras janelas abertas
naqueles dias de escuridão. Com metáforas e um
pouco de tato — considerava Soderman — sempre se
conseguia dizer o essencial. Os censores eram
obtusos por definição, nenhum homem culto se
prestaria à tarefa vil. Prendiam-se a palavras.
Proletariado, por exemplo, era sacrilégio. Mas se um
copidesque riscava a palavra maldita e punha em
seu lugar “o homem explorado em sua força de
trabalho”, era capaz até mesmo de comover o
censor, embora ferisse a métrica de muito poema.
Soderman sabia disso e, apesar dos protestos de
poetas e ensaístas que consideravam intocáveis suas
obras-primas, ia tocando o barco, driblando a
censura de Brasília e do próprio jornal, esta bem
mais incisiva, que o Big Boss era vivo e não iria
permitir na Casa a fundação de uma república
socialista.
— Então? Partir é morrer um pouco? —
interrogou a roda, ar agressivo de profissional
dinâmico.
— Pode ser — atalhou Dalmácio, preparando
com gesto grave o eterno cachimbo em pau-rosa —.
Mas prefiro morrer viajando a morrer ficando.
Discordou violentamente, Soderman. Que
havia sempre o risco de morrer, é verdade. Mas que
morrer era às vezes mais digno do que continuar
vivendo. Citou anedota — no sentido europeu da
palavra, sublinhou — contada por Albert Camus
quando estivera em Porto Alegre. Sob ameaça de
morte de um policial alemão, um adolescente
francês insistia que nenhuma idéia merecia que se
morresse por ela, o que significava, ao mesmo
tempo, que de fato havia idéias pelas quais
podíamos consentir em dar a vida. Que fugir do
combate naquela hora tão grave, perdoassem os
espíritos mais susceptíveis ali presentes, fugir não
era exatamente um gesto de coragem. Que lugar de
brasileiro era no Brasil.
Chalé quase deserto, garçons bocejando, a
data pairando densa sobre a mesa. Todos se
recusavam a lembrá-la, mas junto com ela pairava a
consciência de que mais alguns quartos de hora e
um fragor hipócrita de foguetes bombardearia o
âmago de cada um. Mais que o espoucar dos fogos
se fariam ouvir, e fundo, o estouro surdo dos
champanhes e os risos e votos pingando mentiras.
Mal ouvia falar de Natal ou Ano Novo, Dalmácio
saltava de Bierce em punho, “se elegemos viver entre
bárbaros, devemos suportar os bárbaros ruídos de
suas bárbaras superstições, mas o imbecil que se
senta e espera até a meia-noite para tocar um sino
ou disparar um fuzil porque a terra chegou a um
determinado ponto de sua órbita, deve ser
considerado um inimigo de sua raça”.
Mas ignorar o momento e as circunstâncias
era tão impossível quanto pôr entre parênteses o
clima que os envolvia e do qual fugiam como ratos
de um incêndio. O silêncio espectante do momento
abominável revelava mais que qualquer discurso, a
meia-noite aproximava-se inexoravelmente, todos
sabiam que palavra alguma pronunciariam.
Dalmácio esboçaria um esgar com a boca já torta
pelo cachimbo, não se dignaria nem mesmo a um
sorriso irônico, não era seu ano de sorrir. Soderman
permaneceria sisudo e indignado, invocando aquele
santo dia entre os dias em que cada dia seria ano
novo, para todos e não apenas para uma elite. João
se perguntaria talvez o que significaria para um
velho bebendo água podre nas sarjetas todo aquele
foguetório, sem sequer suspeitar de que por muitos
anos só saberia das datas por riscos na parede.
Cristiano, cujo nome lhe pesava mais que
lepra, naquele distante e sempre presente 31 de
dezembro se dividia entre a tristeza da data e a
alegria da partida, entre o medo da mudança e o
nojo de ficar. O pênis, há uma semana sem sinais de
vida, ponte pela qual chegava aos demais seres,
parecia recusar-se à ereção pelo resto de seus dias.
Ou encontrava o éden onde Márcia nenhuma
precisasse vender seu corpo, onde Adrianinha
nenhuma exigisse presentes de Natal, ou estarias
mutilado para a vida, logo ele, o falo ambulante, o
que não sentia estar vivendo se seu sexo não lho
confirmasse.
Foi quando surgiu o Homem de Orion, para
desconforto de Soderman, que não o suportava, não
entendia como os demais tinham paciência para
ouvi-lo, seus delírios exigiam um escroto ecumênico.
Eternos papéis sob o braço, olhar cobrindo o espaço
todo à esquerda e à direita, jamais à frente, o
serzinho incrível não tinha suas origens na Terra.
Vinha de Orion, talvez via um buraco negro, quem
sabe por deslocamento astral, isto ninguém sabia e
ele pouco se importava em explicar, sempre se
mantivera discreto quanto a seus meios de
transporte intergalático.
Viajante dos bons estava ali. Enquanto uns
marchavam rumo à Fronteira, outros rumo à
Europa, ele provavelmente estava chegando de uma
galáxia vizinha, coisa de poucos milênios-luz de
distância, mera rotina em sua vida. Sempre que o
via, Dalmácio lembrava uma novela de Vonnegut, a
saga de um astronauta que vinha dos confins do
universo e fora obrigado a uma pausa em sua
viagem devido a uma pane em sua nave. Em meio ao
pouso forçado em Titã, surgira vida na Terra, surgira
o homem e o homem colonizara Marte, os colonos se
rebelam, há uma guerra de libertação
interplanetária e uma família terráquea se exila em
Titã levando consigo uma criança que porta um
estranho amuleto. O amuleto era a peça de
reposição necessária ao astronauta. Sua galáxia
distava a tantos anos-luz de nosso sistema, que fora
preferível incentivar o surgimento de vida na Terra,
esperar que surgisse a ameba e dela o homem, que
os homens conquistassem o espaço próximo ao
planeta e fizessem a guerra, e esperar pacientemente
que as leis do acaso produzissem a peça necessária
ao prosseguimento da viagem. Emigrada a família de
terráqueos a Titã, cessa o sentido da vida na Terra.
A metáfora era vertiginosa, Dalmácio
considerava que teólogo algum fora tão longe em
suas ficções e cada vez que via o Homem de Orion,
seu jeitão de jovem Hitler tentando vender seus
quadros, olhar esquivo e lógica inabalável, não podia
deixar o solitário mensageiro estacionado no satélite
de Júpiter.
Soderman, o materialista, já o via como um
misógino. O homúnculo incrível considerava que as
mulheres roubam energias ao homem sábio. Mesmo
assim, pedira a publicação no jornal de uma carta
aberta, sentia-se incompreendido pelas mulheres
deste planeta retrógrado e alertava a todas as
terráqueas que, se dentro de um mês não se
manifestasse uma que o entendesse, se uniria a
uma prostituta. Mas como — perguntara então
Soderman — mulheres não roubam energias?
Segundo Ducatti, havia uma só possibilidade
de relacionamento homem/mulher sem perda de
energias:
— Basta liberar um só espermatozóide.
Soderman, perplexo, quis saber como. Com
uma esquiva piscadela do olho esquerdo, o Homem
de Orion esnoba:
— Questão de prática, meu caro.
Uma de suas missões não-secretas na Terra é
criar um espaçoporto para receber os Extras. Não
havia coquetel ou tertúlia onde não estivesse com
sua lista de adesões. Toda contribuição, por ínfima
que fosse, sempre vinha a calhar. Fora objeto de não
pouca discussão o poema que enviara ao
Suplemento Literário, “Arte Apocalíptica” e fora
chutado para o Bric-à-Brac do Correião, seção onde
Soderman descarregava os escrevinhadores
irrecuperáveis.
Quando tremem estruturas carcomidas
o comércio da antiarte continua
e conquista multidões seduzidas
pela Besta que campeia fria e nua!

Mercadores do infernal... como produzem!


Antiestético massacre musical,
nauseantes, pornográficas sessões,
monstruosas criaturas de metal,
decadência, bacanais, aberrações!

Literários achincalhes — artifício


para ao povo transmitir devassidão!
E os lixos teatrais? Merecem vaias
e recebem de fantoches, ovação!

Antiarte, violações, cataclismas...


e os anos vão correndo... que fazer?
Tudo é preciso acontecer.

