Revisitar Vieira - Vol. II

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O PODER DA PALAVRA: ESCRITA,

ARTES E ENSINO DE VIEIRA

Direção
José Eduardo Franco
Paulo Silva Pereira

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


2020
Edição
Imprensa da Universidade de Coimbra
Email: [email protected]
URL: http//www.uc.pt/imprensa_uc
Vendas online: http://livrariadaimprensa.uc.pt

Di reção
José Eduardo Franco e Paulo Silva Pereira

Coordenação geral do volume


Aida Sampaio Lemos e Joana Balsa de Pinho

Coordenação ed itor ial


Imprensa da Universidade de Coimbra

Conceção g ráf ica


Imprensa da Universidade de Coimbra

Execução g ráf ica


Carolina Grilo

Revisão
Álvaro Almeira, Porfírio Pinto,
Samuel Oliveira e Sara Carvalhais

ISBN
978-989-26-1814-2

ISBN Dig ital


978-989-26-1815-9

DOI
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9

Coordenação cientí f ica


CENTRO DE
LITERATURAS
E CULTURAS
LUSÓFONAS
E EUROPEIAS

CLEPUL
Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa

CENTRO DE
LITERATURAS
E CULTURAS
LUSÓFONAS
E EUROPEIAS

CLEPUL
Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa

Esta publicação foi financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a
Ciência e a Tecnologia, I.P. no âmbito do Projecto UID/ELT/00077/2019.

© M a io 2020, Imprensa da Universidade de Coimbra

Revisitar Vieira no século XXI / direção José Eduardo


Franco, Paulo Silva Pereira. – 2 v.
2º v.: O poder da palavra : escritas, artes e
ensino de Vieira.. - p. -
ISBN 978-989-26-1814-2 (ed. impressa) ;
ISBN 978-989-26-1815-9 (ed. eletrónica)
I – FRANCO, José Eduardo
II – PEREIRA, Paulo Silva
CDU 821.134.3Vieira, António.09(042)
O PODER DA PALAVRA: ESCRITA,
ARTES E ENSINO DE VIEIRA

Direção
José Eduardo Franco
Paulo Silva Pereira

Nota Prévia
Carlos Reis

Prefácio
Guilherme d'Oliveira Martins

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


2020
(Página deixada propositadamente em branco)
Volume I

Nota Prévia – Carlos Reis.. ....................................................................... 9

Prefácio: Vieira revisitado – Guilherme d'Oliveira Martins............... 13

Introdução – José Eduardo Franco e Paulo Silva Pereira.. ..................... 19

I – Biografia, historiografia e receção................................................ 35


Vieira, o barroco e as guerras do cânone em Portugal e no Brasil
(finais do século xix – meados do século xx )
– Paulo Silva Pereira.................................................................... 37
O êxito de uma biografia: o Padre António Vieira de João Lúcio
de Azevedo – Alcir Pécora. . .......................................................... 73
Transformações da receção dos sermões de António Vieira no
mundo hispânico por meio de paratextos
– Maria Cândida Ferreira de Almeida. . ...................................... 101
El Padre Antonio Vieira a través de escritoras ibéricas del
siglo xvii – Laura Yadira Munguia Ochoa. . ............................... 121

II – Epistolografia e interlocutores................................................... 147


Cartas de proposta e de resposta: o diálogo epistolar de Vieira
com o marquês de Nisa – Carlos Maduro.. ................................. 149
Escrever por mão própria ou mão alheia: o estudo da autoria nas
cartas vieirianas – Maria Regina Bettiol..................................... 175
António Vieira e o retorno às terras tropicais: cartas do “deserto
onde vivo” – Paulo de Assunção. . ............................................... 195
III – Teologia e espiritualidade. . ........................................................ 219
Reino e império ou a tensão do teológico e do político
na obra de Vieira – Luís Machado de Abreu............................... 221
Choupanas e palácios: a teologia retórico-humanista de Vieira
– Porfírio José Pinto. . .................................................................. 235
Espiritualidade da ação: Vieira como expressão
da vivência espiritual de base inaciana
– José Eduardo Franco............................................................... 249
Virtus et scientia: uma síntese nos modelos hagiográficos
do Padre António Vieira – Carlota Miranda Urbano.................. 277

IV – Visões do futuro: obra profética................................................ 293


A Chave dos Profetas: Deus, analogia, tempo – João Adolfo Hansen.... 295
O milenarismo e a figura do “papa angélico”: dos primórdios
do pensamento profético vieiriano à Clavis Prophetarum
– Marcos de Martini................................................................... 361
A corte portuguesa e a campanha pela publicação da Clavis
Prophetarum do Padre António Vieira (séculos xvii-xviii)
– Marília Azambuja Ribeiro........................................................ 389
Visão na eternidade ou antevisão do futuro? Para uma crítica
do profetismo quinto-imperial do Padre António Vieira
– Paulo Borges........................................................................... 415
A atualidade na História do Futuro de Padre António Vieira
– Catarina Patrício.. ................................................................... 433

V – Política e sociedade . . ................................................................... 449


A justiça e a paz em António Vieira: aspetos do seu
pensamento ético-político – Pedro Calafate............................... 451
Sociedade e poder político em António Vieira
– Acílio da Silva Estanqueiro Rocha........................................... 465
Antonio Vieira en 1640. Crisis de la Providencia y bloqueo
de la modernidad ibérica – Fernando R. de la Flor.................... 487
António Vieira e a doutrina geral do imposto: generalidade,
igualdade, proporcionalidade, redistribuição e suficiência
– Margarida Miranda.. ............................................................... 521
V o l u m e II

VI – Oratória sagrada e retórica: artes, usos e sentidos...................... 9


Análisis de la estructura del “Sermão da Sexagésima”
de Antonio Vieira – Gerardo Ramírez Vidal................................. 11
Engenhos e minas. A écfrase de Vieira em dois sermões
“brasileiros” (“Sermão xiv ” do Rosário, Baía, 1633, e “Sermão
da Primeira Oitava da Páscoa”, Belém, no Grão-Pará, 1656)
– Mário Garcia............................................................................. 33
Entre Profetas e Poetas: a retórica antiga nos sermões do Padre
António Vieira e nos discursos de D. Aquino Corrêa – Elisabeth
Battista, Jildonei Lazzaretti.......................................................... 47
Dois sermões de Santa Catarina e algumas questões de retórica
e de ideologia – José Veríssimo Teixeira da Mata.. ....................... 75

VII – Literatura e Arte.......................................................................... 93


As palavras de Vieira – Aida Sampaio Lemos..................................... 95
A vertente classicista na obra vieiriana – António Manuel
de Andrade Moniz...................................................................... 105
Padre António Vieira, o defensor dos filhos de Tupá:
um conto esquecido de Firmino Rodrigues da Silva
– Wilton José Marques................................................................ 121
Referências e metáforas artísticas na obra do Padre
António Vieira – Joana Balsa de Pinho.................................. 135
Música e missionação ao tempo do Padre António Vieira
– Elisa Lessa............................................................................... 169

VIII - Escrita polémica e a visão do outro........................................ 191


“Cada um é da cor do seu coração”. Negros, ameríndios e a
questão da escravatura na obra do Padre António Vieira
– José Eduardo Franco, Pedro Calafate, Ricardo Ventura......... 193
Vieira e os índios do Grão-Pará e Maranhão: renovações de
um grande combate – Ronaldo Vainfas.. ................................ 229
A lua sob os pés: Padre António Vieira e o discurso
anti-islâmico – Martinho Soares............................................. 247
Antonio Vieira y Sor Juana Inés de la Cruz: los textos de la
polémica por el “Sermão do Mandato” en la Nueva España
(1690-1691) – Claudia Benítez.................................................. 277

IX – Ciência e Natureza...................................................................... 309


O Padre António Vieira e a ciência - Carlos Fiolhais.................. 311
Denunciar abusos e criticar erros: os animais na parenética de Vieira
– Paulo Drumond Braga, Isabel M. R. Mendes Drumond Braga.. .. 339
Os peixes no “Sermão de Santo António”: da classificação
das espécies à atualidade da crítica – Eunice Maia.................... 375
As plantas na obra do Padre António Vieira
– Isabel Maria Madaleno.. ...................................................... 383

X – Pedagogia e Didática.................................................................... 419


Um Vieira bem diferente: o dramaturgo pedagogo
– Micaela Ramon. . ................................................................ 421
O “Sermão do Espírito Santo” e o pensamento pedagógico
de Vieira – Daniel Joana....................................................... 439
O “Sermão de Santo António” no ensino secundário: hipóteses para
uma leitura que acabe em graça e glória – Rui Afonso Mateus..... 453
Leitura(s) de Vieira em contexto escolar. Hoje como ontem?
– Amélia Correia.. ....................................................................... 471

Posfácio: Pourquoi l’utopie? – Pierre Antoine Fabre. . ........................ 489


VI
O r at ó r i a s ag r a da e r e t ó r i c a :
artes, usos e sentidos
(Página deixada propositadamente em branco)
Análisis de la estructura del “Sermão da Sexagésima” de
Antonio Vieira

Analysis of the structure of the “Sermão da Sexagésima”

Gerardo Ramírez Vidal


Universidade Nacional Autónoma do México
ORCID | 0000-0003-2060-3872

Resumen
En relación con los elementos dispositivos del “Sermão da
Sexagésima” de Antonio Vieira, los análisis modernos ofrecen
diversas divisiones del discurso, lo que indica que no existe
un criterio único para establecer la dispositio de esa obra.
Para realizarlo, se adopta en general la estructura tradicional
del discurso judicial. El propósito de este trabajo es mostrar que
el sermón objeto de estudio se encuentra estructurado con base
en criterios internos al arte del sermón, aunque adecuándose
al género del texto y a la finalidad del autor. En la ponencia se
describen las partes señaladas.
Palabras clave: Antonio Vieira, “Sermão da Sexagésima”; dispo-
sitio; género discursivo; finalidad del autor

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_1
Abstract
About the dispositive elements of António Vieira’s “Sermão da
Sexagésima”, modern analyses offer dissimilar divisions of dis-
course; this indicates there is no single criterion to establish
the dispositio of that work. To do so, the traditional structure
of judicial discourse is generally adopted. The aim of this paper
is to show that the structure of this sermon is based on criteria
internal to the art of the sermon, although adapting to the genre
of the text and the purpose of the author. In the paper the in-
dicated parts are described.
Keywords: António Vieira; “Sermão da Sexagésima”; dispositio;
discursive genre; purpose of the author

1. El domingo 31 de enero de 1655, cuando predicaba desde el


púlpito de la Capilla Real ante un concurrido auditorio compuesto
por autoridades, nobleza y predicadores, el Padre Antonio Vieira,
entonces Superior de la misión jesuita en Marañón, era ya un per-
sonaje connotado. Había nacido en 1608, en Lisboa, y en 1614,
cuando contaba apenas con 6 años de edad, fue llevado con su
familia a San Salvador da Bahía, ciudad que había sido fundada en
1549 y que, desde entonces, había sido capital de Brasil. A la edad
de 33 años, en 1641, por primera vez llegó a Portugal de Brasil
y, en enero de 1642, demostró su fuerza oratoria con el Sermón
de los Buenos Años, donde pronosticaba el futuro esplendor de
Portugal. Éste y otros sermones pronunciados durante once años
lo hicieron famoso y lo harían acreedor al título de predicador de
Su Majestad, en 1644.
Ese hombre se había formado enteramente en el nuevo mundo.
Su asombrosa capacidad discursiva tiene su origen, por lo menos
en parte, en la formación que recibió en el Colegio jesuita de

12
Bahía, donde realizó su noviciado (1623) y llegó a ser profesor
de Humanidades. Cuando el Padre Antonio Vieira nació, ya hacía
sesenta años que los primeros jesuitas habían llegado a Brasil,
junto con los fundadores de San Salvador. Manoel da Nóbrega había
encabezado a ese primer grupo y fundado el Colegio do Terreiro de
Jesus; poco después llegó el misionero José de Anchieta, conside-
rado el padre de la literatura brasileña y recientemente canonizado.
Es decir, la Compañía de Jesús se encontraba plenamente asentada en
ese y otros lugares de Brasil, a pesar de que los religiosos se veían
sometidos a una cambiante fortuna, pues los monarcas españoles
tanto otorgaban como quitaban su apoyo a los Jesuitas, agobiados
por constantes conflictos con los colonos portugueses, quienes les
impedían realizar plenamente su actividad pastoral.
Obviamente, la formación de Vieira se realizó dentro de las
reglas de la Compañía, con los maestros y el modelo educativo:
una formación orientada a la práctica oratoria, de acuerdo con la
Ratio studiorum que se convirtió en un símbolo de la alta educa-
ción. Pudo completar su formación con la lectura de los textos de
la biblioteca que se había establecido a finales del siglo xvi en la
suntuosa y espléndida sala del Colegio jesuita de San Salvador, sala
que aún hoy existe. Llegó a ser la mayor biblioteca en el Brasil
colonial, pues su acervo, de nivel superior, contaba en 1624 con
3 mil volúmenes, y llegó a los 15 mil cuando los jesuitas fueron
expulsados de Brasil, en 1759 (Rodrigues, 2011: 291; Moraes, 1979:
4). El propio Vieira llegó a ser bibliotecario de esta y otras biblio-
tecas que él mismo promovió. 1
Aunque no se sabe del contenido de la biblioteca de San Salvador,
como tampoco de las demás de la Compañía, pues fueron desmanteladas

1 Aunque este dato no es seguro (Rodrigues, 2011: 290), esa actividad la desar-
rollaban los propios religiosos, sobre todo aquellos más interesados en incrementar
los acervos, como lo era Vieira.

13
y se perdieron casi por completo (Rodrigues, 2011: 296), deberían de
haber estado en sus estantes la Ratio studiorum y numerosas obras
de retórica, en particular el Ars rhetorica de Cipriano Suarez, que se
había convertido en el texto oficial de retórica de la Compañía, y la
Ecclesiastica Rhetorica de fray Luis de Granada, publicada en Lisboa en
1576. No es aventurado afirmar, sino muy obvio, que Vieira aprendió
o reforzó la teoría en esos y otros libros, enriquecida con los ejemplos
discursivos de las numerosas obras de Cicerón que predominaban en
los estantes de las bibliotecas de la Compañía.
Su actividad como orador empezó muy pronto. En 1624 tomó
los votos religiosos y el año siguiente, cuando tenía sólo 17 años,
elaboró la Carta anual, que consistía en un informe detallado sobre
la situación en que se encontraban las provincias de la Compañía en
la colonia portuguesa. Durante su periodo de formación, comenzó
a pronunciar sermones y cumplir con obligaciones docentes como
profesor de retórica en el Colegio jesuita de Olinda, en Pernambuco.
El 10 de diciembre de 1634 se ordena sacerdote y empieza a celebrar
misas; en 1637 obtiene el grado de Maestro en artes.
Lo anterior muestra que Vieira se había formado enteramente
en los colegios jesuitas de Brasil, tanto en la teoría retórica como
en la práctica oratoria, antes de su primer viaje a Portugal, lo que
da idea también de su conocimiento y posición ante los problemas
que entonces aquejaban a la colonia portuguesa, en particular el
de los indios. 2

2. Los estudiosos piensan, en general, que la finalidad del


sermón predicado ese domingo 31 de enero de 1655, conocido como
“Sermão da Sexagésima” 3 era difundir y defender sus ideas retó-

2 Sobre la defensa de los indios en ese periodo de su vida, cf. Brandão, 2007: 185-199.
3 Es decir, uno de los domingos anteriores a la Cuaresma. Ese año, el miércoles
de ceniza fue el 10 de febrero.

14
ricas, estéticas y literarias, frente a la retórica cultista y dominicana
prevaleciente en la época, además de expresar sus ideas religiosas
y morales (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 13). Sin embargo,
a mi juicio, el propósito principal no era ofrecer sus sabios cono-
cimientos a un público culto e interesado en el arte del sermón,
sino lograr de la corte una respuesta positiva a sus demandas para
proteger a los indios de Brasil, aunque esta finalidad última sólo
puede leerse entre líneas.
Esta posibilidad se sostiene en datos externos e internos. En cuanto
a los externos, se debe considerar que el sermón pronunciado el 31
de enero de 1655 se encuentra enmarcado en un contexto político,
en el sentido de que, en ese tiempo, el autor tenía el propósito
de obtener de la corte una reglamentación para la protección de
los indígenas.
En 1641 se restauró la monarquía portuguesa, que terminó con
el periodo filipino.4 El año siguiente Vieira viajó por primera vez a
Portugal, junto con otros jesuitas, en una embajada para ofrecer su
apoyo al nuevo rey, João IV, lo que lo muestra como partidario de
la Restauración. Tenía 34 años. Permaneció durante once años en
Portugal, pronunciando sermones y cumpliendo diversas e impor-
tantes misiones diplomáticas en varios países de Europa. Tornó a
Brasil, donde permaneció un breve periodo de dos años (de enero
de 1653 a octubre de 1654), y en seguida volvió a Lisboa, con el
propósito de obtener en la corte una nueva ley para la protección
de los indios. Luego de la penosa y peligrosa travesía por el Océano
Atlántico, el 31 de enero de 1655, como ya se ha dicho, pronuncia
en la Capilla Real su primer sermón de esta segunda breve y exitosa
estadía en Portugal.

4 De 1581 a 1640. Es llamado así por el gobierno de los tres emperadores es-
pañoles: Felipe II (1556-1598), Felipe III (1598-1621), Felipe IV (1621-1665).

15
De esta manera, el “Sermão da Sexagésima” está enmarcado
entre dos sermones que muestran ese contexto. Uno fue predicado
siete meses antes (y tres días antes de su partida hacia Lisboa),
en junio del año anterior, en la ciudad de San Luis de Marañón.
En ese “Sermão de Santo António” a los peces, critica ferozmente
la ambición desmedida de los colonos portugueses a quienes acusa
de antropofagia civilizada, no menos brutal que la de los salvajes,
pues los indios son el pan cotidiano de los grandes. El otro sermón,
fue pronunciado quince días después del “Sermão da Sexagésima”,
en la misma Capilla Real, llamado “Sermão da Primeira Dominga
da Quaresma” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 245-273). En
él trata sobre la tercera tentación que el demonio puso a Cristo:
“Mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e a sua glória e disse-Lhe:
‘Tudo isto Te darei, se, prostrado, me adorares’” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, II: 245). En la parte final de ese sermón, Vieira se
dirige al rey, a los ministros del reino y a los cristianos presentes,
y, recurriendo a una prosopopeya, pone en boca de Cristo la
idea manejada por el diablo, pero en sentido positivo: “Reino de
Portugal, Eu te prometo a restituição de todos os Reinos, que te
pagavam tributo, e a conquista de outros muitos, e mui opulentos
desse novo mundo, se tu, pois te escolhi para isso, fizeres que
creia em mim, e me adore” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II:
272-273). Y ésa era la misión de Antonio Vieira, salvar las almas
de los indios para la iglesia católica, protegiéndolas primero de
quienes los tenían esclavizados.
Ante tales manifestaciones, el “Sermão da Sexagésima” parecería
seguir un propósito diferente, como si Vieira se hubiera olvidado
por un momento de su misión de proteger a los indios, por la que
tantos trabajos y sufrimientos ya había padecido, y se dedicara a
pronunciar un manifiesto donde expone en modo sintético sus ideas
sobre retórica y estética. De esta manera, tendríamos un sermón de
diferente especie, un sermón epidíctico donde vitupera la retórica

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culterana centrada en los juegos del lenguaje y el rompimiento con
toda naturalidad, desde una posición conceptista, donde privan
las ideas. En contraste, los otros dos sermones tienen la cristiana
finalidad de defender a los débiles (los indios) de los poderosos,
mediante alegorías, anáforas y muchos otros recursos estilísticos
que, sin embargo, no oscurecen el sentido ni ocultan los propósitos
del orador cristiano.
Otro dato externo se opone a lo anterior. En la presentación de
la primera edición del “Sermão de Santo António” a los peces se lee:
“Este Sermão (que todo é alegórico) pregou o Autor três dias antes
de se embarcar ocultamente para o Reino, a procurar o remédio da
salvação dos Índios, pelas causas que se apontam no 1.º Sermão do
1.º Tomo” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 137), en referencia
al “Sermão da Sexagésima”. Ahí se muestra que este sermón expone
las causas referidas, poco adecuadas para un manifiesto retórico.
Pero más que datos externos, el propio sermón contiene indica-
ciones expresas de que el motivo de este sermón no fue el pleito
teórico con los culteranos. En primer lugar, porque en repetidas
ocasiones se refiere a sus principales destinatarios: los predicadores,
a quienes no busca, sin embargo, afianzar en sus conocimientos
discursivos, sino para fustigarlos por no predicar la verdadera pa-
labra de Dios: “Dizei-me, Pregadores (aqueles com quem eu falo,
indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), [...]” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, II: 68). En segundo lugar, señala cual es el
objeto de su sermón; responder a la pregunta “porque não vemos
hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta tão grande, e tão
importante dúvida será a matéria do Sermão” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, II: 49), lo cual repite a lo largo del texto. Ése es su
único objeto, su único asunto, su única materia, y no debe haber
más, siguiendo la idea de la unidad temática del discurso (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, II: 61). Por último, al final del primer capí-
tulo afirma que el sermón “[s]ervirá como de prólogo aos Sermões,

17
que vos hei de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 48). No se refiere con ello a
cuestiones teóricas de la retórica.
Sin abundar más en lo anterior, se puede afirmar que la parte
relativa a la teoría del sermón, a pesar de su amplitud (caps. iv-viii)
es secundaria y sin importancia en el conjunto del texto, porque
los postulados retóricos no es lo que Vieira quiere probar, sino
aquello que está refutando. Por ejemplo, en el capítulo iv presenta
el postulado de que el predicador no debe predicar sólo palabras,
sino también obras, no debe dirigirse a los oídos, sino también a
los ojos. Pero, al término de este capítulo, refuta lo anterior con
un contraejemplo: Jonás, hombre lleno de muchos defectos y malas
acciones, convenció al mayor rey, a la mayor corte, al mayor reino
del mundo. Y concluye: “Outra é logo a causa, que buscamos. Qual
será?” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 56). Lo mismo sucede
con los otros postulados en torno al estilo, la materia, la ciencia
y la voz. Rechaza todas estas como causas de que los sermones
no rindan frutos. Al final dirá que la verdadera causa es que los
predicadores no predican la palabra de Dios.
Además de ello, las enseñanzas retóricas que pueden obte-
nerse de los caps. iv - viii , son realmente superficiales. Pongamos
como ejemplo la alegoría del árbol de la retórica. La imagen es
ingeniosa, bellísima y extraordinaria, si se quiere, pero es una ex-
posición simple de cuestiones generales que en nada supera a las
mas simples artes retóricas de la época. Naturalmente no se podrá
comparar con las artes de Cipriano Suarez ni de Luis de Granada.
“Obviamente – alguien podría decir –. ¡Qué insensatez! Pues no es
una obra de retórica”. Y eso es precisamente lo que yo digo: no
es un manual de retórica, ni tampoco un manifiesto, ni nada pa-
recido. Pero Antonio Vieira no es responsable de todo lo que se
dice que él dice, pero sí lo son los intérpretes de este bellísimo

18
e insuperable sermón. Mi intención no es corregir a Vieira, sino
a sus intérpretes.
Por ello me parece que Margarida Vieira Mendes tiene toda la
razón al afirmar que en este sermón

[…] no existe ninguna teoría retórica particular […] o, más pre-


cisamente, ninguna teoría que pueda definir un método o estilo
de sermón, sino sólo, a nivel preceptístico, un conjunto de reco-
mendaciones o censuras que encontramos en otros libros de la
época. Ya sean artes retóricas, instrucciones de predicadores, o
los propios sermones publicados en sermonarios junto con sus
prólogos. [tradução nossa] (Mendes, 1989: 146)

3. Con todo ello tiene que ver la siguiente parte de mi exposi-


ción: la estructura del “Sermão da Sexagésima”, en torno a lo cual
se han expuesto numerosas propuestas, pero ninguna ha intentado
siquiera aplicar la estructura que él supuestamente propone en la
sexta parte de ese discurso, porque no es posible hacerlo.
Definir el emisor, el receptor, el contexto y la finalidad, como
aquí hemos querido hacer, es necesario para entender la estruc-
tura de un sermón y poder interpretarlo de una manera verosímil.
También es necesario entender las orientaciones predominantes de
la composición discursiva en la época del autor, y las oposiciones
o divergencias que se presentan en el discurso, es decir, la interdis-
cursividad, esto es, el contexto textual, en relación con la dispositio
del sermón. Empezaré con esto último, para después considerar la
propuesta de análisis a partir de las supuestas directrices presen-
tadas en el capítulo vi del dicho sermón.
En principio habrá que considerar que se desarrollaron fun-
damentalmente dos especies de predicación: por una parte, la
homilía, que es una forma de explicación de pasajes bíblicos para
una congregación judía o cristiana que predominó en los orígenes

19
del cristianismo, aunque nunca ha dejado de emplearse, y en el
propio Vieira encontramos por lo menos un ejemplo; 5 en segundo
lugar, el sermón, caracterizado por ser más solemne y formal que
los anteriores, aunque parte también de pasajes de la Biblia que dan
la pauta para su elaboración,6 pero no se limita al puro comentario.
El sermón se convirtió en el género por excelencia de la retórica
cristiana en el proceso de evangelización y de mantenimiento de la
fe católica, pero no se limitaba a esta función, pues cubría problemas
de índole muy diversa, ya fueran dogmáticos, sociales, filosóficos
o educativos, “desde que la cristiandad se convirtió en una fuerza
activa en los asuntos humanos” (Dargan, 1905: 8). Como se verá
más abajo, fray Luis de Granada distingue tres tipos de sermones:
suasorio, demostrativo e interpretativo.
De tal manera, hay diferentes sermones de acuerdo con los
destinatarios y sus funciones, ya sea que se orienten a la evange-
lización (sermón misionero), a la instrucción (sermón temático) o
a la alabanza o vituperio (panegírico o epidíctico). El “Sermão da
Sexagésima” es un sermón temático de carácter suasorio.
A pesar del rechazo inicial de la retórica pagana, las técnicas
sermocinales muy pronto se basaron en los textos clásicos de
Aristóteles, Cicerón y Quintiliano (Salgado, 2001), de modo que
tenían como matriz la teoría retórica clásica, dividida en inventio,
dispositio, elocutio, memoria y actio, aunque adaptada a las ne-
cesidades específicas de las diferentes especies de sermones y a
las costumbres de la época. Durante el siglo xiii la escolástica dio

5 Esta homilía se encuentra en Franco & Calafate, 2013-2014, ii , ii : 294-314.


Contiene nueve capítulos, cada uno de los cuales comienza con una palabra o frase
de la Biblia.
6 Kennedy, 1980: 136-138, 141 se refiere a cuatro formas de predicación de la
iglesia primitiva: sermón misionero, profecía, homilía y sermón panegírico o epi-
díctico. Peredo, 2003: 11 agrega como tercer género la catequesis.

20
una fisonomía más formal y racional al sermón, forma que perduró
durante el siglo siguiente.
Al respecto, un estudioso de la historia de la predicación, Edwin
Charles Dargan (1905: 305-306), observa cómo se distribuía el dis-
curso durante el periodo de 1361 a 1572. Según él, “con diferencias
de detalle, de acuerdo a las personas, los temas y circunstancias”,
el discurso podía tener las siguientes seis partes:

1. Súplica o breve oración por la guía divina.


2. Exordio o prothema, que era una introducción para
despertar el interés o el placer de los oyentes, sin rela-
ción alguna o sólo de forma remota con el tema, a veces
rebuscada y grandilocuente.
3. Thema, que era el texto o pasaje de la Escritura, leída
en latín, a veces traducido a la lengua vernácula, y en
ocasiones explicado brevemente palabra por palabra.
A esa explicación se llamaba apostillar, y se asemejaba a
la antigua homilía. Cuando la apostilla era muy extensa,
podría tomar todo el tiempo y convertirse en el sermón,
sólo con la adición de la conclusión.
4. Dispositio, o disposición, que era la división y exposición
del plan del discurso. Con los escolásticos esta parte era
muy elaborada; con otros era secundaria y breve.
5. Argumento o prueba, que era el desarrollo con citas
de los maestros de la Iglesia. Aquí también había espacio
para los abusos escolásticos, aunque la costumbre era
que fueran polémicos y breves. Al final podían venir las
anécdotas, fábulas, cuentos, comparaciones, extraídos de
la naturaleza, de hábitos de los animales y todo tipo de
cosas, a modo de ilustración e imitación.
6. Admonitio o conclusio, con una breve oración final.

21
Dargan observa que se daba poca importancia a la explicación y
reforzamiento de la palabra de Dios en este tipo de sermones. Los
contenidos principales eran las sutilezas escolásticas, y la doctrina
y moral tradicionales se mezclaban con reglamentos eclesiásticos
externos y los males de la enseñanza en relación con la penitencia
y las indulgencias, mientras que los predicadores de tendencia re-
formista privilegiaban el ataque sobre el pecado y la corrupción,
incluyendo toda clase de hombres y todas las especies de pecado
sin temor ni favoritismos. Dargan se refiere también a la memoria
y a la actuación acostumbradas en la predicación de esos siglos.
En todo ello se manifestaba la degeneración en que se había caído.
De tal manera, ante las sutilezas escolásticas y la jactancia elocu-
tiva y declamatoria se había abierto paso el estilo sencillo y claro,
basado en los modelos clásicos, adaptados a la elocuencia sagrada.

4. En la Compañía de Jesús, la formación de los futuros religiosos


tomaba en consideración, de manera primordial, las capacidades
discursivas, que debían estar acompañadas con profundos conoci-
mientos de filosofía y moral. Es importante considerar lo anterior para
entender los elementos del sermón y, en particular, la disposición.
El principal texto utilizado en las escuelas jesuitas en la época
en que Vieira realizaba sus estudios era el de Cipriano Suarez,
quien había publicado su De arte Rhetorica Libri Tres ex Aristotele,
Cicerone et Quintiliano en 1562, obra que alcanzó una enorme
fama y fue reeditada de ese año hasta el 1836, 207 veces (Pereira,
2012: 795-809), lo que indica que continuó siendo el libro de texto
en las escuelas jesuíticas. Suarez logró un éxito rotundo gracias a
que compilaba de una manera clara las teorías antiguas, además
de adecuar nociones dispersas en sus fuentes a un desarrollo uni-
tario. Tomó información que reproducía literalmente no sólo de las
artes retóricas antiguas, sino también de textos como los Tópicos
de Aristóteles o de Cicerón, las Tusculanas y otras obras de este

22
autor. En la parte de la argumentatio mezcla dialéctica y retórica,
logrando conciliar nociones diferentes en un mismo cuerpo de
doctrina. Además de ello, la obra fue reformulada de diferentes
maneras. Por ejemplo, se publicaron obras que presentaban el
contenido de ese libro en forma de tablas o bien se agregaba la
explicatio de cada capítulo.
Sin embargo, la obra de Suarez es un manual de retórica, no un
ars praedicandi, como sí lo es la Ecclesiastica Rhetorica libri VI,
de fray Luis de Granada (publicada en 1576, en Lisboa). Puesto que
la teoría retórica clásica no podía emplearse de manera rigurosa en la
predicación, podía usarse sólo como referente teórico o mediante
adecuaciones prácticas a las diferentes especies de sermones. En la
época del Padre Antonio Vieira la predicación se consideraba como
una adaptación de la preceptiva retórica clásica.
En el caso de la dispositio, las doctrinas clásicas debían adecuarse
a las diferentes especies sermocinales que existían en la época de
Vieira. Ya hemos visto el sermón misionero, el panegírico o epi-
díctico y el temático. Por su parte, Granada distingue tres géneros:
el suasorio, cuyas partes son: exordio, la narración, “que apenas
tiene lugar en estas causas”, la proposición, la división, la confir-
mación, la refutación y la peroración o epílogo (Granada, 1576, ii ,
ii ). Luego sigue el demostrativo, en alabanza y vituperio de alguna
persona, especie que se ordena con base en las circunstancias
de la persona, con amplificaciones: estirpe, padres, patria, dotes
de la naturaleza, formación, fortuna, estudios, dichos y hechos,
aunque, en el caso de las vidas de los santos, Granada observa
que no sigue ni todos esos tópicos ni ese orden, sino sólo dichos
y hechos con sus amplificaciones ( ii , iii ). El tercero es la inter-
pretación (ennarratio) de la lectio del evangelio, y contiene las
partes siguientes: lectio, exordium y explanatio que debe constar
de tres a cinco partes ( ii , iv ).

23
Fernández (2008) establece que los sermones debían cons-
truirse con rigor en una serie de pasos: prólogo, argumentación y
peroración. “El prólogo se divide generalmente en tema, introito
e invocación”. El tema es el pasaje en que se basaba el sermón; el
introito, la exposición de un plan para el sermón, que consiste en la
idea o ideas fundamentales que se quieren desarrollar. En la invoca-
ción se solicita “la ayuda y la inspiración sobrenatural, a menudo
a la Virgen María”.

En la argumentación […] el asunto se aclara, confirmándose


con ejemplos bíblicos, experiencias personales, la enseñanza de
los Doctores de la Iglesia, la vida de los santos o los filósofos y
escritores paganos, amplificando con causas, efectos y circuns-
tancias. También debe prever los contra argumentos y refutarlos.

Por último, viene la peroración, que contiene las conclusiones,


para persuadir a los oyentes.
En seguida, afirma categórica: “En el Sermón de la sexagésima
esta estructura está bien marcada”. Luego indica el contenido del
prólogo, que abarca los dos primeros capítulos, cuyo tema es “por
qué la palabra de Dios no tuvo mayor efecto entre los oyentes”.
Luego sigue el introito, donde “Vieira aclara la elección del tema”,
pero sin acordarse ya de la invocación (pues no la tiene ese sermón),
pasa al desarrollo o argumentación (caps. iii - viii ) y la peroración.
Al final de su artículo, Fernández concluye:

El Sermón de la sexagésima es una lección de retórica para


el arte literario. […] sermón que se convirtió en un tratado de
retórica. Como ya se mencionó, el sacerdote no sólo enseña sino
también construye su sermón siguiendo todos los pasos que se
consideran esenciales para un discurso retórico (establecer la

24
materia, dividirlo, probarlo por la razón, presentar argumentos y
refutar los que se oponían, completa). (Fernández, 2008)

Pero esto es una exageración, pues el “Sermão da Sexagésima”


no es un tratado de retórica, ni sigue los pasos esenciales indi-
cados por la propia autora. Si hubiera seguido con rigor las partes
de un sermón no hubiera tantas discrepancias como las hay. Aida
Lemos y Micaela Ramon (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 13-
-14) afirman:

Do ponto de vista da estrutura externa, trata-se de um sermão


composto por dez capítulos, cada um com um brilho autónomo,
mas não deixando de encaixar no todo. Do ponto de vista da es-
trutura interna, o texto obedece às seguintes partes: um exórdio;
uma proposição que se formula a partir de um tema retirado dos
Evangelhos, colocado na modalidade de dúvida (dubitatio), na
de interrogação (quaestio) ou na de paradoxo (impossibilia); uma
divisão em partes; e uma argumentação com provas (confirmação
ou refutação), que se vai desenvolvendo até terminar na peroração.

Sin embargo, de lo anterior surgen varias dudas: ¿Por qué di-


vidir en estructura externa e interna? ¿Por qué se deja fuera de la
estructura el “concepto predicable”, que es el pre-texto de todo el
sermón? ¿Cuál es la parte correspondiente a la proposición después
del exordio? ¿En qué parte se encuentra la división que antecede
a la argumentación? ¿Dónde queda la confirmación y dónde la re-
futación? Finalmente, ¿por qué Vieira no sigue su propio arte de
predicar, que Lemos y Ramon analizan en seguida: tema, introito,
invocación, argumentación y peroración? Vieira no sigue su propio
método de predicar.
Son muchas preguntas y algunas pueden ser superficiales o
absurdas, pero no todas, o tal vez todas sean inútiles, si se está

25
de acuerdo – como yo lo estoy – en que Vieira no sigue ningún
plan preestablecido, actúa con libertad, hace lo que quiere; cada
sermón suyo tiene su propia lógica y su propia estructura. En con-
secuencia, su supuesta teoría no sería sino un mecanismo retórico
para atacar, para debilitar a sus oponentes; para fortalecerse entre
la clase política y, en fin, para alcanzar sus fines de reformar la ley
de octubre de 1653 relativa a los indios.

5. En efecto, el Padre Antonio Vieira no tenía por qué seguir un


orden preestablecido, pues eso no lo hacía ni siquiera Demóstenes,
ni los demás oradores áticos, como lo ha demostrado Delaunois,
y una regla básica, elemental es que la estructura o el esquema se
debe adaptar al discurso y no lo contrario.
En general, de las partes canónicas del discurso judicial, en un
sermón estándar la narración raramente tiene lugar y aún más la
refutación; en cambio, el exordio resulta de la mayor importancia,
porque hay que volver atentos a los oyentes, benévolos y sabedores
del asunto, pero el exordio de un discurso sagrado tiene sus propias
características. Debe ser breve, adecuado y grave, aunque el propio
Vieira hace amplios exordios. La propositio o prothema se obtiene
sobre todo del Evangelio o de aquella parte del Evangelio de donde
se trae la propositio, y se presenta de tal manera que el discurso
fluya casi de manera espontánea (Suarez, 1562: 180; Goldhagen,
1753: 234). Si se debe desarrollar un hecho, la amplificación se
hace a modo de narración; si las palabras, a modo de perífrasis en
anécdota (chria).
En pocas palabras, de todo lo anterior puede concluirse que no
existía una estructura única, sino diferentes, y correctamente se
puede afirmar que cada sermón tiene su propia estructura.

26
6. Naturalmente, el “Sermão da Sexagésima” tiene un orden, y
tiene un estupendo orden, un magnífico orden. Ya a la edad de casi
cincuenta años, luego de haber gozado de una experiencia exitosa,
nuestro orador estaba en su mejor momento no sólo de ofrecer sus
ideas o preceptos a su selecto auditorio reunido en la Capilla Real
de Lisboa, sino de jugar con los conceptos, con la ideas, con los
hombres, siempre que se le prestara el momento oportuno. Y ese
momento era el 31 de enero de 1655.
Pero, ¿no acaso el “Sermão da Sexagésima” se apega a la estruc-
tura descrita por el gran predicador?
Veamos con cuidado el famoso pasaje:

[1] Há de tomar o pregador uma só matéria; há de defini-la,


para que se conheça; [2] há de dividi-la, para que se distinga;
[3] há de prová-la com a Escritura; há de declará-la com a razão;
há de confirmá-la com o exemplo; [4] há de amplificá-la com
as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conve-
niências que se hão de seguir, com os inconvenientes, que se
devem evitar; há de responder às dúvidas; há de satisfazer às
dificuldades; [5] há de impugnar, e refutar com toda a força da
eloquência os argumentos contrários; [6] e depois disto há de co-
lher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar.
Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto é falar de mais
alto. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 61)

Supuestamente, Vieira presenta aquí sus concepciones acerca


de la dispositio. El pasaje anterior es hermoso y lleno de vigor,
pero técnicamente es poco claro. Puede suponerse que presenta
las partes y el orden de éstas en un sermón cualquiera. En una
primera lectura, no se logra entender con seguridad si está em-
pleando sinónimos o si se refiere a partes diferentes de un sermón,
y la acumulación de los diversos datos produce una especie de

27
vértigo mezclado con la admiración. De cualquier modo, con base
en un detenido análisis, siguiendo el texto al pie de la letra, se
puede descubrir una estructura en siete partes, sin contar la frase
bíblica o concepto predicable, que sería la primera parte. [1] Al
comienzo se presenta el tema y luego su definición o propositio;
[2] luego viene la partitio, que es la división (“há de dividi-la, para
que se distinga”); [3] en seguida, la argumentación, distribuida en
tres partes; [4] luego, la amplificatio, con siete tópicos; [5] sigue
la refutatio, y [6] al final, el epílogo, que indican cinco acciones:
recoger, resumir, concluir, persuadir, terminar. ¿Esto último es claro?
¿Es una descripción teórica? ¿Podrían encontrarse en un manual
de retórica una serie de reglas acumuladas así? ¿No es esto propio
más bien de un discurso que busca impactar a sus destinatarios,
deslumbrarlos, desarmarlos, atosigarlos?

7. ¿No tiene estructura el “Sermão da Sexagésima”? Claro que sí.


Ya antes se ha dicho. Es una estructura estupenda, fuerte, rotunda.
El propio Vieira establece esa estructura en diez partes, cada cual
con su contenido propio en una secuencia clarísima. Naturalmente
que podemos establecer una secuencia tomando como referente los
sermones de la época y en particular el pasaje antes citado sobre la
dispositio, aunque deberíamos adaptarla, adecuarla al sermón objeto
de análisis. Y así podríamos decir que primero se encuentra el tema,
que es la frase del Evangelio que sirve de punto de arranque y que
se repite también al comienzo del segundo capítulo. En seguida,
el comentario a partir del tema sobre la actividad evangelizadora
y los numerosos obstáculos. Comienza con una frase estruendosa,
aunque enigmática: “E se quisesse Deus que este tão ilustre, e
tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação,
como vem enganado com o Pregador!” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, II: 43). Así, el primer capítulo corresponde al exordio,
sin forzaduras. El segundo capítulo es la definición del problema

28
o propositio en forma de duda: “Se a palavra de Deus é tão eficaz,
e tão poderosa: como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus?”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 49). Los capítulos iii-viii con-
tienen la argumentación, que se basa en llegar a una conclusión
por la eliminación de las causas. “Si ni x1, ni x2, ni x3, ni x4 causa
y, entonces x5 causa y”. Este es un poderoso argumento inductivo,
empleado en la vida cotidiana para cualquier asunto y en la ciencia
médica para descartar las causas de enfermedades, método que
se remonta por lo menos al siglo v , con la primera Tetralogía de
Antifonte de Ramnunte.
Así, Vieira aborda primero cada una de las causas que no son
causas reales, sino aparentes: Dios y oyente (cap. iii), la persona del
predicador (cap. iv), el estilo (cap. v), la materia (cap. vi), la ciencia
(cap. vii ) y la voz (cap. viii ), todas las cuales Vieira va refutando
una por una, hasta llegar a la causa verdadera: los predicadores
no predican la palabra de Dios (cap. ix ). Por último, encontramos
un formidable cierre o epílogo sobre la función del predicador de
no alegrar a los oyentes, sino causarle pena, confundirlos, dejarlos
descontentos de sí mismos, terminando con una cita latina empleada
antes: et fecit fructum centuplum.
En suma: el Padre Antonio Vieira no se apega a las normas
formales de la predicación; su libertad y creatividad son los ele-
mentos esenciales de su retórica. Sólo que nosotros, pequeños ante
él, queremos encuadrarlo, limitarlo, encadenarlo. Espero que mis
reflexiones sean sensatas y no contribuyan a ello.

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31
(Página deixada propositadamente em branco)
Engenhos e minas. A écfrase de Vieira em dois sermões
“brasileiros” (“Sermão XIV” do Rosário, Baía, 1633, e “Sermão
da Primeira Oitava da Páscoa”, Belém, no Grão-Pará, 1656)

Mills and mines. Vieira’s epigraph in two “Brazilian” sermons


(“Sermon XIV” of the Rosary, Baía, 1633, and “Sermon of
the First Easter Octave”, Belém, in Grão-Pará, 1656)

Mário Garcia
Faculdade de Filosofia de Braga (UCP)
ORCID | 0000-0002-2458-3277

Resumo
A comunicação intende analisar brevemente o modo literário da
“composição de lugar” em dois sermões de Vieira, através da uti-
lização da “vista da imaginação” e da “vista imaginativa”, segundo
a terminologia dos Exercícios Espirituais, 47, de S. to Inácio de
Loiola. Mostra-se, assim, não só os dotes “realistas” do pregador
na descrição de um “lugar material” (o engenho de açúcar), mas
também, e sobretudo, a pintura literária de um espaço “invisível”
(as minas). Da palavra, na sua materialidade, passa-se para a
imagem e desta para a ideia. O “ver” nunca é neutro, mesmo se
puramente imaginativo. O “real” é sempre “moral”.
Palavras-chave: hermenêutica literária; retórica barroca; arte e
moral; Exercícios Espirituais

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_2
Abstract
This communication intends to briefly analyse the literary mode
of “place composition” in two sermons by Vieira, using the “view
of the imagination” and the “imaginative view”, according to the
terminology of the Spiritual Exercises, 47, of St. Ignatius Loyola.
Thus, we demonstrate not only the preacher’s “realistic” gifts in
the description of a “material place” (the sugar mill), but also,
and above all, the literary painting of an “invisible” space (the
mines). From the word in its materiality, we pass to the image
and from there to the idea. The “viewing” is never neutral, even
if purely imaginative. The “real” is always “moral”.
Keywords: literary hermeneutics; baroque rhetoric; art and
morals; Spiritual Exercises

A leitura que me proponho fazer de dois sermões de Vieira pre-


gados no Brasil pretende evidenciar o modo como o grande pregador
descreve literariamente um determinado lugar. A écfrase, como sa-
bemos, é uma figura retórica que consiste em descrever verbalmente
uma obra artística, predominantemente visual. Podemos apresentar
como exemplo a descrição, na Ilíada (xviii, 403-608), do escudo de
Aquiles. Horácio, na sua Epistula ad Pisones (verso 361), conhecida
como Ars poetica, cunha a sentença que ficou paradigmática nos
estudos literários: ut pictura poesis, “como a pintura, é a poesia”,
resumo de outra sentença atribuída por Plutarco a Simónides de
Céos, “a pintura é poesia calada e a poesia, pintura que fala”.
Não parece incorreto, com base na imitação da natureza, enten-
dida à maneira escolástica como obra de arte de que Deus é o autor,
a origem última em que poesia e pintura se encontram – e esta
era a conceção filosófico-teológica do Padre António Vieira – não
parece incorreto, dizia, que atribuamos à figura retórica da écfrase

34
a designação do processo da transposição literária de uma deter-
minada visão do real. O pregador utiliza, inúmeras vezes, a palavra
como “pintura que fala”, conforme ao que recomenda na sua Ars
poetica, o “Sermão da Sexagésima”: pregar aos olhos e não só aos
ouvidos (cap. iv ).
Tal processo não é só fruto da sua aprendizagem retórica. Tem a
ver com o modo como S.to Inácio de Loiola, nos Exercícios Espirituais,
n.º 47, explica “a composição, vendo o lugar” como o primeiro
preâmbulo para a oração. Distingue entre “a vista da imaginação”
e “a vista imaginativa”, referindo-se à experiência visiva, direta, do
exercitante perante “o lugar material onde se acha aquilo que quero
contemplar” ou à sua experiência indireta, “invisível”, mas não menos
capaz de trazer à consideração “aquilo que quero contemplar”.
No primeiro caso, trata-se simplesmente de ver imaginativamente
uma coisa, uma pessoa, “conforme o que quero contemplar”, isto
é, de acordo com a minha intenção. No segundo caso, tratando-se de
“considerar” o “invisível”, o recurso à “vista imaginativa” torna-se mais
criativo. S.to Inácio exemplifica deste modo a esperiência visiva “dos
pecados”: “estar a minha alma encarcerada neste corpo corruptível e
todo o composto neste vale, como desterrado, entre brutos animais.
Digo todo o composto de alma e corpo”.
Foi nesta escola que Vieira aprendeu a usar a retórica ao serviço
da pregação. Dos Exercícios Espirituais é que decorre a intenciona-
lidade da sua invenção literária. S. to Inácio equipara, como vimos,
o “considerar” próprio da “vista imaginativa” a uma elaboração
imagético-simbólica e, por conseguinte, artística; não desdenha,
antes pelo contrário, integra e valoriza o imaginário no âmbito
da oração. Para um criador literário como o Padre António Vieira,
este tipo de espiritualidade omnicompreensiva deu-lhe asas para
trazer ao discurso oratório todo o tipo de imagens que a sua ri-
queza genial descobrisse. A écfrase tornou-se, realmente, para ele,
um modo privilegiado de pintar no tempo a música das palavras

35
e de compor a arquitetura do sermão num espaço habitado pelas
pessoas concretas a quem falava. Pretendia agradar, persuadir e,
sobretudo, colaborar com o Espírito Santo, para procurar levar à
conversão, conforme aos critérios evangélicos, os seus ouvintes-
-leitores. Os sermões constituem, fundamentalmente, um “modo e
ordem” de dar os Exercícios Espirituais.

1. Vindo ao primeiro exemplo. Vieira fala, na Baía, “à Irmandade


dos Pretos de um Engenho em dia de São João Evangelista [27 de
dezembro]. Ano de 1633”, como refere a didascália. Tem 25 anos
de idade e ainda não é sacerdote.
O sermão, publicado em 1686 na primeira parte de Maria Rosa
Mística, é o 14.º dos 30 do Rosário, que constituem os tomos 9 e 10
da edição príncipe (e os vols. viii e ix, do t. ii, da Obra Completa).
Segue uma dispositio académica, na linha do tradicional discurso
retórico: enunciado, razões, prova, exemplo. Tratando-se da festa
de S. João Evangelista, dois dias depois do Natal, e da Irmandade,
supõe-se que de Nossa Senhora do Rosário, constituída pelos escravos
negros que trabalham num engenho de açúcar, “estas circunstâncias
mais individuais do lugar, das pessoas, e da festa, e devoção que
celebramos” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 408) vão sendo
progressivamente unificadas, através da consideração dos três nas-
cimentos do Filho de Deus, ou dos três filhos da Virgem Maria, a
saber, Jesus, S. João e os Pretos, vão sendo unificadas na “devoção
que celebramos”, isto é, o rosário. O esquema triádico é também o
dos três mistérios do rosário, gozosos, dolorosos e gloriosos.
Desfaz-se uma dúvida: como poderão os escravos rezar o rosário,
se o “contínuo trabalho” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII:
412) parece impedi-los? Vieira vai buscar à Bíblia os três Salmos
(8, 80 e 83) que David compôs para serem cantados pelos filhos de
Coré, “os operários destas trabalhosas oficinas” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, VIII: 413) que são os lagares e, por aproximação,

36
os engenhos. Coré significa Calvário, e os filhos do Calvário são
os escravos negros, “os imitadores da Cruz, e Paixão de Cristo
crucificado” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 413). Porque o
Senhor não se esqueceu da sua Mãe, no meio dos seus trabalhos
e tormentos, encomendando-a ao discípulo amado S. João, assim
também devem os pretos encomendar-se à Senhora, enquanto tra-
balham. E se Cristo, em três horas que esteve suspenso na Cruz,
rezou três vezes a seu Pai, como não poderão os escravos rezar três
vezes em vinte e quatro horas? Tanto mais que as três orações de
Cristo na Cruz correspondem aos três mistérios do rosário. Por isso,
os pretos, como discípulos amados da Senhora do Rosário, imitam
S. João, meditando e cantando os mistérios dolorosos.
No encarecimento do “exemplo”, que constitui o cap. viii do
sermão, o último antes da breve peroração, é que encontamos a
passagem que agora nos ocupa:

Encarecendo o mesmo Redentor o muito que padeceu em Sua


sagrada Paixão, que são os mistérios dolorosos, compara as Suas
dores às penas do inferno: Dolores inferni circundederunt me [Sl
17, 6]. E que coisa há na confusão deste mundo mais semelhante
ao inferno que qualquer destes vossos Engenhos, e tanto mais,
quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela
breve, e discerta definição de quem chamou a um Engenho de
açúcar “doce inferno”. E verdadeiramente quem vir na escuridade
da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes; as
labaredas que estão saindo a borbotões de cada uma pelas suas
bocas, ou ventas, por onde respiram o incêndio; os Etíopes, ou
Ciclopes banhados em suor tão negros como robustos que sub-
ministram a grossa, e dura matéria ao fogo, e os forcados com
que o revolvem, e atiçam; as caldeiras, ou lagos ferventes com
os cachões sempre batidos, e rebatidos, já vomitando escumas,
já exalando nuvens de vapores mais de calor que de fumo, e

37
tornando-os a chover para outra vez os exalar; o ruído das rodas,
das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando
vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento de
tréguas, nem de descanso: quem vir enfim toda a máquina, e apa-
rato confuso, e estrondoso daquela Babilónia, não poderá duvidar,
ainda que tenha visto Etnas, e Vesúvios, que é uma semelhança
de inferno. Mas se entre todo esse ruído, as vozes que se ouvirem
forem as do Rosário, orando, e meditando os mistérios dolorosos,
todo esse inferno se converterá em Paraíso; o ruído em harmonia
celestial; e os homens, posto que pretos, em Anjos. (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, VIII: 419)

Poderíamos aproximar este texto da minúcia descritiva evidenciada


já na Carta Ânua de 30 de setembro de 1626, o primeiro escrito
conhecido de Vieira, onde os seus dotes pictóricos se tornam de tal
modo vivos que nos adentram naturalmente na experiência visiva
e emocional daquilo que nos é narrado.
Não deverá ser estranha ao autor a polissemia da palavra “en-
genho”: o local onde trabalham os escravos sofre um processo de
transfiguração, o inferno converte-se “engenhosamente” em paraíso.
A doçura não diz unicamente respeito ao açúcar; faz rescender o
“suor” em “harmonia celestial” através das vozes em uníssono da
oração. A metáfora concentra a atenção no fogo; os Ciclopes, Etnas,
Vesúvios e Babilónias não desvirtuam a simbologia, antes pelo con-
trário, reúnem mito, natureza e religião, sugerindo a cena dos três
jovens na fornalha ardente do livro de Daniel (Dn 3), passeando
entre as chamas acompanhados por um anjo.
Trata-se de um texto bíblico interpretado à luz da exegese neo-
testamentária no significado anagógico da Ressurreição de Cristo.
Vieira extrai daí a ligação dos mistérios dolorosos aos gloriosos e por
esse caminho prossegue. Encontramos, pois, nesta écfrase alegórica
do sermão, um bom exemplo do uso da “vista da imaginação” para

38
a “composição, vendo o lugar”, aqui, o engenho de açúcar, onde
trabalham e sofrem os escravos negros, “o lugar material, assim como
um templo ou monte onde se acha Jesus Cristo ou Nossa Senhora,
conforme o que quero contemplar” (Exercícios Espirituais, 47, 4).
Não queiramos ler o texto à luz das nossas atuais conceções de
justiça. Seria anacrónico atribuí-las ao Padre António Vieira. Nem a
denominação “preto”, em si mesma, possuía, ao tempo, qualquer
sentido pejorativo. O que está em causa não é tanto a mudança
da condição social. O próprio orador o insinua, quando diz aos
escravos: “Que entre todos os mistérios do Rosário, haveis de ser
mais particularmente devotos dos que são mais próprios do vosso
estado, da vossa vida, e da vossa fortuna, que são os mistérios do-
lorosos” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 417). O que está,
realmente, em causa é o modo como eles são tratados, ainda por
cima por quem se diz cristão. O nosso jovem pregador não deixa de
o denunciar, com certa timidez, porventura ainda longe da coragem
e determinação que lhe serão habituais mais tarde.
Bastaria citar duas ocorrências:

que confusão […] será para os que se chamam senhores de


Engenho, se atentos somente aos interesses temporais, que se
adquirem com este desumano trabalho, dos trabalhadores seus
escravos, e das almas daqueles miseráveis corpos, tiverem tão
pouco cuidado, que não tratem de que louvem, e sirvam a Deus,
mas nem ainda de que O conheçam? (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, VIII: 413)

E este que não deixa de ser, à luz da fé, um sério aviso à cons-
ciência dos opressores e uma consolação verdadeira para os oprimidos:

Os gostos desta vida têm por consequência as penas, e as


penas pelo contrário as glórias. E se esta é a ordem que Deus

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guardou com Seu Filho, e com Sua Mãe, vejam os demais o que
fará com eles. Mais inveja devem ter vossos senhores às vossas
penas, do que vós aos seus gostos, a que servis com tanto trabalho.
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 422)

Vieira não desdenhou incluir este sermão das suas primícias, “as
primícias daquelas ignorâncias que ainda se não podem chamar
estudos” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 397), na colectânea
Maria Rosa Mística. Afirma, talvez por devoção, mas erradamente,
ser “esta a primeira vez” que, “noviço no exercício, e na arte”, sobe
“indignamente a tão sagrado lugar” (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, VIII: 397). Ao prepará-lo para a imprensa, mais de 50 anos depois
de o ter pregado, parece que não lhe quis mudar traço nem linha.
Conserva ainda, ingenuamente, como ele diz do rosário, “o cheiro
das rosas, e flores que tanto enlevam, e agradam a Deus” (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, VIII: 412).

2. Em muito diferente circunstância foi pregado o “Sermão da


Primeira Oitava da Páscoa”, [23 de abril] de 1656, na matriz da
cidade de Belém, no Grão-Pará. Vieira regressara ao Maranhão, a
16 de maio do ano anterior, da sua estada “vertiginosa” na Corte,
munido da Lei da Liberdade dos Índios, por ele agenciada. A sua
fama vinha alicerçada pelos nove sermões da Quaresma de 1655, a
maioria deles na Capela Real; contava 48 anos de idade; triunfava
em todas as frentes.
O “melindre” desta pregação, em tempo de Páscoa, derivava do
facto “de se ter desvanecido a esperança das Minas, que com grandes
empenhos se tinham ido descobrir”, como claramente assinala a di-
dascália do sermão. Muito habilmente, Vieira tira partido do regresso
desanimado à sua terra dos dois discípulos de Emaús (Lc 24, 17-21),
depois de se ter “desvanecido” para eles a ambição de grandeza

40
humana que teria representado a convivência com Jesus, o Messias
afinal humilhado, crucificado e morto.
O pregador vai, com grande mestria e senso psicológico, desen-
tranhando as causas da “tristeza declarada” e da “esperança perdida”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 114). O sermão, eminentemente
persuasivo, a contrapelo do que se poderia esperar, defende a tese
de que foi muito melhor as minas não se terem descoberto: “muitas
vezes está a nossa perdição em sucederem as coisas como esperamos,
e pelo contrário está o nosso remédio, e a nossa conservação, em
não terem o sucesso que se pretendia” (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, V: 115). E todo o discurso progride, de razão em razão, desen-
ganando o auditório, ao acompanhar, podemos dizer, em espírito,
o possível descobrimento das minas com os perigos daí resultantes
(passados, presentes e futuros) e, ao mesmo tempo, trazendo à
colação exemplos colhidos da Bíblia, como provas evidentes das
suas asserções que poderiam ser contestáveis.
Aproxima-se, assim, do núcleo do sermão, a écfrase estupenda das
minas, que ocupa todo o cap. v. Vieira extrai, da descrição ecfrástica
das minas, duas conclusões que desenvolve nos dois capítulos se-
guintes. A primeira: “muito maior mercê vos fez Deus, e muito mais
bem-afortunados fostes em não se acharem as minas, que se o ouro,
e prata, que se supunha, e esperava delas, se descobrisse” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, V: 124); a segunda: “também para o mesmo
Reino em geral antes haviam de ser de maior opressão, e ruína, que
de utilidade, e aumento” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 128).
No cap. viii , o último da dispositio, o pregador, num golpe ge-
nial, apresenta ao auditório as “minas” que contrapõe às de ouro
e prata, a que chama “suas”, as que tinha prometido descobrir e
agora, finalmente, desvenda: as almas, nossas e alheias, que Cristo
ressuscitado, descendo ao inferno, “foi buscar, e descobrir umas
minas mais ricas que toda a prata, e todo o ouro, cujo preço, e lugar

41
só Ele conhecia, e nenhum homem, nem Anjo, senão Ele as podia
descobrir” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 132).
O cap. v , no coração do sermão, é a pedra de toque que
irradia, como onda concêntrica, para todas as partes do desenvol-
vimento do tema. Exemplo paradigmático da écfrase pela “vista
imaginativa”. Vieira não conhece de visu as minas, ao contrário
do engenho de açúcar. Por isso, na “composição, vendo o lugar”,
aqui, realmente para ele, “invisível”, utiliza todo o potencial da
sua extraordinária criatividade verbal para descrever, diante dos
nossos olhos, cenas vivas com as cores, os ruídos e as imagens
mais aterradoramente fantásticas.
Seria preciso ler o capítulo todo para tirarmos dele todo o pro-
veito. Infelizmente, salto algum trecho. Mas não quero descurar a
citação de Is 2, nomeadamente os versículos 19 e 20, que lhe servem
de suporte. Apresento a tradução do atual ofício de leitura da liturgia
das horas próprio da terça-feira da primeira semana do Advento:

Hão-de refugiar-se nas cavernas dos rochedos e nos antros da


terra, por causa da presença terrível do Senhor e do esplendor
da sua majestade, quando Ele se levantar para encher a Terra de
pavor. Naquele dia, o homem lançará às toupeiras e aos morcegos
os seus ídolos de oiro, que havia fabricado para os adorar.

As toupeiras e os morcegos, “neste escuro, e horrendo teatro da


paciência sem virtude” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 121),
que são as minas de ouro e prata, passam, no texto de Vieira, a
designar os homens que nelas trabalham:

Eu nunca fui ao Potussi, nem vi minas; porém nos Livros, que


descrevem o que nelas passa, não só causa espanto, mas horror,
ler a fábrica, e as máquinas, os artifícios, e a força, o trabalho, e
os perigos, com que as montanhas se cavam, as betas se seguem,

42
e perdidas se tornam a buscar; os encontros de pedernais impe-
netráveis, ou de águas subterrâneas, que rebentam das penhas,
as quais, ou se hão de esgotar com bombas, ou abrir-lhes novo
caminho, furando por outra parte os mesmos montes; o estrondo
dos maços, das cunhas, das alavancas, e dos outros instrumentos
de ferro, alguns dos quais têm cento e cinquenta libras de peso,
com que se batem, cortam, e arrancam as pedras, ou se precipitam
com maior perigo do alto; e tudo isto naquelas profundíssimas
concavidades, ou infernos, onde nunca entrou o raio do Sol,
alumiados malignamente aqueles infelizes Ciclopes só com a luz
escassa, e contrafeita de alguns fogos artificiais, cujo hálito, fumo,
e vapor ardente lhes toma a respiração, e muitas vezes os afoga.
[…] Ainda tem outra propriedade: porque uns como toupeiras
com os pés, e mãos na terra a andam cavando, revolvendo, e mu-
dando continuamente, e outros como morcegos suspensos no ar
estão picando as pedras, e sangrando as suas veias com o corpo,
e com a vida pendente de uma corda. Houve jamais algum anaco-
reta dos que habitavam as covas, que fizesse tal penitência? Pois
ainda não ouvistes o mais temeroso dela.
Solapadas por baixo aquelas grandes montanhas, todo o peso
imenso delas se sustenta sobre pilares da mesma matéria, que
vão deixando a espaços, os quais, se enfraquecem, ou quebram,
como acontece muitas vezes, qual é o efeito? Toda a montanha,
ou grande parte dela cai de repente, e a multidão, que andava
desenterrando a prata, fica sepultada com ela em um momento,
sem outra notícia de tamanho, e tão miserável estrago, que a que
deu aos de muito longe o estrondo da ruína, e o tremor de toda
a terra. Isto é o que se escreve, e se escreve muito menos do que
verdadeiramente é. Baste por prova que a sevícia e crueldade dos
Neros, e Dioclecianos comutavam a morte, e os tormentos dos
Cristãos em os mandar servir, e trabalhar nas minas; e a Igreja,
que com tanta dificuldade, e consideração examina, e avalia os

43
merecimentos dos Santos, canonizava, e venerava por Mártires
aos que nelas acabavam a vida. (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, V: 121-122)

Não é preciso encarecer o efeito que causaria nos ouvintes uma


tal descrição e as consequências que o orador dela extrai:

A roça haviam-vo-la de embargar para os mantimentos das


minas; a casa haviam-vo-la de tomar de aposentadoria para os
Oficiais das minas; o canavial havia de ficar em mato, porque os
que o cultivassem haviam de ir para as minas; e vós mesmo não
havíeis de ser vossos, porque vos haviam de apenar para o que
tivésseis, ou não tivésseis préstimo; e só os vossos Engenhos ha-
viam de ter muito que moer, porque vós, e vossos filhos havíeis
de ser os moídos. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 123)

Podemos, talvez, pensar num momentâneo desafogo catártico,


depois deste clímax trágico. O que se esperaria alcançar com o
ouro e a prata foi comparado ao inferno. O desvanecimento das
minas transformar-se-ia na paz e na liberdade reencontradas, como
aconteceu com os discípulos de Emaús, depois de terem descoberto
Cristo ressuscitado na pessoa daquele peregrino incógnito que deles
se aproximou?
Vieira não é íngénuo, mas acredita convictamente na força da
palavra que pode mover os corações. É por isso e para isso que faz
literatura. Conhece as paixões humanas. Fala da sua experiência
amadurecida por muito ter observado, em primeiro lugar em si
próprio. Sente que tem autoridade, exatamente porque nunca viu
minas, isto é, não se envolveu na ambição de as querer descobrir
e encontrar. O testemunho da sua isenção visiva torna-o mais cre-
dível da sua autoridade moral. Pinta de tal modo o que não viu
que o dá a ver como se o tivesse visto e de um modo mais fundo

44
e verdadeiro. Torna-se um visionário convincente. Inverte o foco
da atenção, do ouro para a alma, do brilho à vista desarmada para
a luz interior da consciência.
Falando a cristãos, não os adverte primeiramente, note-se, com
os castigos do pecado da idolatria das riquezas materiais, mas para
animá-los com as verdadeiras alegrias da fé: “Mas se temos Fé, e
juízo, como não há de prevalecer a alegria, o gosto, e a felicidade de
Deus nos ter descoberto estas minas do Céu, à falsa, e mal entendida
tristeza, de não termos achado as da terra, que nela buscávamos?”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 138).
A maior liberdade de invenção, no caso da écfrase realizada
pela “vista imaginativa”, transfigura-se, pela palavra arrebatadora
de Vieira, numa persuasão mais universal e escatológica. A intenção
moral do pregador induz a uma conversão de vida; redunda, pelo
vigor da pintura da “composição, vendo o lugar”, possivelmente
naquele “conhecimento interno do Senhor que por mim se fez
homem para que mais o ame e o siga”, que S.to Inácio pede a Deus
nos Exercícios Espirituais, n.º 104.

3. Felizmente, muitos outros exemplos abundam, nos escritos do


Padre António Vieira, desta possibilidade da palavra proferida des-
crever, com as tintas da imaginação, uma verdade mais entranhada
no leitor-ouvinte, ou no “legente”, como Maria Gabriela Llansol gos-
tava de dizer. Bastaria recordar, do “Sermão da Quinta Dominga da
Quaresma” (Capela Real, 1655), a passagem, no cap. vii, que começa
deste modo: “Eu taparei os ouvidos ao que se diz, e só direi o que
se vê com os olhos, e se aponta com o dedo” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, IV: 184); ou, do “Sermão do Espírito Santo” (São Luís
do Maranhão, 1657): “Os que andastes pelo mundo, e entrastes em
casas de prazer de Príncipes, veríeis naqueles quadros, e naquelas
ruas dos jardins dois géneros de Estátuas muito diferentes, umas de
mármore, outras de murta” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 252).

45
Mas parece-me dever-se concluir com a justamente célebre descrição
da guerra, incluída no “Sermão nos Anos da Sereníssima Rainha
Nossa Senhora”, nunca pregado, mas imediatamente divulgado em
folheto, pouco depois do dia aniversário, 22 de junho de 1668:

É a Guerra aquele monstro, que se sustenta das fazendas, do


sangue, das vidas, e quanto mais come, e consome, tanto menos
se farta. É a Guerra aquela tempestade terrestre, que leva os
campos, as casas, as Vilas, os Castelos, as Cidades; e talvez em
um momento sorve os Reinos, e Monarquias inteiras. É a Guerra
aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não
há mal algum, que ou se não padeça, ou se não tema; nem bem,
que seja próprio, e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico
não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor,
o nobre não tem segura a honra, o Eclesiástico não tem segura
a imunidade, o Religioso não tem segura a sua cela, e até Deus
nos Templos, e nos Sacrários não está seguro. (Franco & Calafate,
2013-2014, II, XIII: 162)

Quem não será capaz de ver, com a “vista imaginativa”, nesta


écfrase dos horrores da guerra, uma pintura, antes da letra, da
Guernica de Picasso? A consideração de um “monstro”, a descrição
de uma “tempestade”, uma paisagem devastada, a insegurança uni-
versal do homem e do próprio Deus? E tudo isto graças ao engenho
e arte de um incomensurável apóstolo da palavra!

Bibliografia

Franco, J. E. & Calafate, P. (dir.) (2013-2014). Obra Completa Padre António Vieira.
S.l.: Círculo de Leitores.
Kolvenbach, P.-H. (1999). Decir… al “Indecible”: estudios sobre los Ejercicios
Espirituales de San Ignacio. Bilbao/Santander: Mensajero/Sal Terrae.
Loiola, I. (1999). Exercícios Espirituais (3.ª ed.). Braga: Livraria A.I.

46
Entre Profetas e Poetas: a retórica antiga nos sermões do
Padre António Vieira e nos discursos de D. Aquino Corrêa

Between poets and prophets: rhetoric in the sermons of Father


António Vieira and in the speeches of Dom Aquino Corrêa

Elisabeth Battista
Universidade Federal de Mato Grosso

Jildonei Lazzaretti
Universidade Federal de Mato Grosso
ORCID | 0000-0001-5751-0915

Resumo
O texto consiste em uma análise comparativa entre os sermões
do Padre Vieira e os discursos de D. Aquino Corrêa, para cons-
tatar como eles associam a retórica antiga com a hermenêutica
cristã, visando persuadir seus ouvintes. Assim, a partir de
Barthes (1975), Reyes (1961), Hansen (2013) e Tringali (2014),
observa-se como a retórica antiga se constituiu historicamente
enquanto arte da oratória dos antigos gregos e latinos, e como
permaneceu na formação eclesiástica. Na análise dos textos, são
utilizados os estudos de Hansen (1978), Saraiva (1980), Mendes
(1989) e Pécora (1994), comparando os recursos retóricos dos
dois oradores, e demonstrando que ambos buscam a persuasão
afetiva por meio do latim, que confere ritmo e autoridade ao

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_3
discurso. Assim, o latim, por seu ritmo – ligado à poesia – e
por sua autoridade – ligada à profecia – faz com que o profeta
Vieira atue como “poeta”, e o poeta D. Aquino como “profeta”.
Palavras-chave: retórica; sermões; discursos

Abstract
This text is a comparative analysis of the sermons of Father
Vieira and speeches of D. Aquino Corrêa, to see how they as-
sociate the Antique Rhetoric with Christian hermeneutics, to
persuade his listeners. Based on Barthes (1975), Reyes (1961),
Hansen (2013) and Tringali (2014), it observes as the Antique
Rhetoric was constituted historically as art of oratory of antique
Greek and Romans, and how it remained in ecclesiastical stu-
dies. In the analysis of texts, we use works of Hansen (1978),
Saraiva (1980), Mendes (1989) and Pécora (1994), comparing the
rhetorical resources of the two preachers, and demonstrating that
they persuade affectively using the Latin, that gives rhythm and
authority to the discourse. Therefore, Latin, for its rhythm – related
to poetry – and for its authority – related to prophecy – allows
the prophet Vieira to act as a “poet”, and the poet D. Aquino to
act as “prophet”.
Keywords: Rhetoric; sermons; speeches

1. Considerações iniciais
O estudo analítico e comparativo de recortes do conjunto dis-
cursivo de dois destacados oradores de língua portuguesa, Padre
António Vieira e D. Aquino Corrêa, constitui o objetivo fundamental
deste trabalho. Se, contudo, os discursos são díspares quanto ao
tempo – três séculos os separam – e ao lugar que os motivaram,
então, por que aproximá-los? Tanto os sermões de Padre Vieira

48
como os discursos de D. Aquino utilizam-se de elementos da re-
tórica antiga, compreendida como a arte da oratória dos antigos
gregos e latinos, a qual se consolidou fundamentalmente a partir
do pensamento de Aristóteles, Cícero e Quintiliano.
Padre Vieira certamente é o mais conhecido de entre ambos,
principalmente pela influência cultural e política que exerceu tanto
no Brasil como em Portugal durante o séc. xvii. Nascido em Lisboa,
em 6 de fevereiro de 1608, António Vieira veio com a família para o
Brasil em 1614. Em 1623, aos 15 anos, ingressou na Companhia de
Jesus; e logo em 1627 começou a dar aulas de Retórica em Olinda.
Em 1638, foi ordenado sacerdote, tornando-se um dos maiores
oradores de língua portuguesa. Para atestar tal relevância, basta
considerar o epíteto de “Imperador da língua portuguesa”, a ele
atribuído por Fernando Pessoa, em Mensagem.
Já D. Francisco de Aquino Corrêa nasceu em 2 de abril de 1885,
em Cuiabá, capital do estado brasileiro de Mato Grosso, onde viveu
sua infância e realizou seus estudos. Em 1903, ingressou no novi-
ciado da Congregação dos Salesianos de D. Bosco, e de 1904 a 1909,
fez seus estudos filosóficos e teológicos em Roma, sendo ordenado
sacerdote em 17 de janeiro de 1909. Em 1914, com apenas 29 anos,
foi nomeado pelo papa Pio X bispo auxiliar da Arquidiocese de
Cuiabá, tornando-se assim o bispo mais jovem de todo o mundo.
Em 1917, devido a inúmeros conflitos internos no estado de Mato
Grosso, D. Aquino Corrêa foi indicado pelo então presidente da
República, Wenceslau Brás, como candidato ao governo do estado,
a fim de exercer um papel conciliatório. E assim, com 32 anos, foi
eleito governador do estado de Mato Grosso para o período de
1918 a 1922, tornando-se o único clérigo católico a assumir tão alto
cargo político. Grande poeta e orador, D. Aquino foi o primeiro
mato-grossense a ser eleito para Academia Brasileira de Letras.
D. Aquino Corrêa lançou as bases da literatura no estado de Mato
Grosso, tanto enquanto poeta que exaltou a pátria, a natureza e as

49
“verdades eternas”, como enquanto orador que formava a opinião
pública, principalmente na sociedade cuiabana. Mas ele também atuou
por meios institucionais, na fundação da Academia Mato-grossense
de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.
Atualmente, os estudos literários sobre D. Aquino Corrêa têm se
concentrado em sua obra poética. Porém, o enfoque desta pesquisa
se dará em relação aos seus discursos, caracterizados sempre por
um primor linguístico, pela beleza das imagens e pela consistência
de suas ideias.
Diante desse contexto, as semelhanças entre os dois oradores
indicam como pode ser profícua uma análise comparativa de ambos.
Mesmo com a disparidade temporal de cerca de três séculos (da
qual se tem plena consciência, para evitar anacronismos), é possível
identificar, tanto nos sermões do Padre Vieira como nos discursos
de D. Aquino, elementos da retórica antiga que, somados à tradição
cristã da hermenêutica, possibilitaram o desenvolvimento de uma
oratória sacra que visava à persuasão de seus interlocutores, en-
quanto destinatários da salvação.

2. A retórica antiga: sua natureza e desenvolvimento


Definir a retórica antiga é uma tarefa árdua, visto que ela nunca
constituiu um sistema uniforme desenvolvido por um único pen-
sador. Muitos estudos1 demonstram que a retórica foi se constituindo
historicamente, sendo abordada por vários pensadores, tanto para
utilizar suas técnicas, como para contribuir em sua sistematização,
ou para criticá-la.
Até mesmo partindo do aspecto etimológico e morfológico do
termo “retórica”, é possível constatar seu caráter aberto e multiforme,
como argumenta João Adolfo Hansen:

1 Aqui são utilizados Barthes (1975), Hansen (2013), Reyes (1961) e Tringali (2014).

50
[…] entendo o termo ”retórica’ com o sentido que tem na
fórmula grega tékhne rhetoriké, “técnica retórica”, e na latina, ars
rhetorica, “arte retórica”, em que é adjetivo, como em português,
técnica retórica, não substantivo, a Retórica. Com o adjetivo,
evita-se a ilusão da existência de um corpo unitário, fechado
e acabado, como saber ou objeto positivo que apenas espera
reconhecimento. Com a subtração do substantivo, também se
elimina esse idealismo e ressalta-se a materialidade contin-
gente das práticas que recorrem às técnicas retóricas. (Hansen,
2013: 12, grifo nosso)

Historicamente, a retórica nasce na Grécia no séc. v a.C., mais es-


pecificamente em Siracusa, na Silícia, com Empédocles de Agrigento,
Córax e Tísias. Nesse contexto da democracia grega, as técnicas
retóricas serviam como um instrumento para resolver, de forma não
violenta, todas as controvérsias que surgiam. Em 427 a.C., a retórica
é levada a Atenas pelo sofista Górgias (490-388 a.C.), que abre as
primeiras escolas onde se ensina a arte de persuadir, “patrocinando,
sem escrúpulos, o justo e o injusto, por meio de discursos ‘sofis-
ticados’, ornamentados com figuras de estilo” (Tringali, 2014: 96).
Criticando as técnicas dos sofistas, Platão (427-347 a.C.), em
seus diálogos Górgias, Fedro e Apologia de Sócrates, propõe uma
nova retórica, “não desligada da verdade”. Nesse sentido, percebe-se
que a retórica platônica se limitaria a fazer uma “demonstração”
pelo discurso, afastando-se, assim, do sentido originário da retó-
rica, que estava relacionado a uma disputa de opiniões prováveis.
Até então, a retórica pretendia discutir, por meio de discursos,
questões em conflito, que ainda estavam abertas; mas, com Platão,
ela passa a ser uma lição de filosofia, caracterizada pela busca
obrigatória da verdade.
Diante desse cenário, coube a Isócrates (436-338 a.C.) a missão
de defender a retórica tanto dos “ataques” de Platão como das “prá-

51
ticas injustas” dos sofistas. Contra Platão, Isócrates argumentou que
“incumbe ao homem conhecer não só a verdade, mas conviver com
o mundo da opinião” (Tringali, 2014: 97), visto que a finalidade
da retórica não é conduzir para a verdade, mas persuadir sobre
determinada opinião. Contra os sofistas, ele defendeu a unidade
entre a retórica e a sabedoria, a fim de promover a educação in-
tegral do homem.
De acordo com Hansen (2013: 17), Isócrates e Aristóteles foram
os que desenvolveram “as sistematizações das técnicas retóricas
dos gêneros oratórios gregos”. No entanto, ele destaca que essas
sistematizações “foram matéria de muitíssimos usos que, a cada
vez, generalizaram o nome ‘Aristóteles’ como princípio unitário de
autorização da autoria e da autoridade da discursividade: ‘A Retórica
segundo Aristóteles’” (Hansen, 2013: 17). Certamente, esse destaque
dado à abordagem de Aristóteles deve-se à mudança realizada em
relação aos seus predecessores:

Aristóteles escreveu a Retórica para contestar o tratamento


deficiente e pouco filosófico que Isócrates havia aplicado ao
tema. Os “tecnólogos” de quem ele fala com menosprezo – Córax,
Calipo, Pánfilo, Teodoro – extremavam o amor de seu ofício […]
Aristóteles vira as costas desdenhosamente para seus antecessores,
incapazes de organizar os elementos dispersos de seu empirismo,
nem de abarcar em suas compilações todas as espécies retóricas,
e solta respeitosamente a mão de seu mestre. Este queria reduzir
a retórica à moral. Sem abandonar o fim moral, o discípulo quer
entender a retórica dentro de sua própria natureza, e averiguar
até onde está apta para por à prova as teses contrárias, antes de
empregá-la como um instrumento para o bem da sociedade hu-
mana. (Reyes, 1961: 216, tradução nossa)

52
Assim, discordando de Córax, Isócrates e Platão, e evitando
polemizar com a abordagem dos sofistas, Aristóteles, define a re-
tórica como a “capacidade de descobrir o que é adequado a cada
caso com o fim de persuadir” (Aristóteles, 2005: 95). Descrevendo
a estruturação das obras do filósofo grego, Roland Barthes expõe
como ocorre a teorização da retórica aristotélica:

Aristóteles escreveu dois tratados sobre os fatos do discurso,


mas ambos são distintos: a Techne rhetorike trata de uma arte
da comunicação cotidiana, do discurso em público; a Techne
poietike trata de uma arte da evocação imaginária. […] Ambas
são, para Aristóteles, dois encaminhamentos específicos, duas
“technai” autônomas; e é a oposição desses dois sistemas, um
retórico e outro poético, que, de fato, define a retórica aristoté-
lica. (Barthes, 1975: 155)

Como observa Hansen: “Obviamente, os preceitos aristotélicos


da Poética se aplicam à ficção da tragédia e da epopeia, enquanto
os da sua Técnica Retórica especificam as técnicas dos gêneros
oratórios” (Hansen, 2013: 13).
Até aqui foram apresentados os expoentes da retórica grega.
Agora, porém, é indispensável tratar do desenvolvimento das téc-
nicas retóricas em Roma, pois, como destaca Dante Tringali (2014:
93): “A Retórica Antiga nasce na Sicília, na Magna Grécia, cresce
e se nutre em Atenas e do porto do Pireu se expande mar afora.
Conquista Roma e domina todo o Império Romano”. E acrescenta:
“Depois de muitas vicissitudes, a Retórica se implanta em Roma e
de Roma se difunde para a posteridade” (Tringali, 2014: 101).
A introdução da retórica grega em Roma ocorreu de modo atri-
bulado, sofrendo resistência do partido nacionalista, que tentava
sobrepor os valores romanos aos gregos. No entanto, gradativa-
mente foram se instalando escolas de rétores gregos em Roma, e

53
posteriormente oradores latinos. O tratado latino mais antigo é a
Rhetorica ad Herennium, publicado por volta de 85 a.C. Por sua
completude, esse manual exerceu muita influência no ensino de
Retórica, sobretudo na Idade Média. Sendo anônimo, sua autoria foi
indevidamente atribuída a Cícero; mas estudos recentes acreditam
que seu autor seria Cornifício.
Entre os latinos, os dois grandes expoentes da retórica antiga foram
Cícero e Quintiliano. O primeiro, Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), foi
tanto um rhetor (um mestre) quanto um orator (um orador). Como
mestre de retórica, escreveu os seguintes tratados: De inventione,
De oratore, De partitione oratoria, Brutus, Orator, De optimo genere
oratorum e Topica. Como orador, é considerado um dos maiores de
todos os tempos, sendo proposto como modelo de estilo nas escolas
jesuíticas. Cícero, contrariando Platão, defende que a retórica não
busca a verdade, mas a verossimilhança. Ele parte fundamentalmente
do pensamento de Aristóteles, porém, evita algumas sistematizações
elaboradas pelo filósofo grego.
Enquanto Cícero destacou-se como rétor e orador, Marco Fábio
Quintiliano (35-100) destacou-se exclusivamente como rétor, sendo
um dos grandes mestres da educação retórica. Em sua obra De insti-
tutione oratoria, ele realiza a consolidação de toda a retórica antiga,
alternando entre a influência de Aristóteles, de Platão e de Catão.
Segundo alguns comentadores, Quintiliano defende que a retórica é
a arte de falar bem, e não de persuadir, opondo-se, nesse aspecto,
a Isócrates, Aristóteles e Cícero.
Nesse percurso histórico, foram apresentados os principais nomes
da retórica antiga, desenvolvida tanto pelos gregos como pelos
latinos. Porém, é necessário mencionar que o desenvolvimento da
retórica não se encerra com esses autores, visto que suas técnicas
são utilizadas constantemente ao longo da Idade Média, e, com a
fundação da Companhia de Jesus, em 1540, passam a fazer parte do
ensino do Trivium – Gramática, Retórica e Lógica (Hansen, 2013: 20).

54
Mesmo que a retórica antiga não tenha se constituído como
um sistema fechado e uniforme, é possível identificar algumas
obras que lançaram suas bases teóricas, entre as quais a Techne
rhetorike de Aristóteles, os tratados de Cícero, e De institutione
oratoria de Quintiliano.

2.1. As partes constitutivas da retórica antiga


Tradicionalmente, os teóricos da retórica antiga concordam em
identificar cinco partes constitutivas da retórica: a invenção, a dis-
posição, a elocução, a memória e a ação. Essas cinco partes estão
propostas em função de dois elementos essenciais, que estão mais
especificamente ligados ao discurso, a saber: o tema e a questão.
Assim, as cinco partes referem-se à retórica em sua totalidade, en-
quanto que os dois elementos referem-se propriamente ao discurso.
Em relação aos elementos essenciais de um discurso retórico,
podem ser conceituados da seguinte forma: o tema é o assunto prin-
cipal do texto; enquanto que a questão é o tema problematizado,
ou seja, é quando o tema deixa de ser objeto de mera exposição
e passa a provocar uma controvérsia. Nesse sentido, o tema está
presente em qualquer texto, mas em um discurso retórico o tema
precisa se transformar em uma questão, tornando-se objeto de
polêmica entre duas posições divergentes. Deste modo, o discurso
retórico procura persuadir seus ouvintes a aceitar determinada
posição acerca de uma questão.
Quanto às partes da retórica, deve-se dizer que consistem, na
verdade, em cinco operações principais da techne rhetorike: invenção
(em latim inventio, em grego heuresis), disposição (em latim dispo-
sitio, em grego taxis), elocução (em latim elocutio, em grego lexis),
memória (em latim memoria, em grego mneme) e ação (em latim
actio, em grego hypocrisis) (Barthes, 1975: 182).
A invenção é o momento de descoberta dos argumentos, após
ter sido posta a questão. O orador busca o que vai dizer – “quid

55
dicat” – bem como as provas para fundamentar o que será dito.
Aristóteles argumenta que, na retórica, tudo sobre o que não se
tem provas é irrelevante. O filósofo grego também distingue as
provas em intrínsecas 2 (quando se comprova algo por meio de
uma definição, divisão ou etimologia) e extrínsecas 3 (quando se
prova algo por meio de uma testemunha, fato ou objeto material).
As provas intrínsecas derivam da formação e habilidade do orador
enquanto orador; ao passo que as provas extrínsecas se apresentam
ao orador, que toma posse delas e as reelabora, encaixando-as no
discurso (Tringali, 2014: 135).
No entanto, não cabe à invenção apenas encontrar as provas e
argumentos. Como atividade dialética, ela abrange duas operações:
achar e julgar. Cícero destacou esse duplo papel da invenção: “in-
venire”, isto é, achar os argumentos; e “iudicare”, ou seja, avaliar a
relevância dos argumentos encontrados. Deve-se também mencionar
que, na retórica, nenhuma prova é incontestável, mas todas as provas
são verossímeis, sempre admitindo a contestação. Até mesmo uma
prova eventualmente verdadeira, no conjunto das provas, reveste-se
do caráter da verossimilhança.
A segunda parte da retórica é a disposição, que consiste na
tarefa de organizar metodicamente o discurso. Após ter juntado
criticamente seus argumentos na invenção, o orador precisa colocar
cada coisa que vai dizer no seu devido lugar – “quo loco dicat” – a
fim de que nada fique solto ou desconexo. Para isso, a disposição

2 As provas intrínsecas se dividem em lógicas e psicológicas. As provas lógicas


se dividem em dedutivas (os silogismos, enquanto expressão de um raciocínio
encadeado) e indutivas (os exemplos, que são relatados mediante a narração de
pequenos fatos). Já as provas psicológicas, por sua vez, dividem-se em éticas (que
transmitem uma imagem moral daqueles que estão envolvidos no discurso) e pa-
téticas (que se referem às paixões e sentimentos que o orador explora e incita em
seus ouvintes). Cf. Barthes, 1975: 184-205; Tringali, 2014: 135-148.
3 As provas extrínsecas estão baseadas no testemunho, que pode ser de uma
pessoa, coisa ou evento. É entre as provas extrínsecas que se encontra a citação, a
qual possibilita as relações de intertextualidade.

56
exige basicamente dois procedimentos distintos: 1) dividir o discurso
em partes preestabelecidas; 2) distribuir o material encontrado em
cada uma dessas partes, e dentro de cada parte colocar cada coisa
no lugar mais adequado, de modo que todas as partes estejam em
harmonia entre si (Tringali, 2014: 158). Quanto a essa divisão do
discurso que compõem a disposição, é possível mencionar seis partes
que são aconselhadas no De Inventione, de Cícero, e na Rhetorica
ad Herenium, a saber: 1) o exórdio, enquanto parte introdutória,
que estabelece o primeiro contato entre o orador e seu público;
2) a narração, que relata fatos que contextualizam a argumentação;
3) a proposição, que consiste em uma sentença que responde à
questão inicial do discurso, e que direciona toda sua produção;
4) a partição ou divisão, que é a enumeração dos principais pontos
da proposição a serem desenvolvidos no discurso; 5) a argumen-
tação, enquanto organização dos argumentos encontrados durante
a invenção, que pode dividir-se em duas frentes, a confirmação
dos próprios argumentos e a refutação dos argumentos adversários;
6) e a peroração, que é a conclusão do discurso. Em outros tratados
de Cícero e de Quintiliano, e na própria Retórica de Aristóteles,
são mencionadas outras partes opcionais do discurso, como a
digressão, a altercação e a amplificação, que, devido ao seu ca-
ráter eventual, não serão aprofundadas.
Posteriormente, segue-se a elocução, que consiste no melhor
modo de dizer o que se tem a dizer – “quo modo dicat”. A elocução
é quando o orador registra, de algum modo, o material pesquisado
e organizado. O modo mais comum e conveniente de registrar é
escrevendo o discurso: “uma vez encontrados e repartidos os argu-
mentos maciçamente nas partes do discurso precisam ser ‘traduzidos
em palavras’: é a função dessa terceira parte da techne rhetorike”
(Barthes, 1975: 212). Ou seja, nesse terceiro momento da retórica,
todo o empenho se concentra particularmente no nível da lin-
guagem verbal. Aqui, nota-se que os estilos e figuras de linguagem

57
influenciam significativamente na argumentação do discurso e,
consequentemente, na persuasão dos ouvintes.
Cícero e Quintiliano elencam quatro características fundamentais
a serem desenvolvidas na elocução: a adequação da linguagem, a
correção gramatical, a clareza do discurso e sua elegância. No que
tange à elegância ou ornamentação, deve-se destacar que a beleza
do estilo não se trata da beleza pela beleza, mas de uma beleza
funcional, que tem em vista reforçar a argumentação. Essas qua-
lidades estéticas da linguagem são alcançadas principalmente por
meio das figuras de estilo, utilizadas prioritariamente com uma
finalidade retórica:

Na elocução, ao se buscar a elegância, as figuras acabam por


ocupar uma posição central. […] Na Retórica, o objetivo não é
sobrecarregar um discurso com figuras desnecessárias, o que
leva ao preciosismo, ao pedantismo. As “figuras de estilo” devem
se converter acima de tudo em “figuras retóricas”, utilitárias na
medida em que ilustram e ajudam a provar. Secundariamente, elas
exalam um perfume poético. (Tringali, 2014: 176)

Conforme observa Hansen (2013: 27): “As três divisões – invenção,


disposição, elocução – são propriamente verbais, dando conta da
produção do enunciado”. Quando pronto, recorre-se à mneme
memória, e à hypocrisis, actio ou ação, propriamente enunciativas
e pragmáticas. Assim, a quarta parte da retórica, a memória, con-
siste na memorização integral ou parcial do discurso, decorando-o
ipsis litteris ou retendo, no mínimo, seus pontos essenciais. Esse é
o momento em que se confia à memória aquilo que se inventou,
dispôs e redigiu. Mesmo que a função principal da memória esteja
ligada à enunciação, como destacou Hansen anteriormente, deve-se
observar que ela também exerce influência sobre a produção do

58
discurso, de tal modo que os antigos diziam que ela era o tesouro
da eloquência, “thesaurus eloquentiae” (Tringali, 2014: 130).
Por fim, a quinta parte da retórica é a ação, que consiste na
declamação do discurso diante do auditório. A ação compreende
tanto a pronunciação como também a gesticulação. Assim, a primeira
se destina aos ouvidos, e a segunda, aos olhos. Evidentemente, a
voz possui primazia sobre os gestos, de modo que a gesticulação
serve à pronunciação.
Como já observado, essas cinco partes da retórica estão divididas
em dois módulos: 1) o módulo da produção, que abarca a invenção
(que se refere ao conteúdo), e a disposição e a elocução (que se
referem à expressão); 2) e o módulo da comunicação, constituído
pela memória e pela ação. Diante dessa divisão, a análise de-
senvolvida neste trabalho enfatizará o primeiro módulo, 4 visto
que é o que se pode ter acesso por meio dos textos de Vieira e
de D. Aquino. Isso não significa que tais pregadores não tenham
utilizado o segundo módulo (a memória e a ação). Ao contrário,
os relatos históricos e biográficos atestam que ambos não apenas
liam, mas incorporavam suas pregações, usando-se de seu potencial
mnemônico, e da gesticulação.