A ruína do sistema condenado


é o princípio de uma Nova Sociedade
que teremos sobre as cinzas do passado.
Mais um revolucionário se unia ao grupo,
pois. O Homem trazia novidades, havia conseguido
estabelecer um contato de terceiro tipo com os
Extras, no morro Santa Teresa, e exibia um croquis
do encontro. Em primeiro plano, seus colegas de
pesquisas navexológicas — neologismo que criou a
partir de navex, nave extraterrestre — e ao fundo
paira a nave, dela parte um feixe de luz incidindo
sobre um minúsculo objeto. Cristiano está furioso
com o orionino, sempre lhe apoio em sua campanha
pelo espaçoporto, apoio não só financeiro como
também em sua coluna, e o hominídeo não o avisava
sobre aquele momento único na história gaúcha,
pois não lhe constava que em Porto Alegre tivesse
jamais ocorrido encontro similar.
— Poderíamos registrar fotograficamente o
evento, não podes subtrair aos jornais este
acontecimento capital na História dos terráqueos.
O orionino é curto e rasteiro:
— Vocês, jornalistas, são muito
sensacionalistas.
No que ninguém poderia negar-lhe razão.
— O encontro — conta o ser de Orion, em voz
baixa e pesquisando o espaço circunjacente com seu
olhar oblíquo — foi preparado por uma equipe de
mentalizadores e só foi possível quando assumimos
o compromisso de nada deixar transpirar à
imprensa.
— Sábia precaução dos Extras — comenta
Dalmácio — e que já nos mostra que não nasceram
ontem.
Soderman considera que alguma prova, algum
documento, enfim, qualquer coisa material deveria
existir como prova do encontro, um mero croquis
não convenceria historiadores futuros. O hominídeo,
com voz ainda menos perceptível, aponta a pedrinha
ao final do feixe luminoso:
— Izinoviguala.
A pedrinha era a prova do contato. Mas não
estava com ele no momento.
— Sem prova, não acredito.
O orionino contra-ataca com agilidade:
— A inexistência de prova não é prova da
inexistência.
Mas o Homem tem algo mais a contar.
Aproxima dos ouvidos terráqueos o orifício por onde
fala e, em voz ainda mais apagada, confessa estar
precisando de algo. Os amigos não teriam alguma
quantia de dinheiro terráqueo para proceder a
análise da izinoviguala?
Salvo Jotagê, o latifundiário da Fronteira —
como carinhosamente o chamavam, afinal não tinha
culpa de ser filho de estancieiro — todos tinham
dinheiro contado para a partida, e pequena foi a
coleta do hominídeo. O que nele os fascinava não
seria apenas sua lógica implacável, nem mesmo sua
indignação ante a ingenuidade dos terráqueos
(“enviam as naves Pioneer ao espaço em busca de
vida, como se há muito os Extras não estivessem
aqui”), mas suas teses sobre a pobreza da literatura
e demais artes contemporâneas. Para ele não havia
dúvidas, tratava-se da interferência dos Trevosos no
planeta, que agiam por influência áurica e
telepática, sem que as vítimas o sentissem.
— Dessa maneira — explicava — promovem a
criação de obras antiestéticas, oferecidas à
população como geniais inovações. Quem não as
aceita é considerado quadrado. Na pintura, por
exemplo, temos as obra horrível de Chagall e
Picasso. Na música erudita, composições
desengonçadas e caotizantes. Na música popular,
sons neuróticos e apocalípticos, adorados pela
juventude incompreendida.
O ser se cala. A mesa volta ao clima de
véspera de partida. Soderman se desculpa, a
companheira conseguira extrair-lhe uma promessa
de visitar a família à meia-noite e, “afinal de contas,
a gente nunca escapa dessas pequenas concessões à
burguesia”. João também saía, murmurou uma
desculpa esfarrapada qualquer como fazer malas ou
algo do gênero, em verdade todos sabiam que em
algum quartinho qualquer de Porto Alegre uma
crioula o esperava para uma despedida comme il
faut, não era à-toa que também atendia por João
Congo ou João Navio Negreiro. A criatura de Orion
continuava sua coleta para a análise da izinoviguala
em outras mesas, junto aos raros clientes daquele
fim de noite de fim de ano.
Os garçons, inquietos ante a proximidade da
maldita hora em que o planeta fechava a órbita.
Cristiano e Dalmácio saíram, na Rua da Praia ainda
restaria o Oásis.
— E a bomba, quem vai herdar?
— Que bomba?
Dalmácio parecia tentar recordar um fato
distante. Cristiano falava de uma lata de TNT,
achada em seus passeios pelos morros de Porto
Alegre, esquecida e intacta numa pedreira.
— Achei melhor explodi-la eu mesmo. No mar.
Fui a Torres e joguei-a dos penhascos. Aproveitei
para chantagear uma menina da Filosofia, eu
aproximava um fósforo do pavio, ameaça de suicidá-
la junto se não baixasse as calças, ela pensava que
não existia explosivo algum dentro daquela lata. Aí
acendi o pavio, fiquei apreciando o estopim
diminuindo, no último segundo joguei-a nas furnas.
A coitadas tremia como vara verde, foi quase um
estupro.
Onde o anarquista revoltado, o homem que
queria explodir caminhões de soldados, palácios de
governo?
— Olha, Cristiano, isso é inútil. Naqueles dias
de 68, subi certa vez no Sulacap, caminhões de
brigadianos subiam a Borges para espancar
estudantes. Um daqueles caminhões eu podia fazer
voar, pelo menos um cinqüenta eu tirava de
combate. Para chegar onde? Os coitados eram
míseros assalariados sem ideologia, eram
brigadianos porque de alguma forma se precisa
comer, o que eu faria era deixar cinqüenta famílias
com fome. Se não consigo diminuir o sofrimento do
mundo, para que aumentá-lo?
Espanto de Cristiano ante aquela confissão do
amigo que se gabava de não ter ética alguma.
— Havia também — continuou Dalmácio —
havia a hipótese de reservar aquela TNT para os
responsáveis do regime, secretários de Estado,
ministros, governadores, eventualmente o general-
presidente de plantão. Para um homem que se
dispõe a morrer, não é impossível acertar essa
canalha. Mas o Estado tem milhares de peças de
reserva para substituir as peças gastas ou
destruídas. Não, o caminho não é esse. Isso de
transformar o mundo com bombas é saudosismo de
anarquista aposentado. Lembras “Pierrot, le Fou”, do
Godard? Claro que sim! Bom, acho que um homem
que está de mal com o universo e dispõe de vinte
bananas de dinamite, o melhor que faz é atá-las em
volta ao pescoço, acender o pavio e poupar o
sofrimento de centenas de pessoas que da vida só
querem pequenos anestésicos para suportá-la.
Após uma longa pausa que os levou ao alto da
Rua da Praia, antes de entrarem no Oásis, Dalmácio
arrematou:
— Eu renunciei à violência, e isso sem jamais
tê-la usado. Se um dia optar pela violência, será
contra mim mesmo. Nessa viagem não tenho o
direito de convidar ninguém.
Entraram. O Oásis era reputado por seus
pastéis de camarão e, sem que fossem dados aos
prazeres da mesa, aquela partida merecia algo
marcante, não tinham a idéia de quando se
reveriam. No fundo do bar, enfurnado em seu
silêncio, Mário Quintana comia um quindim.
Cumprimentaram o poeta e sentaram um pouco à
distância, em respeito à sua solidão.
Uma vez instalado, continuou Dalmácio:
— Por exemplo, o Homem de Orion, Não sei
como o vês, aliás não sei como vês coisa nenhuma,
às vezes penso que te conheço mas nunca sei,
confesso, quando estás falando sério ou te
divertindo com as gentes. Mas eu entendo o Ducatti.
Nele está o gérmen do novo Cristo. A humanidade
adora mentiras e as mentiras terrestres já estão um
pouco gastas, não te parece?
Cristiano quis começar uma análise, Dalmácio
o interrompeu com um gesto:
— Espera, me deixa concluir. Lembras o
fascínio com que líamos Júlio Verne, Burroughs,
Vonegut, Simmack? Pois bem, acontece que somos
religiosos. Líamos aquelas ficções com uma terna
ironia, como se, não sendo mais crianças, as ficções
científicas fossem nossos únicos contos de fada
permissíveis. No fundo, quando julgávamos aquela
literatura digna de fins de noite ou derivativo para o
vil momento da evacuação, estávamos tentando
negar a eterna criança que sobrevive em nós, ou,
usando uma expressão que talvez te desagrade, o
espírito religioso incrustado no cerne do mais
empedernido ateu. Aliás, é neste ateu empedernido
que se manifesta mais profundamente o desejo de
um deus. O ateísmo é uma doença intrínseca ao
cristianismo. Não sei se nosso Homem tem
consciência dessas coisas, mas ele intui o problema.
É um médium. Talvez não entenda muito bem o que
diz, mas seus dedos sentem uma tempestade
qualquer no ar.
Cristiano se espantava ante aquela verve.
Dalmácio era sempre circunspecto e de poucas
palavras, manifestando quase sempre sua opinião
sobre os homens e o mundo com um avaro sorriso
de aprovação ou ironia. Seria talvez a psicologia de
partida, quem sabe o pressentimento de homem que
sabe que parte para não voltar.
— Continuando: em meio àquele monte de
bobagens, viagens pelo astral, contados com Extras,
enviados de Orion, em meio àquilo tudo, ele
contrabandeia idéias terríveis, repletas de bom
senso. O impasse dos literatos, meu caro, é que se
algum escritor quiser vomitar o que julga ser a
verdade, terá de colocá-la na boca de um louco.
Notaste como pululam nos romances
contemporâneos os personagens loucos, isto é,
supostamente loucos? Quando um personagem
sensato enuncia postulados lógicos, o leitor o julga
inverossímil. O autor, se quiser convencer seu
público, terá de colocar o melhor de si mesmo na
boca de um louco. Tenho certeza de que o Homem
de Orion não tem consciência disto. Mas ele sente,
ele é sensível, tão sensível que se tornou louco.
Seria Ducatti mais um incompreendido, como
o poeta que amassava em um pires o envoltório de
seu quindim? Dalmácio exagerava.
— O novo deus virá do espaço, de galáxias
distantes e inatingíveis. Um deus só pode vir do
inacessível. Quando o crente chega até sua morada,
o deus já pode tratar de seu testamento. Sabes
muito bem o quanto fede o cadáver de um deus
morto, sei que também és cultor de Nietzsche. Esses
filmecos e livros idiotas de ficção científica estão
preparando o espírito dos novos candidatos a
crentes. Porque a massa precisa acreditar em algo
que se lhe foge ao entendimento. Só nós, os
desgraçados premiados pela dúvida, só nós
continuamos a rir dessas mentiras que, afinal de
contas, anestesiam uma dor da qual a inteligência
nos proíbe fugir. A dor de viver.
Os dolorosos foguetes e ruídos de buzinas
finalmente se anunciaram, espoucando primeiro
isolados, crescendo logo depois em intensidade,
como se milhares de canalhas estivesse de foguete
em punho ou de mão sobre a buzina esperando o
sinal de partidas do canalha mais entusiasta.
Dalmácio respirou aliviado, aquela espera era tensa,
algo assim como a angústia de alguém sentado na
sala de estar de um gabinete odontológico. Um olhar
diria mais que mil discursos, mas sequer se
olharam. Serias redundante. Permaneceram
estáticos, olhando o nada, e assim continuaram por
longo tempo. As simbólicas manifestações de alegria
começaram a amainar.
— Sem falar que todos o consideram louco
porque ainda não construíram uma igreja em cima
dele. Já imaginaste se o crucificam por sua mania
de viagens intergaláticas? Na década seguinte já está
criada a nova religião, os milagres programados,
mais um século e a seita se orna de um papa.
Soderman ri de nosso Homem de Orion. Mas jamais
riria do Cristo, embora se pretenda ateu e
materialista. Cá pra nós, quem era o Cristo? Um
doido varrido, filho de uma prostituta judia com um
soldado romano...
— Um momento — atalhou Cristiano — ser
filho de puta não me parece constituir demérito.
Aliás...
— Por favor, estou com a palavra. Dispenso
tua louvação das putas, eu também gosto delas. O
que me deixa perplexo é que conseguiram
transformar o filho de uma delas em patrono da
família. Mais ainda, em Deus e ao mesmo tempo em
filho dele. Já imaginaste se saímos a berrar na Rua
da Praia: “Deus é um só — e tem mais — eu sou
filho dele”? Vão nos olhar com o mesmo ar de troça
com que olham nosso orionino, com a mesma
comiseração com que os romanos olhavam Cristo em
sua época.
Foguetes tardios ainda se ouviam lá fora.
— E aí estão o Papa, os cardeais, bispos e
clericama, todos jurando de pés juntos que o Cristo,
além de deus, é filho de uma virgem. Tremenda
aposta. Alguém ousa, já não digo chamá-los de
loucos, mas imaginá-los loucos? Ninguém. Nesta
hora, nesta hora precisa, tanto tua mãe como a
minha devem estar implorando ao filho da Puta —
ou da Virgem, conforme a ótica — que nos guie em
nossas viagens. Somos filhos da loucura, tche!
Muita gente já morreu por negar que Maria tenha
parido o Cristo sem perder o cabaço. Hoje, a época
me permite dizer que partenogênese, só a conheço
em certos pulgões da lavoura. Mas Sua Eminência
Reverendíssima Nosso Cardeal Don Vicente Scherer
deve sentir saudades das fogueiras pedagógicas da
Idade Média, se ouve isso. E o pior é que nem posso
falar. Com todo seu marxismo, Soderman já jogou
na cesta meus considerandos. No fundo é outro
catolicão, só que não sabe disso.