2.2. A retórica antiga na formação eclesiástica


Diante do que foi exposto acerca da retórica antiga, alguém
poderia levantar o seguinte questionamento: não seria um anacro-
nismo comparar Vieira e D. Aquino, sendo um do séc. xvii e outro
do séc. xx ? Ou, ainda: não seria um anacronismo tentar relacionar
esses dois oradores, que estão distantes por três séculos, com os
mecanismos da retórica antiga, cujo início data do séc. v a.C.?

4 Roland Barthes também não analisa o segundo módulo, por não ser acessível
por meio das obras escritas (Barthes, 1975: 182).

59
Justamente para evitar anacronismos na análise comparativa
dos sermões do Padre Vieira e dos discursos de D. Aquino, é ne-
cessário considerar um elemento em comum que possibilitou o
contato de ambos com a retórica antiga. Nesse sentido, é de suma
relevância o fato de que ambos foram clérigos: o primeiro foi um
padre da Companhia de Jesus; o segundo, oriundo da Congregação
dos Salesianos, chegou ao episcopado. Mais do que um mero dado
biográfico, a formação eclesiástica de ambos é determinante para
esta análise, visto que foi no ensino jesuítico que a retórica antiga
encontrou sua “sobrevivência” (Barthes, 1975: 175).
Nesse contexto, é importante considerar que, desde a institu-
cionalização dos seminários pelo Concílio de Trento, em 1563, os
Jesuítas sempre estiveram, de certo modo, vinculados à formação
sacerdotal. E, ao observar a organização curricular da Ratio
Studiorum – documento publicado em 1599, que estabelece as di-
retrizes do método educativo dos Jesuítas –, é possível identificar
dois elementos que contribuíram para a difusão e continuidade
dos princípios da retórica antiga, a saber: a filosofia aristotélico-
-tomista, por fornecer indiretamente instrumentais teóricos para
a compreensão das técnicas retóricas de Aristóteles; e o curso de
Humanidades, tanto pelo ensino dos preceitos da retórica antiga,
como pelo estudo das línguas clássicas e de suas literaturas.
Os oradores que aqui são analisados, Padre António Vieira e
D. Aquino Corrêa, embora em tempos distintos, foram formados
sob a influência das concepções educacionais da Companhia de
Jesus. Vieira, desde jovem, estudou em um Colégio dos Jesuítas
em Salvador e, posteriormente, ingressou na referida congregação,
onde se tornou sacerdote. E ele não apenas foi formado dentro
desse modelo educacional, como também foi formador, tanto que,
com apenas 17 anos, já tinha sido “nomeado professor de retórica
no colégio dos padres em Olinda” (Besselaar, 1981: 12).

60
Já D. Aquino, mesmo sendo da Congregação dos Salesianos de
D. Bosco, estudou, entre 1904 e 1909, na Pontifícia Universidade
Gregoriana (dirigida pelos Jesuítas), na qual se doutorou em Filosofia
e em Teologia (Cometti, 1994: 74). Obviamente que, nesse período,
não havia mais a primazia cultural da Companhia de Jesus, nem o
predomínio do método pedagógico da Ratio Studiorum. No entanto,
as bases da formação sacerdotal lançadas pelos Jesuítas já haviam
sido assimiladas institucionalmente pela Igreja, sendo que muitos de
seus aspectos foram ratificados por documentos papais. Um exemplo
disso é a orientação da Igreja – na carta encíclica Aeternis Patris
(1879) do papa Leão XIII, e no decreto Optatam Totius (1965) do
Concílio Vaticano II – de que a formação filosófica seminarística
seja pautada nos ensinamentos de S. Tomás de Aquino, os quais
se fundamentam na filosofia de Aristóteles, que, por sua vez, é o
substrato da retórica antiga.
Quanto à formação de D. Aquino Corrêa nas Humanidades –
cujos frutos encontram-se nas citações e alusões que faz aos poetas
e oradores clássicos, em seus discursos e poemas – certamente foi
contribuída por sua formação na Universidade Gregoriana, sob a
tutela da Companhia de Jesus, que historicamente sempre esteve
marcada por um “entusiasmo humanista” (Guillermou, 1977: 23).
No entanto, tal formação não seria tão eficaz sem sua notável in-
teligência, que lhe possibilitou a condição de autodidata em latim
e grego. Desde seus 15 anos, D. Aquino dedicou-se a apreender
sozinho o latim, para poder ler diretamente nos originais os poemas
de Virgílio, e observou: “penso que o latim tenha dado mais se-
riedade às minhas pretensões humanísticas” (Corrêa, 1985c: 285).
Desta forma, a formação eclesiástica, por meio do legado retórico
e humanístico dos Jesuítas bem como pela ratificação pontifícia
dos estudos tomistas, possibilitou a ingerência dos instrumentais
da retórica antiga nos escritos de Vieira e de D. Aquino.

61
3. A retórica hermenêutica de Vieira
Muitos são os autores que analisaram a presença da retórica antiga
nos sermões do Padre Vieira. Entre eles, pode-se destacar: António
José Saraiva, com sua obra O Discurso Engenhoso; Margarida Vieira
Mendes, em A Oratória Barroca de Vieira; João Adolfo Hansen, em
seu texto Vieira, Estilo do Céu, Xadrez de Palavras; e Alcir Pécora,
em sua obra O Teatro do Sacramento.
Particularmente no “Sermão da Sexagésima”, poder-se-ia falar
em uma dupla presença dos princípios da retórica antiga, visto que
são constatados tanto na forma como o sermão está organizado,
como em seu conteúdo. Esse último aspecto pode ser exemplifi-
cado pela abordagem de quatro das cinco operações da Retórica.
Nos caps. iv e vii do “Sermão da Sexagésima”, Vieira aborda a in-
venção. No cap. vi, quando ele orienta sobre a divisão das partes de
um sermão (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 61), está referindo-se
à disposição, na qual o jesuíta trata das seis partes do discurso,
propostas no De inventione, de Cícero, e na Rhetorica ad Herenium
(Mendes, 1989: 179). Já o cap. v do sermão contempla a elocução,
enquanto operação na qual se busca o melhor modo de expressão.
E o cap. viii trata da actio, restringindo-se à temática da voz (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, II: 65-66).
No entanto, é necessário destacar que os sermões de Vieira não
se reduzem a uma mera aplicação dos princípios da retórica antiga
ao contexto discursivo do catolicismo. Até porque a Igreja havia
decidido, no Concílio de Trento, esforçar-se pela “recristianização do
orador eclesiástico, sobretudo com a leitura dos Padres” (Mendes,
1989: 66). Porém, à medida que a Companhia de Jesus foi assu-
mindo a primazia cultural do Ocidente, no fim do séc. xvi , essa
decisão conciliar foi sendo adaptada. Os Jesuítas, com sua formação
humanista, sistematizada na Ratio Studiorum, buscaram conciliar
a retórica antiga com a tradição cristã, celebrando “o orador reto-
ricamente competente e, ao mesmo tempo, imitador de Cristo, dos

62
Apóstolos e de S. Paulo” (Mendes, 1989: 66). É nesse sentido que,
no “Sermão da Sexagésima”, Vieira destaca os referenciais a partir
dos quais trata da arte de pregar:

Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só


com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas
com a prática observada do príncipe dos Oradores Evangélicos,
São João Crisóstomo, de São Basílio Magno, São Ber nardo,
São Cipriano, e com as famosíssimas orações de São Gregório
Nazianzeno. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 62)

Tem-se, portanto, uma associação entre a retórica antiga e a


hermenêutica cristã, visto que:

[…] os acontecimentos históricos e suas redes de causas


exigem ser interpretados como articulações de um relato tão inspi-
rado quanto o das Escrituras. Daí a importância, para os oradores
sacros, de associar a tradição cristã da exegese bíblica, enquanto
ciência da interpretação alegórica dos sentidos das Escrituras,
àquela da retórica antiga, mais restrita à análise dos enunciados
persuasivos. (Pécora, 2014a: 11-12)

Ao falar do “Sermão da Sexagésima”, Hansen enfatiza que “a


astúcia desse sermão consiste em reconverter as regras retóricas
às da hermenêutica […] como se já houvesse, inscrita em tudo,
também uma retórica natural” (Hansen, 1978: 174). Essa associação
pressupõe o conceito tomista de analogia entis, segundo o qual as
criaturas são, de certo modo, análogas ao Criador, uma vez que “há
necessariamente uma relação e, por conseguinte, uma certa seme-
lhança entre o efeito e a causa” (Gilson, 2007: 662). Assim, tanto os
objetos naturais quanto o intelecto humano são análogos ao ser de
Deus. Esse é o fundamento da “retórica hermenêutica de Antônio

63
Vieira”, que “ressalta da analogia tomista […] o topos de que o co-
nhecimento racional da natureza corresponde a uma descoberta de
pistas deixadas por Deus para servir de guia para suas criaturas”
(Pécora, 1994: 147).
Sob esse prisma, pode-se compreender o que António J. Saraiva
identificou como a “retórica das coisas”, na qual “o esforço do pre-
gador exegeta […] deve convergir tanto para as coisas como para
as palavras” (Saraiva, 1980: 79), considerando que “a explicação das
coisas é também uma explicação do texto” (Saraiva, 1980: 80). O autor
afirma que “Vieira, assim como respinga aqui e ali textos para re-
forçar o texto do tema, apropria-se de fatos naturais ou históricos
que submete a uma verdadeira exegese textual” (Saraiva, 1980: 81).
Nesse sentido, Alcir Pécora destaca que “o sermão constitui-se
analogamente à retórica divina impressa, desde sempre, nas coisas
criadas, que a hermenêutica, todavia, apenas descobre gradualmente,
no discurso do tempo” (Pécora, 2014a: 13). Desta forma, o próprio
sermão e sua engenhosidade retórica são analogias do universo
engenhoso e ordenado, que, por sua vez, reflete os atributos de
seu Criador:

[…] a elocução engenhosa, aguda, difícil, acomoda-se per-


feitamente bem à hermenêutica, cuja tarefa é descobrir nos
objetos os sinais de Deus. Quer dizer, a agudeza verbal, que
busca relações ocultas entre objetos extremos, repõe no dis-
curso o mesmo processo alegórico-misterioso que está posto
nas coisas criadas e que necessariamente assinalam o Criador.
(Pécora, 2014b: 19)

Nessa concepção, “o sermão atua como uma hermenêutica


factual cuja interpretação preenche os lugares da invenção retórica”
(Pécora, 2014a: 13). Tem-se, portanto, a utilização dos instrumentais
da retórica antiga, porém, sob a ressignificação da hermenêutica

64
cristã, compreendida tanto enquanto exegese bíblica como enquanto
interpretação dos acontecimentos históricos.
Essa retórica hermenêutica é utilizada por Vieira em seus sermões
num todo; porém, especificamente no “Sermão da Sexagésima”, ela
é tanto o substrato a partir do qual são expressos os preceitos ora-
tórios, como constitui o próprio conteúdo de tais preceitos.

4. Entre a profecia e a poesia: os recursos retóricos nos sermões


de Vieira e nos discursos de D. Aquino Corrêa
Por ser Vieira o pregador por antonomásia, é uma tarefa árdua,
e até arriscada, compará-lo com outros oradores. Corre-se sempre
o risco de perder-se em anacronismos ou em valorações simplórias.
Tendo consciência desses riscos e buscando evitá-los, pretende-se
aqui comparar os sermões de Vieira e os discursos de D. Aquino, no
que se refere aos seus recursos retóricos. Dois membros da Academia
Mato-Grossense de Letras, Corsíndio Monteiro da Silva e João Antônio
Neto, já sugeriram tal comparação, mas sem aprofundá-la. O primeiro
destacou: “Tanto quanto do Padre Vieira, de Dom Aquino se poderá
dizer haver realizado e sintetizado o ideal do grande orador!” (Silva,
1984: 32). O segundo salientou o prestígio que ambos possuíam em
suas épocas: “[…] como Vieira que deslumbrou as Cortes europeias
de Roma, Paris, Haia e Estocolmo, foi Dom Aquino o embaixador
da eloquência brasileira” (Neto, 1982: 128).
Assim, aprofundando essa comparação de forma mais detalhada,
pode-se dizer que os dois oradores utilizaram-se de instrumentais da
retórica antiga, associando-os, porém, à hermenêutica. Nesse sentido,
são constatados os seguintes paralelos entre ambos: 1) Padre Vieira
e D. Aquino partiram de uma questão (quaestio), enquanto proble-
matização de um tema, considerando-a o motor de seu discurso;
2) para responder a questão inicial do discurso, eles desenvolviam
as três primeiras operações retóricas – invenção, disposição e elo-
cução – sempre tomando por base o conceito tomista de analogia

65
entis, o qual possibilitava a primazia da hermenêutica desde o pri-
meiro momento da invenção, no qual buscavam seus argumentos e
provas; 3) durante a disposição, de modo geral, ambos seguiam as
seis partes do discurso – exórdio, narração, proposição, partição,
argumentação e peroração; 4) por fim, na elocução, o jesuíta e o
salesiano desenvolveram um “discurso engenhoso”, cujos recursos
retóricos persuadem tanto pela via lógica, quanto pela afetiva.
Nos dois oradores, a elocução proporciona uma correspondência
de atributos entre ambos: o “profeta Vieira”5 demonstra-se também
poeta, e o “poeta D. Aquino” 6 revela-se também profeta. Mesmo
parecendo uma constatação ousada, é necessário seguir a demons-
tração desses paralelos para compreendê-la.
Quanto ao primeiro paralelo, acerca da utilização de uma questão
como motor do discurso, em Vieira, podem ser tomadas como
exemplo as famosas indagações do “Sermão da Sexagésima”:

[...] Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem


tantos Pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra
de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem, que em
um Sermão entre em si, e se resolva; não há um moço, que se
arrependa; não há um velho, que se desengane: que é isto? Assim
como Deus não é hoje menos Omnipotente; assim a Sua palavra
não é hoje menos poderosa, do que dantes era. Pois se a palavra
de Deus é tão poderosa, se a palavra de Deus tem hoje tantos
pregadores: porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de
Deus? (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 49)

5 Historicamente, sempre se falou de Vieira como o profeta do Quinto Império,


destacando-se sua obra Clavis Prophetarum.
6 Como destaca seu biógrafo, padre Pedro Cometti: “É voz comum, entre os que
o conheceram e acompanharam, com inteligência e afeto, sua vida literária, que
Dom Aquino foi, acima de tudo, poeta” (Cometti, 1994: 525).

66
Seguindo os preceitos da retórica antiga, depois de problematizar
o tema do sermão por meio da questão, Padre Vieira apresenta
a proposição, enquanto uma proposta de resposta ao problema
levantado: “Sabeis, Cristãos, porque não faz fruto a palavra de
Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, Pregadores, porque não
faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, II: 52).
D. Aquino Corrêa procede de for ma semelhante; porém,
sendo mais breve que Vieira na contextualização da questão, e,
consequentemente, apresentando a proposição logo em seguida.
Nesse sentido, é exemplar o discurso “A noiva dos sábios”,7 em que
questão e proposição estão tão próximas textualmente que, num
primeiro momento, a proposição é apresentada de forma interroga-
tiva, como se fosse uma consequência lógica dos questionamentos
que a antecedem:

A instituição do paraninfado acadêmico inculca a ideia etimo-


lógica e festiva de um noivado. Nas idades antigas, como sabeis,
e na moderna, perdura o costume, paraninfo era aquele que entre
harmonias e flores, acompanhava os noivos desde o teto paterno
até o lar nupcial.
[…] Dizei-me em verdade, ó jovens, quem vos levou a deixardes
a liberdade e as doçuras da casa materna pelos muralhões severos
do ginásio? Quem vos fez trocar os lampadários e as harmonias
dos saraus alegres, por essa lâmpada solitária e muda das vigílias
estudiosas? Por quem foi que preferistes, ao fantasiar quimérico da
adolescência, a meditação grave e metódica das ciências e letras?
Por quem, senão pela Verdade, por essa Verdade, que vos falava

7 Em 31 de julho de 1910, ao paraninfar uma turma de bacharéis em Letras do


Liceu Cuiabano.

67
nos lábios dos vossos mestres, sorria-vos dentre as laudas dos
livros e alvorecia nos horizontes das vossas lucubrações austeras?
Eu te saúdo, pois, ó noiva dos sábios! Verdade, que és o mesmo
Deus! (Corrêa, 1985a: 16)

Em relação ao segundo aspecto, sobre a utilização da hermenêu-


tica durante o momento da invenção retórica, é necessário fazer
algumas distinções acerca do contexto em que Vieira pregou seus
sermões, e em que D. Aquino proferiu seus discursos. Por sua pró-
pria natureza, um sermão está vinculado ao contexto litúrgico da
missa, tendo necessariamente a hermenêutica como instrumento
interpretativo dos textos bíblicos. No entanto, Vieira amplia sua área
de interpretação, aplicando a hermenêutica tanto para a exegese
bíblica como para a interpretação de acontecimentos históricos.
Desta forma, partindo do texto bíblico e pressupondo a relação
de analogia entre as criaturas e seu Criador, o jesuíta interpreta os
mais variados eventos. Nesse sentido, em seu “Sermão da Primeira
Dominga da Quaresma” de 1653, pregado aos colonos do Maranhão,
ele parte do episódio em que o demônio tenta Cristo no deserto, e o
relaciona com a situação dos índios escravizados. Vieira argumenta
que o demónio prometera a Jesus o mundo inteiro, em troca de sua
alma: “o demónio […] oferece por uma alma o mundo todo; porque
vale mais uma alma, que todo o mundo” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, II: 228). E, de forma brilhante, compara esse fato bíblico
com a realidade dos colonos da região, que trocam suas almas pela
escravidão dos índios:

A que diferente preço compra hoje o demónio as almas, do que


oferecia por elas antigamente! Já nesta nossa terra vos digo eu!
Nenhuma feira tem o demónio no mundo, onde lhe saiam mais
baratas. No nosso Evangelho ofereceu todos os Reinos do mundo
por uma alma: no Maranhão não é necessário ao demónio tanta

68
bolsa para comprar todas; não é necessário oferecer mundos; não
é necessário oferecer Reinos; não é necessário oferecer Cidades,
nem Vilas, nem Aldeias. Basta acenar o diabo com um tujupar
de pindoba, e dois Tapuias; e logo está adorado com ambos os
joelhos: Si cadens adoraveris me. Oh que feira tão barata! Negro
por alma; e mais negra ela, que ele! “Esse negro será teu escravo
esses poucos dias que viver; e a tua alma será minha escrava por
toda a eternidade, enquanto Deus for Deus”. Este é o contrato,
que o demónio faz convosco; e não só lho aceitais, senão que lhe
dais o vosso dinheiro em cima. (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
II: 232-233)

Esse recurso hermenêutico também é utilizado por D. Aquino


Corrêa, porém em circunstâncias distintas. Ao contrário dos sermões
de Vieira, os discursos do arcebispo de Cuiabá não se restringiam
ao contexto litúrgico da missa, pois foram proferidos em cerimônias
religiosas, eventos culturais e atos cívicos. Mesmo com essa diversi-
dade circunstancial, o religioso também se utilizou de uma retórica
hermenêutica, interpretando os acontecimentos históricos sob o
prisma da revelação divina. Nesse sentido, no discurso “Meus ideais
literários”,8 Aquino destaca como seus “lídimos ideais […] a religião
e o patriotismo: Deus e Pátria!” (Corrêa, 1985a: 236). Cultivando
esses ideais religiosos e patrióticos, por meio dos recursos da retó-
rica antiga, D. Aquino insere a hermenêutica na invenção retórica
de seus argumentos, como em seu discurso “Bispo e presidente de
Estado”, 9 em que faz uma releitura da calamitosa situação política
do estado de Mato Grosso, a partir da parábola do bom samaritano:

8 Em 21 de maio de 1927, em Cuiabá, na festa oferecida pelo Centro Mato-


-grossense de Letras, pela eleição do autor para a Academia Brasileira de Letras.
9 Em 25 de outubro de 1917, ao aceitar a candidatura à presidência do estado de
Mato Grosso, para exercer um papel conciliatório em meio aos conflitos políticos.

69
Ia-se-me entregar nos braços um Estado agonizante. Saía ele
estrangulado e semimorto, dentre as garras da mais angustiosa
crise, vestes estraçalhadas e feridas abertas, a lhe verterem o
derradeiro sangue.
Que consolação e que glória para um Bispo, ser o samaritano
da sua terra! (Corrêa, 1985a: 66)

Quanto ao terceiro paralelo, sobre as seis partes do discurso – exór-


dio, narração, proposição, partição, argumentação e peroração –
era um verdadeiro preceito oratório seguir tal disposição. Preceito
este que o próprio Vieira ratifica no “Sermão da Sexagésima”:

Há de tomar o pregador uma só matéria; há de defini-la,


para que se conheça; há de dividi-la, para que se distinga; há
de prová-la com a Escritura; há de declará-la com a razão; há de
confirmá-la com o exemplo; há de amplificá-la com as causas,
com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências, que
se hão de seguir, com os inconvenientes, que se devem evitar; há
de responder às dúvidas; há de satisfazer às dificuldades; há de
impugnar, e refutar com toda a força da eloquência os argumentos
contrários; e depois disto há de colher, há de apertar, há de con-
cluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar.
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 61)

Essa divisão das partes do discurso era tão fundamental que,


na única vez em que Vieira não a segue totalmente, ele mesmo faz
notar a ausência de um de seus elementos. Isso ocorreu no “Sermão
da Primeira Sexta-Feira da Quaresma” de 1651, pregado na Capela
Real: “[…] seguia-se agora exortar os Príncipes a este amor, e be-
neficência […]. Mas este meu Sermão hoje será a primeira oração
Evangélica, que contra todas as Leis da Retórica acabará sem pero-
ração” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 222-223).

70
Tal observação das seis partes do discurso também é encontrada
em D. Aquino. Seus discursos mais longos estão divididos em seções,
cujos nomes referem-se ao argumento que ali é defendido. Nesses dis-
cursos mais extensos, de modo geral, a última seção era intitulada
“peroração” ou “conclusão”, dependendo do público que o ouvia.
Já os discursos mais curtos e menos formais também seguem essa
estrutura, porém sem ser explicitada por subtítulos.
No último paralelo, relacionado à elocução, percebe-se que os
clérigos recorrem a alegorias, utilizam metalogismos, enquanto
figuras que modificam o valor lógico de uma palavra, e fazem di-
versas citações em latim.
Esse último aspecto merece destaque, pois, ao contrário do que
muitos pensam, a recorrência ao latim não é um mero preciosismo
formal, mas uma estratégia retórica. Os dois clérigos utilizam-se
constantemente de citações latinas da Sagrada Escritura, de escri-
tores eclesiásticos e de filósofos antigos, a fim de persuadir seus
ouvintes. Nesse sentido, as máximas latinas, nos sermões de Vieira
e nos discursos de Aquino, estão dispostas como o “ápice” ou o
“coroamento” de um raciocínio, persuadindo seus interlocutores
não por meios racionais, mas afetivos. Utilizando a terminologia
aristotélica, essas citações latinas não funcionam como uma prova
“lógica” (lógos), mas como um argumento “patético” (páthos), que
suscita emoções e paixões nos ouvintes.
Tal persuasão afetiva ocorre devido a dois atributos das sentenças
em latim: o ritmo e a autoridade. Sobre o primeiro, observa-se que
a utilização frequente de enunciados latinos compõe como que a
matéria sonora do discurso, e “para os antigos, o ritmo da frase tem
importância capital, pois é a música do discurso, o que torna a ex-
pressão harmoniosa ou tocante, sempre fácil de ser retida” (Reboul,
2004: 115). Desta forma, o latim é utilizado como meio de persuasão
afetiva, porque o seu “ritmo gera um sentimento de evidência próprio
a satisfazer o espírito, mas também a conseguir sua adesão” (Reboul,

71
2004: 116). Dante Tringali (2014: 277) denomina esse fenômeno
como “poetização da Retórica”, quando “a Retórica vai à escola dos
poetas. […] Com os poetas, os oradores aprendem a elaborar os
discursos com elegância, com adornos, de modo a lograr efeitos
artísticos e persuasivos”. Assim, ao utilizar-se do ritmo das sentenças
latinas, o profeta Vieira exerce a função de “poeta”, como se vê no
“Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma” de 1649: “Dificultoso
preceito: Diligite inimicos vestros [Mt 5, 44-45]. Dificultoso motivo:
Ego autem dico vobis. Dificultoso exemplo: Ut sitis filii Patris vestri”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 168).
Quanto à característica da autoridade, deve-se ao fato de ser o
latim a língua da Vulgata, 10 de diversos textos da patrística e da
escolástica, bem como a língua oficial dos documentos da Igreja e
de suas celebrações litúrgicas. Assim, ao citar em latim, o orador
agrega palavras mais contundentes que a sua, ou seja, insere as
palavras da Escritura, da Tradição e do Magistério, que, para o
católico, são os três instrumentos da Revelação de Deus. Assim,
falando em nome de Deus, em latim, o orador exerce o papel de
profeta, que não fala por si mesmo, mas age como um mensageiro
da autoridade divina. Nesse sentido, em seu discurso “Salvemos
a família!”, 11 D. Aquino Corrêa exorta, evocando a autoridade de
outrem: “[…] a tempestade diabólica do divórcio. Não sou eu quem
de tal modo a qualifica, é o grande doutor Santo Agostinho: ‘Assim
como, diz ele, a união conjugal vem de Deus, assim o divórcio vem
do diabo.’ Sicut conjunctio a Deo, ita divortium a diabolo” (Corrêa,
1985c: 217).

10 Tradução latina da Bíblia, dirigida por S. Jerônimo no séc. iv , e que foi de-
clarada oficial pela Igreja no Concílio de Trento.
11 Em 9 de novembro de 1950, na Faculdade de Direito de São Paulo.

72
Assim, o latim, por seu ritmo – ligado à poesia – e por sua auto-
ridade – ligada à profecia – faz com que o profeta Vieira atue como
“poeta”, e o poeta D. Aquino exerça o papel de “profeta”.

5. Considerações finais
Diante do que foi exposto, há quem possa pensar de forma “seg-
mentada” e “anacrônica”, e negar a possibilidade de correspondência
entre os instrumentais da retórica antiga e os recursos da poesia
e da profecia. Mas é necessário considerar que eles são utilizados
enquanto mecanismos retóricos, que estão presentes nos sermões
de Vieira e nos discursos de D. Aquino não apenas por preciosismo
formal, mas por uma necessidade de persuasão inerente à própria
missão dos pregadores.
Portanto, os dois oradores, compreendendo a Retórica como a
“capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim
de persuadir” (Aristóteles, 2005: 95), associaram-na à hermenêutica,
buscando assim a persuasão de seus ouvintes acerca de questões
espirituais, morais e políticas. Nesse sentido, é possível estender
também aos discursos de D. Aquino a constatação de Alcir Pécora
(1994) acerca dos sermões de Vieira, nos quais, segundo ele, há
uma unidade entre retórica, teologia e política. Observando as de-
vidas distinções, pode-se dizer que ambos, por meio da oratória,
exerceram uma grande influência religiosa, política e cultural.
Por fim, cabe dizer que, sendo Vieira o precursor entre ambos,
certamente seu legado literário foi significativo na formação da ora-
tória de D. Aquino Corrêa, como ele mesmo destaca: “Vieira imortal
na sua obra literária, é e será sempre um íris de luz, estreitando
Portugal e o Brasil de todos os séculos” (Corrêa, 1985b: 262).

73
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74
Dois sermões de Santa Catarina e algumas questões de retórica
e de ideologia

Two sermons of Santa Catarina and some questions of rhetoric


and ideology

José Veríssimo Teixeira da Mata


Universidade Estadual de Campinas
ORCID | 0000-0002-2024-3937

Resumo
No presente ensaio, apresentam-se os dois sermões de S.ta Catarina
como um repositório de lugares das disputas ideológicas em seus
momentos mais agudos, avaliando-se ainda a recepção dessa
disputa pelo monarca, pelos ideólogos e pelo militar. A própria
estrutura do primeiro dos sermões, pregado em Lisboa, permite
situar as relações de importantes partes do Estado, as Armas e a
Coroa, isto é, o próprio rei, diante da ideologia, particularmente
da ideologia religiosa, e dos produtores, ou condutores, do dis-
curso religioso, sacerdotes ou filósofos. A forma com que o rei se
relaciona com a religião, o impacto que o simbolismo da coroa
tem para seus atos, a sua posição diante do discurso religioso,
a forma com que o militar recebe a argumentação: todos esses
aspetos estão postos genialmente nos dois sermões analisados.
Palavras-chave: ideia; luta de ideias; retórica; ideologia; estrutura
ideológica

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_4
Abstract
In this essay, two sermons of Saint Catherine, written by Vieira,
are presented as a repository of places concerning ideological
disputations in their most acute moments, also evaluating the
reception of disputations by the monarch, by the ideologists and
by the military men. The structure of the first sermon, preached
in Lisbon, allows to precise the relations between important state
sectors, the army and the crown, i.e., the king himself before
the ideology, in particular the religious ideology, and before the
producers or conductors of religious speech, clergymen and phi-
losophers. The way in which the king is connected to religion,
the impact that the symbolism of the crown has in his acts, his
positions before the religious discourse, the way in which the
military man receives the argumentation: all these aspects are
wisely considered in these two sermons by Vieira.
Keywords: idea; struggle of ideas; rhetoric; ideology; ideological
structure

Quando se está diante de um clássico, está-se diante de uma


permanência que se refaz no tempo.
Discutirei algumas questões de dois sermões de S. ta Catarina,
Virgem e Mártir (1), pregado em Lisboa, e o “Sermão de Santa
Catarina”, pregado em Coimbra, em 1663 (2), do ponto de vista da
luta das ideias, da retórica e da ideologia no sentido contempo-
râneo, onde encontramos muitas razões da permanência de Vieira.
No primeiro deles, Vieira faz o elogio da prudência contra a roda
da fortuna, e faz a sua análise católica bem próxima da cultura ro-
mana, onde explora a fortuna, e onde explora as sutilezas da língua
latina e os mitos gregos, como se os livros da Bíblia fossem escritos
originariamente em latim, ou viessem das fabulações gregas, mas

76
a maior lição é a provisoriedade do que aí está e a prudência que
deve orientar o homem. Diante das coisas, incluindo as do Estado,
Vieira apresenta uma hierarquia de dificuldades – é mais fácil o
desejar que o fazer, o resolver que o executar.
Veremos que nos sermões apontados há elementos importantes
para discutir os caminhos da luta das ideias e o tipo de vinculação às
ideias que os trechos escolhidos dos dois sermões citados revelam.
Eles mostram-nos, mais do que uma simples metáfora, mais do que
uma lenda fundante da afirmação do cristianismo, a estrutura e os
topoi da mais refinada guerra ideológica.
Comecemos, portanto, a análise desses trechos estruturantes dos
citados sermões.

1. “Sermão de Santa Catarina Virgem, e Mártir”


A) “Não há cabeças mais duras de penetrar, e converter, que
as coroadas; e se o Rei, ou tirano, por dentro é mau, e vicioso, e
por fora hipócrita, e devoto, estas aparências de religião, com que
se justificam, os endurecem, e obstinam mais” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, X: 365).
Ao iniciar essa análise, entendemos que o brilhantismo de certos
textos dificilmente se explica apenas pela harmonia do conjunto,
sempre há momentos fortes que parecem insuflar ânimo nos clás-
sicos. Nós vemos, na arquitetura propriamente dita, certas paisagens
originais e belíssimas, em que as partes sempre parecem ser por si
mesmas modestas, mas o conjunto nos descobre um evento total-
mente admirável e distinto. 1 Esse tipo de estrutura dificilmente se
encontrará na arquitetura dos textos escritos brilhantes.

1 Vide, a esse propósito, o que diz a página da UNESCO sobre o conjunto ar-
quitetônico do centro histórico da cidade de Goiás, no Brasil: “Ainda que modestas,
tanto a arquitetura pública quanto a arquitetura privada formam um todo harmo-
nioso, graças ao uso coerente de materiais e técnicas locais” (Acedido a 10 de julho

77
A frase que, primeiramente, se toma aqui como excerto a ser
analisado, nos coloca diante de uma verdade espetacular, e que a ex-
periência confirma a cada dia na política, seja na cabeça coroada pela
tradição monárquica seja naquela ungida pela representação democrá-
tica em suas diversas aparições. A explicação que torna essa verdade
palpável, compreensível do ponto de vista da razão, é o significado
ideológico do chefe no contexto político. Ele representa a ideologia
a que se vincula de modo mais claro, e é assim que é reconhecido, e
coloca-se na posição em que está como representante dessa ideologia,
tendo como ofício guardá-la e protegê-la, sua carapaça ideológica é
elemento estruturante dessa arquitetura. Em geral, no exercício de
seu ofício, não sendo um ideólogo no sentido estrito da palavra (o
que é o mais comum), o chefe tem o instinto da ideologia, e reage
ao novo, ao desconhecido com o necessário cuidado, esperando
que o aparato em torno processe a proposição.
A frase que ora se examina tem dois movimentos. O primeiro
é expresso pela primeira proposição: “Não há cabeças mais duras
de penetrar, e converter, que as coroadas […]”.
Vê-se aqui nesse “penetrar” e nesse “converter”2 que Vieira se
está referindo ao fato de que o horizonte dos coroados dificilmente
se muda, ele, Vieira, cá está naturalmente visando mudanças no
horizonte do coroado, pois se refere à conversão, a qual, para além
do significado concreto, religioso, tem a sua matriz mais geral, isto
é, a mudança dos critérios de ver o mundo: é, portanto, uma mu-
dança radical, sob esse aspecto.

de 2018, em http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/list-of-
-world-heritage-in-brazil/historic-centre-of-the-town-of-goias/).
2 “[…] pareille aux kaléidoscopes qui tournent de temps en temps, la societé
place sucessivement de façon différente des éléments qu’on avait crus immuables
et compose une autre figure. […] Ces dispositions nouvelles du kaléidoscope sont
produites par ce qu’un philosophe appellerait un changement de critère” (Proust,
1988: 87-88).

78
A cabeça do coroado aparece como blindada pela coroa; penetrá-la
significaria atravessar-lhe o metal, alterar a movimentação do cetro,
e aqui, para além dos significantes presentes, também está o seu
significado, a simbologia do reino, a ideologia que ela, a coroa,
veicula e impõe ao rei, assim reconhecido, defender. Na verdade,
ele, o rei, não tem aqui muito espaço, ele está no espaço dos que o
cercam, daqueles que ele representa, e a coroa não pode afastar-se
da fração de classe a que está ligada, ou, em sentido mais livre, da
classe a que está ligada, sob pena de pôr a prêmio a própria cabeça
do rei. Converter-se como, então?
A segunda parte – “[…]e se o Rei, ou tirano, por dentro é mau,
e vicioso, e por fora hipócrita, e devoto, estas aparências de reli-
gião, com que se justificam, os endurecem e obstinam mais” – traz
o caso de um tirano mau e vicioso e recoberto pela carapaça ideo-
lógica da ideologia religiosa. Vale lembrar: a ideologia religiosa é
um elemento de que não se pode abstrair do tempo de Vieira, nem
talvez do nosso.
Convenhamos que talvez Vieira não queira associar o tirano mau
e vicioso ao seu próprio horizonte religioso, mas admitamo-lo (e até
aprofundemos), ainda que para testar tal hipótese. Ela tem um inte-
resse teorético inequívoco. Esse tirano mau e vicioso, para quem a
religião não seria mais que aparências, é um incréu. Ele não se serve
da religião espontaneamente em sua práxis, mas a usa, segundo Vieira,
de modo hipócrita. Esse uso o endurece e o obstina ainda mais.
Ora, esse uso hipócrita é um uso consciente, ou em um nível de
consciência mais elevado do que o simples uso do monarca since-
ramente religioso. Ele, o tirano hipócrita, serve-se conscientemente,
portanto, da carapaça da ideologia religiosa em seus protocolos
de poder. Ele se serve da ideologia religiosa não porque nela crê,
mas porque a reconhece importante para obter o consentimento
às suas ações, ou simplesmente para tornar mais fácil o exercício
da coação legal.

79
Não importa aqui (para os exclusivos fins de compreensão dos
mecanismos internos da ideologia) que a hipocrisia seja um caso do
sumo mal.3 O fato teorético que cabe aqui destacar é que esse tirano
hipócrita percebe, de modo muito consciente, o papel da ideologia
religiosa no discurso político, e estamos aqui a nos referir a um dis-
curso anterior à laicidade inaugurada pela revolução francesa e pela
história do republicanismo. O tirano, assim, sabe que a religião pode
fundar o seu discurso político, dar-lhe uma consistência, assim reco-
nhecida pelos seus súditos. O seu discurso, desse modo, é religioso,
não porque o próprio monarca é religioso, mas porque ele percebeu
que não pode dispensar a ideologia religiosa em suas ações.
Lembremos aqui a diferença entre imposição legal (coação) e o
consentimento racional que se refere às matrizes ideológicas, em que
a ideologia religiosa, segundo Althusser, seria o modelo por excelência
da estrutura e do funcionamento do discurso ideológico. O crédulo
conversa com Deus, com as teses da religião, e por um ato de con-
sentimento as faz suas, passa a usar esse aparato para dar respostas
aos múltiplos problemas com que depara em sua práxis. Sua racio-
nalidade passa a ser a racionalidade condicionada por sua ideologia
religiosa. O monarca incréu oferece a esse súdito uma explicação,
consciente e sumamente intencional, em seu próprio nível ideológico.
Ele chama conscientemente a maquinaria da matriz ideológica com
suas duras e cruas teses para processar o fato que lhe é oferecido.
Enquanto o monarca ou tirano sinceramente religioso reage
espontaneamente ao fato novo, ainda que o seu “ser espontâneo”

3 Nesta há também a determinação formal da falsidade que começa por afirmar,


para outrem, o mal como bem e que exteriormente se apresenta como boa, cons-
cienciosa, cheia de piedade, etc. – o que, deste modo, não é mais que o artifício
da mentira para outrem. Depois, pode o maldoso encontrar nas boas razões uma
justificação do mal por si mesmo, assim o mascarando em bem. Cf. Hegel, 1976,
132. Para além dessa possibilidade, trazida por Hegel no § 140 de seus Princípios
da Filosofia do Direito, tenho em mente aqui o caso em que o tirano, abstraída,
até para exercício teórico, a sua eventual maldade, apenas transcreve em discurso
religioso um discurso que é essencialmente político.

80
seja vazado por sua ideologia religiosa, o tirano hipócrita traz, in-
tencionalmente, todo o aparato da ideologia para explicar o fato,
para mostrar-se dentro da ideologia, como representante, assim visto,
de sua ortodoxia: eis por que é ele mais duro e mais obstinado.
O monarca sincero, o bom rei de Portugal, chama os represen-
tantes do clero, esses aparelhos reguladores, verdadeiros reostatos
da fé – que parecem dizer mais fé aqui, mais fé ali – e diante dos
fatos novos apresentados colhe, sincera e humildemente, os seus
doutos e sagrados juízos, processa-os com toda a disposição aco-
lhedora, e tenta incorporá-los. O monarca hipócrita, que não tem
mais que aparências de religião, chama os representantes da Santa
Igreja,4 que podem ser os Jesuítas de Vieira, e não identifica em seu
discurso de matriz religiosa mais que política, mais que ideologia
econômica concentrada. Identifica nesse discurso precisamente a
sua racionalidade não religiosa.
E recobrindo o seu próprio discurso político das meras aparên-
cias religiosas, que causam tanta indignação (o protocolo religioso
do discurso político) ao nosso determinado Vieira, enfrenta com
clareza a questão, para o bem ou para o mal, e chancela sua decisão
com mais argumentação religiosa, com mais teatralidade religiosa,
usada conscientemente, tanto como teatralidade propriamente dita
como quanto religião. Ele busca legitimar o seu discurso político
com o uso maximamente intencional e maximamente consciente da
ideologia religiosa, assegurando assim o mais largo assentimento
às suas ações entre os súditos, ao operar, de maneira precisa, no
nível da ideologia desses. Ele sabe que não pode impor aos seus

4 E é evidente que Vieira quer privilegiar esse canal da Igreja com o rei, em que
o ouvinte, rei ou nobre, recebe, com generosa e religiosa disposição, esse discurso
que vem da igreja: “A razão deste tão bem fundado reparo é muito mal praticada
nas Cortes, e por isso necessário que a nossa, com quem falo, a ouça” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, X: 360).

81
crédulos súditos a sua dessacralizada ideologia, e assim, hipócrita,
mas conscientemente, faz sua a ideologia religiosa.

B) “As batalhas mais invencíveis são as do entendimento; porque


onde as feridas não tiram sangue, nem a fraqueza se vê pela cor,
nenhum sábio se confessa vencido” (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, X: 366).
É verdade que as batalhas de guerra são mais claras, ainda que
não se ganhe a guerra ganhando uma simples batalha. Todavia, o
campo da batalha na guerra é, em princípio, bem determinado, e
do momento que o adversário é finalmente expulso daquele local,
está claro que a batalha foi vencida. Em 27 de março 2016, diga-se
a esse propósito, o exército sírio retomou Palmira, cidade histórica e
grande trunfo, até então nas mãos do Estado Islâmico. Que a batalha
de Palmira foi vencida e quem a venceu não há dúvida.
Vieira, que se meteu em batalhas militares (como aquelas contra
batavos na Bahia, ou outras, contra franceses no Maranhão) e em
batalhas do pensamento, coloca aqui com inegável profundidade
essa diferença fundamental entre a guerra ideológica e a guerra
propriamente dita, porque seu raciocínio pode ser expandido, sem
inconvenientes, das batalhas às guerras. Suas controvérsias no campo
das ideias, sendo mais religiosas ou ideológicas, têm inequívoca
diferença com as batalhas de sangue e com as de feridas, onde os
vencidos ou escapam a toda velocidade, se podem, ou, feitos pri-
sioneiros, já não tem, militarmente falando, como prosseguir a sua
guerra, ou ainda são simplesmente mortos.
A frase de Vieira que agora se analisa parece lançar luzes espe-
cialmente sobre as controvérsias filosóficas, ideológicas ou religiosas.
Materialismo e idealismo, religião e ateísmo, dualismo de alma e
corpo ou unicidade são, para exemplo, polêmicas que parecem
não se esgotar. No caso das ciências, se a situação não se torna
tão clara, de chofre, como em uma batalha de verdade, em algum

82
momento ela parece definir-se. A teoria da relatividade de Einstein
impôs-se com relativa facilidade. Newton, uma vez que apareceu,
impôs-se também de forma definitiva. Houve os casos de Galileu
e de Giordano Bruno que confrontaram a ideologia religiosa, e
encontraram forte resistência no estamento clerical, vinculado, por
sua autoridade, à longeva física de Aristóteles.
Porém, se nos circunscrevermos, de modo mais preciso, ao espaço
visado por Vieira nesses dois sermões, que são as querelas teológicas
em que se envolveu S.ta Catarina, em que o cristianismo e o paganismo
se digladiam, veremos que, nesse campo da pura ideologia religiosa,
parece ainda mais difícil proclamar haver vencidos e vencedores,
pelo menos do ponto vista da mera argumentação. As perspectivas
se confrontam, a partir de representações distintas, de horizontes
diversos, os argumentos se enfileiram, mas sobre o solo irracional
da religião, sobre o qual se pode agregar a racionalidade dos ar-
gumentos ou a irracionalidade dos argumentos, sempre.
Os sábios da fé, a esse propósito, aparecem como guardiães da
matriz ideológica, e como tais possuem toda a necessária maquinaria
para defender o núcleo duríssimo da ideologia. Como esquadrão do
núcleo duro, da sede da matriz ideológica, aparecem como tropa
de elite a defendê-la, com possibilidades infinitas de lhe aditarem
argumentos para fechar o acesso do adversário ao centro ideoló-
gico do sistema.
Com efeito, ao se cuidar de tal matéria, todo o tato se exige,5 para
se mover entre ideias e argumentos, simbologias ou significados,

5 As noções de tato e de habilidade constituem ferramentas indispensáveis no


manuseio do material ideológico. Uma palavra de ordem desajustada pode pro-
duzir desastres para um programa político em vias de implantar-se ou mesmo já
implantado. Evidentemente que essas noções não estão soltas, mas devem estar
ligadas ao conhecimento efetivo das condições econômicas, políticas, e ideológicas
das classes em referência à situação histórica de determinado país. Faz parte da
textura do material ideológico as pontuações, os silêncios, e aqui é preciso saber
ler todos esses aspectos.

83
sobretudo quando se confrontam ideologias diversas. A esse pro-
pósito, a metáfora do “Sermão de Santa Catarina Virgem, e Mártir”
é precisa, e descortina-nos os vários níveis da guerra ideológica.
Eis por que, após o Imperador Maximino ter manifestado a sua
fé nos deuses em que cria, e de ter negado e blasfemado em Cristo,
arrancou dele Catarina uma meia-vitória, o que significa que há
nuanças entre os pontos marcados nas batalhas ideológicas que
não vale esquecer:

C)
[…] depois que o Imperador falou, e ouviu, se não alcançou
dele a inteira vitória, conseguiu parte dela. E qual foi? Porque nem
o mesmo Imperador o entendeu. Foi que se o não fez Católico
da nossa Fé, fê-lo herege da sua. Alcançou dele modesta, e sa-
biamente a Santa que entre ela, e seus filósofos se disputasse
publicamente a questão da verdadeira, ou falsa divindade dos
deuses (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 365).

Aqui se pode compreender que os movimentos do debate ideoló-


gico, as suas sutilezas, nem sempre são perceptíveis (“porque nem
mesmo o Imperador o entendeu”). Demais, a vitória nem sempre
significa a conversão absoluta do adversário, mas, eventualmente,
consiste apenas em destacá-lo de alguma forma de sua própria
matriz ideológica: “Foi que se o não fez Católico da nossa Fé, fê-lo
herege da sua”.
Os modi operandi da ideologia são diversos e devem transmutar-se
o tempo todo, ajustando-se às circunstâncias, aos auditórios: eis
por que “modesta e sabiamente”, isto é, com todo o tato, elegeu a
santa a sua tática diante do soberbo Maximino. Sábia ela não en-
frentou a arrogância com cargas e canhões, mas colocou-se ali em
consonância com o protocolo que rege as relações do imperador

84
com os súditos. A vitória consistiu em assegurar a disputa sobre
uma questão de fé:

D) “E aqui fraqueou a astúcia do Imperador, e se viu a subtileza


de Catarina; porque o que se põe em questão, e disputa, igualmente
se põe em dúvida; e quem duvida da sua fé, qualquer que seja, já
é herege dela” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 365).
Sendo um sincero pagão, Maximino se esquece de que tudo em
seu discurso e em sua prática é vazado pela ideologia religiosa.
Assim, com sua sabedoria, Catarina trincou não a fé de Maximino,
mas a relação desse com a sua própria fé. Ela obteve um feito in-
compatível com a ideologia dominante com sua astuciosa petição.
Com sua atitude o cristianismo entra no centro da ideologia para
disputar com o paganismo o trono ideológico, assim:

Apareceram enfim os Filósofos em uma sala, que era o teatro


da famosa disputa, não menos em número que cinquenta, e tão
vários cada um nos trajos, e no mesmo aspeto, como nas seitas.
Não se viam ali armas, posto que todas as Universidades tinham
destinado àquela campanha os seus Aquiles. Afrontaram-se eles de
haver de contender em letras com uma mulher; não desmaiando
porém ela de vencer a tantos homens de tanta fama, e tanta pre-
sunção, que todos se estimavam banhados na lagoa Estígia. Assim
tinha cada um por invulnerável a sua seita, e inexpugnável às outras.
Para abreviar pois o conflito, e não ter suspensa a expectação dos
circunstantes, todos se comprometeram na sabedoria de um, o
mais velho, e venerável, de mais celebrada opinião. Falou este, e
com igual arrogância, e eloquência ostentou por largo espaço quanto
sabia. Mas Catarina sem desprezar a pompa das palavras, nem temer
o estrondo dos argumentos, com modestas, e vivas razões desfez, e
desbaratou tudo com tal evidência, que o Filósofo compromissário

85
do duelo, atónito, e pasmado se rendeu, e convencido se lançou a
seus pés. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 365-366)

Essa sequência da argumentação põe diante de Catarina as cin-


quentas seitas pagãs, cada uma com seu cosmo e cheia de si, mas
ela revela que essas cinquenta seitas têm uma matriz comum, e
em nome delas se elege o mais velho e o mais venerável. Esse é
aquele que mais tempo militava no paganismo; era também o mais
venerável, isto é, o que mais representava o consenso da matriz
comum do paganismo. E aqui mais um dado trazido pela genial
perspicácia de Vieira: cada seita é invulnerável e inexpugnável às
demais, porém, no momento em que o combate já não se faz entre
elas, mas contra o cristianismo, naturalmente reconhecem o fundo
comum que está em guerra contra a ideologia cristã. O discurso
de todas passa, assim, a ser o discurso de um, afinado na mesma
voz, que fala assim por ela própria e cada um. Catarina dá, pois, e
mais uma vez, prova de seu talento. Ela não despreza o protocolo
retórico da pompa das palavras usadas pelo venerável pagão, ela
reconhece com precisão, portanto, o auditório em que está, e o
significado retórico da argumentação do adversário.
A maestria retórica, e mais, de profundidade de pensamento,
está no fato de que Catarina não usou a maquinaria estrepitosa da
retórica para contrapor-se à estrondosa maquinaria de argumentos
do venerável pagão. Nesse terreno, ela não teria muito a ganhar,
pois se tratava de argumentos a cuja forma os pagãos estavam ha-
bituados por sua ideologia e por seu protocolo retórico, mas ela
inovou com argumentos modestos e vivas razões, isto é, razões que
fazem sentido, que bem respondem aos fatos, e que o sábio do pa-
ganismo teve dificuldade de processar dentro de sua própria matriz
ideológica. Ela contou com o efeito-surpresa, pois os sábios geriam
o conflito dentro de sua matriz, a qual não se poria em dúvida até
o momento em que Maximino consentiu o duelo ideológico entre

86
os seus e Catarina. Acresce ainda o fato fundamental de que o
cristianismo vinha já ganhando as populações, e, quando chega ao
nível-topo da disputa ideológica, estava a realizar o seu movimento
ascendente em direção à hegemonia. Catarina tem, assim, diante de
si um paganismo soberbo, porém minado.
O estamento ideológico está pronto à conversão, à mudança
de critérios de que falava Proust (cf. supra nota 2), ainda que
dentro dos limites de sua carcaça ideológica, e essa disposição
está presente até para garantir a sua própria sobrevivência e das
instituições que eles encarnavam. Todavia, o estamento ideológico,
diante da divisão da sociedade, fratura-se, não sabe a que sinais
seguir, até porque os sinais são contraditórios. Maximino concedeu
com Catarina a entrada da disputa ideológica no teatro da famosa
disputa. Não estaria ele preparando a conversão? Não estaria ele
indicando aos ideólogos o grande ajuste a ser feito? Oh como são
contraditórios esses sinais? Será que estamos mesmo a seguir os
ventos certos que garantirão a nossa sobrevivência? Será que já
não acreditamos naquilo em que acreditamos? Será que a essência
de nosso ofício não é senão oferecer um protocolo retórico de
argumentação religiosa para justificar o poder? Como profissionais
do discurso não poderíamos manter o nosso ofício oferecendo um
protocolo de nova matriz que nos permitisse nos reproduzir en-
quanto ideólogos do sistema? E, Maximino, não parece, ele mesmo,
pender agora para Catarina, o seu olhar parece acolher também a
argumentação dessa estranha moça?
Talvez identificassem, à maneira com que Althusser 6 viria
identificar milênios depois, no monoteísmo, ainda que com suas
concessões ao politeísmo como a Divina Trindade, uma superiori-

6 Nesse caso, verifica-se que a interpelação dos indivíduos como sujeitos pressupõe
a “existência de um Outro Sujeito, Único e Central, em Nome do qual a ideologia
religiosa interpela todos os indivíduos como sujeitos” (Althusser, 1999: 217).

87
dade ideológica, que permitiria mais unidade ao Império Romano.
Todavia, Maximino, convencido de sua fé, dos rituais pagãos da
Coroa, não se converteu e determinou que os seus sábios e Catarina
fossem mortos.
O milagre de S. ta Catarina reside precisamente em que ela
converteu à sua fé os sábios do paganismo, e esses lhe teriam re-
conhecido a vitória. Evidentemente, esse é um fato único, raríssimo,
mas que é em princípio factível, ou admissível, quando todo um
sistema vai abaixo. O caso em exame ainda ilumina, pois vemos que
o aparelho repressor se desconecta do aparelho ideológico propria-
mente dito, ou melhor dizendo, de uma de suas frações que capitula
ante o adversário. Nesse caso, pode-se dizer que o monarca deu
de modo claro os limites para o seu suporte ideológico enquanto
ideologia religiosa, e ele com sua coroa provou mais uma vez quão
difícil é converter uma cabeça coroada. Demais, era evidentemente
para ele, que tinha responsabilidades e o assentimento dos que
representava, muito mais difícil de converter-se do que os que
simplesmente lhe produziam protocolos retóricos de sua ideologia
religiosa. Sua conversão exigiria o consentimento de sua base de
apoio, ou, no mínimo, a difícil reestruturação política dessa.
Esse trecho já vamos encontrá-lo no “Sermão de Santa Catarina”,
pregado na Universidade de Coimbra em 1663.

2. “Sermão de Santa Catarina”


A)
Em primeiro lugar propuseram os Filósofos inchados seus
argumentos, aplaudidos, e vitoriados de todo o teatro, e só da
intrépida defendente recebidos com modesto riso. E depois
que todos disseram quanto sabiam em defesa, e autoridade dos
Deuses mortos, e mudos, que eles chamavam “imortais”; então
falou Catarina por parte da Divindade eterna, e sem princípio do
Criador do Céu, e da terra, e da Humanidade do Verbo tomada

88
em tempo, para remédio do mundo. Falou Catarina, e foi tal o
peso das suas razões, a subtileza do seu engenho, e a eloquência
mais que humana, com que orou, e perorou, que não só desfez
facilmente os fundamentos, ou erros dos enganados Filósofos, mas
redarguindo, e convertendo contra eles seus próprios argumentos,
os confundiu, e convenceu com tal evidência, que sem haver entre
eles quem se atrevesse a responder, ou instar, todos confessaram
a uma voz a verdade infalível da Fé, e Religião Cristã. (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, X: 380-381)

O que cabe destacar aqui é que Catarina não confrontou os


adversários, levando contra eles os dogmas de sua própria e cristã
fé. Ela operou dentro da ideologia dos teólogos pagãos, usou dos
argumentos que eles tinham usado, não contra o cristianismo mas
contra o próprio paganismo, de forma que os confundiu. Que terrível
não seria ver os nossos próprios argumentos contra nós? De toda
forma, Catarina efetivamente dialogou com os ideólogos do paga-
nismo no auditório de Alexandria. Eles reconheceram ali os seus
próprios argumentos, ela não lhes falou de coisas distantes, mas
do que eles próprios falavam, ela os derrotou assim no terreno do
discurso que, de certa forma, era deles, ainda que agregando as
suas vivas razões, as quais deveriam também parecer vivas a eles.
Catarina, desse modo, minou e implodiu o discurso da fé pagã,
operando dentro de seus fundamentos mais íntimos, ainda que para
pô-los abaixo. Ela usou a linguagem do paganismo, o que mostra
mais que conhecimento de seu próprio discurso, conhecimento do
discurso do outro. Enfim, S. ta Catarina não atuou como pregadora,
mas como ideóloga, ao perceber a gravidade do momento e o au-
ditório que teria de conquistar. Os ideólogos pagãos não poderiam
deixar de ouvir os sons de sua própria música, não poderiam deixar
de enebriar-se pelos seus próprios argumentos, ainda que colocados
em direções distintas, como uma música que fosse cantada do final

89
para o começo, ou com uma combinação alterada de alguns de seus
trechos. O Imperador Maximino, porém, restou cativo de sua própria
coroa, de seus compromissos políticos, e não soube ou não pôde,
pelas dificuldades anteriormente já apontadas, seguir um ritual com
os acordes subvertidos:

E que faria com este sucesso Maximino, Imperador, empe-


nhado, e cruel? Afrontado de se ver vencido nos mesmos Mestres
da sua crença, de quem tinha fiado a honra, e defesa dela; e
enfurecido, e fora de si por ver publicamente demonstrada, e co-
nhecida a falsidade dos vãos, e infames Deuses, a quem atribuía
o seu império; em lugar de seguir a luz, e docilidade racional dos
mesmos Filósofos, com sentença bárbara, e ímpia mandou que ou
sacrificassem logo aos Ídolos, ou morressem todos a fogo. (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, X: 381)

Na continuação do “Sermão de Santa Catarina Virgem, e Mártir”,


deparamos com o seguinte trecho também revelador da arquitetura
do Estado, das ideias e dos fatos que o organizam:

B)
Muito mais dificultoso é haver de vencer soldados, que ter
convencido Filósofos. Os soldados não se vencem com argu-
mentos de palavras, senão com silogismos de ferro. Para os mais
subtis de entendimento o capacete lhes defende a cabeça; e para
os mais brandos de vontade, a malha, e o arnez lhes endurecem
o peito. Toda a força que tem o Filósofo consiste em a razão, e
toda a razão do soldado consiste na força. (Franco & Calafate,
2013-2014, II, X: 369)

90
Não é casual que o excerto ora citado se encontre precisamente
nessa passagem referente a um momento que vem depois da vitória
de S.ta Catarina sobre os ideólogos, pois essa vitória nada ou quase
nada diz aos soldados, com suas cabeças fechadas aos argumentos
que chegam de fora, e prontos apenas para defender o sistema do
Imperador Maximino. Se eles fossem inteiramente permeáveis, se a
eles comunicassem o sentimento dos filósofos vencidos e conver-
tidos por Catarina, já não lhes restaria o que fazer nessa parte onde
se encarregam da guarda da santa na prisão em que se encontra.
Se fossem os soldados os primeiros a bandear-se, cairiam os
governos e sistemas a todo momento, e teria, portanto, o império
de Maximino se rendido imediatamente ao cristianismo. A genia-
lidade de Vieira está aqui em produzir essas passagens altamente
significativas para a compreensão da arquitetura do Estado e do seu
próprio texto. Não se trata, nem essa era a questão para Vieira, de
rebaixar aos soldados suas qualidades intelectuais, mesmo porque,
também entre eles, há os mais sutis de entendimento, que poderiam
acompanhar as sutilezas dos silogismos. Todavia, eis o que é de
notar “o capacete lhes defende a cabeça”. O capacete aqui tem um
papel análogo ao da coroa, em termos de significado, de simbologia
e de ritual. Com ele o soldado se vincula a todo um sistema sim-
bólico de poder, ele reforça a ideologia necessária para o exercício
do ofício a que os militares estão destinados.
A lenda fundante que nos é apresentada, portanto, por Vieira,
nesses dois sermões de S. ta Catarina, se, de fato, se trata de mera
lenda, ou não (essa questão não é importante para os fins aqui bus-
cados), é – e isso foi o que nos interessou – consistente do ponto
de vista ideológico e retórico, e mostra-nos um Padre Vieira a par
das sutilezas ideológicas e políticas que comandam os Estados e
os discursos que lhes dizem respeito. Está aqui sem dúvida mais
uma das razões de sua permanência e atualidade.

91
Bibliografia

Althusser, L. (1999). Sobre a Reprodução. Petrópolis: Editora Vozes.


Franco, J. E. & Calafate, P. (dir.) (2013-2014). Obra Completa Padre António Vieira
(t. ii , vol. x ). S.l.: Círculo de Leitores.
Hegel, G. F. (1976). Princípios da Filosofia do Direito (2.ª ed.). Lisboa: Editora Martins
Fontes.
Proust, M. (1988). À l’Ombre des Jeunes Filles en Fleurs (3.ª ed.). Paris: Gallimard.
Vieira, A. (1993). Obras Completas do Padre António Vieira, Sermões (vols. vii , viii ,
ix ). Porto: Lello & Irmãos Editores.

92
V II
L i t e r at u r a e A r t e
(Página deixada propositadamente em branco)
As palavras de Vieira

The words of Vieira

Aida Sampaio Lemos


Universidade Aberta
ORCID | 0000-0001-6609-4829

Resumo
A elaboração de glossários de textos, mormente de fases pretéritas
da língua, tem como objetivos principais a exploração da língua
em que estão escritos e a sua análise linguística. A construção
deste tipo de instrumento de trabalho pretende complementar
os textos, com o maior número possível de informações, escla-
recendo o seu vocabulário, classificando-o e explorando os seus
usos no cotexto, permitindo uma visão geral sobre o léxico e
uma visão mais específica sobre o período da língua a que se
reportam. Por conseguinte, os glossários configuram-se como
um dos meios privilegiados para a elaboração dos tesouros da
língua, das gramáticas e dos dicionários históricos. Vieira, como
um dos representantes máximos do período clássico da língua
portuguesa, constitui-se como modelo linguístico reconhecido por
gramáticos e dicionaristas, seus contemporâneos e modernos, que
retiram dos seus escritos exemplos do bom uso da língua a ser
seguido e imitado, sobretudo nos domínios da sintaxe e do léxico.
Na comunicação proposta, debruçar-nos-emos sobre aspetos da

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_5
língua de Vieira apresentando o “Elucidário Vocabular” incluído
no volume IV do tomo IV da Obra Completa Padre António
Vieira, o qual se configura como um repositório, embora não
exaustivo, da língua deste autor no que ao léxico diz respeito,
bem como um documento de consulta para os leitores da sua
obra, pretendo constituir-se igualmente como um contributo, se
bem que modesto, para o conhecimento da língua deste autor
maior da nossa cultura.
Palavras-chave: Obra Completa Padre António Vieira; “Elucidário”;
glossários

Abstract
The creation of glossaries of texts, mainly of previous phases
of the language, has as main objectives the exploration of the
language in which they are written and their linguistic analysis.
Putting together this type of work instrument aims to complement
the texts, including the greatest possible number of information,
clarifying their vocabulary, classifying it and exploring its uses
in context, allowing a general view on the lexicon and a more
specific view on the period of the language to which they relate.
Therefore, glossaries are one of the privileged means for the
elaboration of the treasures of language, grammars and historical
dictionaries. Vieira, as one of the greatest representatives of the
classical period of Portuguese language, is a linguistic model re-
cognized by grammarians and dictionarists, both contemporaries
and moderns, who draw from their writings examples of the
good use of language to be followed and imitated, especially in
the fields of syntax and lexicon. In the proposed communication,
we will look at aspects of Vieira’s language by presenting the
“Vocabulary Elucidary” included in Volume IV of Tome IV of the
Complete Works of Father António Vieira, which is a repository,

96
although not exhaustive, of the language used by this author as far
as the lexicon is concerned, as well as a consultation document for
readers of his work, intended to also be a contribution, albeit
modest, to the knowledge of the language of this greater author
of our culture.
Keywords: Complete Works of Father António Vieira; “Elucidary”;
glossaries

A língua, instrumento fundamental de construção social e


gnosiológica, canal de comunicação identitária, instrumento por
excelência de criação literária e de pensamento (León, 2004: 23ss.)
e organismo vivo, assume ao longo dos tempos as marcas de cada
época, incorporando as experiências das sociedades que a falam.
Neste processo de evolução, torna-se fundamental que a comuni-
dade de falantes seja capaz de ler a produção literária e cultural
na forma que a língua apresenta no presente como instrumento
de comunicação, sendo igualmente essencial que possa aceder
às grandes produções do passado que deram forma primeira e
fundadora a essa língua. O reconhecimento desta herança numa
cadeia de longa duração é importante para que a língua de um
povo ganhe dimensão, profundidade e sentido de memória numa
perspetiva de duração temporal (Olea, 2010: 16ss.). Os clássicos
do pensamento e da literatura devem, por conseguinte, em cada
época ser reeditados, atualizados e comentados à luz da ciência
presente, para serem lidos e entendidos pelos herdeiros da língua
em que foram escritos. Assume-se, pois, como um serviço impor-
tante para a identidade cultural de uma comunidade linguística
a edição atualizada dos clássicos escritos em fases pretéritas da
língua, reforçando-se assim os laços de afirmação e perenidade
dessa mesma língua no presente.

97
Memória de um dos nossos maiores escritores, a obra de Vieira,
o monumento grandioso da língua portuguesa e do engenho neo-
clássico, como se lhe refere Nemésio, merecia ser difundido junto
de uma comunidade mais alargada, designadamente de leitores
sem formação filológica, numa edição que assegurasse condições
de legibilidade e de fruição dos textos tipológica e tematicamente
diversos que o constituem.
Assim, perseguindo esse objetivo, aquando da edição da Obra
Completa Padre António Vieira pusemos em prática o que desig-
namos de razão do leitor (Lemos, 2002), ou seja, uma estratégia de
edição que, centralizando a atenção no leitor e, portanto, levando
em consideração a variedade dos interesses, objetivos e formações
de todos os potenciais leitores, pretende facilitar-lhes o acesso ao
texto, sem que isso implique a adulteração do pensamento do autor
ou a deformação dos seus textos.
O trabalho de fixação textual dos documentos que integram os
30 volumes desta obra completa seguiu critérios prévia e cuidado-
samente estabelecidos que tiveram em conta aspetos fundamentais
como os objetivos e o tipo de edição, as fontes manuscritas e im-
pressas, os inéditos e as edições existentes dos textos de António
Vieira. Na verdade, e como mediador necessário entre estes textos
do século xvii e o leitor atual, o editor teve de refletir estrategi-
camente, usando uma expressão de Castro & Ramos (1986: 101),
sobre os objetivos e o tipo de edição, bem como sobre o seu pú-
blico preferencial, sabendo, como afirmam os autores citados, que
a “transcrição [é um] fenómeno táctico [que] depende [...] de razões
estratégicas que a transcendem: será conservadora, modernizadora
ou de compromisso, em obediência a factores que lhe são externos
e que se situam essencialmente na esfera da relação de leitura a
estabelecer entre o texto e o seu público”.
Além disso, tivemos em consideração o facto de as nossas inter-
venções como editores terem como objeto textos de um autor por

98
muitos considerado “o clássico mais autorizado” e mestre da língua
portuguesa, um dos representantes máximos do período clássico da
língua portuguesa, um modelo linguístico reconhecido por gramá-
ticos e dicionaristas, pedagogos e poetas, seus contemporâneos e
modernos, que dos seus escritos retiram exemplos de bom uso da
língua ou lhe elogiam o elegante e correto discurso, promovendo o
culto da memória literária também como repositório lexical e sintá-
tico da nossa língua ao longo da sua história – nomes como Rafael
Bluteau (1638-1734), Francisco José Freire (1719-1773), António de
Morais Silva (1755-1824), Cunha Rivara (1808-1879), Epifânio Dias
(1841-1916), Said Ali (1861-1953), Antenor Nascentes (1886-1972)
e Paul Teyssier (1915-2002) ou João de Deus (1830-1896), que, em
1876 e 1877, publicou duas seletas com textos de Vieira para as
“primeiras leituras”, bem como Almeida Garrett (1799-1854), Camilo
Castelo Branco (1825-1890), Fernando Pessoa (1888-1935), Vitorino
Nemésio (1901-1978) e José Saramago (1922-2010).
Sabendo que nenhuma edição satisfaz por si só todos os leitores
e todos os investigadores, e muito menos contenta simultaneamente
leitores e investigadores, os critérios de transcrição seguidos na
edição da Obra Completa Padre António Vieira passaram por uma
opção que pode ser apelidada de modernizadora, regulando-se pela
normalização e atualização de aspetos gráficos e linguísticos, que
facilita o acesso do leitor contemporâneo ao texto, sem desrespeitar
o conteúdo do documento original nem desvirtuar o pensamento
do autor.
Alguns dos traços mais marcantes das opções tomadas (a des-
crição mais pormenorizada dos critérios pode ser encontrada em
todos os volumes da Obra Completa) passaram pela supressão das
características ortográficas e evolutivas, tendo-se normalizado as
grafias segundo as normas estabelecidas nas bases do acordo orto-
gráfico de 1990. Tal decisão, além de respeitar a posição da editora
que publicou a Obra Completa Padre António Vieira, foi igualmente

99
alicerçada na convicção, e usando as palavras de Herculano de
Carvalho, de que a língua,

[...] objeto histórico, sujeito às vicissitudes próprias de todo o


objeto histórico, como saber transmitido, perpetuamente se trans-
forma e diversifica. Quer isto dizer que se transforma no tempo e
se diversifica no espaço. Em primeiro lugar no tempo: se é certo
que os modos linguísticos do presente representam a continuação
ininterrupta de modos linguísticos do passado, não é menos evi-
dente que eles não são hoje inteiramente idênticos ao que foram
em épocas anteriores. Sabemos de fato que a língua portuguesa
não é hoje a mesma que a língua falada pelos contemporâneos de
Camões e que, quanto mais recuamos no tempo, mais acentuado
se torna o contraste […]. (Carvalho, 2010: 385)

Ora, a língua de Vieira, tal como aparece nos impressos e ma-


nuscritos, autógrafos e apógrafos, que reunimos, revisitámos e dos
quais fizemos leituras e respetivas transcrições paleográficas de raiz,
não é certamente a língua que falamos e escrevemos quer hoje, quer
antes do acordo ortográfico de 1990, pelo que, sendo certo que
com o nosso trabalho não desvirtuámos o pensamento de Vieira,
é igualmente justo que não desprestigiámos a sua obra nem a sua
escrita porque usámos o novo acordo ortográfico na sua edição
ou porque interviemos em aspetos ortográficos dos seus textos.
O objetivo foi o de colocar à disposição de um grande número de
leitores a obra completa de um autor maior, o seu pensamento, as
suas lutas, as suas ideias para Portugal, as suas críticas, as análises
que fez do tempo e da sociedade em que viveu e a sua escrita, as
suas palavras. Na verdade, por meio desta Obra Completa, o leitor
poderá aceder às palavras de Vieira e com elas se deleitar, delas
colher ensinamentos e por meio delas agir – materializando-se assim

100
passados séculos, junto do leitor contemporâneo, as finalidades da
retórica barroca do movere, delectare, docere.
Ademais, importa destacar o papel instrumental facilitador da
utilização do acordo ortográfico em vigor como base de trabalho
que permitiu um entendimento eficaz nas opções que tivemos de
tomar no quadro da preparação da edição da Obra Completa de Vieira.
A reunião de uma equipa de especialistas de Portugal e do Brasil
para trabalhar numa publicação conjunta e simultânea de todos
os escritos de Vieira em ambos os países e com o desiderato de
abranger os territórios do mapa da lusofonia encontrou no acordo
ortográfico em processo de aplicação um caminho unificante que
nos poupou duplicação de critérios e permitiu que fosse estabelecida
uma matriz linguística comum para uma edição atualizada capaz de
ser aceite no universo lusófono, nomeadamente nas duas pátrias de
Vieira, engrandecendo a língua que é o dado comum e estruturante
das suas identidades e possibilitando a edição simultânea da Obra
Completa Padre António Vieira, com os mesmos critérios e a mesma
matriz editorial, em Portugal e no Brasil, pelo Círculo de Leitores
e pelas edições Loyola, respetivamente.
Além da atualização de aspetos ortográficos, na edição da Obra
Completa também a acentuação e a pontuação foram usadas con-
forme as regras atuais, exceto, no caso da pontuação, nos textos
sermonísticos, dada a especificidade destes em termos de configu-
ração oratória; nestes textos houve lugar a algumas intervenções
que visaram ultrapassar dificuldades de leitura, dado que o leitor
contemporâneo estranharia alguns sinais de pontuação que, nos
textos vieirinos, e também como característica da época, serviam
sobretudo funções prosódicas e não tanto semântico-sintáticas
como atualmente (tal como, por exemplo, a vírgula, que neste
casos suprimimos, entre sujeito e predicado ou entre subordinante
e subordinada completiva).

101
Uma opção mais difícil e mais problemática foi a relativa à
transcrição na sua forma gráfica atual de palavras que apresen-
tavam na época de Vieira uma outra grafia, sendo que, em alguns
casos, tais grafias poderiam corresponder a uma fonia distinta, tais
como reposta> resposta, expriencia> experiência, ancias> ânsias,
sustância> substância, naceo> nasceu, atraz> atrás, sugeytos>
sujeitos, complices> cúmplices, quiz> quis, poz> pôs, creou> criou,
baxo> baixo, enuejas> invejas, efeituar> efetuar, intender> entender.
Fizemo-lo em casos como os agora referidos, embora tenhamos
mantido palavras hoje tidas como arcaísmos e/ou formas populares,
tais como abendiçoado; alfim; ancila; corrido (=envergonhado);
discurso (=decurso); alvedrio; encontrado (=oposto); esperdiçar
(=desperdiçar); tirar (=atirar); cristã-novice, etc.; ou formas verbais
arcaicas, como impida (=impeça); seres (=serdes).
Estas e outras formas constam do “Elucidário vocabular”, in-
cluído no volume iv do tomo iv da Obra Completa, o qual, não
estando inicialmente previsto, achámos importante organizar por
considerarmos que a elaboração de glossários de textos de fases
pretéritas da língua, tendo como objetivos principais a exploração
da língua em que estão escritos e a sua análise linguística, com-
plementa os textos, esclarecendo o seu vocabulário e explorando
os seus usos no cotexto, permitindo uma visão geral sobre o
léxico e uma visão mais específica sobre o período da língua a
que se reportam. O “Elucidário vocabular” que organizámos, não
sendo um glossário exaustivo, apresenta, contudo, um conjunto
selecionado mas significativo de termos e expressões presentes
nos textos vieiranos que contribui para o conhecimento do léxico
usado pelo autor.
As intervenções feitas nos textos de Vieira na edição da sua
Obra Completa foram, pois, sobretudo ao nível ortográfico e não
da morfossintaxe, tendo sido mantidas características da escrita do
autor e da época, tais como: o género de palavras como o tribo, a

102
comua, o catástrofe, o ênfase, o apóstrofe, a diadema; o emprego
do verbo “ser” com valor de “estar” e do adjetivo “sós” com valor de
advérbio “só”, “apenas”; a variação no uso de artigo definido antes
de possessivo ou antes de nome; o uso do pronome “o” antes do
relativo “que”; a concordância do particípio passado com o com-
plemento direto em construções perifrásticas com o verbo “ter”; o
uso do indicativo em orações introduzidas pelas locuções conjun-
cionais concessivas “posto que” e “ainda que”; a concordância do
verbo “ser” com o seu predicativo; a utilização do mais-que-perfeito
simples do indicativo em subordinadas condicionais como meio
de expressão de sentido hipotético (“Se com cada cem Sermões se
convertera, e emendara um homem, já o mundo fora santo”, diz
Vieira no “Sermão da Sexagésima” (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
II: 49)); o emprego de formas verbais arcaicas (impida (=impeça),
despida (=despeça), seres (=serdes), formas do particípio passado
como afligido (promete Vieira, numa carta ao marquês de Nisa, “um
tão afeiçoado e fiel coração como ao presente fica desconsolado
e afligido” (Franco & Calafate, 2013-2014, I, I: 225)), bem como o
uso predicativo do relativo “cujo” (na Defesa perante o Tribunal do
Santo Ofício, diz Vieira: “lhe foi comunicado por aquele riquíssimo
e soberano Senhor, cujos são os tesouros deste e de toda a sabe-
doria” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, II: 152).
De todas as opções tomadas são os leitores da Obra Completa
informados, quer no texto sobre os critérios de transcrição textual
que acompanha todos os volumes da obra, quer em notas explicativas
de rodapé em casos específicos e pontuais, sendo-lhes dado conta
também de todas as intervenções de correção, acrescentamento ou
supressão de formas nos textos de Vieira, que são assinaladas por
meio de parênteses angulares e/ou acompanhadas de nota de rodapé.
Ao contrário do que dizia Vieira, para quem “Não há poder maior
no mundo, que o do tempo: tudo sujeita, tudo muda, tudo acaba”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, VII: 160-161), nem tudo o tempo

103
apaga. Estará neste caso a obra de Vieira, cujas palavras transpuseram
e transporão certamente os umbrais do tempo – não ousaremos
tanto para esta edição da sua Obra Completa, tanto mais que, e
recorrendo a uma citação bíblica cara a Vieira, “Muitos passarão e
múltipla será a ciência” (Dn 12, 4), esperamos tão-somente que ela
ocupe o justo lugar que merece, tanto mais que nela podem ser
encontradas as palavras todas deste homem singular que foi Vieira.

Bibliografia

Franco, J. E. & Calafate, P. (dir.) (2013-2014). Obra Completa Padre António Vieira.
S.l.: Círculo de Leitores.
León, M. (2004). La Memoria del Tiempo. Ciudad de México: Universidad Nacional
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Confluentes. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México.
Castro, I. de & Ramos, M. A. (1986). Estratégia e táctica da transcrição. In Critique
Textuelle Portugaise. Actes du Colloque (99-118). Paris: Fond. Calouste Gulbenkian.
Lemos, A. S. (2002). Para a edição da prosa literária escrita em português do século
xv . In Actes du XV e Congrès International de la Société Rencesvals – L’Épopée
Mediévale. Poitiers: Collection Civilisation Médiévale, 2 vols.
Carvalho, H. (2010). Correção e norma linguística. In E. Bechara. Estudo da
Língua Portuguesa: Textos de Apoio (385-395). Brasília: Fundação Alexandre
de Gusmão.

104
A vertente classicista na obra vieiriana

The classicist aspect in Vieira’s works

António Manuel de Andrade Moniz


Universidade Nova de Lisboa
ORCID | 0000-0003-3464-0228

Resumo
Numa prática recorrente da época renascentista e barroca, a obra
vieiriana contempla, quer no sermonário e outros discursos, quer
na História do Futuro e Clavis Prophetarum, uma notável vertente
classicista, integrando os principais autores gregos e romanos.
Conjugada com as fontes bíblicas e patrísticas, esta vertente é
utilizada, de modo pragmático, como argumento de autoridade,
necessário a uma retórica epidíctica ou persuasiva do auditor/
/leitor. De qualquer modo, não se trata de mero exercício de
erudição, mas sim de uma matriz ideológica e metodológica, de
inspiração humanista, capaz de fundamentar e perspetivar toda
uma análise e hermenêutica antropológica e histórico-cultural,
num objetivo ético-pedagógico evidente: recentrar a história a
partir da experiência humana e dos valores civilizacionais que
transcendem um território e uma época determinados.
Palavras-chave: classicismo; humanismo; valores ético-pedagó-
gicos e civilizacionais

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_6
Abstract
Vieira’s work contemplates a remarkable classical source, in-
cluding main Greek and Roman authors, in Sermons and other
discourses, as in História do Futuro and in Clavis Prophetarum.
In fact, that is a recurrent practice on that time. This source,
with the biblical and patristic authors, is a necessary argument
of authority to an epidictic or persuasive discourse. Anyway, it
is not a simple exercise of erudition, but a methodological and
ideological matrix of humanistic inspiration able to sustain and
perspective an anthropological, historical and cultural hermeneutic
and analysis, aiming an evident ethical and pedagogic goal: to
ground once again History in the human experience and the
civilized values besides a territory and a certain era.
Keywords: classicism; humanism; ethical, pedagogic and civili-
zational values

Uma das mais impressionantes marcas do discurso vieiriano, quer


na sua obra parenética, quer na profética, é a sua fundamentação
erudita, tanto na sua vertente clássica, como na bíblica e patrística.
De qualquer modo, não se trata de mero exercício de erudição,
mas, sim, de acordo com a prática recorrente da época, da sua
utilização, de modo pragmático, como argumento de autoridade,
necessário a uma retórica epidíctica ou persuasiva do auditor/leitor.
Com efeito, ela patenteia uma matriz ideológica e metodológica,
de inspiração humanista, capaz de fundamentar e perspetivar toda
uma análise e hermenêutica antropológica e histórico-cultural, num
objetivo ético-pedagógico evidente: recentrar a história a partir da
experiência humana e dos valores civilizacionais que transcendem
um território e uma época determinados.

106
Mitologia clássica e o humanismo de Vieira
A Grécia e a Roma clássicas configuram no pensamento vieiriano
os arquétipos de uma sociedade humanista.
No quadro mitológico de inspiração helénica, a lição ético-peda-
gógica dos mitos ovidianos da metamorfose é colhida como pano de
fundo de uma fé misteriosa, esbatendo a incompreensão do mistério
da transfiguração eucarística e da divinização humana operada pelo
manjar eucarístico. Assim, em Metamorfoses, I, 452-600, Dafne, ninfa
cujo nome já significa “loureiro”, transforma-se em louro, planta que
Apolo amava, ao ser perseguida por ele. Em III, 339-526, Narciso,
jovem muito belo que desprezava o amor e simboliza o defeito hu-
mano do individualismo, que viria, devido ao seu nome, a chamar-se
narcisismo, apaixona-se por si próprio e deixa-se morrer, ao con-
templar a sua imagem numa fonte. No local onde morreu, brotou
a flor que viria a tomar o seu nome. Em VI, 146-336, Níobe, filha
de Tântalo e mãe de 12 filhos, na tradição homérica (Il., XXIV,
599-609), por ter declarado ser superior a Leto, que só tivera um
filho, foi petrificada em mármore e os seus filhos foram mortos
por Apolo e Artemis, à exceção de dois, tendo aqueles ficado inse-
pultos durante 10 dias. Em X, 531-707, Hipómenes vence Atalanta,
numa corrida, com o estratagema de lhe atirar maçãs de ouro, que
Afrodite lhe dera, e assim atrasar a rival na competição, ao colher,
por curiosidade, as referidas maçãs. Hipómenes não só ganhou a
competição mas também a união com Atalanta, tendo ambos sa-
ciado o seu amor num santuário de Zeus. São, assim, por vingança
do pai dos deuses, transformados em leões, como castigo do seu
sacrilégio. Nos Fastos, IV, 417-434 e em Metamorfoses, XIV, 1-74,
Glauco, pescador da Beócia, tendo comido, por acaso, uma erva
que concedia a imortalidade, é transformado em deus marinho.
Os heróis épicos da guerra de Troia, configurados nos poemas
homéricos e nas tragédias gregas, como exemplos literários de lição
ético-pedagógica são aduzidos para entendimento dos mistérios da

107
fé cristã. Deste modo, o exemplo ovidiano da espada de Aquiles
que feriu e sarou Télefo, rei da Mísi ilustra o efeito antagónico da
eucaristia: “morte para os obstinados e vida para os arrependidos”
(cf. Tristia, I, 99-100; II, 19-20; IV, 5, 21-22; V, 2, 15-18).
A polémica cultural sobre o episódio da demanda das armas de
Ajax e Ulisses (cf. Met., XIII, 16-20, Il., II, 557; VII, 183; XIII, 46;
XXIII, 842; Od., XI, 469) serve para elogiar a combatividade missio-
nária de Francisco Xavier. Segundo a versão cara aos tragediógrafos
(cf. Sófocles, Ajax, passim), o herói enlouqueceu por lhe terem sido
recusadas as armas de Aquiles, após a sua morte, as quais Tétis,
sua mãe, tinha destinado ao mais valente dos gregos. Por despeito,
os troianos que foram interrogados sobre o assunto escolheram
Ulisses como destinatário dessas armas, em vez de Ajax. Num acesso
de loucura, este põe termo à vida. Atena castigou a injustiça feita
ao herói, perseguindo os gregos. Este episódio, segundo o orador
barroco, foi regado com lágrimas, como se aponta no discurso das
“Lágrimas de Heráclito defendidas em Roma pelo Padre António
Vieira contra o riso de Demócrito” (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
XV: 162ss.). Este fervor missionário é também evocado nos sonhos
do Apóstolo das Índias, citando-se, a este propósito, o descanso
dos animais com a ausência do sol (cf. Met., XI, 594-595). As cartas
deste santo são enaltecidas, acima de todas as representações ar-
tísticas que dele se fizeram, tal como Ovídio expressou a respeito
das suas próprias cartas (cf. Tristia, I, 11-12).
Vieira enaltece a distinção ovidiana entre as lágrimas da miséria
e as da ignorância, a propósito da tragédia de Penteu (cf. Met.,
III, 550-551), herói tebano, descendente de Cadmo, que se opôs ao
culto do deus Dioniso, sendo castigado, através das Bacantes, que
rasgam o seu corpo em pedaços (cf. Eurípides, Bacantes). A primeira
mulher a atacá-lo é Agave, sua própria mãe, a qual julga, em delírio,
tratar-se de um leão. As suas lágrimas são as da tragédia humana,
resultante da ignorância e da miséria. O orador alude ao episódio,

108
declarando que as lágrimas da ignorância fazem “corar o rosto”
às da miséria, acrescentando que Demócrito se ria, afinal, “das
verdadeiras misérias, e do verdadeiro motivo da dor” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, XV: 167), como também expressou Ovídio
(cf. Met. II, 19), enquanto “o pranto de Heraclito”, sendo “pelos
males alheios”, era “como a água, que caindo pouco a pouco vai
limando suavemente os mármores, e enfim os rompe” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, XV: 170), na alusão ovidiana (cf. Ars Amatoria,
I, 659). As lágrimas silenciosas de Briseide (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, XV: 171), que se tornou a escrava favorita de Aquiles,
na carta que lhe dirige (cf. Heroides, III, 133-134), testemunham o
seu poder ante o coração duro de Aquiles. Foi ela que constituiu
o motivo da cólera de Aquiles, quando este se recusa a combater
na Guerra de Troia, por ser disputada por Agamémnon, depois de
perder a escrava Criseide (cf. Il., I, 31ss.; II, 688ss.).
Faetonte, filho do Sol, é assinalado no mito que regista a sua
imprudência, desencadeando os perigos de uma conflagração uni-
versal, ao desviar-se do rumo da abóbada celeste, quer aproximando
demasiado da Terra o carro do pai que conduzia, quer elevando-o
demais nas alturas. Por isso, foi fulminado pelo pai, que o fez cair
no rio Erídano. Ao contrário do ouro das armadas do Tejo, desva-
necido com o tempo, esse ouro levado ao mar pelo rio, como no
mito de Faetonte (cf. Met., II, 251), a virtude da rainha D. Maria
Francisca Isabel de Saboia ergue-se como exemplo de magnificência
perante os seus súbditos.
A imagem poética da Primavera, coroada de flores, e do Verão,
coroado de espigas, disseminada pela literatura greco-latina, também
é colhida em Ovídio (cf. Met. II, 27-28), para simbolizar os bens
temporais e espirituais, “com Rute coroada de espigas; na Festa
com o Rosário coroado de flores” (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, IX: 234). O número ímpar dos mistérios do rosário (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, IX: 297) encontra um paralelismo com a

109
magia ovidiana, nos encantos de Medeia, feiticeira levada por Jasão
da Cólquida, mar Negro, ao demandar o velo de ouro (cf. Met., VII,
234-235). A metáfora da Via Láctea, patente em vários textos gregos
e latinos, e também inspirada em Ovídio (cf. Met., I, 7, 168-170), é
aplicada ao rosário (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IX: 393-396,
398-400, 401, 403, 405-407, 409-412).

O Império Romano e o humanismo de Vieira


A designação de Império Romano na obra do Padre António Vieira
abarca três aceções: a expansão de Roma no período republicano,
para as províncias itálicas e para o exterior; a forma do regime que
sucedeu à república, assente no poder de um príncipe, ou pessoa
mais importante (princeps), relegando para segundo plano as ins-
tituições democráticas, como o Senado e os comícios populares; o
Sacro Império Romano-Germânico, herdeiro do Império Romano.
A universalidade do Império Romano é interpretada pelo escritor
seiscentista como meio facilitador da penetração evangélica no
Velho Mundo, na carta apologética que escreveu ao padre Jácome
Iquazafigo, provincial de Andaluzia da Companhia de Jesus (Franco
& Calafate, 2013-2014, I, V: 84-85). Na mesma carta, interpreta a
profecia de Daniel (7, 4-8) como referente aos quatro impérios, o
último dos quais o romano, “na figura de uma besta de estranha
ferocidade e forças, representadas por dez cornos, pelos quais na
Escritura se declara a fortaleza e o poder” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, I, V: 96). Identificando o “corninho” da profecia com o Islão,
atribui ao Império Otomano o domínio de três partes do antigo
Império Romano: “uma na Ásia, outra em África, outra na Europa”
(Franco & Calafate, 2013-2014, I, V: 97). Na carta política ao conde
de Castelo Melhor, elogia o exército disciplinado do procônsul
Júlio César, com o qual “sujeitou ao império romano a multidão de
bárbaras nações desde as ribeiras do Reno, no mar Oceano, até o
Mediterrâneo” (Franco & Calafate, 2013-2014, I, V: 216).