Neste Natal de 1971, eu, Cristiano, me


confesso:
Sou jornalista e vivo em Porto Alegre, cidade
de um milhão de habitantes, com trinta mil
prostitutas para atendê-los, segundo cautas
estatísticas e tímidos conceitos de prostituição. Até
hoje, por exemplo, não sei se os jornalistas fomos ou
não incluídos nas trinta mil. Se não o fomos, urge
uma atualização dos dados. Se a prostituta vende
apenas o corpo, reservando-se o privilégio de manter
o espírito livre durante o seu trabalho, o jornalista
vende corpo e alma, e se é possível vender o corpo
preservando a alma, até hoje não foi encontrada a
fórmula de vender a alma sem ocupar o corpo.
Assim sendo, não cause a ninguém espécie se adoro
prostitutas e as respeito como irmãs.
Curiosa fama adquiriu o jornalista nesta Era
das Comunicações. Sei lá por que razões, difundiu-
se entre as mulheres o boato de que jornalista é bom
de cama. No passado, tal prestígio pertenceu ao
artista, fosse ele escritor, escultor, ator ou pintor.
Onde eu andava, as bocetas me perseguiam, dizia
Henry Miller. Enfim, hoje todo jornalista só porque
lida com a palavra já quer seu texto publicado em
livro, só porque escreve pensa que é escritor. Se é
escritor é artista, se é artista é boa foda, suponho
deva ser este o raciocínio das meninas.
Como jornalista, não me queixo de tal fama.
Nem sequer de meu salário, dez vezes inferior ao de
uma puta bem sucedida. Não ligo para dinheiro,
desde que meu sexo esteja saciado. Em outras
palavras, contento-me com o necessário para saciá-
lo. Cientes de minhas agruras financeiras, minhas
amigas profissionais sempre me cobram baratinho.
Sabem que se um dia acertar na loteria, saberei
pagar-lhes o que de fato merecem.
Mas como, dirá o leitor, tão denso e humano
cronista falando em sexo pago? Como? Muito
simples, meu caro. A mais honesta mulher do
mundo é ainda a prostituta. Se algo me gratifica em
meu trabalho, não é o salário que recebo nem a fatia
de poder que manipulo, mas as mulheres que
querem conhecer o “cronista”. Me atacam às vezes
na rua, procuram-me na redação, as mais ousadas
invadem minhas quatro paredes. Meus respeitos às
raras leitoras que logo vão ao âmago da questão.
Abro a porta e lhes baixo as calças, sem mais
preâmbulos. Exceptus excipiendis, venham a mim as
profissionais.