110
Na terceira parte da proposta feita ao príncipe regente D. Pedro
sobre o “Papel nas Cortes”, o epistológrafo, por um lado, admite a
permissão de Deus ao Império Romano “para premiar as virtudes
naturais que muitos dos romanos tiveram” (Franco & Calafate,
2013-2014, I, V: 340), segundo S. to Agostinho e S. Tomás, mas, por
outro, atribui à Providência divina a destruição do Império Romano,
dissipando as forças dos imperadores, castigando as “crueldades de
Tibério, de Nero e de Calígula” (Franco & Calafate, 2013-2014, I,
V: 339), permitindo, com as guerras civis de Otão, Galba e Vitélio,
a rebelião das províncias do Norte, dos persas, da Macedónia e
da Gália, o avanço dos vândalos, dos alanos e dos godos sobre
Roma, Andaluzia, Espanha, África e Lusitânia, dos hunos sobre a
Panónia, e, ultimamente, dos turcos sobre a Síria, o Egito, a Sicília
e Constantinopla:

e nesta forma aquele romano império, que soberbamente


se estendia desde o oceano ibérico até ao rio Tigre, e desde o
monte Atlante até à selva Caledónia, e via o rio Álbis, e passava o
Danúbio, o vemos reduzido a uma só província na Europa. (Franco
& Calafate, 2013-2014, I, V: 339)

O Império Romano ocupa um espaço considerável no sermo-


nário vieiriano.
No “Sermão da Primeira Dominga do Advento”, o tema da sucessão
dos impérios é debatido, de acordo com as leituras proféticas de
Daniel (2, 31-45; 7) e de Zacarias (1, 7-17), isto é, o da efemeridade
dos impérios, já que “tudo passa”: a visão de Nabucodonosor (a es-
tátua de quatro metais), a de Zacarias (as quatro carroças de cavalos
de diferentes cores) e a de Daniel (o conflito dos quatro ventos
principais, numa batalha marítima). Apesar da firmeza indiciada na
estátua e na dureza dos seus metais, a variedade e a inconstância
imperiais são sugeridas nas rodas das carroças e na velocidade

111
dos cavalos, mas, sobretudo, “na coisa mais inquieta, mudável, e
instável, quais são os ventos, e muito mais quando embravecidos,
e furiosos” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, I: 114-115).
O “Sermão da Sexta Sexta-Feira da Quaresma” responsabiliza os
imperadores Tito e Vespasiano pelo cerco e destruição do templo
de Jerusalém (ano 70), na sequência da morte de Jesus: “e porque
mataram aquele Homem, vieram os Romanos, e tomaram Jerusalém,
e não deixaram nela pedra sobre pedra. Que é de Jerusalém? Que é
da República Hebreia? Quem a destruiu? Quem a decepou? Quem a
acabou? Os Romanos” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV: 427).
A propósito da ambição dos Apóstolos na conquista do maior lugar
entre eles, o “Sermão da Dominga Décima Sexta post Pentecosten”
aduz o exemplo do Imperador Trajano (53-117), reportado por
Plínio, o Jovem, segundo o qual “ninguém o conhecia tão pouco
a ele, nem se conhecia tão pouco a si, que tivesse ousadia de lhe
suceder” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 273).
Diante do marquês de Montalvão, vice-rei do Brasil, no “Sermão
da Visitação de Nossa Senhora”, pronunciado na Baía, o orador
sacro estabelece um contraste entre a ação do romano Paulo Fábio,
restaurando a Macedónia e reduzindo-a ao Império Romano, aca-
bando “em poucos dias aquela guerra que tinham governado quatro
Cônsules antes de mim, entregando-a sempre cada um a seu sucessor
em pior estado” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VII: 84), e a ação
de quatro generais que governaram a guerra do Brasil, depois de
ocupado Pernambuco pelos holandeses:

Passou-se a fortuna a Holanda, nós a retirar, nós a descair,


nós a perder, de sorte que de quatro Generais valorosos, nenhum
governou a guerra, que a não entregasse a seu sucessor em pior
estado do que a recebera. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VII: 84)

112
A questão dos tributos lançados aos vassalos do Imperador
Teodorico, que governou Roma (493-526) após a queda do Império
Romano do Ocidente (476), e preservou o Senado e as instituições
imperiais, numa atitude conciliatória, é posta no “Sermão de Santo
António”, pronunciado em Lisboa (1642), atitude que é explicitada
na seguinte frase, dirigida aos seus vassalos: “Eu sei que há tributos,
porque vejo as minhas rendas acrescentadas; vós não sabeis se os há,
porque não sentis as vossas diminuídas” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, X: 104).
A divisão do Império Romano é evocada no “Sermão de Santa
Catarina Virgem, e Mártir”:

[…] um chamado Ocidental, de que continuou a ser cabeça


Roma; outro chamado Oriental, de que começou a ser cabeça
Constantinopla; e foram os dois novos Imperadores, do Ocidente
Severo, e do Oriente Maximino, ambos tiranos, mas com os nomes
trocados; porque Maximino não só foi Severo, senão o extremo da
severidade, e da sevícia. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 373)

A divisão das águias romanas em duas cabeças e a estátua de


Nabucodonosor simbolizam tal divisão. Fragmentada entre a cabeça
de ouro (Império Assírio), peito de prata (Império Persa), ventre
de bronze (Império Grego) e o resto de ferro (Império Romano), a
estátua de Nabucodonosor significa a ruína de todos os impérios,
incluindo o romano, bastando a queda de uma pedra para que toda
ela ruísse e “naqueles dois pés divididos entre si, e cada pé divi-
dido em cinco dedos, e cada dedo dividido em ferro, e barro, teve
o seu último complemento a divisão do Império Romano” (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, X: 373). À crença de Plutarco, quanto ao
“perpétuo assento” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 373) da
Fortuna em Roma, o orador opõe a pergunta, aos imperadores ro-
manos, “onde está aquela sua fortuna de ouro, ou o ouro daquela

113
fortuna” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 374), pergunta à qual
responde: “Busque-se em todo o Mundo o Império Romano, e não
se achará dele mais que o nome, e este não em Roma, senão muito
longe dela” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 375). E acrescenta:
“Acabaram-se as guerras, e vitórias Romanas […]. Acabou Nero […];
acabou Trajano […]; acabou Marco Aurélio” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, X: 375); “porque se fiaram falsamente do Império
sem fim” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 376).
O “Sermão de Santo Inácio”, pronunciado em Lisboa (1669), evoca
a influência no santo fundador da Companhia de Jesus da memória
épica dos povos ibéricos, a par dos gregos, romanos e cartagineses:
“como Roma em Cipião, e Cartago em Aníbal foram despojos de
Espanha: os Cids, os Pelaios, os Viriatos, os Lusos, os Geriões, os
Hércules, eram os homens com cujas semelhanças heroicas o ani-
mava” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 486).
O “Sermão de Todos os Santos”, em Lisboa (1643), exalta as
virgens martirizadas no Império Romano, como S.ta Cecília, S.ta Inês,
S. ta Luzia, S. ta Felícula, S. ta Flávia Domitila, S. ta Dinfna, S. ta Ifigénia,
S. ta Catarina e S. ta Susana.
O “Sermão Duodécimo. Da sua Proteção”, em honra de S. Francisco
Xavier, cita Tácito (Anais, 1, 11), em relação aos limites impostos por
Augusto ao Império Romano, “ou por medo ou por inveja”, medo do
enfraquecimento do Império, inveja e receio de que outros tivessem
maior império que o seu, como Cláudio e Trajano tiveram. Por isso,
Constantino, ao criar em Bizâncio uma nova Roma, “entendeu que
para sustentar um Império tão grande como o Romano não bastava
uma só Roma, senão duas Romas, nem uma só Cabeça, senão duas
Cabeças, como depois apareceram divididas nas Águias Imperiais”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, XII: 374).
O “Sermão de Ação de Graças pelo Nascimento do Príncipe
Dom João” na Baía (1688), regressa ao tema do Império Otomano,
sinal do aparecimento do Quinto Império, após a queda do Império

114
Romano. Segundo a interpretação do capítulo vii do profeta Daniel,
“aquele cornu parvulum significa a Mafoma, e a sua infame seita”,
que dominou grande parte de África, Ásia e até Europa, onde con-
quistou “três partes tão consideráveis, do que pertencia ao Império
Romano” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIII: 243).
O “Discurso apologético”, oferecido à rainha, mas não pronun-
ciado, volta ao tema dos impérios, a partir das “quatro feras”, do
profeta Daniel, aplicando a última ao Império Romano, cujos dentes
de ferro indiciam a sua força e poder:

As doze asas da Águia representavam o poder, e grandeza do


mesmo Império Romano estendido, e dilatado por todo o mundo
até então conhecido: e as penas das asas são os Reinos, e nações
sujeitas, e dominadas, de que se compunha a grandeza, e vestia
a majestade do mesmo Império. (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, XIII: 277)

O domínio dos povos colonizados por Portugal, na África, Ásia


e América, escapa, porém, à tutela do Império Romano, que se
havia verificado “quando os Romanos dominaram toda a Espanha”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIII: 280).
O “Sermão das Exéquias do Sereníssimo Infante de Portugal
Dom Duarte” (1649) reproduz a cena do horto do Getsémani na
qual Jesus é preso pelos soldados do Império Romano, “capitaneados
por Judas” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIV: 46).
O tema do Quinto Império permite ao autor da obra profética
evocar repetidamente o exemplo do Império Romano, repetindo e
ampliando o que havia proferido na obra parenética.
Assim, nos “Prolegómenos a toda a História do Futuro”, é de
novo aduzido o facto da limitação da grandeza do Império Romano
por Augusto, com o Senado, citando-se mais uma vez Tácito sobre
a interpretação de tal facto, se fruto “do receio ou da inveja”, ex-

115
plicitando-se os temores do príncipe, à semelhança de Alexandre,
quando dividiu o seu império:

Temeu César (se foi receio) que um corpo tão enormemente


grande não se pudesse animar com um só espírito, não se pu-
desse governar com uma só cabeça, não se pudesse defender com
um só braço; ou não quis (se foi inveja) que viesse depois outro
imperador mais venturoso que trespassasse as balizas do que ele
até então conquistara, e fosse ou se chamasse maior que Augusto.
(Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 78)

Citando a Eneida, de Virgílio (VIII, 625-629), o referido texto


profético alude às armas do herói épico, forjadas pelo deus Vulcano,
com as quais conquistou Itália e “fundasse naquelas terras o famo-
síssimo império romano, que pelos fados lhe estava prometido”,
esculpindo no seu escudo “as histórias futuras das guerras e triunfos
romanos” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 103).
Citando Clepero, interpreta do ponto de vista astrológico a su-
jeição do Império Romano a Espanha, unida a Portugal, ou seja, o
império cristão, sujeição simbolizada na conjunção do signo sagi-
tário (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 304). Citando Cyprianus
Leovitius, interpreta a estrela Cassiopeia como símbolo da ruína do
Império Romano: “O certo é que os decretos desta estrela te serão,
ó Europa, calamitosos e perversos, sobretudo ao império romano e
a seus membros” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 308).
Na História do Futuro, continua o desenvolvimento do tema profé-
tico do Quinto Império, em comparação com os restantes. A datação
da história de Roma, a partir de Rómulo e as suas “primeiras
choupanas”, é contabilizada em 700 anos, na qual é contemplada a
duração do Império Romano, a partir de Júlio César, em 400 anos,
“com sucessão de 35 imperadores até o grande Constantino” (Franco
& Calafate, 2013-2014, III, I: 437). Segue-se a divisão do Império

116
em oriental e ocidental, simbolizada nas duas cabeças das águias
romanas. O Império Oriental, em quase 1000 anos, contou com 84
imperadores até ser vencido pelo Império Otomano. O Império do
Ocidente ressuscita, em 800, com a coroação de Carlos Magno como
“Imperator Romanorum”, fazendo a sua sede na Alemanha, “ficando
Roma como cabeça da Igreja” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I:
437). A simbologia do ferro, aplicada ao Império Romano, é explicada,
a partir do profeta Daniel (2, 40), em função das qualidades deste
metal: “assim como o ferro lima, bate, corta e doma todos os metais,
sem haver algum que lhe possa resistir, assim o império romano e
o poder invencível de suas armas havia de abater, desfazer, sujeitar
e dominar todos os outros impérios” (Franco & Calafate, 2013-2014,
III, I: 442). A simbologia dos pés da estátua serve para enfatizar
a base de sustentação dos outros impérios pelo Império Romano:
“assim como os pés da estátua sustentavam e tinham sobre si o peso
e grandeza de toda ela, assim o império romano teve sobre si e em
si o peso e grandeza de todos os outros impérios que nele se uniram
e ajuntaram” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 442). Por outro
lado, a divisão do Império é significada na divisão dos pés em 10
dedos, ou 10 reinos: “Portugal, Castela, França, Inglaterra, Suécia,
Dinamarca, Moscóvia, Polónia e Estado ou império do Turco, e o
mesmo império romano que compreende Alemanha e Itália” (Franco
& Calafate, 2013-2014, III, I: 444). Os pés, parcialmente formados
de ferro e de barro, indiciam as virtualidades e as fraquezas não
apenas do Império Romano, mas também dos reinos dele derivados,
como França, Inglaterra, Suécia e Espanha, os quais, incapazes de
se unirem numa “liga firme”, herdaram o espírito divisionista de
Rómulo e Remo:

Nasceu juntamente com Roma esta fatal desunião contra o


respeito do sangue, em Rómulo e Remo: viu-se no casamento de
Pompeu com Júlia, filha de Júlio César, e no de Marco António

117
com Octávia, filha de Octávio, quão facilmente se desatam; antes
se armam contra si as mesmas mãos que pelo matrimónio se
uniram. (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 446)

Depois de evocar os robustíssimos romanos, os “maiores capitães


e imperadores, como Cipião, Pompeu, César, Augusto, Vespasiano,
Trajano, Constantino, Teodósio” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I:
458), exalta os “valentíssimos, audacíssimos e fortíssimos” espanhóis,
que “conquistaram estas regiões novas e incógnitas, não pelejando
contra homens, como os antigos romanos, senão contra os ventos,
contra os mares, contra o céu, contra o sol, contra todos elementos
e contra a mesma natureza a que venceram e contrastaram” (Franco
& Calafate, 2013-2014, III, I: 458).
No comentário à “Visão da besta”, anunciada no livro do
Apocalipse (17, 1), a Mulher assinalada é reconhecida como Roma,
“a cidade grande que tem império sobre os reis da terra”, a “ca-
beça do império romano”, no tempo da perseguição de Domiciano
contra os cristãos, simbolizando a cor vermelha dos vestidos da
besta e da Mulher o sangue dos mártires. As “sete cabeças da besta”
representam as sete colinas da cidade: Capitólio, Palatino, Célio,
Esquilino, Viminal, Quirinal e Aventino (Franco & Calafate, 2013-
-2014, III, I: 570).
Na questão 4.ª, é estabelecido, a partir das visões de Daniel (o
“ferro e barro da estátua”, a “4.ª besta”, a “4.ª carroça”) um contraste
entre o Império Romano e o de Cristo, ou Quinto Império, em múlti-
plos aspetos: um, “corruptível”, o outro, “eterno”; um, “particular”, o
outro, “universal”; um, “violento e tirânico”, o outro, “justo, legítimo
e santo”; um, “adquirido por ferro e força de armas”, o outro, “dado
por Deus” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, II: 267).
O Império Romano surge como interpretação mais plausível
de S. João Crisóstomo da Segunda Epístola de S. Paulo aos
Tessalonicenses (2, 6), a propósito da manifestação do Anticristo

118
(Franco & Calafate, 2013-2014, III, III: 235-236). Assim, acrescenta
Vieira, como opinião comum da patrística, “que a sobredita divisão
do império romano assinada por São Paulo foi dada [26v.] por sinal
da vinda do Anticristo” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, III: 239).
Perante a Inquisição, em Coimbra (1663), o acusado sustenta que
“é sentença de {alguns} Padres, e teólogos, que […] o Império Romano
há de durar até o fim do mundo” (Franco & Calafate, 2013-2014, III,
IV: 124). Em 1666, o declarante é confrontado com a afirmação de
“o dito seu Quinto Império espiritual, e temporal de Cristo, como
tem dito, há de começar com a extinção do império Romano, e durar
mil anos” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, IV: 218). Confirmando
que o Quinto Império virá com a extinção do Império Romano,
porque “quando se fala em extinção do dito Império, não é extinção
absoluta, senão extinção dele na Casa de Áustria”, acrescenta que
“o Império Romano há de sair daquela casa, e passar-se à Real de
Portugal” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, IV: 420).
Na Clavis Prophetarum, o Império Romano é comparado com o
de Cristo: “nascidos quase ao mesmo tempo e sempre continuados
até à época presente” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, V: 200);
“o Reino de Cristo é completamente diferente do império romano,
conquanto a mesma Roma, que foi capital de um, o seja também do
outro” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, V: 200); “Outrora Roma era
a cabeça do mundo estando à frente com senhorio terreno, e hoje
com a religião divina” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, V: 200);

o império romano, na época da sua máxima extensão, encerrava-se


entre os limites do Mar Negro e do Estreito de Gibraltar […], ao
passo que o Império de Cristo, espalhando-se muito para além do
Oceano, não só senhoreia o Velho Mundo, que nunca obedeceu na
sua totalidade aos romanos, mas também o Novo, ou melhor, os
Novos, com uma extensão quase incomensurável, desde o Oriente
ao Ocidente. (Franco & Calafate, 2013-2014, III, V: 201)

119
Conclusão
Disseminada ao longo da obra vieiriana, a vertente classicista
configura não apenas a prática recorrente da época de sustentar,
como argumento de autoridade, naquela cultura os pontos de vista
expostos, mas também um quadro de valores ético-pedagógicos
constitutivos de uma sociedade designada como humanista.
Com efeito, quer através dos mitos épicos e trágicos aduzidos,
quer através da citação dos principais autores clássicos, essa so-
ciedade é continuamente delineada, configurada e proposta como
objetivo referencial essencial e inalienável.
O exemplo do Império Romano, concebido como o quarto na
sucessão dos impérios universais e precedendo o de Cristo, não
deixa de interpelar os leitores e ouvintes de Vieira, tanto nos seus
aspetos positivos como negativos, apontando uma orientação para
a chamada História do Futuro, alicerçada na Palavra inspirada e
n’A Chave dos Profetas (Clavis Prophetarum).

Bibliografia

Franco, J. E. & Calafate, P. (dir.) (2013-2014). Obra Completa Padre António Vieira.
S.l.: Círculo de Leitores.
Ovídio (1925, 1928, 1930). Les Métamorphoses (I-V; VI-X; XI-XV). Paris: Les Belles-Lettres.
Ovídio (1928). Les Héroïdes. Paris: Les Belles-Lettres.
Ovídio (1968). Tristes. Paris: Les Belles-Lettres.
Ovídio (1992). Les Fastes. Paris: Les Belles-Lettres, 2 vols.
Ovídio (2002). L’Art d’Aimer. Paris: Les Belles-Lettres.
Ovídio (2010). Les Remèdes à l’Amour. Paris: Les Belles-Lettres.
Virgílio (1992). Eneide. Paris: Les Belles-Lettres.
Vieira, A. (1959). Sermões. Porto: Lello & Irmão Editores.

120
Padre António Vieira, o defensor dos filhos de Tupá:
um conto esquecido de Firmino Rodrigues da Silva

Father António Vieira, the defender of the sons of Tupá:


a forgotten tale by Firmino Rodrigues da Silva

Wilton José Marques


Universidade de São Paulo
ORCID | 0000-0003-2559-9331

Resumo
No longo processo de consolidação da literatura brasileira ao
longo do séc. xix , a temática indianista ocupou provavelmente
o lugar mais importante no ideário romântico local, pois, com
o seu progressivo desenvolvimento, o indígena foi “simultanea-
mente guindado à posição de objeto estético, herói literário e
antepassado mítico histórico” (Galvão, 1979: 383). Por isso, não
chega a ser surpreendente que, ao invadir todas as artes além
da propriamente literária, o indianismo praticamente tenha se
confundido com a ideia de romantismo. Dessa forma, e à força
de muita repetição, a sobrevalorização simbólica do “brasileiro
autêntico” consolidou-se plenamente na literatura brasileira, so-
bretudo pela ressonância in loco dos projetos estético-literários
de Gonçalves Dias e de José de Alencar. Entretanto, anterior
aos respectivos aparecimentos literários do poeta maranhense
e do romancista cearense, um outro autor, ilustre desconhecido

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_7
nos dias de hoje, também desempenhou um papel singular no
início do processo de afirmação do temário indianista. Trata-se
de Firmino Rodrigues da Silva (1815-1879).
Palavras-chave: Vieira; indianismo; romantismo; conto; literatura

Abstract
In the long process of consolidation of Brazilian literature
throughout the 19th century, the Indian theme probably occupied
the most important place in the local romantic ideology, because,
with its progressive development, the Indian was “simultaneously
elevated to the position of aesthetic object, literary hero and
historical mythical ancestor” (Galvão 1979: 383). Therefore, it
is not surprising that, by invading all the arts beyond literature,
Indianism was practically confused with the idea of romanti-
cism. In this way, and due to much repetition, the symbolic
overvaluation of the “authentic Brazilian” was fully consolidated
in Brazilian literature, especially by the local resonance of the
aesthetic-literary projects by Gonçalves Dias and José de Alencar.
However, prior to the respective literary appearances of these
authors, another author, virtually unknown today, also played a
singular role at the beginning of the process of affirmation of
the Indianist agenda: Firmino Rodrigues da Silva (1815-1879).
Keywords: Vieira; indianism; romanticism; tale; literature

Um prólogo necessário
No longo processo de consolidação da literatura brasileira ao longo
do séc. xix, a temática indianista ocupou provavelmente o lugar mais
importante no ideário romântico local, pois, com o seu progressivo
desenvolvimento, o indígena foi “simultaneamente guindado à posição
de objeto estético, herói literário e antepassado mítico histórico”

122
(Galvão, 1979: 383). Por isso, não chega a ser surpreendente que, ao
invadir todas as artes além da propriamente literária, o indianismo
praticamente tenha se confundido com a ideia de romantismo. Dessa
forma, e à força de muita repetição, a sobrevalorização simbólica do
“brasileiro autêntico” consolidou-se plenamente na literatura brasileira,
sobretudo pela ressonância in loco dos projetos estético-literários de
Gonçalves Dias e de José de Alencar.
Entretanto, anterior aos respectivos aparecimentos literários do
poeta maranhense e do romancista cearense, um outro autor, ilustre
desconhecido nos dias de hoje, também desempenhou um papel
singular no início do processo de afirmação do temário indianista.
Trata-se de Firmino Rodrigues da Silva (1815-1879). Jornalista e
panfletário de destaque nos quadros do Partido Conservador e que,
mais tarde, seria juiz, deputado e, finalmente, senador do Império,
Firmino, sem nunca ter publicado sequer um livro de poemas, sempre
aparece ao longo da história literária oitocentista, citado aqui e ali,
como o autor de um poema que é considerado um dos primeiros de
feição propriamente indianista, a “Nênia à morte do meu bom amigo
o Dr. Francisco Bernardino Ribeiro”. Datado de 15 de setembro de
1837, mas somente publicado num periódico político-partidário – o
jornal O Brasil –, em 16 de março de 1841, e, portanto, cinco anos
antes de Gonçalves Dias e seus Primeiros Cantos (1846), este poema
de Firmino foi recorrentemente lido por autores e críticos como um
referencial importante para a definição do indianismo romântico.1
Antes, no entanto, da publicação da famosa nênia, Firmino Rodrigues,
ao dar seus primeiros passos no jornalismo, também publicou três
pequenos contos no início do ano de 1838. No dia 7 de janeiro, apa-
receu “Um sonho” no Gabinete de Leitura (1837-1838) (Silva, 1838,
22: 175-176). No dia 13 de janeiro, “Os três desejos” (Silva, 1838, 130:

1Para maiores detalhes sobre a importância deste poema de Firmino Rodrigues Silva
bem como de sua repercussão na literatura oitocentista brasileira, ver: Marques, 2015.

123
1-3) e, finalmente, no dia 5 de fevereiro, “Mariana Pinta” (Silva, 1838,
139: 1-3), ambos no folhetim literário “Apêndice” do jornal O Cronista
(1836-1839). A publicação dos contos nesses dois periódicos não foi
obra do mero acaso, já que Firmino, então advogado recém formado,
possuía uma forte relação de amizade, que vinha ainda dos tempos da
academia em São Paulo, tanto com Justiniano José da Rocha quanto
com Josino do Nascimento Silva. Em 1836, os dois amigos fundaram
O Cronista,2 e, em 1837, Josino criou o Gabinete de Leitura.3
De modo geral, a chamada obra literária de Firmino Rodrigues
é muito escassa, tanto que a ele, do que até hoje se conhece, é
atribuído, além dos três contos citados, a autoria de pouco mais de
10 poemas. Se, por um lado, e antes de mais nada, o autor ficou
conhecido na tradição literária pela grande repercussão da famosa
nênia, por outro, seus três contos foram considerados exemplos que,
a despeito da qualidade estética em si, ao menos contribuíram para
a disseminação do gênero no Brasil. Numa obra pioneira sobre o de-
senvolvimento do conto no país, Barbosa Lima Sobrinho, fixando-se
sobretudo no parâmetro histórico-cronológico, elenca uma série
de autores que publicaram seus textos no período de 1830 a 1840.
Entre tais autores, chamados de precursores, Lima Sobrinho incluiu
dois contos de Firmino Rodrigues Silva: “Um sonho” e “Três desejos”

2 Fundado em 1836, O Cronista foi um periódico que, de saída e ancorado no


lema – “Há no mundo quem tenha mais juízo que Voltaire, mais força que Napoleão –
é o povo” –, não se aliou a nenhuma corrente partidária, tentando manter alguma in-
dependência em relação às rusgas que animavam o debate público entre o governo e
o parlamento. No entanto, sobretudo ao adotar uma nova postura de oposição siste-
mática ao então regente o P.e Diogo Antônio Feijó, o jornal foi se encaminhando para
o lado, ou melhor, para os braços do núcleo político que, pouco depois, formaria
o Partido Conservador.
3 Fundado em 1837, o Gabinete de Leitura era periódico semanal, voltado tanto
para a disseminação da literatura no país quanto para a difusão do hábito de leitura
entre os brasileiros, e mais notadamente da prosa ficcional. Segundo Marlyse Meyer,
o Gabinete de Leitura “é certamente a mais importante publicação para o estudo
dos primórdios do romance brasileiro; publicou uma série de novelas de Pereira e
Silva com nítida influência de Luiza, de Mme. Helme, muitas crônicas, primeiro em
tradução, depois originais, visivelmente imitadas de Paul de Kock” (Meyer, 1996: 430).

124
(1960: 135). No entanto, é importante ressaltar que o terceiro conto,
“Mariana Pinta”, citado tanto na introdução do livro de Lima Sobrinho
inicialmente como “Mariano Pinto” – “Firmino Rodrigues da Silva, autor
de Os Três Desejos e de Mariano Pinto” (Sobrinho, 1960: 17-18) –
quanto no pequeno texto de apresentação de Firmino Rodrigues
do mesmo livro apenas como “Mariana” – “Publicou em O Cronista
os escritor Os três desejos e Mariana, com as iniciais F. R. da S.”
(Sobrinho, 1960: 135) –, nunca foi, ao que tudo indica, reproduzido
desde a sua publicação inicial em O Cronista, em 13 de fevereiro de
1838, o que evidentemente lhe confere algum ineditismo literário.
Se hoje a distância temporal dificulta, e muito, o encontro da
possível explicação que norteou a exclusão de “Mariana Pinta” da
antologia organizada por Lima Sobrinho em 1960, a sua preocupação
temática, centrada na sobrevalorização do papel histórico do Padre
António Vieira como defensor dos indígenas brasileiros, justifica
a necessidade de trazer novamente à luz este pequeno conto de
Firmino Rodrigues Silva. Sobretudo quando se leva em conta que a
temática indianista, no contexto histórico de seu aparecimento em
1838, relaciona-se com os primeiros passos do movimento român-
tico brasileiro e, por tabela, com o início do processo de afirmação
literária, em termos nacionalistas, do indianismo literário. 4

O padre e a índia
De saída, no entanto, é importante observar que existem dois
problemas pontuais que permeiam o conto “Mariana Pinta”. O pri-
meiro se refere às especificidades teóricas que caracterizam o conto
como gênero literário. Em outras palavras, a despeito da própria
elasticidade do conceito do conto, o texto de Firmino apresenta um

4 Como se sabe, a historiografia literária considera que o romantismo brasileiro foi


iniciado no ano de 1836 com a publicação do livro Suspiros Poéticos e Saudades, de
Gonçalves de Magalhães, e da Revista Niterói. Com influência direta do romantismo
francês, tanto o livro quanto a revista foram publicados em Paris.

125
caráter algo hibrido. Ou seja, o texto em si é, a rigor, alguma coisa
indefinida entre crônica histórica e conto, misturando informações
históricas com a ficcionalização de um fato particular da vida do
Padre António Vieira, quando de sua estada no Brasil, entre 1653
e 1661, ou, de modo mais preciso, o momento da prisão do jesuíta e,
consequentemente, de sua expulsão do país.
Por outro lado, o segundo problema está centrado na evidente
divergência em torno do próprio título, já explicitada pelas pas-
sagens citadas de Lima Sobrinho. Como se mostrou, no livro do
crítico, o conto é intitulado ora como “Mariano Pinto”, ora apenas
“Mariana”. No entanto, defende-se que, na verdade, o conto se
chama “Mariana Pinta”. Nessa perspectiva, se se recorre à edição
do jornal O Cronista em que o conto foi publicado aparece ainda
um terceiro nome: “Mariana Pinto” (Silva, 1838, 139: 1). Entretanto,
o problema do título se esclarece quando, por sua vez, recorre-se à
obra usada por Firmino Rodrigues como fonte histórica, ou seja, a
primeira e encomiástica biografia do jesuíta, A Vida do Apostolico
Padre Antonio Vieyra (1746), do também jesuíta André de Barros.
Na parte iii do referido livro, em que se narra a prisão de Vieira,
quando Barros refere-se ao primeiro aparecimento da indígena, é
possível ler o seguinte: “Uma Índia, chamada Mariana Pinta, tinha
valor para quebrar este encanto, e caridade para desprezar temores”
(Barros, 1746: 327).5 Portanto, é plausível afirmar que, na verdade,
o título do conto de Firmino seria mesmo “Mariana Pinta”, o que,
inclusive, pode sugerir que a incorreção que saiu em O Cronista –
“Mariana Pinto” – tenha sido muito provavelmente causada por um
mero erro de natureza tipográfica.
Esclarecidos os problemas de gênero e título, pode-se dizer que,
em linhas gerais, o enredo do conto é, de início, focado na chegada
do Padre António Viera ao Maranhão, destacando, ao lado da pro-

5 Na passagem citada, o português foi atualizado ortograficamente.

126
digiosa natureza brasileira, a sua então permanente luta contra a
escravização dos indígenas. Já na parte final, e por descontentar os
interesses dos colonos locais, o Padre Viera acabou sendo preso e,
por fim, deportado para Lisboa. No entanto, ainda isolado na prisão,
o jesuíta recebeu a inusitada ajuda de uma indígena, Mariana Pinta,
que, por sua vez, e durante todo o período de cárcere, providenciou-lhe
comida. Por causa de tal gesto, Mariana teve a casa queimada pelos
colonos, mas, em reconhecimento ao seu sentimento de caridade, os
próprios jesuítas se responsabilizariam, mais tarde, pela educação
de um de seus filhos, que viria a se tornar sacerdote.
Personagem emblemático das histórias de Brasil e Portugal, o
Padre Vieira, cuja infância fora aquecida “pelo sol brilhante dos tró-
picos”, é representado no conto de maneira hiperbólica, sobretudo
no que se refere à sua reiterada defesa dos indígenas brasileiros,
sendo, inclusive, ao longo do texto, comparado ao frei espanhol
Bartolomeu de Las Casas que “troou contra os assassinos dos des-
cendentes dos Incas, e Vieira ergueu-se no Brasil o defensor dos
filhos de Tupá” (Silva, 1838, 139: 2).
Em suma, ao insistir a todo momento que Vieira “quer defender
os infelizes”, Firmino Rodrigues, ao também ressaltar o sentimento
de caridade de Mariana, contribui, mesmo que de maneira tímida,
para a introdução da personagem indígena na cena literária local.
Além do mais, a sobrevalorização do gesto de Mariana se adequava
perfeitamente ao ansiado espírito romântico que, por assim dizer,
começava a dar seus primeiros passos na literatura brasileira, o
que, mais uma vez, justifica a óbvia necessidade de trazer à luz
este esquecido conto de Firmino Rodrigues da Silva.

127
APÊNDICE 6

Crônicas Brasileiras

Mariana Pinta 7
Não foram insignificantes motivos que conduziram o Padre
António Vieira as margens do Amazonas, desse formidável rei dos
rios que luta peito a peito com o oceano, reúne-o e lhe invade o
domínio. A uns coube a sorte de varar florestas ainda não calcadas
pelo pé do homem civilizado, de afrontar perigos imensos, extraor-
dinários para descobrirem os veios das suspiradas minas; enquanto
que outros embevecidos na contemplação de tão estupendas ma-
ravilhas, devorados pelo amor da ciência iam indagar do gênio do
rio a revelação de seus mistérios, o número de seus feudos, quais
as nações que lhe bordavam as margens.
Assuntos de maior transcendência guiaram o celebre orador de
Portugal às majestosas florestas do Grão-Pará. Era o amor da religião
e da humanidade quem o arrancava do meio de seus triunfos, da
admiração dos reis, e do respeito e veneração dos povos. Educado
na América desde a mais tenra infância, aquecido pelo sol bri-
lhante dos trópicos, ele preferia as florestas virgens do mundo da
natureza aos decantados monumentos que adornam o mundo da
civilização – a Europa.
Era então o tempo em que a cobiça e a avidez do ganho mais
destruidoras que a peste, mais insaciáveis que a sede, tornavam
ignóbeis e infames os dois benefícios da civilização. As cordilheiras
gemiam com o despedaçamento de suas entranhas, e as florestas

6 Silva, 1838, 139: 1-3.


7 O texto foi atualizado ortograficamente, segundo as normas atuais do padrão
culto da língua portuguesa. Quanto aos demais aspectos expressivos, procurou-se
preservá-los tais quais estão em O Cronista, sobretudo os que se referem à pontuação,
ainda que, em alguns momentos pontuais, signifique menosprezar as regras atuais.

128
se horrorizavam com os últimos arrancos desses valentes filhos do
deserto, que preferiam a morte dos combates ao lento suplicio da
escavação das minas.
Contra tamanhos atentados ergueram-se, poucos sim, mas gene-
rosos brados. O mundo já não era governado pelo egoísmo, nem
povos e nações inteiras atadas ao carro vencedor iam aviltar-se no
pó do capitólio. Uma religião radiante havia dissipado as trevas do
paganismo, o Filho do Eterno encarnara no seio de uma Virgem
imaculada, e seus ditames e sua moral tinham regenerado o mundo.
– Las Casas troou contra os assassinos dos descendentes do Incas,
e Vieira ergue-se no Brasil o defensor dos filhos de Tupá.
Embalde instam o rei e a corte porque não parta o missionário:
– não, ele quer defender infelizes, propagar na América a vinha do
Senhor. Embalde a corte lhe acena com as palmas e as vitorias do
gênio; que importam elas? – Sua missão é mais augusta, um anjo
revelhou-lha, – é o céu quem o envia. Quem sabe se uma coroa do
martírio… Oh! E o que mais anseia um missionário!
Já o galeão, que devia em troco de ninharias voltar pejado de
ouro para enriquecer a metrópole, aprestava-se para a viagem: a
âncora a pouco e pouco se ia suspendendo, já o Tejo como que o
empurrava para longe de si, e os marinheiros saudosos entoavam
a canção da despedida… quando a um sinal de bordo estremece o
navio com o baque da âncora que de novo encrava-se no leito do
rio. Que será? Um enviado da parte de El-Rei que terminantemente
se opõem a partida. Inúteis esforços, em vão os teólogos se reúnem
para decidirem se é mais vantajosa à Religião a ficada ou a ida
do missionário; – pode mais o céu que as ordens do soberano; na
primeira ocasião partiu…
Tão brandamente os ventos o levavam
Como quem o céu tinha por amigo.
Chegado ao Maranhão passou-se depois ao Pará onde a fama
de seu nome já tinha ecoado, e foi recebido em triunfo. Sem con-

129
templações a interesses humanos, como superior que era a todos
eles, o missionário por toda parte expande enérgico os sentimentos
de seu coração: ora convoca os principais do país para advogar
a causa dos indígenas, ora embrenha-se pelas florestas a dentro,
regenerando as almas na água misteriosa do batismo, anunciando
aos gentios uma religião pura, cheia de bondade e de esperança.
Quão belo não seria vê-lo com essa figura majestosa e respeitável,
essas vestes talares do sacerdócio, esses olhos vivos e preto cinti-
lando engenho, essa palavra que aterrorizara os ímpios da Batavia,
unir sua voz aos sibilos dos ventos, ao ruído das cataratas, aos uivos
do tigre, às ruidosas exclamações dos filhos das florestas! Os arcos
prestes a desprender a seta que não erra caiam a seus pés, e os
braços, acostumados a lutar com a natureza em forças, erguiam no
meio do deserto o sinal da redenção. Não eram templos elevados
pelo orgulho dos homens a topetar com as nuvens que abrigavam
os fiéis, uma simples capela de palma simbolizava a inocência de
seus corações sinceros; – dir-se-ia que a singeleza rústica dos tempos
primitivos da Igreja havia reaparecido na América.
Tanto entusiasmo, tão fervorosa devoção pela causa dos Índios
não podia deixar de acusar-lhe inumerosos inimigos no meio de
uma sociedade gangrenada pela corrupção e avidez de ganho.
– Seus compatriotas opuseram-se com toda a energia a causa dos
desvalidos. Vieira, conhecendo os tramas de seus inimigos, escreve
a El-Rei dando parte de tudo que havia acontecido, pedindo pro-
teção aos Índios; as cartas foram interceptadas e voltaram as mãos
daqueles que mais encarniçados se haviam mostrado para com eles;
tudo foi patente, o raio já lampeja sobre a cabeça do missionário,
é mais uma prova – que a eternidade é a recompensa do sacrifício.
Era um belo dia de festa no colégio dos Jesuítas; os sinos
tocavam santos, o símbolo da inocência e da pureza, a hóstia
imaculada em sacrifício à Divindade aos céus subia, enquanto
que os fiéis ajoelhados batiam nos peitos pedindo misericórdia

130
ao cordeiro de Deus; as nuvens de incenso e mirra despendidas
dos turíbulos compassados, e os sons melancólicos do órgão pa-
reciam envolver todos os fiéis em uma atmosfera de harmonia e
perfumes… Eis que vozes confusas vem interromper a meditação
dos fiéis, um grupo de colonos entra armado e arranca do Altar
os ministros do Crucificado. Como aquele que mais venerado era
entre os seus, foi Vieira o primeiro que buscavam, sem o maior
sobressalto este se apresenta às turbas destemido.
Que é da tua sabedoria e artes? Porque te não livras deste conflito?
dizia-lhe um: Se és santo porque não fazes com que sucumbamos?
repetia-lhe outro. Todas estas blasfêmias ouvia o missionário, mas
sua boca não dava uma palavra. Embalde a tempestade embravecida
arroja suas fúrias contra o Chimborazo, a bonança vem e acha-o
no mesmo lugar – imóvel.
Depois de atravessar as ruas públicas, foi o Padre Vieira condu-
zido à prisão, à ermida de São João Batista. – Notável coincidência!
O pregador do deserto, aquele que havia anunciado ao mundo
a vinda do Redentor hospedou em seu templo um pregador do
deserto, que também viera anunciar a religião do Crucificado às
nações desconhecidas do novo mundo.
Sentinelas estavam postadas para que ninguém ousasse falar
ao missionário. A Providência porém não desampara os seus es-
colhidos, no meio do deserto faz chover maná e brotar arroios de
água cristalina do âmago das rochas.
Havia por aí perto uma Índia, evocada as trevas da idolatria pelo
zelo de Vieira. Foi Mariana Pinta, informada de quanto acontecera
ao pai dos Índios, e bárbara, ainda há pouco retraída a fereza do
deserto, compadece-se de seus infortúnios, enquanto os próprios
concidadãos iníquos negavam-lhe até o pão da indigeneia.
Preciso foi iludir a vigilância dos guardas, entranhar-se entre
as sombras da noite, para sem ser vista lançar aos pés do mis-

131
sionário uma oferenda, a única de que podia dispor – uma parte
de seu alimento.
Entregue a mais profunda meditação sobre a perversidade dos
homens, e o desamparo em que ficavam os Índios, ajoelhado ante o
altar, cujos círios iluminavam-lhe a face, alheio a todas as conside-
rações mundanas, roga o missionário ao Deus de piedade, que faça
chover torrentes de bênçãos sobre os mesmos que o perseguem.
Mariana entra e pasma… como a pobre neófita podia compreender
esses êxtases de devoção, essa absorção de todas as faculdades
humanas em um só ponto – na contemplação do Criador? Não se
atrevendo a despertá-lo, ela vai depor o pequeno cabaz em que
trazia a refeição, mas ele viu-a: – Mariana, que temeridade! Nunca,
nunca mais, teme a malvadeza de meus inimigos.
Mariana não respondeu, mas seus olhos ergueram-se para o céu!
Ao sair as sentinelas a viram e a maltrataram, não obstante, no
dia seguinte, às mesmas horas, a neófita desempenhou sua tarefa.
Era alta noite, quando o reflexo de um incêndio enrubescia
todo o interior da capela, o missionário ergue-se da oração,
pensando que seus inimigos tivessem lançado fogo ao templo
de João; debruça-se em uma janela e vê ao longe a choupana da
pobre neófita, que se desfazia em chamas, depois conheceu-lhe
a voz e ouviu que ela dizia: – Queimaram minha casa! Está bom,
cozinharei no meio do campo.
Até que Vieira fosse mandado para o Maranhão, Mariana não
descontinuou suas visitas. Daí a mais de 28 anos, no dia 3 de junho
de 1867 a capital do Pará estava risonha e alegre como em dia de
festa que era; notável concurso de gente que empeçavam umas nas
outras dirigia-se a igreja, em cujas torres
Tine festivo o repetido bronze.
De todas as aldeias vizinhas tinham concorrido quase todos os
habitantes para tão assinalado dia com suas vestes domingueiras;
o templo estava ricamente adornado, era um dia de missa nova.

132
Depois de os padrinhos terem dado água às mãos ao celebrante,
colocou-se este no meio do altar; todos os olhos se fitaram em seu
rosto, todas as mães invejavam a sorte de uma Índia que ali estava,
quebrada pelos anos: foi ela segundo as cerimônias da nossa Igreja
quem primeiro beijou as mãos do sacerdote… Oh! Que alegria, que
contentamento não sentiu esse coração, vendo seu filho ministro
do Deus vivo! Os Jesuítas, em reconhecimento ao que Mariana
havia praticado para com o Padre Vieira, educaram-no e o filho da
indígena foi colocado na Tribo dos Levitas.
Mariana sempre que se recordava desse tão ditoso momento,
dizia as suas amigas; – Nunca tive maior prazer em minha visa; já
posso morrer contente, e enxugava uma lágrima que se demorava
sobre as rugas de seu alquebrado semblante.
F. R. da S.

Bibliografia

Barros, A. (1746). A Vida do Apostolico Padre Antonio Vieyra. Lisboa: Nova Oficina
Silviana.
Galvão, W. N. (1979). Indianismo Revisitado. In C. Lafer (org.), Esboço de Figura:
homenagem a Antonio Candido (379-391). São Paulo: Duas Cidades.
Marques, W. J. (2015). O Poeta sem Livro e a Pietá Indígena. Campinas: UNICAMP.
Meyer, M. (1996). Folhetim: uma História. São Paulo: Companhia das Letras.
Silva, F. R. (1838). Um Sonho. Gabinete de Leitura, 22, 175-176.
Silva, F. R. (1838). Os Três Desejos. O Cronista, 130, 1-3.
Silva, F. R. (1838). Mariana Pinta. O Cronista, 139, 1-3.
Sobrinho, B. L. (1960). Os Precursores do Conto no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.

133
(Página deixada propositadamente em branco)
Referências e metáforas artísticas na obra do Padre António Vieira

References and artistic metaphors in Father Antonio Vieira’s work

Joana Balsa de Pinho


CLEPUL-Universidade de Lisboa
ORCID | 0000-0002-7713-0028

Resumo
A Obra Completa Padre António Vieira permitiu disponibilizar
os textos da autoria de Vieira identificados até ao momento, o
que possibilita a realização de estudos de temáticas circunscritas.
Neste âmbito, o presente texto procura uma primeira análise a
um tema pouco explorado nos estudos vieirianos e que se re-
laciona com as referências e metáforas artísticas existentes na
obra do Padre António Vieira, procurando um conhecimento mais
aprofundado da obra escrita de António Vieira e das suas carac-
terísticas. Nomeadamente a sua cultura artística, que referencias
faz às diferentes artes e manifestações artísticas, aos artistas e
às obras de arte, em que contexto e com que finalidade.
Palavras-chave: Metáfora; artes; Vieira; Retórica; Imagética

Abstract
The Obra Completa Padre António Vieira made available the
texts of Vieira whose authorship was identified so far, which
makes it possible to carry out studies on specific themes. In this

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_8
context, this article seeks to provide a first analysis of a theme
not yet explored in the studies of Vieira and related to the re-
ferences and artistic metaphors existing in the work of Father
António Vieira, seeking a deeper knowledge of the written work
of António Vieira and his features, namely its artistic culture,
its references to the different arts and artistic manifestations,
artists and works of art, in what context and for what purpose.
Keywords: Metaphor; arts; Vieira; Rhetoric; Imagery

“Os corpos retratam-se com o pincel, as Almas com a pena.”


Padre António Vieira 1

A publicação da obra completa do Padre António Vieira, dirigida


pelos professores José Eduardo Franco e Pedro Calafate, promo-
vida pelo Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e publicada
pelo Círculo de Leitores (2013-2014), colocou à disposição de
investigadores e estudiosos a totalidade dos textos da autoria de
Vieira até ao momento identificados. Esta disponibilização textual,
possibilitada por esta edição e privilegiando uma metodologia ri-
gorosa, permite atualmente a realização de estudos tematicamente
circunscritos em diferentes áreas de conhecimento. Neste contexto,
o presente texto procura uma primeira análise a uma área temática
pouco explorada nos estudos vieirianos e que se relaciona com as
referências artísticas existentes na obra do Padre António Vieira.
Este estudo irá considerar vastíssima e erudita cultura literária
e filosófica do jesuíta, procurando um conhecimento mais apro-
fundado da sua obra e das suas características; nomeadamente

1 Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 37.

136
a sua cultura artística, que referências faz às diferentes artes e
manifestações artísticas, 2 aos artistas e às obras de arte, em que
contexto e com que finalidade.
Esta temática é tanto mais relevante quanto uma das principais e
mais citadas frases de Vieira, enquanto reflexão do próprio sobre a sua
obra, se relaciona com esta problemática; referimo-nos à célebre frase
em que compara a sua obra profética maior, a Clavis Prophetarum, a
um “palácio”, e os seus textos parenéticos a “choupanas”. Esta “metáfora
arquitetural”, baseada nestas duas arquiteturas e suas características
distintivas, revela, como já foi referido, que valorizava pouco a im-
portância dos seus textos de oratória sacra, por comparação com os
escritos proféticos em que empenhou muito do seu capital e esforço
intelectuais. Valerá a pena citar a frase correspondente, em carta di-
rigida a Sebastião de Matos e Sousa (carta 751):

Contudo, lembrado das instâncias de Vossa Mercê, muito mais


do que posso me aplico àquela fábrica que Vossa Mercê compara
aos palácios da nossa corte. [...] Estando eu em Lisboa todo apli-
cado à obra, a força de Castela e Portugal ma tiraram das mãos,
querendo que, em lugar de palácios altíssimos, me ocupasse em
fazer choupanas, que são os discursos vulgares que até agora se
imprimiram. (Franco & Calafate, 2013-2014, I, IV: 516)

Sendo a obra do Padre António Vieira tão vasta e diversificada,


abrangendo epistolografia, oratória sacra, textos proféticos, pare-
ceres económicos, políticos e administrativos, escritos em defesa
de minorias, poesia e teatro, é compreensível que as referências
artísticas sejam também bastante diversas. E a primeira constatação

2 Pela sua natureza, ficam de fora as referências à “arte”, quando em contexto


da oposição ciência/arte, que abundam na obra e que se inserem noutro contexto, que
transcende o entendimento contemporâneo de arte.

137
a destacar é que a natureza destas referências varia em função da
tipologia textual que estamos a analisar. Concretizando, as refe-
rências artísticas patentes da obra vieiriana vão do simples relato
do concreto, diríamos hoje “jornalístico”, à complexa e profunda
composição metafórica, com as aplicações mais singulares. 3
Nos textos epistolográficos de cariz institucional, mais formais,
do domínio do concreto, do real, do presente, vamos encontrar
as referências mais descritivas e objetivas. Estas podem cons-
tituir simples constatações, como a que ocorre numa carta ao
padre-geral (carta 101), onde refere as “coisas necessárias para
a conservação e aumento da Missão”; de entre elas destaca que
“a Missão seja socorrida com um grande número de sujeitos”
(Franco & Calafate, 2013-2014, I, II: 287), designadamente “Irmãos
coadjutores oficiais, principalmente pintores, [...] carpinteiros, [e]
pedreiros”. Todavia, nesta tipologia documental podem também
existir referências mais complexas, e destacamos uma outra carta
ao padre-geral (carta 108), em que um conjunto de parágrafos
se refere ao “edifício do Maranhão”:

Perguntei 1.º [, aos padres na junta,] se era bem que nesta


Missão houvesse uma casa maior, que fosse como de criação,
da qual saíssem e à qual se recolhessem os que andavam pelas
Missões, e na qual se conservasse tudo o que é necessário para elas.
E responderam todos uniformemente que sim. Perguntei 2.º em que
lugar era bem que estivesse esta casa. [...] todos os mais disseram
que era bem que estivesse no Maranhão. Perguntei 3.° se esta casa
se havia de fazer toda de novo, ou se se havia de continuar com as
paredes das casas velhas. Responderam que se continuasse com as
paredes das casas velhas. Com esta resolução, comunicando a traça
com o Padre Francisco da Veiga, e com o Irmão Simão Luís, que

3 Sobre o poder da metáfora ver Pereira, 2018.

138
são inteligentes, fiz dois rascunhos. E perguntei 4.° se aprovavam
alguma daquelas traças, ou se ocorria outra, porquanto na terra
não há arquitetos. Responderam também todos que aprovavam
uma das duas. Perguntei último quando seria bem que se fizesse
a obra, dizendo o aparelho que havia para ela. E responderam da
mesma maneira todos que logo [...]; porque a casa constava de
um corredor com quatro cubículos por baixo e seis por cima, dos
quais um era livraria, outro rouparia, outro botica, outro adega,
outro tinha as coisas da sacristia, outro, outros despejos de casa,
com que apenas ficavam quatro livres para morar e tomar exer-
cícios, sendo às vezes dezasseis os que ali se ajuntavam, e não
havendo outro lugar em que receber as visitas dos seculares senão
o mesmo corredor. Por estas razões foram de voto todos que a
obra se começasse logo havendo com quê. [...] Na execução da
obra ordenei que se seguisse em tudo o que dissesse o mestre
pedreiro, e assim se fez pontualmente, exceto só o alicerce de
um canto, o qual mandou fazer o Padre Ricardo Careu estando eu
ausente; e dizendo o mestre pedreiro que era necessário ser mais
fundo e mais largo, o Padre, seguindo o parecer de um carpinteiro,
quis que tivesse menos fundo e menos largura. E este é só o de-
feito ou escrúpulo que se acha naquela obra, sendo no demais tão
bem traçada e obrada como os bons colégios da Europa. (Franco
& Calafate, 2013-2014, I, II: 303-306)

Este trecho, de que existem outros semelhantes, de uma grande


riqueza informativa, dá-nos elementos para compreendermos di-
ferentes aspetos da ação do Padre António Vieira, da vivência da
comunidade jesuíta, passando por aspetos técnicos da construção
histórica seiscentista. Da decisão colegial de construção de um
novo edifício à forma de ultrapassar dificuldades técnicas como a
falta de um arquiteto que concebesse o edifício, passando pelos
conflitos que se podem gerar num processo desta natureza e pelas

139
preocupações financeiras; destaca-se ainda a visão pragmática de
Vieira na resolução de um problema e a sua habilidade para lidar
com questões exteriores ao âmbito religioso e pastoral.
Um texto semelhante, ainda que mais breve, surge numa carta ao
padre superior do Maranhão (carta 588), e apresenta sentido análogo:

Sobre a traça da igreja e lugar dela, fizemos cá nossa consulta, o


que pareceu mais conveniente é o que vai delineado. [...] A igreja
velha dará todos os materiais para a portaria e estudos. […] E en-
tretanto me parecia que se abrissem e enchessem os alicerces,
assim da igreja como do corredor, para que fiquem bem caldeados
e sólidos, advertindo que o terreno sobre que se há de fundar o
último canto da parte de Santo António é terra solta. [...] O Padre
Procurador promete mandar, com aviso de Vossa Reverência,
mestre pedreiro que possa obrar com primor tudo o que vai
delineado, e também teremos cuidado de fazer vir de Flandres
ou Itália algum irmão pintor para o ornato de tudo. (Franco &
Calafate, 2013-2014, I, IV: 181)

Este tom surge raramente noutras tipologias textuais. Num dos


textos proféticos, a História do Futuro, surge um desses casos como
uma referência crítica à situação da encomenda artística seiscentista:

Passo em silêncio os imensos gastos do serviço e majestade


do culto divino, porque só o silêncio os pode explicar, não enca-
recer. Que templo, que capela, que altar, que santuário que neste
mesmo tempo se não renovasse, desfazendo-se e arruinando-se
(com lástima) obras antigas e de grande arte e preço, só para
se lavrarem outras de novo mais ricas, mais preciosas e de mais
polido artifício. Tudo isto do que sobeja da guerra, mas por isso
sobeja. (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 113)

140
E também num outro que integra os designados escritos sobre
os índios:

Aponta no papel o dito procurador que nas nossas obras; e os


padres apontarão também as obras que tiveram, ou não tiveram.
Quando os padres vieram à cidade de São Luís, acharam nela uns
pardieiros que ficaram dos padres antigos, de pedra tosca sem
rebocar, com uma igreja muito pequena e incapaz: na dita casa se
recolheram sem fazer obra alguma, e só a igreja compuseram de
modo que ficasse decente, e assim viveram até agora com sumo
aperto e estreiteza, por espaço de dez anos, sendo assim que no
mesmo tempo todos os outros religiosos fabricaram e compuseram
seus conventos e igrejas e claustros. Na cidade do Pará ainda os
padres não têm igreja, e diziam missa em um oratório do tamanho
de duas celas, que primeiro foi de palha, e depois de barro e varas,
e quase arruinado, que era necessário muita piedade para lhe não
chamarem indecentíssimo. (Franco & Calafate, 2013-2014, IV, III: 194)

As referências de cariz mais livre, mais poéticas, surgem também


na correspondência; todavia, vão-se generalizar nos textos parenéticos
e proféticos. Nestes, Vieira aprofunda as referências a determinadas
manifestações artísticas, fazendo uso das características que lhes estão
inerentes e que lhes são específicas. De entre as manifestações artís-
ticas, é dado destaque à pintura. Além de fazer um uso metafórico
pessoal das referências artísticas, o jesuíta reproduzirá igualmente
metáforas usadas na Bíblia.
Relativamente à arte pictórica, destaca-se, em primeiro lugar, a abun-
dante utilização do verbo “pintar”, vocábulo alegórico, com o sentido
de “descrever”, “narrar” e “conceber”, em qualquer um dos géneros
literários. Regista-se, igualmente, “despintar” para o seu contrário.
Menos comuns, mas significativas no contexto das outras artes,
são as alusões, genéricas e específicas, apresentando a pintura em

141
comparações, metáforas e alegorias, explorando as suas caracterís-
ticas intrínsecas e condições materiais, por forma a transmitir mais
eficazmente uma mensagem, ideia ou ponto de vista, que em alguns
casos quis dotar de visualidade. Um exemplo significativo breve:
“Os sonhos são uma pintura muda, em que a imaginação a portas
fechadas, e às escuras retrata a vida, e a alma de cada um, com
as cores das suas ações, dos seus propósitos, e dos seus desejos”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, XII: 35).
Vieira explora também a figura do pintor, o seu modus operandi.
Para a compreensão da forma como o jesuíta habilmente o faz,
veja-se este texto onde compara as estratégias do pintor com as do
autor literário a propósito da não referência aos pais de Melquisedec
por parte de Moisés:

É que, assim como o pintor, que pretende reproduzir o verda-


deiro retrato de alguém, deve expressar tudo o que ele possui e
omitir o que não tem, da mesma maneira, Moisés, ensinado pelo
Espírito Santo, ao pretender figurar em Melquisedec a imagem de
Cristo, Deus e Homem, porque Cristo, como Homem, não tinha
pai, nem, como Deus, mãe, absteve-se intencionalmente de nomear
o pai e a mãe de Melquisedec;

ou seja, interpretando a falta como presença. E acrescenta:

Imaginai que o mesmo artista pretende representar um homem


privado de pés e mãos mediante a imagem de um homem inteiro
de membros, ou (o que vale o mesmo) que pretende, a partir de
um homem escorreito pintado na tela, debuxar a imagem de um
outro homem desprovido de pés e mãos. Certamente que, posto
nessa contingência, o pintor há de cobrir e ocultar as mãos e pés
passando-lhes tinta por cima, por forma a que a imagem não seja

142
diferente do modelo que lhe foi apresentado. (Franco & Calafate,
2013-2014, III, V: 160)

Um outro aspeto a destacar é a associação da pintura a vários


tópicos como “perfeição” ou “excelência” e “ilusão” ou “fingimento”.
Para o primeiro caso, destacamos um excerto que faz alusão ao fruto
“araticum apé”, e explicita: “e este é verdadeiramente comparável
às melhores frutas do mundo, posto que não tenha semelhança
com nenhuma delas. Afigura-se como pintada” (Franco & Calafate,
2013-2014, I, III: 198); e uma outra: “viu formada uma cruz negra
sobre a terra, que é de cor barrenta, tão perfeita e igual por todas
as partes como se a fizera um pintor” (Franco & Calafate, 2013-2014,
I, III: 448). Para o segundo caso, indicamos:

Se retratássemos em um quadro a figura deste enigma, ve-


ríamos que em diferentes perspetivas os escuros faziam os longes,
e os claros os pertos. Mas se chegássemos a tocar com a mão
a mesma pintura, acharíamos que toda aquela diversidade, que
fingem as cores, não é mais que uma ilusão da vista, e um sonho
dos olhos abertos, e que tanto o remontado dos longes, como o vi-
zinho dos pertos tudo tem a mesma distância. (Franco & Calafate,
2013-2014, II, IV: 190)

Por outro lado, a distinção entre boa e má pintura servirá ao


jesuíta para caracterizar os indivíduos e as suas condições:

Nunca vistes uma figura mal pintada? Pois assim é Sara, figura
da Virgem Maria. As figuras bem pintadas mostram a semelhança;
as mal pintadas encarecem a diferença. Quereis ver bem pintadas
as nossas Senhoras no rigor, e pouca piedade, com que tratam

143
os Escravos? Olhai para Sara. 4 E se quereis ver o encarecimento
de piedade, e amor, com que a Senhora das Senhoras os trata,
ponde os olhos na Virgem Maria. (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, IX: 162)

Para além da pintura, também à arte da escultura recorre António


Vieira para esclarecer alguns dos seus discursos; as referências podem
ser simples, como: “só da matéria da obediência se podia fabricar
uma estátua da divindade. A razão é: porque aquilo que se faz por
própria vontade, por mais santo que seja, tem liga de humano;
porém aquilo que se faz por obediência, todo é Divino. Falo da
perfeita obediência” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XI: 480).
Podem, no entanto, ser mais complexos, recorrendo às caracte-
rísticas da arte escultural, que usa para explicitar determinada ideia
ou pensamento. A mais sublinhada por Vieira é a sua condição de
ser inânime, geralmente usada em comparação com o homem, e
justificada por uma outra característica da escultura, que a aproxima
da realidade e do ser humano, que é a sua tridimensionalidade.
Num texto em que explica a distinção feita pelos filósofos entre os
dois géneros de negações, as “puras negações” e as “privações”, o
Padre Vieira usa as referidas características da estátua:

O silêncio é negação de falar, mas com grande diferença no


homem, e na Estátua: na estátua é pura negação, porque a estátua
não fala, nem é apta para falar, senão inepta; porém no homem
é privação; porque ainda que o homem não fale, é apto, e capaz
de falar. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, III: 257)

Na mesma linha de pensamento, um outro texto menciona: “Que


coisa são pela maior parte hoje os Cristãos, senão umas estátuas

4 Cf. Gn 21, 8-20.

144
mortas do Cristianismo” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV: 205).
A referência “estátuas mortas” surge em outros textos (Ibid., II, VII:
179; Ibid., III, I: 224), assim como “estátuas mudas, imóveis, e sem
Alma” (Ibid., II, XII: 355).
Todavia, o objeto escultórico é tanto mais relevante, transcende-se,
quanto recebe um acrescentamento de valor após a sua execução
material, um ganho de significado, de um sentido mais profundo que
lhe é atribuído pelo cumprimento da função para a qual foi criado,
na relação com os indivíduos que com ele interagem; esta condição
serve a Vieira para expor a relação do Homem com o divino:

os Deuses não os faz quem lhes fabrica as imagens, ou lhes


levanta os altares, senão quem os roga [...]. Os Deuses dos
Gentios eram de Pau, ou de Pedra, ou de Metal, obras das mãos
dos homens, como diz o Profeta: e quem os fazia Deuses? Não os
faziam Deuses os Escultores, senão os Rogadores. Quando es-
culpidos, quando lavrados, quando formados, ainda eram paus,
e pedras; mas quando rogados, então começavam a ser Deuses
[…]. Grande lugar de Minúcio Félix: […] [que refere] Toma o
Escultor o metal nas mãos, derrete-o, funde-o, lança-o nos moldes,
dá-lhe forma: é já Deus? Ainda não […]. Tira-o fora já formado,
compõe-lhe os membros, distingue-lhe as feições com toda a arte;
e limado, e polido, e chumbado, para que se tenha em pé, erguido,
e direito: é já Deus? Nem ainda agora: […]. Orna-o, consagra-o,
faz-lhe Oração: é já Deus? Agora sim. Oratur: tunc postremo Deus
est. Quando é orado, e rogado, então é Deus. (Franco & Calafate,
2013-2014, II, VIII: 104)

Num sermão da quinta terça-feira da Quaresma, com o mote


“Ninguém faz coisa alguma [...] ocultamente” ( Jo 7, 4), é usado
o exemplo das estátuas sepulcrais romanas para contextualizar a
frase de Job quando considerava a sua morte: “morrerei, e não me

145
verão mais os olhos dos homens” ( Jó 7, 8), e refletir sobre uma das
mais impactantes aspirações humanas: “Tão imortal é nos mortais
o desejo de ser vistos”. Diz Vieira:

O uso de ver tem fim com a vida, o apetite de ser visto não acaba
com a morte. Esta foi a origem das estátuas Romanas sepulcrais.
Punha-se a estátua, e imagem do defunto sobre o sepulcro, para
que o homem, que dentro dele não podia ver, sobre ele fosse
visto. Já que me falta a vida própria, ao menos não me falte a
vista alheia. De maneira que devendo os mármores da sepultura
ser uns espelhos, em que se vissem os vivos, são uma antecipada
ressurreição da arte, em que se veem os defuntos. Tão imortal
é nos mortais o desejo de ser vistos. E se esta ambição vive nos
mortos, nos vivos que será? Será o que diz o texto […]: “Ninguém
faz ocultamente coisa digna de louvor”; porque oculta não pode
ser vista. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV: 191)

À escultura dedicou Vieira uma outra expressiva referência


usando-a num discurso metaforizante: tal como a arte da escultura
molda e cria um objeto, também a ação da graça divina tem uma
ação modeladora dos seres humanos:

E ninguém se escuse [...] com a rudeza da gente, e com dizer


[...], que são pedras, que são troncos, que são brutos animais;
porque ainda que verdadeiramente alguns o sejam, ou o pareçam,
a indústria, e a graça tudo vence, e de brutos, e de troncos, e de
pedras os fará homens. Dizei-me, qual é mais poderosa: a graça,
ou a natureza? A graça, ou a arte? [...] Concedo-vos que esse
Índio bárbaro, e rude seja uma pedra: vede o que faz em uma
pedra a arte. Arranca o Estatuário uma pedra dessas montanhas
tosca, bruta, dura, informe, e depois que desbastou o mais grosso,
toma o maço, e o cinzel na mão, e começa a formar um homem,

146
primeiro membro a membro, e depois feição por feição até a mais
miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos,
afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o
pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os
dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá re-
cama: e fica um homem perfeito, e talvez um Santo, que se pode
pôr no Altar. O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar
à graça divina. É uma pedra, como dizeis, esse Índio rude? Pois
trabalhai, e continuai com ele (que nada se faz sem trabalho, e
perseverança), aplicai o cinzel um dia, e outro dia, dai uma mar-
telada, e outra martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca,
e informe, fazeis não só um homem, senão um Cristão, e pode
ser que um Santo. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 263-264)

Uma outra referência muito significativa feita por Vieira refere-se


às especificidades de ambas as artes, pintura e escultura, enquanto
mimésis do real, e a como esta pode superar a própria realidade
nas suas características intrínsecas:

É a mesma que experimentamos na facilidade das imagens, que


vemos no espelho, e na dificuldade das que se mostram, e repre-
sentam em si mesmas. As imagens que se representam em si mesmas,
ou são de pintura, ou de escultura. As de pintura fazem-se com
muitos debuxos, muitas cores, muitas sombras, muitos claros,
muitos escuros: as da escultura com muito bater, muito cavar,
muito polir, muitos cheios, muitos vazios: e umas, e outras com muita
arte, muita aplicação, muito trabalho. Pelo contrário as imagens que
se representam no espelho, elas se pintam sem tinta, e se entalham
sem ferro, e aparecem perfeitas em um momento sem mais tra-
balho, ou artifício que uma reflexão natural.
Pois por isso as da majestade se representam no espelho, porque
a majestade, e o poder, e a ostentação, e execução dele é muito

147
fácil: porém as da bondade, que são as do bem mandar, e bem
obrar, e bem fazer a todos, representam-se nas outras imagens,
ou pintadas, ou esculpidas, porque estas são muito dificultosas,
e trabalhosas, e que requerem muita arte, muita sabedoria, muita
proporção, muita regra. As imagens de escultura fazem-se tirando,
as de pintura, pondo: para este tirar é necessário muito desinte-
resse: para este pôr, e acrescentar, muita igualdade: e para uma
coisa, e outra, muita prudência, muita justiça, muita inteireza,
muita constância, e outras grandes virtudes, que mais facilmente
faltam todas, do que se acham juntas. (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, V: 355-356)

E acrescenta, nesta reflexão:

A mais perfeita figura, que inventou a natureza, e não pode


imitar a arte, é a que se vê no espelho. Porque o que se vê nas
cores da pintura, ou no vulto das estátuas, é só uma semelhança,
e representação da pessoa; porém no espelho não se vê seme-
lhança, ou representação, senão a mesma pessoa por reflexão das
espécies. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 366)

No entanto, e apesar de a arte ser apenas uma aproximação à


realidade, como diz um escrito vieiriano: “olhos abertos em pedra,
ou fundidos em metal, ou coloridos em pintura, verdadeiramente
não são olhos” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV: 205), a arte
é tanto melhor quanto mais se aproximar da mesma realidade que
representa: “Nunca vistes uma figura mal pintada? [...] As figuras
bem pintadas mostram a semelhança; as mal pintadas encarecem a
diferença” (Ibid., II, IX: 162).
Um outro tema relativo à arte que podemos destacar na obra
vieiriana é a iconografia; e este é debatido desde o ponto de vista

148
da justificação das convenções de representação, mas também da
contestação de determinadas formas iconográficas.
No primeiro caso destacamos a reflexão sobre o porquê de os
antigos pintarem (sabiamente, na sua perspetiva) o Amor como um;
segundo o autor, “não há amor tão robusto, que chegue a ser velho”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV: 263); a este tema regressa pos-
teriormente, detalhando outros aspetos iconográficos (Ibid., II, IV:
290). Ou o caso em que a iconografia, ou um elemento iconográfico
em concreto, foi o mote para discorrer sobre vários temas; como
exemplo, indicamos o texto em que explicita a expressão “Ne forte”
(“Não se dê que”), convocando questões de iconografia e simbólica
e fazendo uma associação entre a roda, atributo iconográfico de
S. ta Catarina, e a Roda da Fortuna (Ibid., II, X: 350).
No segundo caso, é discutida a iconografia mais comum, por
forma a servir o seu pensamento e argumentação. Destaque para
o excerto:

Concluído o mistério da Encarnação do Verbo, e despedido o


Anjo embaixador, partiu logo a Virgem já Mãe de Deus a visitar
Santa Isabel, a qual a recebeu não nos braços, como faz crer ao
vulgo a fantasia dos Pintores, mas prostrada a seus sacratíssimos
pés, como se deve ter por certo. (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, VII: 334-335)

De mencionar ainda um outro texto, relativo a S. Francisco Xavier:

Muitos pintam ao Santo, ou revestem suas Estátuas com sobre-


peliz, e estola, por ser este o trajo com que pregava. Mas não foi
esta a divisa, ou insígnia com que Deus o graduou na continuação
do ofício. Mandou que o vestissem no Céu com uma esclavina, e
lhe metessem um báculo na mão na mesma forma de peregrino,
com que Seu Filho ressuscitado apareceu aos Discípulos que iam

149
para Emaús. E com esta divisa começou Xavier a exercitar a sua
segunda missão do Céu à terra […]. (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, XII: 269)

Aliás, para o tratamento da figura de Xavier, Vieira recorreu fre-


quentemente a alegorias e referências artísticas; inclusivamente, a
pintura foi o mote de “Xavier dormindo. Proposta”: “Com os olhos
primeiro fechados, e depois abertos promete o tosco desenho desta
pintura mostrar em diferentes estampas ao mundo dois retratos ao
natural do grande Xavier” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XII:
31ss.). Acrescentou Vieira no “Sermão Quarto. Pretendentes”: “Muitas
estátuas de São Francisco Xavier se têm esculpido, muitas imagens
pintado, muitas estampas impresso, mas em nenhum mais ao natural,
nem mais ao vivo retratado que nas suas cartas” (Ibid., II, XII: 189).
Também a arquitetura e os elementos arquitetónicos foram usados
por António Vieira como forma de explicitar algumas das suas pro-
postas, expostas designadamente na parenética e na profética, para
esclarecer conceitos complexos através de elementos concretos, ao
modo parabólico, por vezes conjugados com outros elementos do
quotidiano. Um desses exemplos é o seguinte:

Toda a vida (ainda das coisas que não têm vida) não é mais
que uma união. Uma união de pedras é edifício; uma união de
tábuas é navio; uma união de homens é exército. E sem esta união
tudo perde o nome, e mais o ser. O edifício sem união é ruína;
o navio sem união é naufrágio; o exército sem união é despojo.
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV: 109)

Idêntico sentido apresenta o excerto:

Ainda que este Império completo e consumado de Cristo é


império futuro, nem por isso é absolutamente império diverso

150
do passado e do presente, senão o mesmo […] o edifício que
nos alicerces se esconde, nas paredes se levanta e nas torres
se remata e aperfeiçoa é o mesmo edifício. (Franco & Calafate,
2013-2014, III, II: 285)

Especificamente, o tema do alicerce ou dos elementos de su-


porte aparece sempre associado à solidez da construção, uma das
suas características fundamentais; o contrário também surge em
alguns textos (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIII: 196). Veja-se
o caso: “Se para o peso de um Reino, que ainda então o não era,
foram necessárias setenta colunas tão fortes; como quereis vós
que sobre duas tão fracas se sustente aquele imenso edifício, que
há de recolher dentro em si tudo quanto rodeiam, e cobrem as
abóbadas do firmamento?” (Ibid., II, III: 225).
Um outro tópico recorrente, que tem base evangélica, é a metá-
fora da igreja (Franco & Calafate, 2013-2014, II, III: 266) e da vida
cristã como edifício:

De maneira, que estas duas ignorâncias, a ignorância da morte,


e a ignorância da predestinação, são as bases do temor da morte,
e do temor do inferno, e estes dois temores as duas mais fortes
colunas, sobre que todo o edifício da vida Cristã se sustenta, para
que os homens não vivessem como néscios, mas obrassem como
prudentes. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XI: 440)

Neste contexto e tendo como base o texto de S. Paulo,5 António


Vieira volta aos temas do “edifício da Igreja”, dos “edificadores” e
do “edificar”:

5 Cf. Ef 2, 19-22: “ 19 Portanto, já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas


sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus, 20 edificados sobre o
alicerce dos Apóstolos e dos Profetas, tendo por pedra angular o próprio Cristo
Jesus. 21 É nele que toda a construção, bem ajustada, cresce para formar um templo

151
Nas quais diz o Apóstolo que esta união da fé é para a obra do
edifício da Igreja (que é o corpo místico de Cristo, de que logo
falaremos); do qual edifício tinha já falado o mesmo São Paulo,
no 2.º capítulo da mesma epístola, declarando como as pedras
de que ele se compõe e vai crescendo são os fiéis unidos na
profissão da mesma fé e edificados, ou sobre-edificados (como
diz o texto), sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, e
sobre o mesmo Cristo, primeira e fundamental pedra de toda
esta fábrica. […] E se os fiéis são as pedras e a fé é a união me-
diante as quais se compõe e cresce este edifício, até se pôr em
sua perfeição, também é clara consequência que as paredes e
partes do mesmo edifício hão de concorrer juntas e hão de estar
inteiras e ligadas no mesmo tempo. Porque de paredes que estão
por fazer ou estão caídas e arruinadas, ou não estão unidas no
mesmo lugar e tempo, não se pode compor nem aperfeiçoar um
edifício. E tal é o estado em que hoje está a Igreja e o mundo.
Porque algumas das paredes deste universal edifício estão ainda
por levantar, que são todas as nações de infiéis que estão por
converter, e outras, que já estiveram levantadas e edificadas,
estão arruinadas e caídas, que são as de tantos reinos e nações
de cismáticos e hereges, as quais também se hão de reduzir de
todos estes, unidos na mesma fé, se há de acabar de edificar e
aperfeiçoar e consumar o edifício da Igreja. (Franco & Calafate,
2013-2014, III, II: 370)

Estas considerações vieirianas têm por base os versículos bí-


blicos: “Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja”
(Mt 16, 18), e “a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a

santo, no Senhor. 22 É nele que também vós sois integrados na construção, para
formardes uma habitação de Deus, pelo Espírito”.

152
pedra angular” (Sl 117, 22); esta última colocada na boca de Jesus
dirigindo-se aos seus discípulos em Lc 20, 17, Mt 21, 42 e Mc 12, 10.
A mesma temática ressurge num outro texto profético:

S ã o Pa u l o c o s t u m a d e b u x a r o p r i n c í p i o , c r e s c i m e n t o e
consumação da Igreja (outrora figuradas no antigo Templo),
valendo-se da comparação com uma construção e um edifício:
“edificados sobre o alicerce dos apóstolos e dos profetas, tendo
por pedra angular o próprio Cristo Jesus. É Nele que toda a
construção, bem ajustada, cresce para formar um templo santo,
no Senhor” [Ef 2, 20-22]. […] Portanto, o edifício da Igreja (tal
como os restantes) consta de três partes: a primeira é o alicerce,
a segunda, as paredes e a terceira, o teto ou cumeeira. Os ali-
cerces estão ocultos, as paredes elevam-se e a obra conclui-se
e coroa-se com o teto. Desde o tempo de Cristo até Constantino
fundou-se a Igreja, e os alicerces mantinham-se ocultos: na rea-
lidade, até os próprios prelados habitavam em grutas e covas.
Depois de Constantino, a Igreja oculta começou a aparecer em
público e a levantarem-se e a crescerem as paredes, tal como
nesta nossa época crescer am imensamente, conquanto não
sem alguma ruína dos antigos muros. Crescerá doravante e
aumentar-se-á de dia para dia o mesmo edifício até ao tempo
predeterminado pelo Pai, no qual finalmente o Supremo Artífice
dará a derradeira demão à sua obra e coroá-la-á de modo ma-
ravilhoso, com todo o mundo conver tido à fé e adorando a
Deus desveladamente. E será este o terceiro e último estado da
Igreja e a consumação do Reino de Cristo. (Franco & Calafate,
2013-2014, III, VI: 61-62)

Também um texto de S. Pedro, com a mesma componente


metafórica, é utilizado por Vieira para refletir sobre a igreja-
-edifício e, como diz o pregador, “escutemos o que pensa, acerca

153
do edifício construído sobre ele, a própria pedra fundamental”,
e, citando S. Pedro, acrescenta:

“Também vós, como pedras vivas, sois edificados como casa


espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais
agradáveis a Deus por Jesus Cristo” [1Pe 2, 5]. Aqui vemos que o
Reino de Cristo, isto é, a Igreja edificada sobre São Pedro, nem
é uma casa material feita de pedras inanimadas, nem um edifício
civil feito de cidadãos, como os outros reinos do mundo, mas um
edifício espiritual de homens vivos (é que “o espírito é que dá a
vida”), para que também os homens vivos e os sacrifícios espiri-
tuais sejam oferecidos a Deus numa casa viva e espiritual. (Franco
& Calafate, 2013-2014, III, VI: 35)

O recurso à coluna como imagem de suporte, destacando a sua


literal numa construção, surge igualmente em diversos textos:

Se a primeira sentença tem por si, tão grandes, duas colunas


de ambas as Igrejas: como é da grega, Santo Atanásio, e da latina,
São Jerónimo; esta segunda também se arrima a outras duas co-
lunas de uma e outra Igreja, nem menos luzidas nem menos fortes:
da latina, Santo Agostinho, e da grega, São João Crisóstomo.
(Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 260)

Na sua obra História do Futuro, o Padre Vieira faz alusões


recorrentes à arquitetura, que se relacionam com a própria obra,
com o seu propósito e com a sua conceção (Franco & Calafate,
2013-2014, III, I: 87-88). Para explicitar o objetivo dessa sua obra,
escreve o jesuíta: “Impossível pintura parece, antes dos originais,
retratar as cópias, mas isto é o que fará o pincel da nossa História
[do futuro]. Assim foram retratos de Cristo, Abel, Isaac, José, Davi,
antes do Verbo ser Homem” (Ibid., III, I: 67).

154
A explicitação das fontes que usará para compor a obra, referida
como “novo edifício”, e a sua função na construção da mesma são
feitas nos seguintes termos:

[…] podemos dizer em uma palavra que a primeira e principal


fonte, e os primeiros e principais fundamentos de toda esta nossa
História é a Escritura Sagrada […]. Sobre estes fundamentos da pri-
meira e suma verdade entrará o discurso como arquiteto de toda
esta grande fábrica, dispondo, ordenando, ajustando, combinando,
inferindo e acrescentando tudo aquilo que, por consequência e
razão natural, se segue e infere dos mesmos princípios. No qual
modo de fabricar se não perde a primeira verdade dos funda-
mentos, mas vai crescendo, dilatando-se e fortificando, não em
diverso, senão no mesmo corpo, como a árvore em suas raízes.
(Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 139)

De igual modo, regista que “será pois a primeira pedra deste


edifício uma grande profecia de Daniel” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, III, I: 439) e que o Livro Anteprimeiro “será a própria matéria
de todo este livro, a que por isso chamamos ‘anteprimeiro’, e é
como alicerce de todo o edifício” (Ibid., III, I: 143).
Neste contexto, do uso da arquitetura como elemento metafórico,
destaque ainda para um episódio relatado num dos textos pare-
néticos vieirianos relativo ao sonho de um bispo soberbo que se
terá cruzado com S. Domingos; nesse sonho, o bispo, ao afogar-se,
depara-se com muito da ponte, a ponte da salvação, “que traçou, e
fabricou a Virgem Santíssima”, e que é composta por arcos e torres.
A descrição detalhada contempla os

três grandes Arcos de mármore [que] são as três diferenças de


Mistérios, em que se funda o Rosário, Gozosos, Dolorosos, Gloriosos:
os quais se se não consideram, nem meditam, ainda que se rezem as

155
Orações, é Rosário sem fundamento sólido. As quinze Torres mais
altas são os quinze Padres-nossos; e as cento e cinquenta menores
divididas de dez em dez entre uma, e outra são as cento e cin-
quenta Ave-Marias; e todas elas são Torres, porque todas espiritual
e temporalmente nos defendem de nossos inimigos.

O pregador refere ainda, interpretando o sonho:

O Rio arrebatado é o curso da vida presente, que nunca para,


cheio de tantos perigos, e precipícios; e as duas Ribeiras, a que a
Ponte se estende, e sendo tão distantes, abraça, e une, são este, e
o outro mundo, são os dois Horizontes de nascer, e morrer, são o
Tempo, e a Eternidade. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IX: 113)

Nos seus textos, o Padre António Vieira faz ainda referência à


arte efémera, especificamente a um equipamento usado na soleni-
dade das Quarenta Horas, celebração que procurava evocar o tempo
que Cristo passou no sepulcro; e, dado o seu carácter eucarístico,
é exposto o Santíssimo Sacramento de forma ininterrupta, para
que os fiéis o pudessem adorar. Para esta celebração, assim como
para outras que decorriam durante a Semana Santa, era comum a
realização de elementos efémeros para incrementar o seu pendor
festivo. Vieira refere uma delas, num registo ecfrástico:

correndo o ano da Salvação de 1650, sendo papa Inocêncio X,


foi construído em Roma, na nossa igreja da Casa Professa, para a so-
lenidade das Quarenta Horas, com aquela grandiosidade costumada,
uma maquete de grandes dimensões, com iluminação oculta, como
é próprio desta arte, que aumentava os objetos representados, e na
qual se representava de forma extraordinária o templo de Salomão.
Na sua parte inferior podia-se ver o próprio Salomão a sacrificar
de acordo com o ritual judaico, servido pelos sacerdotes e levitas;

156
e, na parte de cima, do meio de uma nuvem saía elevando-se,
por todos os lados rodeado de raios, o pão verdadeiro que desce
do Céu, consagrado segundo o ritual cristão, que era o único ob-
jeto da profundíssima adoração da imensa multidão de povo que,
de joelhos no chão e batendo no peito, ali acudia, constituída por
romanos e forasteiros. (Franco & Calafate, 2013-2014, III, VI: 181)

Um outro aspeto que interessa destacar é o facto de Vieira re-


correr às especificidades de cada uma das artes para, explorando
este sentido, as usar para elucidar a mensagem que pretende trans-
mitir. Eis um caso paradigmático:

Do homem diz que o formou Deus; da mulher, que a edificou:


Aedificavi [...] costam [...] in mulierem [Gn 2, 22]. Não quis o Autor
da natureza que a mulher se contasse entre os bens móveis. O edi-
fício não se move do lugar, onde o puseram; e assim deve ser a
mulher: tão amiga de estar em casa, como se a casa, e a mulher
foram a mesma coisa. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IX: 93)

Tendo em conta o que se expôs até ao momento, e dada a


natureza dos textos vieirianos, é recorrente o uso de metáforas
de componente artística para se referir a Deus na sua condição
de Criador. É comum a analogia de Deus como artífice (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, IV), “soberano artífice” (Ibid., II, VIII) ou
“artífice divino” (Ibid., II, IX), e “supremo criador e artífice” (Ibid.,
III, I; Ibid., III, VI); e, complementarmente, do mundo criado como
“fábrica”. Citamos um exemplo breve, mas evocativo: “Edificou o
Criador esta grandiosa fábrica do mundo” (Ibid., II, VII: 319). Vieira
menciona, ainda, citando S. to Ambrósio:

O primeiro Fabro, que houve no Mundo, [...] foi Deus, que


fabricou o mesmo Mundo, que ensinou a Noé a fabricar a Arca, a

157
Moisés a fabricar o Tabernáculo, a Salomão a fabricar o Templo,
com todas as medidas, com todas as proporções, e com todos os
primores, donde depois os tomou, e aprendeu a Arte. (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, XI: 213)

Embora sendo esta a alegoria mais recorrente, Deus surge


também, em contextos determinados, comparado a outras tipolo-
gias de artistas: “estava o mesmo Deus feito Escultor imprimindo
caracteres nas tábuas da Lei” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X:
438) e, referindo-se às “obras de Deus desde o início do mundo e
todas as coisas criadas por Ele”, compara-as a “um painel no qual
o divino Apeles representou com cores adequadas a Sua verdadeira
imagem” (Ibid., III, VI: 400).
A cultura artística de António Vieira tem por base a Antiguidade
Clássica, greco-romana, nomeadamente quanto aos autores que
cita: os escultores Fídias (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I:
570; Ibid., II, XII: 318), Praxíteles (Ibid., III, I: 570) e Lísipo
(Ibid., III, I: 98; Ibid., III, VI: 181, 408-409); os pintores Apeles
(Ibid., I, III: 497; Ibid., II, IV: 47; Ibid., II, XI: 215; Ibid., II, XII:
318; Ibid., II, XV: 172; Ibid., III, I: 98; Ibid., III, VI: 181, 400),
Polignoto (Ibid., II, X: 358), Timantes (Ibid., II, III: 42) e Zêuxis
(Ibid., II, III: 42; Ibid., II, X: 349; Ibid., II, XI: 215); os arquitetos
Meliagenes, Demócrates (Ibid., II, I: 116), Vitrúvio (Ibid., II, III:
42), Dédalo (Ibid., IV, IV: 127), Trofónio e Agamedes (Ibid., II,
II: 93). O número de referências que encontramos para cada artista
denuncia a importância que o jesuíta atribuía a cada um; e relati-
vamente a Vitrúvio chega mesmo a declarar, a propósito de uma
descrição da Jerusalém celeste: “Não há dúvida que sem sermos tão
grandes arquitetos, como Vitrúvio, a [cidade de Jerusalém] podemos
imaginar, e idear assim” (Ibid., II, III: 42).
O Padre Vieira recorre ainda a histórias concretas, de fontes clás-
sicas, que envolvem estes artistas. Uma delas, referida por Plínio e

158
citada por Vieira, relaciona-se com a metodologia usada por Zêuxis
para a composição da mais bela mulher do mundo e refere-se à
forma como, para pintar Juno, recorreu às cinco mulheres mais belas
de Agrigento. Esta história seria uma analogia de S. ta Catarina com
as cinco prudentes do Evangelho (Ibid., II, X: 349).
A mesma narrativa, que tem como protagonista a “Deusa das
Deusas”, seria novamente usada para explicitar S.to Inácio e as suas
características: “Houve-Se Deus na formação de Santo Inácio como
Zêuxis na pintura de Juno” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X:
490), compondo-a tendo por base as mais formosas de Agrigento
e “imitando de cada uma a parte mais excelente, de que as dotara
a natureza”, e assim “venceu a mesma natureza com a arte”, pois
“porque ajuntando o melhor de cada uma, saiu com uma imagem
mais perfeita, que todas” (Ibid., II, X: 490). No entanto, na opi-
nião de Vieira, isto foi acaso e não ciência. Já o caso de Inácio é
distinto, pois a “formusura das virtudes” é diferente: “como todas
as virtudes entre si são concordes, e não podem deixar de fazer
harmonia, de qualquer parte que sejam imitadas, sempre há de
resultar delas um composto excelente, e admirável”. E completa,
em belo texto poético:

Pôs Deus diante dos olhos a Inácio estampados naquele livro


os mais famosos, e os mais formosos originais da santidade, não
de um reino, ou de uma idade, senão de todas as idades, e de toda
a Igreja; e copiando Inácio em si mesmo de um a Humildade, de
outro a Penitência; de um a Temperança, de outro a Fortaleza; de
um a Paciência, de outro a Caridade; e de todos, e cada um aquela
virtude, e graça, em que foram mais eminentes, saiu Inácio: com
quê? Com um Santo Inácio: com uma imagem da mais heroica
virtude; com uma imagem da mais consumada perfeição; com uma
imagem da mais prodigiosa Santidade; enfim, com um Santo, não

159
semelhante, e parecido a um só Santo; senão semelhante, e pare-
cido a todos. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 490)

Dos artistas contemporâneos, Vieira refere os pintores Ticiano


(Franco & Calafate, 2013-2014, II, I: 401) e Giorgione 6 (Ibid., II,
III: 301; Ibid., IV, I: 187-188), reforçando uma vez mais a supre-
macia que assume a pintura, no contexto da referência à arte, nos
textos vieirianos.
A problemática da figura autoral é abordada citando o nome do
artista, como vimos, mas também é destacado o seu poder simbólico.
Vieira explica que “o Autor é o que lhes [às obras] dá o crédito, e
lhes concilia o respeito”, ou seja,

Dizer-se que a pintura é de Apeles, ou a estátua de Fídias, basta


para que a estátua seja imortal, e a pintura não tenha preço.
Mas esse valor, e essa imortalidade a quem se deve? Mais ao
nome que ao pincel de Apeles; mais à fama, que à lima de Fídias.
E o mesmo que sucede ao pincel, e à lima é o que experimentam
igualmente a voz, e a pena,

e acrescenta: “Se o que diz é Demóstenes, tudo é eloquência; se o


que escreve é Tácito, tudo é política; se o que discorre é Séneca,
tudo é sentença” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 139).
Ainda sobre esta temática, e acrescentando-lhe tema fundamental
para a historiografia da arte – a assinatura da obra pelo seu autor –,
utiliza Vieira este tópico para expressar a sublimidade de uma obra.
O exemplo refere-se a uma criatura humana, na qual Deus se terá
empenhado particularmente e seria sinal da sua predestinação à
santidade. Durante a gestação de S. to Estanislau Kostka, terá apa-

6 Referido por Vieira como Jorge Jordão, veneziano; cf. Pedro & Calafate, 2013-
-2014, IV, I: nota 157.

160
recido “milagrosamente” sobre o ventre de sua mãe “o nome de
Jesus, não escrito, ou pintado, mas esculpido, e relevado na mesma
carne, e todo cercado de raios” (Ibid., II, XI: 466). Conclui o jesuíta:

Se víssemos que um famosíssimo Artífice depois de ter enta-


lhado em mármore muitas estátuas, ou pintado em lâminas de
bronze muitas figuras, todas que espirassem vida, e causassem
espanto, e ao pé de uma só delas imprimisse a sua divisa, ou
escrevesse o seu nome, que diria o Mundo? Diria com razão que
aquela era a obra mais primorosa da sua arte, aquela a mais es-
timada dele, e mais perfeita. Eu não me atrevo a dizer tanto; mas
tanto é o que em semelhantes casos fazem os Artífices humanos,
e tanto o que fez (bem que uma só vez) o Divino. (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, XI: 467)

Quanto a obras de arte reais, o pregador menciona, ainda que


de forma não recorrente, obras reais de pintura, escultura e arqui-
tetura, não com intenção metafórica ou retórica mas documental.
Um destes casos é a referência a uma pintura que figura a batalha
naval de Lepanto:

Assim se vê hoje pintado em Nápoles, e pendente ante os Altares


da Virgem Santíssima o retrato de todo o sucesso: a tempestade,
o galeão naufragante, e o peixe que o salvou atravessado; em per-
pétuo troféu, e monumento do soberano poder, e nome de Maria,
como Senhora não só do mar, mas de quanto sobre ele navega,
ou dentro nele vive. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 273)

Indica ainda outros exemplos: o “Retrato natural da mesma


Virgem Maria, pintura da mão de São Lucas, que hoje se vê, e
venera em Roma na Basílica de Santa Maria Maior, como um dos
mais preciosos tesouros daquele famosíssimo Santuário” (Franco &

161
Calafate, 2013-2014, II, IX: 176); painéis de Giorgione (Ibid., I, IV:
187); uma pintura existente no refeitório do Mosteiro de S. Jerónimo
de Penha Longa, “do milagre dos cinco pães e dois peixes, porque
o menino que os levava é um retrato de el-Rei Dom Sebastião”
(Ibid., IV, I: 213). 7
Uma outra pintura referenciada era uma “lâmina de Nossa
Senhora”, dada por D. Sebastião ao P.e António Coelho, morador
no Convento dos Capuchos de Cascais, posteriormente prior em
Évora; esta obra “de feitio notável, que eu [António Vieira] tenho
visto muitas vezes, e quem a quiser ver achar-la-á na mão do Padre
Geral de Belém: de uma parte tem a imagem de Nossa Senhora com
o Menino Jesus, e da outra, el-Rei Dom Sebastião moço e velho, em
dois retratos. A pintura parece mais divina, que humana” (Franco
& Calafate, 2013-2014, IV, I: 252).
Por seu lado, as obras de escultura e arquitetura citadas fazem eco
da cultura clássica que marca os escritos vieirianos; são a estátua de
Apolo palatino no Capitólio (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 279),
as estátuas de Bucéfalo no Quirinal (Ibid., III, I: 570) e alguns edifícios
da Antiguidade, como o templo de Apolo em Delfos (Ibid., II, II: 93).
Abundantes são as alusões a edifícios históricos de grande im-
portância artística e simbólica: palácio de Vila Viçosa (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, XIII: 234), Convento de Chelas (Ibid., II,
XIII: 293), Mosteiro da Batalha (Ibid., II, XIII: 345), igreja de N.ª Sr.ª
da Conceição em Vila Viçosa (Ibid., II, XIV), Convento de S.ta Clara
de Coimbra (Ibid., II, XIV), Convento de S. Francisco em Alenquer
(Ibid., II, XIII: 298), Convento de S.to Alberto em Lisboa (Ibid., IV, I:
250), Mosteiro de S. Jerónimo de Penha Longa (Ibid., IV, I: 213), as

7 Obra referida a propósito da morte do rei: “no dia da batalha se abriu a parede,
o que não foi sem mistério, e não podia ser outro, senão dar-nos um sinal claro da
morte de el-Rei” (Franco & Calafate, 2013-2014, IV, I: 213).

162
sés de Lisboa e Porto (Ibid., IV, II), a igreja paroquial de Odivelas,
igreja de S. ta Engrácia (Ibid., IV, II), 8 entre outros.
Num contexto internacional, fora de Portugal, são indicadas as
igrejas de S. João de Latrão, S.ta Maria Maior, S. Lourenço Extramuros,
S. ta Sabina e S. to Aleixo (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 570).
Neste contexto, destaque também para a arquitetura militar com
menções pontuais mas significativas do conhecimento alargado de
que dispunha Vieira. Nos seus textos, alude ao castelo de Antuérpia
(Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 261), assim como, nomeada-
mente nos escritos políticos e económicos, a diferentes fortalezas
no Brasil, África e Ásia construídas e tomadas por portugueses e
holandeses. No Brasil, Vieira destaca a fortaleza de Rio Grande, na
sua opinião, “a melhor que tínhamos em todo o Brasil” (Ibid., IV, I:
79), e na Ásia a cidade de Damão, bem fortificada ao moderno (Ibid.,
IV, I: 106) e a fortaleza do Morro de Chaul, “forte por natureza e
arte” (Ibid., IV, I: 106). E, sobre as fortalezas da Ásia, acrescenta que

se há de advertir que, ainda que têm muros e baluartes, as forti-


ficações foram feitas pela maior parte em tempo que só tínhamos
guerra com o gentio da terra, para o qual bastava menos força
que para resistir ao inimigo da Europa; não sendo também a fá-
brica conforme as regras da arquitetura militar moderna com que
fica muito menos defensável. (Franco & Calafate, 2013-2014, IV,
I: 108-109)

Na obra vieiriana encontramos também algumas écfrases, uma


outra forma de presença da arte, suas obras e artistas, na produção
do Padre António Vieira. Talvez a mais significativa seja o poema

8 Este edifício é referido no contexto da sua construção (Franco & Calafate,


2013-2014, II, VI: 91-92) e também, juntamente com o anterior, no âmbito dos atos
sacrílegos cometidos nos edifícios, que visaram o Santíssimo Sacramento.

163
Cortex Eucharisticus [id est, Sacrae Pyxidis ex cortice affabre ela-
boratae descriptio], ou “Córtice Eucarístico, isto é, a descrição da
Sagrada Píxide de cortiça artisticamente elaborada” (Franco &
Calafate, 2013-2014, IV, IV: 126-135). Este poema tem origem na
estadia de Vieira em Santarém, por altura das exéquias fúnebres
do seu padrinho de batismo. Durante esse período, maio de 1651,
inaugurou-se o colégio da Companhia de Jesus em Santarém e
“encantou-se ele [António Vieira] ante a simplicidade da capela im-
provisada e sobretudo do altar e píxide artisticamente elaborados
em cortiça pelo Padre Sebastião de Novais” (Franco & Calafate,
2013-2014, IV, IV: 55). Sobre a píxide, à qual se dedica o poema,
escreve Vieira, recorrendo aos mais ilustres artífices da Antiguidade:
“[…] da cortiça surge um artefacto / Que Vulcano não ousaria tirar
do ferro, nem Dédalo do ouro, / Nem Praxiteles do mármore, nem
Apeles da pluma” (Ibid., IV, IV: 127).
Outras écfrases são citações, embora em alguns casos apenas
conceptuais, de figuras de estilo semelhantes existentes nas Sagradas
Escrituras e que surgem em diferentes textos, associando as suas
características artísticas e construtivas a significados mais complexos
e profundos; as mais frequentes são os casos do templo de Salomão
(e.g., Franco & Calafate, 2013-2014, II, III e II, X: 351, 378-379; Ibid.,
II, XI: 329; Ibid., III, I), o candelabro do mesmo templo (Ibid., II,
VIII: 63), o férculo/liteira de Salomão (Ibid., II, IX: 370-372), a torre
de Babel (Ibid., II, III; Ibid., II, VI: 113-114), os templos de Ezequiel
(Ibid., III, VI: 152) e de Zorobabel (Ibid., II, X: 434-435), a estátua
de Nabucodonosor 9 (Ibid., II, XI: 106-108; Ibid., III, I; Ibid., III, II;
Ibid., III, V; Ibid., III, VI), a cidade celeste de Jerusalém (Ibid., II,
III: 39-41; Ibid., II, IV: 56, 133-134; Ibid., II, XI: 68).
Além destas, Vieira inclui também no seu discurso metáforas
artísticas de outros autores, usando-as como mote e explicitando-as

9 Cf. Dn 2.

164
com discurso próprio. Um dos mais significativo é o que se cita
de seguida, usado para justificar o pensamento inicial do sermão:
“pois havemos de pregar hoje às avessas; pois se há de começar
este edifício pelo ar, seja pelo ar, e graça da mais formosa de todas
as mulheres”. E acrescenta, recorrendo a um paradigmático orador
do cristianismo primitivo:

“Quem viu nunca tal arquitetura? Quem viu nunca tal traça”,
diz Crisóstomo, “que para fazer um edifício, primeiro se arme o
teto, do que se levantem as paredes; primeiro se fechem as abó-
badas, do que se abram os alicerces?” Pois isto é o que obrou na
criação, e fábrica do mundo o supremo Arquiteto dele: Creavit
coelum, et terram. Primeiro fez o Céu, e depois a terra: primeiro
levantou o teto, e depois armou as paredes: primeiro correu essas
abóbadas, e depois fundou estes alicerces: Sed ex ipso opificii
modo divinae naturae dignitas innotescit, conclui o Santo; mas
nestes avessos do fraco poder humano consiste o direito, o su-
blime, o maravilhoso da Omnipotência Divina: em começar por
onde os homens acabam, em acabar por onde eles começam.

E em apropriação e interpretação própria, complementa:

Toda esta traça tão milagrosa da criação do mundo nenhuma


outra coisa foi, senão uma planta, ou debuxo da Conceição pu-
ríssima de Maria, Mundo segundo, que para o segundo Adão,
Cristo, singular, e milagrosamente foi edificado. Toda a arqui-
tetura andou trocada neste soberano edifício, toda andou às
avessas. Nos outros edifícios espirituais, nas outras puras cria-
turas, por mais santas, e santificadas que sejam, a primeira pedra
é da Natureza, e a segunda da Graça. Primeiro se edificam pela
parte da terra, e depois pela parte do Céu. Primeiro nascem
tributárias ao pecado de Adão, e depois renascem justificadas

165
pelos merecimentos de Cristo. Não assim na Conceição de Maria.
Começou-se este milagroso edifício pelo muito que tinha do Céu,
e acabou-se pelo pouco que participava da Terra. Primeiro se
fecharam as abóbadas do espírito, e depois se lançaram os fun-
damentos do corpo. Primeiro (ou quase primeiro) a santificou a
Graça, e depois a produziu a Natureza. Que elegante, e que ex-
pressamente o disse São João Damasceno! […] A Natureza, que em
todas as outras conceições costuma ser a primeira, cedeu de seu
direito nesta obra, e concedeu-o à Graça. As prevenções da Graça
puseram a primeira pedra no edifício, e as exceções da Natureza
a segunda. Primeiro foi em Maria o ser Santa, que o ser mulher.
Começou Deus na Virgem Santíssima por onde acaba nos outros
Santos, e acabou por onde começa. Lá começa pela Natureza, e
acaba pela Graça; cá começou pela Graça, e acabou pela Natureza;
manifestando as delicadezas de Sua Sabedoria nestes trocados de
Sua Omnipotência: Ut Virginis conceptio gratiae Dei, non viribus
naturae tribueretur. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VII: 319-320)

De igual modo, são citados outros autores como Plínio (Franco


& Calafate, 2013-2014, II, X: 358) e Nazianzeno; segundo Vieira,
este último defende “é que, assim como um arquiteto constrói até
colocar a cumeeira do teto, mas depois se afasta desta obra e cons-
trução, da mesma maneira reina o Filho, ou seja, atua e exerce o
Seu senhorio sobre nós enquanto estivermos totalmente submetidos
ao Seu Reino” (Ibid., III, VI: 88).
Na mesma linha de pensamento, um outro tópico que queremos
destacar é a incorporação aos escritos vieirianos de breves histórias
lendárias. Destacamos duas, uma relatada por um cronista da Ordem
Franciscana e relativa a S. to António:

Já se lhe sucedesse então o que depois experimentou Roma


na Igreja antiga de São Pedro, quando o Pontífice mandou que

166
em lugar de uma imagem de Santo António se pusesse a de
São Gregório; que diria a piedade, e devoção portuguesa? Foi o
caso, que subindo o Pedreiro para picar a parede, levantou (diz
a História) o picão, e dando o primeiro golpe in capitio, “no ca-
pelo” do Santo, ele despregou a mão pintada, e deitando a rodar
o Pedreiro, e o andaime com um fracasso, que fez tremer toda a
Basílica, meteu outra vez a mão na manga, e defendendo desta
sorte o seu posto ninguém se atreveu mais a o tirar dele. (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, X: 278)

Uma outra, relativa a um episódio da vida de S.to Inácio e relacio-


nada com a realização de um retrato de Loyola pouco antes da sua
morte por um “pintor insigne” a pedido do cardeal Pacheco, e de
como ambos seriam surpreendidos pelas múltiplas transfigurações
do santo. A lenda servirá a Vieira para concluir que “era Inácio um,
mas semelhante a muitos; e quem era semelhante a muitos só se
podia retratar em muitas figuras” (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, X: 494-495).
Após esta análise da obra do Padre António Vieira tendo em
consideração as referências existentes à arte, a artistas e obras,
é possível constatar que estas são variadas e de diferentes tipos.
Do concreto ao metafórico, o jesuíta explora a arte nas suas mais
diversas manifestações, no que lhe é essencial e específico, no geral
(da arte) e no particular (de cada uma das artes), aproveitando todas
as potencialidades literárias e estéticas da arte e das obras de arte.
Vieira evidencia um conhecimento aprofundado da arte do seu
tempo e da arte antiga, quer das obras quer dos artistas, regis-
tando uma consciência da artisticidade e historicidade das mesmas.
Todavia, é evidente uma preferência pela pintura, enquanto mani-
festação artística; e pela Antiguidade, enquanto período histórico,
o que intensifica a validade universalista da cultura clássica e dos
seus princípios.

167
As referências que podemos designar por “jornalísticas”, mais obje-
tivas e de cariz documental, características de tipologias documentais
concretas como a epistolografia e os relatórios económico-políticos,
são complementadas pelas menções metafóricas. As mais comuns
resultam de inventiva própria; todavia, o pregador recorrerá a ale-
gorias vulgarizadas, quer em autores clássicos quer de inspiração
bíblica. No entanto, estas serão quase sempre apropriadas e ex-
plicitadas de forma pessoal e pessoalizada, em desenvolvimentos
textuais de grande intensidade literária.

Bibliografia

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Letras.
Castro, Aníbal Pinto de (1997). António Vieira, Uma Síntese do Barroco Luso-Brasileiro.
S.l.: CTT Correios.
Cidade, Hernâni. (1985). Padre António Vieira. Lisboa: Presença.
Franco, José Eduardo. (2009). Entre a Selva e a Corte: Novos Olhares Sobre Vieira.
Lisboa: Esfera do Caos.
Franco, J. E. & Calafate, P. (dir.) (2013-2014). Obra Completa Padre António Vieira.
S.l.: Círculo de Leitores.
Pereira, B. (coord.) (2019). Introdução, Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa (vol. 23:
Primeira Arte de Retórica). J. E. Franco & C. Fiolhais (dir.). S.l.: Círculo de Leitores.

   

168
Música e missionação ao tempo do Padre António Vieira

Music and missionary work in the times of Vieira

Elisa Lessa
Universidade do Minho
ORCID | 0000-0003-3718-1629

Resumo
O estudo procura analisar, numa perspetiva musicológica, o papel
da música na missionação no Brasil colonial ao tempo do Padre
António Vieira. A música, enquanto estratégia e instrumento de
conversão ao catolicismo, esteve presente desde a chegada dos
primeiros missionários ao Brasil. Humanistas, filósofos e até
juristas e administradores, os missionários foram, nas aldeias
e nos claustros, promotores de cultura e de desenvolvimento
social. Aos Jesuítas tem sido atribuído o papel exclusivo de
transmissores da matriz musical erudita europeia. Na verdade,
esse papel foi partilhado com as ordens religiosas de Beneditinos,
Franciscanos e Carmelitas. Todavia, com os missionários da
Companhia de Jesus, a cultura musical portuguesa penetrou desde
logo nos grupos culturais constituídos por índios e africanos,
permitindo a miscibilidade de culturas. Na abordagem à prática
musical enquanto instrumento de catequização destacam-se,
em particular, os nove anos de pregações e de missionação no
Maranhão do Padre António Vieira, reveladores da importância

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_9
que o próprio dava à música sacra na formação espiritual dos
nativos. Tomando como referência a devoção a Nossa Senhora
do Padre António Vieira e o facto de ter sido o responsável pela
introdução no Brasil do Terço do Rosário cantando a coros, cuja
tradição remonta ao século anterior em Portugal, tecem-se algumas
considerações sobre o repertório musical mariano desta época.
Palavras-chave: música; missionação; devoção mariana

Abstract
This paper analyses, in a musicological perspective, the role of
music in missionary activities in colonial Brazil in the times of
Father António Vieira. Music as a strategy and instrument of con-
version to Catholicism has been present since the arrival of the
first missionaries in Brazil. Being humanists, philosophers and even
lawyers and administrators, missionaries were in villages and in
cloisters as culture promoters and social workers. The Jesuits
have been solely awarded the exclusive role of transmitters of the
matrix of European classical music. In fact, this role was shared
with other religious orders, such as the Benedictines, Franciscans
and Carmelites. However, regarding Jesuit missionaries, Portuguese
musical culture penetrated immediately in cultural groups consis-
ting of Indians and Africans, allowing miscibility cultures. In the
approach to musical practice as a catechizing instrument, we parti-
cularly highlight the nine years of preaching and missionary work
of Father António Vieira in Maranhão, which reveal the importance
that he himself gave to the sacred music in the spiritual conversion
of the natives. Considering Vieira’s devotion to the Blessed Mother
and the fact that he was responsible for introducing in Brazil the
Terço do Rosário sung in choir, whose tradition dates back to the
previous century in Portugal, we provide some considerations about
the contemporary Marian musical works.
Keywords: music; missionary work; Maria’s devotion

170
Desde o início da chegada dos primeiros missionários ao Brasil
que a cultura musical portuguesa penetrou nos grupos culturais
constituídos por índios e africanos, permitindo a miscibilidade
de culturas. Os Franciscanos foram os primeiros a desembarcar
das naus de Pedro Álvares Cabral. Fr. Henrique de Coimbra e sete
confrades franciscanos – nomeadamente Fr. Gaspar, Fr. Francisco
da Cruz, Fr. Luís do Salvador (pregadores); Fr. Masseu (ou Majeu),
sacerdote, músico e organista; Fr. Pedro Neto, corista; e Fr. João da
Vitória, irmão leigo – celebraram, a 26 de abril de 1500, a primeira
missa no Brasil, oficiada com música.

E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de Maio, pela manhã,


saímos em terra com nossa bandeira e fomos desembarcar acima
do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a
cruz, para melhor ser vista […]. A missa foi de diácono e subdiá-
cono, oficiada com todos os frades, capelães das naus e sacerdotes
que iam na armada e outras pessoas que entendiam de canto, em
que houve pregação, sendo presentes muitos dos da terra a todo
o ofício divino com grande espanto e acatamento. (Collecção de
Noticias…, 1826) 1

Alguns dias depois, foi celebrada nova missa, desta vez com
a participação de 50 nativos que, em procissão, conduziram uma
enorme cruz para o local onde decorreu a celebração litúrgica.
Os missionários cedo se aperceberam das aptidões musicais dos
povos a quem impunham a sua música, aceitando aparentemente
as adaptações e transformações espontâneas praticadas pelos povos
no mundo extraeuropeu. A primeira missão organizada entre os
índios no Brasil, a de Imbiaça, foi obra de Franciscanos espa-
nhóis. Segundo Fr. Antônio de Santa Maria Jaboatão, historiador

1 Carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel. In Collecção de Noticias…, 1826.

171
franciscano do séc. xviii , a sua Ordem construiu em 1586, junto
ao Convento de Olinda, uma casa para os filhos dos índios con-
vertidos, uma espécie de seminário onde se instruíam os meninos
para posteriormente pregarem aos seus familiares e comunidade em
geral. O cronista relata a existência de uma prática musical vocal e
instrumental constituída por cânticos sacros, ladainhas e missas, numa
apropriação de elementos musicais primitivos com textos religiosos,
que os missionários haviam ensinado aos jovens índios, atraindo deste
modo a população ao culto cristão.2 Na sua maioria, os missionários
franciscanos, tal como os jesuítas, não tinham um conhecimento mu-
sical aprofundado, mas estavam preparados para ensinar os cânticos
usados nos serviços religiosos quotidianos. O maior testemunho da
atividade artística dos Jesuítas no Brasil é a igreja do Colégio da
Baía, hoje catedral, considerada um dos monumentos religiosos
mais importantes da América Latina. Importa, porém, dizer que no
Brasil, na realidade, não houve de um modo geral missionários je-
suítas com uma sólida formação musical, tal como aconteceu com a
colonização espanhola em Santa Fé, Buenos Aires, e outros lugares
(Domingues, 1984: 210). No que à Ordem de S. Bento concerne,
foram enviados de Portugal monges especialmente preparados na
área musical, para em terras de além-mar exercerem funções de
mestre capela, cantores e instrumentistas. A liturgia assumiu sempre
um papel fundamental na vida das comunidades, conforme os pre-
ceitos da regra de S. Bento, sendo a música elemento fundamental.
Os monges beneditinos dedicaram-se também à cultura de campos
e fazendas. E foi nas fazendas da Ordem que os beneditinos exer-
ceram concretamente a sua ação de catequização dos indígenas.
No Dietário fluminense há notícia de uma carta de Fr. Fernando,

2 Fr. Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-1779) é autor da crónica intitulada


Novo Orbe Seráfico Brasilico, ou Chronica dos Frades Menores da Província do Brasil,
publicada em Lisboa em 1761. A 2.ª parte, com textos inéditos, foi publicada em
1859 pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

172
escrita em 1656, dando conta de uma aldeia que fundara da outra
parte do rio Paraíba para recolher os índios Saborys que desceram
do sertão para se batizarem. Entre estes uma mulher de avançada
idade, batizada com o nome de Escolástica. Affonso de Taunay, na
sua História Antiga da Abadia de S. Paulo, também nos informa
que os Beneditinos enviaram missionários a diferentes partes do
território paulista, nomeadamente à aldeia dos Pinheiros. As notas
de despesa do Mosteiro de S. Paulo dão conta de viagens realizadas
pelos índios da aldeia levando monges a missionar a outros lugares
(Luna, 1947: 80) A Ordem dos Carmelitas viria também a contribuir
de forma significativa para o desenvolvimento da música religiosa.
Eusébio de Matos, nascido na Baía em 1629, ingressou na Ordem
dos Jesuítas, transferindo-se em 1677 para a Ordem do Carmo, ado-
tando o nome de Fr. Eusébio da Soledade. Filósofo, poeta, orador
excelente, pintor e músico, tocava harpa e viola de arco e compôs
vários hinos religiosos. Na segunda metade do séc. xvii, os Carmelitas
Observantes tiveram um papel de relevo na evangelização indígena
na Baía e no Nordeste. Os Carmelitas Descalços desenvolveram a
sua ação na Baía e iniciaram em 1695 a sua missão na Amazónia.
Em 1696, vem à luz a carreira do harpista virtuoso Antão de Santo
Elias, mestre capela e compositor de hinos Te Deum, missas e res-
ponsórios de Natal (Lessa, 1998: 396-397).
Jean Léry, pastor protestante huguenote, discípulo de Calvino,
na sua A História de Uma Viagem Feita na Terra do Brasil, escrita
nos anos de 1556 a 1558, descreve as práticas musicais indígenas
sob um ponto de vista teológico. A sua narrativa apresenta uma
aventura missionária, em que Léry confessa ter-se impressionado
com as danças e cantos indígenas “na beleza da melodia desses
selvagens”. A obra de Léry encontra-se na origem das duas correntes
importantes de pensamento ocidental referente ao Novo Mundo.
De um lado, o exotismo, e, de outro, as tendências sociais e filosó-
ficas que se cristalizariam em Jean-Jaques Rousseau, na sua visão

173
do “noble sauvage” e no conceito de “anima naturaliter Christiana”,
ou seja, uma propensão natural da fé (e da “gratia supponit na-
turam”). Esta doutrina foi desenvolvida por Tomás de Aquino: a
graça possibilita ao homem atingir a perfeição com base na sua
procura natural de Deus (Bispo, 1999: 280). A posição de Jean de
Léry é surpreendente, considerando que a maior parte dos viajantes
deixaram a ideia, nos seus relatos, que os índios eram criaturas
que não adoravam o mesmo Deus, associando a música indígena
ao Diabo. Em contrapartida, Léry acreditava que, sendo os índios
e o Novo Mundo uma criação também divina, suas características
deveriam ser louvadas como manifestações divinas. Na 3.ª edição
da História de Léry, publicada em 1585, foram incluídas notações
de pequenos trechos de melodias tupi (Wittmann, 2008: 3).

A chegada dos jesuítas ao Brasil


Com a chegada da primeira missão jesuítica à Baía, a 29 de março
de 1549, constituída por cinco padres sob liderança de Manoel da
Nóbrega, os jesuítas implementaram um sistema de administração
fechada, com um plano estrategicamente traçado em que, para-
doxalmente, a língua e a música do povo colonizado viriam a ser
usadas como atração na catequização. O P.e Manuel da Nóbrega,
defendendo a sua estratégia, afirmou:

Se nós abraçarmos alguns dos costumes deste gentio, os quais


não são contra a nossa fé católica, nem são ritos dedicados a
ídolos, como é cantar cantigas de Nosso Senhor em sua língua
pelo tom e tanger seus instrumentos de música que eles usam em
suas festas quando matam contrários e quando andam bêbados;
e isto para os atrair a deixarem os outros costumes essenciais…
(Leite, 1956, I, 195, doc. 54, 406-407)

174
Em 1550, chegavam à Baía quatro meninos, alunos do Colégio dos
Órfãos de Lisboa, escolhidos por “nosso Jesus Cristo para pregar o
seu santíssimo nome aos gentios infiéis”, conforme relatou Doménech.
Estes meninos tinham tido uma boa instrução musical e sabiam cantar
repertório sacro e vilancicos natalícios. Apenas 12 dias após a che-
gada dos meninos de Lisboa, as principais orações cristãs foram
traduzidas para a língua tupi. O ensino das orações, e de outros
textos religiosos cantados aos meninos indígenas, seguiu um plano
traçado, assente em duas linhas de ação: ensinar os textos cristãos
em língua tupi, cantados com melodias europeias, e ensinar textos
cristãos em tupi, com melodias acompanhadas de instrumentos indí-
genas. A partir de 1552, passou a ser permitida apenas a utilização
do canto gregoriano – cantochão. Todavia, os meninos indígenas
cantavam melodias com textos que continham os ensinamentos
básicos da doutrina cristã em português, espanhol e inclusive em
latim. José de Anchieta (1534-1597), que chegou ao Brasil em 1553,
foi um dos jesuítas que mais utilizou as cantigas para a catequese
dos meninos indígenas. Os mais antigos exemplos de orações em
tupi utilizadas na catequese – um pai-nosso, uma ave-maria e um
credo – foram publicados em 1575 por André Thevet (Castagna,
1994: 5-6). O padre jesuíta português Fernão Cardim, que chegou
à Baía em 1583, referiu, nos textos produzidos a partir desse ano
e até 1601, que, durante a longa viagem até à Baía, houve con-
fissões, pregações, ladainhas, procissões e Misereres cantados em
canto d’órgão, e que os terços e as ladainhas a Nossa Senhora, aos
santos e a Deus eram cantados diariamente. O diário escrito a bordo
pelo padre jesuíta Luís Lopes, nascido em 1597 na Vidigueira, é
a fonte, até agora conhecida, mais representativa e cumulativa do
quotidiano musical vivenciado a bordo de uma nau com destino
direto ao Brasil. Na Summa Breve deste relato de viagem, o sacer-
dote jesuíta informa-nos de que as cerimónias religiosas a bordo

175
incluíam missa todos os domingos e dias santos, vésperas solenes,
missas cantadas e ladainhas (Cota, 2013: 207).
E assim se continuou a fazer depois de chegarem a terras de além-
-mar, com a participação dos índios na vida musical religiosa através
do cantochão, do canto d’órgão (música a várias vozes) e a execução
instrumental, sobretudo na flauta. O jesuíta António Rodrigues, mestre
de canto e da flauta, foi um dos primeiros mestres de música que se
destacaram pelo ensino ministrado, sendo conhecidos vários índios
músicos por si formados por volta de 1554. Nas suas funções de
mestre-escola em São Paulo, ensinou os meninos índios do aldea-
mento de Piratininga a ler, escrever e cantar por ter conhecimento
da língua brasílica, e pelo facto de ser músico (Leite, 1954: 11).

Em todas estas três aldeias há escola de ler e escrever, onde os


padres ensinam os meninos índios; e alguns mais hábeis também
ensinam a contar, cantar e tanger; tudo tomam bem, e já há muitos
que tangem violas, cravo, e oficiam a missa em canto d’órgão,
coisas que os pais estimam muito. (Tratados da Terra…, 1939,
168: 278) 3

Em ambientes urbanos, as manifestações culturais dos índios, com


suas músicas e danças, eram proibidas, alegando-se que induziam
ao pecado e à insolência contra o serviço de Deus. Disso nos dão
prova as Atas da Camara da Vila de São Paulo, em 19 de janeiro
de 1583 e em 21 de outubro de 1623, sendo aquelas permitidas
apenas em certos dias e horários, como na Visita do Padre Antonio
Vieira ao Pará em 1658. No entanto, nos engenhos, os religiosos

3 Relato de Fernão Cardim em 1583.

176
admitiam aos escravos africanos, nos dias de festas religiosas, o
“cantar e bailar” segundo os seus costumes. 4
Em 1556, o P. e Francisco Pires relatou, numa carta enviada em
nome dos meninos órfãos do Colégio da Baía, a visita realizada
pelas aldeias indígenas: “assim fomos de cruz alçada pelas Aldeias
cantando em cada uma delas o tocando ao modo dos negros [índios]
com sua própria música e cantares, com os versos substituídos por
louvores a Deus” (Cartas…, 1954, I: 386; Tinhorão, 2000: 25). 5
O apogeu do ensino musical jesuítico, enquanto instrumento de
catequização, ocorreu no Nordeste Brasileiro na segunda metade
do séc. xvi . Com o passar dos anos, os índios remanescentes dos
massacres e epidemias sofridas foram-se retirando para regiões
mais remotas do Brasil, fugindo do contacto com o homem branco,
conduzindo a uma participação na vida musical nacional cada vez
menor, até quase desaparecer por completo. As observações quanto
à prática musical nos textos do Padre António Vieira concentram-se
na relação dos meios empregues tendo em conta o fim catequé-
tico. Esse objetivo determinado, de missionação e da procura da
perfeição cristã, em que a música assumia papel de relevo, era
considerado como o fim e a primeira das causas. Em algumas
das suas cartas, o Padre Vieira vai tecendo considerações sobre
a presença e qualidade da música que então ouvia, referindo por
vezes a celebração de vésperas e missas cantadas. Na carta ânua
datada de 30 de setembro de 1626 dirigida ao geral da Companhia
de Jesus, o Padre António Vieira dá conta do que se ia passando
nos colégios da Baía e Pernambuco, mencionando que em tempo
de Quaresma, no Colégio da Baía, “pelo tempo ser mais santo,

4 Em 1711, o jesuíta João Andreoni, no livro Cultura e Opulência no Brasil, escreveu


que negar os folguedos nas festas de Nossa senhora do Rosário e S. Benedito, seu
único prazer em cativeiro, só os tornaria desconsolados e melancólicos (Castagna,
1999: 102).
5 Carta dos meninos órfãos ao P. e Pero Doménech.

177
acrescentaram ladainhas, procissões e mais pregações e fizeram
celebrar os ofícios da Semana Santa” (Franco & Calafate, 2013-2014,
I, I: 130). Referindo-se ao falecimento do P. e Salvador Coelho, não
deixa de elogiar o ofício cantado com toda a solenidade e pompa
pelo prelado de Pernambuco “poucas vezes vista, nem praticada
com os nossos da nossa profissão e instituto” (Franco & Calafate,
2013-2014, I, I:130).

Os nove anos de missionação no Maranhão do Padre António


Vieira, a devoção a Nossa Senhora, o terço do rosário
Vieira chegou ao Maranhão no início de 1653, dando início a
uma nova fase da ação da Companhia de Jesus naquele estado.
O Padre António Vieira, na carta que enviou ao padre provincial
do Brasil, escrita do Maranhão, em 1653, informa ter introduzido
a prática do terço do rosário:

Demos graças a Nosso Senhor por nos livrar daquele perigo, e


Lhe pedimos livrasse também aos companheiros; começando logo
a cumprir a promessa que à Virgem Senhora fizemos, de toda a
caravela rezar o terço do seu Rosário enquanto a viagem durasse,
como se fez, e aos domingos e dias santos em voz alta e coros.
(Franco & Calafate, 2013-2014, I, II: 91-92)

Vieira descreve pormenorizadamente sua prática, mencionando,


entre outras particularidades, a alternância de secções das orações
entre dois meninos cantores e toda a assistência na igreja:

Faz-se este exercício ao pôr do sol por ser a hora mais cómoda;
põe-se a imagem da Virgem Senhora sobre a ara no altar-mor,
com velas acesas; assiste um padre, que encomenda o terço pelo
método da nossa cartilha. Começam a entoar dois meninos de
melhores vozes, e segue toda a igreja alternadamente, com grande

178
piedade e devoção. Dura tudo de três quartos para uma hora, a
qual todos dão por bem empregada, acabando com ela aquele dia
e começando a noite em louvores a Deus e Sua Mãe Santíssima.
(Franco & Calafate, 2013-2014, I, II: 111)

No “Sermão de Nossa Senhora do Rosário” (Sermão XV), pregado


em 1654 na igreja do Colégio jesuíta de S. Luís do Maranhão, “com
o Santíssimo Sacramento exposto”, “no Sábado da infra Octavam
Corporis Christi, e na hora, em que todas as tardes se reza o
Rosário” (Franco & Calafate, II, VIII: 424), o Padre Vieira estabelece
uma analogia entre o tema da festividade (a solenidade do Corpo
de Cristo) e o corpo humano. Para Vieira, o rosário era “a voz do
Evangelho”, conforme afirmou no seu sermão.

Tenho-vos mostrado, devotos do santíssimo Rosário, a har-


monia que ele tem com o Santíssimo Sacramento, diante de cujo
Sacrário, e da imagem da Senhora o cantais aqui, ou rezais a Coros
todos os dias nesta hora. O que por conclusão vos peço em nome
do mesmo Cristo sacramentado, e da mesma Virgem do Rosário,
é que para conseguir os efeitos daquele Divino Manjar vos não
contenteis só com as vozes do que rezais, senão com uma medi-
tação mui atenta de seus soberanos mistérios. (Franco & Calafate,
2013-2014, II, VIII: 443)

A prática do terço do rosário estendeu-se inclusive ao âmbito


doméstico. João Felipe Bettendorf, referindo- se à prática do terço
no Maranhão, escreveu:

Foy isto hum attractivo, e reclamo agradável áquelle povo:


começava-se ao fenecer do dia; e era tal o concurso, que de or-
dinário se enchia a Igreja com a multidão de todos os estados.
Assistiaõ por ley imposta os estudantes, que frequentavaõ as

179
classes. Composto o altar com muitas luzes á Imagem da Soberana
May da Luz do Mundo, davaõ principio dous moços das melhores
vozes, entoando sonoramente, e respondendo com devaçaõ no-
tável a gente toda. Entre os dous músicos assistia com sobrepeliz
o Padre ANTONIO VIEYRA para apontar os Mysterios, e para os
concluir com as orações competentes. Daqui nasceo atear-se o
fogo desta devaçaõ os mesmos coros as famílias, ou- vindo-se
soar harmoniózamente em partes diversas este obsequiozo culto
á Rainha dos Ceos, e terra. (Bettendorf, 1910: 78)

O terço do rosário cantado foi amplamente difundido ao longo


do séc. xvii tanto em Portugal como na América, no seguimento
de uma nova prática católica contrarreformista, capaz de mover
à devoção um grande número de fiéis. Na verdade, a devoção
do rosário da Virgem havia sido difundida pelos padres domini-
canos desde o séc. xiii . Em Lisboa, os Dominicanos foram os seus
primeiros difusores, cantando o terço do rosário a coros todas as
tardes na igreja de S. Domingos de Lisboa e noutras igrejas da
corte. Em Roma, o terço do rosário era cantado na casa professa
dos Jesuítas. O P.e José de Morais, na sua Historia da Companhia de
Jesus na Extincta Provincia do Maranhão e Pará, escrita no Colégio
do Pará, 1759 (BPE, cód. CXV/1-27), relata a viagem do Grande
Padre António Vieira para a Missão do Maranhão, mencionando a
tradição de se rezar o terço da Virgem Senhora nas “nossas naus”
introduzido pelo Padre Vieira, as suas pregações aos domingos e
dias santos e o costume de se cantar o terço, que se concluía com
os cânticos da ladainha, salve e Bendito. O P. e André de Barros,
autor da obra Vida do Apostolico Padre Antonio Vieyra, publicada
em 1764, descreveu o terço cantado como um “angélico descante”.
A tradição perdurou até aos dias de hoje, cantando-se em Minas
Gerais e outras regiões brasileiras. A História do P.e José de Morais
contém também alguns fragmentos de duas cartas do Padre António

180
Vieira enviadas ao padre provincial do Maranhão em 1653 e 1654.
Na primeira, o Padre Vieira menciona as pregações da Semana Santa,
proferidas desde o dia de Ramos até ao da Ressurreição na igreja
matriz, mencionando que o vigário-geral e demais clérigos, por serem
poucos, vieram ajudá-lo na celebração dos ofícios realizados com a
melhor música da Terra. Na segunda, enviada antes de 22 de março
de 1654, o Padre António Vieira elogia o fervor religioso dos índios,
notando-lhes mudanças de hábitos, afirmando que, no passado,
os índios ocupavam as noites a cantar e a bailar, a beber vinho e
a alegrarem-se e, embora não tivessem sido proibidos de o fazer,
ocupavam agora o seu tempo com orações, repetindo o que lhes
havia sido ensinado (Holler, 2006, II: 162 e 163.) A 10 de junho de
1658 o Padre António Vieira escreve de novo ao padre provincial do
Brasil. Impressionado com a qualidade musical dos ofícios divinos,
o Padre Vieira elogia a solenidade com que os índios da Serra e
alguns músicos de Tobajára demonstravam a sua cristandade:

Quanto aos índios da serra, dizem os padres que são já hoje


duas mil e quinhentas almas, que têm bom natural, que já estão
todos batizados, que já se confessam todos e muitos comungam,
que esta Quaresma tiveram os ofícios divinos com todas as de-
monstrações de cristandade, e ainda solenidade, por haver entre
eles alguns músicos da mesma nação tobajara, dos que se reti-
ravam de Pernambuco, e que sem dúvida se faz muito fruto, e se
espera muito maior, de que já o Céu tem colhido suas primícias.
(Franco & Calafate, 2013-2014, I, II: 238)

Entre os anos de 1658 e 1661 o Padre António Vieira, na qua-


lidade de visitador-geral, visita o Colégio do Pará deixando várias
instruções aos padres missionários: durante as viagens, a ladainha
de Nossa Senhora devia ser rezada como se estivessem na resi-
dência, notando que durante as navegações os padres tinham até

181
mais tempo para os exercícios espirituais. Todos os dias da semana,
acabada a oração, os índios deveriam assistir à missa e ter lição de
doutrina repetindo as orações em voz alta antes de irem trabalhar;
na escola, os mais hábeis deviam aprender a ler e escrever, e, no
caso de serem muitos, deviam também aprender a cantar e tanger
instrumentos para benefício dos ofícios divinos. À tarde deveria haver
nova lição de doutrina, sendo as crianças obrigadas a participar,
dando no final uma volta à praça da aldeia cantando o credo e os
mandamentos. Aos domingos e dias santos a missa era obrigatória,
recomendando o Padre Vieira que se deveria fazer uma lista dos
faltosos para serem admoestados, primeiro em família, depois em
público, e depois castigados se persistissem na falta. Aos índios que
demonstrassem um bom conhecimento da doutrina o visitador
deixou ordem de permissão de participarem nos seus bailes nas
vésperas dos domingos e dias santos, até às 10 ou 11 horas da
noite. As orações dedicadas a Nossa Senhora foram também ex-
pressamente indicadas pelo Padre António Vieira: a salve-rainha
aos sábados de manhã e de tarde e em vésperas de Nossa Senhora
as suas ladainhas em lugar da doutrina. Na Quaresma, o Padre
António Vieira recomenda que se realizem, todas as sextas-feiras,
as procissões dos Passos com a ladainha, a prática da Paixão, a
disciplina, atendendo a maior solenidade na Semana Santa. O rela-
tório da missão inclui ainda indicações sobre a bênção das aldeias,
o rito na administração dos sacramentos e o enterramento dos
mortos com um responso sobre a sepultura (Holler, 2006, II: 319-
-323). O relato da Fundação das Igrejas e Conventos dos Padres
da Companhia de Jesus (Biblioteca Pública de Évora, DCCCXLI,
s.d., posterior a 1777) informa que, desembarcando o Padre
António Vieira em Ibiapaba em 1660 se rezou um Te Deum na
igreja que os índios tinham feito de palma e que, depois da ce-
lebração da missa, se ouviram na praça manifestações de alegria
ao som de “trombetas, businas, tambores e outros bárbaros ins-

182
tromentos”. O Padre António Vieira e mais três sacerdotes foram
acompanhados nesta viagem de índios pernambucanos, que sabiam
o canto de órgão, dando “à terra nova ternura, e ao céo alegria”.
No relatório de missão na serra de Ibiapaba o Padre Vieira dá razão
ao P. e Nóbrega, que “com música e harmonia de vozes se atrevia
a trazer a si todos os gentios da América”. Na carta enviada a
D. Afonso VI em 1660, o Padre António Vieira descreve a missão
à ilha dos Nheengaíbas (ilha de Marajó). Certamente impressio-
nado com as manifestações de alegria dos habitantes da ilha com
a chegada dos missionários, relata com pormenor o que viu e
ouviu: vozes de alegria, o som de trombetas, buzinas, tambores
e outros instrumentos acompanhados de um grito contínuo de
infinitas vozes pela multidão, e o hino Te Deus Laudamus em
ação de graças pela igreja, que tinham feito de palma, limpa e
harmoniosa e à qual se dedicou a sagrada Imagem, com o nome
de igreja do Santo Cristo. Na sua descrição, refere-se ainda às
festas realizadas ao longo de 14 dias.

Os atos desta solenidade que se fizeram foram três, por


não ser possível ajuntarem-se todos no mesmo dia; e os dias
que ali se detiveram os padres, que foram catorze, se passaram
todos, de dia, em receber e ouvir os hóspedes, e de noite, em
contínuos bailos, assim das nossas nações como das suas, que,
como diferentes nas vozes, nos modos, nos instrumentos e na
harmonia, tinham muito que ver e que ouvir. (Franco & Calafate,
2013-2014, I, III: 279)

Na manhã de Dia de Reis, corria o ano de 1669, estando pre-


sentes toda a corte e o príncipe, cantou-se na Capela Real o hino Te
Deum Laudamus, em ação de graças pelo nascimento da princesa
primogénita, infanta Isabel Luísa. No sermão “gratulatório e pane-

183
gírico” que o Padre António Vieira pregou nessa manhã, o pregador
utilizou o texto do hino afirmando:

A dois Coros de louvores Divinos (muito Alto, e muito Poderoso


Príncipe, e neste dia felicíssimo Senhor nosso): a dois Coros de
louvores Divinos, divididos em alternadas vozes, mas concordes
em recíproca harmonia, cantam hoje a Deus este Hino de ação de
graças, no Céu os Anjos, e na terra os homens. (Franco & Calafate,
2013-2014, II, XIII: 195)

A 18 de julho de 1697, falecia o Padre António Vieira. A carta do


padre reitor do Colégio da Baía, P.e João António Andreoni, dirigida
ao padre-geral da Companhia dando conta da morte do pregador,
refere que, depois de matinas e laudes cantadas, ofereceram por
sua alma uma missa solene de requiem:

Se aqueles que acompanharam a sua morte com profusas lá-


grimas, embora nunca suficientes ante os méritos de tão grande
homem, puderam ter algum alívio com a honra que lhe foi pres-
tada por todos na celebração das suas exéquias. Os Cónegos e
os Cantores, juntamente com os nossos, acompanharam o corpo
desde a capela interior até à Sé metropolitana e, tendo rezado os
ofícios de Laudes e Matinas segundo o rito, ofereceram a missa
exequial pela sua alma; por fim, depois de sepultado, e de pedido
para ele o eterno descanso, disseram-lhe lugubremente o último
adeus. […] Os principais sacerdotes e os superiores de todas
as Ordens Religiosas ou celebraram missa por ele ou estiveram
presentes nas suas exéquias. (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
XV: 273-274)

184
Depois de Vieira
Após a partida do Padre António Vieira em 1661, a prática dos
terços cantados em São Luís do Maranhão continuou, sendo descrita
por vários autores. João Felipe Bettendorf, na Crônica da Missão
dos Padres da Companhia de Jesus, datada de 1698, refere a ins-
tituição desta prática pelo Padre António Vieira (Castagna, 1999:
39-72). Também o viajante italiano Dionigi de Carli se referiu ao
canto do terço no séc. xvii nos navios que partiam de Lisboa para
Pernambuco. A novidade do rosário a coros surpreendeu o viajante
quando ouviu os marinheiros do navio em que viajava, em 1667:

Após o jantar, com a ordem acima descrita e soadas as Ave


Marias, juntavam-se todos novamente, mas divididos em dois
grupos (o mastro principal servindo de referência) e a coros se
recitava em língua portuguesa, com todas as vozes em belíssimo
concerto, cinco mistérios do Santíssimo Rosário, com grande de-
voção, silêncio e compostura. (Castagna, 1999: 39-72)

Martinho de Nantes, missionário capuchinho no Rio São Francisco


nas últimas décadas do séc. xvii, no livro que publicou em francês
cerca de 1707, também descreveu o modo como era cantado o ro-
sário naquela região:

Têm o costume de cantar todas as tardes o Rosário da Virgem,


divididos em dois coros, cada um para um sexo diferente, e isso
depois da ceia, e cantavam à maneira portuguesa [ou seja em
português], muito agradavelmente, com uma espécie de fabordão
[ou seja, em terças paralelas]. (Castagna, 1999: 53)

A prática de se cantar o terço do rosário na Congregação de


Nossa Senhora da Luz no Colégio do Maranhão vem também des-

185
crita na Crônica do séc. xviii do P. e Domingos de Araújo, datada
de 1720. Segundo o texto,

o Padre Antônio Vieira ordenou que todos os dias os estudantes e


meninos da escola cantassem o terço, Salve Rainha e Ladainha [...]
e no fim cantava o mesmo Padre Antônio Vieira um exemplo, com
que fortemente movia e afervorava a todos no amor e devoção da
Senhora. (Holler, 2006, II: 162)

Também o P. e João Daniel, em Tesouro Descoberto no Rio Ama-


zonas (Lisboa, 1757-1776) confirmava que o Padre António Vieira
entendia que a música atraía os índios à igreja convidando-os a
celebrarem com solenidade os ofícios divinos, a submeterem-se aos
missionários, a ouvirem a doutrina cristã, e a fazerem-se católicos.
Segundo o P. e João Daniel, o pregador

aconselhava aos mais missionários daquele Estado, que introdu-


zissem nos seus neófitos o canto, e instrumentos músicos, e ele
mesmo assim o fazia, e fez para isso um grande provimento de
instrumentos dos quais ainda restavam, e vi alguns no meu tempo,
e bem o conheciam, experimentavam os mais missionários. (Holler,
2006, I, II: 153 e 507-512)

Fontes musicais
A música das orações e cantigas que então se ouvia encontra-
-se irremediavelmente perdida pelo facto de ter sido transmitida
oralmente e muitas vezes criada pelos próprios missionários. À luz
da documentação histórica, a vida musical na Baía, ao tempo do
Padre António Vieira, era intensa, com uma prática de intercâmbio
de obras musicais entre os principais centros de irradiação cul-
tural. Na música sacra predominam os modelos europeus vindos de
Portugal, todavia imbuídos da cultura autóctone, génese da cultura

186
do Brasil. Como afirma Nery, a expansão colonial europeia é uma
realidade histórica em que o impacto de cada país colonizador
marcou o perfil das sociedades emergentes em cada território co-
lonizado (Nery, 2001: 90).
Em Portugal, existe no Museu de Aveiro um códice de canto gre-
goriano, proveniente do Convento de Jesus desta cidade, que contém
uma ladainha de Nossa Senhora do Rosário, para ser cantada nas con-
frarias do Rosário de Nossa Senhora. No Museu, também proveniente
do Convento de Jesus de Aveiro, conserva-se uma Missa de 5.º Tom
para o Rosário a Nossa Senhora, para coro a 4 vozes. No Brasil, no
Museu da Música de Mariana, conserva-se o manuscrito de Tercio, uma
obra do compositor mineiro José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita
(1746-1805), exemplo do séc. xviii da prática de cantar o pai-nosso
e a ave-maria de forma idêntica à descrita pelo Padre António Vieira.
Outro exemplo conservado no Museu é uma Ladainha a Três Vozes de
autor desconhecido, também do séc. xviii. O P. e Bento da Fonseca,
em data posterior a 1757, referiu que, mesmo depois da expulsão
dos padres do Maranhão, “sempre se continuou a cantar o Terço a
N. Senhora costume inalterado que ha naquelle Collegio, principiado
pelo P. António Vieira” (BPE, cód. 115: fl. 320).

Nota final
A música enquanto estratégia e instrumento de conversão ao cato-
licismo esteve presente desde a chegada dos primeiros missionários
ao Brasil. Humanistas, filósofos e até juristas e administradores, os
missionários foram, nas aldeias e nos claustros, motores de cultura
e agentes sociais (Amorim, 2005: 94). Aos Jesuítas coube um papel
de relevo enquanto transmissores da matriz musical erudita euro-
peia em terras de além-mar. Na realidade esse papel foi partilhado
com as ordens religiosas de Beneditinos, Franciscanos e Carmelitas.
Nos seus relatos os missionários informam que os índios apren-
diam a cantar e a tocar música religiosa, tornando-se assim bons

187
cristãos, mas revelam também casos de resistência ao abandono
de práticas rituais indígenas vistas como demoníacas. Desde a sua
chegada, os jesuítas ensinaram orações cantadas em tupi, cantando
também melodias tupis com letras cristãs. Embora as celebrações
religiosas da Companhia de Jesus na Europa não se evidenciassem
pelo seu serviço musical, certo é que nas missões da América
portuguesa os missionários jesuítas desde logo compreenderam o
gosto pela música do povo tupi, utilizando-a na evangelização das
populações locais. Apesar das regras impostas aos evangelizadores,
a leitura das cartas enviadas aos superiores da Companhia revelam
que se admitiam exceções, tendo em conta o contexto em que os
missionários exerciam a sua ação. 6
Da leitura das fontes documentais depreende-se que as doutrinas
da antropologia teológica tiveram implicação direta nas missões,
fundamentando um processo de acomodação: “todos os valores cul-
turais dos indígenas, desde que não basicamente inadmissíveis pelo
catolicismo, deveriam ser mantidos e imbuídos de conteúdo cristão”
(Bispo, 1999: 277). Todavia, este princípio, presente na difusão do
catolicismo pela Companhia de Jesus, através de um ensino e edu-
cação que tinham em conta algumas características das populações,
resultou na adoção gradual de elementos novos da cultura do povo
colonizador e na substituição dos elementos culturais autóctones.
Por fim, é legítimo afirmar que o extraordinário Padre António
Vieira deixou marcas na vida musical da sociedade colonial brasileira,
ou não fosse o canto coletivo do terço e das ladainhas ao pôr do
sol a prática musical mais insistentemente relatada pelos viajantes
estrangeiros que na segunda metade do séc. xviii estiveram no
Brasil (Nery, 2001: 15).

6 Nóbrega, em janeiro de 1550, tece elogios ao P.e Navarro que ensinou as crianças
a cantarem orações em tupi, “dando-lhes o tom, e estas em lugar de certas canções
lascivas e diabólicas que antes usavam” (Castagna, 1991: 23).

188
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190
V III
E s c r i ta p o l é m i c a e a v i s ã o d o o u t r o
(Página deixada propositadamente em branco)
“Cada um é da cor do seu coração”.
Negros, ameríndios e a questão da escravatura na obra do
Padre António Vieira 1

Black and Indigenous people and the problem of slavery in Father


António Vieira
José Eduardo Franco
Universidade Aberta
ORCID | 0000-0002-5315-1182

Pedro Calafate
Universidade de Lisboa
ORCID | 0000-0003-4784-2136

Ricardo Ventura
CLEPUL-Universidade de Lisboa
ORCID | 0000-0002-6152-0144

1 Uma versão do presente texto foi publicada em António Vieira (2018). Cada
Um é da Cor do Seu Coração: Negros, Ameríndios e a questão da escravatura em
Vieira. Org. e intr. J. E. Franco, P. Calafate, R. Ventura. Lisboa: Temas e Debates/
Círculo de Leitores.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_10
Resumo
A partir do estudo dos textos mais representativos de Vieira que
refletem sobre questão esclavagista, analisaremos e problematiza-
remos o pensamento deste pregador jesuíta sobre a estatuto dos
escravos e da sua condição antropológica tendo como horizonte
de compreensão o que os torna seres capazes de liberdade à luz
do princípio jusnaturalista da igualdade e dignidade de todo o
género humano.
Palavras-chave: Esclavagismo; dignidade humana; igualdade;
liberdade

Abstract
From the study of the most representative texts authored by Vieira
that reflect on the issue of slavery, we analyse and problematize
the thought of this Jesuit preacher on the status of slaves and
their anthropological condition, having as a horizon of unders-
tanding what makes them beings capable of freedom in the light
of principle of equality and dignity of the whole human race.
Keywords: Slavery; human dignity; equality; freedom

“Os homens mudam pouco e então os portugueses quase nada.


Às vezes quando tenho vagar ou um pouco de descanso leio o
Padre António Vieira. Sabe que no Brasil ou em Portugal, em São
Luís do Maranhão, na Capela Real ou na Misericórdia de Lisboa,
ele se permitia observações à política e à administração pública,
críticas, audácias que eu não sei se a Censura as permitiria hoje
em ‘fundo’, no Diário de Notícias?”
António Oliveira Salazar 2

2 In Ferro, A. (2007) [1933]. Entrevistas a Salazar. Lisboa: Parceria A M Pereira


& Livraria Editora Lda., 61.

194
Escravatura como fenómeno transversal
A prática da escravatura apresenta uma história muito antiga.
Esta prática tornou-se um fenómeno transversal aos mais diversos
povos e civilizações durante milénios, especialmente desde que
as sociedades humanas se sedentarizaram e se complexificou a
estratificação social.
O esclavagismo tem origens e motivações diversas, mas a sua
legitimação como prática socialmente aceite e politicamente defi-
nida pela via do direito está ligada, em grande medida, à ética e ao
direito da guerra. Com efeito, podemos observar um denominador
recorrente na aferição das causas da escravatura: a subjugação de
seres humanos por outros seres humanos pela via da vitória em
sede de combate militar, ou em nome da imposição dos valores de
uma dada civilização, que se considerava mais avançada, a povos
com padrões antropológicos e culturais diferentes (Walvin, 2008).
Até ao advento dos movimentos de abolição do esclavagismo,
que se afirmaram no séc. x viii e começaram a triunfar em
Oitocentos, com as sucessivas medidas de proibição de comércio
e posse de escravos, houve escravatura em contínuo na história
da humanidade, em praticamente todos os povos; e essa prática
foi sempre mais ou menos abençoada, ou pelo menos consentida,
pelas religiões. No entanto, no quadro do judeocristianismo dese-
nhou-se um pensamento tendente à crítica e, no limite, à negação
da legitimidade da escravatura, crítica essa assente na teologia da
criação do Homem, segundo a qual todos os seres humanos criados
por Deus são iguais por nascimento e detêm o estatuto de filhos
do seu Criador. Por seu lado, a teologia da fraternidade do Novo
Testamento, inspirada por Jesus e definida por S. Paulo, lança as
bases para a construção de uma sociedade assente no princípio
da liberdade dos “filhos de Deus”, deixando de haver, depois do
sacrifício de Cristo que resgatou toda a humanidade, distinção de
classes e de raças. Foi, aliás, precisamente no quadro da teologia

195
cristã que se começou a pensar e a regular o direito de escravatura
decorrente da guerra, em nome da demanda de uma regulação justa
das iniciativas bélicas e das práticas esclavagistas decorrentes dos
conflitos, no quadro da qual tirar a liberdade era visto como um
mal inferior à sua alternativa, que seria tirar a vida.
Na Época Moderna, com a afirmação e a globalização do poderio
das potências europeias, na sequência das viagens marítimas de des-
cobrimento dos caminhos dos mares por portugueses e espanhóis,
fortaleceu-se uma economia protoglobal de matriz eurocêntrica,
assente na mão de obra escrava (Bettencourt, 2015). Foi neste
contexto que os reinos da península Ibérica e as suas redes de co-
mércio intercontinental promoveram um dos maiores movimentos
de comércio esclavagista da história da humanidade, alimentando
também os mercados de potências europeias emergentes, como a
Holanda, a Inglaterra e a França (Vieira, 1990).

A questão da escravatura na Escola Ibérica da Paz


Se é verdade que Espanha e Portugal foram motor de um co-
mércio de escravos de grandes dimensões, também é certo que
foi nas escolas de pensamento teológico e filosófico da península
Ibérica, com destaque para a Escola de Salamanca e para escolas
de Évora e de Coimbra, que se ouviram os intelectuais pioneiros de
um pensamento avançado sobre o direito das gentes que contestou
frontalmente as práticas de opressão do Homem pelo Homem, sem
critério nem misericórdia, entre os ameríndios e entre os povos afri-
canos. Nomes como Francisco de Vitória e Bartolomeu de Las Casas
lançaram as bases de um direito das gentes de alcance universal
com vista à regulação das relações entre os povos nesse tempo de
protoglobalização. O novo pensamento, para o qual contribuíram
vários teólogos e canonistas de Espanha e Portugal, constituiu a
Escola Ibérica da Paz, na confluência do esforço de vasto acervo
de teólogos que procuraram racionalizar a guerra ao mesmo tempo

196
que afirmaram a paz como caracterização da vida (Pereña, s.d.;
Calafate & Gutiérrez, 2014; Calafate, 2014; Calafate, 2015; Loureiro,
2013; Loureiro, 2015).
O Padre António Vieira inscreve-se nesse ambiente intelectual,
marcado por um forte debate entre as elites eclesiásticas e jusca-
nónicas, que tinham a responsabilidade de fornecer os argumentos
para enquadrar, legitimar ou condenar práticas que implicavam a
definição de molduras jurídicas adequadas (Zeron, 2008).
O contexto era, pois, de preocupação, de controvérsia e de apare-
cimento de vozes autorizadas que contestavam, de modo particular,
os excessos em sociedades fortemente estratificadas, de economia
fundada em mão de obra barata. De facto, nestas sociedades, o
modelo social e económico vigente dificilmente poderia ser pen-
sado sem o recurso à escravatura. A preocupação dos pensadores
mais ousados e ao mesmo tempo mais prudentes, dotados de sen-
tido prático e estratégico, foi, pois, perante o reconhecimento da
inevitabilidade da escravatura, a de regular, à luz de um mínimo
ético indispensável, esta prática e o seu comércio, em ordem a
humanizá-la, dentro dos limites possíveis, com base em princípios
ético-jurídicos sólidos.
Vieira deve ser compreendido neste contexto, em que ele próprio,
homem viajado e conhecedor de várias potências europeias e dos
povos do chamado Novo Mundo, onde a escravatura prosperava, se
debateu com o drama de equacionar os seus ideais cristãos com a
dura realidade do trabalho escravo, que bem conhecia.

Os textos e os contextos
Os textos em que Vieira discorre acerca do tema da escravatura
foram produzidos sobretudo em três momentos do complexo e
diversificado percurso de vida de Vieira: 1) o começo da sua ati-
vidade como pregador, ainda na Baía, durante a década de 30 do
séc. xvii ; 2) a contenda com os colonos do Maranhão, acerca da

197
escravatura dos ameríndios, entre a sua partida para esta região,
em 1653, até à expulsão dos padres da Companhia, em 1661; 3) a
sua presença na Baía, a partir de 1681 até ao final da sua vida, em
1697, nomeadamente desempenhando o cargo de visitador-geral
das missões do Brasil, a partir de 1688.
Significativamente, quase todos estes textos foram produzidos
em espaços coloniais e a eles destinados, e mesmo aqueles que
o não foram, como é exemplo o “Sermão da Epifania” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, I: 352-396), pregado na Capela Real em 1662,
referem diretamente este contexto. São, portanto, textos em que a
temática da escravatura é ponderada na sua relação direta com o
sistema colonial, com diferentes grupos e interesses em jogo: Coroa,
Companhia de Jesus, colonos, outras ordens religiosas, índios, es-
cravos negros. Ao produzir estes discursos, em que são aflorados os
temas da escravatura e das relações raciais no contexto do império
colonial português, Vieira não deve, pois, ser visto como alguém
exterior ou alheio a essa dinâmica, mas sim como indivíduo inte-
grado nesse processo, cujos posicionamentos e agenda dependem
não só das suas visões pessoais e das suas ligações institucionais
à Companhia de Jesus e à Coroa portuguesa, mas também das cir-
cunstâncias concretas em que se encontrava e atuava.
Na sua maior parte composto por sermões, este conjunto de
textos integra também outras tipologias textuais: cartas, tratados
teológicos e pareceres de carácter jurídico. Esta mescla de tipolo-
gias permite-nos entrever, mesmo que palidamente, a diversidade
dos contextos e modos de intervenção de Vieira, ao mesmo tempo
que assinala uma nítida intersecção de diferentes tipologias e
modos discursivos.
Com efeito, é nos sermões, bem como em textos de teor trata-
dístico – como A Chave dos Profetas ou a História do Futuro –, que
Vieira expressa de forma mais explícita e detalhada os fundamentos
e os horizontes do seu pensamento político e teológico, ao passo

198
que nas cartas e pareceres este pensamento se traduz na conceção
de projetos, na sugestão de medidas legais e administrativas, ou
até mesmo na manifestação de poderes de decisão e de ação que
foram sendo dispensados pela Coroa ao autor em diferentes ocasiões.
Assim, é notória a complementaridade entre diferentes tipologias:
Vieira intervinha politicamente com os seus sermões, ao mesmo
tempo que, nos seus pareceres acerca de leis e de medidas político-
-administrativas, dava expressão à sua mundividência religiosa, de
cariz teológico-providencialista.
Esta complementaridade – ou poder-se-ia também dizer, unidade
(Pécora, 1994) – entre retórica, política e teologia impõe vários de-
safios a quem aborda a obra e a figura de Vieira, ao mesmo tempo
que constitui uma importante chave para a sua compreensão.
Os sermões pregados a confrarias do Rosário de escravos negros –
sermões xiv , xx e xxvii do Rosário – são plenamente ilustrativos
desta relação intrincada entre religião e política, entre desígnios
divinos e desígnios humanos, no pensamento do pregador jesuíta
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 396-423; Franco & Calafate,
2013-2014, II, IX: 158-184, 340-367).
Este conjunto reveste-se de características muito particulares,
que convém destacarmos. Não sendo a pregação e os modos de
devoção das confrarias dos Rosário de escravos negros do Brasil
no séc. xvii uma realidade bem documentada, estes sermões são,
em certa medida, testemunhos raros. Destinados primeiramente a
um público inusitado nas coletâneas de sermões seiscentistas, eles
seriam, mais tarde, compilados e, muito provavelmente, ampliados e
aperfeiçoados, por forma a serem inseridos no volume temático da
sua coleção de sermões, intitulado Maria Rosa Mystica: Excellencias,
Poderes, e Maravilhas do Seu Rosario, cujas versões são aquelas que
hoje conhecemos.
Ao adquirirem novas versões e forma de publicação, estes sermões
estendiam-se a outro público e revelavam outro alcance, enquanto

199
textos morais que os letrados poderiam compulsar, apresentando às
suas consciências a condição dos escravos. Com efeito, à semelhança
do que elaborou, mais explicitamente, no seu famoso “Sermão de
Santo António” (aos peixes) (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X:
137-165), Vieira parece também, nestes três sermões, enunciar um
público presente (neste caso, os escravos negros das confrarias do
Rosário) que não é o verdadeiro destinatário da pregação moral.
Esta hipótese é reforçada por diversos trechos descritivos, em que
são apresentados quadros relativos às condições de vida e de tra-
balho dos escravos nos engenhos de açúcar:

E verdadeiramente quem vir na escuridade da noite aquelas


fornalhas tremendas perpetuamente ardentes; as labaredas que
estão saindo a borbotões de cada uma pelas duas bocas, ou ventas,
por onde respiram o incêndio; os Etíopes, ou Ciclopes banhados
em suor tão negros como robustos que subministram a grossa, e
dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem, e atiçam;
as caldeiras, ou lagos ferventes com os cachões sempre batidos, e
rebatidos, já vomitando escumas, já exalando nuvens de vapores
mais de calor que de fumo, e tornando-os a chover para outra
vez os exalar; o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda da
cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao
mesmo tempo sem momento de tréguas, nem de descanso: quem
vir enfim toda a máquina, e aparato confuso, e estrondoso daquela
Babilónia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas, e
Vesúvios, que é uma semelhança de inferno. (Franco & Calafate,
2013-2014, II, VIII: 419)

Para além disso, mesmo que estas descrições visassem granjear


a simpatia e o reconhecimento dos ouvintes declarados, o pregador
semeia, ao longo dos sermões, interrogações que se dirigem explí-
cita e diretamente aos brancos que estivessem na audiência ou que

200
o viriam a ler: “Estes homens não são filhos do mesmo Adão, e da
mesma Eva? Estas Almas não foram resgatadas com o Sangue do
mesmo Cristo? Estes corpos não nascem, e morrem, como os nossos?”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 341). Ou ainda: “Quem vos
sustenta no Brasil, senão os vossos Escravos? Pois se eles são os
que vos dão de comer, porque lhes haveis de negar a mesa, que
mais é sua, que vossa?” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IX: 363).
Outra característica assinalável deste núcleo de três sermões é
uma certa continuidade e complementaridade existente entre eles,
como se cada sermão constituísse uma etapa cumulativa do racio-
cínio do autor acerca da condição dos escravos negros.
O “Sermão XIV” do Rosário, pregado no dia de S. João, no ano de
1633, foi um dos primeiros – se não mesmo o primeiro – sermões
pregados publicamente por Vieira. Nele, o pregador introduz o
tópico que orientará os sermões posteriores: a comparação dos
escravos negros cristãos e do seu sofrimento com Cristo e com a
Paixão divina.
Como o próprio Vieira indica, esta comparação não deveria ser
entendida como “encarecimento” ou “lisonja”, meramente retóricos.
Pelo contrário, ela concedia, sob o ponto de vista religioso, um
significado providencial às provações extremas a que os escravos
eram submetidos. A dualidade da cor de pele, que se traduziria
numa dualidade de comportamentos e de condições sociais, funda-
menta, assim, a tese moral de que a “desgraça” do cativeiro terreno
presente prepararia a glória celeste futura, assim como as delícias
mundanas do “senhor” de escravos no presente preparariam os
tormentos do inferno futuros.
No “Sermão XX” do Rosário, ao dissertar acerca das razões que
poderiam justificar o facto de existirem duas confrarias do Rosário
separadas – uma de negros e outra de brancos –, Vieira demonstra
que, no seu entender, a diferença de cor de pele resultava da dife-
rença do clima em diferentes partes do mundo, não se traduzindo

201
em qualquer traço de superioridade ou de inferioridade. Após com-
pilar longamente vários trechos bíblicos que fazem referência a
indivíduos e a povos negros, Vieira conclui que a distinção entre
escravo e senhor resulta não de qualquer predestinação ou quali-
dade inata, mas sim de uma “sem-razão” que levou alguns homens
a considerarem-se “senhores” e outros a serem por eles conside-
rados “escravos”. Como no sermão anterior, ao fazer corresponder
esta diferença de cor de pele com uma diferença de posição social
e de estado moral, o pregador promete, mais uma vez, que: “Virá
tempo, e não tardará muito, em que esta roda [da fortuna] dê volta,
e então se verá qual é melhor fortuna, se a vil, e desprezada dos
Escravos, ou a nobre, e honrada dos Senhores” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, IX: 178).
A promessa da glória celeste como compensação pelos tormentos
do cativeiro é um tópico que desempenha um papel fulcral no ra-
ciocínio que Vieira desenvolve acerca da escravatura nos sermões
xiv , xx e xxvii do Rosário, na medida em que é através dele que
Vieira estabelece um equilíbrio entre a sua visão crítica moral e os
limites que a política e a prática colonial lhe impunham.
Essa articulação é particularmente evidente no “Sermão XXVII”
do Rosário, onde o pregador se propõe desvendar o “mistério” da
“transmigração” de tantos humanos de África para a América, para
sofrerem o tormento do cativeiro. Aqui, o comércio de escravos
é apresentado com tintas claramente negativas, como “mercancia
diabólica”, causadora de tormentos aos escravos e prejudicial às
almas dos escravizadores. A dado momento, Vieira chega mesmo
a identificar a perda de várias partes do império, bem como o do-
mínio filipino, como castigos dados por Deus ao reino de Portugal
pela prática do comércio negreiro.
Todavia, para Vieira, a conversão dos escravos africanos à fé de
Cristo como que levantava uma ponta do véu que encobria esse
mistério. Por isso, em certa medida conjugando a sua pregação

202
moral com o quotidiano colonial brasileiro de Seiscentos, Vieira
recomenda aos escravos, neste sermão com particular veemência,
que sofram com paciência o seu cativeiro, imitando Cristo e con-
fiantes na felicidade eterna, enquanto, aos patrões, recomenda a
brandura no tratamento dos seus subordinados, já que estes eram
iguais a eles por natureza, para que não colocassem, muito mais,
a sua alma em perigo.
O segundo momento a que nos referimos acima situa-se entre
1653 e 1662, no contexto da contenda entre Vieira, com boa parte
dos padres da Companhia que o acompanhavam, e os colonos do
Maranhão e do Pará, acerca dos cativeiros dos índios. 3 Em causa
estava a prática continuada, desde os começos da colonização do
Maranhão, por volta de 1615, das “entradas” de soldados e de co-
lonos no sertão, com o intuito de capturar e escravizar índios, para
suprir as crescentes necessidades de mão de obra colocadas pelo
desenvolvimento das plantações de cana-de-açúcar e de tabaco na
região. Apesar de as leis existentes a respeito do cativeiro dos ín-
dios (D. Sebastião, 20 de março de 1570; D. Filipe, 22 de agosto e
11 de novembro de 1595) imporem várias restrições a esta prática,
quando Vieira chegou ao Maranhão, a 16 de janeiro de 1553, ela
vigorava havia décadas e constituiria o principal meio de aquisição
de mão de obra no estado do Maranhão.
Contudo, Vieira tinha outros planos para o estado do Maranhão.
Antes de partir, obtivera de D. João IV uma carta (21 de outubro de
1652) que lhe concedia plenos poderes para o desenvolvimento da
evangelização do índio, em termos que não seriam compagináveis
com as entradas bélicas no sertão (Franco & Calafate, 2013-2014,
IV, III: 287).

3 Para uma reconstituição desta contenta, seus documentos e acontecimentos,


consultar Ventura, 2013-2014: 9-47.

203
O “Sermão da Primeira Dominga da Quaresma”, ou “Sermão das
Tentações”, pregado em São Luís do Maranhão a 2 de março de 1553,
é testemunho da abordagem inicial levada a cabo por Vieira junto
dos colonos do Maranhão, no sentido de demonstrar a imoralidade
da prática do cativeiro dos índios (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, II: 226-244).
Tratando o tema das provações que o demónio impusera a Jesus
no deserto (Mt 4, 1-11), Vieira convida os colonos do Maranhão a
pensar como tentações do demónio, que colocavam as suas almas
em risco mortal, o conforto e a facilidade com que baseavam o seu
modo de vida em trabalho escravo:

Este povo, esta República, este Estado, não se pode sustentar


sem Índios. “Quem nos há de ir buscar um pote de água, ou
um feixe de lenha? Quem nos há de fazer duas covas de man-
dioca? Hão de ir nossas mulheres? Hão de ir nossos filhos?”
Primeiramente não são estes os apertos, em que vos hei de pôr,
como logo vereis; mas quando a necessidade, e a consciência
obriguem a tanto, digo que sim, e torno a dizer que sim: que
vós, que vossas mulheres, que vossos filhos, e que todos nós nos
sustentássemos dos nossos braços; porque melhor é sustentar do
suor próprio, que do sangue alheio. Ah fazendas do Maranhão,
que se esses mantos, e essas capas se torceram, haviam de lançar
sangue! (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 237)

Aos avisos morais, o pregador acrescenta a apresentação das


novas medidas políticas que pretendia impor, que restringiam subs-
tancialmente os cativeiros. Doravante, só deveriam ser legítimos os
que resultassem de guerra justa, os “de corda” – ou de indivíduos
resgatados do estado de cativeiro por outros índios, em perigo de
serem alvo de antropofagia – e os que se oferecessem livremente
ao serviço dos portugueses. Estes últimos deveriam ainda ser re-

204
munerados pelo seu trabalho. A legitimidade de cada cativeiro
seria avaliada por uma junta constituída pelas autoridades civis e
religiosas do Estado.
A aplicação destas medidas provar-se-ia difícil, contando com
a oposição férrea dos colonos e de diversos poderes civis e reli-
giosos. Decorreria então um longo processo de negociação, de que
resultaria a lei de 1653, menos restritiva do que o regimento de
1652, mas que também não chegou a ser satisfatoriamente posta em
prática. A 9 de abril de 1655, Vieira consegue obter, junto da corte
em Lisboa, não só uma nova lei relativa aos cativeiros dos índios,
mas também a nomeação de um novo capitão-mor, André Vidal de
Negreiros, que deveria garantir a sua aplicação.
O “Sermão do Espírito Santo” (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, V: 244-270) terá sido pregado neste contexto, em que Vieira, já
regressado ao Maranhão, encontrava condições políticas renovadas
para a execução do seu plano. Pregado numa igreja da Companhia
de Jesus, o sermão apresenta a missionação como imperativo ou
desígnio principal da comunidade do Maranhão. A conciliação dos
esforços de toda a comunidade na prossecução deste desígnio era,
no pensamento de Vieira, necessária, para mais, tendo em vista as
extremas dificuldades colocadas pelo próprio objeto da conversão.
A alegoria da “estátua de murta”, aquela que, pouco depois de
moldada, logo começa a destoar da forma que o escultor lhe deu,
concentra vários elementos de uma caracterização negativa do
índio: “a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais
inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas
há no mundo” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 249).
Devendo ser lida no contexto específico de exortação da co-
munidade ao apoio à evangelização do índio e de glorificação do
trabalho missionário, esta caracterização do índio tem um sentido
estratégico. Significativamente, ela retira ao índio qualquer traço de
civilidade e qualquer motivo de interesse social e económico: só a

205
sua alma teria valor. 4 Portanto, a evangelização era a única forma
de trazer o índio à obediência da Coroa portuguesa e o imperativo
a partir do qual deveriam ser pensadas as relações sociais entre
colonos e índios.
Porém, a reforma ou transição do sistema colonial português
do Maranhão e do Pará de meados do séc. xvii para um regime
eventualmente mais justo e pacífico, sob o controlo missionário,
análogo ao das reducciones jesuítas do Paraguai e Argentina, nunca
esteve perto de chegar a bom fim. A “Resposta que deu o Padre
António Vieira ao senado da Câmara do Pará sobre o resgate dos
índios do sertão”, redigida a 12 de fevereiro de 1661, é um dos
documentos finais dessa negociação (Franco & Calafate, 2013-
-2014, IV, III: 154-156). Nele, depois de rebater os argumentos
do senado, relativos à escassez de mão de obra e à necessidade
de ampliar as entradas no sertão, Vieira procura sustentar que as
missões seriam a única forma legal e justa de trazer os índios ao
serviço do Estado, defendendo que as necessidades suplementares
de mão de obra poderiam ser supridas com a importação de es-
cravos oriundos de Angola, dado que os índios não suportavam
a dureza do cativeiro.
Expulso do Maranhão e do Pará, com os restantes irmãos da
Companhia, pela população em fúria, em agosto de 1661, Vieira em-
preenderia, ao longo do ano seguinte, encontrando-se já em Portugal,
os últimos esforços para reverter o rumo dos acontecimentos.
O “Sermão da Epifania”, pregado na Capela Real em janeiro de
1662, pode ser visto como uma súmula do pensamento de Vieira no
rescaldo dos acontecimentos do Maranhão (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, I: 353-396). Aqui, é sustentada teológica e politicamente
a tese de que só sob o poder eclesiástico missionário poderiam os
estados do Maranhão e do Pará cumprir o propósito principal da

4 A respeito da caracterização do índio em Vieira, ver Pécora, 2009.

206
expansão da fé cristã, que estaria nas origens fundadoras do império
português. Exaltando o trabalho missionário levado a cabo pelos
irmãos da Companhia, enaltece também as consequências positivas
que a conversão pacífica traria à economia da região, promovendo
a integração dos nativos na sociedade colonial. No entanto, por esta
altura a conjuntura política do reino já não era, de todo, favorável
aos planos do pregador.
A terceira fase em que se integram estes textos decorre três dé-
cadas mais tarde, encontrando-se Vieira na Baía, desempenhando,
honorariamente, o cargo de visitador-geral das missões do Brasil.
Na carta a Roque Monteiro Paim, surpreendemos Vieira confron-
tado com as contradições do seu pensamento. Razoando acerca dos
quilombos, comunidades de escravos negros foragidos ao domínio
português, Vieira afirma que a medida ideal seria a declaração de
liberdade destes indivíduos. Todavia, temendo que esta medida
contagiasse outras comunidades, o que, na sua ótica, implicaria
“a destruição do Brasil”, Vieira defende o esmagamento bélico do
Quilombo dos Palmares (Franco & Calafate, 2013-2014, I, IV: 453-454).
Esta carta confirma que o discurso de Vieira, enquanto missionário
e agente do império, mesmo quando denuncia a violência colonial
e abre margens para questionamentos diversos, fá-lo dentro de
dois horizontes principais: a evangelização e o interesse de Estado.
Isto não implica, porém, que a sua interpretação daquilo que seria
o interesse do Estado não tenha variado consideravelmente, e até
amiúde, em relação à que tinham várias figuras e grupos muito
poderosos seus contemporâneos.
O “Voto sobre as dúvidas dos moradores de São Paulo” é, sem
dúvida, um texto em que Vieira foi contra a corrente do seu tempo.
Chamado a expressar o seu parecer acerca dos cativeiros dos índios
de São Paulo, destinados a satisfazer as necessidades de mão de
obra levantadas pela descoberta recente de minas de ouro, Vieira é
categórico acerca da injustiça e crueldade dos mesmos. Num discurso

207
em que são particularmente explícitos os influxos do pensamento
da Escola Ibérica da Paz, Vieira demonstra também o conhecimento
de causa que lhe permitiu enunciar diversos casos de opressão ex-
trema no contexto da expansão dos bandeirantes. Parece-nos, com
efeito, ser essa uma das principais virtudes dos textos de Vieira: ao
ensaiar margens de reforma e de moralização das práticas imperiais,
o pregador abre uma janela ampla para a violência extrema e para
as profundas clivagens raciais que caracterizaram o quotidiano
colonial português de Seiscentos (Franco & Calafate, 2013-2014,
IV, III: 276-286).

As posições de Vieira
São conhecidas as duas posições de Vieira em relação à escrava-
tura, respetivamente dos índios e dos negros: lutou pela proibição
da primeira (ainda que se lhe conheçam algumas ambiguidades
nesta matéria) e admitiu a segunda, embora limitada por títulos
legais. Muitos criticaram esta ambivalência do pensamento de
Vieira. 5 Todavia, a leitura dos seus textos leva-nos a concluir que
tal posição diferenciada é assumida por razões que se prendem com
o seu realismo político, e em atenção à razão de Estado.
Apesar desta posição, que aos olhos do nosso tempo pode ser
considerada por alguns como discutível, Vieira revelou-se um duro
crítico das condições sub-humanas em que viviam e trabalhavam os
escravos, sendo por isso um ousado e corajoso defensor da huma-
nização do trabalho escravo e um empenhado paladino do respeito
por critérios éticos na gestão dos cativeiros e na sujeição ao trabalho.
Percebe-se nas entrelinhas dos seus sermões, das suas cartas e dos
seus relatórios que desejaria que não houvesse escravatura: esse

5 Charles R. Boxer, por exemplo, num texto incontornável, regista a sua perplexi-
dade: “A atitude de Vieira é tudo quanto há de mais paradoxal, porque, diferentemente
dos seus contemporâneos, não acreditava na superioridade inata do homem branco
sobre o negro” (1977: 102).

208
é um dos pontos relevantes do seu pensamento utópico, embora
o seu compromisso com a Restauração e a afirmação de Portugal
como potência internacional o levasse a seguir uma estratégia de
pragmatismo político e económico, bem como a batalhar para que
se respeitasse uma moldura jurídica no uso de escravos. Tal mol-
dura deveria assentar no valor inalienável da justiça, que tinha o
direito por objeto.
Por outro lado, não se pode imputar a Vieira, a despeito da
admissão da inevitabilidade da escravatura de africanos aprisio-
nados ou comprados entre os povos de África e transportados para
a América, qualquer posição que exprima demérito ou que classi-
fique como inferiores as populações negras ou mestiças. Antes pelo
contrário, o que encontramos nos seus textos é um empenho claro
na fundamentação – que poderíamos chamar hoje antirracista – da
igualdade natural de todos os homens. Mais ainda, deparamo-nos
com frequência com o vitupério radical dos que tomavam a cor
da pele como critério para oprimir e escravizar, como podemos
observar nesta passagem, que não deixa dúvidas:

As Nações, umas são mais brancas, outras mais pretas, porque


umas estão mais vizinhas, outras mais remotas do Sol. E pode
haver maior inconsideração do entendimento, nem maior erro do
juízo entre homens, e homens, que cuidar eu que hei de ser vosso
Senhor, porque nasci mais longe do Sol, e que vós haveis de ser
meu escravo, porque nascestes mais perto? (Franco & Calafate,
2013-2014, II, I: 383)

Da unidade do género humano à escravatura legal


Com efeito, para Vieira todos os povos eram naturalmente
iguais, porque a tanto obrigava a paternidade divina. Por natureza,
não havia povos inferiores nem povos superiores, nem, portanto,

209
povos que estivessem destinados naturalmente a servir.6 Sobre isso
foi bastante claro, considerando que a natureza a todos fez livres
e iguais, desde o rei ao escravo. O que havia eram circunstâncias
advenientes, com tradução no direito humano (o direito das gentes
e o direito positivo), que Vieira gostava de enquadrar no conceito
genérico de “fortuna”, expressão da perplexidade perante o jogo do
mundo, e que estabeleciam a legitimidade de alguém ser reduzido
à escravatura, não por ser negro, branco ou mestiço.
Vieira conhecia seguramente os preceitos jusnaturalistas da Escola
Ibérica da Paz, em que se havia formado e que eram lecionados
pelos seus confrades jesuítas de Coimbra e Évora, na sequência dos
já acima citados mestres dominicanos de Salamanca, com Vitória
e Domingo de Soto à cabeça. Convém, pois, que os enunciemos.
O direito natural, que era uma das espécies do direito divino,
postulava que todos os homens haviam sido criados livres e iguais.
No entanto, tal liberdade não era de direito natural precetivo, mas
concessivo; queria isto dizer que o direito natural não obrigava
que todos os homens permanecessem sempre nesse estado natural
de liberdade. O mesmo sucedia, por exemplo, com a divisão da
propriedade e com a apropriação individual dos bens: por direito
natural, inicialmente, todas as coisas eram comuns, mas esta co-

6 Entre os muitos textos de Vieira dedicados à reflexão sobre o tema da igualdade


de todos os seres humanos, veja-se, a título ilustrativo, este exemplo eloquente do
“Sermão da Epifania”: “Dos Magos, que hoje vieram ao Presépio, dois eram brancos,
e um preto, como diz a tradição: e seria justo que mandasse Cristo que Gaspar, e
Baltasar, porque eram brancos, tornassem livres para o Oriente, e Belchior, porque
era pretinho, ficasse em Belém por escravo, ainda que fosse de São José? Bem o
pudera fazer Cristo, que é Senhor dos Senhores: mas quis-nos ensinar que os homens
de qualquer cor todos são iguais por natureza, e mais iguais ainda por Fé, se creem,
e adoram a Cristo, como os Magos. Notável coisa é que sendo os Magos Reis, e de
diferentes cores, nem uma, nem outra coisa dissesse o Evangelista! Se todos eram
Reis, porque não diz que o terceiro era preto? Porque todos vieram adorar a Cristo,
e todos se fizeram Cristãos. E entre Cristão, e Cristão não há diferença de nobreza,
nem diferença de cor” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, I: 383-384).

210
munidade originária dos bens era de direito natural concessivo, ou
negativo, e não precetivo.
Francisco Suárez, cuja obra Vieira conhecia bastante bem, pois
muitas vezes o cita e se lhe refere como mestre, explicara em
Coimbra, no tratado De Legibus ac Deo Legislatore (1612), que havia

muitas instituições que, sob o ponto de vista do puro direito na-


tural, estão permitidas ou foram concedidas aos homens, como a
comunidade dos bens, a liberdade humana e outras semelhantes.
Nelas, a lei natural não obriga a que permaneçam na mesma
situação, pois o deixa à decisão dos homens, de acordo com as
exigências da razão. (Suárez, 1612, II, XIV: 6-7)

Deste modo, nem a apropriação individual dos bens nem a


perda da liberdade eram contra o direito natural. A questão era a
de saber se as leis humanas que enquadraram tais mudanças eram
ou não justas, e se eram ou não pertinentes as exigências da razão
para as legitimar. Aliás, para Suárez, que invocava, a este respeito,
a tradição de Cícero, S. to Agostinho e S. Tomás, uma lei injusta não
era lei, dizendo-se lei apenas por analogia.
No caso da escravatura, que aqui nos ocupa, os juristas equa-
cionavam quatro títulos que a legitimavam: a guerra justa; a venda
voluntária da liberdade em situações de necessidade extrema, no
caso dos maiores de 20 anos, podendo também um pai vender o
seu filho em idêntica situação de necessidade extrema; a punição
de um crime à luz do direito positivo; e um quarto título, dito
“de nascimento”, à luz do qual filho de mãe escrava permanecia
escravo, porque “o parto segue o ventre”. Este último título era
particularmente duro, por se considerar que da mãe o filho recebia
o corpo e do pai o espírito, sendo ao corpo que competia servir.
Destes quatro títulos, Vieira invocava sobretudo o da guerra justa,
até porque parte considerável dos escravos trazidos de África,

211
pelos portugueses, para a América eram comprados aos próprios
africanos já com o título de escravos, por supostamente haverem
sido aprisionados em guerra justa havida entre eles.
A estes títulos, que enquadravam juridicamente a escravatura dos
negros trazidos para a América, traduzidos, na prática, em situações
de extrema dureza, miséria e crueldade, Vieira procurou acrescentar
uma explicação teológica, atinente à salvação. Para Vieira, aquelas
expressões de dor e sofrimento colocavam tamanho desafio ao en-
tendimento humano que apenas poderiam ser aceites na base de
uma explicação que o transcendesse. Nos limites da racionalidade
finita dos homens, a escravatura a que estavam a ser sujeitos os
povos de África superava em muito os limites da sua compreensão.
O recurso à fé e ao providencialismo divino pareceu-lhe a única
via possível para que a perplexidade o não sufocasse.
De facto, nos sermões xiv e xxvii do Rosário, Vieira prega a
escravos negros que a sua condição servil, assentando em títulos
que haveria que supor justos, 7 porque suportados pela lei, poderia
equiparar-se às dores de Cristo no Calvário, o que lhes conferia
uma condição eminentemente cristológica, a qual só poderia ser
entendida se considerada como uma primeira migração, da África
para a América, a que se seguiria uma outra, rumo à bem-aventu-
rança eterna, pois, permanecendo em África, não teriam recebido
os benefícios da evangelização (mais tarde, Vieira deu a entender
que este argumento não lhe parecia – ou deixou de lhe parecer –
convincente, como veremos).

7 Assim prega Vieira, em tom de denúncia: “Bem sei que alguns destes cativeiros
são justos, os quais só permitem as leis e que tais se supõem os que no Brasil se
compram e vendem, não dos naturais, senão dos trazidos das outras partes; mas
que Teologia há, ou pode haver, que justifique a desumanidade, e sevícia dos exor-
bitantes castigos, com que os mesmos Escravos são maltratados? Maltratados disse,
mas é muito curta esta palavra para a significação do que encerra, ou encobre.
Tiranizados devera dizer, ou martirizados; porque serem os miseráveis pingados,
lacrados, retalhados, salmourados, e os outros excessos” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, IX: 366).

212
No entanto, dado que os títulos legítimos de escravatura tinham
sido formulados e estabelecidos pelo direito das gentes, que era
um direito humano, o mesmo poderia ser alterado, conduzindo à
supressão de um ou mais títulos. Assim, por exemplo, a escravatura
em resultado da guerra justa entre cristãos fora sucessivamente
reduzida até cair em desuso, sendo substituída por prisão ou
compensação monetária. A venda da liberdade em situação de ne-
cessidade extrema também poderia ser suprimida pela prevalência
do preceito natural do amor ao próximo e da misericórdia, porque
o homem não era lobo para o homem, senão homem, como dis-
sera Francisco de Vitória (1967, I, 3: 23); a supressão deste título
fora aliás já proposta no Brasil pelo P.e Manuel da Nóbrega, na sua
polémica com o P. e Quíricio Caxa, 8 num interessante debate que,
segundo Serafim Leite,9 assinala a introdução da literatura moral e
jurídica no Brasil, a propósito dos direitos dos índios.
No entanto, era grande e complexo o mundo em que Vieira se
movia, e, se podemos reunir textos em que consente na escravatura
dos negros e também na dos índios, podemos ler outros tantos em
que enuncia o princípio que na verdade o animava: “dominarem
os Brancos aos Pretos é força, e não razão, ou natureza” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, IX: 169); quer dizer, o direito de servidão era
execrável, tanto quanto o da liberdade era louvável, o seu domínio
era o da força e violência, e não o da razão e da natureza, que era,
no fundo, a voz interior da razão comum a todos os homens. Ora, se
considerarmos que a perda da liberdade inerente ao direito natural
concessivo deveria ser firmada em leis que a razão demonstrasse
serem necessárias, ou, como explicava Suárez em Coimbra, “de
acordo com as exigências da razão”, então parece claro que Vieira,

8 O texto desta polémica foi publicado por Serafim Leite (1938: 201-2017).
9 Diz Serafim Leite, a propósito das posições teóricas de Nóbrega: “Pode consi-
derar-se o primeiro trabalho jurídico-moral escrito no Brasil, a favor da liberdade
humana, em geral, e dos índios em particular” (Leite, 1938: 202).