“Hoje não me contive, é hoje que te escrevo, te


adoro, tuas crônicas são minha Bíblia, quero te
conhecer, te beijar, sou bem diagramada por
natureza, futura colega por vocação, livre e solteira
por convicção”. Só esqueceste um pequeno detalhe,
querida, não me contaste que pertencias à
execranda classe média. Perdeste a simplicidade dos
pobres e não ousas a imoralidade dos ricos. Me
queres na cama, mas devo respeitar as famosas
etapas do orgulho feminino. “Onde se viu, assim no
primeiro encontro, que vais ficar pensando a meu
respeito?”
Talvez pensasse até muito bem, tudo
dependeria de teu empenho, já que pouco ligo ao
desempenho, os kamasutra da vida tendem mais ao
torcicolo que a um bom orgasmo. Esperavas uma ou
duas semanas de assédio, não? A monótona
representação desta farsa ancestral de caçador e
caça. Mas sou péssimo ator, ó bem diagramada
leitora.
Sem falar que és moça emancipada, lutas por
assumir teu lugar na História. Assumisses tuas
contas nos bares, eu já me dava por satisfeito. Sou
mão-de-obra intelectual, vivo de salários, não posso
permitir-me o risco de te pagar esticadas noturnas
durante semanas para deparar-me, na cama, com
uma amadora.
Não, nada disso, não penso só em cama. Mas
antes dela não concebo amizade entre homem e
mulher. Enquanto a coisa não acontece, sempre há
algo tenso no ar, uma pedrinha que atrapalha um
papo tranqüilo. Primeiro a gente trepa, depois
conversa, este é meu modo de proceder. Eliminada
aquela imperceptível tensão, a conversa é mais
amena.
“Queres pôr todas as mulheres do mundo em
tua cama”, objetas. Não procede. Tento deitar na
cama de todas as mulheres, mas não permito que
qualquer uma deite na minha. Os solteiros, não
somos tão devassos como a época moderna insinua.
Em nossas cópulas cotidianas gostaríamos de ter em
uma só mulher a sensual e a inteligente, a amiga e a
namorada, a espirituosa e a provocante, a
companheira de trago e a esgrimista à altura. A
gente o que tem à mão, dizia uma velha cozinheira.
Se uma mulher não pode oferecer-me nada mais
além de orgasmos, nela nada busco além de
orgasmos. E os melhores não me foram dados por
universitárias ou profissionais liberais, mas por
animaizinhos incultos e cheios de vitalidade, ó
Verinha-força-da-natureza, onde andas que não
mais me buscas? Não, não estou sendo indiscreto,
há tantas Veras no mundo, e toda Vera baixinha se
chama Verinha, e as Veras altas Verão, em minha
agenda tive dois Verões, cinco Veras — Vera I, Vera
II, Vera III, Vera IV e Vera V — mas só uma Verinha,
onde andas Verinha tu que sozinha era um bacanal?
Adejo portanto entre as leitoras — as
objetivas, é claro, as que vão logo ao âmago — e as
profissionais. Acho muito engraçado quando
sociólogos de gabinete saem a campo, lápis em
punho, perguntando por que a mulher se prostitui.
A mulher vende seu corpo porque um homem o
compra, oras bolas! Perguntassem estes doutos
senhores porque os homens pagam, descobririam
alguma coisa a respeito das mulheres e inclusive de
si próprios. Neste mundinho onde preciso te comer
para que não me comas, o homem só não vende seu
corpo porque não há mercado. Ou melhor, não
havia. Até os gaúchos, de legendária virilidade, já
estão descobrindo que sexo não tem sexo, em falta
de mulher vai homem mesmo, sem falar na
excitação da novidade. Se os travestis hoje
competem firme no mercado, superando em charme
muita profissional competente, que resta então às
pacatas esposas desprovidas de qualquer encanto
ou saber-como?
Entre elas, sinto-me bem. “Eis as mulheres
verdadeiramente amáveis — dizia Sade —, felizes e
respeitáveis criaturas que a opinião infama e a
volúpia coroa e que, muito mais necessárias à
sociedade do que as recatadas, têm a coragem de
sacrificar, para servi-la, a consideração que esta
sociedade ousa negar-lhes injustamente”.
Que mais não seja, homem algum tem queixa
de uma prostituta. Dela esperamos apenas o que ela
tem a dar, enquanto das demais mulheres espera-se
muito quando pouco ou nada têm a oferecer. “Estás
me tratando como a uma puta”, reclamava-me uma
amiga ocasional. Engano, minha cara. As
profissionais, trato com mais carinho.
Jamais as espanquei, senão quando me
pediam, em meio ao galope final, para fazê-lo. Sou
gentil, isso sou, nestas ocasiões lamento tê-las
decepcionado se não bati com a violência desejada.
Só quem odeia bate bem e jamais odiei alguém.
Como sou um tanto desajeitado para tais práticas, a
estas não voltei a procurar.
As prostitutas entrarão antes de vós no Reino
dos Céus, disse um moço mais conceituado que este
obscuro cronista.

— Farol dos Náufragos da Noite.


— Iluminai-nos!

— Pastora dos Viajantes Cansados.


— Guiai-nos!

— Bainha dos Pênis Gonocócicos.


— Recebei-nos!

— Recipiente das Imundícies Coletivas.


— Sanai-nos!

— Vaso de Todos os Homens.


— Abri-nos as pernas!

— Zeladora da Honra das Matronas.


— Protegei nossas esposas e filhas.

— Guardiã dos Hímens do Ocidente.


— Velai por nossas castas filhas!

— Sustentáculo da Harmonia Familiar!


— Salvai-nos, que o barco afunda!

— Afrodisíaco dos Anciões já Flácidos.


— Erguei-o!

— Esperança dos Aleijões.


— Suportai-nos sem nojo!

— Bálsamo dos Homens Irados.


— Amansai-nos!

— Oásis no Deserto dos Desejos Insatisfeitos.


— Acolhei nossas neuroses!

— Repouso do Industrial Dinâmico.


— Aliviai-nos!

— Anus Mundi.
— Envolvei-nos!

— Vulgívaga Noctâmbula.
— Eli Eli, lama sabachtani?

— Puta Maria, Mãe de Deus.


— Tende piedade de nós!

Para não dizer que não tenho queixa alguma


em relação às profissionais — não como pessoas, é
claro, mas como classe — devo confessar ter
encontrado uma pequena falha em seu sistema de
atendimento ao público. É o caso das magnas datas
de confraternização universal, nas quais os
espécimes se reúnem para uma pausa em suas
calhordices. Algo assim como um acordo entre
canalhas: hoje eu finjo que te amo, tu finges que me
amas, todos fingimos que nos amamos e amanhã
cedinho voltamos a odiar-nos. Falo do Natal. Ou ano
Novo.
Sei, as prostitutas também são gente, têm pai,
mãe, irmãos e irmãs, filhos e filhas. Mas é
certamente nestas datas que se fazem mais
necessárias. Pois não é pequeno o número de
homens que se recusam a participar deste festival
universal da hipocrisia. E é um tanto perigoso para
um homem dessa estirpe desgarrada perambular
sozinho pelas ruas enquanto a humanidade estoura
champanhes.
Uma espécie de plantão, algo assim como um
pronto-socorro sexo-afetivo, poderia talvez ser
organizado, integrado por profissionais distantes da
família, sem filhos, mais disponíveis para o trabalho
nesses dias. Se a Nação mantém em funcionamento
serviços de utilidade pública tais como
comunicações e transportes, não consigo entender
como permite feriado a uma classe da qual depende
a salvação pública, o que evitaria certos natais
embaraçantes, como o último natal de Adriana.

As ruas estão congestionadas, a psicose


aquisitiva chega a seu auge. Os publicitários, estes
profissionais que não têm sequer o pudor de usar
um nome de guerra quando em serviço, fabricaram
angústias durante meses. Os meios de comunicação
apanham as angústias, quentinhas do forno, e as
jogam dentro de tuas quatro paredes. Não tentes
escapar, privilégio talvez possível a cegos-surdos-
mudos. Tudo foi montado de forma que te sintas o
mais miserável dos homens se não puderes
comprar, comprar, comprar. Mesmo que não tenhas
ninguém a presentear — oh!, deves ser um anti-
social, as pessoas são tão amáveis e só pedem para
ser amadas! —, presenteia a ti mesmo. Mas naquele
exato dia daquele exato mês. Um imenso esquema
foi armado para que tudo aconteça naquele dia,
naquela hora, deixa de ser um estraga-prazeres, que
mania é essa de querer bancar o original,
presenteando fora de época?
Compra, compra, compra. Qualquer coisa, em
qualquer lugar, a qualquer preço. Não te preocupes
com o limite de teu dinheiro, sabemos muito bem
que se dependêssemos de teu real potencial
econômico não venderíamos bosta nenhuma.
Prevendo isso, te concedemos crédito. Podes pagar
ano que vem. Jesus nasceu, é preciso comprar.
Encontrei Márcia na Rua da Praia, em um
desses natais em que as pessoas correm pelas ruas
como formigas enlouquecidas ante a ameaça de um
temporal. Ainda não a conhecia, no sentido exato em
que fala, com muita propriedade, a Bíblia. Como
toda mulher desconhecida me excita terrivelmente,
abordei-a para combinar algo um dia qualquer.
Juro, nem me passou pela cabeça encontrá-la
naquela tarde, sei que Natal é dia morto, nem
condenado à forca consegue uma profissional para
seu último desejo. Mal ela insinuou que estava
disponível, bastava concluir algumas comprinhas
rápidas e poderia atender-me, uma importuna
ereção estufou-me as calças. Às cinco, então?
Perfeito, às cinco, lá em casa, topou Márcia.
Tinha um olhar quente e este é o critério pelo
qual escolho uma mulher, para mim o mais
importante órgão sexual sempre foi a vista. Márcia,
profissional experiente, logo descobriu isso. Antes do
tchau olhou para o volume das calças com um
movimento de lábios — espontâneo, de quem
realmente gosta do esporte, pareceu-me — que
chegou a me provocar uma sensação de frio e
desarranjo na barriga. Senti mais sangue afluindo
ao pênis, comprei um jornal para disfarçar, não fica
bem a um distinto espécime da raça humana andar
desse jeito pelas ruas fervilhantes em uma data
assim tão nobre. Tinha tempo para uma caipirinha,
dei um pulo até o Chalé. Precisava tomar algo, até o
bar o remédio foi pensar em contabilidade, dívidas,
aluguel atrasado, coisas do gênero, que
empanassem as promessas da língua de Márcia,
atenuassem um pouco aquele priapismo natalino.

Seria a data? Acho que não, mas não é todos


os dias que isto me ocorre. Seria Márcia? Ou Márcia,
mais a data, mais minha angústia? O fato é que as
primeira nem teve graça, um vermelhão inundou-me
a pele do pescoço e peito. Márcia espantou-se, logo o
vermelhão também a contagiou, foi um orgasmo-
aperitivo daqueles que prometem um outro,
apocalíptico, total.
Márcia pulou da cama, foi ao banheiro lavar-
se. Pela porta entreaberta ouvi uma vozinha, “mãe, o
que é que tá fazendo pelada com esse homem no
quarto?”
Márcia disse qualquer coisa, ouvi o som de
palmadas, um chorinho de menina, interrompido
pela batida de uma porta. Tudo bem — disse Márcia
ao voltar — ela nunca aparece por aqui, mas hoje eu
queria ficar com ela, posso ser puta mas tenho esse
direito, não tenho?
Justo na hora boa, Adriana começa a bater,
desesperada, aos berros, na porta. “Mãe, o que é que
esse homem tá fazendo, ele tá te machucando, eu tô
ouvindo, que gemidos são esses, mãe?”
Calma, Adrianinha coisinha linda, a mamãe
não está sofrendo, muito antes pelo contrário, além
disso está pagando teu presentinho de Natal.
0. PONCHE VERDE
Entre los pastos tirada
como una prenda perdida
y en el silencio escondida
como caricia robada,
completamente rodeada
por el cardo y la flechilla
que como larga golilla
van bajando a la ladera
está una triste tapera
descansando en la cuchilla

.....................

donde palpitar sentí,


llenas de afecto profundo,
cosas chicas para el mundo
pero grandes para mí.