213
ao considerar que a escravatura não se fundava na razão nem na
natureza, se inclinava para retirar legitimidade a essa alteração
nas condições da liberdade natural dos homens concedida pelo
direito natural.
De qualquer modo, o jesuíta não quis colocar-se fora da lei vigente,
porque sabia que naquelas circunstâncias não podia fazê-lo, pois o
resultado imediato seria a expulsão das terras do Brasil. Por isso,
fixou assim a sua posição, tanto a respeito da escravatura dos negros
como da dos índios: “Não é minha tenção que não haja escravos [...].
Mas, porque nós queremos só os lícitos, e defendemos10 os ilícitos,
por isso nos não querem naquela terra e nos lançam dela” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, I: 384). De facto, este “Sermão da Epifania”,
proferido em Lisboa em 1662, seguiu-se à sua expulsão do Brasil,
devido à ação contra a escravatura desmedida, neste caso particular
dos índios, ao serviço dos colonos. Mas Vieira queria permanecer
no Brasil para realizar a missão de que se considerava imbuído,
e por isso reclamou do rei de Portugal, nesse mesmo sermão, a
espada temporal para que os jesuítas pudessem administrar não só
espiritualmente mas também temporalmente as aldeias dos índios.
Expulso, atravessara o mar só com a Bíblia na mão; ao regressar,
queria atravessar o mar com a Bíblia numa mão e a espada na outra.
Noutra ocasião, o pregador esclareceu os seus ouvintes a respeito
de uma condição inalienável da vida dos homens do seu tempo:
se os filósofos diziam que “uma contraditória” não existia na “es-
fera dos possíveis”, ele dizia que a mesma existia na “esfera dos
olhos”. 11 Queria com isto significar que as metáforas do mundo e
da vida não eram as da transparência nem as da linha reta; e que
a sociedade não se movia à luz da evidência de uma demonstração

10 Leia-se: contrariamos.
11 Encontramos esta afirmação no “Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma”,
Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV: 206.

214
geométrica, resistindo, por isso, à ofensiva global do geometrismo
que Descartes formulara a respeito das regras do método filosó-
fico. Segue-se daqui que não podemos lidar com Vieira como se
ele se movesse num ambiente de cátedra, onde a segurança das
demonstrações geométricas encontrava o seu lugar próprio; a sua
linguagem e o seu mundo não eram o das ciências exatas, cul-
tivadas nas grandes academias europeias, embora não ignorasse
muitas das suas conquistas. As metáforas com que enquadrou o
seu mundo e a vida eram as do labirinto, da obscuridade, da dis-
simulação, do jogo, da loucura, da subtileza, dos dilemas, quando
não dos trilemas, da insuficiência da lógica binária comodamente
resguardada num sim que poderia ser sempre um sim, e num não
que poderia ser sempre um não.
Dessa comodidade raramente pôde desfrutar, inserido como estava
nos labirintos do mundo e na comédia da vida. E, para os enfrentar,
era necessária a arte política, que ele considerava a arte das artes, na
qual tantas vezes era necessário dissimular a cizânia para sustentar as
raízes do trigo. Sobre o homem religioso, prudente e sábio, escreveu
Vieira no sermão dedicado a S.to Inácio, que “fica fora da jurisdição
da fortuna; mas nem por isso fora das variedades do mundo” (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, X: 495). Por isso, no seu léxico, surgem
amiúde expressões e palavras como “acomodando-nos à fraqueza
do nosso poder e à força do alheio”, “capitulamos”, “consentimos” e
“pactuamos”, “só para ver se se pode contentar a tirania dos cristãos”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, I: 382).
Noutro sermão, fala de S. Pedro, que, questionado pelos
soldados romanos sobre se Cristo pagava ou não determinado
imposto, estando o apóstolo na ignorância da resposta, disse que
sim. Mas, se não sabia, como respondeu que sim? Explica Vieira
que, dada a circunstância, aquele sim era simultaneamente sim e
não. Quer dizer: “Sim, paga!”. Ou então: “Sim, assim é, não paga!”.
Neste contexto, explicava ainda o pregador: não bastava a subs-

215
tância, sendo necessário ter também em conta a circunstância e a
ocasião da pergunta e da resposta. Naquela ocasião, “era forçoso”
não dizer não nem sim, não respondendo com “termos próprios”,
antes valendo-se da “subtileza”. 12
É também nestes termos que julgamos dever responder à pergunta
sobre se Vieira era um defensor da escravatura: sim, era; sim, assim
é, na verdade não era, porque a sua posição traduziu-se em suces-
sivas respostas, nem sempre unívocas, a um conjunto de dilemas
brutais, e porque, como dissemos, embora ausentes do mundo dos
filósofos, que era a “esfera dos possíveis”, as contraditórias existiam
na “esfera dos olhos”, na qual tinha de se mover, com um objetivo
muito preciso, de que não queria abrir mão: o bem comum universal,
impregnado pelos valores do cristianismo.
Não sendo ele um académico que vivia na tranquilidade do mundo
das ideias, mas um homem que viveu, escreveu e lutou “à face do
mundo”, levando o cristianismo a todas as esferas da vida e a muitos
lugares inacessíveis da Terra, procurou manter-se sempre à super-
fície para levar a sua obra avante. Por isso, recorreu à metáfora
do labirinto para caracterizar a complexidade e o desconserto de
um mundo em que os linces eram governados por toupeiras; um
mundo em que, no contexto das relações humanas, sobretudo as
que visavam a economia e a política, uma parte manifestada e outra
mantida em suspenso valiam bem mais do que um todo declarado.
Lamentou Vieira, certa vez, sempre ter sabido qual o remédio
para o Brasil, mas nunca o ter conseguido aplicar, porque chegara
sempre “um dia depois”. 13 Procurando a substância, que bem co-

12 Explica Vieira no “Sermão no Sábado Quarto da Quaresma”: “Mas chegado


Pedro a perguntas, e metido na tentação, foi-lhe necessário fazer um sim, que fosse
‘sim’, e ‘não’ juntamente, para poder escapar dos homens. Isto é o que fez São Pedro
naquela ocasião” (Franco & Calafate, II, III: 375).
13 Assim escreve no “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”: “Muitas ocasiões
há tido o Brasil de se restaurar, muitas vezes tivemos o remédio entre as mãos, mas

216
nhecia, e a circunstância, quase sempre adversa, falhara, porém,
na ocasião, que era outro tópico desta experiência difícil e contra-
ditória do mundo. Esse era o universo da cultura barroca em que
Vieira se movia, e por isso escreveu que, na arte política, a que
no fundo esta questão da escravatura dizia respeito, não bastava
ser “homem com alma”, sendo também importante ser “alma com
homem”. 14 Se fosse apenas “homem com alma”, seria seguramente
um homem bom; mas, se a isso associasse uma “alma com homem”,
saberia encaminhar a sua bondade no intrincado labirinto do grande
teatro do mundo, beneficiando com isso os outros.
É particularmente significativa, a este respeito, a metáfora da “vida
como um jogo”, que Vieira, num dos seus sermões sobre Francisco
Xavier,15 dizia desenrolar-se numa mesa redonda. Três razões havia
nesse grande jogo da vida para a redondeza da mesa: a primeira,
por assemelhar-se à mesma redondeza da Terra, pois este jogo
realizava-se à escala do orbe e do conjunto dos homens, dos povos,
dos principados e dos impérios; a segunda, porque numa mesa
redonda não havia lugares marcados, tendo tanto direito a ganhar
ou perder os grandes como os pequenos, os reis como os vassalos,
os senhores como os escravos; a terceira, porque todos estavam à
mesma distância do centro, onde se figurava o supremo poder que
o governava, não se tratando, por isso, de um jogo de contingência

nunca o alcançámos, porque chegámos sempre um dia depois” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, VII: 83).
14 Recordemos as belas palavras de Vieira: “Não basta que o que houver de
governar seja homem com Alma, mas é necessário que seja Alma com homem.
Se tiver Alma, e boa Alma, não quererá fazer o mal: mas se juntamente não tiver
atividade, e resolução, e talento de homem, não fará coisa boa” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, V: 353).
15 O Padre António Vieira era de facto um extraordinário observador das mu-
danças da história dos homens e do cosmos, que procurava interpretar: “Todas as
grandes mudanças de estados que se veem, e tem visto neste mundo sempre vário,
e inconstante, não são outra coisa que um perpétuo jogo do supremo poder, que
o governa [...] a mesa deste jogo é toda a redondeza da terra [...]; por isso mesa
redonda” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XII: 214).

217
indeliberada, pois cada qual ganhava ou perdia em função do valor
ético do livre arbítrio. Assim, estando todos os homens e todos os
povos do mundo sentados na mesa redonda do jogo da vida, todos
podiam mudar de lugar, de tal maneira que o que hoje era escravo
amanhã poderia ocupar o lugar do seu senhor, pois não havia,
repita-se, escravatura natural nem qualquer assomo de racismo no
pensamento de Vieira. 16 Por fim, como tal jogo não era de sorte e
azar, por haver uma entidade providencial que o governava, podia
dizer-se, como Vieira dizia, que quem escravizasse seria escravizado.
Então, nos mesmos termos em que pregou aos escravos negros
a submissão aos seus senhores, invocando expressões de S. Paulo,
em nome da legalidade dos títulos jurídicos e da capacitação para a
vida eterna e para a salvação, esclareceu os senhores de escravos no
Brasil que fora pelo facto de se terem iniciado os cativeiros em África
que quem conduzia tal jogo permitiu que ali morresse D. Sebastião,
começando o cativeiro do reino de Portugal durante 60 anos, e
que fora por terem os portugueses feito cativos também no Brasil
que permitiu Deus o cativeiro de Pernambuco pelos holandeses.
Então, depois de chamar a atenção para esta mudança de lugar
dos portugueses na mesa do jogo das hegemonias dos impérios
da Europa, recorre à Bíblia para dar aos senhores dos engenhos
exemplos de povos de cor branca e de reis de incomparável riqueza
que foram reduzidos à escravatura, tendo descido subitamente todos
os degraus da escada das honrarias: os que subitamente se viram
cativos na Babilónia, reis e filhos de reis de Judá, eram cativos ou
livres? Eram brancos ou negros? Eram pobres ou ricos? Pois eram
brancos, livres e ricos, e desceram por isso muito mais degraus do
que os que caberia descer aos colonos portugueses para chegarem

16 Assim clarifica no “Sermão XXVII” do Rosário: “porque a natureza, como


Mãe, desde o Rei ao Escravo, a todos fez iguais, a todos livres” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, IX: 344).

218
à mesma condição. Na mesma linha das advertências a respeito
das mudanças (quase sempre súbitas) na roda da fortuna estava a
recomendação de prudência contida no “Sermão da Epifania”, onde
dizia que os portugueses eram tão negros em relação aos povos
do Norte da Europa como os povos do hemisfério sul em relação
a eles (Franco & Calafate, 2013-2014, II, I: 383).
Assim sendo, poderia dizer Vieira: respeitem-se as leis, ceda-se
à sede insaciável de mão de obra escrava, desde que a mesma seja
legal, entre-se na arte das artes que é a política; mas, sendo legais
tais títulos, nem por isso caberia olhar um escravo com desprezo,
porque quando os desprezávamos, desprezávamo-nos também a nós,
já que todos tínhamos a mesma natureza; de maneira que quem des-
prezasse um escravo negro, maltratando-o, desprezava-se sobretudo e
ainda mais a si, porque, nele, desprezava o que era “por desgraça”, e,
em si próprio, desprezava-se o que era “por natureza”.17 Os escravos
eram iguais a nós por natureza e diferentes apenas pela desgraça
que as leis convertiam em escravatura; mas eram leis que pareciam
sem razão e apenas fundadas na força, uma vez que, repetia Vieira,
“dominarem os Brancos aos Pretos é força e não razão ou natureza”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, IX: 169). Portanto, homem com
alma e alma com homem!

Brancos e negros
Assim, cingindo-nos apenas à natureza, o facto é que, nesse
domínio, Vieira acabou até por se contradizer, ao considerar que a
cor preta, tanto do ponto de vista meramente físico, como humano e
social, era melhor do que a branca e que os negros eram melhores
do que os brancos. Disse-o no “Sermão XX” do Rosário, recordando

17 Veja-se, a este propósito o que diz no “Sermão XXVII” do Rosário: “Quando os


desprezo a eles, mais me desprezo a mim; porque neles desprezo o que é por des-
graça, e em mim o que sou por natureza” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IX: 363).

219
que a cor branca desagregava a luz, metáfora da verdade e do
conhecimento, e que a cor preta a congregava e absorvia melhor,
unia a vista tanto quanto a cor branca a dispersava e desunia.
Por isso, eram os africanos bem mais gregários que os brancos, e
a todos os que tinham a mesma cor chamavam parentes, a todos
os que serviam à mesma mesa chamavam parceiros, a todos os
que embarcam no mesmo navio malungos, ao passo que, entre
os brancos, nem andarem nove meses no ventre da mesma mãe
os dispensava de se digladiarem ou matarem, como Caim e Abel.
Não devíamos, pois, espantar-nos de, sendo próprio dos brancos
o desunir, não conseguirem eles harmonia nem entre si nem com
povos de cores diferentes.
Mas sobrava ainda um argumento. Vieira procurou persuadir os
escravos negros, no seu “Sermão XIV” do Rosário, a que já fizemos
referência, de que a migração destes para a América, à luz dos
títulos justos da escravatura, teria como paga a salvação, a qual
teriam perdido ficando em África; mas estamos em crer que não
permaneceu sempre fiel a este argumento, de que a escravatura
dos negros se enquadrava nesse esquema eclesiológico de paixão
e de redenção.
Contudo, lendo a este propósito o livro iii de A Chave dos
Profetas, veremos Vieira aliviar o peso dogmático da sua tese inicial:
perguntando a um escravo negro de 12 anos, de nome Bernardo, se
estava contente com a sua servidão na Baía, às mãos da Companhia
de Jesus, pois que a mesma o salvaguardaria dos tormentos do
Inferno que padeciam seus avós por terem morrido em África des-
conhecendo o nome de Deus, respondeu o súbito e consumado
teólogo negro que os seus avós não estavam no Inferno. Feita tal
afirmação, que a Vieira causou surpresa, disse ainda o jovem que
não fazia sentido os seus antepassados ofenderem de tal maneira um
Deus que não conheciam de modo a que este os castigasse com as
penas do Inferno; poderia Deus castigá-los por crimes como adul-

220
térios, roubos, assassínios, que a razão dos homens permite saber
serem condenáveis, mas não com as penas eternas do Inferno, que
considerava castigo desmesurado. Vieira, dizendo-se emudecido de
espanto ao ver o argumento daquela criança, acabou por aceitá-lo
e, para não afrontar diretamente a tradição, desdobrou a salvação
em duas: a salvação dos bem-aventurados e a salvação dos que não
conheceram Deus por não terem tido meios para tal, quer dizer,
por terem uma “ignorância invencível” (isto é, não vencível pelos
meios de que dispunham) de Deus. O destino de ambos na eterni-
dade não seria o mesmo, mas uns e outros seriam salvos (Franco
& Calafate, 2013-2014, III, VI: 417ss.).
De algum modo, a ideia de um Deus misericordioso e todo-amo-
roso, acentuada pela espiritualidade inaciana, acaba por fazer Vieira
repensar, perante a realidade multifacetada do género humano e das
situações contingenciais de acesso e de desconhecimento da salvação
cristã, a sua eclesiologia, ou seja, a sua ideia de Igreja. A ideia de um
Deus todo-poderoso de misericórdia, que perdoa, isto é, como Vieira
afirmou noutro lugar, que se vence a si próprio perdoando as fraquezas
humanas, conduz o pregador jesuíta a conceber uma visão da Igreja
sem fronteiras, onde a salvação transborda e se torna acessível por
diferentes vias e formas a toda a humanidade em todos os tempos.
Mas a expressão talvez mais contundente dos dilemas de Vieira
sobre a escravatura negra é a carta que escreveu, em 1691, ao se-
cretário do rei de Portugal, Roque Monteiro Paim. Perante a rebelião
dos escravos negros fugidos para o Quilombo dos Palmares, que
durante anos resistiram às investidas do exército português, Vieira,
reconhecendo que a solução ideal seria a de lhes conceder a liber-
dade, recomenda não obstante uma investida final e em força contra
os aquilombados, pois, se lhes fosse concedido o perdão, a par da
tão almejada liberdade, “esta mesma liberdade assim considerada
seria a total destruição do Brasil” (Franco & Calafate, 2013-2014,
I, IV: 455), pelo efeito de contágio aos demais escravos daquele

221
imenso território; como quem dizia que, sem o trabalho escravo dos
negros vindos de Angola, a economia brasileira sucumbiria. As suas
considerações nesta tão impactante carta remetem para um plano
de “razão de Estado” (Calafate, 1998: 115-128), e não deixam de ser
uma expressão da sua cedência a uma brutal divisão interior, que
julgamos dever ser lida à luz das considerações que aqui fizemos.

Brancos e índios
Resta a questão dos índios, onde Vieira acabou por viver os
mesmos dilemas, mas com propostas, de facto, diferentes. Não é
inteiramente correto dizer que não admitiu a escravatura dos índios:
admitiu-a, desde que enquadrada nas leis do direito das gentes e do
direito positivo, sobretudo no que se referia à guerra justa, fosse entre
os portugueses e os índios, fosse pela compra de índios aprisionados
em guerras entre os indígenas, ou que estivessem presos entre eles
com o destino de serem comidos. A guerra justa, de acordo com a
tradição que emanava de Cícero e S.to Agostinho, era a resposta legí-
tima a uma agressão ou a uma injúria grave. A questão era, então, a
de saber se os índios tinham agredido os direitos dos portugueses
(sendo necessário, de antemão, saber quais eram esses direitos e
se eram legítimos), ou se os tinham injuriado com gravidade.
Mas, na tradição do cristianismo, havia outra situação que legiti-
mava a guerra, podendo enquadrar-se naquele âmbito da agressão
ou impedimento do exercício de um direito legítimo: a necessidade
de reagir a um obstáculo ao jus praedicandi, conferido por Cristo
aos apóstolos; o impedimento da pregação pela força era razão
para que o papa pudesse solicitar o auxílio do braço armado dos
príncipes cristãos para remover essa agressão.
Francisco de Vitória havia defendido este título na sua Relectio de
Indis (1967, I, 3, 11-12: 91), mas não deixou de perceber o enorme
perigo que por trás dele se perfilava para os povos indígenas da
América. Com efeito, acabaria por expressar o temor de que os seus

222
compatriotas tivessem ido muito além do que a moral e o direito
permitiam, mostrando que empreender a guerra num caso destes
poderia ser lícito, mas que o mais das vezes era inconveniente, por
razões de escândalo da parte daqueles a quem a palavra do Deus
da paz se destinava.
Bartolomeu de Las Casas, na sua célebre controvérsia com
Sepúlveda, em Valladolid (1550-1551), também aceitou este título,
mas deixou claro que, à luz da experiência que já tinha dos povos
da América, o mesmo não era necessário, pois não havia notícias
de impedimentos relevantes, pela via das armas, à pregação do
evangelho (Las Casas, 1985: 231).
Francisco Suárez, em 1613, estreitou muito o campo de possibi-
lidades do exercício deste direito, explicando, na sua Defensio Fidei
Catholicae, que tal guerra era ilegítima se fosse toda a república
a opor-se à pregação, mas que, se fosse apenas uma parte, seria
legítimo empregar as armas para que os cristãos pudessem ouvir
o que sobre isso pensava a outra parte.
Um dos que entre nós se opôs totalmente à legitimidade deste
título foi António de São Domingos, dominicano e professor da
Universidade de Coimbra, no seu tratado De Bello, escrito no meado
do séc. xvi, ao considerar que “não podemos provar-lhes que Cristo
pôde conceder este direito” (Calafate & Gutiérrez, 2014: 316), 18
pois não se trata de um direito natural, mas, em certo sentido,
de um direito sobrenatural, dado por Cristo aos apóstolos (Mt 28,
19 e Mc 16, 15); logo, na opinião de António de São Domingos,
Vitória não tinha razão ao invocar a justeza de tal título.
Outra questão a sublinhar era a da legitimidade do domínio de
jurisdição e propriedade dos índios, ou seja, a legitimidade das
soberanias indígenas e o direito dos índios à posse dos seus bens,

18 Para a edição integral deste manuscrito latino de António de São Domingos,


cf. Calafate, 2015, I.

223
tanto pública como privadamente, que Vieira abordará de modo
sublime já no final da sua vida, em 1694, num voto de vencido
perante os seus pares, 19 proclamando o princípio fundamental da
igualdade natural entre as soberanias do orbe.
Em traços largos, se Vieira começou por aceitar a escravatura
lícita e legal dos índios, cedo se apercebeu de que morriam aos
milhões por via do trabalho escravo e de que, a continuar tal si-
tuação, seriam totalmente extintos em terras brasileiras. Outro lado
da questão era a deturpação sistemática das leis que legitimavam
tal escravatura, acabando Vieira por conseguir, já em 1680, que a
Coroa portuguesa promulgasse uma lei que proibia totalmente a
escravatura dos índios do Brasil, lei revogada pouco depois, em
1688, por pressão dos colonos.
Pelo meio, leia-se o que escreveu em 1662 no seu “Sermão da
Epifania”, talvez o mais belo dos seus sermões, referindo a sua
posição perante a escravatura dos índios e a política de resgates e
aldeamentos em que participou: “Não posso porém negar que todos
nesta parte, e eu em primeiro lugar, somos muito culpados. [...]
acomodando-nos à fraqueza do nosso poder, e à força do alheio,
cedemos da sua justiça e faltámos à sua defesa” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, I: 382-383).
Lamentava-se Vieira de ter consentido que os índios houvessem
perdido a sua pátria, a sua soberania e a sua liberdade “só para
ver se se pode contentar a tirania dos cristãos; mas nada basta”.
E continuava: “não só consentimos que percam a sua pátria aqueles
gentios, mas somos os que à força de persuasões e promessas (que
se lhes não guardam) os arrancamos das suas terras, trazendo as
Povoações inteiras a viver, ou a morrer, junto das nossas. [...] não só
consentimos que aqueles gentios percam a soberania natural, com

19 Trata-se do seu “Voto do Padre António sobre as dúvidas dos moradores de


São Paulo” (Franco & Calafate, 2013-2014, IV, III: 276ss.).

224
que nasceram, e vivem isentos de toda a sujeição; mas somos os que
sujeitando-os ao jugo espiritual da Igreja os obrigamos também ao
temporal da Coroa, fazendo-os jurar vassalagem”, a que acrescentava
o facto de ter aceitado que os mesmos índios fossem meio-cativos,
obrigando-os “a servir, alternadamente ametade do ano”; e termina:
“Mas nada disto basta para moderar a cobiça, e tirania dos nossos
caluniadores, porque dizem que são negros, e hão de ser escravos”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, I: 383).
Havia, pois, da parte dos índios, como dos demais povos do
mundo, uma soberania natural, uma liberdade natural e também uma
igualdade natural, que tinham sido postas em causa pela tirania dos
cristãos. Tais princípios fundavam-se na tradição tomista de que o
domínio (de jurisdição e propriedade) era de direito humano e a fé
de direito divino, e que nem a fé nem o direito divino contrariavam
tal direito ao domínio que era constitutivo de todas as comunidades
humanas. Por outras palavras, a distinção entre fiéis e infiéis era
de direito divino; e o direito divino, que procedia da graça, não
suprimia o direito humano, que procedia da razão natural.
Ao longo dos sécs. xvi e xvii , estas teses foram, como já se
referiu, fixadas e aperfeiçoadas por Francisco de Vitória, Domingo
de Soto, Luís de Molina, Azpilcueta Navarro, Francisco Suárez e
muitos outros nas universidades da península Ibérica. Luís de
Molina, por exemplo, sustentava que, “pelo simples facto de os
homens terem concordado em constituir o corpo do Estado, nasce
por direito natural o poder deste Estado sobre os seus membros para
seu governo, legislação, administração da justiça e castigo” (Molina,
1591, t. i, liv. i, disp. xxii). Ou seja, todas as entidades dotadas de
fim próprio deveriam ter em si mesmas as faculdades necessárias
para o realizar; sendo a comunidade uma entidade transpessoal
dotada de fim próprio, o bem comum, tinha também de ter em si
mesma, constitutivamente, as faculdades necessárias para o realizar.
Tais faculdades expressavam-se no domínio de jurisdição, comum

225
a todas as comunidades do orbe. Assim sendo, tudo o que pudesse
ser dito sobre o poder natural que os homens tinham para ditar leis
civis era igualmente válido para pagãos e infiéis, pelo que o poder
dos pagãos e dos infiéis tinha, em si mesmo, natureza idêntica ao
poder dos príncipes cristãos, embora o poder dos príncipes cristãos
fosse mais perfeito do que o dos infiéis e pagãos, porque a graça,
não contrariando a natureza, a aperfeiçoava.
Estes mesmos princípios foram reafirmados no corajoso texto de
Vieira de 1694, “Voto do Padre António Vieira sobre as dúvidas dos
moradores de São Paulo acerca da administração dos índios”, escrito
a respeito da redução à escravatura de uma comunidade indígena.
Neste caso, não se tratava dos “bárbaros” tapuias, que viviam sem
obedecer a leis e formas de vida humana, mas de uma comunidade
indígena originária, dotada de formas locais de organização social
e política; por isso, remata Vieira:

assim como o espanhol ou genovês cativo em Argel é contudo


vassalo do seu rei e da sua república, assim o não deixa de ser o
índio, posto que forçado e cativo, como membro que é do corpo e
cabeça política da sua nação, importando igualmente para a sobe-
rania e liberdade tanto a coroa de penas como a de ouro, e tanto
o arco como o cetro. (Franco & Calafate, 2013-2014, IV, III: 276)

Era este o fundamento da igualdade natural das soberanias do


orbe, bem como o da liberdade natural dos índios da América, que
o Padre António Vieira procurou preservar no difícil equilíbrio de
um mundo labiríntico e complexo, marcado pelo choque perma-
nente de forças adversas.

226
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228
Vieira e os índios do Grão-Pará e Maranhão: renovações de
um grande combate

Vieira and the Indians of Grão-Pará and Maranhão: renewals


of a great combat

Ronaldo Vainfas
Universidade Federal Fluminense
ORCID | 0000-0003-0069-0374

Resumo
Transferido para o Maranhão, em 1653, após ter caído em des-
graça na corte, Antônio Vieira assumiu o comando da missionação
maranhense. No posto de Superior das Missões, permaneceu na
região até 1661. Dirigiu a organização dos aldeamentos e reforçou
o poder da Companhia de Jesus, combatendo, frontalmente, os
interesses coloniais e escravistas. Pregou sermões memoráveis
em São Luís e conseguiu do rei autoridade máxima na questão
dos resgates indígenas. Percorreu diversas comarcas, viajando em
canoas, na bacia amazónica. Integrou a comissão que analisou,
caso a caso, os litígios de cativeiro injusto. Vieira criou tanta
animosidade que acabou expulso da capitania, juntamente com
os demais jesuítas, em 1661. Ainda assim, mesmo depois de, re-
gressando ao reino, enfrentar um processo inquisitorial e, mais
tarde, em Roma, conseguir do papa a suspensão do Santo Ofício
português, ele retomou o combate em favor da missionação.
Foi dele, no Conselho do rei, a ideia de criar a Companhia de

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_11
Comércio do Maranhão (1682), consórcio que abrigava capitais
sefarditas, como na Companhia Geral de Comércio do Brasil de
1649. A Companhia do Maranhão foi contemplada com o mo-
nopólio do tráfico de escravos africanos para a região, livrando
os índios do cativeiro. Neste caso, Vieira saiu vitorioso, pois a
revolta dos colonos foi reprimida pela coroa com rigor, em 1685.
Palavras-chave: cativeiro; colonos; comércio; índios; missionação

Abstract
Transferred to Maranhão in 1653 after being disgraced in
court, António Vieira assumed command of the Maranhão
mission. As Superior of the Missions, he remained in the re-
gion until 1661. He led the organization of the settlements and
strengthened the power of the Society of Jesus, frontally fighting
colonial and slave interests. He preached memorable sermons in
São Luís and became the king’s highest authority on indigenous
issues. He toured several counties, traveling in canoes, in the
Amazon basin. He was part of the commission which examined,
on a case-by-case basis, disputes involving unlawful arrest.
Vieira created so much animosity that he was expelled from
the captaincy, along with the other Jesuits, in 1661. Even after
returning to the kingdom to face an inquisitorial process and
later in Rome to obtain from the pope the suspension of the
Portuguese Holy Inquisition, he resumed the fight in favour of
the missionary efforts. His idea was to create the Maranhão Trade
Company (1682), a consortium of Sephardic investments, as in
the General Trade Company of Brazil of 1649. The Maranhão
Company was granted a monopoly on trafficking African slaves
to the region, freeing the Indians from captivity. In this case,
Vieira was victorious, since the crown swiftly repressed the
uprising of the colonists in 1685.
Keywords: captivity; colones; Indians; mission; trade

230
Vieira desembarcou em São Luiz do Maranhão em 16 de janeiro
de 1653, à frente de um pequeno grupo de padres. A cidade abrigava
cerca de 600 famílias e colonos, vivendo em palhoças. A grande
maioria dos historiadores considera que Vieira se imbuiu do maior
espírito missionário possível no longo período em que atuou como
superior das aldeias jesuíticas no Norte. É verdade. Entre 1653 e
1661, Vieira percorreu extenso território, visitando Belém do Pará, a
serra de Ibiapaba no Ceará, e diversas partes do Maranhão. Viajava
em comboios de canoas protegidas por índios frecheiros, atentos a
qualquer ruído que sinalizasse a presença de inimigos. Navegação
perigosa na imensidão dos rios amazônicos, silêncio apenas rom-
pido pelo barulho dos bichos. Vieira já era veterano de viagens
perigosas no mar, entre tempestades e corsários. Mas não conhecia
nada daquele mundo de riachos, canais e igarapés que adornavam
o Tapajós, o Tocantins e o Amazonas, rio-mar em cuja foz aqueles
grandes rios desembocavam.
A correspondência de Vieira, aqui e ali, deixa entrever a melan-
colia de seu estado de espírito, sobretudo nos primeiros meses. Isto
não se percebe nas cartas oficiais ao rei ou às autoridades jesuíticas,
é claro, onde prevalece o ânimo missionário e a atitude combativa
diante das adversidades. Mas há cartas em que o tom é de tristeza.
A um companheiro jesuíta de longa data, confessou que estava no
Maranhão contra a sua vontade, uma autêntica provação:

Ando vestido de um pano grosseiro cá da terra, mais pardo que


preto, como farinha de pau, durmo pouco, trabalho de pela manhã
até à noite, gasto parte dela em me encomendar a Deus, não trato
com viva criatura, não saio fora senão a remédio de alguma alma,
choro meus pecados, faço que outros chorem os seus; e o tempo
que sobeja destas ocupações levam-no os livros da Madre Teresa
e outros de semelhante leitura. (Franco & Calafate, 2013-2014, I,
II: 115-116)

231
Melancólico, deprimido, assim ficou Vieira no início de sua ex-
periência nas partes do Norte brasileiro. Para quem tinha visitado
metrópoles europeias, com seus palácios e monumentos, em Paris
ou Haia, a discutir elevadas questões de Estado, aquele mundo
silvestre era um desterro. E, como escreveu Camões em um de
seus versos, “para o desterro ser morte, nenhuma coisa lhe falta”.
Com o passar do tempo, Vieira se habituou àquela vida rústica e
por vezes até se vangloriou de passar por tudo aquilo, quase um
martírio que, como tal, era merecedor de glória.
Quando não estava em ação, supervisionando as missões, visitando
aldeias ou discutindo com os colonos na Câmara de São Luiz, vivia
trancado na cela do Colégio de N. a S. ra da Luz, fundado em 1652,
a partir da casa jesuítica ali erigida 30 anos antes. Cela estreita,
uma esteira de tábua a modo de cama. Vestia uma roupeta esfarra-
pada de pano grosso, calçava sapatos de couro de porco montês.
Pode-se bem imaginar como eram as noites de Vieira em sua cela,
com livros amontoados em alguma mesinha, tudo à luz de velas.
Foi nesse tempo que Vieira aprofundou suas ideias sobre o Quinto
Império, as profecias contidas nas Trovas do Bandarra. Data de
1659 o famoso texto “Esperanças de Portugal”, texto inaugural de
sua trilogia profética.
Vieira, como sempre, mal descrevia os lugares por onde passava.
Não obstante, ao relatar suas diversas viagens nesta fase, deixou
algumas impressões sobre a natureza selvagem da Amazônia, a
imponência da serra de Ibiapaba, no Ceará, a imensidão dos rios.
Mas, a bem da verdade, Vieira nunca produziu relatos de viagens
sequer razoáveis. Um desperdício de talento literário. Paciência.
Em Haia, só pensava nos tratados com a Holanda; em Paris, nas
núpcias de D. Teodósio com a grande mademoiselle; em Rouen
ou Amsterdão, em como atrair os capitais sefarditas para o reino
português. No Maranhão, dedicou-se obsessivamente a construir a
missionação e a combater o ânimo escravagista dos colonos, du-

232
rante o dia, e às profecias do Bandarra, à noite. Quase nada no
mundo parecia sensibilizá-lo, fosse a natureza exuberante, como
no Brasil, fosse a beleza arquitetônica, como nas cidades europeias.
Gostava de ler, escrever e discursar no púlpito. Gostava também
de negociar assuntos espinhosos em gabinetes fechados, a tratar
com gente poderosa. Adorava provocar os adversários, desafiá-los
para a esgrima dos argumentos. Apreciava meter-se em confusões,
quando não as criava.
E confusões foi o que não faltou nos oito anos em que Vieira
atuou no Norte do Brasil como superior das missões. Antes de tudo,
enfrentou a dificuldade na montagem dos aldeamentos, no desci-
mento dos índios, na doutrinação cristã. Os jesuítas tinham de partir
praticamente do zero, pois as tentativas anteriores foram trágicas.
Padre Francisco Pinto, denodado jesuíta que pregava imitando os
pajés, a granjear fama de feiticeiro, caiu prisioneiro dos tapuias
tocarijus, em 1609, e morreu trucidado. Padre Luís Figueira, que
dividiu com padre Francisco Pinto algumas entradas no Maranhão,
teve destino similar, em 1643. Caiu prisioneiro dos índios da ilha
de Marajó e ali terminou seus dias, não sei se flechado ou comido.
Outros padres que o seguiram nesta ação também foram martiri-
zados nessa ocasião.
Antônio Vieira tinha inegáveis qualidades para organizar a mis-
sionação dos índios do Norte, apesar de sua experiência de campo
ser modesta, limitada à juventude na Bahia, pelos idos de 1625.
Havia quase um quarto de século que Vieira não pisava em aldea-
mentos indígenas. Mas a sua capacidade de liderança compensava
tudo. Os padres da missão maranhense obedeciam cegamente às
suas ordens, muitos orgulhosos, todos maravilhados em ter um
comandante daquela estirpe. Vieira atuou, antes de tudo, como
supervisor, estrategista da missionação, nem tanto como catequista.
Concebeu a administração dos aldeamentos, traçou planos de
combate contra os que sabotavam a catequese, preparou o espírito

233
dos padres que partiam em missões para o “descer” os índios dos
sertões para os aldeamentos.
Nesse particular, orientava os companheiros como um capitão
de armas, a comandar os “soldados de Cristo”, como eram os
Jesuítas. Um dos sermões seminais de Vieira a este respeito foi o
proferido em São Luiz, em 1657 – o “Sermão do Espírito Santo”,
dirigido aos missionários:

A fácil é pregar a gente da própria nação, e da própria língua


[…]; a dificultosa é pregar a uma gente de diferente língua, e dife-
rente nação […]; a dificultosíssima é pregar a gentes não de uma
só nação, e uma só língua diferente, senão de muitas, e diferentes
nações, e muitas, e diferentes línguas, desconhecidas, escuras,
bárbaras, e que se não podem entender […]. (Franco & Calafate,
2013-2014, II, V: 255)

[…] os Missionários, que Portugal manda ao Maranhão, posto


que não tenha nome de Império, nem de Reino, são verdadei-
ramente aqueles que Deus reservou para a terceira, última, e
dificultosíssima empresa, porque vêm pregar a gentes de tantas,
tão diversas, e tão incógnitas línguas, que só uma coisa se sabe
delas, que é não terem número […]. (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, V: 256)

Vieira alertava os bravos missionários dos perigos daquela “di-


ficultosíssima empresa”, porém lembrava que a morte em martírio
era o que de melhor se poderia esperar da vida. O ponto alto
desse sermão pode ser visto na passagem seguinte, quando Vieira
apresentou o significado preciso da catequese através da metáfora
do mármore e da murta:

Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer


de Príncipes, veríeis naqueles quadros, e naquelas ruas dos jardins

234
dois géneros de Estátuas muito diferentes, umas de mármore,
outras de murta. A Estátua de mármore custa muito a fazer, pela
dureza, e resistência da matéria; mas depois de feita uma vez,
não é necessário que lhe ponham mais a mão, sempre conserva,
e sustenta a mesma figura; a Estátua de murta é mais fácil de
formar, pela facilidade com que se dobram os ramos; mas é neces-
sário andar sempre reformando, e trabalhando nela, para que se
conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um
ramo, que lhe atravessa os olhos, sai outro, que lhe descompõe
as orelhas, saem dois, que de cinco dedos lhe fazem sete; e o
que pouco antes era homem já é uma confusão verde de murtas.
Eis aqui a diferença que há entre umas nações, e outras na dou-
trina da Fé. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 252)

O mármore, símbolo da fé dos povos cultos que, por mais custosa


que tenha sido a evangelização, era de uma firmeza inquebrantável.
A murta, símbolo da “inconstância da alma selvagem”, nas palavras
de Viveiros de Castro. O gentio podia receber bem a doutrina de
Cristo, mas logo dela se afastava. O missionário, como o jardineiro,
não podia descurar a poda diária, constante.
Vieira construiu uma autêntica “teoria da catequese” neste sermão
antológico, embora desprovida de qualquer sensibilidade etnológica,
por mínima que fosse. O pressuposto de Vieira era o de que “a gente
destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a
mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 249). Os índios, nas palavras
de Vieira, eram como feras; selvagens falantes de línguas bárbaras,
tão bárbaras quanto numerosas. A perspectiva de alteridade cultural,
em Vieira, é nenhuma. Os índios só valem por sua alma aberta à
palavra de Deus, nada mais.
Antônio Vieira exprimia, na verdade, uma versão radical do
jesuitismo missionário, empenhado em destroçar completamente

235
os costumes e as crenças indígenas. Colegas de Vieira no passado
pensavam do mesmo modo, apesar do esforço em compreenderem
as línguas nativas, os símbolos, os costumes, como fez Anchieta,
para utilizá-los a favor da missão. A diferença reside em que muitos
deles conseguiram ultrapassar a fronteira da diferença cultural a
ponto de pensarem nos costumes nativos como regras a serem
aprendidas. Vieira não chegou a tal ponto. Não saiu da trincheira
católica e só se dedicava a estudar os costumes nativos com pro-
pósitos instrumentais.
Há registro, porém, não sei se veraz ou lendário, de que chegou
a compor um catecismo em seis línguas diferentes, além de um diá-
logo evangelizador, como o Diálogo sobre a Conversão do Gentio,
escrito pelo primeiro provincial da Companhia no Brasil, Manuel da
Nóbrega. Mas tanto o catecismo plurilinguístico como o tal diálogo
se perderam. Vieira não abandonou, portanto, a velha estratégia
jesuítica de conquistar a alma indígena por meio de símbolos da
cultura nativa – um dos grandes segredos do êxito inaciano na ca-
tequese. Chegou a recomendar, em uma carta de instrução, que se
deviam incorporar máscaras e cascavéis nas danças das procissões,
“para mostrar aos gentios […] que a lei dos cristãos não é triste”
(Franco & Calafate, 2013-2014, III, IV: 444). Recomendou muita
pompa nos batismos, sempre “necessária […] aos olhos da gente
rude, que só se governa pelos sentidos” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, III, IV: 445), muita tinta nos sepulcros. Os índios apreciavam
tudo que fosse colorido – era o que pensava Vieira.
Vieira não tinha nenhuma empatia pelo modo de vida indígena,
qualquer que fosse a nação, tabajaras, potiguaras, trucujus, jurunas,
pajaís, arnaquizes e muitos outros que citou em seus relatórios e
cartas. Detestava, em especial, um grupo genericamente chamado
de nheengaíbas, falantes de várias línguas, que viviam na ilha de
Marajó. Eram os mesmos que tinham trucidado o P. e Luís Figueira
em 1643. Os nheengaíbas, que pertenciam ao tronco arawak, mo-

236
viam guerra incessante contra colonos e padres, rejeitando a missão.
Vieira tinha verdadeiro horror a esses índios.
O grande amor que Vieira sentia pelos índios, e que recomendava
aos missionários de campo, era um amor abstrato, nada mais que a
caritas recomendada pelos apóstolos. Vieira, mais que todos os je-
suítas atuantes no Brasil, era um colonizador de almas, preocupado
seriamente com a salvação dos índios no foro espiritual. Para tanto,
considerava essencial mantê-los em liberdade e combater, sem
trégua, a rapinagem dos colonos. Foi a esta causa que Vieira se
dedicou no desterro maranhense, durante oito anos. Vieira sempre
precisou de grandes causas para combater. Encontrou na defesa da
liberdade indígena o grande mote da sua atuação, quer na colônia,
quer na metrópole, onde esteve, meio clandestino, entre 1654 e
1655, em busca do apoio real para sua ofensiva antiescravagista.
Talvez por isso, mais do que por sua atuação doutrinária, ficou
conhecido entre os índios como “pai grande”, Paiaçu. Os índios
aldeados, pelo menos esses, compreenderam perfeitamente que
Vieira lutava por eles.
Os conflitos entre colonos e jesuítas na região eram cartas mar-
cadas desde 1652, quando correu a notícia de que D. João IV baixaria
provisão a favor da liberdade dos índios do Maranhão. Nessa altura,
a presença holandesa no Nordeste estava com os dias contados e a
expansão para o Norte, apoiada na escravização dos índios, avançava
com rapidez. A proibição do cativeiro indígena era uma tentativa de
evitar, no Maranhão, a reedição dos conflitos que haviam marcado
a colonização do litoral no século anterior. No séc. xvii , a enorme
influência que a Companhia de Jesus exercia sobre a Coroa favo-
recia a missionação. À simples notícia da provisão real, os colonos
se amotinaram em São Luiz, exigindo do governador garantias de
que não perderiam seus escravos. Rascunharam, ainda, um acordo
com os jesuítas que lá estavam, dirigidos pelo P. e João do Souto
Maior, pelo qual os índios que serviam no trabalho doméstico per-

237
maneceriam cativos, independentemente do modo como haviam
sido escravizados.
Antônio Vieira foi ao Maranhão munido de poderes extraordi-
nários em tudo o que se referia à questão indígena, investido por
carta régia de 21 de outubro de 1652. É provável que os colonos
já soubessem disso, pois, mal Vieira desembarcou no Maranhão,
dois procuradores da Câmara de São Luiz partiram para Lisboa,
decididos a impedir a decretação da provisão ou, quando menos,
influir na redação do texto para atenuar a proibição do cativeiro
indígena. Estavam dispostos a aceitar a decisão régia que consagrava
a liberdade indígena no Maranhão, desde que esta não impedisse
a escravização deles…
Vieira logo percebeu os problemas que se avizinhavam, ao
constatar o amplo predomínio de escravos indígenas nas lavouras,
sobretudo as de tabaco, e na coleta das “drogas do sertão” – espe-
ciarias da floresta (plantas medicinais, cacau, castanhas, pimentas,
madeiras tintoriais). Recuperado da melancolia que o prostrou nos
primeiros meses, escreveu ao rei dando conta da situação e negou-se a
assinar o acordo que preservava a escravidão doméstica de nativos,
considerando-a intolerável. Faria o mesmo em Belém, para onde foi
em outubro do mesmo ano, gerando um motim a custo debelado
pela câmara local. Vieira se comportava como um delegado pleni-
potenciário do rei, já seduzido pela nova causa, mas não tardou a
perceber que, na colônia, o poder real era amortecido por diversas
instâncias e mediações.
Era caso para um sermão caprichado, que pregou em 2 de março
de 1653, o primeiro de Vieira em São Luiz. O simples anúncio do
sermão causou enorme rebuliço na cidade, pois todos queriam
assistir ao grande espetáculo, fossem contra ou a favor de Vieira.
Sua fama de pregador régio era conhecida e bastava isso para atrair
os moradores.

238
Vieira começou a pregar com dureza, voz de trombeta, tom de
ameaça: “Oh que temeroso dia! […] Estamos no dia das tentações do
demónio, e no dia das vitórias de Cristo. Dia em que o demónio se
atreve a tentar em campo aberto ao mesmo Filho de Deus” (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, II, 226-227).
Ficou conhecido como o “Sermão das Tentações”, pois Vieira bateu
na tecla de que tamanha cobiça dos moradores era prova de que
o demônio tinha se assenhorado daquela terra, possuindo a alma
dos cristãos. No entanto, pouco a pouco, atenuou o tom intimida-
tório, até assumir um tom paternal, voz mansa, ânimo conciliador.
Explicou que nenhum índio seria retirado do serviço doméstico,
ainda que tornado livre, caso quisesse permanecer no convívio de
seus senhores. Confirmou que não cessariam as entradas para os
sertões destinadas a resgatar índios capturados para serem comidos
por seus inimigos (índios em corda, como se dizia), pois melhor
seria para eles o “perpétuo cativeiro” do que o suplício selvagem.
Insistiu em que os cativos em guerra justa continuariam a ser lici-
tamente vendidos como escravos, desde que tratados sem violência.
Os demais seriam distribuídos pelas aldeias, permanecendo seis
meses dedicados às suas próprias lavouras, e outros seis ao serviço
dos moradores, conservando porém a liberdade. “De sorte que […]
todos os Índios deste Estado servirão aos Portugueses” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, II: 240).
Pura retórica. Vieira fez o que pôde para amansar o ânimo re-
belde dos colonos, sugerindo que nada iria mudar radicalmente, na
prática, exceto a condição legal da maioria dos índios residentes
na colônia. Vieira gostou do próprio sermão, mas fez pouco caso
da inteligência do público.
Na verdade, estava decidido a extinguir a escravidão dos índios
no Maranhão em favor da obra missionária, desde que fora indicado
para superior das missões no Brasil. Antes de embarcar, enviou ao
rei uma exposição de motivos contra o cativeiro indígena, aprovada

239
pelo Conselho Ultramarino, em agosto de 1653. Este parecer do
Conselho foi a base da nova provisão real. O problema da mão de
obra deveria ser resolvido, segundo Vieira, do mesmo modo que
na Bahia, através da escravidão africana.
No entanto, a delegação enviada pela Câmara de São Luiz fez
o seu papel. Não conseguiu que a provisão fosse revogada, mas
atenuou as suas consequências. Decretada em outubro de 1653, a
provisão de D. João IV era quase idêntica à lei de 1609, no tempo
dos Filipes, que tinha proibido o cativeiro indígena, salvo nos
casos de “guerra justa” – as guerras provocadas pelos índios –,
circunstância que permitia a escravização dos índios. Como o enten-
dimento sobre quem provocava as guerras era sempre da alçada dos
colonos, abria-se uma brecha na lei para que o cativeiro indígena
continuasse intacto.
A divulgação da provisão régia pelas ruas de São Luiz, com
pregão e tambor, quase resultou na expulsão dos jesuítas. A provisão
desagradou seja a Vieira, que desejava mais rigor na proibição do
cativeiro e maior poder para os inacianos, seja aos colonos, que
não admitiam a legislação restritiva e ainda acusavam os jesuítas
de terem açulado o rei para decretá-la. Vieira lançou-se, então, a
uma das tarefas que mais apreciava: traçar planos sinuosos para
enredar o inimigo. Proclamou aos quatro ventos que os jesuítas
nada tinham a ver com a provisão, ao mesmo tempo que procurou
defendê-la, na linha do “Sermão das Tentações”. Convenceu-se,
porém, da necessidade de ir a Lisboa tratar pessoalmente com o
rei. Antes de viajar, pregou o famoso “Sermão de Santo António”
aos peixes, no qual os últimos representavam, à moda de fábula, o
público auditor e, mais amplamente, a própria cobiça do Homem,
criatura vil desde o pecado original:

A primeira coisa, que me desedifica, peixes, de vós, é que


vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este; mas a

240
circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros,
senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário,
era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um
grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os
pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 149)

Três dias de pregar aos “peixes” ou “tubarões” maranhenses,


Vieira partiu para Lisboa às escondidas, levando consigo o “Parecer
sobre o governo dos índios e gentios”, base de uma nova provisão
muito mais radical do que a de 1653. A proposta retirava a juris-
dição dos índios do governador e capitães-mores, transferindo-a
para a Companhia de Jesus. Vieira sequer admitiu que os Jesuítas
compartilhassem este poder com outras ordens religiosas estabe-
lecidas no Maranhão, como os Franciscanos ou Carmelitas, que
julgava incapazes. O plano mantinha as entradas de resgate de ín-
dios na floresta, desde que dirigidas pelos jesuítas, escoltados por
soldados portugueses. Os escravos eventualmente resgatados, sendo
cativos de guerra comprovadamente “justa”, a critério dos padres,
ou prisioneiros “em corda” para serem comidos, seriam repartidos
pelos moradores, dando-se preferência aos mais pobres. Quanto aos
índios forros e livres, Vieira admitia que servissem aos moradores
uma parte do ano, como pregou no “Sermão das Tentações”, desde
que sob o estrito controle dos jesuítas.
É claro que Vieira precisava do suporte de um governador qua-
lificado e amigo, e foi então que André Vidal de Negreiros, um
dos líderes da insurreição pernambucana, se viu nomeado para a
governança do Maranhão. D. João IV foi mais uma vez – a última –
convencido por Antônio Vieira. A nova provisão foi decretada em
abril de 1655. Em maio, Vieira regressou ao Maranhão com plenos
poderes. Na retaguarda, André Vidal de Negreiros coibiu quaisquer
motins, ao menos no início.

241
Os anos seguintes foram tomados por escaramuças variegadas.
Os colonos fraudavam a lei, sempre que possível, sobretudo nas
entradas para o resgate de índios, que continuaram a fazer por
iniciativa própria. Os jesuítas resistiram ao máximo, beneficiados
pelo controle que passaram a exercer sobre as aldeias. Além disso,
Vieira levou a sério a revisão dos cativeiros prevista na provisão
real. Instalou-se um tribunal extraordinário, composto de autoridades
seculares, o vigário da matriz, representantes das outras ordens e
dele mesmo, Vieira, como superior das missões. Cerca de 2000 ín-
dios foram arguidos, primeiro em Belém, depois em São Luiz, para
apurar-se quais deles estavam ilegalmente cativos. Vieira passou por
um inferno de pressões. Os índios sofreram ainda mais, coagidos
pelos senhores, antes do interrogatório, a declararem sua condição
de escravos juridicamente legítimos.
As tensões entre colonos e padres, com os índios no meio, atra-
vessaram toda a década de 1650 e adentraram a seguinte. O impasse
prevaleceu, embora a missão tenha se fortalecido. Multiplicaram-se
as aldeias controladas pela Companhia, muitas delas instaladas
à distância das povoações, de modo a prejudicar a captura dos
nativos aldeados. Nomeado visitador da Companhia de Jesus, em
1658, Vieira percorreu o interior do Pará e do Maranhão, e foi à
serra de Ibiapaba, no Ceará, decidido a reduzir os tabajaras que
ali se refugiaram depois da derrota holandesa. Eram índios dou-
trinados no calvinismo que, como bem notou Vieira, desprezavam
os sacramentos, escarneciam da Virgem e recusavam a confissão.
Foi nesse ambiente que ele proferiu a famosa frase de que a serra
de Ibiapaba mais parecia uma “Genebra dos sertões”, tamanho era
o apego dos índios pela heresia calvinista.
De volta a São Luiz foi alvo de toda a sorte de intrigas e ma-
ledicências, inclusive quanto à sua continência e castidade. Vieira
ignorou tudo, altaneiro, e ainda disse que perdoava seus detratores
em nome de Deus. Além disso, começaram a circular boatos mais

242
sérios sobre uma certa carta que Vieira teria enviado ao bispo do
Maranhão, na qual dizia esperar a ressurreição de D. João IV, fale-
cido em 1656. A carta era autêntica, datada de 1659. A murmuração
começou em 1660. No mesmo ano, os colonos passaram a cons-
pirar contra os jesuítas, articulando uma aliança entre a Câmara
de Belém e a de São Luiz. Vieira não contava mais com o apoio
de André Vidal, que se cansou dos problemas maranhenses, e pre-
feriu assumir o governo pernambucano em 1657. Seu sucessor no
Maranhão, Agostinho Correa, ainda deu algum suporte aos jesuítas,
mas o governador seguinte, Pedro de Mello, mancomunou-se com
os interesses escravagistas.
Logo em janeiro de 1661, a Câmara de Belém enviou carta a
Vieira na qual alegava que, sem escravos nativos, os “homens bons”
da terra não poderiam subsistir. Insistia em que os colonos do Pará
eram pobres, desprovidos de recursos para importar africanos.
Vieira respondeu aos vereadores de Belém de forma a mais desde-
nhosa possível. Alegou que as dificuldades da economia paraense
se deviam ao fato da região ser cortada de rios, à crise da pesca,
ao desgoverno, aos gastos desordenados, às guerras do reino, que
encareciam muito as mercadorias vindas de Portugal… A Câmara de
Belém subiu o tom do protesto, percebendo que Vieira não estava
disposto a fazer concessões:

Seja Vossa Paternidade ser vido não se mostrar avaro dos


sertões, que Deus nos deu e nós conquistámos, sujeitámos e
avassalámos a Sua Majestade: o dito senhor nos concede licença
para se resgatarem escravos, os lícitos; e nós estes pedimos, estes
queremos fazer, debaixo das cláusulas da lei, para com eles se
acudir às necessidades deste povo […]. (Franco & Calafate, 2013-
-2014, IV, III: 315)

243
Vieira foi para Belém e recebeu em mãos o escrito. Leu-o do início
ao fim e disse que nada tinha a acrescentar ao que já tinha respon-
dido antes. Entrementes, irrompeu a revolta em São Luiz, decidida
a expulsar os padres. Vieira soube de tudo no caminho, a um dia
de viagem, navegando em canoa, e voltou a Belém. Escreveu longa
carta à Câmara, reiterando o seu poder delegado pelo rei, exigindo
a manutenção da ordem, ou a restauração dela, porque o motim de
São Luiz já era fato consumado. Foi preso com os companheiros na
própria Belém, de onde foram remetidos para São Luiz. Ali, Vieira
foi posto em cárcere privativo, separado dos demais padres, que
se viram confinados no colégio inaciano.
Vieira passou o ano de 1661 entre a prisão e a longa viagem de
retorno a Lisboa. Foi expulso juntamente com 32 padres das duas
capitanias rebeladas. Pouco antes do embarque, ele foi transferido
de navio, levado da nau Sacramento para uma caravela mal apa-
relhada, frágil e desconfortável. Os colonos do Maranhão queriam
mesmo dar um “trato” no jesuíta que os atormentara durante anos.
Antônio Vieira protestou contra a mudança de nau, usando como
principal argumento a importância da sua pessoa! Sua vida era
preciosa, afirmou. Alegou que detinha altos segredos políticos que
importavam à salvação do reino!
Novamente humilhado, Vieira viajou na caravela rota, escapou de
naufrágios e desembarcou em Lisboa no mês de novembro. Derrotado.
Refugiou-se, então, nos tais segredos revelados pelas profecias, as-
sunto que lhe traria novos problemas em futuro próximo. Em Lisboa,
o paço fervilhava na luta de facções: os adeptos de D. Afonso, de
um lado, e os adeptos de D. Pedro, de outro. Vieira não resistiu à
tentação de entrar na liça palaciana e apoiou o infante D. Pedro.
Perdeu. Mas ninguém diria que Vieira, aos 53 anos de idade, tinha
saído do Maranhão escorraçado e meio doente, ao vê-lo conspirar
na corte, como no tempo de D. João IV, o rei “encoberto”. Vieira se
lançou a esta nova luta. Perdeu. Foi processado pelo Santo Ofício

244
por seus escritos imprudentes. Condenado, foi capaz de reverter
a sentença. Não abandonou, jamais, a causa dos índios do Grão-
-Pará e Maranhão, mesmo depois da temporada em Roma. Propôs
medidas drásticas contra os colonos da região, em 1680, e apoiou,
em júbilo, a repressão da Revolta de Beckman, em 1685.
Viveu mais 12 anos na Bahia de Todos-os-Santos, o lugar que
escolheu como seu último exílio, após a restauração da Inquisição
portuguesa, em 1681. Bahia, onde fora criado, onde se formou ina-
ciano. Faleceu em 12 de junho de 1697, quase cego, meio surdo e
com muita dificuldade para caminhar, desde um tombo na escada
da Quinta do Tanque, sua morada em Salvador. Mas faleceu lúcido,
criativo e combativo. Como sempre.

Bibliografia

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245
(Página deixada propositadamente em branco)
A lua sob os pés: Padre António Vieira e o discurso anti-islâmico

The moon at his feet: Father António Vieira and the anti-Islamic
discourse

Martinho Soares
Universidade de Coimbra
ORCID | 0000-0001-8153-2014

Resumo
Este trabalho tem dois objetivos principais: primeiro, demons-
trar o discurso anti-islâmico que percorre toda a obra do Padre
António Vieira, enquadrando historicamente os acontecimentos
narrados pelo autor e contextualizando a sua visão à luz da men-
talidade da época; segundo, pretendemos justificar, desconstruir
e desmistificar as representações fortemente negativas do islão
no pensamento e obra do pregador jesuíta e na cultura euro-
peia da época e anterior. O primeiro objetivo leva-nos a fazer
o levantamento dos passos textuais onde melhor se evidencia
a animosidade de Vieira para com os turcos, percorrendo a sua
obra profética, parenética e epistolográfica, onde o muçulmano
surge invariavelmente como um rival do cristianismo que é preciso
eliminar para que o projeto profético-escatológico vaticinado por
Vieira se possa concretizar. O segundo objetivo leva-nos a olhar

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_12
para a história da expansão do Império Otomano em solo europeu
e para a construção da imagem distorcida e nefasta deste povo.
Palavras-chave: islão; turco; cristão; europeu, otomano

Abstract
This work has two main objectives: first, to demonstrate the anti-
-Islamic discourse that runs through the entire work of Father
António Vieira, historically framing the events narrated by the
author and contextualizing his vision in the light of contemporary
mentality; second, we intend to justify, deconstruct and demystify
the strongly negative representations of Islam in the thought and
work of the Jesuit preacher and in the European culture of his
time and earlier. The first objective leads us to make a survey of
texts where Vieira’s animosity toward the Turks is best evidenced,
traversing his prophetic works, his sermons and letters, where
the Muslim is invariably featured as a rival of Christianity that
must be eliminated so that the prophetic-eschatological project
predicted by Vieira can be realized. The second objective leads
us to look at the history of the expansion of the Ottoman Empire
on European soil and for the construction of the distorted and
harmful image of this people.
Keywords: Islam; Turkish; Christian; European, Ottoman

Todo o leitor é ele e a sua circunstância – adaptando o famoso


aforismo de Ortega y Gasset. Como já foi dito à saciedade ao longo
das últimas décadas: ninguém lê/escreve de forma totalmente neutra
ou radicalmente despojada de subjetivismos, ideologias, objetivos,
interesses, idiossincrasias. O mesmo circunstancialismo acomete o
historiador, o juiz, o escritor, o jornalista, o artista… E o melhor
dos textos clássicos é o permitirem constantemente novas leituras
e vias de interpretação, suscitadas muitas vezes pelos problemas,

248
sensibilidades e preocupações da circunstância do leitor, que inevi-
tavelmente os lê com as inalienáveis lentes do presente. Mas o que
Ortega y Gasset verdadeiramente diz é que o “o homem é ele e a sua
circunstância”. E isso é de primordial importância quando se leem
textos com mais de trezentos anos. O virulento e obstinado sentimento
anti-islâmico que percorre toda a obra do Padre António Vieira há de
ser compreendido e explicado à luz das suas circunstâncias, tal como
já antes se fez com a sua diatribe anti-feminina (Franco & Cabanas,
2008). Não com o intuito de o culpar ou desculpar – compreender não
é julgar, já mantinha Marc Bloch – mas para que possamos ver ali um
aviso à navegação e não usemos o desconhecimento como desculpa
para as nossas culpas. Talvez a história não seja mestra da vida, mas só
a ignorância pode justificar a repetição de erros do passado. Quando
percebemos que grande parte dos motivos que alimenta ainda hoje
muitos antis resultam de deformações e diabolizações instaladas há
séculos no imaginário social, damos mais valor e premência à neces-
sidade de esclarecimento e desmistificação (Marujo & Franco, 2009).
O crescente ódio religioso que atualmente se verifica, fruto de
incompreensões, conjunturas político-económicas adversas e repre-
sentações sociais distorcidas, tem raízes fundas no tempo, das quais
as múltiplas representações culturais, entre as quais as literárias,
nos dão ilustrado testemunho. Pela vastíssima e brilhante obra do
Padre António Vieira perpassam acesas tensões religiosas. As de
maior monta e reparo opõem católicos a judeus, ressumbrando um
anti-semitismo triunfantemente repelido por Vieira. Menos clemência
existe para luteranos e calvinistas, que, na sua qualidade de he-
reges, não escapam ao açoite do pregador. Não obstante, o fidalgal
inimigo de cristãos e europeus são os turcos e os muçulmanos de
um modo geral.1 É contra estes que o jesuíta dirige a sua impiedosa

1 Na obra do Padre António Vieira, o termo “turco” não define uma etnia espe-
cífica ou povo oriundo de um determinado território, equivalendo, por metonímia,

249
acrimónia, considerando o islamismo uma “seita” belicista, “blas-
fema” e cruel perseguidora dos cristãos, assente em “baixíssimos,
e vilíssimos princípios”, que “pronuncia e ensina tantos erros, e
blasfémias contra a Divindade de Cristo”. 2

Mas depois que veio ao mundo Mafoma, e a sua seita, que os


antigos Padres não conheceram; porque teve seu princípio seis-
centos anos depois da vinda de Cristo; e muito menos conheceram
o Império Otomano, que o teve no ano de mil e trezentos; o mais
comum sentimento de gravíssimos, e eruditíssimos Intérpretes é
que aquele cornu parvulum significa a Mafoma, e a sua infame
seita. Esta, como todos sabem, começou de baixíssimos, e vilís-
simos princípios: ela na África, na Ásia, e na Europa conquistou,
e dominou três partes tão consideráveis, do que pertencia ao
Império Romano; ela pronuncia, e ensina tantos erros, e blas-
fémias contra a Divindade de Cristo; ela tem perseguido, e
persegue tão cruelmente os que professam a Sua Lei, que é toda
a Cristandade; ela finalmente trazendo por empresa na meia-lua

a “muçulmano”. Assim acontecia em toda a Europa, onde os termos “otomano” e


“turco” também se confundiam. Com efeito, desde o séc. xiv até ao séc. xx , na
Europa Central, Ocidental e Oriental as expressões “Império dos Turcos” e “turcos”
eram usadas para aludir ao Estado liderado pela dinastia otomana. Não é de todo
injustificado, se tivermos em conta que as etnias turcas estão na origem da dinastia
otomana. No entanto, cedo o Império Otomano excedeu as suas origens turcas,
mercê de matrimónios celebrados com muitas etnias diferentes. Quataert (2000: 24)
encontra nesta capacidade de integração de povos tão diversificados um dos fatores
de sucesso e durabilidade do Império Otomano. Em bom rigor, o vocábulo “otomano”
evoca “uma façanha multiétnica e multirreligiosa, cujo êxito se baseou na inclusão”
(Quataert, 2000: 24). Já o termo “turco” passou a ser equivalente, por metonímia, de
“muçulmano”, porque tornar-se turco significava converter-se ao islamismo.
2 “Por seu lado, o cristianismo, ao identificar o encerramento da Revelação com o
último livro do Novo Testamento, rejeita implicitamente a autenticidade da revelação
islâmica, que ocorreu seis séculos mais tarde. Além disso, rejeita explicitamente
tudo quanto se opõe à revelação judeo-cristã, compendiada na Bíblia. Nessa rejeição
parcial da doutrina muçulmana reside a razão pela qual o islamismo foi durante
muito tempo considerado pelos cristãos como uma heresia e não como uma religião”
(Lavajo, 2000: 91). Said (2004: 69) afirma que o “Islão é considerado como sendo
uma versão fraudulenta de uma experiência prévia, neste caso, do Cristianismo”.

250
das suas bandeiras Donec totum impleat orbem, presume que se-
nhoreando todo o mundo há de mudar nele as Leis, e os tempos.
As Leis, extinguindo todas as outras, e introduzindo por força só
a Maometana; e os tempos, porque medindo-os todas as outras
nações pelo curso do Sol, só eles os distinguem, e contam pelo
número das Luas. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIII: 243-244)

Se, no caso dos judeus, o autor foi capaz de contrariar a atmosfera


cultural anti-semítica reinante, e erguer-se a um plano de exceciona-
lidade, para os seguidores da lei maometana não guarda qualquer
tipo de simpatia ou condescendência: são um inimigo a abater.
Para tal animosidade concorrem diversos pressupostos e crenças:
aversão histórica, natural e sobrenatural entre povos e religiões;
falsidade da religião muçulmana; crueldade belicista e persecutória
dos seguidores de Maomé; visão bíblica e profética dos otomanos
como arquirrivais no plano salvífico. As três primeiras razões aqui
aduzidas encontram-se expostas com impressionante crueza no
seguinte excerto:

Começando pelos Historiadores, em todos os que escreveram a


História dos nossos Reis desde seu princípio, se não pode deixar
de observar nos mesmos Reis um instinto, e inclinação natural, ou
sobrenatural contra todos os sequazes da Seita de Mafoma. Vemos
que a natureza desde a geração, e nascimento infundiu aquela
certa aversão, e antipatia em uns animais contra outros, como é
nos que servem à caça da volateria contra as aves, e na da mon-
taria contra as feras, e até nos domésticos que vigiam, e limpam
a casa, contra as sevandijas que a infestam, e roubam. E tal é, e
foi sempre desde o nascimento de Portugal em Reino, a antipatia
dos seus Reis, e antes de terem este título, dos que Deus ia prepa-
rando para o serem; porque já então tinha semeado, e infundido
neles esta natural aversão, e sobrenaturais espíritos contra Mouros,

251
e Turcos, não como de homens contra homens, mas como de
Cristãos, e professores da Fé, e Lei Divina contra a canalha brutal
dos infames seguidores da ímpia, e blasfema cegueira Maometana.
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIII: 281-282)

O autor não poupa nas palavras, não se coibindo de usar termos


particularmente hostis e duros como “canalha brutal”, “infames”,
“ímpia”, “blasfema”, “cegueira” para caracterizar os “sequazes da Seita
de Mafoma” ou recorrer a termos comparativos de forte carga pejo-
rativa como “sevandijas”, “feras”, “animais” e indiretamente ladrões
para ilustrar a sua natureza má e perversa, bem como para funda-
mentar a animosidade natural e sobrenatural dos reis portugueses,
para quem à defesa do reino se aliava a defesa da cristandade.
Os dois discursos donde se extraiu estes excertos têm em comum
o tema messiânico do Quinto Império. Com efeito, é no plano da
diegese messiânica e milenarista do pregador que a invasão turca
assume particular relevo (Teixeira, 1999: 165-178). 3 Em ambos
Vieira procura estabelecer por via alegórica um representante da
monarquia lusitana na liderança temporal deste império universal
que teria dois vigários e duas sedes: em Roma, o Sumo Pontífice
deteria a jurisdição espiritual; em Lisboa, o príncipe D. João (pri-
meiro filho de D. Pedro II e D. Maria Sofia de Neuburgo) deteria
o governo temporal. Falhadas as anteriores previsões proféticas
do jesuíta, que, recorde-se, começaram por outorgar este papel
aos antepassados do nascituro (D. João IV, seu avô; depois seu
tio, D. Afonso VI; e seu pai, D. Pedro II), o pregador, vendo o
Império Otomano recuar do centro da Europa e definhar, após pe-
sadas derrotas de que adiante falaremos, crê chegado o tempo de

3 A bibliografia sobre o messianismo utópico vieirino é extensíssima e seria fas-


tidioso enumerá-la aqui. Remetemos os leitores interessados para a lista apresentada
por Gandra, 2009: 307-315.

252
se cumprirem as profecias. Entusiasma-se por isso e coloca todas
as suas esperanças no recém-nascido. Fundado no Livro de Daniel,
Vieira interpreta o fim do poder turco como o sinal de que tinha
chegado a era do Quinto Império. A extinção da potência “mao-
metana” seria a condição sine qua non para o domínio de Cristo e
da cristandade sobre todo o mundo, por interposição dos seus dois
vigários: “E este é o Império quinto, e último que se há de levantar
depois da extinção do Turco, não na Pessoa de Cristo imediatamente,
senão na de um Príncipe Seu Vigário” (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, XIII: 246). 4 Acontece que o príncipe falece com pouco mais
de duas semanas de vida, obrigando o jesuíta a novos e argutos
cálculos que possam quer recolocar Portugal no trono do Quinto
Império quer consolar os reis pela trágica perda do seu primeiro
e muito esperado rebento. 5 O discurso apologético que se segue,
“oferecido secretamente à Rainha nossa Senhora para alívio das
saudades do mesmo Príncipe” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIII:
249), ocupa-se em grande medida com a questão turca, agudizando
o ódio teológico a este povo e à religião que professa. Convocando
vários expositores, pregadores, profetas caseiros (como Bandarra e
Bocarro Francês) e as fontes bíblicas, desta feita com destaque para
o Livro do Apocalipse, o autor empenha-se fortemente em profetizar
a vitória próxima do sol sobre a lua, procurando no latim a correta
tradução dos vaticínios:

4 ́Ainda no mesmo “Sermão de Ação de Graças pelo Nascimento do Príncipe Dom


João, Primogénito de Suas Majestades, que Deus guarde”: “quando Deus extinguir
o Império do Turco, que tão precipitadamente vai caminhando à sua ruína, e que
tantas terras domina nas três partes do mundo, então há de levantar este Império uni-
versal, que domine em todas as quatro” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIII: 242).
5 “[…] segue-se o principal intento do presente discurso, que é concordar a
segunda nova da morte do Príncipe que está no Céu, com a primeira do seu nas-
cimento, e sustentar a verdade de tudo o que preguei, e prometi no Panegírico do
mesmo nascimento, sem embargo de termos já morto o mesmo nascido. Ninguém
chamará a esta empresa dificultosa, porque todos, e com razão a terão por impos-
sível” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIII: 252).

253
A segunda coisa que significava a mesma figura é a circuns-
tância do tempo, em que havia de nascer à Igreja aquele filho
varão, e dominador do mundo. Esta questão já a excitei, e resolvi
no último discurso do Sermão passado, onde mostrei com o
Profeta Daniel que a exaltação do Império universal há de con-
correr no mesmo tempo com a ruína do Império do Turco; porque
quando este cair, então aquele se há de levantar. E porque não
quero cansar a memória dos que me ouviram, nem repetir o já
dito, diga-nos Davi em poucas palavras o que profetizou Daniel
em muitas: Dominabitur a mari usque ad mare, et a flumine usque
ad terminos orbis terrarum [Sl 71, 8]. Fala Davi deste mesmo
Império (que é o de Cristo), e diz que dominará de mar a mar
até os últimos fins de toda a redondeza da terra. Mas quando?
Donec auferatur Luna [Sl 71, 7]. “Quando for tirada do mundo
a Lua”. A Lua há de durar até o fim do mundo: Erunt signa in
Sole, et Luna [Lc 21, 25]; que Lua é logo esta, que há de ser tirada
do mundo naquele tempo? É a Lua que os Maometanos adoram, e
trazem em suas bandeiras. Assim o declara o mesmo Texto na raiz
Hebreia: Donec auferantur servi Lunae: “Até que sejam tirados do
mundo os que servem à Lua”. E isto é o que significa no nascimento
do Príncipe dominador do mundo a Lua debaixo dos pés da Igreja:
Et Luna sub pedibus ejus. Os Pregadores quando explicam este
lugar do Apocalipse dizem que a mulher figura da Igreja estava
coroada de Estrelas, vestida do Sol, e calçada da Lua. Elegante
modo de falar, mas impróprio, e não ajustado ao Texto. O Texto
não quer dizer “calçada”, senão “calcada”. Não quer dizer que a
Lua há de calçar a mulher, senão que a mulher há de calcar a
Lua, metendo-a debaixo dos pés: Luna sub pedibus ejus. E esta
tão notável, e não imaginada circunstância é a que com admiração
do mundo concorreu neste mesmo ano, em que nasceu o nosso
Príncipe, como bem mostra a experiência presente na torrente

254
continuada de tantas, e tão gloriosas vitórias, com que a Igreja, e
as Cruzes Cristãs vão metendo debaixo dos pés as Luas Otomanas.
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIII: 254)

O símbolo lunar é recorrente quando se trata de identificar me-


tonimicamente os que ostentam o quarto crescente com a mesma
convicção com que os cristãos ostentam a cruz, aproveitando muito
ao intérprete o facto de as Sagradas Escrituras apresentarem em
determinados passos este elemento natural em posição desvanta-
josa ou ambígua, permitindo ao exegeta interpretações metafóricas
e alegóricas que acomoda a seus intentos. Assim já sucedia nos
escritos da sua Apologia perante o Santo Ofício, onde o mesmo
salmo 71 permitia discorrer negativamente sobre a simbologia do
emblema muçulmano:

O que muito se deve advertir e reparar é dizer Davi que a


lua há de ser tirada do mundo e logo imediatamente que há de
dominar Cristo sobre todo ele até os últimos fins da terra: donec
auferatur luna, et dominabitur a mari usque ad mare, etc. A lua
natural nunca se há de tirar do mundo, sempre há de permanecer
no céu, e depois do dia do Juízo ainda com maior luz: seguese
logo que não fala Davi literalmente da lua natural e material,
senão da lua metafórica; e nenhuma lua metafórica há no mundo
tão notável, tão universal e tão conhecida como a que tem por
armas o império do Turco, que por isso é significado na lua; e
nesta significação disse Bandarra: “a lua dará grã baixa”, etc.
Dizer pois Davi que a lua será tirada do mundo e acrescentar logo
que o domínio e império de Cristo será dilatado por todo ele, é
significar claramente o que disse Daniel, isto é, que a dilatação e
exaltação do império de Cristo se há de seguir imediatamente à
extinção e ruína do império do Turco. (Franco & Calafate, 2013-
-2014, III, III: 227-228)

255
Dos testemunhos extraídos da parenética se pode inferir o lugar
que o turco ocupa, como antagonista, no drama escatológico-profético
exposto pelo pregador jesuíta na sua obra profética com muito maior
ressonância. Assim, a visão escatológica expressa nos livros anteprimeiro
e primeiro da História do Futuro, na Apologia, e na Defesa perante o
Tribunal do Santo Ofício, obras da década de 60, repete à exaustão a
derrota dos turcos e da religião por eles professada como condição da
parusia cristã atemporal e do prometido aion bíblico. O futuro próximo
assistiria à extinção e ruína do Império Otomano e ao aparecimento
de um Quinto Império, que seria o único verdadeiramente universal,
duraria mil anos e continuaria no Céu. Suceder-lhe-ia a perseguição
do Anticristo, a que se seguiria, imediatamente, a ressurreição dos
mortos, o Juízo universal e o fim do mundo.
A Apologia e a Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício estru-
turam-se em torno de duas grandes “representações” ou temas que
encontram cabimento também na História do Futuro (sobretudo
a segunda “representação”): em primeiro lugar, Vieira procura
demonstrar que Bandarra, sapateiro de Trancoso, foi verdadeiro
profeta, inspirado por Deus; em segundo, que são verdadeiras as
suas profecias que anunciam a destruição do Império Otomano, a
conversão de toda a humanidade à religião cristã e a subsequente
instauração do Quinto Império sob a égide de Portugal.
Na Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício, apoiado nas profe-
cias de Bandarra e de uma extensa lista de autoridades eclesiásticas
que remontam a Daniel e Isaías, Vieira discorre longamente sobre
o papel do oponente otomano, destinado a ser abatido por um rei
D. João IV já morto, mas que haveria de ressuscitar para cumprir
os desígnios proféticos para os quais estava assinalado, entre os
quais conquistar a Terra Santa e acabar com “seita de Mafoma”:

256
Agora direi a necessidade e conveniência que há ou pode haver
na ressurreição del-Rei Dom João, a qual se tira do mesmo fim
dela, que é (como diz o mesmo Bandarra) a jornada de Jerusalém,
conquista da Terra Santa, vitória universal do [sobre o] Turco e
extinção da seita de Mafoma. E se este é o fim, como supomos,
que muito que concorra Deus para ele com um milagre muito pú-
blico e manifesto e grande? Quantos milagres lemos nas histórias
que tem Deus feito para confirmação de nossa santa fé e confusão
daquela infame seita, e para converter e alumiar um só mouro ou
turco; quanto mais para a extirpação e extinção de toda a mesma
seita, e para a luz e conversão de muitos sequazes dela, que por
este último castigo e desengano é força que venham a conhecer
a cegueira brutal de seu erro? […] Só quem ignora os danos que
a seita de Mafoma e império otomano tem feito à fé e à Igreja, e
quantos reinos, províncias e cidades lhe têm ocupado, em que se
contam mais de seiscentas igrejas catedrais de patriarcas, arce-
bispos e bispos, todas florentíssimas e santíssimas, de que hoje
apenas se sabem os nomes, mais que pela memória dos santos e
doutores da mesma Igreja que nelas floresceram; só quem, digo,
ignorar estes danos e quanto importa o remédio deles duvidará
que faça ou haja de fazer Deus um milagre naquele homem que
eleger e tomar para principal instrumento do mesmo remédio?
(Franco & Calafate, 2013-2014, III, II: 218)

Em toda a obra de Vieira o turco ou muçulmano é visto como


inimigo e perseguidor da Igreja, porque o seu intento “é dominar
a Europa e extinguir o nome de Cristo e plantar em todo o mundo
a infame seita, que tanta parte dele tem já ocupado” (Franco &
Calafate, 2013-2014, III, II: 345). Por conseguinte, uma ideia re-
corrente nos escritos proféticos que rodearam o seu processo no
tribunal do Santo Ofício é a de que todos os povos da terra seriam

257
evangelizados e convertidos, com exceção do turco, cuja destruição
seria inevitável em face da inimizade obstinada do Império Otomano
para com a cristandade, razão por que contra ele o pacífico e con-
ciliatório Vieira invocava a doutrina da guerra justa:

Não que a infidelidade fosse, por si só, título de guerra justa,


mas porque Vieira retomava aqui a tradição de que existia uma
‘guerra quase perpétua contra turcos e mouros’, cuja justiça era,
aliás, reforçada pelo facto de ocuparem territórios outrora perten-
centes aos cristãos. (Calafate, 2014: 18)

Entendia e cria Vieira que a Igreja e o Reino de Cristo só haveriam


de chegar a um estado perfeito, completo e consumado após a des-
truição deste arqui-inimigo. No novo Reino Universal, com exceção dos
muçulmanos, todos os povos, hereges ou pagãos, judeus ou gentios,
se converteriam e seriam cristãos; Cristo por todos seria conhecido,
adorado e obedecido, e em todo o mundo se não professaria outra fé
nem outra lei senão a cristã, sendo que a grande maioria dos cristãos
seria “mui observantes da lei divina”, reinando perpétua paz entre
todos os príncipes e todas as nações, e seria “mais copiosa a graça”
(Franco & Calafate, 2013-2014, III, II: 241, e 327).6
Esta mesma ideia de um império universal de paz e justiça
constituirá mais tarde o tema central da Clavis Prophetarum.
Aí, concebe Vieira um horizonte temporal efetivo de harmonia
e paz entre os povos, consumado na Terra por Cristo, onde não
se patenteiam tão explícitos quer a aniquilação do turco quer o
protagonismo luso. 7 Mesmo assim, não deixa de haver referências

6 Sobre o papel do turco na instauração do Quinto Império e as animosidades


de Bandarra e Vieira para com este povo estrangeiro, cf. também Franco & Calafate,
2013-2014, III, II: 113, 120-134, 189, 210-257, 345-350, 561-565.
7 “A visão profético-escatológica apresentada por António Vieira distingue-se,
claramente, da tradição sebastianista-messiânica anterior não só pela sua muito

258
muito negativas à belicosidade histórica da “maomética peste”, à
sua perseguição aos cristãos, à extensão do seu império tirânico
pelos três continentes, à sua crueldade no tratamento dos inimigos,
havendo quem tenha identificado este “flagelo de Deus” com o
Anticristo – interpretação que Vieira não corrobora – ou no mínimo
o veja como precursor do Anticristo.

Mas quem poderá deixar em silêncio aquela maomética peste


do género humano e o império otomano, nascido sob o signo
das armas, que pelas armas defende uma seita nefanda, que pelas
armas cresce e se acrescenta de dia para dia, ao modo da sua
Lua, até ocupar inteiramente o mundo, consoante eles se jactam?
Quem é que na história sagrada ou profana leu que antes dos
tempos cristãos se tenha dado em parte alguma um exemplo
idêntico de obstinadíssima e ininterrupta tirania, sendo certo que
já há mil anos inteiros, e mais, encontrando-se grande parte da
Europa e quase toda a África e Ásia sujeita ao seu senhorio ou à
sua superstição, temível devido às suas forças, riquezas e perícia
militar cada vez maiores, e ensoberbecido com as suas descome-
didas vitórias, não só ameaça com a espada as cervizes de todos
os cristãos, mas também, com fogo e chamas, o próprio centro
e sede, que é o baluarte e cabeça da Igreja? De tal forma que
quase já não causa espanto que aqueles prosperíssimos impérios

maior amplitude e profundidade, pela maior riqueza e variedade dos seus suportes
especulativos e escriturais, pela sua coerência interna e pelo rigor do seu trave-
jamento lógico e retórico. Mas também, e acima de tudo, por se apresentar muito
mais como uma visão teológica e universal e como uma história da salvação e do
resgate espiritual do mundo e consumação do reino divino da graça, do que como
uma visão exclusiva ou predominantemente política, circunscrita a Portugal e ao seu
imediato destino. É esta particular natureza, eminentemente teológica e religiosa, da
visão de Vieira e o claro intento ético e salvífico que a impulsiona que parecem
explicar que, ao longo do tempo, a sua componente messiânica e lusocêntrica
tenda, progressivamente, a esbater-se, até quase desaparecer na Clavis Prophetarum”
(Teixeira, 1999: 174).

259
de Constantinopla e Trebizonda, a Grécia inteira e o Egito, e só
em África mais de cento e vinte dioceses destruídas, sejam parte
dos despojos dessa tirania, debaixo de cuja servidão e grilhões
um número quase infinito de católicos ou rema nas galés ou geme
nas masmorras e não vê a luz.
Confessamos que esse crudelíssimo inimigo é um flagelo de
Deus castigando-nos com toda a justiça pelos nossos crimes;
todavia esta fé e piedade da confissão cristã não tolhe que essa
guerra seja uma guerra, ou antes, muitas e sanguinárias guerras
posteriores a Cristo e contra Cristo, de sorte que nem foram
poucos nem de pouca monta os autores que pensaram que o
próprio Turco era o verdadeiro e prometido Anticristo, e todos
reconhecem que é o seu abominável precursor. Indubitável grande
prova de que depois de Cristo nem as guerras foram menos nu-
merosas nem mais suaves do que antes tinham sido. (Franco &
Calafate, 2013-2014, III, VI: 283-284)

Na Clavis Prophetarum, o turco, mais do que um alvo a abater,


é visto como um empecilho ao estabelecimento da paz e da con-
córdia, decorrente da consumação na Terra do Reino de Cristo,
levando o Padre António Vieira a defender a legitimidade da “guerra
defensiva”:8 “Imaginemos todos os príncipes cristãos unidos através
de uma profunda e solidíssima paz e que nenhum mova guerra
contra outro, nem haja receio ou suspeita de que algum dia há de
movê-la, mantendo-se porém presente a ameaça do Turco, inimigo

8 “O império, qualquer que fosse, não poderia erguer-se com base em penas e
castigos aplicados aos pagãos, pelo simples facto de serem estranhos à Cidade de Deus,
pois todos os homens foram criados livres por Deus, preservando assim a liberdade
de escolha, em matérias tão graves e profundas da consciência, como as da fé e da
religião, admitindo-se embora a justiça da guerra contra os que impedissem, pela força,
a pregação, como os turcos, cuja destruição supunha, pois dada a sua pertinácia e
poder bélico ofensivo, permaneceriam sempre como obstáculo ao direito da Igreja
de Cristo à pregação universal” (Calafate, 2013: 73). Para o conceito de “guerra
defensiva” ou de “autodefesa” vide Franco & Calafate, 2013-2014, III, VI: 267, 288ss.

260
comum e poderosíssimo dos cristãos” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, III, VI: 288).
Todavia, se a evocação deste passado sangrento da expansão
otomana não visa, na Clavis Prophetarum, tal como acontecia ante-
riormente, mobilizar para o contra-ataque e aniquilação do inimigo,
isso não significa que Vieira tenha deixado de encarar esse fito como
necessário. Num texto intitulado Voz de Deus ao Mundo, a Portugal
e à Baía (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 583-612), redigido
nos derradeiros anos da sua vida (1695), portanto, em simultâneo
com A Chave dos Profetas, Vieira retoma de forma muito clara o
tema da destruição do turco pelos portugueses:

Decifrando pois este segredo, dizem os nossos vaticínios


que os fins da terra são Portugal, como verdadeiramente é; que
os cavalos, que hão de rinchar no mar, são os seus navios, ca-
valos de madeira, que com a sua artilharia hão de atroar o mar
Mediterrâneo; que as ilhas onde hão de pregar a fé de Deus, e
glórias de Cristo, são as do arquipélago do mesmo mar, fronteiras
a Constantinopla, e que tudo isto se cumprirá, quando os por-
tugueses forem a conquistar os turcos, de cuja conquista estão
cheios os ditos vaticínios. Concorda com eles Salutivo, […] expres-
samente diz que de Lisboa há de ir a ruína do Turco. (Franco &
Calafate, 2013-2014, III, I: 599)

O terror que o turco inspira ao Padre António Vieira tem


fundadas razões de ser. No que respeita ao islão, “o medo eu-
ropeu ou pelo menos o respeito, era legítimo” (Said, 2004: 68).
No séc. xvii , a Europa foi palco de sangrentos conflitos entre o
invasor otomano e várias potências europeias. Desde a sua origem
em 1300, na Anatólia Ocidental, até 1683 testemunhou-se a notável
expansão do Estado otomano, que de um exíguo feudo, quase im-
percetível, se transformou num vasto império territorial. Tendo-se

261
expandido, de forma continuada através de um quase infindável
ciclo de guerras vitoriosas, o seu reino estendia-se ao longo do mar
Negro, do Egeu, do Mediterrâneo, do Cáspio e do mar Vermelho,
englobando territórios que iam da península Arábica e das cataratas
do Nilo até ao golfo Pérsico, ao planalto iraniano, confinava com
Gibraltar e chegava a norte às estepes ucranianas e às muralhas de
Viena. O auge do Império Otomano foi atingido nos sécs. xv e xvi,
com Mehmed II (1451-1481) e Solimão, o Magnífico (1520-1566),
que consolidaram os extraordinários feitos dos seus antecessores.
O maior sonho otomano e muçulmano de sempre foi conseguido
no reinado de Mehmed, o Conquistador, em 1453, com a conquista
da milenar Constantinopla aos cristãos, no que ficou conhecido
como um dos acontecimentos mais traumáticos da história para a
Europa cristã. No longo reinado de Solimão, o Magnífico, os oto-
manos atingiram o apogeu da opulência e da supremacia, tendo este
sultão liderado uma guerra mundial no séc. xvi . Por um lado, deu
o seu apoio aos rebeldes holandeses contra os suseranos espanhóis
e, ao mesmo tempo, combateu com a sua armada os Habsburgo
espanhóis no Mediterrâneo Ocidental. Por outro, para destruir a
hegemonia portuguesa no comércio a Oriente, levou a cabo uma
série de ofensivas nos mares orientais, ajudando, por exemplo, os
governantes da costa indiana a enfrentar os portugueses ou re-
forçando o contingente militar das Molucas, que se batiam contra
a crescente supremacia marítima europeia. As forças de Solimão
acorreram ainda às frentes balcânicas a fim de impor a dominação
otomana sobre as rotas mercantis, as minas abundantes e outros
recursos económicos. Conquistaram Belgrado em 1521; fizeram ruir
o Estado húngaro em 1526; e chegaram em 1529 às muralhas de
Viena, cidade que nunca conseguiram conquistar totalmente, apesar
das várias investidas. Reveses como o de Lepanto, em 1571, em que
os europeus provocaram a destruição total da armada otomana,
não detiveram a sua fúria conquistadora, que se prolongou pelo

262
século seguinte, mas já sem o brilho e a glória doutros tempos.
Efetivamente, o século do Padre António Vieira marca o início da
reviravolta. As muitas lutas que se travaram deixam os turcos en-
fraquecidos e praticamente esgotados, fazendo com que a partir
1683 comecem a perder terreno. Justamente, nesse ano inicia-se em
Viena um século de derrotas militares, que findou com a invasão
do Egito por Napoleão Bonaparte em 1798. O fracasso do segundo
cerco a Viena, em 1683, e a subsequente debandada dos exércitos
otomanos foram calamitosos para o regime de Constantinopla,
que veio a perder a importante fortaleza de Belgrado (Quataert,
2000: 35-75). O Padre António Vieira, sempre muito atento à sorte
do inimigo turco, dá-se conta da reviravolta no seu retiro de São
Salvador da Baía, vendo no sucesso das armas católicas contra as
armas turcas o cumprimento iminente das profecias:

Finalmente a experiência dos sucessos felicíssimos das Armas


Católicas nestes anos, e a conquista de Cidades tão capitais, com
o rendimento de Fortalezas, que sempre se conservaram na repu-
tação de inexpugnáveis, e com a rota de tantos, e tão inumeráveis
exércitos, e mortandade de tanta infinidade de Bárbaros, parece
que estão prometendo a breve, a total destruição do Império do
Turco, e que os prazos, que a Providência tem sinalado ao castigo
da Cristandade na sua duração, com passos não apressados só,
mas precipitados se vão chegando ao fim, porque adesse festinant
tempora [Dt 32, 35]. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIII: 270)

Da atenção que Vieira sempre afetou à guerra turca nos dá também


conta a sua correspondência. Já foi notado que o tema começa por
aparecer de forma esporádica nas suas missivas da década de ses-
senta, coincidindo com a retoma em 1663-1664, após meio século
de impasse, da ofensiva otomana, período que corresponde à da
redação dos escritos proféticos acima referidos.