“Mi Tapera” — Elias Regules

Chovera no dia anterior e a terra ainda


exalava um cheiro de grávida. Cristiano enchia os
pulmões com embriaguez. À sua frente estava a
capela das Três Vendas, modesto porém eficaz
templo do obscurantismo, onde padres europeus lhe
haviam inoculado no cérebro a noção de culpa.
Descera do ônibus — se de ônibus podia se chamar
aquela minúscula geringonça sacolejante — que
fazia fim de linha sob a sombra de um eucaliptal, o
resto do percurso teria de fazê-lo a cavalo. Arrancou
algumas folhas de um eucalipto, triturou-as nas
mãos e aspirou a essência desprendida como quem
sorve a própria infância. Conseguir cavalo não foi
problema. Mal se identificou, camponeses
prestimosos passaram a cercá-lo, olhavam-no com
pasmo e veneração. Já tinham ouvido falar dele, era
o filho do Canário — e a garganta começou-lhe a
atar-se em nós —, o que havia visto coisas nas quais
era difícil acreditar, o que conhecia o mar e as terras
que ficavam do outro lado do mar.
— Homem bom tava ali! — disse alguém
referindo-se a Canário, e Cristiano teve de ranger os
dentes para não chorar, não ficava bem um barbado
chorando em meio àquela indiada rude e calejada
pelas agruras de suas vidas. Para onde ia? Ia rumo a
Ponche Verde. Sem que pedisse, ofereceram-lhe
vinte cavalos, poderia dispor de uma manada,
embora precisasse de apenas um. Eram todos bem
mais jovens do que ele, não os reconhecia, mas
conseguia vislumbrar em cada rosto os traços dos
pais, eu sou filho do Nelson, não lembras de mim,
Bagual? E eu sou filho da Siá Maria, a mãe quer te
ver, vai matar um boi pra te festejar, e eu sou filho
do Martim, lembras que me acertaste um bodocaço
no olho quando fui te dar uma surra por andar de
olho em minha prima, e eu sou filho do Raul...
No bolicho do Jacinto, frente à capelinha,
ofereceram-lhe uma Tatuzinho, “a caninha do
Canário”, e a forte cachaça escorreu-lhe por dentro,
arranhando a garganta já contrita por tantas
evocações. Não tivera ainda tempo de acreditar que
estava ali, no bolicho do Jacinto, quando o
convidaram para sair até a frente do rancho e
alguém lhe passou as rédeas de uma garbosa égua
tobiana, encilhada com arreios de domingo. Um
piazote chegou a galope, pulou em um matungo baio
e lhe passou um pacote, “a mãe soube que voltaste,
te mandou estas bombachas”, um outro lhe
perguntava que número calçava para encontrar-lhe
botas, tudo insinuava que não seria correto voltar
àqueles pagos de sapatos e calças de brim. Jacinto,
comovido, vestiu-o com seu pala calamaco e alguém
atou-lhe ao pescoço um lenço colorado exclamando:
“filho do Canário, só pode ser maragato”.
Saiu a trote largo pela Linha Divisória, à sua
esquerda o Brasil, à direita o Uruguai. Passou frente
à tapera do finado Cristiano Fischer. Dali vinha seu
nome, Canário assim o batizara em homenagem ao
velho médico alemão que se isolara naqueles
cafundós. Pensamentos sem nexo, sem nexo
aparente, já que tudo que passa mesmo na mente de
um louco não deixa de ter um nexo qualquer, ainda
que insondável, lhe perpassavam o cérebro como
chispas. Lembrava o centenário do velho Cristiano
Fischer, fora seu primeiro choque com a civilização.
Havia churrasco, música, danças, balões, tudo
era cores e alegria, quando lá pelas tantas um ruído
infernal invadira o espaço, foguetes espoucavam de
todos os lados. Teria então uns quatro ou cinco
anos, e com os olhos esbugalhados de pânico
berrava por Canário. Jamais tivera tanto medo em
sua vida, se Canário não aparecesse correndo talvez
tivesse enlouquecido de puro pânico. Era aquela a
mais terna e distante imagem do pai: ele fugia
desesperado pelo eucaliptal, com Cristiano nos
braços, enfurnando-se num chircal vizinho para
afastá-lo daquele caos de fogo e estampidos.
Lembrava também aquele poema de von
Heidenstam, que nada conhecia de sua infância e no
entanto mexera no barro de seu passado. Recitou-o
em alta voz, as palavras se perdiam na indiferença
da pampa.
Jag längtar hem sem atta langa ar.
I själva sömnen har jag längtan känt.
Jag längtar hem.
Jag längtar var jag gar — men ej till människor!
Jag längtar marken,
Jag längtar stenarna där barn jag lekt!
(Tenho saudade de minha terra há oito longos anos.
Mesmo em sonhos saudades senti.
Tenho saudades por onde vou — mas não dos
homens.
Tenho saudades do chão,
Tenho saudades das pedras onde criança brinquei).
Já perto do obelisco que marcava a assinatura
da humilhação farroupilha nos campos de Ponche
Verde, olhando ao longe o vulto da Casa, coração
num ritmo esquisito, parou para conversar com o
Hilário da Siá Cantilha, que há uns trinta ou mais
anos estava doente e às portas da morte. Nos seus
dias de colégio primário, as professoras lhe
recomendavam passar de longe pelo rancho do
Hilário e jamais beber água de seu poço, mesmo que
a sede apertasse. Pois lá estava o Hilário, eterno,
apoiado em um moirão, em carne e osso, mais osso
do que carne, era verdade, mas mais rijo que o
moirão.
Debruçou-se no alambrado e se dispôs a
alguns dedos de prosa. Abandonara há cerca de
trinta anos aqueles pagos e tinha a impressão que
Hilário jamais se afastara daquele poste. Falou de
sua doença. Que quase havia batido as botas no ano
anterior, fora até mesmo levado para um hospital na
cidade.
— Mas eu senti que iam me matá naquele
hospital. Mal senti por perto a Moira Torta, peguei
meus trapo e saí como quem roba daqueles quarto
branco. Se não fujo, tava morto.
E estaria morto mesmo, pensou Cristiano. No
entanto, ali estavam charlando, contando as
novidades do Ponche Verde, quem havia casado ou
morrido e Cristiano, que transportava consigo sua
pressa urbana, sentiu-se definitivamente expulso
daquele universo primitivo onde o tempo corria com
o vagar de uma lesma, se é que corria. Hilário não
entendia porque consultava tanto o relógio. Tentou
explicar que estava voltando das Europas, onde tudo
tinha horário. Hilário era homem informado:
— Já me falaro das Oropa. Fica meio pras
banda de Passo Fundo, segundo me contaram.
E ficava mesmo naquele rumo. Deixou Hilário
escorado no moirão e foi revisitar sua infância. Mas
já era um intruso naquele mundo de tempo
infinitamente lento, preguiçoso.
Retomou a Linha e deu de rédeas à égua
tobiana, que largou em um galope suave. Logo
surgiu o Marco Grande da Fronteira, monolito em
cimento que, de seis em seis quilômetros, demarcava
os limites entre Brasil e Uruguai. Visto do cavalo e
da altura de um cavaleiro, não tinha maiores razões
para ser chamado de grande. De seus dias de guri,
lembrava de uma pirâmide colossal, onde se
encarapitava no topo, após escalar pelos ombros do
pai. Canário o mandava virar-se para o oriente e
dizia: “Fala para os homens do Brasil, meu filho”.
Ele gritava qualquer coisa, Canário o ordenava virar-
se para o ocidente, naquela nesga de chão o
Uruguai, por caprichos da política, ficava do lado
onde nasce o sol: “E agora fala para os homens do
Uruguai, meu guri”. Naquela geografia, qualquer
criança já nascia comparando. Podia ser tudo no
futuro, menos um nacionalista ferrenho.
Mais adiante, coisa de meia légua, erguia-se o
Cerro da Tala, última coxilha entre ele e a tapera. A
tala que encimava a elevação era agora árvore
robusta, e Cristiano decidiu revisitá-la, mesmo que
tivesse de fazer mais longa sua campereada. Sob
suas ramadas cúmplices havia a Toca da Onça,
evocação dos primeiros folguedos com primas e
primos, num pan-sexualismo pagão. O pecado
chegara bem mais tarde, importado da Europa por
Doña Chichi, a catequista.
Não que fosse toca, nem que na pampa
houvesse onças. Era apenas uma espécie de buraco
formado pela justaposição de grandes pedras onde
não cabia mais que umas quatro crianças, onde se
escondiam para examinar mutuamente os genitais e
deles extrair prazer. Toca da Onça era o código pelo
qual se referiam ao esconderijo diante dos adultos,
pois suspeitavam que estes não veriam com bons
olhos seus brinquedos de mãos.
Ao começar a repechar a coxilha, a tobiana
voltou a um trote manso. À medida que subia,
divisou cercas e mais cercas, léguas de alambrado
recortando anarquicamente a geografia de sua
infância. Ao chegar à tala, sorriu divertido ante a
Toca de Onça: era uma abertura em meio às pedras
que só abrigaria um homem adulto se este se
encurvasse qual um feto. No entanto, em sua
memória havia ainda o espectro de algo enorme, de
vasto templo onde se iniciara, em secreto cerimonial,
nos mistérios da vida.
Apeou, atou as rédeas em um galho da tala.
Sentado sob a árvore, contemplava a tapera
sobressaindo de um capão de eucaliptos. A Casa
continuava de pé, como também o Pau Vermelho.
Por certo já estaria podre, mas continuava resistindo
a chuvas, ventos e vermes, marco teimoso do
pioneirismo de Canário. Quando fora erguido? Já
não lembrava com precisão, mas fora nos anos 50.
Canário ouvira falar no tal de rádio e tomara a
decisão de ter o seu.
Em um raio de léguas em torno ao rancho,
nos bolichos de Ponche Verde, Três Vendas, Villa
Indarte, Upamaruty, Puntas de Jaguary, Cerrilhada,
enfim, onde chegasse a notícia de seu projeto, era
visto como louco ou mentiroso, onde se havia visto
um pobre diabo com tais luxos da cidade? Mas o
homem falava sério e fazia repetidas viagens a
Livramento e a Dom Pedrito, de onde voltava sempre
de mãos vazias, mas com um jeitão pensativo, de
quem pesa as conveniências e inconveniências de
um gasto absurdo.
Um belo dia, cortou o mais retilíneo e mais
alto dos eucaliptos, despiu-lhe os galhos, falquejou-o
de forma a deixá-lo quadrado e o pintou de
vermelho, enquanto se avolumavam nas imediações
o boato de que estava enlouquecendo. Não lhe foi
fácil reunir vizinhos para erguê-lo, mediante um
complexo sistema de máquinas de alambrar, e os
que conseguiu reunir o ajudaram com certa piedade,
o homem estava louco mesmo, seria pior contrariá-
lo: onde se viu derrubar um eucalipto, pintá-lo de
vermelho e tornar a plantá-lo na terra?
Cristiano tinha ainda viva a lembrança da
operação, levara um dia todo, o poste colossal fora
erguido com quatro fios de arame puxando de
árvores próximas, e havia ainda o risco de que
algum fio rebentasse, e adeus rancho! Erguido o
poste erguido, Canário, contente, carneou uma
ovelha e em meio ao churrasco e à cachaça a
vizinhança até mesmo esqueceu aquela torre
absurda.
Na semana seguinte, Canário atrelou um
matungo tordilho a uma aranha e se tocou para
Villa Indarte. Voltou tarde da noite e à meia-
guampa, com um imenso volume quadrado no
pescante. Mas ainda não era o rádio, apenas duas
baterias e um aerodínamo. Instalado o catavento no
poste, seu conceito mudou nos bolichos da região,
parece que o homem vai mesmo trazer o tal de rádio,
dizia-se. O que de fato ocorreu no domingo seguinte,
quando Canário voltou mais uma vez da Villa
Indarte, agora com um volume um pouco menor, um
imenso Telefunken, e num porre federal. Descera a
coxilha cantando, mal pulou da aranha gritou feliz:
“agora não preciso cantar mais, tenho quem cante
pra mim. E esses hijos de la gran puta china de
mierda vão ver o que é rádio”.
A notícia correra como um raio na redondeza,
e nos dias seguintes não houve tardinha em que não
chegassem dois, três vizinhos a cavalo, com um ar
meio sem jeito, com o pretexto esfarrapado de uma
visita, “onde se viu visita em dia de semana, dia de
trabalho”, resmungava feliz Canário. E judiava dos
curiosos, lhes oferecia mate, perguntava sobre as
novidades, sempre embaixo do cinamomo
antiquíssimo, ao lado do catavento, cujas pás se
moviam impelidas pela brisa do entardecer. O sol se
escondia, as visitas hesitavam em dizer ao que
vinham e Canário, num misto de desprendimento e
vingança, convidava: “o compadre quer passar pra
sala, escutar um pouco de rádio?”
Com o tempo atenuara-se aquele ímpeto de
desforra, como também o complexo de culpa dos
vizinhos — por vizinhos entendia-se pessoas que
moravam a léguas de distância — e a cada noite
Canário recebia gente vinda de longe para escutar
rádio. Ao chegar, já iam desencilhando os cavalos,
pois a sessão de escuta só terminava lá pela meia-
noite. Canário, orgulhoso, não permitia a ninguém,
nem mesmo a Cristiano, mexer nos botões do
Telefunken e, qual sacerdote oficiando sua liturgia,
solenemente ligava o rádio e girava o dial,
perguntando à roda, com picardia, se queriam
escutar brasileiro ou castelhano, tangos ou
rancheiras, música ou notícias.
Tarde da noite, alegava ter de madrugar para
o trabalho, a indiada se despedia, encilhava os
cavalos e saía perfurando a noite na pampa com
vozes que aos poucos morriam nas canhadas.
Canário então chamava Cristiano, “vem cá, guri, o
melhor vem agora”. E mudava de onda. E os dois
ouviam, silentes, ruídos que pareciam vir de estrelas
distantes, línguas estranhas que ouviam durante
horas tentando entender ao menos uma palavra,
notícias de outros povos e costumes, canções de
outras gentes. Parecia-lhes impossível que um ser
humano pudesse entender outra língua que não os
dois idiomas existentes no mundo, o brasileiro e o
castelhano. Com o tempo, quando o rádio instalado
por Canário já não mais constituía milagre, os
vizinhos, se passavam por Dom Pedrito, lhe
enviavam um chasque pela rádio Ponche Verde,
endereçado à Estância do Pau Vermelho, o que fazia
Canário sorrir divertido, não pelo duplo sentido do
nome, mas pelo fasto de chamarem de estância suas
poucas braças de terra.
Embalado por tais lembranças, que lhe
remexiam fundo no espírito, montou a tobiana e
desceu o Cerro da Tala rumo à tapera. As flechilhas
lhe grudavam nas bombachas e as coxilhas se
assemelhavam a um mar verde, verde e revolto, os
alhos-bravos oscilando em ondas ao sabor do vento.
Pampa semper virens. A expressão lhe surgiu
não sabia de onde, por certo de alguma camada lá
no fundo do inconsciente. Atravessou a sanga onde
passava as tardes pescando joaninhas e lambaris.
Do córrego, que agora parecia ser apenas um filete
de água, evolava um cheiro forte de água fresca.
Antes de repechar a colina da tapera, passou pela
cacimba de água sempre gelada e cristalina,
debruçou-se nas pedras, afastou com as mãos os
insetos da superfície e sorveu o manancial como
quem bebia vida. Guardara anos afora, no palato, o
gosto salobre daquela água, e as águas cloradas que
bebera de mil torneiras jamais o haviam anulado.