263
O avanço do Turco em direção ao centro da Europa confir-
mava-lhe o sofrimento da cristandade e a ascensão de Portugal
e da cristandade ao império universal, tal como prediziam as
profecias, acrescentava ele nas cartas ao marquês de Gouveia,
em Dezembro de 1663: “O certo é que as profecias se vão cum-
prindo por seus passos contados, e que, segundo elas, prosperar
por meio destes grandes trabalhos e calamidades da Igreja, lhe
podemos esperar a ela e ao nosso reino as grandes felicidades
que lhe estão prometidas”. O facto de um cristão novo de Pinhel
exercer cargos na corte de Argel era interpretado à luz da profecia
que prognosticava o acesso da cristandade ao Islão pelo norte de
África, correndo o boato, em Roma, que aquele podia substituir
no trono o rei turco assassinado.
A convicção de que os últimos dias da humanidade estavam
próximos faziam-no escrever a D. Rodrigo de Meneses, em Janeiro
de 1664: “tenho por certo que há de ser muito cedo o nosso dia de
juízo, com muita glória de Portugal e de el-rei que Deus guarde”,
neste caso D. Afonso VI. Em Setembro do mesmo ano escrevia a
este fidalgo, a propósito das notícias das vitórias do turco sobre
o Imperador: “Não me admira tanto o caso, quanto o pouco abalo
que faz naqueles a quem toca mais de perto; tudo são fatalidades
e tudo demonstrações de se chegarem ou estarem muito perto
já os tempos de remédio prometido”. E na do início de Outubro,
perante a vitória dos alemães em S. Gotardo, declarava sentir a
necessidade da sua confirmação para a continuação das suas con-
jeturas. (Tavares, 1999: 145-146)

Com efeito, neste período ocorreram uma série de batalhas de-


terminantes para o futuro da Europa. Morto o grão-vizir Mohammed
Köprülü em 1661, que havia reequilibrado a situação financeira e
militar do Império Otomano, havia conquistado Creta, alcançado

264
importantes vitórias sobre os venezianos e recuperado o domínio
da Transilvânia e da Valáquia, sucede-lhe o filho, Fazil Ahmed
Köprülü, que inicia uma guerra com a Áustria dos Habsburgo em
1663. Esta apenas tivera tempo de se recompor da Guerra dos Trinta
Anos; porém, os turcos são vencidos em S. Gotardo, nos confins
da Hungria e da Áustria, com o apoio de croatas, húngaros, vene-
zianos, polacos e de um contingente militar francês enviado pelo
próprio Luís XIV, que leva pela primeira vez a França, consciente do
perigo que ameaçava a Europa, a romper com a política pró-turca
que vinha mantendo desde Francisco I.
Sem embargo, é na correspondência da década de 70 que o foco
de Vieira se mostra mais atento ao avanço do inimigo secular da
cristandade, sempre na esperança de que se cumpram as profecias.
Como afirma István Rákóczi: “estas cartas testemunham também o
alargamento da visão da diplomacia portuguesa para o Centro e
Leste europeus, só esporadicamente abrangidos no mapa mental
político ibérico” (2011: 364). Tal facto deve-se à situação estratégica
do jesuíta português. Em Roma, goza não só de maior liberdade de
expressão como tem um acesso rápido e privilegiado às informações
que dão conta dos conflitos e acontecimentos políticos no espaço
europeu. As missivas deste período revelam, por conseguinte, um
Vieira sempre muito empenhado nas questões políticas, que, como
diz Maria Lucília Gonçalves Pires, unificam no seu pensamento “o
pendor pragmático e a utopia messiânica” (1997: 25).
É também desta época a proclamação do “Sermão do Beato
Estanislau Kostka da Companhia de Jesus”. Trata-se de um santo
jesuíta que morrera em odor de santidade com apenas 18 anos, em
1568. O sermão foi pregado em Roma, a 13 de novembro de 1674,
no dia da festa do beato, na igreja de S.to André de Monte Cavallo –
atual igreja de Sant’Andrea al Quirinale –, sede do noviciado da
Companhia de Jesus, e local onde tinha falecido o jovem jesuíta. Por
esses dias, a investida otomana recrudescia na Europa e no espírito

265
de Vieira. O “Sermão ao Beato Estanislau Kostka da Companhia
de Jesus” é bem o reflexo desta mundividência. Nele se voltam a
fundir as preocupações políticas com a utopia messiânica. O centro
do conflito está agora na Europa Central. O protagonismo cabe à
Polónia e ao seu patrono, erguido à condição de herói messiânico,
a quem Vieira atribui, de forma temerária, prerrogativas próprias de
um messias. E, por isso, não hesita em colocá-lo no quadro celestial
ao lado de Maria e de Jesus.
Kostka já tinha milagrosamente livrado toda a sua nação, incluindo
católicos e hereges, da peste, e tinha rechaçado o exército turco,
no ano de 1621. Para o efeito, o rei polaco mandara vir de Roma
a cabeça do seu compatriota, a qual garantiu a vitória do pequeno
exército polaco contra o poderoso e gigante exército otomano,
liderado por Osmã II, composto por trezentos mil turcos e maior
número de tártaros. 9 Nesse mesmo dia, relata Vieira, Estanislau
apareceu no Céu, ao lado de Maria e do menino Jesus.
Como é seu apanágio, esta grande vitória do cristianismo sobre
o Império Otomano dá a Vieira ocasião para uma série de leituras
de teor profético, achando nos antigos escritos sagrados alegorias
que projetam luz sobre estes acontecimentos históricos ocorridos
posteriormente na Polónia. Apoiando-se numa “multidão” (palavra
sua) de autoridades da exegese bíblica, passa a discorrer sobre
os sentidos cifrados no Livro do Apocalipse, considerando que
nele “estão historiadas as perseguições da seita Maometana contra
a Igreja, e as vitórias, e triunfos da Igreja contra ela” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, XI: 470). Através de um muito bem orques-
trado processo sinóptico de analogias entre a visão apocalíptica e o
episódio bélico que opôs os polacos aos invasores turcos, o dragão
é identificado com a ameaça turca e a mulher vestida de sol com a

9 Os polacos, comandados pelo general Chodkiewicz, triunfaram em Choczin,


no ano de 1621.

266
mãe de Estanislau, não a mãe biológica, mas a Polónia. Tal dedução
é permitida, na voz do pregador, pela fecundidade e abertura her-
menêutica das Escrituras, e sancionada pelo tempo, a seu ver: “o
mais certo intérprete das profecias […], cujos sucessos futuros, sem
desacreditar os passados, se declaram mais nos presentes” (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, XI: 470). O famoso símbolo da lua, que a
mulher apocalíptica tem debaixo dos pés, é desta vez interpretado
como a subjugação do poder otomano pela Polónia. Termina, “não
perorando, mas orando” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XI: 483),
a invocar o patrono e protetor da Polónia, exortando-o a socorrer o
seu país que novamente se vê ameaçado pelo inimigo. De facto, o
“grande dragão”, que já por duas vezes fora vencido pela Polónia,
levanta de novo a “cabeça infesta” e ameaça outra vez a “muralha
universal do cristianismo” e, por extensão, “o mundo”. Alude aqui
Vieira à nova invasão da Polónia, ocorrida no ano anterior à pro-
clamação do sermão e que haveria de durar até 1676. Turcos e
tártaros da Crimeia atacavam o território polaco e tentavam ocupar
a província da Podólia, a norte da Moldávia. Acabariam derrotados
em 1673, em Choczin, e em 1676, em Zurawno, pelas tropas resis-
tentes, comandadas pelo general Janos Sobieski (Farale, 2009: 95).
O santo parece ter ouvido as preces do suplicante.
Em 1682, os turcos voltam a atacar e a sitiar a Áustria, mas no ano
seguinte, como já referimos, são esmagados pelo exército polaco-
-alemão (mais uma vez comandado por Sobiesky), o que causará
o progressivo e derradeiro recuo dos turcos da Europa. 10 Depois

10 “Estes Otomanos, ao que parecia, invencíveis, eram literalmente o terror dos


seus inimigos. Ao deitar os seus filhos, as mães vienenses ameaçavam-nos de que,
caso não se portassem bem, os ‘Turcos’ viriam para os engolir. Este cenário mudou
em 1683. Para alguma surpresa das fações intervenientes, a calamitosa derrota das
forças otomanas que sitiavam Viena ficou como um acontecimento que assinalou
para sempre a inversão das relações de poder entre o Império Otomano e o Império
Habsburgo. […] Ao cabo de tantos anos, podemos constatar que após 1683 os
Otomanos não mais ameaçaram a Europa Central” (Quataert, 2000: 24).

267
de mais algumas batalhas perdidas, a 26 de janeiro de 1699, em
Carlowitz, assina-se o tratado homónimo no qual pela primeira
vez um monarca otomano reconhece formalmente a derrota e a
alienação permanente (não temporária) de territórios conquistados
pelos seus antepassados. Assim, o sultão devolve aos Habsburgo
grande parte da Hungria, a Transilvânia, a Croácia e a Eslovénia;
a Dalmácia, a Moreia e algumas ilhas do mar Egeu ficam com
Veneza, cabendo à Polónia o sul da Ucrânia e a Podólia. Tinha-se
encetado uma nova fase da história otomana, que se vai prolongar
pelas décadas seguintes, com a devolução da maioria dos territórios
conquistados ao longo dos séculos e a consequente desagregação
do Império. Mas a isto já o Padre António Vieira não assistiu, pelo
menos na Terra.
A perceção negativa que Vieira tem do islão, e que percorre toda
a sua obra, tem raízes fundas no tempo e não difere da represen-
tação social dos povos muçulmanos predominante durante séculos
até, eventualmente, à atualidade, assente em não poucas visões de-
formadas por preconceitos, reducionismos, desconhecimento, mitos
negros, subjetivismos efabulatórios (Keshavjee, 2009). O séc. xvii ,
à imagem dos anteriores, é dominado por uma atmosfera cultural
também ela islamofóbica, acentuada pela Reforma e Contrarreforma,
pelos conflitos bélicos, mas também pela correntes proféticas
messiânicas e milenaristas que tanto encantaram o Padre António
Vieira. Pelo seguinte enunciado podemos ver como Vieira não é
original nem totalmente genuíno, patenteando-se, sobretudo, como
o projetor de uma mentalidade que estava fortemente instalada no
imaginário social europeu.

Na Europa, o Império Otomano teve um importante papel di-


dático nos conflitos religiosos europeus que aí tiveram lugar. No
período da Reforma, os Otomanos foram, para muitas fações con-
testatárias, o verdadeiro castigo de Deus na Terra. Os anabatistas,

268
reformadores radicais, sustentavam que os Otomanos eram um
sinal de que Deus estava prestes a conquistar o mundo, ao que
se seguiria a vinda do Anticristo; o Eleito destruiria os infiéis e
dar-se-ia a Segunda Vinda de Cristo. Martinho Lutero, por sua
vez, escreveu que os Otomanos eram um flagelo de Deus, um
instrumento da ira divina pelo papado corrupto. Os católicos,
por seu lado, consideravam que os “Turcos” eram a punição de
Deus por permitir o êxito de Lutero e seus seguidores. (Quataert,
2000: 30)

Ademais,

[…] os europeus fizeram dos Otomanos o repositório do mal;


identificaram as características que queriam possuir, atribuindo as
contrárias ao seu inimigo. Foi, portanto, a crueldade em oposição
à humanidade; a barbárie em contraste com a civilização; os infiéis
contra os verdadeiros crentes. […] No espírito do mundo europeu,
os Otomanos ora eram terríveis, selvagens e “vis”, ora tarados
sexuais, devassos e dissolutos. (Quataert, 2000: 29)

A literatura europeia de entre a Idade Média e o século xviii


é o espelho desta realidade, forçando uma imagética adulterada
e brutalmente negativa de figuras, cultura e costumes do Império
Otomano, acentuando a sua crueldade, exotismo e bizarria (Quataert,
2000: 30; Said, 2004: 70-83). Atente-se, a este propósito, na análise
que Said faz da Bibliothèque orientale de Barthélemy d’Herbelot,
publicada em 1697 (Said, 2004: 73-77), e que durante muito tempo
foi tido como o mais completo repositório de conhecimentos sobre
o Oriente.
Felizmente, existe hoje uma série de estudos que nos ajudam
a desconstruir perceções erróneas e convicções estereotipadas da
presença islâmica no espaço europeu (vide Daniel, 1960; Southern,

269
1962; Quataert, 2000; Said, 2004; Daftary, 2005; Keshavjee, 2009).
Se é verdade que esta guerra quase perpétua e inimizade obstinada
têm por trás conhecidas divergências teológicas e morais (Lavajo,
2000: 91-92), e histórico-bélicas, como as que aqui expusemos,
também não deixa de ser verdade que o ódio religioso e ideológico
contribui imenso para criar uma visão propositadamente deturpada
e fortemente negativa do “outro” islâmico, para infundir e difundir
temor, justificar guerras e salvaguardar uma fé que se cria unicamente
verdadeira. A contrario, Donal Quataert, um dos maiores estudiosos
do Império Otomano, afirma que “durante séculos, o domínio oto-
mano sobre os povos subjugados foi brando” (2000: 28), e acentua
o pendor multiétnico e multirreligioso, inclusivo e tolerante como
características que ajudaram à durabilidade e sucesso do Império.
A norma era a proteção dos povos subjugados e a garantia da li-
berdade religiosa. Se em alguns momentos – como denuncia Vieira
num dos excertos acima transcritos – houve perseguição, morte ou
tratamento cruel dos súbditos judeus e cristãos pela sua fé, esses
factos foram ocasionais e constituíram uma violação do “princípio
basilar da tolerância” (Quataert, 2000: 28), que o Estado otomano
tanto se empenhava em preservar.11 Além do mais, o reconhecimento
das virtudes dos otomanos levou vários intelectuais europeus, da
craveira de Maquiavel, Bodin, Montesquieu, a enaltecerem as suas

11 Faranaz Keshavjee, por sua vez, põe a tónica na multiculturalidade que se


verificou no espaço al-Andaluz, falando de indivíduos “hifenizados” (2009: 103), e
salienta que “apesar das divergências doutrinárias, a história da Península Ibérica é
caracterizada também pela convivência e interculturalidade” (2009: 99-100). A coexis-
tência de quase sete séculos, entre 711 e 1496, pautou-se por um pluralismo político,
linguístico, artístico e intelectual que poetas, historiadores e líderes contemporâneos
do islão recordam com saudade (vide ibid.). Lembra ainda que os primeiros séculos
de contacto entre cristãos e árabes, na Hispânia, ficaram marcados por um notável
incremento económico, técnico, intelectual e cultural. Só a partir de 1099, coincidindo
com o lançamento das Cruzadas e com o estabelecimento do Condado Portucalense,
irradia entre nós um forte desejo de reconquista, impulsionado por um sentimento
de “consciência nacional”, pela “idiossincrasia cristã”, pela língua, pela configuração
geográfica e uma série de outros fatores políticos (vide Lavajo, 2000: 103).

270
qualidades militares, administrativas e morais como modelo dese-
jável para os seus conterrâneos. Nesse sentido, pode dizer-se que os
otomanos serviram como instrumento de autodefinição da cultura
europeia, ainda que na maioria das vezes por contraste negativo. 12
Efetivamente, a imagem que se impôs num Ocidente traumati-
zado pelo extraordinário avanço dos exércitos muçulmanos foi a
de um islão epítome do terror, da devastação, do demoníaco e da
barbárie, levando a que “os autores cristãos que testemunhavam as
conquistas islâmicas pouco se interessa[ssem] pela erudição, alta
cultura e frequente magnificência dos muçulmanos” (Said, 2004:
68). De tal modo que os primeiros séculos de contactos entre estes
povos são conhecidos como a “idade da ignorância”. 13
O próprio conceito de maometano, tantas vezes empregue por
Vieira como sinónimo de muçulmano, transporta em si a marca da
incompreensão e do desconhecimento, sendo um erro persistente
ainda na atualidade, mesmo entre insuspeitos historiadores, “como
se o Profeta a quem foi revelada a mensagem divina passasse a
ser ele mesmo o fundador e o centro da religião dos muçulmanos”
(Keshavjee, 2009: 109). Said (2004: 69) identifica na analogia entre
Cristo e Maomé um dos constrangimentos dos pensadores cristãos
que tentaram entender o islão: “sendo Cristo a base da fé cristã,
considerava-se – de modo totalmente incorreto – que Maomé era

12 O que se coloca sob a abrangência de otomanos pode ser alargado ao orien-


talismo, como se percebe pela análise de Edward Said: “[…] o Oriente ajudou a
definir a Europa (ou o Ocidente) como contraposição à sua imagem, como ideia,
personalidade e experiência contrárias à sua” (2004: 2). “[…] a cultura europeia
adquiriu força e identidade ao afirmar-se contra um Oriente visto como uma espécie
de forma sucedânea ou subterrânea” (2004: 4).
13 Daftary, referindo-se aos primeiros quatro séculos de ameaça otomana junto
das fronteiras da Europa, diz que “os Europeus escolheram efetivamente ignorar o
Islão, tanto como fenómeno militar como intelectual, negando também o seu esta-
tuto de nova religião monoteísta da tradição judaico-cristã. Nessas circunstâncias, as
perceções europeias estavam essencialmente enraizadas no medo e na ignorância,
resultando numa imagem altamente distorcida e absurda do Islão nas mentes oci-
dentais” (2005: 66; cf. Keshavjee, 2009: 112-117).

271
para o Islão o mesmo que Cristo era para o Cristianismo”. Daí, o
nome polémico de “maometismo” atribuído ao islão, e o epíteto
automático de “impostor” aplicado a Maomé (Daniel, 1960: 33).
Maomé, visto como propagador de uma falsa Revelação, tornou-se
o epítome da lascívia, da libertinagem, da sodomia e de toda uma
data de traições derivadas das suas imposturas doutrinárias (Daniel,
1960: 246, 96 e passim). Esta e muitas outras conceções erradas
contribuíram para formar uma imagem “total” e “autossuficiente”
(Daniel, 1960: 252) do islão, imagem essa que se ajustava mais à
mentalidade, perspetiva e expetativa do cristão medieval do que ao
islão real. Houve, é certo, uma tendência invariável para negligenciar
o Corão e os muçulmanos em função de imagens deturpadoras mas
mais convincentes para os cristãos (Daniel, 1960: 259-260). Para
a divulgação e enraizamento da mundivisão cristã do islão muito
contribuíram na Idade Média e no início da Renascença uma grande
variedade de poesia, polémicas cultas e superstições populares (Said,
2004: 70ss.). A perspetiva narcisista, simplificadora e unificadora
da Europa sobre o Oriente tende a ver nele pseudo-encarnações ou
pseudo-imitações dos seus originais grandiosos ou de algum dos
seus aspetos, podendo encarar Maomé como uma repetição falsa
de Cristo ou a religião indiana como versão oriental do panteísmo
germano-cristão.
Para todos os efeitos, “para a Europa, o Islão era um trauma
duradouro” (Said, 2004: 69; Daftary, 2005: 66). Não foram só o ex-
traordinário expansionismo imperialista e religioso dos muçulmanos
desde a sua origem e a aversão religioso-ideológica a alimentar o
ódio dos cristãos europeus; o que mais os incomodava, e que foi
sentido como suma provocação, era que esse avanço territorial se
tivesse feito para territórios confins ou mesmo sobrepostos aos
das terras bíblicas. Mais ainda, a sede do poder islâmico esteve
sempre na zona mais próxima da Europa, a que se convencionou
chamar Próximo Oriente. Não admira, pois, que o islamismo, de-

272
vido a esta proximidade e vizinhança, tenha assimilado tradições
helénico-judaicas e tenha integrado de forma criativa elementos do
cristianismo. Assim, temos que

[…] do final do século VII até à Batalha de Lepanto em 1571, o


Islão, nas suas variantes árabe, otomana, do Norte de África ou
espanhola, dominou ou ameaçou a Cristandade europeia. O facto
de o Islão ter ultrapassado Roma e ter sido mais fulgurante do
que ela não pode deixar de estar presente na mente de qualquer
europeu do tempo passado ou do presente. (Said, 2004: 85)

Deste modo, não é de estranhar que a 300 anos do histórico


Concílio Vaticano II, do seu revolucionário ecumenismo e do conse-
quente diálogo inter-religioso, encontremos no Padre António Vieira
o ponto de chegada de uma longa tradição de matriz europeia e
cristã que tende a diabolizar e a responsabilizar o mouro e o oto-
mano pelos males do mundo. Pesem embora algumas propostas mais
arrojadas e luminosas que visaram se não rasgar pelo menos abrir
fendas no pouco sensível e inflexível pensamento político e social
da época, como são a defesa dos negros, dos judeus, o discurso
anti-esclavagista e promotor da liberdade religiosa, 14 Vieira não
conseguiu superar o implacável discurso anti-islâmico fortemente
entranhado na cultura europeia havia séculos.

14 A consumação do Reino de Cristo na Terra, tal como defendido na Clavis


Prophetarum, implicava a conversão final de todos os povos “à fé e obediência de
Cristo” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, V: 452). Sendo um projeto de paz e justiça,
não é, para usar um anacronismo, um projeto que nós possamos considerar ecuménico.
No entanto, o caminho para lá chegar supunha, para Vieira, a liberdade de religião,
considerando este que o poder do papa era limitado aos cristãos. Opondo-se à
plenitudo potestatis papal, o jesuíta ia corajosamente contra a corrente dominante
do seu tempo, aparecendo em linha com os grandes teóricos da famosa Escola
Peninsular da Paz, os quais “estabeleceram que o Papa não pode castigar os pagãos
por motivo de infidelidade, nem a infidelidade, por si só, é título legítimo de guerra
ou escravatura” (Calafate, 2013: 72). É sem dúvida um Vieira mais brando, mesmo
para com os turcos, este que encontramos no seu opus magnum.

273
Não nos cabe julgar os homens do passado, desde logo porque
é enorme a probabilidade de em situações similares não sermos
melhores nem fazermos de forma diferente. Contudo, três séculos
volvidos, com a inerente revolução de mentalidades e práticas, não
há desculpas para insistir em discursos fabricados com base em
perniciosas paixões coletivas, em visões redutoras e distorcidas
do outro, em conhecimentos apriorísticos e generalistas. Com os
progressos sociais, técnicos e científicos das últimas décadas, seria
um erro inaceitável ver hoje o islão como uma versão desencami-
nhada do cristianismo ou um inimigo civilizacional. A Europa ganha
mais em ter como modelo histórico o encontro de culturas que
se sobrepuseram e recorreram umas às outras, do que o choque
de civilizações que alimentou intolerâncias, conflitos e ruturas
sangrentas. As profecias hoje não apelam à guerra, mas sim à paz
e à desconstrução urgente de estereótipos e rótulos geradores de
intransigências e medos:

Os terríveis conflitos redutores que agrupam muita gente


sob rubricas falsamente unificadoras como sejam “a América”, “o
Ocidente” ou “o Islão” e que inventam identidades coletivas para
um grande número de indivíduos em boa verdade muitíssimo dis-
tintos, não podem permanecer tão fortes como têm sido até agora;
têm que conhecer oposição, a grande influência e a capacidade
mobilizadora da sua eficácia assassina têm que ser grandemente
reduzidas. (Said, 2004: xxiv )

274
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276
Antonio Vieira y Sor Juana Inés de la Cruz: los textos de la
polémica por el “Sermão do Mandato” en la Nueva España
(1690-1691)

António Vieira and Soror Joana Inês de La Cruz: The controversy


of the “Sermão do Mandato” in New Spain (1690-1691)

Claudia Benítez
Universidad de Guadalajara
ORCID | 0000-0003-2406-0043

Resumo
A través de este trabajo se explicará cómo y por qué la obra de
Antonio Vieira circuló significativamente por la Nueva España, a
pesar de que el jesuita luso defendió la causa de la Restauração y
anunció la substitución de la Casa de Austria (O Quarto Império)
por la Casa de Bragança (O Quinto Império) como cabeza de
una monarquía católica universal. En general, intervinieron varios
factores relacionados con la vida del autor y la creación de sus
textos, pero también con el entorno en el cual se publicaron,
difundieron y recibieron en la Monarquía Hispánica.
Principalmente la cercanía geográfica, lingüística y cultural
entre las Monarquías Ibéricas, así como la condición de jesuita
de Vieira y la calidad de su obra oratoria permitieron que los
sermones se imprimieran en España desde 1660 y circularan por
todas las posesiones hispánicas entre los siglos XVII y XVIII.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_13
Sin embargo, en dichas ediciones no se incluyeron los discursos
donde defendió la causa de la Restauração o criticó el gobierno
de los Austrias en Portugal. Por otra parte, la mayoría de los
sermones que circularon por la Nueva España se publicaron para
el aprovechamiento de los fieles y para apoyar a los clérigos
en sus labores pastorales. Con ellos se trató de solventar la ca-
rencia de modelos de oratoria católicos, cuando la predicación
se convirtió en una herramienta decisiva para la evangelización
y para combatir a los reformistas protestantes. En este sentido,
los sermones de Vieira eran muestra de la mejor oratoria de su
tiempo, mostraban a un predicador ingenioso y agudo, cualidades
destacables en la escuela conceptista que predominó en el ámbito
de la oratoria sagrada entre la segunda mitad del siglo xvii y la
primera del xviii. Por esa razón fueron utilizados como modelos
de predicación, tanto desde el punto de vista de la forma o el
estilo como de la materia o el contenido. No obstante, algunos
de sus textos también fueron expurgados por la Inquisición en la
Nueva España y a finales del siglo xvii su Sermón del Mandato
fue debatido por Sor Juana Inés de la Cruz. A partir de dichas
polémicas es posible descubrir que la figura y obra de Vieira
era reconocida en la ciudad de México desde 1690.
Finalmente, en el último cuarto del siglo xviii los reformadores
de la predicación criticaron principalmente el estilo oratorio del
jesuita portugués, aunque aceptaron su ingenio para discurrir
con agudeza sobre materias difíciles. Sin embargo, el surgimiento
de un nuevo modo de predicar hizo declinar el empleo de sus
discursos como modelos de oratoria sagrada y en su lugar
comenzaron a utilizarse los sermones de los oradores francos.
En suma, estas son algunas de las conclusiones a las cuales se
llegó después de analizar la presencia de la obra de Antonio
Vieira en la Nueva España.

278
Palabras Clave: Vieira; Nueva España; Presencia; Oratoria Sagrada
Conceptista

Abstract
Through this article we will explain how and why António Vieira’s
work circulated significantly in New Spain, despite the fact that
this Portuguese Jesuit defended the cause of the Restoration
and announced the replacement of the House of Asturias (the
Fourth Empire) by the House of Bragança (the Fifth Empire) as
the head of a universal Catholic monarchy. In general, several
factors related to the life of the author and the creation of his
texts are relevant, but also the environment in which they were
published, disseminated and received in the Hispanic Monarchy.
Mainly the geographical, linguistic and cultural proximity between
the Iberian Monarchies, as well as Vieira’s role as Jesuit and the
quality of his oratory work allowed his sermons to be printed
in Spain since 1660, circulating throughout all the Hispanic pos-
sessions between the 17th and 18th centuries. However, those
editions did not include the texts where he defended the cause of
the Restoration or criticized the Asturias government in Portugal.
On the other hand, most of the sermons that circulated in New
Spain were published for the use of the faithful and to support
the clergy in its pastoral work. They tried to solve the lack of
models for Catholic oratory, when preaching became a decisive
tool for evangelization and to fight the Protestant reformers.
In this sense, Vieira’s sermons were a sample of the best ora-
tory of his time, showing an ingenious and acute preacher with
remarkable qualities of the conceptual school that prevailed in
the field of sacred oratory between the second half of the 17th
century and the first half of the 18th century. For that reason
they were used as models of preaching, both from a formal or
stylistic perspective as well as regarding their content. However,

279
some of his texts were also expunged by the Inquisition in New
Spain and by the end of the 17th century his Sermon of the
Mandate was debated by Sister Juana Inés de la Cruz. From these
polemics it is possible to discover that the figure and work of
Vieira was recognized in Mexico City since 1690.
Finally, in the last quarter of the 18th century, the preacher
reformers mainly criticized the oratory style of the Portuguese
Jesuit, although they accepted their ingenuity to deal with difficult
subjects. However, the emergence of a new mode of preaching
saw a decline in the use of his sermons as models of sacred ora-
tory and instead began to use the sermons of the frank orators.
In short, these are some of the conclusions reached after analysing
the presence of António Vieira’s work in New Spain.
Keywords: Vieira; New Spain; Presence; Conceptualist Sacred
Oratorty

La obra de Antonio Vieira tuvo una presencia significativa en


la Nueva España entre los siglos xvii y xviii . Esto se confirmó a
través del análisis de 274 inventarios de libros, así como el registro
de más de 1200 ejemplares de sus obras impresas resguardadas en
24 bibliotecas mexicanas. Pero a partir de dicha evidencia surgieron
algunas preguntas: ¿Cómo se leyeron sus textos en esta parte del
orbe indiano? ¿Cómo los interpretaron sus lectores y qué reacciones
causaron? Para resolver tales dudas fue necesario emprender una
investigación sobre la recepción de los libros del jesuita portugués
en el virreinato novohispano, cuyos resultados se presentaron
ya en otro trabajo. 1 Sin embargo, en este artículo se realizará un

1 En la tesis doctoral La Presencia de Antonio Vieira en la Nueva España


(Siglos XVII y XVIII), presentada en El Colegio de Michoacán en 2013.

280
acercamiento al tema a través de los documentos que generó la
polémica con Sor Juana Inés de la Cruz por el Sermón del Mandato
(1650), destacando especialmente las opiniones de los involucrados
sobre la figura y obra de Antonio Vieira. Se decidió abordar dicha
controversia desde esta perspectiva porque, aunque se han tratado
diferentes aspectos de la misma, se ha hecho regularmente para
comprender la impugnación de Sor Juana, así como los textos de
sus detractores y defensores, realizados entre finales del siglo xvii
y la primera mitad del xviii . 2 En cambio, a partir de los mismos
documentos en el presente trabajo se pretende demostrar que el
Padre Vieira también fue muy leído y reputado en la Nueva España.

La Carta Atenagórica y la Carta de Sor Filotea de la Cruz (1690)


El Jueves Santo de 1650 Antonio Vieira predicó un Sermón del
Mandato en la capilla real del palacio de Ribeira en Lisboa.3 Cuarenta
años después Sor Juana Inés de la Cruz leyó una versión impresa
de esta pieza oratoria4 y refutó los argumentos expuestos por el je-

2 Entre los diferentes estudios donde se analiza la Carta Atenagórica de Sor


Juana Inés de la Cruz, destacan por la información que ofrecen para comprender
también el sermón de Antonio Vieira los de Ricard (1951), Corripio (1967), Paz
(1982), Puccini (1997) y Alatorre y Tenorio (1998).
3 En la obra oratoria impresa de Antonio Vieira existen seis sermones llamados
del Mandato, pero como él mismo señaló en la editio princeps de los Sermoens,
el que aquí nos ocupa fue pronunciado en la capilla real el Jueves Santo de 1650
(Vieira, 1692: 333). Sin embargo, Robert Ricard puso en duda esta fecha argumen-
tando que ese año se encontraba en Roma. Por eso planteó como “una hipótesis
seductora suponer que este sermón, estrictamente religioso, debe ser colocado hacia
1645, cuando el orador, víctima de las primeras dificultades, se aparta un poco del
dominio político” (Ricard, 1951: 2).
4 Existen diferentes versiones impresas de este sermón en portugués y castellano.
Pero el análisis de las mismas permite afirmar que Sor Juana leyó la incluida en
la obra Sermones Varios, impresa a costa del librero madrileño Gabriel de León en
1678. Manuel Corripio Rivera llegó a la misma conclusión, aunque no menciona una
versión impresa por Julián de Paredes en 1680 (1967: 199-202). En cuanto a las otras
versiones publicadas antes de 1690, Alatorre y Tenorio, con base en el manual de
Antonio Palau, concluyeron “que el original portugués tuvo cinco ediciones sueltas
entre 1650 y 1672 [y] es uno de los siete sermones que primero se tradujeron al
español: Sermones varios, (Zaragoza, 1662?), Madrid, 1662, y reediciones de 1664

281
suita portugués en una conversación sostenida con un desconocido
interlocutor en el Convento de San Jerónimo de México. Como éste
le pidió poner por escrito los razonamientos expuestos,5 Sor Juana
redactó un texto que tituló la Crisis de Un Sermón. En 1690 una copia
llegó a manos del entonces obispo de Puebla, Manuel Fernández
de Santa Cruz, quien bajo el seudónimo de Sor Filotea de la Cruz
y anteponiéndole una misiva suya, lo publicó con el nombre de
Carta Atenagórica. 6 A partir de ese momento varios personajes
tomaron la pluma para defender tanto el sermón de Vieira como
la impugnación de Sor Juana. Aunque el autor no intervino en la
polémica, los textos implicados en este asunto ofrecen indicios
importantes sobre la difusión e influencia de su obra en la Nueva
España a finales del siglo xvii .
En particular, en la introducción de la Carta Atenagórica, Sor Juana
menciona que “de las bachillerías de una conversación” nació en

y 1678” (1998: 48). Sin embargo, al revisar el manual de Palau (1975, IV: 205-206)
no se encontró información sobre las cinco ediciones portuguesas. Raymond Cantel
tampoco da cuenta de ellas cuando menciona los sermones sueltos publicados en
Portugal antes de los Sermoens (1959: 18-19). Además, el Sermón del Mandato no
se incluyó en los dos primeros tomos de los Sermones Varios publicados en 1662 y
1664, sólo se publicó en el tercer tomo impreso en 1678.
5 Puccini (1997: 32) propuso que el interlocutor de Sor Juana fue “casi segura-
mente el obispo de Puebla, don Manuel Fernández de Santa Cruz”. Esta afirmación
fue secundada por Paz (1982: 520) y José Quiñones Melgoza (1995: 482). Pero como
Amado Nervo (1994: 127), Alberto G. Salceda y Alfonso Méndez Plancarte (Cruz,
1954: XXXIX), Marie-Cécile Benassy-Berling (1983: 168) afirmó que “ni el contenido
de la Crisis, ni el de la Carta de Sor Filotea, ni el de la Respuesta permiten suponer
que el destinatario del primer texto haya sido el obispo de Puebla”. Por otro lado,
para Alatorre y Tenorio, “así como el romance de los celos fue resultado de una
conversación con la Condesa de Paredes acerca de poesía, la Crisis lo fue de una con-
versación acerca de teología y oratoria sagrada con cierto visitante de San Jerónimo,
quizá fray Antonio Gutiérrez (y si no él, cualquier otro docto teólogo)” (1998: 16).
6 La mayoría de los autores afirman que “Atenagórica” significa “digna de la
sabiduría de Minerva”, proveniente de las voces griegas Athena (Minerva), ágora
(arenga) y el sufijo ica (“propio de”, “digno de”). No obstante, otros aseguran que se
refiere a Atenágoras, filósofo y apologeta griego del siglo ii d.C., quien ya convertido
al cristianismo dedicó a Marco Aurelio su obra Súplica en favor de los Cristianos.
Según esta interpretación, el obispo de Puebla fue “en defensa de Sor Juana, pues
implica la aprobación de sus conocimientos ‘mundanos’ debiéndole ella solo, a
imitación de Atenágoras, ponerlos al servicio de la fe” (Pérez-Amador, 2011: 19-20).

282
su incógnito interlocutor el deseo de ver por escrito los discursos
que hizo “de repente sobre los sermones de un excelente orador”.
Aunque nunca lo menciona expresamente por su nombre, reconoce
las dotes como predicador del autor del sermón:

Alabando algunas veces sus fundamentos, otras disintiendo, y


siempre admirándome de su sinigual ingenio, que aún sobresale
más en lo segundo que en lo primero, porque sobre sólidas basas
no es tanto de admirar la hermosura de una fábrica, como la de
la que sobre flacos fundamentos se ostenta lúcida, cuales son
algunas de las proposiciones de este sutilísimo talento, que es
tal su suavidad, su viveza y energía, que al mismo que disiente,
enamora con la belleza de la oración, suspende con la dulzura
y hechiza con la gracia, y eleva, admira y encanta con el todo.
(Cruz, 1954: 412)

Posteriormente, para demostrar que su sentir iba “purificado de toda


pasión”, Sor Juana enumeró tres razones que concurren en el orador
de especial amor y reverencia para ella: Primero, “el cordialísimo y
filial cariño” que sentía hacia la Compañía de Jesús, de la que no se
consideraba “menos hija” que Antonio Vieira. Segundo, la grande afición
que tenía por el jesuita portugués, a quien llama “admirable pasmo
de los ingenios” y afirmaba que, si Dios le diera a escoger talentos,
“no eligiera otro que el suyo”. Tercero, la “oculta simpatía” que ma-
nifestaba hacia “su generosa nación”, Portugal. En cuanto al objetivo
del texto, advierte que no es replicar, sino únicamente referir su
opinión sobre el Sermón del Mandato:

Pues si [Vieira] sintió vigor en su pluma para adelantar en


uno de sus sermones (que será sólo el asunto de este papel) tres
plumas, sobre doctas, canonizadas, ¿qué mucho que haya quien
intente adelantar la suya, no ya canonizada, aunque tan docta?

283
Si hay un Tulio moderno que se atreva a adelantar a un Agustino,
a un Tomás y a un Crisóstomo, ¿qué mucho que haya quien ose
responder a este Tulio? Si hay quien ose combatir en el ingenio
con tres más que hombres, ¿qué mucho es que haya quien haga
cara a uno, aunque tan grande hombre? Y más si se acompaña y
ampara de aquellos tres gigantes, pues mi asunto es defender las
razones de los tres Santos Padres. Mal dije. Mi asunto es defen-
derme con las razones de los tres Santos Padres (Ahora creo que
acerté). (Cruz, 1954: 13)

De esta manera, en la Carta Atenagórica Sor Juana defiende


la opinión de los tres Santos Padres a quienes Vieira pretendió
adelantar en el Sermón del Mandato de 1650, cuya materia fue
revelar cuál había sido la mayor fineza de Cristo al final de su vida.
Para ello expuso las opiniones de San Agustín, Santo Tomás de Aquino
y San Juan Crisóstomo, para después declarar la suya: “mas com esta
diferença, que nenhuma fineza do amor de Cristo me darão, que eu
não dê outra maior; e a fineza do amor de Cristo que eu disser,
ninguém me há de dar outra igual [más con esta diferencia, que
ninguna fineza del amor de Cristo me darán, que yo no dé otra
mayor: y la fineza del amor de Cristo que yo dijere, ninguno me
ha de dar otra que la iguale]” (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
IV: 311). Como señaló Ricard, es difícil resumir “los sutiles refina-
mientos de Vieira [y] la argumentación minuciosa, insistente, a veces
sinuosa, de la monja mexicana, [pues] sólo traicionando con excesos
podría uno decir las cosas someramente” (1951: 2). Sin embargo,
para que se entienda mejor el fondo de la polémica expondré los
principales argumentos esgrimidos en ambos textos.
Para empezar, Vieira cita a San Agustín, quien aseguró que la
mayor fineza de Cristo fue morir por la salvación de los hombres.
Sin embargo, para él mayor fineza fue ausentarse que morir, “porque
morrendo, deixava a vida, que amava menos; ausentando-Se, deixava

284
os homens, que amava mais [porque muriendo dejaba la vida, que
amaba menos; y ausentándose dejaba a los hombres, que amaba
más]” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV: 312). En cambio, Sor
Juana coincide con San Agustín, porque dice “lo más apreciable
en el hombre es la vida y la honra, y ambas cosas dio Cristo en su
afrentosa muerte” (1954: 415). Por otro lado, para Santo Tomás la
mayor fineza de Cristo fue quedarse sacramentado. Según Vieira,
mayor fineza fue dejarse sin uso de los sentidos en ese sacra-
mento (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV: 317). Pero Sor Juana
repara en “que el santo propone en género [y] el autor responde
en especie”. En todo caso, advierte la Jerónima, “de las especies
de fineza que Cristo obró en el Sacramento, la mayor no es estar
sin uso de sentidos, sino estar presente al desaire de las ofensas”
(1954: 421). Por último, para San Juan Crisóstomo la mayor fineza
de Cristo fue lavar los pies de los discípulos. Para Vieira fue la
causa que lo movió a hacerlo (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
IV: 324-325). En este sentido, Sor Juana menciona: “otra tenemos,
no muy diferente de la pasada, aquella de especie a género; ésta,
de efecto a causa […] ¿Pudo pasarle por el pensamiento al divino
Crisóstomo, que Cristo obró tal cosa sin causa, y muy grande?”
(1954: 422). Finalmente, Vieira refiere que la mayor fineza de Cristo
fue “querer que o amor, com que nos amou, fosse dívida de nos
amarmos [querer que el amor con que nos amó, fuese deuda de
que nosotros nos amemos]” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV:
331). Sor Juana responde que “cuando se hace, por respeto de al-
guno, alguna acción a favor de otro, más se aprecia aquél por cuya
atención se hace, que al con quien se hace” (1954: 425). Para ella
la mayor fineza no de Cristo, sino de Dios en cuanto Dios, son los
beneficios negativos, “esto es, los beneficios que nos deja de hacer
porque sabe lo mal que lo hemos de corresponder” (1954: 435).
Sor Juana termina la carta explicando a su destinatario que
obedeció en lo que le mandó con “rudeza, cortedad y poco es-

285
tudio”, porque la prisa no dio “lugar a pulir algo más el discurso”.
Además, le aclara que si algo lleva de cierto el texto no es obra de
su entendimiento, “sino sólo que Dios quiere castigar con tan flaco
instrumento la, al parecer, elación de aquella proposición: que no
habría quien le diese otra fineza igual”. También le dice que no es
ligero castigo “a quien creyó que no habría hombre que se atreviese
a responderle, ver que se atreve una mujer ignorante, en quien es
tan ajeno este género de estudio” (1954: 435). Por último, Sor Juana
advierte a su incógnito interlocutor: “este papel es tan privado que
sólo lo escribo porque V. md. lo manda y para que V. md. lo vea”.
Sin embargo, el 25 de noviembre de 1690 Manuel Fernández de
Santa Cruz,7 en calidad de obispo de Puebla, firmó la licencia para
imprimirlo en su diócesis con el título de Carta Atenagórica. Aunque
en la portada se menciona “que imprime, y dedica a la misma Sor,
Phylotea de la Cruz. Su estudiosa aficionada en el Convento de
la Santísima Trinidad de la Puebla de los Ángeles” (Cruz, 1690).
También se menciona como la autora de una epístola que aparece
como prólogo en la edición poblana y en la versión reeditada dos
años después en Mallorca. Como señalan Alatorre y Tenorio, ambas
cartas dejaron de imprimirse solas cuando se integraron en el se-
gundo tomo de las Obras de Sor Juana, publicado en Sevilla (1692),
Barcelona (1693), 8 Lisboa (1700) y Madrid (1715, 1725).

7 Manuel Fernández de Santa Cruz y Sahagún nació en Palencia en 1637. Estudió


con los Jesuitas y después se instaló en Salamanca, donde fue discípulo del teólogo
Pedro de Godoy. Cuando se ordenó como sacerdote, tuvo como director espiritual al
padre Tirso González, quien sería general de la Compañía de Jesús. En 1672 llegó a la
Nueva España con el nombramiento de obispo de Chiapas, aunque fue cambiado muy
pronto a la sede episcopal de Guadalajara, donde permaneció hasta 1676, cuando
fue nombrado obispo de Puebla, cargo que ocupó hasta su muerte ocurrida en 1699.
En Puebla fundó varios colegios para niñas vírgenes, colegios de monjas y una casa
de recogidas, también enriqueció la biblioteca palafoxiana e impulsó el colegio de
teólogos. Como señala Paz, “por esta breve enumeración de sus actividades pueden
adivinarse sus dos pasiones: la teología y las religiosas” (1982: 521-522).
8 Georgina Sabat de Rivers refiere que en Barcelona se publicaron tres ediciones
de este volumen en 1693 (1974: 391-401).

286
En la Carta de Sor Filotea de la Cruz, el obispo Manuel Fernández
de Santa Cruz le comunica a Sor Juana que imprimió su misiva
para que se viera “de mejor letra”. Además, le aclara que no está
en contra de sus estudios, sólo la exhorta a olvidarse un poco de
las letras profanas y dedicarse más a las sagradas, como hizo en
la Carta Atenagórica, texto que alaba con entusiasmo en el primer
párrafo de su epístola:

Señora mía. He visto la carta de V. md. en que impugna las


finezas de Cristo que discurrió el Reverendo Padre Antonio de
Vieira en el Sermón del Mandato con tal sutileza que a los más
eruditos ha parecido que, como otra Águila del Apocalipsis, se
había remontado este singular talento sobre sí mismo, siguiendo
la planta que formó antes el Ilustrísimo César Meneses, ingenio de
los primeros de Portugal; pero a mi juicio, quien leyere su apo-
logía de V. md. no podrá negar que cortó la pluma más delgada
que ambos y que pudieran gloriarse de verse impugnados de una
mujer que es honra de su sexo. (Cruz, 1954: 694)

En el párrafo anterior el obispo pondera la sutileza del Sermón


del Mandato de Vieira, pero advierte que siguió “la planta que
formó antes el Ilustrísimo César Meneses, ingenio de los primeros
de Portugal”. Según Luiz Gonçalves Pinheiro en su Apologia a favor
do R. P. Antonio Vieira (1727), Fernández de Santa Cruz reconoció
parte de los pensamientos del jesuita portugués en una obra del
arzobispo de Lisboa, Sebastião César Meneses (1683). Sin embargo,
Gonçalves Pinheiro señala en el prólogo de su Apologia que le
extrañó ver cómo se criticaba en Vieira lo que se admiraba tanto
en Meneses: “Pero reparo, que escritos por Cesar le pusieron en el
grado de los mejores genios de Portugal, y explicados por Vieira, le
hicieron emulación de los ingenios de Castilla; más el rayo siempre
busca el monte, y la saeta siempre va al blanco”. Como en este caso,

287
la rápida difusión de ambas cartas generó reacciones en el orbe
ibérico y pronto comenzaron a circular textos de autores conocidos
y anónimos defendiendo tanto el discurso de Vieira como la im-
pugnación de Sor Juana. A continuación, se presentará el contenido
de dichos documentos, esperando capturar por lo menos los argu-
mentos centrales del debate para comprender por qué tuvo tanta
resonancia, llegando a extenderse incluso hasta España y Portugal.

Los textos de la polémica en la Nueva España (1691)


Después de la publicación de la Carta Atenagórica y la Carta de
Sor Filotea de la Cruz, en la Nueva España surgieron varios defen-
sores del sermón de Vieira. Sin embargo, en la ciudad de México
ya se habían manifestado muestras de admiración por su obra
antes de 1690, porque sus piezas oratorias circulaban traducidas
al castellano desde 1660. Por ejemplo, la Universidad de México le
dedicó unas conclusiones de teología en 1683 para desagraviarlo
por la quema de su efigie en la Universidad de Coimbra. Dos años
después, el jesuita José Errada Capetillo publicó su discurso titu-
lado Heráclito Defendido (Vieira, 1685). Además, como señaló José
Mariano Beristáin y Souza, “no había otro en aquel tiempo que
se hubiese alzado en Europa con el título de maestro del púlpito
que el portugués Vieira; y nuestro Avendaño era llamado el Vieira
mexicano”. Se refiere al jesuita Pedro de Avendaño (1654-170?), de
quien dice “no era menester más que saber dónde predicaba para
que los entendidos y de buen gusto se conmovieran para oírle”
(1981, I: 88).
Por otra parte, entre los defensores del Sermón del Mandato se
encontraban algunos detractores de Sor Juana. Como refieren Alatorre
y Tenorio, “es lógico pensar que los enemigos de la actividad profana
lo fueron aún más de la actividad teológica cuando comenzaron
a circular los manuscritos de la Crisis” (1998: 28-29). En la Nueva
España los dos más grandes opositores de las actividades profanas

288
de Sor Juana fueron su ex-confesor, el jesuita Antonio Núñez de
Miranda, y el entonces arzobispo de México, Francisco de Aguiar
y Seixas. De hecho, Puccini (1997: 48-51) y Paz (1982: 525-526)
creían que la Carta Atenagórica realmente iba dirigida a Aguiar y
Seixas, supuesto amigo de Vieira y enemigo de Fernández de Santa
Cruz. Para ambos autores, la enemistad entre los prelados surgió
cuando se disputaron el cargo de arzobispo de México y virrey
de la Nueva España, después de la renuncia de Payo Enríquez de
Ribera. Según su interpretación, Sor Juana y la Carta Atenagórica
fueron utilizadas por el obispo de Puebla para humillar a Aguiar
y Seixas, “que odiaba y despreciaba a las mujeres” (1997: 48-51).
Sin embargo, algunos autores han cuestionado esta teoría, como
Benassy-Berling (1983: 167-168), Alatorre y Tenorio (1998: 69). 9
Por otro lado, algunas defensas del Sermón del Mandato no se
conservan actualmente y sólo se conoce su título o parte del con-
tenido a través de referencias en otras obras. Por ejemplo, Beristáin
menciona en su catálogo (1981, III: 156) la “Defensa del P. Antonio
Vieira” que dejó manuscrita el presbítero poblano Manuel Serrano
Suárez de Peredo. 10 También la “Apología del célebre Sermón del
Mandato del P. Vieira contra la crítica de la monja de México” de
fray Francisco Ildefonso de Segura, cuyo manuscrito asegura se en-
contraba en la librería del Colegio de San Gregorio de México (1981,
III: 149). En el primer caso, Alatorre y Tenorio creen que se trata
del texto titulado “Apología de la Historia de lo Futuro del P. Vieira”,

9 Por mi parte, sólo tengo un comentario sobre una afirmación de Puccini y Paz.
Para probar que Aguiar y Seixas tenía una relación cercana con Vieira, citando a Puccini
(1997: 52), Paz señala que “su amistad era tanta que en 1675 y en 1678 se publicaron
en Madrid dos volúmenes de traducciones de sermones de Vieira, ambos dedicados a
Aguiar y Seixas, entonces obispo de Michoacán” (1982: 525). Pero estos dos tomos
de los Sermones varios se publicaron en 1678 y fueron dedicados al obispo por el
librero Gabriel de León y no por Vieira, quien incluso advirtió que se imprimieron
sin su autorización en el prólogo de la editio princeps de los Sermoens (Vieira, 1679).
10 “Natural de Puebla de los Ángeles, colegial del Palafoxiano, presbítero secular
de sumo ingenio, estudio y erudición” (Beristain, 1981, III: 156).

289
mencionado por José Toribio Medina en la sección de “Anónimos
teológicos” de su suplemento a Beristáin. En el segundo, consideran
que el documento no fue escrito en los momentos “álgidos” de la
polémica (1690-1691), pues de este autor se imprimieron dos obras
en Puebla en el siglo xviii: un método para rezar el oficio divino en
1721 y unas Consultas Varias, Morales, y Místicas en 1728 (Alatorre
& Tenorio, 1998: 30).
Las apologías que aún se conservan circularon casi todas sin el
nombre de su autor, excepto la Defensa del Sermón del Mandato
del Padre Antonio Vieira 11 de Pedro Muñoz de Castro (1658-1718),
quien fue escribano hasta 1691, cuando se ordenó de sacerdote.
También publicó varios sermones, villancicos y sonetos en la ciudad
de México entre 1696 y 1718. En cuanto a su Defensa, como señala
José Antonio Rodríguez Garrido, fue la primera reacción ante la
publicación de la Carta Atenagórica (Rodríguez, 2004: 27-31). En el
texto, Muñoz de Castro menciona que el 9 de enero de 1691 llegó
a su casa y encontró un ejemplar de la misma acompañada de un
mensaje de alguien, cuyo nombre no menciona, que le pedía por
ser “tan aficionado al dicho Padre, le defienda de la fuerte mujer
que lo con[tradixo]” (Rodríguez, 2004: 132). La afición de Muñoz
de Castro se confirma en su primer sermón impreso, donde incluyó
una referencia a un discurso de Vieira. En el Sermón del Glorioso
Patriarca San Joseph (1696) afirma que “es un caso muy notable,
aunque de pocos años a esta parte notado y digno de grande pon-
deración”, que el texto sagrado llamara a José, el hijo de Jacob,
primero varón, luego mancebo y finalmente niño, a la inversa del
orden natural de la evolución. En la aprobación del texto fray

11 La única copia hasta ahora conocida se conserva en la Biblioteca Nacional del


Perú. Fue localizada, reconstruida y publicada con un valioso estudio introductorio
por José Antonio Rodríguez Garrido (2004: 127-151).

290
Pedro Antonio de Aguirre 12 revela que dicha sentencia fue notada
“de pocos años a esta parte” por Vieira. También el doctor Miguel
González de Valdeozera 13 lo mencionó en su aprobación para elo-
giar a Muñoz de Castro:

Sólo siento no poder aplaudir obra tan peregrina, como me-


rece; pues solo, en mi sentir, aquel único Phénix, el Rmo. P. Antonio
Vieyra, Sol más que reluciente, que al Sol llamaron Phénix los
antiguos, Fanal, digo, brillante, que nasce, y que renasce como
Phénix, en cuyas alas lleva sanidad de doctrina con que inflama,
Luminar mayor de la Oratoria, luminare maius, pudiera ser digno
Panegyrista de este otro Phénix, como V. md., Luna resplande-
ciente, Luminar menor, luminare minus, que recibiendo de aquel
refulgente Sol sus lucimientos, sale, tan del todo su semejante,
que se me figura el propio renascido.

Por otro lado, un documento notarial demuestra que una semana


antes de recibir el ejemplar de la Carta Atenagórica, Muñoz de
Castro se encontró con Sor Juana en el Convento de San Jerónimo
de México.14 Además, como señala Rodríguez Garrido, quizá también
asistía al convento para oírla discurrir porque en el texto se dirige
a ella como un discípulo a su maestro (2004: 130). Tal vez por eso su
Defensa comienza con un romance dedicado a Sor Juana, a quien trata
con un tono amable y respetuoso en todo el texto. De hecho, en la
introducción menciona que si fuera ella la impugnada sería el primero

12 Fue lector en Sagrada Teología, calificador del Santo Oficio, ex definidor,


cronista y padre de la Santa Provincia de San Diego de Menores Descalzos (Medina,
1989, III: 160).
13 Capellán del Convento de las Carmelitas Descalzas de Santa Teresa y después
prebendado de la Catedral de México.
14 El 2 de enero de 1691, Muñoz de Castro actuó en el acuerdo por la dote de
una monja del Convento al cual acudió en calidad de contadora Sor Juana (Rodríguez,
2004: 36).

291
en defenderla, “a más de ser Féniz, [p]or mujer, nuestra compatriota,
singular el cariño de la República, imán de las corporaciones, hechiso
y em[b]eleso admirable de los mexores entendimientos”. Así, Muñoz
de Castro se enfrentó a una dificultad, cómo defender a Vieira sin
ofender a Sor Juana. En su Defensa mencionó una posible solución:

Letor mío, bien pudiere desde luego en dos pa[la]bras dar


mejor satisfación a la impugnación he[c]ha al Reverendíssimo
Padre Antonio de Vieyra, negando ser suyo [el] sermón im-
pugnado, o por lo menos estar tan be[ne]ficiado, adulterado y
corrupto que se puede contar entre [los] sermones agenos, pues
así lo dize el mismo Padre [ha]blando del mesmo sermón, que
en el Prólogo del [qu]arto tomo, que el autor llama primero, dize
que [m]uchos de los sermones impressos con nombre suyo en [el]
primero, segundo y tercero tomo son totalmente agenos, y [otr]os
tan corruptos y disformes, que apenas distingue en [el]los (dize
su humildad, digna por cierto de alabanza) [al]gunos de sus pobres
remiendos. Hablando del tercer [to]mo, donde está el sermón
impugnado, dize que de [ve]inte y nuve sermones que contiene,
cinco solamente [so]n suyos. Expressa catorce agenos, y aunque
entre [los] cinco suyos, dize serlo el del Mandato impugna[do],
añade estos cinco sermones y con más razón se [pu]dieran tres de
ellos contar entre los agenos. (Rodríguez, 2004: 130) 15

En el párrafo anterior, Muñoz de Castro propone responder


“en dos palabras” a la impugnación de Sor Juana, sólo negando

15 En el prólogo de los Sermoens (1679), Vieira menciona que todos los discursos
impresos antes con su nombre se publicaron sin su autorización, algunos no siendo
suyos y otros sólo en la substancia. Entre ellos, el tercer tomo de los Sermones
Varios (1678). Pero advirtió que de los 29 discursos que lo componían sólo 5 eran
suyos, incluido el Sermón del Mandato (1650). Aunque señaló que 3 de ellos también
podían contarse entre los ajenos por su notable corrupción.

292
ser de Vieira el Sermón del Mandato que ella leyó. Pero a pesar
de esto decidió defender el discurso del jesuita portugués porque
tenía “remien[dos] suyos” y estaba “autorizado con su nombre”
(Rodríguez, 2004: 131). En general, en su Defensa se revela como
un autor interesado en los debates escolásticos y dispuesto a ex-
poner sus ideas, aunque como él mismo declaró, sus afirmaciones
se apoyaban en lo que era “corriente Theologia” (Rodríguez, 2004:
140). Además, no cita más que a los autores enfrentados y algunos
pasajes de la Biblia, y cuando aparecen otras menciones sus referen-
cias son de segunda mano, tomadas de los mismos textos de Vieira y
Sor Juana. Para Rodríguez Garrido el escribano se muestra “como
una persona cuya erudición letrada, para ese tiempo, es todavía
limitada”. Para Antonio Alatorre su Defensa “es bastante anodina”
o así le parece porque “toca arduamente menudencias teológicas”
(Alatorre, 2005: 69).
Sin embargo, no todos los defensores del Sermón del Mandato
trataron con tanto respeto a Sor Juana. Un censor anónimo escribió
una fuerte crítica contra su carta, pero el texto no se conserva y sólo
se conoce parte del contenido a través de otras obras. Diego Calleja,
jesuita castellano y primer biógrafo de Sor Juana, dice que “con la
satisfacción que da la Poetisa al P. Vieyra, queda más ilustrado que
con la defensa que le hizo quien lavó con tinta la nieve”. Después
describe al autor como un “Eróstrato que, con ímpetu cerril y con un
mal encendido tizón de estilo causídico, se quiso amenazar de famoso
y quemar esta Maravilla” (Nervo, 1994: 154). Uniendo estos datos con
lo que menciona Sor Juana en la Respuesta a Sor Filotea de la Cruz,
Alatorre y Tenorio también formaron una imagen del contenido del
texto. Según estos autores, probablemente mencionaba el “atrevi-
miento” inaudito de la Jerónima de tratar sin respeto al Padre Vieira,
ofendiendo así a toda la Compañía de Jesús. Además, censuraba su
presunción de argumentadora y como mujer la osadía de meterse en
el terreno de la teología, considerado sagradamente masculino. Sobre

293
la carta, la calificaba de “bárbara”, hecha sin atención a las reglas
del arte y, peor aún, de “herética” (Alatorre & Tenorio, 1998: 34-35).
A los testimonios de Calleja y Sor Juana añadieron el del pres-
bítero valenciano Francisco Xavier Palavicino y Villarrasa 16 en su
sermón panegírico La Fineza Mayor, predicado en la iglesia de
San Jerónimo de México el día de Santa Paula de 1691. Ese mismo
año el discurso se publicó con una dedicatoria a las monjas del
convento, fechada el 10 de marzo. En ella, además de elogiar
desaforadamente a Sor Juana, Palavicino declaró no ser el autor
de la diatriba escrita en su contra, pues circulaba dicho rumor.
Por esa razón, comenzó su texto mencionando que se le habían
“falsamente impuesto un libelo infammatorio, que lança cruel vibró
un ciego Soldado contra una pura cordera […]”. 17 Según Alatorre y
Tenorio, Palavicino predicó y publicó su sermón para alinearse con
Sor Juana y repudiar firmemente el grosero ataque del “Soldado”.
Para Octavio Paz, probablemente fueron las monjas quienes los
invitaron a predicar “para que mediase en la cuestión […], porque
sostenía una opinión distinta a las de Vieira y Sor Juana sobre las
finezas de Cristo: así mostraban que eran ajenas a la controversia”
(Paz, 1982: 535).
En general, la materia del sermón fue revelar cuál había sido la
mayor fineza de Santa Paula en su amor a Cristo. Para Palavicino
la respuesta dependía de la solución a otra pregunta: ¿Cuál fue la
mayor fineza de Cristo? Así, siguiendo el método de Vieira en el
Sermón del Mandato, comentó las opiniones de los Santos Padres.
Pero a diferencia del jesuita portugués, comenzó con la de San Juan
Apóstol y continuó con las de San Agustín, Santo Tomás y San Juan

16 Clérigo presbítero domiciliario del arzobispado de México. Nació en Valencia


y estudió en la universidad de dicha ciudad y en la de Salamanca. Además, enseñó
filosofía y sagrada teología en Mérida. Archivo General de la Nación (AGN), México,
Inquisición, vol. 525, 1. a parte, fl. 254r.
17 La palabra “soldado” se imprimió en cursiva en el sermón (Palavicino, 1691).

294
Crisóstomo, para terminar con las de Vieira y Sor Juana. Excepto por
la opinión de esta última, Palavicino replicó el resto y señaló que
“la mayor fineza de Cristo fue sacramentarse ocultándose”, porque
“no lo fue para conciliar mayor veneración; sino para hacernos el
beneficio entero”. De la misma forma, concluyó que la mayor fineza
de Santa Paula fue ocultarse en su retiro de Belén pudiendo lucir
su santidad en Roma (Palavicino, 1691: 10).
Es importante mencionar que se inició un proceso inquisitorial
en contra de Palavicino por responder a una opinión de Vieira –
la mayor fineza de Cristo fue quedarse en el sacramento sin uso
de sentidos –, lo siguiente: “que si se consagrara […] una forma
hostia, o materia […] proporcionada en la trina dimenssion al ta-
maño de un cuerpo proporcionado; entonces no estuviera Christo
sin el uso de los sentidos, pues no estuviera penetrado como esta
agora” (Palavicino, 1691: 2v.). Alonso Alberto de Velasco, cura del
Sagrario de México, presentó una denuncia el 4 de julio de 1691
porque consideró que dicha sentencia iba “contra la doctrina cató-
lica de la Eucharistía, expressada y declarada en el Santo Concilio
Tridentino”. Además, porque no presentaba ninguna prueba de los
Santos Padres o Doctores de la Iglesia, “sino sólo de una monja
de dicho convento de San Gerónimo, a cuya adulación, aplauso y
celebración parece que tira todo el dicho Sermón y su Dedicatoria”.
También por manifestar un “ánimo arrogante” en la salutación de
su discurso, donde emulando a Vieira afirmó: “Algo diré que aya
dicho otro: pero mucho que ha dicho nadie”. 18
El 10 de julio de 1691 la proposición denunciada fue remitida
a tres calificadores del Santo Oficio. Sin embargo, el agustino
Antonio Gutiérrez y el franciscano Nicolás Macías se adhirieron al

18 AGN, Inquisición, vol. 525, 1.ª parte, fl. 253. Este proceso inquisitorial fue
ampliamente analizado por Ricardo Camarena (1995: 283-306).

295
dictamen del dominico Agustín Dorantes. 19 Éste la consideró “pe-
ligrosa y temeraria, ad minus errónea o próxima a error” porque
“el cuerpo de Christo no está en la Eucharistía con modo de ex-
tensión quantitativa y conmensuración a lugar, sino con modo de
substancia”, como se definió en el Concilio de Trento. Además, le
pareció sacrílega su comparación de Cristo en la cruz herido en un
costado por la lanza de un soldado, con Sor Juana “contra quien
vibró lanza cruel un ciego soldado”. Según Dorantes, Palavicino sólo
pretendió satisfacer la impostura que le hicieron de “cierto papel
injurioso y picante, que con el supuesto nombre del Soldado se
divulgó contra otro papel de dicha religiosa”, así como “complacer
el genio de una mujer introducida a theóloga y scripturista”. 20 Por
todo esto, sugirió que se prohibiera el sermón y que se recogieran
los ejemplares, pero el Tribunal no hizo nada hasta 1694, cuando
Palavicino solicitó un puesto de calificador en el Santo Oficio.
Entonces los inquisidores determinaron retirar La Fineza Mayor y
reprender al autor “agria y severamente para que se abstenga de
predicar semejantes disparates”. 21
Por otra parte, Palavicino no fue el único defensor de Sor Juana
en contra del “Soldado”. Serafina de Cristo escribió una carta el 1 de
febrero de 1691 para elogiar a la monja jerónima y denunciar a
su censor. Sin embargo, se han hecho diferentes interpretaciones
de la epístola por la forma como está escrita; llena de alusiones,
elusiones y metáforas. Para Elías Trabulse, el primero en publicar
y analizar dicha carta, ésta fue realizada por la misma sor Juana
bajo el seudónimo de Serafina de Cristo y su destinatario era el

19 Nació en la ciudad de México y formó parte de la Provincia de Santiago de


la Orden de Predicadores, donde dio clases de filosofía y teología. Además, fue
reconocido como un gran orador y calificador de la Inquisición, “aceptado con el
mayor aprecio por su intervención en causas gravísimas y dificultosas” (Eguiara,
1986: 557-558).
20 AGN, Inquisición, vol. 525, 1.ª parte, fl. 256v. y 257v.
21 AGN, Inquisición, vol. 525, 1.ª parte, fl. 259v.

296
obispo de Puebla, Manuel Fernández de Santa Cruz. Según su aná-
lisis, en ella revelaba que el impugnado en la Carta Atenagórica no
era Vieira, sino su ex-confesor, Antonio Núñez de Miranda, quien
además había escrito la diatriba en su contra con el sobrenombre
del “Soldado”.22 Sin embargo, Alatorre y Tenorio (1998) debatieron
ampliamente los argumentos de Trabulse y después de un profundo
análisis filológico determinaron que el autor fue quizá el padre
Juan Ignacio de Castorena y Ursúa y la destinataria indudable-
mente Sor Juana. Según dicha interpretación, la idea desarrollada
en la Carta de Serafina de Cristo es que la Carta Atenagórica “había
dejado fuera de combate al Sermón del mandato”. Aunque no se
menciona mucho a Vieira en esta misiva, algunos párrafos merecen
atención, como éste con el que inicia:

Vistas las athenagóricas cuentas que Vmd. le ajustó al orador


más cabal entre los de maior cuenta del mundo, registré la summa
de aquella numerosa Carta en el Epítome platónico de doña María
de Ataide ¡Buena idea! Dicha señora (que Dios aya, después de
aver dado cuenta a Dios) sale a la luz a ajustar las honrras del
celebérrimo Revmo. P. Antonio de Viera [sic]. ¡Buena idea – vuelvo
a decir – del divino platónico juicio del Author, que en la fama
común es gloria singular de su [Orden]! Parece ser la idea plató-
nica contar con los muerto[s al] vivíssimo P. Vieira, pues celebra
sus honras la misma a quien él mismo predicó las exequias. Parece
que se inclina allí a la tierra, mustia flor, la maravillosa fama de
su gloria. Lo cierto es que, en la siempre florídissima vega de los

22 Elías Trabulse fue el primero en publicar y analizar la Carta de Serafina de


Cristo, documento descubierto en 1960 por el jesuita Manuel Pérez Alonso en la
librería anticuaria de don Antonio Guzmán en Madrid. Presentó los primeros resul-
tados de su investigación en el Coloquio Internacional Sor Juana Inés de la Cruz
y el Pensamiento Novohispano de 1995 y después volvió sobre el asunto en tres
estudios diferentes (1995a, 1995b, 1996).

297
ingenios, nunca pudo ser cyprés defunto, sino siempreviva, y aun
inmortal, la gloria de su fama. (Alatorre y Tenorio, 1998: 37) 23

En este fragmento se alude al sermón predicado por Antonio


Vieira en las exequias de Doña María Ataíde, hija de los condes
de Atouguia y dama de palacio, en el Convento de San Francisco
Xabregas de Lisboa en 1650. Este discurso se publicó suelto varias
veces en portugués (1650, 1658 y 1659), y en castellano en dos
colecciones de sermones: Aprovechar Deleytando (1660 y 1661) y el
segundo tomo de los Sermones Varios (1664 y 1678). Por lo tanto,
probablemente tuvo una gran difusión en la Monarquía Hispánica
antes de 1690. En otro párrafo, Serafina de Cristo menciona “que ha
salido no sé qué Soldado Castellano a la demanda del valentíssimo
Portugués”. Es decir, agregó el adjetivo “castellano” al conocido
sólo como el “Soldado”. Más adelante nombra a otro censor, pero
esta vez de un sermón de Vieira:

Díxele entonces que me parecía muy bien el juicio de no pa-


recer; que se quedasse el buen soldado en paz; o que se fuera a
Guerra, que a mano está la Quaresma, donde hallaría bien en qué
batallar, y que allí viera un juicio de Dios contra el suyo, y viera
sin duda allí a Guerra galana lo bastante para no salir con la suya
a guerra viva. (Alatorre y Tenorio, 1998: 38)

Serafina de Cristo se refiere al trinitario fray Manuel Guerra,


quien publicó en Madrid en 1679 un sermón llamado El Juicio,
cuya materia fue demostrar que el juicio de Dios era “mucho más

23 Utilicé la transcripción realizada por Alatorre y Tenorio porque enmendaron


algunas de las erratas que aparecían en la versión facsimilar publicada por Elías
Trabulse (1996).

298
terrible” que el de los hombres. 24 En él, Guerra impugnó una pro-
posición de Vieira incluida en el “Sermón de la Segunda Dominica
de Adviento”, donde mencionó que “el juicio de los hombres es
más temeroso que el juicio de Dios” (1678, II: 2). 25 El Trinitario se
pregunta si el jesuita realmente sentía lo que escribía, porque “si
no lo siente es mentiroso”, pero si lo siente “es poco Christiano:
por un lado cae en un engaño muy feo, por otro se roza en un
assenso muy torcido” (Guerra,1679: 156-157). Según Luisa Trias
Folch, como el texto del proceso inquisitorial de Vieira circulaba
por España, Guerra probablemente sabía que dicha proposición
fue censurada por los inquisidores lusos, quienes la calificaron
de errada y escandalosa porque daba ocasión a que los pecadores
“así como no temen el ser juzgados por los hombres y castigados
como sus culpas merecen, mucho menos teman al juicio y castigo
de Dios” (Muhana, 1995: 335). Además, cuando realizó su sermón de
El Juicio, Guerra era el portavoz ideológico de Juan José de Austria
(1629-79), hijo natural de Felipe IV y enemigo del jesuita Everardo
Nithard, consejero de la reina regente Mariana de Austria. Para
Trias Folch, como los ignacianos permanecieron fieles a la Reina
y su consejero cuando el príncipe llegó al poder en 1677, Guerra
decidió complacerlo impugnando el discurso del predicador más
destacado de la Compañía de Jesús y defensor de la “Restauração”
de Portugal, ya que Don Juan trató de reconquistar ese reino entre
1661 y 1664 (Trias Folch, 2001: 77).
Finalmente, como Pedro Muñoz de Castro, Serafina de Cristo
menciona en la última parte de su texto que quizá todo el error

24 Fray Manuel Guerra y Ribera (1638-1692) perteneció a la Orden de la Santísima


Trinidad Redención de Cautivos, fue doctor en Teología y catedrático de Filosofía
en la Universidad de Salamanca, así como predicador real de Carlos II desde 1676
(Guerra,1679: prólogo).
25 Alatorre y Tenorio señalan que Guerra impugnó el Sermón del Juicio (1998:
51). Sin embargo, en éste no aparece la proposición debatida por el trinitario
Manuel Guerra.

299
de la Carta Atenagórica se encontraba en la impresión del Sermón
del Mandato que leyó Sor Juana. Sin embargo, no se refiere a la
versión incluida en los Sermones Varios de 1678, sino a la edición
suelta de 1680 porque habla de “un hijo que anda solo y desca-
rriado”. Además, considera como el principal error de Vieira haber
pretendido corregir las opiniones de los Santos Padres:

Todo el yerro ha estado, dicen, en la impresión del Sermón


celebérrimo de las finezas de Christo, donde se erró no sólo el
partum y el patrum, sino todo lo demás: erróse allí el nomen,
porque dicho sermón no es el del ingeniosíssimo y casi divino
P. Antonio de Vieira; érrose el tamen, porque no tiene uno, sino
muchos peros; errósse el haude leve, porque lo es en sus rasones;
errósse el partum, porque no es parto legítimo ni hijo de tan gran
padre; pero la principal errata estuvo en el patrum: fue gran yerro
corregir a los padres. (Alatorre y Tenorio, 1998: 41)

Por otro lado, algunos de los enigmas de la Carta de Serafina


de Cristo se aclararon con el descubrimiento de otra defensa de Sor
Juana en contra de la censura del “Soldado”, escrita por un autor anó-
nimo el 19 de febrero de 1691 y cuyo título es Discurso Apologético
en respuesta a la Fe de Erratas Que Sacó Un Soldado sobre la Carta
Atenagórica de la Madre Juana Inés de la Cruz.26 Éste comienza con
un elogio a Antonio Vieira y también menciona la posibilidad de
que el sermón impugnado no sea suyo o sea una versión adulterada:

Has [de] saber, pues, que avrá más de 40 años, que el Reve-
rendísimo Padre [A]ntonio de Vieyra, honra de la Religión Jesuita,

26 Este documento también fue descubierto en la Biblioteca Nacional de Perú


en 2002 por José Antonio Rodríguez Garrido, quien lo reconstruyó y publicó junto
con la Defensa de Pedro Muñoz de Castro (2004: 155-186).

300
[g]loria de la nación portuguesa, y Féniz de las capa[ci]dades
humanas predicó, entre muchos que al mesmo [inte]nto ha dado
a las prensas, un sermón del Mandato [que s]e hallará en el tomo
tercero de sus obras al folio 119, aunque en esto hay variedad de
opiniones, sobre si es legítimo [o] adúltero o expuesto, o si él
anda entre las obras y con el nombre del autor, y con esto basta
para que se lleve las atenciones de la admiración y del aplauso.
(Rodríguez, 2004: 155)

Posteriormente el autor del Discurso Apologético comenta el con-


tenido del Sermón del Mandato y señala que circuló “impresso en
varias partes y en diferentes idiomas”. Aunque, como se mencionó
antes, sólo se publicó traducido al castellano en Madrid. Además,
afirma que anduvo “en manos de pontífices, cardenales, reyes,
príncipes, arzobispos, obispos y otr[os] prelados; aviendolo leído
personas de dotrina, de eru[di]ción, de zelo y escrúpulo”, recibiendo
el aplauso común y sin reparo, hasta que llegó a manos de Sor
Juana. Sin embargo, asegura que la Carta Atenagórica no es una
impugnación en contra de Antonio Vieira: “porque fuera de no [te]
ner dicha Madre el espíritu de contradicción, es una [Se]ñora mui
hija de la Religión Jesuita, y mui inclinada a la nación portuguesa,
y siendo el Padre Vieyra portugués y siendo jesuita, no cabía que
fuesse contradicción aqu[el] papel” (Rodríguez, 2004: 156-157).
Después menciona algunas críticas y defensas que conoció de
la Carta Atenagórica (Rodríguez, 2004: 155). Según el autor del
Discurso, los defensores de Sor Juana mostraron buen juicio y fueron
dignos de respeto; los que se opusieron, “sin faltar a la atención
con urbanidad”, hicieron gala de su entendimiento y merecieron
aplauso; pero el Soldado no se ganó ni el respeto ni el aplauso,
porque replicó a la Jerónima “con grosería, con baxeza y sin de-
coro”. De hecho, sugiere comparar su texto con el de Pedro Muñoz
de Castro, quien sin reparo lo firmó y defendió a Vieira sin insultar

301
a sor Juana. De la misma manera, un tal Caravina, “sin ofender a
la soldadesca, [de]fendió el claustro, pues aviendo limado su dis-
curso, [le] exprimió al Soldado la naranja para cortarle la co[ro]na”
(Rodríguez, 2004: 159). Entre los opositores también citó a Doña
María Ataíde “o resucitada o aparecida”, es decir, un personaje que
utilizó este nombre para defender a Vieira. Con este dato se con-
firma que en el párrafo inicial de la Carta de Serafina de Cristo
se alude al título de una obra: Epítome Platónico de María Ataíde.
En cuanto a Serafina de Cristo señala que es “d[e] las Descalsas,
aunque ella se firma de las Gerónimas”, quizá refiriéndose a su
orden religiosa. Al final, menciona los textos de “Mari Dominga”,
“el cura” y “el capellán”, pero no ofrece mayor información.
Por otra parte, el último texto escrito durante los años álgidos de
la polémica (1690-1691) fue la Respuesta a Sor Filotea de la Cruz de
Sor Juana. El 1 de marzo de 1691 respondió a la Carta de Sor Filotea
de la Cruz, agradeciéndole primero por la publicación de la Carta
Atenagórica. Después cita un pasaje de San Juan Evangelista que
dice, “si hubiera de escribir todas las maravillas que obró nuestro
Redentor, no cupieran en todo el mundo los libros” ( Jo 21, 25); y
enseguida menciona una sentencia del jesuita portugués sobre dicho
pasaje, “y dize Vieyra sobre este lugar, que en sola esta clausula dixo
más el Evangelista, que en todo quanto escribió”. Sor Juana está
de acuerdo con el “Fénix Lusitano” y termina preguntando “¿pero
quando no dize bien, aun quando no dice bien?” (Cruz, 1989: 117).
Asimismo, responde a Sor Filotea que recibió en el alma la ex-
hortación de aplicar sus estudios a los textos religiosos que, aunque
venía “en traje de consejo”, tenía para ella “sustancia de precepto”.
Sin embargo, aclara que “no ha sido de desafición, ni de aplicación
la falta, sino sobra de temor, y reverencia debida a aquellas Sagradas
Letras” (Cruz, 1989: 118-119). Después le ofrece abundantes datos
sobre su vida, para explicarle de dónde provenía su inclinación
por el estudio. Además, le comenta que entre las flores de las acla-

302
maciones no faltaron las persecuciones por su “habilidad de hazer
versos, aunque fueran sagrados” (Cruz, 1989: 133). Incluso algunas
personas solicitaron que se le prohibiese escribir argumentando
que las mujeres no debían enseñar en la Iglesia, como declaró
San Pablo. No obstante, refuta esta proposición señalando que el
santo sólo se refería a que las mujeres no debían predicar, pero
no prohibió que escribiesen. En la última parte de la Respuesta a
Sor Filotea, Sor Juana le pregunta al obispo cuál fue entonces su
delito si no se atrevió a enseñar ni siquiera escribiendo, aun cuando
era lícito a las mujeres. Luego hace esta larga aclaración sobre la
Carta Atenagórica:

Si el crimen está en la Carta Athenagorica, fue aquella más


que referir sencillamente mi sentir, con todas las venias, que
debo a nuestra Santa Madre Iglesia. Pues si ella, con su santísima
autoridad, no me lo prohíbe, porque me lo han de prohibir otros?
Llevar una opinión contraria de Vieyra, fue en mi atrevimiento, y
no lo fue en su Paternidad, llevarla contra los tres Santos Padres
de la Iglesia? Mi entendimiento, tal, qual, no es tan libre, como
el suyo, pues viene de un solar? Es alguno de los principios de la
Santa Fe revelados su opinión, para que le ayamos de creer a ojos
cerrados? Demos, que yo, ni falte al decoro, que tanto Varon se
debe, como aca ha faltado su defensor, olvidado de la sentencia
de Tito Livio: Artes committatur decor. Ni toqué a la Sagrada
Compañía en el pelo de la ropa; ni escribí más, que para el juicio
de quien me lo insinuó: y según Plinio: Non similis est conditio
publicantis, & nominatim dicentis. Que si creyera se avia de pu-
blicar, no fuera con tanto desaliño, como fue. Si es (como dice el
censor) Heretica, por que no la delata? Y con esso el quedará ven-
gado, y yo contenta, que aprecio (como debo) más el nombre de
Catholica, y de obediente hija de mi Santa Iglesia, que todos los
aplausos de docta. Si está bárbara (que en eso dizze bien) riase,

303
aunque sea con la risa, que dizen, del conejo; que yo no le digo,
que me aplauda, pues como yo fui libre para dissentir de Vieiyra,
lo será cualquiera para dissentir de mi dictamen. (Cruz, 1989: 133)

Se trata de un párrafo largo, pero que no necesita mayor expli-


cación. Sor Juana concentra en este fragmento su respuesta a los
críticos de la Carta Atenagórica y se dirige especialmente al “Soldado”,
quien faltó al decoro “que tanto Varón se debe”. Por otra parte, la
Respuesta a Sor Filotea de la Cruz circuló manuscrita y no generó
ningún tipo de réplica por parte de los defensores del Sermón
del Mandato de Antonio Vieira en la Nueva España. En 1700, Juan
Ignacio de Castorena y Ursúa la incluyó en el tercer tomo de las
obras completas de Sor Juana, Fama, y Obras Póstumas del Fénix
de México. En éste se difundió por el Viejo y el Nuevo Mundo
en las diferentes reediciones que se realizaron en Madrid (1700,
1714 y 1725), Lisboa (1701) y Barcelona (1701). Aparentemente,
la Respuesta sosegó por más de 30 años la polémica desatada por
la Carta Atenagórica, aunque más tarde resurgieron algunas voces
recordando el asunto tanto en España como en Portugal.

Consideraciones finales
En la actualidad, algunos estudiosos de la polémica por el
Sermón del Mandato señalan que la Carta Atenagórica de Sor Juana
acabó con el discurso de Vieira. Además, por lo menos en España
e Hispanoamérica la importancia que tiene la monja mexicana
sobre todo en el ámbito literario ha eclipsado el recuerdo de
las obras del jesuita portugués y el impacto que tuvieron en la
Monarquía Hispánica entre los siglos xvii y xviii . En ese sentido,
se podría afirmar que Sor Juana no sólo ganó el debate teológico
sino también el del recuerdo histórico, o por lo menos en esta
parte del orbe. Sin embargo, cuando se profundiza un poco más
en el tema es posible advertir que Vieira salió mejor librado de la

304
controversia desde la opinión de sus contemporáneos. Sor Juana
tuvo que enfrentar las críticas por atreverse a impugnar al orador
católico más importante de su tiempo, por ser mujer y por tener la
osadía de escribir ya no sólo obras profanas, sino también sobre
teología. En cambio, Antonio Vieira era el predicador más señalado
en el mundo ibérico y, por lo tanto, ni siquiera tuvo que asumir
su defensa en contra de los argumentos de la religiosa jerónima.
Como se señaló en un principio, las apologías del sermón de
Vieira e incluso los textos que se escribieron para defender la carta
de Sor Juana demuestran que su obra era muy conocida en la Nueva
España y que él tenía un estatus de autoridad en el ámbito de la
oratoria sagrada. Así lo confirman también las múltiples ediciones
de sus libros impresas en España, las cuales circularon por el vi-
rreinato y fueron leídas desde diferentes perspectivas. Aquí sólo se
analizó la teológica, pero diversas fuentes permiten afirmar que sus
sermones fueron utilizados por los predicadores novohispanos para
crear sus propias piezas oratorias. A través de la red de colegios
jesuitas, los textos pasaron por los colegios, casas y misiones de
la Compañía de Jesús. Sin embargo, también se distribuyeron en
las instituciones de otras órdenes religiosas y entre los miembros
del clero secular, difundiéndose así entre todos los miembros del
cuerpo eclesiástico en el virreinato. No obstante, las ediciones que
llegaron a estas tierras lo hicieron expurgadas de las ideas políticas
y proféticas del autor consideradas no aptas para circular por las
posesiones hispánicas.
Por otro lado, al abordar este tema también se demostró cómo las
ideas circulaban a través de los libros por las monarquías ibéricas a
ambos lados del Atlántico. Dicho movimiento era propiciado por la
cercanía tanto geográfica como política, lingüística y cultural entre
los habitantes de ambos reinos y sus posesiones. Por lo general, a
la distancia estos lugares se consideran muy diferentes e incluso
contrarios, cuando en términos históricos su desarrollo fue bastante

305
cercano, lo que derivó en mayores similitudes en comparación con
los territorios conquistados por los Ingleses.

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308
IX
C i ê n c i a e N at u r e z a
(Página deixada propositadamente em branco)
O Padre António Vieira e a ciência

Father António Vieira and Science

Carlos Fiolhais
Universidade de Coimbra
ORCID | 0000-0002-1527-0738

Resumo
Discute-se a relação entre o Padre António Vieira e a ciência a
partir de referências científicas encontradas na sua obra completa.
Vieira, contemporâneo de alguns dos grandes nomes da revolução
científica (Galileu, Kepler, Descartes e Newton), revela-se a par
de alguns dos desenvolvimentos científicos da época. Tem a per-
feita noção de que os Descobrimentos portugueses permitiram o
alargamento do conhecimento científico. Faz referências à super-
nova de Kepler, na qual vê presságios de futuro, ao sistema de
Copérnico, embora sem o defender como fez de modo arriscado
Galileu, e a cometas, que serviram a Newton para sustentar a sua
teoria da gravitação universal, para além de referir o arco-íris,
um fenómeno descrito por Descartes e Newton. São de relevar
as suas várias observações de cometas, que ele vê como “sinais
de Deus”. Vieira não é um cientista nem tem intenções cientí-
ficas, mas serve-se da ciência moderna então emergente como
meio de persuasão nas suas obras proféticas, sermões e cartas.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_14
Palavras-chave: ciência; revolução científica; heliocentrismo;
cometas; arco-íris

Abstract
We discuss the relationship between Father António Vieira
and science on the basis of scientific references found in his
Complete Works. Vieira, a contemporary of some great names
of the Scientific Revolution (Galileo, Kepler, Descartes and
Newton), is aware of some developments of the science of the
time. He has the perfect notion that the Portuguese Discoveries
enabled to increase scientific knowledge. He makes references
to the supernova of Kepler, in which he sees future portents,
the Copernicus system, though without defending heliocentrism
as Galileo temerarily did, and comets, which allowed Newton to
put forward his theory of universal gravitation, besides referring
the rainbow, a phenomenon described by Descartes and Newton.
His various observations of comets, which he saw as “signs of
God”, should be pointed out. Of course Vieira was not a scientist
and his intentions were not scientific, but he uses the then
emerging modern science as persuation means in his prophetic
works, sermons and letters.
Keywords: António Vieira; Science; Scientific Revolution; helio-
centrism; comets; rainbow

1. Introdução
O Padre António Vieira (1608-1697) viveu numa época de ouro
da ciência, a época da chamada revolução científica, na qual sobres-
saíram grandes nomes das ciências físicas e matemáticas, como, por
ordem cronológica da sua data de nascimento, o italiano Galileu
Galilei (1564-1642), o alemão Johannes Kepler (1571-1630), o francês

312
René Descartes (1596-1650), e o inglês Isaac Newton (1643-1727). 1
Para perceber melhor a contemporaneidade de Vieira e destes
cientistas, refira-se que Vieira tinha apenas 1 ano quando Galileu,
em 1609, olhou pela primeira vez para o céu com o telescópio, 24
quando publicou o Dialogo sopra i Due Massimi Sistemi del Mondo e
25 quando, em 1633, foi julgado pela Inquisição, por ter nesse livro
defendido o heliocentrismo. Foi no ano do julgamento de Galileu,
em Roma, que Vieira pregou os seus primeiros sermões em público,
na cidade de Salvador, no Brasil. Vieira não era ainda nascido quando,
em 1604, Kepler viu, a olho nu, uma supernova, mas já tinha 19 anos
quando Kepler publicou as Tabulae Rudolphinae, compilando as
observações astronómicas recebidas do seu mestre, o astrónomo
dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601). Nesse ano de 1627 Vieira,
revelando a sua precocidade, já ensinava Retórica no Colégio de
Olinda. Tinha 29 anos quando Descartes publicou o Discours de la
Méthode e 56 quando, em 1664, foi publicada a grande obra póstuma
cartesiana Traité du Monde et de la Lumière.2 Em 1664 Vieira estava
em Coimbra, por ordem da Inquisição, escrevendo secretamente a
História do Futuro, a qual, tal como o Traité du Monde, só sairia
postumamente. Tinha, finalmente, 57 anos em 1665, quando Newton
iniciou as suas experiências sobre a luz servindo-se de um prisma,
e já 79 quando, em 1687, o sábio inglês publicou a sua obra maior
Philosophiae Naturalis Principia Mathematica. Nesse ano Vieira
estava de novo no Brasil, quase a ser nomeado visitador-geral das
missões nesse território.
Não sendo um cientista, Vieira estava a par da ciência do seu
tempo, tanto pela preparação que adquiriu no Colégio da Baía, no

1 Usa-se o calendário gregoriano, que foi instaurado em Portugal e no mundo


em 1582.
2 O atraso na publicação deveu-se ao “caso Galileu”, já que Descartes também
defendia o heliocentrismo.

313
Brasil (que era um dos nós da rede global dos colégios jesuítas 3),
como pelas numerosas leituras que fez ao longo da sua extensa
vida, assim como pelas observações geográficas, meteorológicas e
astronómicas que teve a oportunidade de realizar na Europa e no
Brasil. Aos seus conhecimentos científicos foi buscar exemplos que
serviram no seu discurso catequético, epistolar e profético.
Nos textos de Padre António Vieira com referências à ciência
encontram-se referências a autores antigos, como Aristóteles (384-
-322 a.C.), cujas obras eram, em muitos conteúdos, a cartilha nas
escolas jesuítas (ver, e.g., Conimbricenses, 1592-16064), e a autores
modernos, como alguns dos nomes referidos. Vieira foi moderno
em muitos outros aspetos, não apenas no que toca à atualidade da
informação que recolhia, mas também no que respeita à sua atenção
à realidade natural, de acordo com o espírito observacional que
despontava na época e que foi muito ajudado pelos Descobrimentos
portugueses. Viajante por três vezes ao Brasil e conhecedor da
paisagem subtropical, enfatizou o extraordinário valor que as
observações dos portugueses de novas terras, novas espécies e
novas gentes traziam à humanidade. De facto, o conhecimento
empírico passou a contrapor-se, logo nos sécs. xv e xvi , ao saber
das antigas autoridades, propiciando o posterior aparecimento da
revolução científica. No “Sermão da Terceira Dominga do Advento”,
pregado na Capela Real em 1650, disse:

Nenhuma coisa houve mais assentada na antiguidade, que


ser inabitável a Zona tórrida: e as razões, com que os Filósofos
o provavam, eram ao parecer tão evidentes, que ninguém havia
que o negasse. Descobriram finalmente os Pilotos, e marinheiros

3 Eram regidos pelos mesmos métodos pedagógicos, definidos na famosa


Ratio Studiorum.
4 Sobre os Conimbricenses e a sua influência no mundo ver Casalini, 2016.