Primeiro domingo do mês, missa na capela das


Três Vendas, quase em frente ao casarão do Dr.
Cristiano Fischer, o velho imigrante que em vida fora
o médico, farmacêutico, enfermeiro, parteiro,
conselheiro de toda aquela região. Das bandas do
Ponche Verde, charlando mais que caturrita em hora
de siesta, vêm cortando campo as gurias do
Candoca, pelo tempo que costumam fazer penitência
devem trazer muito pecado no lombo. De Puntas de
Jaguary, num colorado de touro pular sete fios,
vienen las gurisas de Don Rocha, marido anda
escasso em baile, hay que dar una mirada en la
Santa Misa. De Upamaruty, pela Linha Divisória,
costeando o Uruguai, num amarelo de doer os olhos,
as Ursulinas, a mais bonita já caminha com jeito de
mulher, segundo Canário já lhe andaram
afrouxando terra na raiz, visto o viço com que a
planta crescia.
A camioneta de Doña Chichi vai e volta de
todos os lados, arrebanhando a gurizada de Uruguai
e Brasil. Don Soilo tem estância dos dois lados, tem
que se botar as crianças na religião, senão se criam
sem Deus nem proteção contra o comunismo. A
camioneta vem lotada, todos já sabem o que é
Pecado, agora é só contar ao padre Antônio, fazer
penitência e depois, de coração puro, comungar do
cor e sangue de Nuestro Señor Jesú Cristo. Padre
Antônio vinha da Alemanha, falava com Deus e
arreglava tudo, era capaz de arreglar até os
contrabandos de Don Soilo, dizia Canário, mas Doña
Chichi diz que contrabando não é pecado, não fere a
lei de Deus, fere só a lei dos homens y con los
hombres los arreglos son otros, coitado do santo
homem, viera da Europa para nos trazer as luzes do
cristianismo, coitado dele se além de se ocupar das
coisas do céu tivesse ainda de zelar pelas fronteiras
da terra.
A gauchada também se aprochega, despacito,
pingo aperado para o domingo, pelegão vermelho
trespontando a badana, cola atada e passo de
marcha, despontando pelas três estradas que se
encontram frente à igrejinha. Não que a indiada vá
nas conversas do vigário, mas missa é sempre uma
festa, o mulherio se vem de cola alçada, e depois das
rezas do padre sempre sai um carteado ou jogo de
osso no bolicho do Jacinto. Se um anda em dia de
sorte, quem sabe não sai um bate-coxa, gaiteiro e
mulher é o que não falta quando se tem salão e boa
vontade.
De Dom Pedrito chega padre Antônio, a Rural
Willys tapada de barro, faz mais de mês que Doña
Chichi reza pra que Deus ilumine o prefeiro e que o
prefeito patrole a estrada, a época de safra está
chegando e a estrada um atoleiro, há boatos de que
o preço da lã vai baixar, vamos rezar, crianças, pra
que nosso prefeito arrume nossas estradas, só assim
padre Antônio pode nos trazer a Santa Comunhão e
perdoar nossas ofensas a la sangre derramada por
Nuesto Señor Jesú Cristo.
Doña Chichi quer saber se padre Antônio fez
boa viagem, não tirou nenhum peludo, padre? Não?
Graças a Deus, veja que rica safra de cristão novo,
preparei todos para a Primeira Comunhão, sabem de
cor os dez mandamentos, os sete pecados capitais,
conhecem até o Salve Rainha, não foi fácil enfiar a
Palavra Divina nestas cabeças duras, mas não há
pagão que a gente não converta com esforço e com a
graça de Deus.

Coisa feia, padre? — e Cristiano puxa do bolso


das calças curtas uma listinha de papel enrolada —.
Fiz, sim senhor, neste último mês matei 37 pombas,
sendo duas rolinhas, 24 bem-te-vis, 17 tico-ticos, 15
corruíras, duas tesourinhas, um joão-de-barro e
outros buchos que não sei o nome, sem falar nas
perdizes, que nem me arrependo, Doña Chichi diz
que perdiz se pode matar e comer, é bicho maldito
que assustou o burrico de Nossa Senhora quando
ela fugia para o Egito e por isso foi condenada a
nunca mais pousar em árvore. Mas o que mais me
arrependo mesmo é o joão-de-barro, o pai diz que
joão-de-barro não se mata, é bicho honesto e
trabalhador, deve ser por isso que Canário gosta
dele, e pra canarinho eu nem aponto o bodoque,
gostam de cantar que nem meu pai, e daí que lhe
deram esse apelido.
Ah, matei também um amontoado de
caturritas, mas caturrita, Doña Chichi diz que
também não é pecado, caturrita é praga, come o
trigo e o milho, tem que matar. Cá entre nós, acho
que de algo elas têm de viver, e por que não de trigo
ou de milho? Canário não planta trigo nem milho,
mas também acha que caturrita é preciso matar,
elas atacam as pereiras e as laranjeiras e tudo isso
eu não entendo muito bem, porque lá em casa tem
duas, vivem de asas cortadas para não voar, falam
pelos cotovelos e até que Canário gosta delas, fica
até com pena quando passa um bando pelo
eucaliptal e as duas gritam desesperadas, pulam
querendo voar e não voam.
Mas Doña Chichi diz que caturrita é inimiga
da lavoura, destrói o trabalho de gente honesta, e ela
fala também de um outro inimigo, o comunista, não
explica muito bem o que seja, mas dá a entender
que é verdadeira praga para a lavoura, eu nunca vi
esse bicho, mas no que dependesse de meu
bodoque, Don Soilo não precisa se preocupar com
suas plantações. Mais coisa feia? Acho que não, se
bem que Doña Chichi também nunca explicou muito
bem o que fosse coisa feia.
Pecados contra a carne? Que eu me lembre,
não. Pode ser que tenha comido carne nalguma
sexta-feira, o senhor sabe que por aqui só se nota
quando é domingo, os outros dias da semana
passam sem sentir, mas dificilmente teria sido
carne, Canário carneia só de vez em quando, se comi
algo pecaminoso numa sexta-feira deve ter sido
charque. Prazeres da carne? Ora, padre, sempre é
um prazer quando se come carne, ou o senhor não
gosta dos churrascos da estância de Don Soilo?
O padre podia achar graça no simplismo de
contabilidade — pensava agora Cristiano — mas a
lista não era de fácil elaboração. Pois a catequista
jamais entrara em detalhes sobre a tal de coisa feia.
Havia os pecados perfeitamente inteligíveis, como
desonrar pai e mãe, matar, roubar, mentir, com que
o que Canário concordava totalmente, dizia que mais
que um pecado, era um crime. Mas quando chegava
ao “não pecarás contra a carne”, Doña Chichi falava
não fazer coisas feias e dizia aquilo de tal forma que
qualquer criança julgaria estar fazendo algo feio ao
perguntar o que era coisa feia.
Cristiano, por razões que até então ignorava,
associara coisas feias a matar passarinhos e a cada
bichinho morto fazia um risco na forquilha do
bodoque, método que em poucos dias se revelou
pouco prático, pois deixou toda áspera e riscada
uma bela forquilha de coronilha. Quanto à matança
de pássaros, complexos eram os critérios de
Canário, havia os proibidos e os não-proibidos.
João-de-barro estava na faixa do sacrilégio, o
barreiro fazia seu rancho e cuidava da família, até
mesmo da família dos outros, logo merecia viver.
Chupim, não, pois além de não fazer rancho
botava ovo em ninho alheio. Pomba, podia, não fazia
mal a ninguém mas era uma delícia com arroz.
Carancho, matar era um dever, era bicho que comia
pinto, logo os pintos que ele criava para depois
comer, era um roubo. Águia, chimango, enfim, toda
ave de rapina, Canário os catalogava na lista dos
ladrões. Tesourinha não se matava, ela espantava a
bicaços os caranchos. Sangue-de-boi muito menos,
era bonito e cantava bonito. Canários, nem pensar,
Canário os considerava irmãos. Muito menos
araponga, que só cantava na primavera. Bem-te-vi
tinha muito piolho, era bicho mugriento, podia
matar. Alma-de-gato, não deixar escapar, era ave de
mau agouro. Corruíra não se toca, era avezinha
caseira, cuidava bem dos filhotes e alertava para a
presença de cobras. Nem beija-flor, era ave linda,
trabalhava o dia todo. Coruja também não, matava
cobras. Quero-quero, nem em sonhos, era sentinela
mais alerta que alerta que cachorro. Cristiano
tentava situar-se naquele código — no fundo, dos
mais antropomórficos, dava-se conta agora —
preservando os pássaros úteis, bonitos ou cantores e
abatendo os de garras ou de bicos aduncos.
Lembras, Clotilde, daquele guri boca suja e
sem respeito que fugia para o chircal quando
chegavam visitas? E que só voltava do mato para
exibir aos visitantes — especialmente se eram moças
— seu vasto repertório de nomes feios? Eu já não
lembro muito dele. Entre aquela época e hoje se
passaram mais de trinta anos, que dão a impressão
de trezentos. Mas sei que lembras dele melhor do
que eu.
Me dá teu braço. Vamos passear pelos campos
de Ponche Verde e Upamaruty. Rever a sanga onde
pesquei minhas primeiras joaninhas. Os mundéus
para onde mangueei perdizes. A sombra da parreira
onde me ensinaste as primeiras letras. A cacimba
em que me debrucei para beber a água gelada do
manancial. Vamos passear em silêncio, não sou de
muito falar. Sabes que no campo não se admite
intimidades entre pais e filhos. Se hoje tenho a
coragem de te falar, decerto é porque estou longe.
Olhando paras trás, tudo me parece sonho.
Lembras de quando escarafunchavas meus pés
arrancando rosetas e espinhos de tala e coronilha?
Sinto saudades daqueles espinhos. Aquele cascão
grosso que protegia meus pés é hoje uma pele fina,
sensível até mesmo a grãos de areia. Forçado pelas
convenções, ao pôr sapatos me sinto um pouco
como cavalo ferrado. Mas a cidade assim o exige.
Me passa um mate. Vamos sentar na frente da
Casa, ao lado da pedra onde Canário afiava facas e
tesouras. Enquanto o sol vai caindo e as sombras
avançam, como fantasmas tristes coxilha arriba,
vamos corujar a primeira estrela, ouvir a canção dos
grilos, ver as ovelhas se aprochegando em fila para o
abrigo de uma canhada.
Não sei se imaginaste alguma vez as andanças
futuras daquele guri xucro. Eu jamais imaginaria.
Se, naquela época, me dissessem que há um país
onde o sol não se põe, eu insultaria o mentiroso. E
não é que um dia fui parar lá? E à meia-noite o sol
ameaçava esconder-se, mas era só ameaça,
continuava rodando quase paralelo ao horizonte.
Lembro de ti muitas vezes atrelando o tordilho
à aranha. Li há algumas semanas, num jornal, a
queixa de umas professoras rurais que tinham de ir
à escola a cavalo. Gente boba, não é? Durante trinta
anos, alfabetizaste duas gerações, graças ao
tordilho. E nunca ouvi de ti queixa alguma.
Devo ter sido bom aluno, não é verdade? Uma
das coisas que lembro muito foi daquele quinto ano
primário. Tirei o primeiro lugar da aula. Foi
barbada. Pra começar, só tinha dois alunos, eu e a
Chica. Como viriam fiscais da cidade para os
exames, e a turma não estava bem preparada, as
professoras nos deram a prova num domingo, para
decorar em casa. Não sou ruim de memória,
respondi tudo em dois minutos.
Lembras da professora que pulou o alambrado
atrás de nós, quando a aranha já descia o lançante
da coxilha? “Espera, pára, o teu filho é um gênio,
tens de mandar esse guri pra cidade”. Pois é!
Mandaste o geninho pra cidade. Lá já foi mais difícil
continuar sendo o primeiro da classe. As professoras
jamais deram a alguém as provas antes do dia do
exame. Resultado: no fim do ano, um monte de
reprovações. Por isso que o ensino moderno anda
em crise.
Mais um chimarrão antes de a gente terminar
este passeio! Já está ficando tarde, tenho de voltar
ao presente. Só há um lugar no mundo para onde
sempre volto com o coração aos pulos: Ponche
Verde. Qualquer dia estarei de novo aí. Não é por
meu gosto que vivo nos povoados. Sabes, já faz
alguns anos que não dou uma boa galopada nem
vejo um nascer de sol. Há muito não ouço um galo
cantar nem vejo galinhas ciscando o pátio depois de
uma chuva. Já nem sei se formigas de asa existem
ou são lenda. Esqueci o gosto de um tatu assado na
casca. Bebo um leite de sabor desagradável que
nada mais tem a ver com um apojo quentinho.
Virei bicho da cidade, mãe. Mas qualquer dia
desses, o diabo sai de trás da porta, ato a mala nos
tentos e me mando à la cria!

Não me esperaste, Canário! E como eu tinha


causos pra te contar depois desta última
campereada. Andei por plagas onde a geada era
grossa por mais de palmo e o pasto cresce só de
teimoso. Montei nuns matungos de duas corcovas,
de trote mais feito que potro redomão. Dancei com
uma indiada de semblante maleva, cara embuçada,
que reboleava os mosquetes por cima da cabeça e
terminava cada marca com um tiroteio. Ouvi uns
gringos falando uma língua que não era língua, mais
parecia doença da garganta. Vi uns maulas tomando
café com sal e comendo peixe podre, mais satisfeitos
que guri roendo rapadura. Tirei até uns retratos
desses causo mais difícil de dar crédito. No meu
peito sentia uma vontade de sentar contigo no oitão
da Casa e ir proseando entre um mate e outro. Não
me esperaste.
Levei muito tombo nestes rodeios da vida, só
depois fui te entender. Um dia abandonei teu
rancho, fui pro povoado, me tornei letrado e não te
entendia. Acordavas antes dos galos e ias buscar as
vacas naquelas manhãs brancas de sereno. As vacas
já na mangueira, me acordavas para o mate no
galpão. Enquanto eu chorava com a fumaça da
madeira verde, me contavas as peleias de Martín
Fierro, histórias de contrabando, brigas de baile,
intrigas de chinas. Eu só ouvia, era guri sem
mundo. E agora que eu tinha uns causos pra te
contar, não me esperaste.
Não te entendia. Eu, o letrado, o doutor, não
entendia tuas lidas. Inverno e verão levantando
cedo, apojando as vacas, tomando mate, rasgando a
terra com o arado, largando a semente e cortando a
aveia, colhendo o milho e fazendo a parva. Rasgaste
tuas mãos alambrando, derrubaste cercas do
Uruguai e Brasil fugindo de peleias que não eram
tuas. Me ensinavas a encilhar um cavalo, clavar na
volta-e-meia, manguear perdiz pro mundéu, tirar
lonca e trançar laço. E tudo isto me parecia inútil. E
eu não entendia teu lugar no universo. Um dia te
entendi. Não me esperaste.
Te lembro já de noitinha, descendo o Cerro da
Tala, voltando de um trago no bolicho do Jacinto. A
cachorrada te saudava, eu corria até a sanga e
voltava na garupa. (Onde andarão meus cachorros?).
Voz já meio enrolada, um hálito de cachaça, apeavas
contando as novas lá das Três Vendas. Eu
desencilhava teu baio e voltava ligeirito para me
acocorar na roda de chimarrão e ouvir as histórias
que tu tinhas ouvido. A lua ia nascendo lá no
Uruguai, do outro lado da Linha, e quem vai a
bolicho não volta sem uma botellita debaixo do
braço. E me falavas de causos de assombração que
me gelavam o espinhaço e perturbavam meu sono. E
agora eu tinha causos pra te contar. Não me
esperaste.
A última vez que fui te ver... Sentias que era a
última vez, eu não sentia. Vou pras Oropas e depois
volto, pensei, pra mais um chimarrão. Tu sabias que
aquele mate era o último. E quando juntei meus
trapos pra voltar a Porto Alegre, choraste. Como não
entrava em minha cabeça dura ver aquele gaúcho
chorando, virei as costas e me vim. Ah, Canário!
Nesta vida nada é mais sem volta que a morte. Mas
esta lição sempre vem tarde.
Hoje te entendo em teu mundo, cumpriste teu
ciclo no tempo e no espaço que te foi dado. E a dor
que tua memória me traz, é dor que me revigora. Me
dá até vontade de crer noutra vida depois desta, pra
tomar mais uns mates e te contar aqueles causos
que queria te contar.
Hasta luego, Canário!
Paris, primavera 1980 Florianópolis, verão 1985
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