314
Portugueses as costas da África, e da América, e souberam mais, e
filosofaram melhor sobre um só dia de vista, que todos os Sábios,
e Filósofos do mundo em cinco mil anos de especulação. Os dis-
cursos de quem não viu são discursos: os ditames de quem viu
são profecias. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, I: 262)

Um bom exemplo da contraposição entre os saberes antigos e


modernos é a existência humana nos antípodas. Vieira afirma que
os portugueses sabiam bem mais sobre o assunto do que os antigos:

Já disse que acerca da Zona Tórrida, e dos Antípodas, ensi-


naram os pilotos Portugueses ao mundo, sem saberem ler nem
escrever, o que não alcançou Aristóteles nem Santo Agostinho,
pela diferença dos tempos. E sendo o tempo como confessam os
mesmos Padres o melhor intérprete das profecias; bem pode acon-
tecer sem maravilha, e cuidar-se sem presunção, que um homem
muito menos sábio possa entender depois do discurso de largos
anos, e sucessos, algumas profecias, que os Antigos sapientíssimos
e santíssimos por falta destas notícias não alcançaram. (Franco &
Calafate, 2013-2014, III, IV: 439)

Neste artigo analisamos as relações entre Vieira e os grandes


nomes da ciência do séc. xvii . 5 Começamos por Galileu, que foi
advogado da visão heliocêntrica do polaco Nicolau Copérnico (1473-
-1543), que aliás Kepler, Descartes e Newton também sustentaram.
Passamos depois para as referências que faz a Kepler, designada-
mente na História do Futuro, aproveitando para discutir a questão
da astrologia no quadro do catolicismo. Em seguida, abordamos a
relação com Descartes, que se revela nas referências ao arco-íris

5 Usamos alguma da informação reunida em Fiolhais, 2017. Um resumo deste


trabalho está em Fiolhais, 2016.

315
nalguns sermões. Apresentamos, a propósito de Newton, as várias
observações que Vieira fez de cometas, cujas aparições eram para
ele “sinais de Deus”. Por último, deixamos algumas conclusões.

2. Vieira e Copérnico
Apesar de conhecer o sistema de Copérnico, o Padre António
Vieira não foi copernicano. De facto, no seu tempo praticamente
ninguém o era em nenhum sítio do mundo. 6 Galileu foi o mais fa-
moso dos poucos adeptos do heliocentrismo nos sécs. xvi e xvii .
Foi no ano de 1609 que dirigiu pela primeira vez para o firmamento
a luneta que ele próprio construiu. Viu coisas extraordinárias como
manchas no Sol, montanhas na Lua e luas de Júpiter. A observação
que fez das luas de Júpiter foi, se não uma prova do sistema he-
liocêntrico que tinha sido proposta por Copérnico mais de meio
século antes, pelo menos uma indicação da sua plausibilidade, já que
havia, comprovadamente, para além da Terra, um outro astro com
luas em sua órbita. Vieira, embora conhecendo a tese de Copérnico,
defendida passadas décadas por Galileu com a bem conhecida
oposição eclesiástica, não a sustentou, como aliás seria de esperar
de um ministro da Igreja de Roma. Mas Vieira não menosprezou o
poder explicativo do sistema heliocêntrico, que poderia ser enca-
rado como hipótese matemática. Sobre ele afirmou, no “Sermão da
Primeira Dominga do Advento”, pregado na Capela Real em 1652:

Copérnico, insigne Matemático do próximo século, inventou um


novo sistema do mundo, em que demonstrou, ou quis demonstrar
(posto que erradamente) que não era o Sol o que se movia, e
rodeava o mundo, senão que esta mesma terra, em que vivemos,

6 O sistema que prevalecia nos círculos científicos naquela época era o de Tycho
Brahe, um sistema intermediário entre o de Ptolomeu e o de Copérnico, com os
planetas girando em volta do Sol, mas com o Sol e a Lua girando em volta da Terra.

316
sem nós o sentirmos, é a que se move, e anda sempre à roda.
De sorte, que quando a terra dá meia volta, então descobre o Sol,
e dizemos que nasce, e quando acaba de dar a outra meia volta,
então lhe desaparece o Sol, e dizemos que se põe. E a maravilha
deste novo invento é que na suposição dele corre todo o governo
do universo, e as proporções dos astros, e medidas dos tempos
com a mesma pontualidade, e certeza, com que até agora se
tinham observado, e estabelecido na suposição contrária. (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, I: 181-182)

Apesar de apontar o “erro” do esquema copernicano, atente-se na


sua expressão elogiativa: “a maravilha do novo invento”. No “Sermão
da Dominga Décima Sexta post Pentecosten”, dito na Capela Real em
1651, Vieira já antes tinha esclarecido que Copérnico estava errado
por contrariar a Bíblia:

Opinião foi antiga de muitos Filósofos que não era o Sol o


que se movia, e dava volta ao mundo, senão que permanecendo
sempre fixo, e imóvel, esta terra em que estamos é a que, sem nós
o sentirmos, se move, e nos leva consigo [...]. Mas esta opinião,
ou imaginação matemática, assim como ressuscitou em nossos
tempos, assim foi também condenada como errónea, por ser
expressamente encontrada com as Escrituras divinas. (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, V: 287)

Em Portugal, as ideias heliocêntricas, embora tivessem sido no


séc. xvi do conhecimento de Pedro Nunes (1502-1578), professor
de Matemática da Universidade de Coimbra e “cosmógrafo-mor
do Reino”, demoraram muito tempo até encontrarem acolhimento
generalizado (Albuquerque, 1973; Carvalho, 1997; Leitão, 2002).
Na segunda metade do séc. xviii , o padre oratoriano Teodoro de
Almeida, que escreveu o primeiro livro de física em português, a

317
Recreação Filosófica, que tinha intuitos de divulgação científica, hesita
bastante antes de defender o heliocentrismo (Almeida, 1762), decerto
por saber as reações que esse sistema tinha tido e ainda tinha no
seio da Igreja. Com efeito, o livro de Copérnico só saiu do Index em
1758. Em finais do séc. xviii era visto com muitas reservas entre nós:
Rómulo de Carvalho refere um livro de 1788 em uso nos Oratorianos
que ainda defendia o sistema geocêntrico (Carvalho, 1985).

3. Vieira e Kepler
Kepler ficou sobretudo conhecido por ter descoberto as três
leis matemáticas do movimento planetário ao qual foi dado o seu
nome, baseado nas observações astronómicas feitas por Tycho
Brahe. Os trabalhos de Kepler haveriam de se revelar essenciais
para a unificação da “física dos céus” com a “física da Terra” em-
preendida em 1687 por Newton. Kepler, apesar de ser um autor
moderno, tinha assomos de misticismo. Era um astrónomo, mas
fazia horóscopos para ganhar dinheiro.
Tal como tinha acontecido com o seu mestre Tycho no ano de
1572, Kepler teve a sorte de ter avistado, em outubro de 1604, uma
“nova” ou supernova (conhecida hoje por SN1604), que, sabemos
hoje, é a explosão de uma estrela bastante maciça. Observou com
atenção o que chamou “nova estrela”. 7 Do ponto de vista astroló-
gico, 1603 marcava o começo de um “trígono de fogo”, o início
de um ciclo de grandes conjunções de aproximadamente 800 anos
(os dois períodos anteriores tinham sido associados à coroação
de Carlos Magno e ao nascimento de Cristo). Kepler publicou em
1606 o livro Stella Nova, descrevendo o fenómeno. Para ele o apa-
recimento da nova estrela significava a falsidade da antiga teoria
da imutabilidade dos céus.

7 Na altura pensava-se que se tratava do nascimento de uma estrela, mas era,


de facto, o início da morte dela.

318
Fig. 1. Nova estrela (I, em cima) descoberta por Tycho Brahe em
11 de novembro de 1572, segundo representação do
próprio, no seu livro De Nova Stella, de 1573.

Kepler é um dos cientistas modernos mais citados por Vieira.


Por exemplo, refere-o na sua História do Futuro, assim como Tycho,
incluindo esses “matemáticos” na categoria dos profetas. Vieira foi
autor de um discurso místico, que divergia do de Kepler por não
ter nem motivação nem objetivos científicos, mas que se apoiou
nalguns dados da ciência. Naquela obra discute as duas “novas”,
a de Tycho (Fig. 1) e a de Kepler. Não tem dúvidas de que elas
trazem notícias de Deus, escrevendo numa anotação ao livro Stella
Nova de Kepler: “Que costuma Deus por sinais falar e avisar aos
homens. E porquê? Porque quer que se conheça que são efeitos
de Sua providência, e não acasos” (Franco & Calafate, 2013-2014,
III, I: 308). Sobre o sentido desses sinais, Vieira não se coibiu de
especular, invocando para legitimar as suas teses os escritos dos
“matemáticos”. Ele conhecia o livro de Kepler sobre a nova estrela.
Afirmou sobre a “nova” de 1604 que “não houve semelhante coisa
no céu, depois da criação do mundo” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, III, I: 308). E não hesitou em associá-la à Restauração de
Portugal, país que segundo ele haveria de ser a sede do Quinto
Império. Num dos seus sermões não pronunciado, oferecido à

319
rainha, salientou que o rei D. João IV tinha nascido no ano da
estrela de Kepler, acrescentando:

E significava mais alguma coisa a mesma Estrela nova? Duas


coisas, e duas novidades as maiores que nunca viu, e há muitos
anos espera ver o mundo. A primeira, que na Cristandade se
levantaria uma nova Monarquia, que dominaria, e seria senhora
de todo o universo. A segunda, que esta Monarquia, e o seu
Monarca seria o que destruísse, e extinguisse a Seita, e Império
Maometano. Assim o diz expressamente o já alegado Keplero,
Matemático famoso deste século, que com a mesma Estrela diante
dos olhos observando todos os movimentos seus, e dos outros
astros, compôs dela um eruditíssimo Livro, no qual descendo à
declaração, e juízo de seus efeitos, ou influídos, ou significados,
primeiro é este:
[…] Quer dizer: que desde o ano de seiscentos e quatro, em
que aquela Estrela apareceu no Céu, começava a nascer, e se
levantar na terra “uma nova República, a qual crescendo com a
idade viria a formar a seu tempo um Império universal, debaixo
de cuja obediência todos os Reinos do mundo, que ao presente
tumultuavam ferozmente em guerras, deporiam as armas, e ele
seria o jugo que os amansasse, e o freio que os contivesse em
paz. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIII: 285)

A doutrina católica impedia os juízos feitos nos horóscopos sobre


o futuro de indivíduos (astronomia judiciária), mas não impedia
profecias a respeito da natureza, de regiões ou de países. Vieira,
alinhado com a doutrina da Igreja, recusava a astrologia judiciária,
mas não se furtava a outras formas de astrologia. Vieira procurou,
de resto, separar astrologia de astronomia, como se verifica no

320
trecho seguinte da Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e à Baía,
escrito no final da sua vida:

Não se chama este juizo astronómico, porque não é nosso in-


tento examinar ou definir a natureza, a matéria, o nascimento, o
lugar, as distâncias, os aspetos, os movimentos, nem algumas das
outras circunstâncias em que curiosamente se empregam as obser-
vações da Astronomia, e muito menos a duração e o caso deste
prodigioso meteoro, pois ainda estão pendentes. Também se não
chama astrológico este juízo, porque reputando nós com os mais
sábios e prudentes professores da mesma arte quão inútil, infru-
tuosa e vã seja aquela parte da Astrologia que, com o nome de
judiciária, costuma entreter os discursos e enganar as esperanças ou
fantasias dos homens, não só seria crime contra a Providência do
Altíssimo, mas desprezo de seus avisos tão manifestos, diverti-los
a considerações ociosas, em que se confundam e percam os efeitos
próprios, e saudáveis, que deve e pode produzir em nós uma causa
tão notável e tão notória. (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 583)

A polémica a respeito das influências celestes sobre a vida dos hu-


manos foi analisada por Luís Miguel Carolino na sua tese A Teoria da
Influência Celeste em Portugal (1593-1755) (Carolino, 2003).8 Segundo
esse autor, em finais do séc. xvi, a existência de influências astrais
ocultas, isto é, para além das influências que são aparentes através do
movimento e da luz, recebia consenso na comunidade dos filósofos
portugueses, designadamente dos autores dos Conimbricenses, os
comentários a Aristóteles da Escola Jesuítica de Coimbra. No entanto,
para a Igreja o futuro era vontade de Deus e Deus tinha de ser res-
peitado, mesmo temido, pelos homens. O papa Sisto V, numa bula de
1586, tinha criticado a ambição humana de conhecer o futuro, pois tal

8 Ver também Camenietzki (1995), Camenietzki (2005) e Carolino & Camenietzki (2006).

321
não passava de uma tentativa de penetrar nos domínios estritamente
reservados à Divindade. Alguns padres jesuítas objetaram nessa altura
de um modo muito claro à astrologia, ao discutirem a questão da
predestinação, isto é, o problema da compatibilidade entre a graça
divina e a liberdade humana de escolha. Para Luis de Molina (1535-
-1600), o famoso inaciano que estudou em Coimbra e ensinou em
Coimbra e Évora na segunda metade do séc. xvi, o homem gozava de
liberdade, sendo responsável pela sua salvação ou pela sua perdição.
O futuro não estava, portanto, escrito nos astros, como pretendia o
determinismo astrológico. Para ele e para outros padres da época a
astrologia não passava de mera superstição ou mesmo idolatria. Já os
protestantes eram mais recetivos à ideia de predestinação: os planos
de Deus não podiam ser limitados pelas ações humanas, sendo lícito
ao homem tentar conhecê-los. A predestinação total, a ideia de que
todo o ser humano tinha o destino traçado por Deus desde o seu
nascimento, tinha sido uma ideia marcante na doutrina calvinista.
A astrologia judiciária, a parte da astrologia que trata de ligar os astros
e o futuro humano, era, portanto, vista com grande desconfiança nos
países católicos, sendo nalguns sítios mesmo proibida, ao passo que
nos países protestantes ela conhecia maior difusão.

4. Vieira e Descartes
A Filosofia Natural de Aristóteles era ensinada no séc. xvii em
todas as escolas jesuíticas. No seu livro Meteorologia, Aristóteles
descreveu com algum rigor o fenómeno do arco-íris: apresenta os
dois arcos, um principal e o outro secundário, cujas cores estão
em ordem inversa, ensaia uma representação geométrica, e refere
até o arco-íris noturno, um fenómeno difícil de observar, causado
pela luz do Sol refletida pela Lua. Em contrapartida, é patente a
falta de rigor: por exemplo, diz que no arco-íris apenas há três
cores: escarlate, verde e púrpura; e, naturalmente, embora falasse
em reflexão, não conseguia explicar o fenómeno.

322
Fig. 2. Representação do arco-íris segundo Descartes na sua obra
Météores, em apêndice ao Discours de la méthode, de 1633.

Descartes apresentou em 1637, num apêndice ao famosíssimo


Discurso do Método, de seu título completo Discurso do Método para
bem Conduzir a Razão e Buscar a Verdade nas Ciências, mais a
Dióptrica, os Meteoros e a Geometria, Que são Ensaios desse Método,
uma descrição científica do arco-íris: este fenómeno não era mais do
que o efeito da refração e da reflexão da luz solar em pequenas gotas
de água na atmosfera, como ele mostra num elucidativo diagrama
(Fig. 2). Os raios de luz solar incidiam numa gota, desviavam-se,
refletiam-se na parede do fundo da gota e voltavam a desviar-se ao
sair. Podiam também refletir-se uma segunda vez, dando origem ao
arco secundário, percebendo-se assim a inversão das cores invertidas.
Ora, Descartes foi, com o holandês Willebrord Snellius (1580-1626),
o autor das leis da refração, que descrevem o desvio da luz quando
passa de um meio para outro, no caso do ar para a água.9

9 A descrição do fenómeno teve, contudo, percursores, nomeadamente o teólogo


e físico alemão dominicano dos sécs. xiii-xiv Teodorico de Freiberg (c.1250-c.1310),
na sua obra De iride et radialibus impressionibus.

323
Mais tarde, Newton, que realizou experiências com prismas de
vidro em 1665 e 1666, veio explicar que o desvio da luz de um meio
para outro se devia à diferente velocidade de diferentes partículas
de luz nos dois meios (para ele, tal como para Descartes, a luz
era feita de pequenas partes). A luz solar é branca, mas, como
a luz branca é feita de partículas correspondentes às diferentes
cores, as cores apareceriam dentro da gota e, ainda mais, à saída
dela. A luz branca seria, portanto, contra todas as evidências,
heterogénea, uma conclusão que Descartes não tinha conseguido
alcançar (para explicar o aparecimento das cores tinha recorrido a
uma complicada ação de vórtices do éter). A teoria corpuscular de
Newton, que ele expôs em 1672 numa carta à Royal Society, conheceu
uma reação desfavorável de Robert Hooke (1635-1703), o que terá
levado Newton a protelar a publicação das suas conclusões sobre
ótica, que ele ensinava em Cambridge, até ao ano de 1704, quando
saiu o seu livro Opticks. Nessa obra explica em profundidade como
a sua teoria corpuscular, disputada por Hooke, explica o arco-íris.
Na altura, a teoria corpuscular já tinha uma concorrente – a teoria
ondulatória, não só de Hooke mas também e principalmente do
holandês Christiaan Huygens (1629-1695). Mas a autoridade de
Newton prevaleceu nos tempos que se sucederam.
Como era visto o arco-íris fora da esfera da ciência? A visão
religiosa dominava. Os fenómenos naturais como o arco-íris eram
considerados, no séc. xvii , na literatura teológica, obras divinas.
O arco-íris era visto como “um dos principais ornamentos do trono
de Deus” 10 e, conforme está escrito no Génesis, era o sinal da
aliança que Deus tinha celebrado com os homens após o dilúvio
universal (“o meu arco que coloquei nas nuvens. Será o sinal da

10 Ver Discours sur l’Histoire Universelle, 1681, do bispo e teólogo francês Jacques
Bossuet (1627-1704). Cf. Bossuet, 1875.

324
minha aliança com a terra”, Gn 9, 13). 11 Ora, num dos Sermões do
Santíssimo Sacramento, dito em S. ta Engrácia, Lisboa, em 1645, es-
cassos oito anos após ter saído o livro de Descartes (não sabemos
se o pregador dele tinha conhecimento), Vieira diz: “Na Íris, ou Arco
celeste, todos os nossos olhos jurarão que estão vendo variedade
de cores; e contudo ensina a verdadeira Filosofia que naquele Arco
não há cores, senão luz, e água” (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
VI: 84). 12
A “verdadeira Filosofia” significava afinal a ciência dos modernos,
entre os quais estava evidentemente Descartes. E, na verdade, as
cores são o efeito da luz ao passar pela água, como Descartes de-
monstrou laboratorialmente usando garrafas de água. Assistimos,
portanto, à inclusão de linguagem científica num discurso religioso.
Mais tarde, no “Sermão da Segunda Dominga da Quaresma”, pregado
na Capela Real em 1651, Vieira afirma: “Isto, que chamamos Céu, é
uma mentira azul, e o que chamamos Íris, ou Arco-celeste, é outra
mentira de três cores” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, III: 49).
Vieira estava certo, embora não conhecesse a fundo a ciência mais
moderna. De facto, sabemos hoje que a cor azul do céu se deve à
difusão da luz branca pelas moléculas que constituem o ar: o céu é,
de facto, preto. E sabemos também que todas as cores do arco-íris13
podem ser obtidas combinando as três cores primárias: vermelho,
azul e verde. As “três cores” de Vieira devem corresponder às três
cores do arco-íris de Aristóteles.
Numa linha científica coerente, Vieira, numa outra sua prédica, o
“Sermão da Quinta Quarta-feira da Quaresma”, dito na Misericórdia

11 Ainda hoje o arco-íris se diz, em português, “arco da velha”: “velha” significa


a velha aliança da Bíblia.
12 Sobre Vieira e o arco-íris ver Fernandes (2008), Menezes e Costa (2012) e
Mourão (1999).
13 Convencionalmente sete, mas na realidade tantas quantas se quiserem, pois
existem todas as cambiantes entre o vermelho e o violeta, descritas modernamente
por um contínuo de comprimentos de onda.

325
de Lisboa em 1669, explica o arco-íris com base na refração da luz,
tal como Descartes tinha proposto: “O rústico, porque é ignorante,
vê muita variedade de cores, no que ele chama Arco-da-Velha; mas
o Filósofo, porque é sábio, e conhece que até a luz engana (quando
se dobra), vê que ali não há cores, senão enganos corados, e ilusões
da vista” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV: 215). Note-se como é
dada primazia ao saber do “filósofo” (filósofo natural, entenda-se)
em relação ao saber comum. Uma das marcas da ciência moderna
é precisamente a ultrapassagem do senso comum: ela é visível em
Descartes e, ainda mais, em Galileu e Newton. Saliente-se, acima
de tudo, que a autoridade da ciência é invocada num sermão seis-
centista português. O arco-íris é real, mas para ele existir têm de
concorrer três coisas numa certa disposição: a luz solar, as gotas
de água na atmosfera e os olhos do observador. A observação do
arco-íris é um fenómeno individual, mas todos os observadores
vêem algo semelhante. Cada um deles terá sempre um arco-íris em
torno de si, fornecendo as leis da ótica um quadro unificado para
todas as observações individuais.

5. Vieira e Newton
No séc. xvii os cometas estavam na moda, tendo o apareci-
mento de alguns sido notado pelos astrónomos, agora dotados de
telescópios. Os Principia (Newton, 1687) indicam como calcular
as órbitas muito alongadas de cometas. Edmond Halley (1656-
-1742), um contemporâneo e seguidor de Newton, verificou a
periodicidade do cometa que hoje tem o seu nome, prevendo o
seu aparecimento posterior. 14
Vieira, que não faz referências a Newton, foi um observador de
cometas. Forneceu até contribuições à ciência ao deixar registos

14 Sobre a história dos cometas ver Heidarzadeh (2008), Olson & Pasachoff
(1998), Seargent (2009) e Yeomans (1991).

326
dessas suas observações. Para ele os cometas eram “sinais de Deus”,
isto é, interferências diretas do Todo-Poderoso no Universo com
vista a prevenir os seres humanos. Por isso, com um olhar muito
atento, perscrutava eventuais mudanças na abóbada celeste. No seu
tempo, as esferas sólidas e fixas do céu do sistema geocêntrico de
Aristóteles e Ptolomeu estavam a ser substituídas pelo conceito de
céu fluido, um céu que os cometas conseguiam romper para che-
garem relativamente perto da Terra.
Na obra completa de Vieira encontram-se várias referências a
observações de cometas que ele realizou no Brasil, em Portugal e, num
caso, a meio caminho. As suas referências nos sermões e sobretudo
nas cartas (nas quais há também referências a eclipses e a meteoros)
revelam cuidado na observação. Fornece, por exemplo, informações
astronómicas, como o tempo e, indicando as constelações, a região
do céu onde foi efetuado o avistamento. Apresenta-se, baseada na
compilação do astrónomo brasileiro Rogério Mourão (Mourão, 1999),
uma lista dos cometas observados por Vieira. 15

A. No seu texto de 1695, Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e


à Baía (Franco & Calafate, 2013/2014, iii , i : 603), Vieira refere o
brilhante cometa de 1618 que observou em pequeno, na Baía, para
onde seus pais se tinham mudado em 1614. Esse cometa, chamado
“grande cometa de 1618” ou, modernamente, C/1618 WI, foi desco-
berto em 16 de novembro de 1618, por Kepler, tendo sido referido
por outros astrónomos. Atingiu enorme magnitude, sendo a sua
cauda de cerca de 70 graus. Escreveu Vieira em 1659, em Esperanças
de Portugal. Quinto Império do Mundo. Primeira, e Segunda Vida
Del-Rei Dom João Quarto. Escritas por Gonçaliannes Bandarra:

15 Sobre Vieira e os cometas ver também Fernandes (2008), Menezes & Costa (2012).

327
No ano de 618 apareceu em todo o mundo o último e fa-
mosíssimo cometa que viu a nossa idade. A figura era de uma
perfeitíssima palma, a cor acesa, a grandeza como da sexta parte
de todo o hemisfério, o sítio no Oriente, o curso sempre diante
do Sol, a duração por quase dois meses. Eu o vi na Baía, e Vossa
Senhoria o devia ver; e de então para cá não houve outro cometa,
ao menos notável; fala dele Causino no seu livro De regno et domo
Dei em três partes, atribuindo-lhe os efeitos principalmente em
Espanha. Deste cometa que, por antonomásia, foi o cometa desta
idade, entendo que fala Bandarra, pois foi o cometa do século
das suas profecias. (Franco & Calafate, 2013-2014, III, IV: 102)

Esse cometa teria sido previsto por Gonçalo Bandarra (1500-


-1556), um poeta popular sebastianista que augurou a restauração do
reino de Portugal. Vieira haveria de ser prosélito de Bandarra e esse
foi um dos motivos do processo que a Inquisição moveu a Vieira.
O mesmo cometa foi descrito pelo médico e astrólogo de origem
judaica Manuel Bocarro (chamado “o francês”, 1588 ou 1593-1669),
cujas opiniões foram apoiadas por Vieira.16 Os astrólogos espanhóis
Pedro Mexia e António de Najera também deixaram escritos sobre
os cometas de 1618 (de facto, foram três) em publicações impressas
em Portugal (Mexia, 1619; Najera, 1619).

B. Em carta de 22 de dezembro de 1664 a D. Rodrigo de Meneses,


Vieira referiu o cometa, hoje chamado C/1664 W1, descoberto em
17 de novembro em Espanha – um manuscrito provavelmente do
padre jesuíta Bernardo José Zaragoza (1627-1679) descreve-o – e
avistado também pelo astrónomo polaco Johannes Hevelius (1611-

16 Ver Bocarro (1619). O mesmo autor, que se gabava de manter relações com
Galileu e Kepler, publicou em Florença um livro com um prefácio da suposta autoria
de Galileu (Bocarro, 1626). A assinatura é de “G.G. mathem”, não havendo prova
de que se trata do sábio pisano.

328
-1687), por isso também dito “Hevelius”. Ele observou-o nessa
altura em Coimbra, onde estava detido pela Inquisição, sustentando
que ele pronunciava desastres (“é funesto e funeral”). Escreveu:
“parecia coisa alheia da Providência de Deus, nos casos em que
há mudanças notáveis no mundo, não prevenir e admoestar ao
mesmo mundo com os prognósticos delas, para que ninguém o
possa negar como autor de todas” (Franco & Calafate, 2013-2014, I,
II: 418). Numa carta de 29 de dezembro voltou a falar do cometa,
queixando-se que na Universidade de Coimbra não o observavam
e dizendo que “o cometa de 1577, a que se atribui a fatalidade de
el-Rei Dom Sebastião, segundo a conta de Vossa Senhoria saiu ou
apareceu no mesmo dia que este” (Franco & Calafate, 2013-2014,
I, II: 420-421). Acrescenta: “Eu fiz meu estudo no caso, não como
matemático, mas como marinheiro, que é o mais a que se estende
a minha arte, ou experiência” (Franco & Calafate, 2013-2014, I, II:
421). A 19 de janeiro de 1666 continuava, noutra carta a D. Rodrigo
de Meneses, a descrever o cometa, ligando-o à manifestação de
tempestades em Coimbra (Franco & Calafate, 2013-2014, I, II: 423).
A 3 e a 7 de fevereiro ainda fala do cometa, nessa altura em vias
de desaparecimento (Franco & Calafate, 2013-2014, I, II: 427-428).
Segundo Vieira, que possuía bons contactos no Brasil, o astro teria
sido observado, pela primeira vez, em 12 de novembro no mar do
Maranhão (Franco & Calafate, 2013-2014, I, II: 434), portanto antes
de Zaragoza. O matemático jesuíta alemão Valentim Estancel ou
Stansel (1621-1705) descreveu esse cometa no seu livro Legatus
Uranicus (Stansel, 1683). Vieira refere um “padre alemão” – de-
certo Estancel – em cartas de 23 de fevereiro (Franco & Calafate,
2013-2014, I, II: 436 e 438). Huygens e Newton, este estudante em
Cambridge, observaram também o mesmo cometa. Houve quem lhe
atribuísse a responsabilidade pela grande peste de Londres de 1665.
O padre e lente da Universidade de Coimbra António Pimenta (1620-
-1700) escreveu sobre o cometa de 1664 (Pimenta, 1665). O mesmo

329
aconteceu com o médico, astrólogo e autor de almanaques Manuel
Galhano Lourosa (Lourosa, 1666a e 1666b).

Fig. 3. Representação de cometas por Hevelius no seu livro


Cometographia (tábua IV), de 1668.

C. Um outro cometa foi observado em março e abril de 1665 por


Vieira em Coimbra, tendo ele dúvidas se era o mesmo ou não. Era,
muito provavelmente, o C/1665 F1, também observado por Hevelius.
Esse cometa e o anterior constituíram o pretexto para Hevelius
publicar o seu livro Cometographia, uma das primeiras obras sobre
cometas (Fig. 3). Vieira refere o novo cometa em cartas ao marquês
de Gouveia de 13 de abril e 4 de maio (Franco & Calafate, 2013-
-2014, I, II: 461 e 467) e a D. Rodrigo de Meneses de 26 de abril
(Franco & Calafate, 2013-2014, I, II: 463). Esse cometa foi observado
no Brasil por Stansel, no Colégio da Baía, estando descrito no seu
livro Uranophilus Caelestis Peregrinus (Stansel, 1685).

330
D. Vieira referiu o cometa Kirch (também chamado “grande
cometa de 1680” ou C/1680 V1), assim nomeado em honra do as-
trónomo alemão Gottfried Kirch (1639-1710), que o descobriu em
14 de novembro de 1680, e que se mostrou visível no céu austral
durante a sua viagem ao Brasil em 1681. O jesuíta italiano Eusebio
Kino (1645-1711) também observou o Kirch na sua viagem de
Espanha para o México, tendo-o descrito numa das primeiras obras
científicas publicadas no Novo Mundo (Kino, 1681). Numa carta da
Baía de 22 de julho de 1684 a António Pais de Sande Vieira fala do
“grande cometa de 81” (Franco & Calafate, 2013-2014, I, IV: 302).
E refere-o também na Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e à Baía:
“No ano de mil seiscentos e oitenta apareceu no meio da barra de
Lisboa, como entrando por ela, o cometa da mais agigantada esta-
tura de quantos tinham assombrado o mundo, segundo a descrição
de todas as histórias e as medidas e instrumentos de Matemática”
(Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 595). O Kirch foi o primeiro
cometa a ser descoberto com a ajuda do telescópio e os seus dados
foram usados por Newton para confirmar as leis de Kepler. A teoria da
gravitação assenta em boa parte na órbita deste cometa. Além disso,
despertou a atenção de Edmond Halley. 17 Em Portugal foi visto
pelo padre e professor da Universidade de Coimbra Jerónimo de
Santiago (1644-1720) (Santiago, 1681).

E, F. Vieira observou o cometa Bianchini ou C/1684 N1, nomeado


em honra do cientista italiano Francesco Bianchini (1662-1729), 18
que o avistou em Roma em 30 de junho de 1684. Pela leitura de
uma carta vieirina deduz-se que ele foi visto em 6 de maio desse

17 O famoso cometa Halley passou perto da Terra em 1682, embora sem na


altura ter esse nome, passando despercebido a Vieira. Reapareceria em 1758 con-
forme as previsões.
18 Bianchini haveria de ser protegido do rei D. João V (cf. Marciano, 1989).

331
mesmo ano, em Pernambuco, por Stansel, portanto antes de Bianchini.
Vieira escreve, numa carta ao marquês de Gouveia:

As [novas] deste céu não sei se são melhores; Vossa Excelência


o julgará pelos dois cometas, que nele apareceram este ano, cujos
retratos envio com esta. O primeiro foi visto desde seis de maio
até ao dezasseis; e vão mais exatamente notados os seus movi-
mentos; porque os observou em Pernambuco um padre alemão,
grande matemático, onde foi também visto de todos os padres
daquele Colégio. O segundo apareceu no Rio de Janeiro em uma
aldeia chamada Itinga, e observado primeiro dos índios, e depois
dos padres, que nela residem, desde o primeiro do mesmo mês
de maio até os 15. Aquele se via de dia, e partia o sol pelo meio;
este de noite, e mostrava na cauda 3 estrelas. (Franco & Calafate,
2013-2014, I, IV: 315)

Não conhecemos mais dados sobre o segundo cometa.

G. O cometa descoberto em 24 de novembro de 1689 por Simon


van der Stel (1639-1712), governador da colónia holandesa do Cabo
na Africa do Sul, denominado C/1689 X1, foi avistado por Vieira a
6 de dezembro desse mesmo ano. Vieira escreveu da Baía ao cónego
Francisco Barreto: “Cá apareceu um cometa aos 6 de dezembro, dia
em que foi coroado el-Rei, muito maior que o grandíssimo, que lá
vimos no ano de 80, em figura de palma, que se estendia desde o
horizonte até o zénite, e levava o curso para a parte austral, tão
arrebatado qual nunca se viu em outro” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, I, IV: 430).
Tal aparição foi também descrita no Discurso Astronómico (1689),
de posse da Biblioteca Nacional de Lisboa, da autoria provável
de Stansel.

332
H. Finalmente, em 1695 Vieira observou o cometa Jacob, do nome
do padre jesuíta francês Jacob Cocleo ou Jacques Cocle (1628-1710),
hoje chamado C/1695 U1, que o viu na Baía de Todos-os-Santos
em 28 de outubro de 1695, que está descrito no já referido texto
Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e à Baía: Juízo do Cometa Que
Nela Foi Visto em 27 de Outubro de 1695 e Continua até Hoje, 9 de
Novembro do Mesmo Ano (escrito quando o autor já tinha 89 anos!).
Tendo em atenção a data indicada no título, Rogério Mourão aventa
a hipótese de a primeira observação deste cometa ter sido efetuada
por Vieira (Mourão, 1999). No referido texto, Vieira faz um estudo, de
carácter teológico-astrológico, portanto não científico, relacionando
os aparecimentos com eventos na Terra. Para Vieira, como foi dito,
os cometas eram sinais divinos: “depois que os profetas cessaram,
começou Deus a falar pelos cometas, que é a linguagem universal
de maior majestade e horror de que usa extraordinariamente a
Seus tempos, e em casos graves, como se não pode duvidar seja o
presente” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I: 585-586).
Qual seria a causa dos cometas? Se, no “Sermão dos Bons Anos”,
pregado na Capela Real em Lisboa em 1641, aceitava a teoria de
Aristóteles de que a matéria dos cometas são os vapores ou as
exalações da terra subidas ao céu, já em A Voz de Deus ao Mundo,
a Portugal e à Baía Vieira já levanta dúvidas sobre a teoria de
Aristóteles de que os cometas resultariam da ascensão ao céu de
material da terra:

Não sendo fácil de crer, nem de entender que os vapores da


terra e exalações do mar, subindo de tão diversos lugares de um
e outro elemento, sem causa superior que os disponha e ordene,
eles naturalmente e por si mesmos se ajuntem e se ajustem entre
si, e se condensem e acendam em tal lugar e em tal compo-
sição, e em tal figura, e que esta a conservem, ou variem com

333
tal uniformidade, como se vê nos cometas. (Franco & Calafate,
2013-2014, III, I: 586)

As observações dos cometas realizadas ao longo do sécs. xvi


e xvii , assim como as observações de “novas” feitas por Tycho e
Kepler foram importantes não só para conservar registos, antes
de Halley prever os regressos dos cometas com base nas leis de
Newton, mas também para colocar em causa a antiga teoria da
incorruptibilidade dos céus. A teoria dos céus fluidos opõe-se à
teoria aristotélico-ptolomaica das esferas sólidas, onde se situa-
riam os planetas do sistema solar, o próprio Sol e as estrelas fixas.
Em Portugal, a ideia dos céus fluidos foi introduzida pelo jesuíta
italiano Cristophoro Borri (1583-1632), 19 que esteve no Oriente e
ensinou em colégios de Coimbra e Lisboa depois de ter saído de
Itália, após admoestação pelo geral da Companhia. Borri, um dos
introdutores do telescópio entre nós (Leitão, 2001), baseou-se na
observação de cometas (como o cometa de 1618, que observou na
Cochinchina, hoje Vietname) e no aparecimento de novas estrelas
para contrariar a tese de que os céus eram imutáveis e incorruptíveis.
De facto, Borri deve-se ter inspirado em Tycho para escrever em
Compendium de Nova Mundi Constitutione (1624): “Na opinião dos
Antigos, que imaginavam tantos céus sólidos, não é possível que
os cometas penetrem tantos céus. Na nossa opinião, não é difícil,
porque concebemos ser o céu, não um corpo sólido, mas fluido”.
Depois de Borri, jesuítas portugueses como Baltasar Teles
(1596-1675) e Francisco Soares Lusitano (1605-1659), professores
na Universidade de Évora, também simpatizaram com a ideia dos
céus fluidos (António Vieira e Soares Lusitano eram conhecidos).
Por outro lado, Descartes, no seu Traité du Monde et de la Lumière,
atribuiu os movimentos planetários a vórtices celestes, um conceito

19 Ver Leitão (1988), que analisa alguns livros e manuscritos de Borri.

334
semelhante ao dos céus fluidos. É talvez por isso que Vieira, na
sua História do Futuro, escrita a meio do séc. xvii, fala dos céus
fluidos como um conceito recente, fazendo, porém, notar que se trata
também de retomar uma ideia antiga. Tinha razão, pois, por exemplo,
o filósofo grego pré-socrático Anaxímenes de Mileto (c. 588-524 a.C.),
que considerava o ar o elemento essencial e imaginava os astros
como discos flutuantes em fluxos de ar.

6. Conclusões
O Padre António Vieira foi um homem conhecedor da ciência do
seu tempo, o tempo da revolução científica, que se seguiu ao tempo
dos Descobrimentos portugueses. Ele conhecia alguns dos trabalhos
de Copérnico, Tycho Brahe e Kepler, cujo nascimento precedeu o
dele. Se não acompanhou Copérnico na sua nova arquitetura do céu,
classificou as observações de Kepler como “novas”: os fenómenos em
causa eram para ele naturalmente manifestações divinas. Não tendo
referido Newton, Vieira foi um atento observador de cometas numa
época em que aqueles astros estavam a ser usados para confirmar
a mecânica de Newton, na qual uma força universal de gravitação
permitia as órbitas elípticas descritas pelas leis de Kepler. Em 1618,
quando era menino, Vieira tinha visto no Brasil um cometa descrito
por Kepler. Os cometas acompanharam-no ao longo da vida. Perto do
fim desta, em 1695, observou um cometa em São Salvador da Baía.
Além das referências e comentários astronómicos, Vieira também
fez várias referências e comentários ao fenómeno do arco-íris, que
no tempo de Vieira foi descrito por Descartes.
Vieira não tinha, evidentemente, uma atitude científica nem os
seus fins eram os da expansão e divulgação da ciência. Os fenómenos
naturais não passavam para ele de exemplos da portentosa obra de
Deus, referindo-os como meios retóricos na sua incansável tarefa
de evangelização. Continuou essencialmente aristotélico, tal como
tinha sido ensinado no colégio da sua Ordem, mas, numa altura

335
em que as conceções aristotélicas estavam a desabar, assomam no
seu discurso algumas notícias da modernidade, revelando-se nesse
aspeto um atento observador do mundo físico.

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338
Denunciar abusos e criticar erros: os animais na parenética
de Vieira

Reporting abuses and criticizing mistakes: animals in the 17th


century sermons

Paulo Drumond Braga


Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes
ORCID | 0000-0001-5043-8236

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga


Universidade de Lisboa
ORCID | 0000-0002-7035-6497

Resumo
No séc. xvii , foi comum alguns homens da Igreja procurarem
na vida animal feitos e gestos comparáveis aos dos homens,
de Deus e até do demónio. Este tipo de linguagem, que tanto
agradou, por exemplo, a Francisco de Sales (1567-1622) e a
Luís Maimbourg (1610-1686), era entendido como uma forma de
pedagogia. Ao comparar os comportamentos dos animais com
os dos humanos, os homens da Igreja pretendiam explicitar as
boas e as más atitudes, atacando os pecadores e valorizando os
bons comportamentos. É sob esta ótica que se pretende estudar
a parenética do Padre António Vieira.
Palavras-chave: animais; comportamento; pedagogia; sermões

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_15
Abstract
In the 17th century, it was common for some men of the Church
to see in animal life gestures comparable to those of men, God
and even the devil. This type of language, which was so pleasing
to Francisco de Sales (1567-1622) and Luís Maimbourg (1610-
-1686), was, for example, understood as a form of pedagogy.
By comparing the behaviours of animals with those of humans,
the men of the Church intended to explain good and bad atti-
tudes, attacking sinners and valuing good behaviour. It is from
this perspective that we intend to study the sermons of Father
António Vieira.
Keywords: animals; behaviour; pedagogy; sermons

Tendo-se acabado de publicar um livro intitulado Animais e


Companhia na História de Portugal (Braga & Braga, 2015), que
coordenámos, e que entendemos como um ponto de partida para
diversos outros percursos de carácter académico, recebemos o amável
convite de José Eduardo Franco para abordarmos a temática dos
bichos na obra do Padre António Vieira. O resultado desse desafio
é o texto que hoje se apresenta e que se circunscreve não a toda a
ampla produção escrita do jesuíta, mas tão só à parenética, a qual,
na obra completa publicada em 2013 e 2014, sob a direção de José
Eduardo Franco e de Pedro Calafate, ocupou 15 dos 30 volumes
que a compõem. Optámos por escolher apenas os sermões que re-
feriram determinados animais em particular, desprezando os que se
referiam aos bichos de forma genérica, como aves, feras ou peixes.

1. A parenética conheceu a sua fase mais expressiva ao longo


do séc. xvii . Recorde-se que as homilias, as missões do interior, as

340
exéquias, as ações de graças, os panegíricos dos santos e da Virgem,
as canonizações, os aniversários da fundação de casas conventuais,
as tomadas de hábito, os autos da fé, as procissões de resgate de
cativos e bem assim todas as festas religiosas e litúrgicas davam
origem a sermões, o que explica a abundância deste tipo de textos,
muitos dos quais tiveram honras de impressão, em especial durante
os sécs. xvii e xviii1, o que não deve fazer esquecer a significativa,
abundante e muito dispersa produção concionatória manuscrita.
A parénese ultrapassava as áreas espiritual e religiosa, pois não
se podem esquecer os sermões pregados por ocasião de diferentes
efemérides relativas à família real – nascimentos, casamentos, ani-
versários, doenças e mortes –, os quais apresentam importantes
informações quer biográficas quer ao nível da representação, fun-
cionando como um instrumento de carácter político. Assim, importa
estabelecer distinção entre as prédicas das ações missionárias,
evangélicas e penitenciais destinadas a pessoas pouco catequizadas
e analfabetas, e a oratória culta, citadina, cortesã, de carácter mais
político, a qual estava a cargo do pregador régio, um profissional
preparado para desempenhar tais funções (Ambrasi, 1996: 347-389;
Mendes, 1989: 74, 80; Marques, 2001a: 470-510).
O sermão integrou um dos mecanismos pedagógicos de discipli-
namento social (Schulze, 1992; Reinhard, 1994: 101-123; Schilling,
1994; Schilling, 2007; Prosperi, 1994; Prosperi, 1996; Palomo, 1997;

1 Veja-se a lista dos sermões impressos entre 1619 e 1716 estabelecida por Pontes,
1961. Era comum a publicação de sermões, quer avulsos quer em conjunto, o que
poderia traduzir não só o interesse por este tipo de textos entre a população culta
como, e sobretudo, ser entendido como sintoma de crise e de alteração política.
Por outro lado, essas publicações, de custo acessível, não deixavam de ser procuradas
pelos próprios pregadores que assim se muniam de exemplos de fácil imitação. Se
tivermos em conta os anúncios de livros aparecidos na Gazeta de Lisboa, entre 1715
e 1750, podemos verificar que das 2094 obras a que o periódico fez referência 224
eram sermões (entre espécimes avulsos e sermonários), o que representou 18,3% dos
livros de temática religiosa e 10,7% do total das obras publicitadas. Cf., respetivamente,
Marques, 1998: 162; Braga, 2001: 465-565.

341
Brambilla, 2006; Candau Chacón, 2007). Na verdade, se tivermos
em conta o posicionamento de Erminia Ardissimo, que defende a
educação dos fiéis como o mais ambicioso projeto da Igreja após o
Concílio de Trento, não poderemos estranhar que a pregação tenha
assumido um papel relevante. Nela se depositaram esperanças de re-
novação da vida espiritual e, para tal objetivo ser atingido, recorreu-se
aos instrumentos de persuasão clássicos, humanísticos e até aos
que eram produtos da nova cultura. A oratória permitiu, assim, dar
ordem e certeza ao mundo e coerência ao dogma. Se excetuarmos a
confissão, era o único meio de ouvir a palavra de Deus em língua
vulgar, consequentemente uma poderosa arma para a conquista
da mente e uma importante via de formação da consciência e da
espiritualidade dos fiéis (Ardissimo, 2001: 10-17).
Tenhamos em atenção que a repercussão das prédicas nos ou-
vintes e a crítica a esses mesmos ouvintes, sobretudo quando não
prestavam atenção e se ocupavam com assuntos diversos durante a
pregação, não foram menosprezadas por diversos autores ao longo
dos séculos, de entre os quais o Padre António Vieira (Pires, 1996).
O sermão, como instrumento de utilidade catequética ou política,
era um importante meio de propaganda e de ataque; daí o interesse
em ser publicado, uma vez que, assim, chegava também aos que não
o tinham ouvido. Neste contexto, era comum a edição de sermões,
quer avulsos quer em conjunto, o que poderia traduzir não só o
interesse por este tipo de textos entre a população culta como,
e sobretudo, ser entendido como sintoma de crise e de alteração
política (Mendes, 1989: 69-71). Por outro lado, essas publicações,
de custo acessível, não deixavam de ser procuradas pelos próprios
pregadores, que, assim, se muniam de exemplos de fácil imitação
(Marques, 1998: 162).

2. Desde muito cedo, foi prática corrente entender a natureza


como modelo de vícios e de virtudes. Em particular, o mundo

342
animal apareceu como reflexo divino e como meio para moralizar.
Bestiários, fábulas, lendas, provérbios e tantos outros escritos de-
monstraram estas vertentes (Morgado García, 2015: 57-85). Ora, no
séc. xvii , foi comum alguns homens da Igreja procurarem na vida
animal feitos e gestos comparáveis aos dos homens, de Deus e
até do demónio. Este tipo de linguagem, que tanto agradou, por
exemplo, a Francisco de Sales (1567-1622) e a Luís Maimbourg (1610-
-1686), era entendido como uma forma de pedagogia. Ao comparar
os comportamentos dos animais com os dos homens, os clérigos
pretendiam explicitar as boas e as más atitudes, atacando os pe-
cadores e valorizando os bons comportamentos (Baraty, 1996:
67-79). Deste modo, os animais adquiriram sobretudo sentidos
morais e alegóricos.
Em Portugal, a utilização dos bichos como meio de passar men-
sagens aos fiéis, de forma mais veemente, foi preconizada por vários
autores, de entre eles, o Padre António Vieira, nos vários tipos de
sermões que pregou em Portugal, no Brasil, em Roma e até no mar,
ao largo do oceano Atlântico. Assim, quer as festas do calendário
litúrgico, quer os sermões hagiográficos ou os marianos, quer ainda
a parénese política e a lutuosa foram momentos para recorrer à vida
animal de forma a tornar a prédica mais eloquente. Tratou-se de,
a partir da Bíblia, dos bestiários medievais, das hagiografias e do
senso comum baseado numa longa tradição popular, pregar, de forma
clara, a condição humana, denunciando abusos e criticando erros.
A marcar o tempo litúrgico, temos sermões do Advento, do Natal,
da Epifania, da Quaresma, da Páscoa e do Pentecostes. Na parénese
do primeiro ciclo litúrgico, dedicado à chegada, toda a preparação
para o Natal deveria passar por momentos de reflexão sobre a fra-
gilidade humana, arrependimento e, consequentemente, por práticas
penitenciais e ações contra os pecados, sem perder a esperança
na salvação. A pregação da homilética dominical, aqui em causa,
foi feita sempre na Capela Real, durante o período da Guerra da

343
Restauração, tendo como público a família real, elementos da no-
breza e do clero.
No “Sermão da Primeira Dominga do Advento”, de 1644, o pre-
gador salientou a precariedade da vida e a imprevisibilidade da
morte, com a consequente necessidade de boas obras para que o
juízo divino rigoroso permitisse a salvação eterna. Dois problemas
mereceram especial atenção: o provimento dos bispados vagos (note-
-se que a Santa Sé não reconhecia a monarquia de D. João IV, só o
tendo feito após a paz com Castela, em 1668, e, consequentemente,
não aceitava os bispos apresentados pelo monarca – cf. Paiva, 2000:
158-163) e o intemporal problema da disputa de cargos públicos,
nem sempre sendo providos os que estavam melhor preparados.
Neste sentido, advertiu, a partir de passagens do Génesis (49, 9, 17,
27, 21, 14), para as escolhas de Jacob à hora da morte, no que se
referiu às fortunas a distribuir pelos filhos. Este escolheu bênçãos
de animais: Judá – leão, Dã – serpente, Benjamim – lobo; Neftali –
cervo e Issacar – jumento, atendendo a que

[…] Os animais todos têm suas inclinações, instintos, e pro-


priedades, e todos suas como virtudes, ou vícios naturais: o Leão
generoso, a Serpente astuta, o Lobo voraz, o Cervo ligeiro, o
Jumento sofredor do trabalho. E debaixo destas metáforas sig-
nificava Jacó aos filhos os talentos de cada um, e o uso deles, e
quais haviam de ser as ações, e sucessos de suas vidas, e des-
cendências. […] Porque na diferença da túnica obrava Jacó como
Pai em seu nome: na diferença, e repartição dos talentos, falava
como Profeta em nome de Deus: e como a distribuição era feita
por Deus, e os talentos dados por Ele; posto que fossem tão di-
versos na estimação, e crédito, quanto vai do império à servidão,
e do Leão ao Jumento, todos abaixando a cabeça se contentaram,
e conformaram com a sua sorte […]. (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, I: 141-142)

344
Note-se que a simbologia de cada animal varia de acordo com
a época e o contexto. Se neste sermão o leão era generoso, em
outros do mesmo autor ou de pregadores diferentes era equiparado
a felinos semelhantes e entendido, tal como o lobo, como colérico,
cruel e feroz. Já o cervo, aqui visto como rápido, em outras situações
aparece como mediador entre o Céu e a Terra e salvador; por seu
lado, o sofredor jumento também pode ser visto como símbolo da
preguiça. Finalmente, a serpente tem quase sempre uma conotação
negativa, ligando-se mesmo à heresia (Baraty, 1996: 62-64; Morgado
García, 2015: 62-68).
O “Sermão da Terceira Dominga do Advento”, de 1650, em que
Vieira utilizou a alegoria da embaixada judaica de Jerusalém a João
Batista para enfatizar que as dignidades deveriam ser oferecidas
aos pretendentes e não pedidas, foi o momento em que voltou a
referir a distribuição dos cargos de acordo com as capacidades e
as competências de cada um. Recorrendo, de novo, ao episódio
de Jacob no momento em que deu a bênção aos filhos, concluiu:

[…] para que se entenda que a diversidade das bênçãos não


argui desigualdade de amor em quem as dá, senão diferença de
merecimentos em quem as recebe. A Judá, que tinha valor, e gene-
rosidade, dá-se-lhe bênção de Leão; a Neftali, que tinha presteza,
mas não tinha valor, dá-se-lhe bênção de Cervo; a Dã, que tinha
prudência, mas tinha peçonha, dá-se-lhe bênção de Serpente; a
Issacar, que tinha forças, e não tinha juízo, dá-se-lhe bênção de
Jumento; a Benjamim, que tinha ousadia, mas junta com voraci-
dade, dá-se-lhe bênção de Lobo. (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, I: 253)

Para enfatizar ainda mais a ideia, referiu, citando o Génesis (1,


22-24), que cada criatura deveria crescer segundo a sua espécie,
pois as andorinhas não poderiam ser águias, as rémoras, baleias

345
ou as formigas, elefantes (Franco & Calafate, 2013-2014, II, I:
253). No mesmo sermão remeteu ainda para a alegoria do carro
de Ezequiel, de que trataremos adiante.
Já no “Sermão da Primeira Dominga do Advento”, de 1650, as
referências aos animais foram articuladas com o tema de prestar
contas a Deus, no momento do Juízo Final. Num sermão de cunho
fortemente doutrinário, Vieira aludiu à arca de Noé, onde couberam,
contra o entendimento do vulgo, muitos animais, alguns grandes e
ferozes, num espaço pequeno e fechado, designadamente a águia,
o elefante, o leão, o tigre e o touro, para concluir que

ainda que a Arca era pequena, a tempestade era grande. Alagava


Deus naquele tempo a terra com dilúvio universal, que foi a maior
calamidade que padeceu o mundo; e nos tempos dos grandes
trabalhos, e calamidades até o instinto faz encolher os animais,
quanto mais a razão aos homens. […] A maior maravilha do dia
do Juízo não é haver de caber todo o mundo em todo o Vale de
Josafá, a maravilha maior será que caberão então em uma pequena
parte do Vale muitos que não cabiam em todo o mundo. (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, I: 155)

Neste ciclo do calendário litúrgico, no “Sermão da Epifania”, pre-


gado em 1662, o Padre António Vieira defendeu de forma enérgica a
ação missionária portuguesa, designadamente o papel dos Jesuítas,
alertou para as dificuldades inerentes à conversão das populações
índias e referiu os problemas existentes com os colonos, que se
opunham à liberdade da população autóctone (Saraiva, 1992; Silva,
1999). No que se referiu ao uso de animais na parénese, entendeu
esclarecer que a obrigação do pastor é mais do que apascentar,
defender, pois “só quem apascenta, e defende, é Pastor, e quem não
defende, ainda que apascente, não” (Franco & Calafate, 2013-2014,

346
II, I: 377). Seguidamente, vieram as ovelhas, os lobos e os rafeiros,
para depois concluir, referindo-se aos missionários:

[…] quando disserem isto dos lobos, também dirão dos Pastores,
que muitos deram a vida pelas ovelhas: uns afogados nas ondas,
outros comidos dos bárbaros, outros mortos nos sertões de puro
trabalho, e desamparo. Dirão que todos expuseram, e sacrificaram
as vidas pelos bosques, e pelos desertos entre as serpentes; pelos
lagos, e pelos rios entre os Crocodilos; pelo mar, e por toda aquela
Costa, entre parcéis, e baixios os mais arriscados, e cegos de todo
o Oceano. Finalmente, dirão que foram perseguidos, que foram
presos, que foram desterrados; mas não dirão, nem poderão dizer,
que faltassem à obrigação de Pastores, e que fugissem dos lobos
como Mercenários. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, I: 378-379)

Recorde-se que era frequente as ovelhas aparecerem associadas


por oposição aos lobos, as primeiras símbolo dos fiéis e ligadas
ao tema do “bom pastor”, os segundos como atacantes cruéis do
rebanho. O cão nem sempre tinha uma simbologia positiva, pois
chegou a ser entendido como representante da inveja.
Os sermões pregados durante a Quaresma apelaram à reflexão e
à necessidade de disciplinar comportamentos que se afastavam da
prática das virtudes e da obediência a Deus. Momento significativo
do calendário litúrgico, no qual o arrependimento e a penitência
deveriam ser marcantes, a parénese quaresmal evidenciou com
frequência a gravidade dos pecados, a necessidade de os extirpar,
o papel da esmola e o mérito das obras para a salvação das almas,
em oposição aos posicionamentos protestantes (Marques, 2009).
No “Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma”, pregado em
Lisboa, em 1649, houve uma enorme preocupação no sentido de
explicar a oposição entre o que se lê nas Sagradas Escrituras, Deus
odeia os seus inimigos, e o versículo em que Deus manda aos homens

347
amar os inimigos. A referência aos animais é genérica – aves, feras,
peixes –, os quais se vingam habitualmente. Mais especificamente,
referiu: “vinga-se, e cabe ira em uma formiga” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, II: 171). Em outra parte do mesmo sermão, nova referência
específica, desta feita a uma baleia (Franco & Calafate, 2013-2014, II, I:
181). Já no “Sermão da Primeira Dominga da Quaresma”, pregado na
Capela Real, em 1655, perante a Corte, a ideia central foi o episódio
dos quarenta dias e noites de jejum de Cristo (Mt 4, 1-11), durante o
qual foi tentado três vezes pelo Diabo. O animal eleito para referir os
males das tentações, que a todos atingiam, foi a serpente, neste caso,
símbolo da inveja: “Todos nesta vida andais mordidos: uns mordidos
do valimento, outros mordidos da ambição, outros mordidos da honra,
outros mordidos da inveja, outros mordidos do interesse, outros
mordidos da afeição: enfim todos mordidos” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, II: 257). Em outro sermão homónimo, pregado na Igreja de
S.to António dos Portugueses, em Roma, em data desconhecida (algures
entre 1670 e 1675), perante um público maioritariamente constituído
por eclesiásticos, a parénese incidiu sobre alguns vícios, designada-
mente a avareza e a cobiça. Neste caso, para denunciar os abusos,
concretamente os que se ligavam ao provimento das sés vacantes,
Vieira escolheu um episódio contendo uma rã, símbolo da avareza,
contado pelo cardeal jesuíta Roberto Belarmino (1542-1621). Certo
moço pescava rãs com um anzol, o qual tinha como isco a pele de
outra, o que o teria levado a comentar que o mesmo método era
utilizado pelo Diabo para pescar eclesiásticos:

Tanto que chega a nova, tanto que veem a pele da morta, todos
a ela com tanta boca aberta; e se alguma se adianta às demais,
todas a abocanhá-la, e a mordê-la. Eu não o vi, mas assim o ouço.
[…] Que cada um pretenda para si, humano é; mas é grande de-
sumanidade que homens da mesma pátria, da mesma nação, e do
mesmo sangue, se mordam, se maltratem, e se afrontem por se

348
introduzir a si, e afastar os outros. (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, II: 284)

No “Comento, ou Homilia, sobre o Evangelho da Segunda-Feira


da Primeira Semana da Quaresma”, cuja data e local de pregação
se desconhecem, referem-se ovelhas e cabritos, para comparar com
bons e maus homens, acabando Vieira por propor carneiros em
substituição de cabritos (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 309),
símbolos da luxúria. No mesmo sermão, em que as preocupações
mais significativas foram acerca do Juízo Final, o Jesuíta optou por
aproximar-se das matérias de teoria política para referir o rei como
bom pastor:

Primeiramente o Rei há de ser como o pastor; por isso Deus,


quando houve de fazer Reis, escolheu-os de pastores: Saul, Davi;
e o supremo Rei Cristo tomou o ofício de Pastor […]. O Rei, e os
vassalos são todos homens, e o pastor, e o rebanho não. O pastor
é homem, o rebanho são animais: e a diferença, que faz o enten-
dimento do pastor às ovelhas, havia de fazer o Rei aos vassalos.
O pastor pela ovelha arrisca-se, vigia, padece: assim há de ser o
Rei pelo Reino, etc. Mas neste caso chama-se Pastor, quando dis-
tingue, e estima-se Rei, quando premeia; porque o Príncipe há de
premiar, como Rei, e conhecer, como Pastor. (Franco & Calafate,
2013-2014, II, II: 309)

As pragas do Egito foram referidas no “Sermão da Segunda Quarta-


-Feira da Quaresma”, pregado na Baía, em 1638. Recordemos que,
em termos bíblicos, as dez pragas, segundo a tradição judaico-cristã,
haviam sido enviadas por Deus, pelas mãos de Moisés, para que
Israel fosse libertado, os Egípcios fossem castigados e se reconhe-
cesse a unicidade de Deus. Quatro dessas pragas incluíram animais:
rãs, piolhos, moscas e gafanhotos. Uma outra era constituída por

349
doenças nos animais. No caso desta parénese apenas se referiram
os mosquitos e as rãs a propósito do pecado capital da ira:

Que dirão a isto os Deuses da terra (ainda que ela não seja
das maiores do mundo), os quais em se vendo com uma varinha
na mão, se acaso souberem que os mordeu um mosquito, ou que
uma rã abriu contra eles a boca (posto que os mosquitos não
sejam tão venenosos, nem as rãs tão desentoadas, como as que
produziu no Egito a vara de Moisés), já não cabem dentro em si
de inchação, de ira, e de vingança? Já ameaçam ferros, enxovias,
degredos. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, III: 137-138)

No “Sermão do Demónio Mudo”, pregado no Convento de


Odivelas, em 1651, durante o qual Vieira citou de forma abundante
a regra de S. Bernardo, o fundador da Ordem a que pertenciam as
freiras que constituíam o público, a escolha incidiu sobre o leão,
aqui com uma conotação negativa, para ser comparado ao demónio,
enquanto o cordeiro era o fiel:

Quando o demónio vem como leão bramindo, avisa-me o leão,


e avisa-me São Pedro; mas quando ele vem mudo, nem o leão, nem
São Pedro me pode avisar. Enfim a diferença do demónio (como
leão, e bramindo) ao mesmo demónio (como demónio, e mudo)
até aos mesmos sentidos é manifesta: como leão vê-se, e como
bramindo ouve-se; porém como demónio, que é invisível, não se
pode ver, e como mudo que não fala, não se pode ouvir. (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, III: 144-145)

Leão, cordeiro, lobo e boi foram os animais presentes no “Sermão


da Terceira Quarta-Feira da Quaresma”, pregado em Lisboa, na
Capela Real, em 1651. Desta feita, Vieira optou por referir os pe-
cados e a necessidade de os combater, citando Isaías (Is 11, 6-7):

350
“o lobo morará com o cordeiro, e que o leão, como o boi, comerá
palha”. Para precisar:

[…] quem poderá conter a voracidade do lobo, a que observe


esta abstinência, e a ferocidade, e gula real do Leão, a que se
sustente, como o boi, da eira, e não da montaria, e do bosque?
A Lei não pode ser mais justa, nem mais benigna; porque assaz
indulgência, e favor se faz ao Leão, que passeia, e não trabalha,
em que coma igualmente à custa do boi o que ele puxando pelo
arado, pela grade, pelo carro, e pela trilha, começou, e acabou
com tanto trabalho. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, III: 227)

Neste caso, de novo o leão, tal como o lobo, têm sentidos ne-
gativos, em oposição ao boi e ao cordeiro, o primeiro trabalhador
e o segundo puro e virtuoso.
Finalmente, no “Sermão da Quarta Dominga da Quaresma”,
pregado em Lisboa, na Capela Real, em 1655, Vieira referiu as
tentações de António Magno, ou S. to Antão, para salientar como
as venceu e pregou:

[…] os Leões, os Ursos, os Tigres, as Serpentes, e os outros


monstros da África, não só não ofendiam a António, mas o obe-
deciam, e reverenciavam. Pois se nos dentes, e peçonha das feras,
se no poder, e astúcias dos Demónios não tem que temer António,
porque teme, e foge dos homens? Porque os homens são mais
feras que as feras, e mais Demónios que os mesmos Demónios.
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, III: 300)

Neste caso, todos os animais citados foram entendidos como


exemplos de carga negativa, não obstante, suplantados pelos homens.
Os sermões da Páscoa e do Pentecostes contaram igualmente
com a presença de animais, para salientar os vícios e as tentações

351
dos humanos. No “Sermão da Ressurreição de Cristo Senhor Nosso”,
provavelmente pregado em 1647, um dos que celebrou a alegria e
o acordar para a vida, para o trabalho e para as boas ações, foram
desfilando aves como o pintassilgo, o rouxinol e tantas outras, que
rompiam o silêncio da noite para “cantar as graças a seu Criador,
festejando a boa vinda da primeira luz”, mas também ovelhas e gados
mansos que saem do aprisco, enquanto lobos, feras silvestres e ser-
pentes se recolhem, temendo a luz (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
V: 73). Já no “Sermão da Ascensão de Cristo Senhor Nosso”, pregado
em Lisboa, no mesmo ano, e dedicado à Ascensão e à eucaristia, é a
águia que se ligou à ideia de elevação de Jesus Cristo ao Céu, pois
“só ela pode voar direitamente para cima” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, V: 207). Por seu lado, no “Sermão da Dominga Vigésima
Segunda post Pentecosten”, que teve lugar na sé de Lisboa, em 1649,
Vieira comparou os pecados menores aos enxames de mosquitos e
gafanhotos, aludindo, de novo, às pragas do Egito. Ao comparar os
pecados menores e os insetos das pragas, o pregador considerou que

maiores danos têm feito sempre no mundo as pragas destes bichi-


nhos por muitos, que as baleias no mar, ou na terra os elefantes
por grandes. Tais são os efeitos dos pecados menores, que des-
prezados por leves, sem escrúpulo, nem temor se deixam crescer,
e multiplicar dos que somente os pesam, e não contam. (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, V: 329)

No mesmo sermão, nova referência a animais apareceu relacio-


nada com os pecados veniais, que por serem mais pequenos do que
os mortais, nem por isso deixariam de crescer e, a esse respeito,
lembrou o profeta Ezequiel:

Uma Leoa […] tomou um Leãozinho dos que criava, e meteu-o


entre os Leões para que aprendesse a o ser; e crescendo saiu tão

352
Leão, e tão feroz, que comia as gentes, e despovoava as Cidades
[…]. Dos Leõezinhos se fazem os Leões, dos Tigrezinhos os Tigres,
e dos pecados pequenos os grandes. (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, V: 332-333)

No seguimento, o pregador referiu ainda as raposas pequeninas


e grandes, as mais astutas.
Em vários sermões, Vieira referiu-se a uma das visões do profeta
Ezequiel (Ez 1, 4-28), designadamente aos animais do carro, os
denominados tetramorfos, com quatro cabeças por cada corpo (de
homem, de leão, de boi e de águia), os quais representariam icono-
graficamente os quatro evangelistas e os quatro Padres do Ocidente,
para salientar, através de alegorias, o valor da confiança de cada
um em si mesmo e a importância dos comportamentos virtuosos.
E, se entre os evangelistas, destacou S. João, entre os Padres da
Igreja, enalteceu S. to Agostinho, ambos representados pela águia.
No “Sermão de Santo Agostinho”, pregado na igreja do Convento
de S. Vicente de Fora, em 1649, o jesuíta considerou que Agostinho
era a águia, “voou mais alto que todos” e, tal como a ave tirava os
filhos do ninho, examinava-os, reconhecia-os e conservava-os ou repu-
diava-os, consoante os seus comportamentos, também S. to Agostinho
tinha assim procedido com “todos os seus livros, com todas as suas
resoluções, e com todos os seus ditos, e pensamentos” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, X: 56-57). Trata-se de uma parénese em que
Vieira enfatizou as ações do santo, enquanto instrumentos de sal-
vação, exaltando o valor das obras e da virtude, num claro ataque
da justificação pela fé, defendida pelos protestantes.
No “Sermão de Nossa Senhora de Penha de França”, pregado na
igreja do Convento de S. to Agostinho, em Lisboa, no ano de 1652,
Vieira entendeu dever explicar o que considerou ser o verdadeiro
significado da visão do profeta, para enaltecer os quatro evangelistas
e, em particular, S. João. Referindo a passagem em que apareceram

353
os quatro animais, isto é, a águia, o boi, o homem e o leão, todos
com asas (Ez 1, 10-11), considerou:

[…] a Águia, diz o Texto que voava sobre todos quatro […].
Dificultosa proposição! Se dissera que a Águia voava sobre todos
os outros três animais, claro estava, e assim havia de ser natural-
mente: porque as asas nos outros eram postiças, e a Águia nascera
com elas. Vede vós agora um boi com asas; como havia de voar?
[…] As asas no Leão, e no Homem (ainda que vemos voar tanto a
tantos homens) vêm a ser quase o mesmo. De maneira que voar
a Águia sobre os outros três animais não é maravilha. Mas dizer o
Profeta que voava sobre todos os quatro, sendo a Águia um deles,
como pode ser? A nossa razão nos descobriu este grande mistério.
Estes animais (como dizem conformemente todos os Doutores)
eram os quatro Evangelistas: as asas eram as penas, com que
escreveram; a Águia era São João […]. Quando São João escreveu
o seu Evangelho, voou sobre os três Evangelistas; porque disse
muito mais que eles; mas quando no fim do seu Evangelho acres-
centou aquelas duas regras, em que disse que as maravilhas de
Cristo não se podiam escrever, voou sobre todos os quatro; porque
voou sobre si mesmo […]. […] muito mais voou aquela Águia,
quando encolheu as penas, que quando as estendeu. (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, VII: 155-156)

No sermão intitulado “As Cinco Pedras da Funda de Davi” em


cinco discursos morais, perante a rainha Cristina da Suécia, na
Quaresma de 1674, em Roma, Vieira pregou, referindo-se aos ci-
tados animais do carro: “Assim foi, assim é, e assim será sempre.
O coração, os pés, as mãos, as asas, tudo vem da cabeça, que é o
molde da própria fantasia. Se esta for de homem, as ações serão
racionais; se de águia, altivas; se de leão, generosas; se de boi, vis”

354
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV: 48). Neste caso, é o leão que
tem carga positiva e o boi negativa.
Finalmente, no “Sermão do Evangelista São Lucas”, que teve
lugar em Lisboa, em data que se desconhece, Vieira, ao referir-se
ao padroeiro dos médicos, entendeu salientar que Deus mostrara
ao profeta Ezequiel o médico perfeito na figura de S. Lucas, através
da forma de querubim. E acrescentou que no carro estavam quatros
animais enigmáticos, os quais representavam os quatro evange-
listas: o homem, S. Mateus, o leão, S. Marcos, a águia S. João, e o
boi, S. Lucas, concluindo que:

daqui se seguem duas coisas ambas certas: a primeira, que


São Lucas foi o Evangelista acrescentado a Querubim. A segunda,
que este acrescentamento foi em género de ciência, não só pela
significação do nome, senão pela vantagem com que o Querubim
excede no saber não só ao leão, e à águia, senão também ao
homem. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XI: 225)

Do Concílio de Trento, concretamente da XXV e última sessão,


saiu um decreto que reafirmou a posição tradicional da Igreja
sobre invocação, veneração e relíquias de santos e imagens sa-
gradas. Foi a resposta aos ataques dos protestantes que recusavam
reconhecer aos santos o papel de intercessores e que criticavam o
que designavam ser a “adoração” das relíquias (O’Malley, 2013: 243-
-244). Alteraram-se também as regras para a canonização de novos
santos; na expressão de Peter Burke, deu-se uma burocratização do
processo (Burke, 1999; Sodano, 1997; Ditchfield, 2006: 286-297).
Em 1598, os holandeses atacaram pela primeira vez o Brasil,
território onde a colonização portuguesa levava já muitas décadas,
sendo manifesto o interesse pela produção açucareira. Entre os
anos 20 e os anos 40 do séc. xvii , intensificaram a sua presença,
conseguindo ocupar transitoriamente Salvador, então capital do

355
Brasil, entre 1624 e 1625, além da maior parte do Nordeste, insta-
lando-se em zonas como Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco,
Rio Grande do Norte e Sergipe. Com a Restauração, as autoridades
portuguesas preocuparam-se com a recuperação do Brasil, mas foi
fundamental o papel dos colonos. A guerra começou em 1645; três
anos depois, Olinda caiu nas mãos dos portugueses e, em 1654, foi
a vez de Recife, assim terminando a presença holandesa no Brasil
(Marcadé, 1991: 21-37; Mello, 1998; Mello, 2007). Nesta conjuntura
adversa, Vieira, no “Sermão de Santo António”, de 1638, pregado
após os holandeses terem levantado o cerco à Baia, não deixou
de os analisar, de forma eloquente, apontando-lhes qualidades e
defeitos. Comparou-os às abelhas:

Pudera chamar abelhas aos Holandeses pela arte, e bom go-


verno, que se lhes não pode negar da sua República; e abelhas
nesta fação, pelo apetite que cá os trouxe do nosso mel; mas
chama-lhes abelhas, que lhes basta ser pequenas, para serem co-
léricas, pelo ímpeto raivoso, e fúria com que acometeram, e mais
particularmente, porque é próprio da abelha em picando cair
morta. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 90-91)

No “Sermão de Santo António”, pregado em 1653, em São Luís do


Maranhão, Vieira aludiu ao quotidiano dos fiéis e optou por pregar
um episódio da vida de S. to António, para valorizar o Santíssimo
Sacramento. Isto é, referiu a disputa entre o franciscano e um al-
bigense, em Toulouse, acerca do sacramento da eucaristia. Depois
de se terem esgrimido argumentos, o interlocutor do franciscano
desafiou-o: se o corpo de Cristo estivesse efetivamente presente
na hóstia consagrada, ele tornar-se-ia católico, abjurando a sua
fé. Porém, queria uma prova: trancaria em sua casa uma mula à
qual não iria fornecer alimentos durante três dias, findos os quais
seria levada à praça e posta perante aveia e perante o Santíssimo

356
Sacramento. Se o animal optasse por não comer, o procedimento
seria entendido como uma prova de que deveria tornar-se católico.
O desafio foi ganho pelo franciscano, quando a mula se colocou
de joelhos, perante a hóstia. O episódio serviu ao Padre António
Vieira para considerar que

antes de Santo António vir ao mundo, era o Santíssimo Sacramento


Mistério só da Fé, e só podia testemunhar nele o entendimento;
mas depois de Santo António vir ao mundo, ficou o Sacramento
mistério também dos sentidos; e por isso podiam já os sentidos
dar testemunho nele: bem se viu nos mesmos dois sentidos de
gostar, e ver. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 123)

Lugar à parte merece o famoso “Sermão de Santo António”, co-


nhecido vulgarmente como “Sermão de Santo António aos Peixes”,
pregado em São Luís do Maranhão, em 1654, todo ele alegórico, já
que Vieira representa os moradores do Maranhão e os homens em
geral como peixes. O pregador interpretou o papel do taumaturgo
medieval que, em Rimini, teria, à falta de outros ouvintes, falado a
peixes. No dizer de Margarida Vieira Mendes,

Vieira joga com um procedimento só possível nos sermões de Santo


António […]: a homonímia, que coloca imediatamente em cena o
pregador António, voz presente na pregação, não só por tropismo
mas também pelo efeito de sobreposição do auditório real (os co-
lonos) e ficcional ou teatral (os peixes). (Mendes, 1989: 280)

Vieira refere, a dado passo: “A vós [peixes] criou primeiro que


as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra, e a vós
primeiro que ao mesmo homem” (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
X: 140). Mais adiante, citou Aristóteles, para quem “só eles [peixes]
entre todos os animais se não domam, nem domesticam” (Franco &

357
Calafate, 2013-2014, II, X: 141). O pregador serviu-se depois do facto
de os peixes se comerem uns aos outros para criticar uma antropo-
fagia que, em sentido metafórico, era praticada pelos homens. Assim,
quando alguém morre, “comem-no” os herdeiros, os testamenteiros,
os legatários, os credores, o médico, o sangrador, a mulher – “que
de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 150) –, o coveiro, etc. Pior
ainda era quando alguém era “comido” vivo: era o caso dos “que
andam perseguidos de pleitos, ou acusados de crimes”, sobre os
quais refere: “olhai quantos o estão comendo”, especificando: o
meirinho, o carcereiro, o escrivão, o solicitador, o advogado, o
inquiridor, a testemunha e o juiz. Por outro lado, ao se deixarem
enganar por um pedaço de pano atado num anzol, os peixes são
como os homens que cobiçam os hábitos das ordens militares
de Cristo, Santiago, Avis e de Malta, ou quando, achando-se no
Maranhão, cobiçam os panos que chegam de Portugal, cedendo
à vaidade. Alguns defeitos de certas espécies, como a ambição
dos peixes voadores, a gula do tubarão e a traição dos polvos
confundiam-se, afinal, com os mesmos defeitos presentes nos
homens, ao contrário do que acontece com a rémora, entendida
como pequena mas forte. A concluir, Vieira anota: “como não sois
capazes de Glória, nem Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça,
e Glória” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 165), numa alusão
à forma como habitualmente encerravam as peças parenéticas.
Outros sermões hagiográficos contiveram paralelismos e compara-
ções que incluíram animais como representantes de ações humanas.
Por exemplo, no “Sermão do Esposo da Mãe de Deus, São José”,
proferido em Lisboa, em 1643, no qual se colocam em confronto
a alegria do presente, isto é, da Restauração, com a tristeza do
passado, ou seja, do domínio filipino, referindo-se às caraterísticas
dos monarcas, Vieira salientou:

358
[…] os Reis cuidam dormindo, e dormem cuidando. O sono dos
Reis é um sono desvelado, é um dormir cuidadoso, um descansar
inquieto, um desatender advertido, um descuidar-se vigiando.
Nos outros homens o sono é prisão dos sentidos; nos Reis é
dissimulação somente. Por isso ao Leão lhe deram o império dos
animais, porque dorme com os olhos abertos. (Franco & Calafate,
2013-2014, II, XI: 189)

Nos sermões marianos, os animais estiveram presentes para


lembrar a fundação da Ordem do Carmo, no séc. xi , e o facto de
esta ter sido a primeira a ter a Virgem como padroeira. O hábito
castanho com o escapulário mariano e, por vezes, a capa creme por
cima recordaram a Vieira a semelhança com o episódio de Labão
e Jacob, quando o segundo propôs ficar com os animais escuros
para iniciar um novo rebanho, tendo sido sabotado por Labão, que
acabou, contudo, por sair derrotado (Gn 31, 7-9). Assim, em 1659,
no “Sermão de Nossa Senhora do Carmo”, uma peça panegírica,
pregado em São Luís do Maranhão, Vieira considerou:

[…] no Monte Carmelo, enquanto a Religião Carmelitana teve


diante dos olhos só a Elias […], eram os seus cordeiros brancos
da cor do hábito de Elias […]; porém depois que se lhe variou
este objeto, e se lhe pôs diante dos olhos a vara da raiz de Jessé,
a Virgem Santíssima com o Escapulário pardo, saíram dali por
diante todos os cordeiros vestidos de lã de duas cores: Diverso
colore respersa. E por isso sinalados com o carácter, e divisa
de sua Mãe, como filhos especiais, singulares, e mais seus, e
distintos de todos os outros. (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
VII: 117-118)

Nos Sermões do Rosário, Maria Rosa Mística, Vieira apelou à


necessidade de meditar e de orar. O culto e a devoção à Virgem e

359
o seu papel de intercessora constituíram motivos para refletir sobre
a oração vocal e a oração mental. Ora, neste contexto, o rosário foi
entendido como a oração por excelência, de modo a permitir ao fiel
ser atendido por Maria. Nestes sermões diversificados, ascéticos,
catequéticos, edificantes, devocionais, de mistérios e panegíricos,
foram sempre as diversas festas do calendário litúrgico mariano e
a devoção que permitiram defender os dogmas marianos e referir
as controvérsias entre católicos e entre estes e os protestantes.
No “Sermão VIII”, dedicado à necessidade de meditar e ao papel
da oração, dois insetos foram escolhidos para tornar mais acutilante
a mensagem: a aranha e a mosca. Referindo David, Vieira considerou:

Toda a meditação da aranha é estar urdindo, e tecendo redes.


E para quê? Para tomar uma mosca. Pois aranha vã, e altiva, que
sempre buscas o mais alto da casa, estas são as tuas meditações, e
estes os teus cuidados? Para isto fias, para isto teces, para isto te
desentranhas? Sim. “E mais razão tenho eu” (diz a aranha) “de es-
tranhar as meditações dos homens, do que eles as minhas. Eu medito
em tomar uma mosca com que sustento a minha vida, eles me-
ditam em tomar moscas com que perdem a sua”. A esta meditação
da vaidade de nossos dias, e anos ajunta Davi no mesmo lugar
outra da brevidade deles, que para os que rezam o Rosário é de
casa, porque é da Rosa: “De manhã passe como a erva, de manhã
floresça, de manhã se transforme, e à noite murche, endureça e
seque. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 260)

Provavelmente em 1648, durante uma viagem marítima, teve lugar


o “Sermão IX”. Nele, de novo, se referiu o carro de Ezequiel, desta vez
para equiparar os animais ao mar de muitas caras: homem manso, touro
bravo, leão que brame e águia que se levanta até às nuvens (Franco
& Calafate, 2013/2014, ii , viii : 266). Posteriormente, referindo-se
ao Apocalipse de S. João, pregou recordando: “O trono em que está

360
assentado o Cordeiro, já se sabe que são os braços da Virgem Senhora
Nossa, e na mesma figura, em que a veneramos debaixo do título do
seu Rosário” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 273).
Visando, muito em especial, o combate às heresias e a defesa
dos dogmas, o “Sermão XI”, com muitas referências à história da
Igreja, e aos mistérios da oração mental, utilizou a serpente para
identificar o demónio e a cabeça dela para todas as heresias, citando
S.to Agostinho, S.to Atanásio e S. João Crisóstomo (Franco & Calafate,
2013-2014, II, VIII: 311). Já no “Sermão de Nossa Senhora do Rosário”
(Sermão XV), de 1654, as opções foram o boi e o jumento, que
acompanharam Cristo no presépio. Esta escolha, segundo Isaías
(Is 1, 3), visava salientar que eram animais de foros diferentes:

O boi é animal que rumia, o jumento é animal que não rumia:


e da mesma maneira entre os que chegam à Mesa do Divino
Sacramento há uns que rumiam, e meditam aqueles sagrados
mistérios, e outros que os não rumiam, nem meditam. Mas assim
como o boi, que rumia, é animal estimado de Deus, e escolhido
para o sacrifício, e o jumento que não rumia, reprovado, e ex-
cluído; assim estima o mesmo Senhor, e Se agrada muito dos que
meditam, e rumiam Seus mistérios; e pelo contrário, dos que os
não rumiam, nem meditam, posto que os não exclua, não Se agrada;
porque mais comungam como jumentos, que como homens. (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, VIII: 446-447)

Neste caso, o boi transmite uma mensagem positiva e o jumento


uma negativa, como é habitual.
No “Sermão XXII” apelou-se à reza em vernáculo, e referiram-se
as vozes das aves, para tornar claro os diferentes estados de espírito:

As vozes, que a Natureza deu aos animais, todas têm suas


significações; porque de um modo declaram a fome, doutro modo

361
a ira, doutro modo a dor, e assim das outras paixões, apetites,
ou instintos, ainda que irracionais, e brutos. E se estas signifi-
cações do seu mugir, balar, rinchar, uivar, e bramir, se acham
nos animais sem razão; não é grande afronta dos que têm uso
dela falarem sem entender o que dizem? O exemplo do canto
das aves, posto que tenha mais harmonia, não é menos igno-
minioso. Porque me hei de contentar de louvar a Deus como
um Rouxinol, se O posso louvar como um Anjo? Porque me
hei de contentar de Lhe dar a alvorada como um Canário, ou
Pintassilgo, se o posso fazer como um Serafim? Ainda posso
voar mais alto rezando o Rosário. […] “Aquele que ora, ou cuida
que ora, sem entender, nem saber o que diz, quem não vê que
é semelhante ao Papagaio”? (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
IX: 228)

Se, como Federico Palomo chamou a atenção, a parenética estava


sobretudo vocacionada para a difusão dos princípios doutrinais
e morais da Igreja, também é certo que as questões políticas não
ficavam alheias aos pregadores, constituindo uma arma valiosa que
poderia encaminhar as populações num determinado sentido. O de-
bate sobre a governação, a res publica e a imagem da monarquia
nunca foram os principais objetivos da parenética (Palomo, 2006:
78), mas acabaram por estar presentes, fortalecendo a imagem da
Coroa. Não esqueçamos que os sermões foram um discurso ao
serviço do poder real e, simultaneamente, utilizados pelo mesmo
poder, até porque alguns dos seus autores eram pregadores régios,
consequentemente estavam ao serviço da monarquia.
A parénese política de Vieira contou com dois sermões onde o
pregador referiu animais. Referimo-nos ao “Sermão da Santa Cruz”,
proferido na Baía, em 1638, e ao “Sermão nos Anos da Sereníssima
Rainha Nossa Senhora,” destinado a celebrar, em 1668, o aniversário

362
de D. Maria Francisca Isabel de Saboia, recém-matrimoniada com o
infante D. Pedro. No primeiro caso, o jesuíta, perante um público
onde se contavam muitos nobres, lembrou que

[…] na nobreza está o valor mais certo, e mais seguro. O que


não é nobre pode ser valoroso, o nobre tem obrigação de o ser:
e vai muito do que posso por liberdade, ao que devo por natu-
reza. As Águias não geram pombas: e se alguma vez a natureza
produzisse um tal monstro, a pomba se animaria a ser Águia,
por não degenerar dos que a geraram. Não há espora para a
ousadia, nem freio para o temor, como a memória do próprio
nascimento, se é de generosas raízes. (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, XIII: 56-57)

No segundo caso, estava-se perante uma conjuntura política


particularmente difícil; recorde-se que D. Afonso VI casara com
D. Maria Francisca Isabel, em 1666, e que rapidamente os pro-
blemas entre o casal tiveram início, agravados pelos choques que
a rainha teve com vários membros da Corte e, sobretudo, pelo
crescimento do “partido” de D. Pedro, irmão do monarca (Braga &
Braga, 2011: 31-65). Em 1667, D. Maria Francisca Isabel, combinada
com o cunhado, abandonou o palácio, refugiando-se no Convento
da Esperança, de onde escreveu ao marido, solicitando autorização
para partir para França e pedindo a restituição do dote. Seguiu-se um
complexo e escabroso processo de anulação do matrimónio. A rainha
apressou o casamento com o regente D. Pedro, o qual teve lugar em
abril de 1668, apesar da oposição ao enlace por parte de diversas
personalidades, designadamente do Padre António Vieira, o qual,
mesmo sendo opositor da França, da rainha e dos franceses, neste
sermão sintetizou o passado recente e procurou legitimar a nova
ordem que fora ameaçada pela guerra, pela falta de casamento e

363
pelo governo. No caso da última preocupação, isto é, o governo,
recorreu mais uma vez à já referida visão de Ezequiel, e esclareceu:

Formava-se aquele corpo enigmático (como o nosso político)


não de uma só figura, senão de muitas. Tinha uma parte de
humano, porque tinha rosto de Homem; tinha duas partes de
entendido, porque tinha rosto de Homem, e rosto de Águia; tinha
três partes de Rei, porque tinha rosto de Homem, rosto de Águia, e
rosto de Leão: de Leão Rei dos animais, de Águia Rei das aves, de
Homem Rei de tudo; finalmente tinha quatro partes de quimera,
porque aos três rostos de Leão, de Águia, de Homem, se ajuntava
com a mesma desproporção o quarto de Touro. (Franco & Calafate,
2013-2014, II, XIII: 176)

A parenética fúnebre, que de forma sistemática expressa a perda


de alguém, evoca a vida dos defuntos, integrando muitos elementos
biográficos, e procura consolar os vivos, constitui um discurso re-
pleto de reflexões acerca da fragilidade da vida, da igualdade de
novos e velhos e ricos e pobres perante a morte, sem esquecer
os apelos à salvação só conseguida depois de uma vida piedosa.
Mas esta parénese utiliza igualmente um discurso laudatório, por
vezes bastante exagerado, salientando e insistindo nas qualidades
do falecido. Segundo João Francisco Marques, três elementos
estruturam a retórica lutuosa de Vieira: sentir a morte presente,
evocar a vida do defunto e consolar os vivos. Logo, este tipo de
parénese constituía uma oportunidade para perpetuar a memória
do defunto, salientando as qualidades e boas ações do mesmo, de
modo a eliminar ilusões mundanas e obter a conversão espiritual
e o aperfeiçoamento da prática religiosa (Marques, 2011: 257-258).
Os bichos estiveram presentes em dois sermões lutuosos do jesuíta.
No “Sermão ao Enterro dos Ossos dos Enforcados”, pregado na
igreja da Misericórdia da Baía, em 1637, numa conjuntura de ataques

364
constantes dos flamengos, Vieira aludiu ao corvo da arca do dilúvio,
que anunciaria a paz:

Saído o Corvo da Arca, pôs-se a comer, e cevar nos corpos afo-


gados do Dilúvio, e quando se dá carne de justiçados aos Corvos,
segura está a paz do mundo: se o Corvo trouxera à Arca uma da-
quelas caveiras, tanto, e mais se pudera assegurar dela Noé, que
da Oliveira da Pomba. Nunca Jerusalém gozou maior paz, que no
tempo del-Rei Salomão, mas essa não estava só no Olivete, senão
no Calvário. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIV: 90)

Isto é, o jesuíta recordou que os sentenciados pagaram os delitos


que haviam cometido na justiça e receberam sepultura eclesiástica
como sinal da misericórdia divina. Recorde-se que justiça e miseri-
córdia caminhavam sempre a par, sendo características estruturantes
do poder real e, ainda mais, do poder divino.
Numa outra peça parenética lutuosa, o “Sermão das Exéquias do
Sereníssimo Infante de Portugal Dom Duarte de Dolorosa Memória,
Morto no Castelo de Milão”, pregado na Capela Real, em 1649,
outros animais foram referidos para salientar a ligação entre dois
irmãos, através dos exemplos de Moisés e Aarão, por analogia
com D. João IV e D. Duarte. Neste caso, leão, lobo e serpente, os
nomes de três tribos de Judá, e ovelhas, as doze tribos de Israel,
governadas pelos referidos irmãos. Assim,

quando dois irmãos se ajudam, quando dois irmãos se dão a mão,


ninguém há que se atreva, ninguém há que se não sujeite; nem a
Serpente levanta o colo, nem o Leão, encrespa a juba, nem o Lobo
mostra o dente: o Lobo, a Serpente, e o Leão, todos são ovelhas.
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIV: 171)

365
Recorde-se que D. Duarte fora feito prisioneiro pelo Imperador
Fernando II por instâncias de Filipe IV e que os esforços de D. João IV
não lograram a libertação do irmão.

3. Perante o levantamento efetuado, verifica-se que o Padre António


Vieira recorreu ao mundo animal, com referências a animais específicos
em 33 sermões. Uns representaram qualidades, caso da águia e da
ovelha. Outros, pelo contrário, evidenciaram características negativas,
como a serpente, ligada à heresia. Em determinados contextos, o mesmo
animal serviu para evidenciar qualidades e defeitos, por exemplo, a
abelha, o leão, o jumento e o touro. Ou seja, importa ter em conta
não só as fontes de inspiração de cada autor em cada época, mas
também os contextos específicos para descodificar os sentidos, pois,
por exemplo, o leão tanto pode ser símbolo da cólera, da crueldade,
da ferocidade e da violência como da generosidade e da vigilância.

Quadro 1
Sermões com referências a animais

Sermão Data Local Animal


Canário, papagaio,
“Sermão XXII” [do Rosário] ? ?
pintassilgo, rouxinol
“Comento, ou Homilia, sobre o Cabrito, carneiro,
? ?
Evangelho da Segunda-Feira [...]” ovelha
“Sermão VIII” [do Rosário] ? ? Aranha, mosca
“Sermão XI“ [do Rosário] ? ? Serpente
“Sermão do Evangelista São Lucas” ? Lisboa Águia, leão, boi
“Sermão ao Enterro dos Ossos dos
1637 Baía Corvo, pomba
Enforcados”
“Sermão da Santa Cruz” 1638 Baía Águia, pomba
“Sermão da Segunda Quarta-Feira
1638 Baía Mosquito, rã
da Quaresma”

“Sermão de Santo António” 1638 Baía Abelha

“Sermão do Esposo da Mãe de Deus,


1643 Lisboa Leão
São José”

366
Sermão Data Local Animal
“Sermão da Primeira Dominga Cervo, jumento, leão,
1644 Lisboa
do Advento” lobo, serpente
Lobo, ovelha,
“Sermão da Ressurreição de Cristo
1647 ? ? pintassilgo, rouxinol,
Senhor Nosso”
serpente
“Sermão da Ascensão de Cristo
1647 ? Lisboa Águia
Senhor Nosso”
“Sermão IX” [do Rosário] 1648 ? Mar Águia, boi, cordeiro, leão
“Sermão das Exéquias do Sereníssimo Leão, lobo, ovelha,
1649 Lisboa
Infante de Portugal Dom Duarte […]” serpente
“Sermão de Santo Agostinho” 1649 Lisboa Águia
Baleia, elefante,
“Sermão da Dominga Vigésima
1649 Lisboa gafanhoto, leão,
Segunda post Pentecosten”
mosquito, raposa, tigre
“Sermão da Primeira Sexta-Feira
1649 Lisboa Baleia, formiga
da Quaresma”
“Sermão da Primeira Dominga Águia, elefante, leão,
1650 Lisboa
do Advento” tigre, touro
Águia, andorinha,
“Sermão da Terceira Dominga baleia, boi, elefante,
1650 Lisboa
do Advento” formiga, jumento, leão,
lobo, rémora, serpente

“Sermão do Demónio Mudo” 1651 Lisboa Cordeiro, leão, ovelha

“Sermão da Terceira Quarta-Feira


1651 Lisboa Boi, cordeiro, leão, lobo
da Quaresma”

“Sermão de Nossa Senhora de Penha


1652 Lisboa Águia, leão, touro
de França”

São
“Sermão de Santo António” 1653 Luís do Mula
Maranhão

São Peixe-voador, polvo,


“Sermão de Santo António” 1654 Luís do rémora, tralhoto,
Maranhão tremelga, tubarão
São
“Sermão de Nossa Senhora
1654 Luís do Boi, jumento
do Rosário”
Maranhão
“Sermão da Primeira Dominga
1655 Lisboa Serpente
da Quaresma”

“Sermão da Quarta Dominga Leão, tigre, serpente,


1655 Lisboa
da Quaresma” urso

367
Sermão Data Local Animal
São
“Sermão de Nossa Senhora
1659 Luís do Cordeiro, ovelha
do Carmo”
Maranhão
Cão, crocodilo, lobo,
“Sermão da Epifania” 1662 Lisboa
ovelha, serpente
“Sermão nos Anos da Sereníssima Águia, leão, pomba,
1668 Lisboa
Rainha […]” touro
“Sermão da Primeira Dominga 1670-
Roma Rã
da Quaresma” 1675
“As Cinco Pedras da Funda de Davi” 1674 Roma Águia, boi, leão

As referências a animais na parenética de Vieira abrangeram fauna


europeia, mas também africana e americana, no caso de peixes. Tendo
em conta o número de sermões em que cada animal foi referido, em
termos de classes, destaquem-se os mamíferos, presentes com de-
zassete espécies, as aves com oito e os peixes e os insetos com seis
cada. As restantes estão presentes de forma mais residual, os répteis
têm duas menções e os anfíbios e os moluscos uma cada. Em termos
de espécies, o primeiro lugar foi para o polivalente leão, o segundo
para a inequívoca águia, o terceiro para a nefasta serpente e o quarto
para a igualmente inequívoca ovelha, em termos de significado.

Quadro 2
Classes e Espécies de Animais nos Sermões

Espécie Classe Sermões22


Abelha Inseto 1
Águia Ave 10
Andorinha Ave 1
Aranha Aracnídeo 1
Baleia Mamífero 4

2 Número de sermões em que foi referido.

368
Espécie Classe Sermões22
Boi Mamífero 5
Cabrito Mamífero 1
Canário Ave 1
Cão Mamífero 1
Carneiro Mamífero 1
Cervo Mamífero 2
Cordeiro Mamífero 3
Corvo Ave 1
Crocodilo Réptil 1
Elefante Mamífero 3
Formiga Inseto 2
Gafanhoto Inseto 1
Jumento Mamífero 3
Leão Mamífero 12
Lobo Mamífero 5
Mosca Inseto 1
Mosquito Inseto 2
Mula Mamífero 1
Ovelha Mamífero 6
Papagaio Ave 1
Peixe voador Peixe 1
Pintassilgo Ave 2
Polvo Molusco 1
Pomba Ave 2
Rã Anfíbio 2
Raposa Mamífero 1
Rémora Peixe 2
Rouxinol Ave 2
Serpente Réptil 8
Tigre Mamífero 3
Touro Mamífero 3
Tralhoto (quatro-olhos) Peixe 1
Tremelga (torpedo) Peixe 1

Tubarão Peixe 1

Urso Mamífero 1
Total - 101

369
Não foi só em Vieira que o uso deste tipo de linguagem se fez
notar. Por exemplo, no sermão de Fr. José de Santa Maria, membro
da Ordem da Santíssima Trindade da Redenção dos Cativos, pregado
por ocasião do primeiro resgate geral após a Restauração, efetuado
em Tetuão, em 1655 (Braga, 2012), o orador cativou os fiéis du-
rante a procissão solene efetuada em Lisboa, a 23 de dezembro de
1655, após uma missão de resgate levada a efeito por Fr. Henrique
Coutinho e por Fr. António da Madre de Deus, através da qual foram
obtidos 183 cativos, entre homens (leigos e religiosos), mulheres e
crianças (Braga, 1994: 124). No sermão, o autor, além de glorificar
os Trinitários, definiu o cativeiro e não poupou epítetos negativos
aos muçulmanos. Os homens do Islão e o poder muçulmano foram
presenteados com palavras e expressões como, para ficarmos no
mundo animal, “feras indómitas” (Santa Maria, 1656: 2, 3, 10, 14,
16, 19, passim). Em peças parenéticas proferidas em cerimónias
do Santo Ofício, a mesma prática de recorrer aos animais para ca-
racterizar os inimigos também se verificou. Por exemplo, em 1697,
por ocasião da primeira procissão de familiares do Santo Ofício da
Baía, um beneditino da província do Brasil, Fr. Ruperto de Jesus,
pregou um sermão em que chamou aos hereges “verdadeiros leões
e leopardos da Igreja” ( Jesus, 1700: 26).
Utilizar animais para denunciar abusos e criticar erros, mas
também para salientar boas ações e comportamentos virtuosos,
foi desde cedo uma estratégia comum, a que Vieira não se furtou.
Através de figuras retórico-estilísticas como alegorias, antíteses, após-
trofes, comparações, eufemismos, enumerações, hipérboles, ironias,
metáforas e paradoxos, entre outras, o pregador procurou de forma
erudita ensinar, deleitar e mover o público dos seus sermões. Foi um
recurso, a par de outros, para obter efeitos concretos na audiência,
para alcançar a reforma dos costumes e lograr o aperfeiçoamento
da prática espiritual.

370
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374
Os peixes no “Sermão de Santo António”:
da classificação das espécies à atualidade da crítica

The fish in the “Sermão de Santo António”:


from species classification to critical actuality

Eunice Maia
Colégio Pedro Arrupe
ORCID | 0000-0002-0715-9781
Resumo
O programa e as metas de Português do Ensino Secundário
contemplam, no 11.º ano de escolaridade, o estudo, no domínio
da Educação Literária, do “Sermão de Santo António”, do Padre
António Vieira. Apresentaremos, numa primeira parte, os motivos
pelos quais o discurso parenético vieirino seduz e apaixona,
ainda hoje, os nossos alunos. Numa segunda parte, exporemos
as estratégias pedagógicas desenvolvidas no âmbito da análise
dos capítulos iii e v da mesma obra. Serão também expostos os
materiais e os produtos finais, concebidos sob uma metodologia de
trabalho de projeto, em articulação com a disciplina de Biologia
e no contexto de um projeto educativo em que os assuntos do
mar têm um lugar central – a partilha de parte desta unidade
didática pretende configurar-se, portanto, como um contributo
para a construção de um “curriculum do mar”. Além da cons-
trução de pósteres científicos com a classificação das espécies
referidas naqueles capítulos do texto sermonístico, segundo

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_16
as normas taxonómicas, os grupos produziram ainda textos de
reflexão sobre a atualidade da crítica, articulando a sátira social
vieirina com artigos da imprensa escrita. Demonstrar-se-á, ainda,
através de testemunhos, como António Vieira (des)inquieta os
nossos alunos, apesar dos séculos que os separam do pregador
e do seu tempo.
Palavras-chave: ensino secundário; peixes; sátira; sermões; Vieira

Abstract
The Portuguese Program of Secondary Education includes, in
the 11th grade, concerning the field of Literary Education, the
study of António Vieira’s “Sermão de Santo António”. In the first
part of this communication, we will present the reasons why this
sermon still seduces our students today. In the second part, we
will present the pedagogical strategies developed in the context
of the analysis of chapters iii and v of the same work. The final
materials and products were designed under a project-learning
methodology, in articulation with the discipline of Biology and
in the context of an educational project in which the ocean has
a central place. The sharing of part of this didactic unit aims to
configure itself, therefore, as a contribution to the construction
of a “sea curriculum”. In addition to the construction of scientific
posters with the classification of the species referred in those
chapters of the sermonistic text, according to the taxonomic
norms, the groups also produced texts reflecting on the actuality
of the criticism, articulating the social satire with media and press
articles. It will also be demonstrated, through testimonies, that
António Vieira still fascinates our students, despite the centuries
that separate them from the preacher and his time.
Keywords: secundary education; fishes; satire; sermons; Vieira

376
I. A figura e a obra de Padre António Vieira são, para os alunos
de secundário que com elas contactam no 11.º ano de escolaridade,
fonte de inquietação e assombro, sentimentos que se sobrepõem à
dificuldade inicial, naturalmente suscitada pela complexidade asso-
ciada à exegese de um sermão hagiográfico, peça de oratória, neste
caso concreto, desenvolvida em torno da figura de S. to António e
produzida em circunstâncias históricas muito particulares.
Este fascínio (diria mesmo maravilhamento) é igualmente justifi-
cado pela constatação da criatividade e do talento do pregador, que
conjuga, na sua argumentação lógica (brilhante postulado filosófico e
científico), a linguagem da ciência e o texto bíblico, a matéria cientí-
fica e a verdade religiosa, ou, ainda, nas palavras de Carlota Urbano
e Margarida Miranda, na introdução ao tomo ii, volume x, da Obra
Completa Padre António Vieira, sob a direção de José Eduardo Franco
e Pedro Calafate, “as suas fontes antigas, clássicas e cristãs” (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, X: 11). A força retórica da sua prédica
parece-nos ser, precisamente, um dos aspetos mais marcantes, im-
pressionando aqueles que a analisam em sala de aula, precisamente
por denunciar um conhecimento científico vastíssimo, ao serviço do
seu objetivo ideológico: a edificação e elevação moral do auditório.
De facto, homem da e de ciência, Vieira acompanhou, como con-
firma Carlos Fiolhais, a explosão da ciência no séc. xvii , século de
Galileu e de Newton, da revolução científica; apresentando-se como
um homem do seu tempo, movido pela curiosidade, observando
e registando o resultado dessas mesmas observações, que dizem
respeito a campos tão diversificados como a matemática, a biologia
e a astrologia. É, por isso, com indisfarçável e incontido espanto
que os alunos descobrem, nos capítulos subsequentes ao exórdio,
particularmente nos capítulos iii e v , a descrição e caracterização
exaustivas de diferentes espécies de peixes. E o mar, esse mar
tumultuoso que o pregador atravessou tantas vezes, é pródigo em
comportamentos dignos de louvor e de repreensão. Ora, por meio

377
da alegoria, o sermão transforma-se numa poderosíssima arma de
intervenção cívica – e neste momento a turma está já completamente
rendida à perspicácia e audácia do orador… – os peixes representam,
afinal, diferentes tipos humanos, e o seu comportamento espelha
os vícios que, de forma veemente, o Padre António Vieira condena
na sociedade da época. A crítica mais violenta e demolidora é di-
rigida à avidez desmedida dos grandes que comem os pequenos,
dos poderosos que exploram os mais fracos ou, naquele contexto,
dos colonos que subjugavam impiedosamente os índios, o seu “pão
quotidiano”, escravizando-os. Eis que a ictiofagia se transfigura em
antropofagia social ou civilizacional, deixando emergir a repreensão
da corrupção e da exploração, com um alcance universal. Vieira
intervinha assim na polis, usando, com lucidez desassombrada,
a palavra como arma, assumindo-se como defensor daquilo que
só mais tarde designaríamos como direitos humanos. Mais uma
vez, o orador conquista os jovens leitores, pelo exercício de uma
cidadania ativa que coloca o verbo ao serviço do bem comum, o
que revela também a força do seu carácter (ethos). Haverá, aliás,
melhor exemplo para contrariar o aparente afastamento dos mais
novos da política – entendendo-se aqui a palavra no seu sentido
etimológico (aquele que se dedica à polis)?
É interessante referir, por fim, o impacto que o texto vieirino tem
no incremento da competência leitora, não só porque a sofisticação
e erudição da linguagem, marcada pelo cultismo e virtuosismo do
pregador, autêntico artesão da palavra, mobilizam imediatamente os
processos cognitivos mais complexos, mas também, porque, influen-
ciados pela dimensão teatral da sua oratória, os alunos se sentem
tentados a imitar o carisma e o magnetismo de Vieira, passando a
encarar a leitura em voz alta como uma pregação realizada a partir
do púlpito. Há verdadeiras revelações: os mais tímidos ganham uma
triunfante e arrasadora “voz de trovão”, os mais impetuosos con-
seguem emitir uma inesperada “voz de orvalho”; e todos adquirem

378
maior consciência da magia que a voz, a pronunciação, a expres-
sividade operam sobre o auditório, procurando cumprir, tal como
o pregador há mais de três séculos, os objetivos programáticos da
oratória: deleitar, ensinar e persuadir.
Mas porque “Palavras sem obra são tiro sem bala; atroam, mas
não ferem” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, II: 53), passaremos
de imediato à apresentação de exemplos concretos de algumas das
estratégias pedagógicas desenvolvidas no âmbito da análise dos
capítulos iii e v do “Sermão de Santo António” aos peixes. Serão
também expostos os materiais e os produtos finais, concebidos sob
uma metodologia de trabalho de projeto.

II. O trabalho que aqui partilhamos (e que só foi possível graças


a toda uma equipa de professores de português) foi desenvolvido
com e por alunos de uma escola cujo projeto educativo está inti-
mamente associado ao mar, desde logo, através da construção e
operacionalização de um “currículo do mar”. Esta opção pressupõe o
desenvolvimento de competências transversais, articuladas entre os
diferentes ciclos, promovendo a literacia dos oceanos e a formação
de uma cultura marítima pautada pela sustentabilidade e consciência
ambiental. Tal arquitetura curricular tem a sua expressão máxima
na Semana do Mar, momento em que os alunos são convidados a
trabalhar sob a forma de projeto, integrando grupos heterogéneos,
com elementos de diferentes ciclos e níveis de escolaridade, dedi-
cando-se à resolução de problemas ou experimentando aprendizagens
em contextos reais. A exploração das temáticas marítimo-ambientais
conta, muitas vezes, com a supervisão e colaboração de entidades
externas, nomeadamente, e de forma mais próxima, da Estrutura
de Missão para a Extensão da Plataforma Continental, através do
projeto educativo Kit do Mar. O produto final é apresentado a toda
a comunidade educativa em exposições, conferências, seminários
e na blogosfera.

379
Ora, o “Sermão de Santo António” aos peixes é um dos conteúdos
que figuram nesse curriculum, tendo o departamento de Português,
em conjunto com o departamento de Ciências, desenvolvido estra-
tégias e materiais didáticos específicos, após a identificação dos
princípios da Ocean Literacy, que permitiriam, nestas disciplinas, o
crescente aprofundamento dos conhecimentos sobre o mar.
Nesse sentido, no âmbito do estudo dos capítulos iii e v , e
após a análise, com a ajuda dos docentes de Biologia, das regras
a observar para proceder à classificação dos animais (taxonomia),
assim como das principais características do póster científico
(estrutura, linguagem e estilo, referências bibliográficas, seleção,
hierarquização e apresentação de informação relevante), os alunos
organizaram-se em grupos, previamente definidos, munidos de
computadores com acesso à Internet e bibliografia e construíram os
cartões de identidade e os pósteres científicos relativos a cada um
dos peixes referidos naqueles dois capítulos. Além da classificação
e da identificação do grupo taxonómico de cada peixe, os alunos
tinham ainda de proceder ao levantamento de expressões textuais
que descrevessem o comportamento e características do animal, assim
como apresentar o seu valor simbólico, fundamentando. Por fim, a
última secção era dedicada à transposição da crítica para a socie-
dade atual, com a ajuda, em alguns casos, de artigos de imprensa,
promovendo um momento de reflexão sobre a intemporalidade
do sermão vieirino e da sua intenção satírica. No final, os grupos
apresentaram e discutiram em fórum os resultados, tendo todos os
pósteres produzidos sido expostos na Semana do Mar, de forma a
que a comunidade educativa a eles tivesse acesso.
Volvidos mais de três séculos, o fascínio e o assombro provocados
pelas palavras de Vieira permanecem. Dizia o orador, no “Sermão
da Sexagésima”, que “Quando o ouvinte a cada palavra do pre-
gador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para
o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa

380
confuso, e atónito, sem saber parte de si, então é a pregação qual
convém, então se pode esperar que faça fruto” (Franco & Calafate,
2013-2013, II, II: 72). Acreditamos que sim, acreditamos que a pa-
lavra de Vieira, profeta e poeta da nossa língua, faz e continuará a
fazer fruto junto dos nossos alunos.

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381
(Página deixada propositadamente em branco)
As plantas na obra do Padre António Vieira

The plants in the work of Father António Vieira

Isabel Maria Madaleno


Universidade de Lisboa
ORCID | 0000-0001-6630-3133

Resumo
A contribuição que se submete identifica e analisa os verná-
culos de espécies vegetais mencionadas na obra do jesuíta e
contextualiza-os. Listaram-se cento e cinco plantas, divididas
em três categorias distintas. 1) As plantas bíblicas foram com-
paradas com as constantes em manuais de plantas referidas
nos textos sagrados, resultando a identificação botânica de
cinquenta e seis espécies reconhecidas por pelo menos dois
botânicos. 2) A segunda categoria de árvores, arbustos e ervas
não existentes nos textos bíblicos é composta por espécies na-
tivas da América ou exóticas, europeias e asiáticas. Para a sua
identificação socorremo-nos da investigação primária realizada
ao longo de mais de uma década e de manuais de flora brasi-
leira (da Amazónia e do Maranhão), de especiarias e madeiras
preciosas da Índia e de Malaca. A listagem resultante contém
quarenta vernáculos. 3) Uma terceira categoria de plantas, que
por vezes coincide com as outras duas, é constituída por sim-

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_17
ples e mezinhas curativas, para cuja identificação se utilizaram
tratados de médicos e boticários do Renascimento.
Palavras-Chave: flora; plantas bíblicas; Jesuítas

Abstract
This paper analyses the entire vernacular names of the vegetable
species mentioned in the writings of the Jesuit, in the context
they were used. A total of one hundred and five have been listed
and divided into three groups. 1) the first group was compared
to the lists of biblical plant species studied by botanists through
times, detaching the ones mentioned by at least two authors as
being cited in the scriptures. This method gave a total of fifty-six
species, even though a less restrictive option accounts for more.
2) The second category is composed by the non-biblical plants,
either American or exotic, which identification was permitted
using the primary information gathered in our own research
and secondary data from botanical manuals. 3) A third and last
category of vernaculars that often coincides with the other two
is constituted by simples and medicines that Vieira used or the
plants which uses he knew. The identification was possible using
Renaissance treaties of herbal medicines.
Keywords: flora; biblical plants; Jesuits

1. Introdução
O Padre António Vieira nasceu em Lisboa, em 1608, e entregou a
alma ao Criador na Baía, em 1697. Nos seus 89 longos anos, Vieira
produziu uma obra notável, qual jardim do verbo, tão diferenciada
que inclui inspirada parenética, uma invejável obra epistolar, uma
contestada construção de textos proféticos, sem olvido de peças de
teatro e poesia dispersa, ora reunidos numa edição de 30 volumes

384
(Franco & Calafate, 2013-2014). Português e brasileiro, porquanto
o Brasil era pertença deste pequeno retângulo à beira-Atlântico
plantado, Viera ingressou na Companhia de Jesus e viveu mais
tempo nas Américas do que na Europa. As suas longas viagens pelo
hemisfério ocidental contribuíram de forma ímpar para enriquecer
as reflexões sobre as Escrituras, legando-nos relatos arrebatadores
do seu saber de experiências feito, que influenciaram o governo
da nação, no seu tempo (Fonseca, 1997).

2. Metodologia
O presente trabalho integra-se num projeto de pesquisa iniciado
no Instituto de Investigação Científica Tropical, em 2011, intitulado
“Coordenação e execução de investigação arquivística versando os
saberes tradicionais sobre flora medicinal dos países da CPLP ou
países outrora colonizados por portugueses, através da exploração
dos escritos de membros da Companhia de Jesus”. No seu âmbito
realizámos pesquisa sobre manuscritos do séc. xvi (Madaleno, 2015a)
e sobre plantas bíblicas (Madaleno, 2013). Estudos recentes sobre o
P.e José de Anchieta foram alvo de comunicação aos nossos pares e
de subsequente edição (Madaleno, 2016, 2017). Assim que começou
a ser publicada, prosseguimos com a leitura da obra completa do
Padre António Vieira, referente ao séc. xvii, visando a identificação
dos vernáculos de espécies vegetais por ele referidas.
A metodologia utilizada constou das seguintes etapas. 1) Análise
da obra de Vieira, com registo sistemático de toda a flora por ele
mencionada. 2) Elaboração de listagem dos vernáculos e contexto
em que foram empregues. 3) Comparação das plantas registadas
com as constantes em manuais de plantas bíblicas (Mendonça
de Carvalho, 2011; Wlodarczyk, 2007). A identificação botânica
destas espécies, normalmente integradas em sermões e referentes
a passagens das Escrituras, levou ao reconhecimento de cinquenta
e seis espécies, mencionadas por pelo menos dois botânicos de

385
nomeada. 4) As plantas não bíblicas foram destacadas na listagem
de vernáculos ordenados a par e passo, durante o processo de
leitura de Vieira, resultando numa outra categoria de espécies
composta por plantas nativas da América ou exóticas. Para a sua
identificação socorremo-nos da investigação primária realizada
ao longo de mais de uma década e de manuais de flora brasileira
(Rodrigues, 1989; Madaleno, 2012), de especiarias e sobre espécies
que dão madeiras preciosas, nativas da Índia e de Malaca, ou da
Malásia (Sahni, 2010). O inventário resultante contém quarenta
vernáculos. 5) Finalmente identificaram-se plantas medicinais, que
são transversais às primeiras duas categorias, constituídas pelos
simples e mezinhas curativas, através de recurso a tratados do
Renascimento (Orta, 1563).

3. Resultados e Discussão

3.1. Plantas bíblicas


A mais discutida árvore bíblica é a árvore da vida: “O Senhor
Deus […] colocou a árvore da vida no meio do jardim” (Gn 2, 9).
No “Sermão de São Roque”, pregado na Capela Real em 1649, Vieira
afirma que “a Cruz foi a Árvore da Vida de todo o Género Humano”,
a propósito do sinal da cruz com que S. Roque sarava do mal da
peste, “instrumento da nossa vida, e da Sua morte” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, XI: 389). Vieira leva-nos, assim, a concluir que Cristo
é a árvore da vida, o que transcende obviamente a botânica.
Uma árvore identificável e símbolo da luz é o plátano (Platanus
orientalis) que afugentava os “filhos das trevas, e inimigos da luz, e
por isso feios, e funestos, símbolos dos mesmos Demónios” (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, IX: 70), numa analogia às propriedades
das folhas da árvore que afugentam os morcegos. Nessa medida, a
Virgem Maria, que acompanhou e orientou seu filho Jesus Cristo, está
encarregue de nos defender dos Demónios, das tentações terrenas,

386
tal como preparou o seu filho para enfrentar as armadilhas armadas
contra ele. A árvore que sombreia ruas e avenidas ajuda-nos a en-
veredar por caminhos de retidão e justiça, na simbologia vieiriana.
No “Sermão XXVIII” do Rosário, do mesmo vol. ix da parenética,
Vieira discursa sobre uma passagem do Eclesiástico (Eclo 24, 13-14),
onde a Virgem Maria é “exaltada nos campos como Oliveira formosa
e como Plátano à beira de água”. “Compara-se aqui a Senhora às
árvores” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IX: 370), imponente como
o cedro do Líbano e como cipreste do Monte Sião; como palmeira
em Cades e jardim de roseiras em Jericó, metáfora da sabedoria do
povo a que pertence.
As árvores de grande porte, como o cedro do Líbano (Cedrus
libani), são símbolo do poder (Franco & Calafate, 2013-2014, III,
II: 455) e da imortalidade para os judeus (Sl 37 (36), 35-36); o
cedro é incorruptível e odorífero (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
IX: 371). O cipreste (Cupressus sempervirens) foi a madeira eleita
para construir o teto da casa de Salomão (Ct 1, 17), símbolo de
mortalidade: “sobe direita ao Céu, era melhor que todas as árvores
consagradas ao Culto Divino” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IX:
371). Em contrapartida a oliveira (Olea europaea) é símbolo da paz,
da misericórdia e da compaixão (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
IV: 251). Não por acaso é a árvore do Horto das Oliveiras, sobre o
qual Vieira se debruça nos sermões do t. ii , vol. iv .
Tanto a azeitona como o azeite são consumidos desde os tempos
bíblicos e aplicados em práticas de cura, sendo um dos óleos bal-
sâmicos que os padres da Companhia de Jesus usavam nas missões
e nos dispensários no tempo de Vieira (Walker, 2009). Abre-se aqui
um parêntesis para mencionar que a terceira função do azeite é a
de alumiar. Por exemplo, as “candeias das virgens”, nas palavras do
Evangelho segundo S. Mateus (Mt 25, 1-13), são motivo de narrativa
sobre a prudência, no “Sermão de São Roque”: “Quiseram luzir,

387
quando haviam de poupar, e vieram a mendigar, quando haviam
de luzir” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XI: 358).
Por sua vez, a folha da oliveira que a pomba levou a Noé, sím-
bolo da paz, é alvo de reflexão em 1637, no “Sermão ao Enterro dos
Ossos dos Enforcados”: “Debaixo delas [das águas] se conservou
inteira, e verde, porque debaixo dos grandes, e exemplares cas-
tigos, cresce, e reverdece a paz” (Franco & Calafate, 2013-2014, II,
XIV: 90). Esta passagem é expressiva da beleza poética com que
o jesuíta construiu os seus sermões e impressiva pelo uso que fez
das plantas para refletir sobre as Escrituras.
A palma triunfal “de que se tecem Coroas aos vencedores” era
considerada “melhor que todas as outras” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, IX: 371). A palma era, assim, metáfora de grandeza de alma:
“A estatura da Alma Santa diziam as outras Almas suas companheiras
que era semelhante à palma” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XI:
150), transcreve Vieira de S. João Evangelista, num sermão escrito
em 1644. E acrescenta: “Porque todas as outras árvores, ainda que
sejam os cedros mais gigantes do Líbano, têm limite no crescer,
e termo na estatura: só a palma não, sempre cresce. Tais são as
almas dos Santos” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XI: 150-151).
“A palma é símbolo da paciência, como a oliveira da misericórdia,
e compaixão” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IV: 251). Entre
ambas a diferença consiste no facto de a palma padecer e a oli-
veira compadecer.
De que palma ou palmeira está Vieira a falar? Se analisarmos a
listagem do Jardim Botânico do Missouri, que contém 511 géneros
da família das Arecaceas ou palmas (MBG, 2016), e cruzarmos os
géneros existentes em todo o planeta com a listagem das plantas
bíblicas da investigadora polaca Zofia Wlodarczyk (2007), que
compilou 206 espécies mencionadas na Bíblia e reconhecidas em
cinco obras de botânicos de nomeada – o casal Moldencke (1952),
Zohari (1982), Hepper (1992), Maillat & Maillat (1999), Hareuveni

388
(1996) –, apenas o género Phoenix e a espécie dactylifera são re-
conhecidos por todos eles. Essa é igualmente a opinião de Lytton
John Musselman (2012), no seu Dicionário de Plantas Bíblicas.
Escavações feitas na fortaleza de Masada, junto ao Mar Morto,
comprovaram a existência de tâmaras naquela localidade datadas
de 206 a.C. (Sallon et al., 2008). Trata-se então da tamareira, que
de acordo com o investigador português Mendes Ferrão (2002) é
originária de zonas áridas, que se distribuem do norte de África ao
Golfo Pérsico. A espécie cultiva-se hoje por todo o mundo e, muito
particularmente, na península Ibérica, sendo reconhecidas as suas
virtudes terapêuticas (Rivera et al., 2014). O melhor argumento
em favor da tamareira é-nos proporcionado pelo próprio Vieira em
1649, no “Sermão nas Exéquias da Senhora Dona Maria de Ataíde”,
ao substituir palma por Phoenix na transcrição da frase de Job ( Jó 29,
18): “In nidulo meo moriar, et sicut Phoenix multiplicabo dies meos”,
ou no meu ninho morrerei, e multiplicarei os meus dias (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, XIV: 120).
A rosa de Jericó é a Rosa phoenicia (Moldencke & Moldencke,
1952; Zohari, 1982; Hepper, 1992; Wlodarczyk, 2007). As rosas, ou
melhor, os botões de rosa são as contas do rosário, “sobrenome”
da Virgem Maria, “que assim lho pôs o Espírito Santo” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, VIII: 348). De novo a simbologia vieiriana
nos elucida: “Rosa em Jericó significa a guerra vitoriosa” (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, VIII: 348). Noutro sermão (XVIII), Vieira
explica que a Virgem, como Senhora do Rosário, é a verdadeira
obreira da passagem da Terra ao Céu, sendo as rosas do rosário
as de Jericó, porque “são compostas de cento e cinquenta folhas,
quantas são as Saudações Angélicas, com que veneramos, e invo-
camos a Virgem no seu Rosário” (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, IX: 113).
Vieira não limita a cor das rosas ao branco típico da Rosa
phoenicia. No entanto, a propósito do mistério da Ressurreição

389
diz que as rosas brancas são próprias “da imortalidade” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, IX: 116). Exorta os fiéis a perseverarem na
oração, a fim de receberem a “Coroa de Rosas, que é o Carácter, o
Penhor, e o Salvo-Conduto” para serem admitidos no lugar “onde
Deus se deixa ver” e assim gozarem da sua companhia “por toda
a Eternidade” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IX: 126). Desde
o séc. v que a rosa se associa ao nascimento de Cristo e à Virgem
Maria, mas também à Paixão e morte do Senhor, em cruzes ins-
critas em motivos florais, com funções protetoras e frequentes nos
mosaicos das igrejas bizantinas (Kandeller & Ullrich, 2009). A rosa
aparece, ainda, nas narrativas hagiográficas porquanto o milagre
das rosas da rainha S.ta Isabel merece destaque (Franco & Calafate,
2013-2014, II, XI: 92-95).
Vieira contrapõe a rosa à folha da hera (Hedera helix), pois, se
no segundo livro dos Macabeus se conta que o tirano marcou os
cativos de Jerusalém com a folha do deus Baco, a quem a trepadeira
era dedicada, aos “Escravos do Rosário” ficou reservada a “marca”
ou “ferrete” da rosa (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IX: 356). E há
a rosa natural, um género que contém diversas espécies medicinais
(Rosa canina, R. pendulina, R. centifolia), estudadas por António
Proença da Cunha, Alda Pereira da Silva e Odete Rodrigues Roque,
da Universidade de Coimbra (2003) e a que “deu o nome ao Rosário,
por servir à Rosa Mística, que é a Virgem Senhora nossa” (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, IX: 413).
Contudo, a hera de Jonas ( Jn 4, 6) era, na verdade, o rícino ou
mamona (Ricinus communis), designação mais vulgar no Brasil,
onde Vieira passou boa parte da sua existência. Aliás, as versões
modernas do livro de Jonas já são impressas com essa correção, pois
ao longo do tempo os estudiosos aperceberam-se de que seria difícil
que a hera fizesse sombra sobre a cabeça de alguém, a menos que
trepasse por uma estrutura idêntica à duma latada. Não deixa de
ser controversa esta identificação, uma vez que o rícino não é mais

390
do que um arbusto que também não alivia ninguém da insolação,
como o faria qualquer árvore. Certo é que a hera é identificada
como bíblica (Wlodarczyk, 2007), sendo referida nas cartas (Franco
& Calafate, 2013-2014, I, V: 181), nos sermões (Franco & Calafate,
2013-2014, II, II: 214; II, IV: 484; II, IX: 356) e na obra profética
do jesuíta (Franco & Calafate, 2013-2014, III, II: 89): “A sua pouca
mortificação, ira e impaciência bem se viu na ocasião em que se lhe
secou a hera”, a propósito da história de vida de Jonas ( Jn 4, 9).
Mais notável do que a hera é a espécie exótica canela de Ceilão
(Cinnamomum zeylanicum), cuja casca asiática odorífera é con-
siderada bíblica e usada desde tempos imemoriais na culinária e
nas terapias associadas ao uso de plantas. Existe ainda o cina-
momo (Cinnamomum cassia) que Vieira também refere (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, VIII: 303), mais conhecida pela designação
de cássia da China. O jesuíta transcreve o Eclesiástico (24, 15),
onde as canelas se confundem, já que nenhum dos autores era
botânico. A canela de Ceilão é mais aromática e fina, enquanto a
casca da cássia chinesa é mais grossa e a sua qualidade considerada
inferior. Existe ainda uma outra cássia, que identificámos como
sendo a espécie senna, igualmente bíblica, que Vieira menciona em
1679 (Franco & Calafate, 2013-2014, III, VI: 115). Para complicar, o
autor em apreço entende, erradamente, no primeiro volume da sua
profética (Franco & Calafate, 2013-2014, III, I), que o cinamomo de
Salomão é a canafístola (Cassia fistula).
De comum as plantas citadas têm, como comprovamos a par
e passo, a utilização medicinal. De facto, muitas espécies bíblicas
eram usadas para curar, empregues em metáforas da fé. A folha da
hera usa-se no Peru em banhos anti-inflamatórios, e cataplasmas das
folhas aplicam-se sobre as varizes (Agapito & Sung, 2004). O rícino
é igualmente usado como cicatrizante, no Brasil, em São Luís do
Maranhão (Madaleno, 2011). A canela consome-se na Argentina
contra resfriados e após as refeições, como digestivo (Madaleno &

391
Montero, 2012). Na Índia, em Goa, a infusão da folha da caneleira
ingere-se para baixar o colesterol. A Cassia senna é universalmente
tomada como purgante. A canafístola aparece mencionada nos
manuscritos de Duarte Barbosa (1516), de Tomé Pires (1516) e do
médico Garcia da Orta (1563), tendo usos como purgante, contra
a sarna e outras afeções de pele e ainda propriedades antipiréticas
(Veiga & Sousa, 1996-2000; Madaleno, 2015b).
Os juncos (Scirpus lacustris) são referidos a propósito da cestinha
onde colocaram o menino Moisés (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, IX: 318), numa passagem do Livro do Êxodo. São mencionados
ainda como associação vegetal que coroa o Tibre (Franco & Calafate,
2013-2014, II, XI: 92) e a vegetação através da qual espreitavam as
orações de S. Francisco Xavier, no Sonho Terceiro do santo (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, XII: 100). Finalmente, os juncos são usados
como termo de comparação no Sonho Segundo, na expressão “de-
safiar […] um Cedro a um junco, um Elefante a uma formiga”, pois
o santo tinha a estatura de um cedro e nunca a pequenez do junco
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, XII: 81).
Debrucemo-nos agora sobre o pão e o vinho, que são as palavras
mais vezes repetidas na parenética de Vieira. Se é fácil associar o
vinho à uva e à videira (Vitis vinifera), como o faz o jesuíta (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, III: 363), já difícil se torna identificar o
cereal de que é feito o pão. De facto, o pão de cevada (Hordeum
vulgare) era mais comumente comido pelo povo judeu, sendo o
trigo (Triticum aestivum, T. durum, T. turgidum) um cereal mais
nobre, reservado às famílias de maiores posses ou aos dias festivos.
Sendo embora preferido o pão de cevada no tempo de Cristo, Vieira
entendeu (seguindo a tradição da Igreja Católica) que no primeiro
milagre de multiplicação dos pães (Mt 14, 17-21), como na última
ceia com os apóstolos (Lc 22, 19), o pão era de trigo.
A hóstia consagrada “são grãos de trigo unidos”, tal como foi
concebida na Nova Aliança. “Mas esta admirável transformação, não

392
só a obrou Cristo em Seu corpo sacramentado” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, VI: 194), pois o mesmo havia sido prometido por
Deus a David: “Sustentou-os com o trigo mais fino” (Sl 80, 17). E o
jesuíta explica a razão pela qual Cristo sacramentado se compara
“a trigo, e não a pão”:

[…] assim como o trigo antes de chegar a ser pão […] se há de


moer, amassar, e cozer; assim para que as nossas Almas recebam
do Divino Sacramento aquela perfeita nutrição, e aumento de
virtudes […], não basta só que Cristo tenha feito para nós este
soberano alimento, mas é necessário também que nós o façamos.
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, VIII: 436)

Vieira vai ainda mais longe e num dos seus mais notáveis ser-
mões, o de Nossa Senhora do Rosário, com o Santíssimo Sacramento
Exposto, datado de 1654 escreve que Belém é “casa de Pão”, onde
nasceu Jesus como “trigo que nasce entre as palhas” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, VIII: 446). Retoma o tema do cereal mais
nobre numa narrativa epistolar (Franco & Calafate, 2013-2014, I, V:
141): “Cristo Senhor Nosso mandou que se não tocasse a cizânia,
que estava no campo misturada com trigo”, passagem do Evangelho
segundo S. Mateus (Mt 13, 29); e expande esta ideia na sua pa-
renética: “pedi-vos emprestado um moio de trigo, não vos hei de
pagar com o mesmo trigo, senão com outro” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, XV: 108). A conhecida parábola do trigo e do joio
(cizânia) é usada para recomendar prudência aos grandes do reino,
o que mantém a sua atualidade.
Não olvidemos que o pão é utilizado em sentido figurado na Bíblia
como na obra de Vieira, que sobre ela disserta. Os dois milagres de
multiplicação dos pães (Franco & Calafate, 2013-2014, II, III: 280)
são exemplo disso mesmo. A seara e o pão são metáforas de vida
e de alimento tanto do corpo como da alma (Franco & Calafate,

393
2013-2014, I, V: 95; II, XI: 391): “Quem come este pão viverá
eternamente” ( Jo 6, 58). E ainda: “pão transubstanciado em Deus”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, XIV: 193). Assim como: “a Igreja é
a seara e vinha de Cristo” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, II: 500).
O vinho e as bodas de Caná ( Jo 2, 1-12) são tema de diversos
sermões, por exemplo o “Sermão XXVI” do Rosário (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, IX: 319), enfatizando a boa influência da
Mãe de Jesus, que o terá instado a suprir a falta de bebida em casa
alheia, num ato de solidariedade. Claro que o vinho é fabricado a
partir da uva e era usado como oferenda e até para curar enfer-
midades, nos tempos bíblicos ( Jz 9, 13). Vieira menciona a planta
e o seu “sumo” nos seus sermões normalmente em contexto de
pregação sobre parábolas como a da vinha ou a da última hora
(Mt 20); o vinho misturado com fel, que deram a Cristo na cruz
(Mt 27, 34); mas também o vinho de Melquisedec (Gn 14, 18); o
vinho de Jeremias ( Jr 35); o vinho dos castos (Zc 9, 17); os vinhos
puros do banquete do Senhor dos exércitos (Is 25, 6); a vinha que
floresceu (Ct 2, 15).
No Novo Testamento, o vinho é empregue como metáfora de
sangue. Porém, numa das suas passagens mais belas e inspiradas,
Vieira escreve: “Esperava que da minha vinha houvesse de colher
uvas, e colhi espinhas” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, IX: 429).
As espinhas, no contexto do “Sermão XXX”, do segundo volume
dedicado aos Sermões do Rosário, Maria Rosa Mística, significam
aflições, desgraças, trabalhos, imprevistos que o demónio coloca
na vida dos seres humanos e contra os quais Vieira preconiza se
reze o rosário à Virgem Maria.
“Para a undécima hora de Sua vinha, guardou Deus aqueles que
em uma hora trabalharam e mereceram tanto como os outros em todo
o dia” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, II: 501). Vieira interpreta
desta forma a parábola dos trabalhadores da vinha, que é a undécima
no Evangelho segundo S. Mateus (Mt 20, 1-16): “Os últimos serão os

394
primeiros” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, II: 505). Conclui com
as profecias de Isaías (Is 25, 6): “Neste monte, o Senhor dos exércitos
fará um banquete de carnes gordas e vinhos puros”, como um “con-
vite que Deus há de fazer na Sua Igreja a todos os povos” (Franco
& Calafate, 2013-2014, III, II: 320), ou seja, um convite à união de
todas as nações do mundo, por meio da conversão ao cristianismo.
E, então, “sentar-se-á cada homem debaixo da sua parreira e debaixo
da sua figueira, sem que ninguém o incomode” (Mq 4, 1-4) e haverá
paz universal (Franco & Calafate, 2013-2014, III, II: 509).

3.2. Plantas medicinais


Uma das árvores de fruto mais repetidas por Vieira é a figueira
(Ficus carica), também prolífica na América, no Brasil onde o jesuíta
viveu. A “figueira muito copada” amaldiçoada por Cristo por não
ter fruto é alvo das reflexões sobre a justiça divina no “Sermão
de São João Batista” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XI: 102),
de 1644. Trata-se, neste caso da espécie religiosa (denominada em
inglês Sacred Fig Tree), árvore comum na Palestina, enquanto tanto
no Brasil como em Portugal dominam as figueiras da espécie carica.
A título de curiosidade, e recuando ao livro do Génesis, Christophe
Bourreux (2001) defende que a folha que cobria a nudez de Adão
e Eva era a Ficus carica.
Um pouco mais adiante, o Padre António Vieira escreve, no “Sermão
do Evangelista São Lucas” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XI: 218-
-219), sobre o poder curativo dos figos, cuja massa aplicada sobre
as feridas era um poderoso cicatrizante. Esta mezinha faz parte da
cultura judaica e das suas terapias mais ancestrais, uma vez que é
referida no Segundo Livro dos Reis (2Rs 20, 7), a propósito do tra-
tamento dispensado pelo profeta Isaías ao rei Ezequias. Entramos
aqui noutra categoria de plantas, que nunca abandona realmente a
descrição das plantas bíblicas, pois elas confundem-se. Aliás, Vieira
introduz as plantas e óleos balsâmicos nos seus sermões para explicar

395
que muitos profetas, evangelistas (como S. Lucas) e o próprio Cristo
curavam com eles simultaneamente os males do corpo e da alma.
A virtude terapêutica das plantas integra todo o vol. xi da pa-
renética. “Das raízes assim regadas cresce, e se engrossa o tronco
[…] formado de todos os lenhos medicinais” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, XI: 221). E mais adiante escreve que a seiva é bálsamo
que corre “como sangue” e dos poros abertos destilam mirras, como
suores. E apresenta exemplos de plantas que curam: “Tanto assim,
que prezando-se os Egípcios de inventores desta grande Arte, o
jeroglífico com que pintaram a Medicina foi uma Pomba com um
ramo de louro na boca” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, XI: 222).
Segundo Vieira foi Salomão o maior médico do mundo: “flores, e
frutos pediu a sua esposa que lhe aplicassem” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, XI: 222-223). E transcreve do Cântico dos Cânticos:
“Sustentai-me de flores, fortalecei-me de maçãs” (Ct 2, 5).
Analisemos as três plantas aqui descritas. 1) Tanto a espécie
carica como a Ficus religiosa foram registadas em Cochim, na
costa do Malabar, durante a nossa missão de 2013, ao serviço do
Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), ora integrado
na Universidade de Lisboa (UL). Os figos são consumidos na Índia
para minorar os efeitos da menopausa, mormente para estancar
hemorragias (Madaleno, 2015b). O seu uso em mezinhas curativas
já aparecia na listagem de plantas do boticário Tomé Pires (1516),
redigida em Cochim, e na obra do médico judeu Garcia da Orta
(1563). 2) O louro (Laurus nobilis) foi coletado nas missões ao
Chile (2003, 2004, 2006), ao México (2004, 2006), ao Peru (2006)
e a Cuba (2009), assim como nas missões a Belém do Pará e São
Luís do Maranhão (1998, 2005, 2010), no Brasil, onde se registou
o seu uso como antitússico e como digestivo (Madaleno, 2012).
3) A maçã (Malus sylvestris) é consumida na Índia com mel, para
curar a depressão. Este registo feito entre os entrevistados em
Goa, durante a nossa missão de investigação científica de 2014,

396
demonstra que o uso do fruto continua a fortalecer os pacientes,
tal como pretendia Salomão (Madaleno, 2015c).
Na sua obra profética, Vieira retoma o tema das plantas medicinais,
adicionando-lhe o seu vasto saber de experiências feito:

as árvores […] que produzem frutos todos os meses é algo que


não causará admiração a quem quer que souber que as nogueiras
e figueiras na Ásia e América possuem idêntica fertilidade e que
das nossas vinhas no Brasil todos os meses se colhem uvas.

E prossegue:

quanto àquilo que adita acerca das folhas das árvores, que,
conforme diz o profeta, servem para a cura dos povos, é do co-
nhecimento geral que não apenas nas folhas, mas igualmente nas
raízes, nas cascas e no próprio tronco […] esta virtude é comum.
(Franco & Calafate, 2013-2014, III, VI: 154)

3.3. Plantas nativas da América e exóticas


Subvertendo a ordem enunciada no resumo, vamos debruçar-nos
agora sobre outras plantas que não sejam consideradas bíblicas.
As plantas americanas são, em nossa opinião, aquelas que Vieira
melhor conhece, o que se encontra patente na sua afirmação: “a
palmeira […] não cessa de crescer enquanto vive. […] Não me acosto
a outra autoridade que não seja a minha, a quem aconteceu observar
na América para cima de vinte e nove espécies de palmeiras” (Franco
& Calafate, 2013-2014, III, VI: 64-65). Mais adiante refere-se aos índios
do rio das Amazonas, “Grão-Pará”, ou seja, “Grande-Mar”, percorrido
pelo P.e Cristóvão de Acuña, que encontrou nas suas margens um
número não inferior a 150 povos e línguas diferentes. Dentre eles
destaca os tapuias, “os quais nem plantam nem colhem, mas se

397
alimentam dos frutos que nascem espontaneamente das árvores do
mato” (Franco & Calafate, 2013-2014, III, VI: 376).
Relativamente à alimentação dos índios tabajaras, que Vieira
conheceu pessoalmente, escreve que vivem “de mandioca, milho e
alguns legumes” (Franco & Calafate, 2013-2014, IV, III: 132). Menciona
que muitos dos padres passaram fome, nos primeiros tempos da
colonização europeia, como foi o caso do P. e Pedro Pedrosa, cujas
aflições descreveu na sua Relação da Missão da serra de Ibiapaba:
“Muitas vezes a horas de jantar mandou com um prato pedir uma
pequena de farinha pelas portas, sendo ele o que fazia o fogo para
cozer umas ervas agrestes”. E mais adiante:

Quando aqui chegámos, havia quatro meses que os padres não


comiam mais que folhas de mostarda cozidas com água e sal […].
Alguma jornada fizeram de mais de sessenta léguas, em que levavam
a matalotagem na algibeira, que era um pouco de milho debulhado.
[…] Dias houve também caminhando, em que passaram os padres só
com os cardos do mato. (Franco & Calafate, 2013-2014, IV, III: 138)

Nas “fraldas” da serra de Ibiapaba, sita na parte norte do atual


estado do Ceará, crescia “o pau-violete” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, IV, III: 125). O pau-violeta ou pau-roxo (Peltogyne lecointei),
uma Fabaceae, exportava-se pelo rio Camucim, juntamente com o
âmbar que dava às praias do Maranhão, naqueles tempos. Vieira
menciona esta árvore numa passagem da sua obra profética (Franco
& Calafate, 2013-2014, III, I: 191). Outra árvore cuja madeira se ex-
portava ainda no séc. XVII e hoje se encontra praticamente extinta é
o pau-Brasil (Caesalpinia echinata) (Franco & Calafate, 2013-2014,
IV, I: 60). Quanto às palmas, merecem menção: o jupati (Raphia
vinifera), que servia para fabricar esteiras (Franco & Calafate, 2013-
-2014, I, II: 129); e a palmeira ubi (Geonoma paniculigera), de que
se faziam toldos e se cobriam as casas (Rodrigues, 1989).

398
A mandioca (Manihot esculenta) e o milho (Zea Mays) eram ali-
mentos básicos dos índios. A mostarda (Brassica nigra) é curiosamente
também planta bíblica e é usada em São Luís do Maranhão para con-
fecionar a chamada “aguardente alemã”, uma mezinha que se consome
em caso de congestão cerebral (Madaleno, 2011). Vieira refere-se a
diversas frutas nativas, na sua obra (Franco & Calafate, 2013-2014, I,
II: 130, 132; I, III: 198, 199), como por exemplo: araçá (Psidium gui-
neense); araticum (Annona muricata); araticum-paná (Annona palustris);
beribás (Annona mucosa); e guités do Brasil (Pouteria macrophylla).
As plantas exóticas são mencionadas a propósito do império,
no último volume da epistolografia: “a primeira empresa do nosso
ardentíssimo valor recuperar as praças, as fortalezas e os portos”,
dentre as quais, “na costa oriental da pimenta nos têm a Malaca”
(Franco & Calafate, 2013-2014, I, V: 348-349). A pimenta (Piper nigrum)
vinha da Índia, e só depois do Extremo-Oriente. A especiaria era
cultivada ilegalmente no Brasil, para consumo dos colonos, pois
para proteger o comércio com o Oriente cedo D. Manuel I proibiu
o seu plantio. Vieira menciona a pimenta-do-Reino nos seguintes
tomos e volumes: I/III; I/IV; I/V; III/I. Tal proibição não sofreu o
gengibre (Zingiber officinalis), que Vieira refere na obra epistolar
(Franco & Calafate, 2013-2014, I, III: 515; I, IV: 388), nem o cravo
(Syzygium aromaticum), referido nas cartas (I, IV), na profética
(III, I: 191), nos Varia (IV, III).

399
Quadro 1
As plantas bíblicas na obra do Padre António Vieira

Tomo/volume da Usos no séc. xvii


Nome
Obra Completa e citações bíblicas
vernáculo Nome científico
(Franco & Calafate, (Bíblia Sagrada,
em Vieira
2013-2014) 2011)

Árvore usada para


Abies cilicica (Antoine & construir edifícios,
1. Abeto III/VI
Kotschy) Carrière com propriedades
PINACEAE medicinais.

No deserto o cedro,
2. Acácia Acacia raddiana Savi III/I a acácia, o mirto e a
FABACEAE oliveira (Is 41, 19).

“Com frutos
3. Açafrão Crocus sativus L. III/I preciosos: nardo e
IRIDACEAE açafrão” (Ct 4, 14).

Possível bálsamo
4. Acanto Acanthus syriacus Boiss. II/VIII; II/IX; II/XI aromático do Salmo
ACANTHACEAE 24, 15.

Flor mencionada na
Bíblia. Palma branca
das açucenas que
III/VI; II/XII; II/X; S. Francisco Xavier
5. Açucena Lilium candidum L.
II/IX; II/XI; II/XV tem na mão.
LILIACEAE
Açucenas do paraíso,
contraposta ao fogo
do Inferno.

“A hera nunca
cresceu junta ao
6. Álamo Populus alba L. I/V
álamo, senão para
SALICACEAE
o derribar em terra”

“Porque é terrível
pensão haver de ir
7. Alface Lactuca sativa L. I/IV; II/IV
comprar uma alface
ASTERACEAE
com meia pataca”

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Tomo/volume da Usos no séc. xvii
Nome
Obra Completa e citações bíblicas
vernáculo Nome científico
(Franco & Calafate, (Bíblia Sagrada,
em Vieira
2013-2014) 2011)
“Se houver algodão e
tujucos, também não
nos faltará de que
fazer uma roupeta
da Companhia”.
I/II; I/III; I/IV; II/I;
8. Algodão Gossypium herbaceum L. “Algodoais e teares
III/IV
MALVACEAE onde se tece o
algodão (…), e até
dois teares em cada
casa (missão)”.

Referência ao
Livro dos Números
9. Alho Alium sativum L. II/VI
(Nm 11, 5)
AMARYLLIDACEAE

Planta aromática
citada na Bíblia.
“Bálsamos e aromas”
Aloe succotrina All. III/VI; II/VI; II/XIII;
10. Aloé com que untaram
A.vera L. II/XII
Jesus, de acordo com
XANTHORRHOEACEAE
os costumes judaicos
( Jo 19, 39. 40)

Espécie odorífera
do Cântico dos
Cânticos (Ct 4, 14).
Incentivo à expansão
portuguesa.
“A Índia envia
Cinnamomum zeylanicum I/III; II/V; II/XII; marfim, incenso,
11. Canela Blume III/I; IV/I; IV/IV; âmbar e canela.”
C. cassia (L.) J. Presl I/IV; II/VIII; III/II “Há hoje (1689)
LAURACEAE no Brasil grande
número de árvores
de canela.”
“Não me temo de
Castela, temo-me
desta canela”.

Silybum marianum (L.) Planta bíblica


12. Cardo III/VI; IV/III; II/IX
Gaertn. asiática silvestre
ASTERACEAE

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Obra Completa e citações bíblicas
vernáculo Nome científico
(Franco & Calafate, (Bíblia Sagrada,
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2013-2014) 2011)

Uma das madeiras


III/VI; II/VI; II/XIII;
elegíveis para a
Quercus ithaburensis II/XII; III/I; II/III;
cruz de Cristo.
13. Carvalho (Kotschy) Hedge & Yalt. II/IV; II/VIII; II/IX;
A propósito de
FAGACEAE II/XI; II/XIV; II/XV;
Absalão. Pendente
III/II; III/III; III/V
de um madeiro.

Planta aromática
14. Cassia Cassia senna L. III/VI
citada na Bíblia
FABACEAE

Referência ao
15. Cebolas Allium cepa L. II/VI Livro dos Números
AMARYLLIDACEAE (Nm 11, 5)

Fender cedros com


raios como
S. Barnabé (At 14, 11).
Desafiar (…) um
cedro a um junco
(1Rs 17, 8). Cedros
do leito de Salomão
(Ct 1, 15-16).
O cedro é sinónimo
III/VI; II/V; II/XII;
de incorruptível.
16. Cedro III/I, II/X; II/III;
Cedrus libani A. Rich Árvore alta, grandeza
do Líbano I/V; II/I; II/II; II/IX;
PINACEAE e majestade que
II/XI; III/II; III/V
acrescentaram ao
edifício da Igreja.
“E poremos pranchas
de cedro” (Ct 8, 8-9).
Cedros nos Salmos
(Sl 29, 3-8). Cedros
no profeta Isaías
(Is 44).

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Pão pequeno citado


na Bíblia. Milagre
de multiplicação dos
pães (Mt 14, 19;
Jo 6, 12).
Os discípulos de
Emaús e Jesus
ressuscitado partindo
o pão (Lc 24).
Belém quer dizer
III/VI; II/VI;
“Casa de Pão”.
II/XIII; II/X; II/III;
17. Cevada Hordeum vulgare L. Pão de Gedeão
II/II; II/IV; II/VIII;
POACEAE ( Jz 37). Segundo
II/IX; III/III
milagre da
multiplicação dos
pães (Mt 15, 36)
e as sobras que
recolheram (Jo 6, 13).
Comerás o pão com
o suor do teu rosto
(Gn 3, 19). Parábola
dos três pães
(Lc 11, 5).

Fender ciprestes com


raios como
S. Barnabé (At 14, 11).
Árvore alta
mencionada na
II/V; II/XII; II/X;
Bíblia. O cipreste
18. Ciprestes Cupressus sempervirens L. II/III; II/I; II/IX;
significa o mortal.
CUPRESSACEAE I/XIV
Os ciprestes do
paraíso. Ciprestes
no profeta Isaías
(Is 44). Ciprestes
de S.to Antão.

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Pagar o dízimo das
hortaliças (ervas)
mais vis, sinónimo
de pecados veniais,
esquecendo os
19. mortais (Mt 23, 23).
Cuminum cyminum L. II/V
Cominho Engasgar com um
APIACEAE
cominho (…) e
engolir casas inteiras.
Ter escrúpulos de
cominho.

Incentivo à
20. Ébano Diospyros ebenum Koen. III/I
expansão portuguesa.
EBENACEAE

Pagar o dízimo das


hortaliças mais vis,
sinónimo de pecados
21. Endro Anethum graveolens L. II/V veniais, esquecendo
APIACEAE os mortais (Mt 23, 23).
Ter escrúpulo
de endro.

Arbusto bíblico
22. III/VI; II/V; III/I;
Zilla spinosa Prantl espinhoso
Espinheiro I/V; II/IX
BRASSICACEAE ( Jz 9, 14. 15)

Planta usada na
crucificação (Mt 27).
II/V; II/VI; II/XII; Planta espinhosa que
23. III/I; II/X; II/III; ladeava o caminho
Zizyphus spina-christi (L.)
Espinhos, II/I; II/II; II/IV; de Adão, após a
Desf.
Espinhas II/VIII; II/IX; II/XI; expulsão do paraíso
RHAMNACEAE
II/XIV; II/XV; III/V (Gn 3,18). S. Bento e
as espinhas.

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Planta bíblica ( Jz 9,
9. 10. 11) também
prolífica na América.
Ao terceiro dia da
Criação produziu a
III/VI; II/V; II/XIII;
terra todas as árvores
24. Figo, Ficus carica L., II/XII; III/I; II/III;
carregadas de seus
figueira F. religiosa L. II/I; II/IX; II/XI;
frutos. Figueira no
MORACEAE III/II; III/IV; III/V
profeta Miqueias
(Mq 4, 4). Figueira
amaldiçoada por
Cristo (Mt 21; Mc 11).

Flor-de-lis do escudo
25. Flor-de- francês contraposta
Iris pseudacorus L. II/XI
Lis às quinas
IRIDACEAE.
de Portugal.

“Abraça a verde hera


o muro forte”.
I/V; II/II; II/IV; A hera de Jonas, na
26. Hera Hedera helix L.
II/IX; III/II verdade mamona no
ARALIACEAE
texto bíblico (rícino)

Criar o hissopo
na parede:
a omnipotência
divina manifesta-se
27. no hissopo ou na
Hissopo, Origanum syriacum L. II/X; II/I; II/XV formiga, como no
hissope LAMIACEAE cedro do Líbano e
no elefante.
“Aspergir-me-ás com
o hissopo e ficarei
limpo” (Sl 50, 7).

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Pagar o dízimo
das ervas mais vis,
sinónimo de pecados
28. Hortelã Mentha longifolia L. II/V veniais, esquecendo
LAMIACEAE os mortais (Mt 23, 23).
Ter escrúpulos
de hortelã.

Fumo aromático
usado em cerimónias
religiosas.
A Ásia ofereceu
os seus aromas a
S. Francisco Xavier.
Citação de Séneca
sobre o desinteresse
dos deuses pelas
oferendas, transposta
para reflexão
idêntica sobre Deus
(Cristão). Virão todos
de Sabá trazendo
II/VII; III/VI;
ouro e incenso
II/XIII; II/XII; III/I;
(Is 60, 6) e o incenso
29. Incenso Boswellia sacra Flueck. IV/IV; I/IV; II/I;
dos Reis Magos.
BURSERACEAE II/IV; II/VIII; II/IX;
Planta aromática de
II/XI; III/II; III/V
Salomão (Ct 4, 14).
“A India envia
marfim, incenso”.
No tempo de
Salomão havia
dois altares, num
dos quais se
queimava incenso.
Havia incenso e
timiamas, misturas
aromáticas que Deus
abominaria, nas
palavras de Isaías
(Is 1, 13).

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Desafiar um (…)
II/XII; I/II; II/IX;
30. Junco Scirpus lacustris L. cedro a um junco
II/XI
CYPERACEAE (1Rs 17, 8).

31.
Lens culinaris Medik II/XII; II/II Lentilhas de Jacob.
Lentilhas
FABACEAE

“O linho (…) erva


a que deu matéria
aos homens para
levantarem velas”
Segundo Plínio, o
linho queima a terra
onde nasce e torna-a
estéril. O linho do
II/XII; II/X; I/II;
sudário. “O linho
32. Linho Linum usitatissimum L. I/V; II/XI; III/III;
enquanto for um
LINACEAE III/V
fio é fraco; porém,
se a roda o une, em
muito pode arrastar
o maior peso”.
“O linho significa
justiça dos santos”
(Ap 19, 8).

A brancura reveste
os lírios. Como um
lírio que se gera
das lágrimas doutro.
Nymphaea caerulea IV/IV; II/I; II/VIII; Lírio do Cântico dos
33. Lírio
Savigny II/IX; III/II Cânticos (Ct 7, 2),
NYMPHACEAE em realidade rosa.
O lírio de Isaías
(Is 14: 6).

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Referência à
transformação
mitológica de
Dafne em louro.
Os romanos
pagavam ilustres
34. Louro, II/VI; II/X; IV/I; façanhas com uma
Laurus nobilis L.
Loureiro IV/IV; I/IV; II/XI coroa de louro.
LAURACEAE
Avezinha no loureiro.
Tronco do loureiro
cortado para o fogo
no Convento de
S. Domingos.

Frutos de jardim
usados como
metáfora da fé. Fruto
proibido ou pomo
vedado (Gn 3, 6).
Árvore da ciência
III/VI; II/V; II/VI;
(Gn 3, 1). Árvore
II/XIII; II/XII; II/X;
Malus sylvestris Mill. da Ciência do Bem e
35. Maçã, II/III; I/II; I/IV;
ROSACEAE do Mal. As camoesas
Macieira II/I; II/II; II/IV;
serviam em
II/VIII; II/IX; II/XI;
comparações com a
II/XIV; III/V
fruta nativa, como
os guités ou titiribás.
As maçãs camoesas
eram dadas
a convalescentes.

Vieira discorre sobre


Chrisanthemum a inimizade entre
36. II/II
coronarium L. irmãos, p. ex. Raquel
Malmequer
ASTERACEAE e Lia; Caim e Abel, etc.

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Pão de Anjos,
referência
ao Evangelho
Lecanora esculenta (Pall.) II/VI; II/XII; II/X; (Sl 77, 25). O maná,
Eversm. II/III; I/II; I/V; que caído do céu,
37. Maná LECANORACEAE II/IV; II/VIII; II/IX; contém em si todos
II/XI; II/XIV; III/II; os sabores. Não foi
III/III; III/V Moisés que vos deu
o pão do Céu”
( Jo 6, 31).

“As mandrágoras
exalam o seu
38. Mandrá- Mandragora officinarum
III/I perfume” (Ct 7, 14).
goras L.
Mandrágoras são
SOLANACEAE
os pregadores da fé.

Referência ao
39. Melões Cucumis melo L. II/VI Livro dos Números
CUCURBITACEAE (Nm 11, 5).

Planta bíblica
aromática. “Bálsamos
e aromas” com que
untaram o corpo de
Jesus, de acordo com
os costumes judaicos
II/VII; III/VI; II/VI;
( Jo 19, 39-40).
Commiphora myrrha (T. II/XIII; II/XII; III/I;
40. Mirra Espécies aromáticas
Nees) Engl. II/I; II/IV; II/VIII;
que conservaram o
BURSERACEAE II/IX; II/XI; III/V
corpo de S. Francisco
Xavier incorrupto.
Planta aromática do
Cântico dos Cânticos
(Ct 4, 14). Mirra dos
Reis Magos (Mt 2).

Brassica nigra (L.) W.D.J. III/VI; IV/III; IV/I; Parábola do grão de


41. Mostarda
Koch III/II mostarda (Mt 13, 31).
BRASSICACEAE

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Nome
Obra Completa e citações bíblicas
vernáculo Nome científico
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No Brasil a fé é
estátua de murta,
pois recebendo
facilmente a
doutrina, logo
a perdem, numa
42. Murta,
Myrthus communis L. II/V; III/I referência à alegada
Mirto
MYRTACEAE pregação de S. Tomé,
no início da Era
Cristã. No deserto
plantarei o cedro, a
acácia, o mirto e a
oliveira (Is 41, 19).

Referência
à mitológica
43. Narciso, transformação de
Lírio-dos- Narcissus tazetta L. II/VI; IV/IV; II/IX Narciso em flor.
-vales AMARYLLIDACEAE A púrpura veste
o Narciso.

O precioso unguento
de Madalena
(Mt 26, 7).
Espécies aromáticas
Nardostachys jatamansi II/VI; II/XII; II/X; que conservaram o
44. Nardo
(D. Don) DC. IV/IV; III/III corpo de S. Francisco
CAPRIFOLIACAEAE Xavier incorrupto.
“Com frutos
preciosos: nardo e
açafrão” (Ct 4, 13).

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Tomo/volume da Usos no séc. xvii
Nome
Obra Completa e citações bíblicas
vernáculo Nome científico
(Franco & Calafate, (Bíblia Sagrada,
em Vieira
2013-2014) 2011)

45. Noz, Prolíficas na América


Juglans regia L. III/VI
Nogueira como na Ásia
JUGLANDACEAE

Usam-se ainda
o fruto e o óleo,
como nos templos
bíblicos ( Jz 9, 9).
O ramo de oliveira
também simboliza
a paz. Referências
recorrentes ao
Monte ou Horto das
III/VI; II/V; II/VI; Oliveiras (t./vol. II/
II/XIII; II/XII; III/I; III). Referência ao
Olea europaea L.
IV/IV; II/III; I/II; óleo de Eliseu
OLEACEAE
I/V; II/I; II/II; II/IV; (2Rs 4, 3). A planta
46. Oliveira
II/VIII; II/IX; II/XI; de Noé (Is 41, 19).
II/XIV; III/II; Citação de Isaías
III/III; III/IV; III/V (Is 24, 13). Estragos
nos olivais de
Coimbra, devido ao
temporal. Tributos
excessivos cobrados
até ao bagaço de
azeitona. Referência
à parábola das 10
virgens (Mt 25).

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Tomo/volume da
Nome Obra Completa Usos no séc. xvii e citações
vernáculo Nome científico (Franco & bíblicas (Bíblia Sagrada,
em Vieira Calafate, 2013- 2011)
-2014)

As palmas são altas como


Salomão (Ct 7, 7). Vieira
compara também Xavier
às palmas. Palmas verdes
na mão dos participantes
no enterro de S. Francisco
Xavier. Tecido de folhas de
palma com que vestiam
III/VI; II/V; S. Francisco Xavier. Cometa
II/XIII; IV/III; em forma de palma que
II/XII; III/I; II/X; vaticinou a expulsão dos
Phoenix dactylifera
47. II/III; I/II; I/IV; holandeses da Baía e do
L.
Palmeiras, II/I; II/II; II/IV; Brasil. Os seus cabelos são
ARECACEAE
Palmas II/VIII; II/IX; como ramos de palma
II/XI; II/XIV; (Ct 5, 11). As alcofas
II/XV; III/II; tecem-se de palmas, as
III/III palmas significam vitórias.
Ao ouvir que Jesus vinha a
Jerusalém, tomaram ramos
de palmeiras e saíram ao
seu encontro ( Jo 12, 12-3).
A palma é símbolo da
paciência. Olinda coroada
de montes verdes e
altíssimas palmeiras.

“Juncos de papiro” (Is 18).


48. Papiro Cyperus papyrus L. III/I; I/V; II/IV “Vasos ligeiros e papíreos
CYPERACEAE sulcam as ondas levando
missionários apostólicos”.

Platanus orientalis “Qual plátano à beira de água


49. Plátano II/IX
L. fui elevado em largas ruas”
PLANTANACEAE (Eclo 24, 19).

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Tomo/volume da
Nome Obra Completa Usos no séc. xvii e citações
vernáculo Nome científico (Franco & bíblicas (Bíblia Sagrada,
em Vieira Calafate, 2013- 2011)
-2014)

Planta bíblica cujo apreciado


fruto é usado em metáforas.
Também serve para fazer
50. Romã, Punica granatum III/VI; III/I; licor. “Os teus rebentos são
Romãzeira L. II/III, I/V pomar de romãzeiras”
PUNICACEAE (Ct 4, 13). “No primeiro
golpe que damos na romã
logo lhe fazemos tiro
à coroa”.

Rosa de Jericó e também


Rosa de Inglaterra, como
metáforas. Alto mar de rosas
e flores. Jacob dizia a Raquel
Rosa phoenicia II/XIII; IV/IV; que “se consolasse com a
51. Rosa Boiss. II/III; I/V; II/IV; rosa (…) que é flor que não
ROSACEAE II/VIII; II/IX; dá fruto”. A rosa em vez
II/XI; II/XIV; II/V da flor de amendoeira, no
candelabro (Ex 25, 34), deu
lugar a “rosário”. “Foi exaltada
qual jardim de rosas em
Jericó (Eclo 24, 14).

Salix babylonica L.
S. safsaf Forssk.
52. Salgueiro S. acmophylla II/XV Instrumentos “suspendidos”
Boiss. nos salgueiros.
S. alba L.
SALICACEAE

Deus Nosso Senhor falou de


uma sarça como a Moisés.
II/III; III/I; II/X; “Quando os hebreus se viram
II/III; I/IV; I/V; mais apertados no Egito,
Rubus sanguineus
53. Sarça II/I; II/IV; II/VIII; então desceu Deus à sarça
Friv
II/IX; II/XI; III/II; para os libertar do cativeiro”.
ROSACEAE
III/III A sarça-ardente e Moisés
(Ex 3, 16) ou o poder
da oração.

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Tomo/volume da
Nome Obra Completa Usos no séc. xvii e citações
vernáculo Nome científico (Franco & bíblicas (Bíblia Sagrada,
em Vieira Calafate, 2013- 2011)
-2014)

Ficus sycomoros L.
54. Sicómoro II/XII Sicómoro de Zaqueu (Lc 19, 1).
MORACEAE

Usado para confecionar o


pão que também se oferecia
no altar. Sustentou-os com
o trigo mais fino (Sl 80, 17).
Cenáculo de Jerusalém e a
última ceia (Lc 22, 17).
A festa dos pães sem
fermento (ázimos), em
III/VI; II/V; referência ao Livro do
II/VI; II/XIII; Êxodo (23, 15). As espigas
IV/III; II/XII; de José, contrapostas à vida
III/I; II/X; IV/II; do P.e S. Francisco Xavier.
Triticum aestivum L; IV/IV; II/III; I/II; As espigas do sonho do Faraó.
55. Trigo T. durum Desf., I/IV; I/V; II/I; O pão com fartura do pai do
T. turgidum L. II/II; II/IV; filho pródigo (Lc 15, 17).
POACEAE II/VIII; II/IX; Semeai o vosso pão em terra
II/XI; II/XIV; regada com águas
II/XV; III/II; (Ecl 11, 1). “Quando Davi
III/III; III/V pediu a Abimelec que lhe
desse uma lança (…) também
lhe pediu 5 pães, para comer”.
Os malfeitores devoram o
meu povo como se comessem
pão (Sl 13, 4; Sl 52, 5).
Nem só de pão vive o
homem. “Julho e agosto à
sega e ao trigo”.

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Tomo/volume da
Nome Obra Completa Usos no séc. xvii e citações
vernáculo Nome científico (Franco & bíblicas (Bíblia Sagrada,
em Vieira Calafate, 2013- 2011)
-2014)

O vinho era usado para beber


(embriagar), como oferenda
e para curar, nos tempos
bíblicos ( Jz 9, 13). No Brasil
as vinhas produziam todos os
meses, mas não se plantavam
na Amazónia. Parábola da
vinha (Mt 20). Vinho nos
Salmos (Sl 2). Uvas rejeitadas
por juiz coevo, enquanto
aceitava subornos maiores,
em alusão ao evangelho
(Mt 23, 23). Vinho na Nova
III/VI; II/V; Aliança. “Eu sou a vide e vós
II/VI; II/XIII; os ramos” ( Jo 15, 5). Vinha
IV/III; II/XII; como metáfora do trabalho
III/I; II/X; IV/I; missionário no Brasil. Vinho
IV/II; IV/IV; oferecido no altar, durante a
56. Uva, II/III; I/II; I/IV; missa. Meter a alma na
Vitis vinifera L.
vinha, vide I/V; II/I; II/II; cela dos vinhos (Ct 2, 4;
VITACEAE
II/IV; II/VIII; Is 39, 2). A cela vinária foi o
II/IX; II/XI; Cenáculo de Jerusalém onde
II/XIV; III/II; os apóstolos receberam o
III/III; III/IV; Espírito Santo. Os Judeus
III/V pensaram que estavam
ébrios. Vinha nas profecias de
Bandarra. Parreira no profeta
Miqueias (Mq 4, 4). Práticas
judaizantes: deitar migalhas
de pão em pingas de vinho.
“Lhe deram vinho misturado
com fel” (Mt 27, 34).
Arrendará a vinha a outros
agricultores (Mt 21, 41).
Conversão da água em vinho
( Jo 2, 1). Transcrição da
Eneida “cidade, em sono e
vinho sepultada”

415
Bibliografia

Agapito, T. F. & Sung, I. (2004). Fitomedicina: 1100 Plantas Medicinales. Lima:


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417
(Página deixada propositadamente em branco)
X
P e dag o g i a e d i dát i c a
(Página deixada propositadamente em branco)
Um Vieira bem diferente: o dramaturgo pedagogo

A very different Vieira: the playwright pedagogue

Micaela Ramon
Universidade do Minho
ORCID | 0000-0003-2193-4075

Resumo
Personalidade maior do séc. xvii , multímoda e plurifacetada, o
Padre António Vieira imortalizou-se sobretudo através da sua
tripla faceta de religioso missionário, político diplomata e orador
exemplar cujo contributo para o desenvolvimento da prosa lite-
rária em português lhe valeu o epíteto de “imperador da língua
portuguesa”. A excelência por ele alcançada no âmbito da pare-
nética e da epistolografia, dimensões maiores da sua vasta obra,
tem relegado para plano subalterno a sua produção poética e
dramática, agora felizmente acessível ao grande público através
da publicação, pelo Círculo de Leitores, da Obra Completa Padre
António Vieira, editada em 30 volumes.
Ainda que a produção dramática seja a parte menos conhecida
da obra do autor, a peça que escreveu em latim, com o título
Dialogus de Octo Orationis Partibus, constitui um importante
testemunho da sua ação como pedagogo, em consonância com
os cânones da Companhia de Jesus, a que pertenceu.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_18
Assim, neste artigo, 1) reflete-se sobre a importância do teatro
jesuítico enquanto instrumento pedagógico e 2) procede-se a
uma leitura crítica da peça de Vieira de modo a pôr em evidência
a sua filiação na estética e na ética dos Jesuítas que, como é
sabido, utilizaram amplamente o teatro como meio de difundir
conhecimentos humanísticos e religiosos e ainda como exercício
fundamental para o desenvolvimento da capacidade retórica nas
suas vertentes argumentativa e persuasiva.
Palavras-chave: Companhia de Jesus; Padre António Vieira;
pedagogia; teatro

Abstract
Father António Vieira is considered one of the most notable
figures of the 17th century due to his work as a religious mis-
sionary and as a politician-diplomat, and to his contribution
to the development of literary prose in Portuguese. The latter
earned him the epithet of ‘emperor of the Portuguese language’.
His excellent work in the area of the preaching and the episto-
lography, the largest areas of his vast work, has relegated his
poetic and dramatic production to second place, although this
is now thankfully available to the public through the thirty-
-volume publication of The Complete Works of António Vieira
by Círculo de Leitores.
Although his dramatic production is the lesser known part of
Father António Vieira’s work, the play he wrote in Latin entitled
Dialogus de Octo Orationis Partibus is an important testimony
to his pedagogic work, in keeping with the canon of the Society
of Jesus, of which he was a member.
Thus, in this article, 1) a reflection is made on the importance
of Jesuit theatre as pedagogy and 2) a critical reading is made
of Vieira’s play in order to highlight his affinity with the Jesuit

422
aesthetics and ethics which, as is well-known, widely used theatre
to disseminate humanist and religious knowledge as well as an
essential exercise to develop the rhetoric in its argumentative
and persuasive forms.
Keywords: Society of Jesus; Father António Vieira; pedagogy;
theatre

1. Introdução
É hoje unanimemente reconhecido que o Padre António Vieira
se impõe como figura maior da cultura do séc. xvii, estendendo-se
o seu prestígio e a sua influência a todas as geografias aonde a sua
vida de viajante incansável o levou, em travessias constantes desse
vasto Atlântico que para ele funcionou como ponte de ligação entre
a Europa de origem e a América de principal destino.
A sua personalidade multímoda e plurifacetada tornou-se co-
nhecida – e reconhecida – através da atividade como religioso
missionário, como político diplomata e sobretudo como exímio
cultor da arte da palavra – dita e escrita –, fosse enquanto autor de
sermões pregados nas mais diversas ocasiões, para distintos públicos
e com os mais variados propósitos, fosse por meio da composição
de obras proféticas de pendor filosófico, como a História do Futuro
e a Clavis Prophetarum. Estas são, aliás, as duas vertentes da sua
atividade como escritor que mereceram ao próprio autor referência
crítica, ao aludir aos primeiros classificando-os como “choupanas”,
apodando as segundas com o epíteto de “palácios altíssimos”, em
carta de 27 de junho de 1696, endereçada a Sebastião de Matos
e Sousa, 1 numa fase do seu percurso vivencial que, dada a proxi-

1 “Estando eu em Lisboa todo aplicado à obra, a força de Castela e Portugal


ma tiraram das mãos, querendo que, em lugar de palácios altíssimos, me ocupasse
em fazer choupanas, que são os discursos vulgares que até agora se imprimiram”
(Franco & Calafate, 2013-2014, I, IV: 516).

423
midade da morte, se revela particularmente propícia ao exercício
retrospetivo de avaliação das realizações alcançadas.
De facto, a excelência atingida por Vieira no âmbito da parenética
e da prosa profética, a que se junta a sua igualmente considerável
fama no domínio da epistolografia, explica que outras dimensões
da sua produção literária estejam relegadas para plano de subalter-
nidade, não tendo merecido atenção da crítica e, cumulativamente,
permanecendo desconhecidas do leitor em geral. Incluem-se cer-
tamente nesta categoria quer as composições poéticas (em latim
ou nas línguas vernaculares da península Ibérica), quer o texto
dramático intitulado Dialogus de Octo Orationis Partibus, publi-
cado pela primeira vez em 1748, na coletânea de textos vieirianos
conhecida pelo título de Voz Sagrada, e agora vindo novamente a
público no volume iv do tomo iv da Obra Completa Padre António
Vieira, preparado por João Bortolanza.
Na introdução que faz a este volume, Bortolanza reconhece que
“a dramaturgia talvez seja a qualidade menos conhecida do Padre
António Vieira”, defendendo, no entanto, que “não é este um traço
que o venha desmerecer” (Franco & Calafate, 2013-2014, IV, IV:
71). Na realidade, esta peça escrita em latim revela o pedagogo
que Vieira também foi, dedicado à missão de instruir os filhos dos
colonos que frequentavam os colégios que os Jesuítas mantinham
na colónia brasileira.
Assim, é nosso propósito, com este texto, refletir brevemente
sobre a importância do teatro jesuítico enquanto instrumento pe-
dagógico para, de seguida, procedermos a um comentário do texto
vieiriano, de modo a pôr em destaque a sua filiação na estética e
na ética da Companhia de Jesus, da qual Vieira foi membro ilustre.

424
2. O teatro jesuítico como prática pedagógica
A Companhia de Jesus teve a sua génese em Paris, em 1534, sob o
impulso de S.to Inácio de Loyola, sendo aprovada seis anos mais tarde
por meio da bula papal Regimini Militantis Ecclesiae, a qual viria a
ser confirmada uma década volvida pelo papa Júlio III, que assim con-
feria maior pujança e importância à Ordem. Ainda no ano de 1540, os
Jesuítas instalaram-se em Portugal a pedido de D. João III, fundando
as primeiras casas em Lisboa e em Coimbra, e tendo iniciado a sua
expansão para todos os destinos de missionação portuguesa nos
anos subsequentes da primeira metade do séc. xvi . No Brasil, a
primeira missão jesuítica desembarcou no ano de 1549, juntamente
com o primeiro governador-geral, Tomé de Souza.
Nascida no contexto da Contrarreforma, a Ordem tinha como
objetivo principal a defesa e a propagação da fé católica, funcio-
nando portanto como garante da ortodoxia da Igreja de Roma
e como um instrumento de disseminação dos valores religiosos,
éticos e morais associados ao catolicismo. Assim, os padres je-
suítas assumiram importantes funções como confessores de reis e
de príncipes, como diplomatas, como pregadores e também como
educadores. Esta última vertente da sua ação revestiu-se de máxima
importância, visto que: “[os Jesuítas] compreenderam facilmente
que seria através da educação, especialmente das lideranças, que
poderiam ajudar a Igreja a reconquistar gradualmente grande parte
dos países e nações que haviam aderido ou estavam aderindo às
novas doutrinas” (Schmitz, 1994: 129).
Movidos por esta convicção, os membros da Companhia de
Jesus foram os responsáveis pela criação de inúmeras instituições
de ensino, fundando escolas, colégios, seminários e universidades,
tanto na Europa como em todos os locais até onde se estendesse
a sua ação missionária. Tais instituições destinavam-se não apenas
à formação dos próprios membros da congregação, mas também à
educação de leigos, com a particularidade de, pela primeira vez na

425
história, se assistir a um alargamento da faixa social a que perten-
ciam os alunos que as frequentavam, o que leva Margarida Miranda
a sustentar que “a experiência jesuítica de ensino era também, de
certo modo, uma experiência de democratização do ensino ‘avant
la lettre’” (Miranda, 2009: 24).
O sucesso da ação dos padres jesuítas no campo da educação
da juventude explica-se por vários fatores, dentre os quais se pode
destacar, por um lado, a sua gratuitidade e, por outro, o seu carácter
sistemático e replicável, traduzido na elaboração de um regulamento
e de um plano de estudos corporizados na Ratio Studiorum, apli-
cáveis “à escala global, num sistema de educação supranacional e
supracontinental, desde o Brasil à China mais longínqua” (Miranda,
2009: 25). A Ratio Studiorum resultou de um trabalho de sistemati-
zação de princípios educativos e pedagógicos extraídos a partir da
experiência prática, pois, como lembra Francisco Assis Fernandes,
“ a Ratio não nasceu do esforço compilador de uma comissão de
eruditos congregados no silêncio de uma biblioteca. Caldeou-se na
frágua viva da experiência de meio século de centenas de colégios
disseminados por toda a Europa” (Fernandes, 1980: 59).
O projeto educativo dos Jesuítas servia-se de várias práticas com
o propósito de permitir a consecução do objetivo de educar os seus
alunos no respeito pela fé católica e no amor por uma formação
humanística de alta qualidade. Os seus métodos pedagógicos com-
binavam a educação formal (realizada através de aulas lecionadas
nos espaços físicos das salas) com práticas informais (concreti-
zadas por meio de atividades como a música, a dança ou o teatro).
Este carácter inovador da pedagogia jesuítica foi outro dos fatores
responsáveis pelo mérito reconhecido à Ordem no plano não só
educacional, mas também cultural, uma vez que:

Cada colégio era não apenas parte de uma vasta rede inter-
nacional de instituições escolares, mas também um verdadeiro

426
centro de cultura – com importantes repercussões na vida da ci-
dade – lugar de realização de teatros, de bailados e mais tarde de
óperas; espaço de bibliotecas e de impressão de novos livros (por
vezes em larga escala), alfobres de laboratórios e de observatórios
astronómicos. (Miranda, 2009: 24-25)

O teatro, em particular, foi utilizado como um importante recurso


não só para a formação académica dos estudantes, como também
para a catequização e a propagação da mensagem do catolicismo,
sobretudo junto dos habitantes das colónias que se tornava ne-
cessário evangelizar. Aliando as funções de docere et delectare, o
teatro assumiu um carácter marcadamente didático, sendo utilizado
constantemente, no decurso do ano escolar, como importante ins-
trumento pedagógico.
No contexto português, pode sumariamente referir-se que o teatro
pedagógico dos Jesuítas visava dois fins essenciais: por um lado
constituía um exercício académico realizado como meio de ensinar
a arte da palavra, “o que fazia da atividade teatral o exercício por
excelência da classe mais alta do ciclo de estudos das Humanidades”
(Miranda, 2006: 393); por outro, funcionava como uma estratégia
de captatio benevolentiae levada a cabo pelos membros da Ordem
junto das comunidades, extravasando, dessa forma, os limites
próprios da ação educativa para se afirmar como uma estratégia
de propaganda junto de potenciais beneméritos. A este propósito,
Margarida Miranda escreve que “a representação teatral ocorria
durante uma festa pública que abria as portas do colégio e que
pretendia promover a aceitação dos religiosos na cidade, cativando
a simpatia de novos benfeitores” (Miranda, 2006: 393). Por esse
motivo, o teatro jesuítico ia muito para além da composição de
textos escritos enquadráveis no modo dramático; ele afirmava-se
antes como um exercício mais completo que combinava a linguagem

427
verbal com outras linguagens cénicas de modo a afirmar-se como
um verdadeiro espetáculo total.
Abordando geralmente temáticas inspiradas na Bíblia, na ha-
giografia, em episódios mitológicos ou da história antiga, o teatro
jesuítico era maioritariamente escrito em latim, embora as peças
pudessem incluir prólogos em vernáculo, sobretudo a pensar no
público não constituído pelos alunos-atores, apesar de serem estes
os destinatários primordiais deste teatro. Para além da importância
acordada à palavra escrita, não eram também esquecidos outros
elementos extralinguísticos como o guarda-roupa, a música ou a
cenografia em geral, aos quais era atribuído grande relevo, dado que
a prática teatral era encarada como “um espetáculo dirigido quer
aos sentidos do corpo (de forma a criar as mais vivas sensações),
quer aos do espírito, isto é, à exaltação das emoções e moção das
paixões” (Miranda, 2006: 393).
No Brasil, o teatro produzido sob a égide dos padres jesuítas
vindos de Coimbra como missionários é considerado a primeira
manifestação dessa arte na história da literatura da antiga colónia
portuguesa, onde foi introduzido logo no séc. xvi, aquando da che-
gada da Ordem às terras de Vera Cruz. Aí, este tipo de prática era
usado geralmente como um instrumento catequético, perseguindo
sobretudo fins de natureza religiosa: destinava-se a evangelizar os
índios e a apaziguar os conflitos existentes entre estes e os colonos.
Daí decorrem algumas das especificidades deste teatro produzido
em contexto brasileiro, como sejam o recurso predominante às lín-
guas vernáculas e mesmo às línguas locais (o P. e José de Anchieta
escreveu peças em que misturava o português, o espanhol, o tupi
e o guarani); a participação dos índios como atores nas peças; e
a inclusão de instrumentos musicais nativos como forma de atrair
o público-alvo.
Tanto na Europa como nas colónias, o teatro era, pois, parte
integrante e importante do método pedagógico dos Jesuítas.

428
3. Vieira, dramaturgo e pedagogo
Tendo em conta o contexto que acaba de ser descrito, não causa
surpresa nem estranhamento que o Padre António Vieira tenha
também escrito uma peça teatral. Tendo sido ele próprio formado
pelo método pedagógico dos professores jesuítas do Colégio da
Baía, não admira que o replicasse quando foi chamado a assumir
responsabilidades educativas, nomeadamente ao exercer funções
como professor de Retórica no Colégio de Pernambuco.
Desconhece-se informação exata sobre o ano em que a peça
terá sido escrita, em que circunstâncias ou com que propósito
específico. Sabe-se todavia que conheceu edição póstuma, tendo
sido publicada pela primeira vez apenas em meados do séc. xviii ,
na coletânea de textos preparada por André de Barros sob o título
Voz Sagrada, Política, Retórica e Métrica, ou Suplemento às “Vozes
Saudosas de Eloquência, do Espírito, do Zelo e Eminente Sabedoria
do Padre António Vieira”, em Lisboa, pela Oficina de Francisco Luiz
Ameno. Nesta obra, Vieira é apresentado como sendo “Professor de
Retórica no Colégio de Pernambuco”. Existem, porém, dois apógrafos
do mesmo texto dramático que identificam o autor como “Professor
do Colégio de Santo Antão de Lisboa”.
João Bortolanza, na introdução que preparou para o volume
da obra completa em que a peça é publicada, explica a confusão,
esclarecendo que houve “um novo António Vieira, também natural
de Lisboa, e em Lisboa falecido” que os contemporâneos “compa-
ravam ao grande António Vieira no primor da eloquência” (Franco
& Calafate, 2013-2014, IV, IV: 67). Acrescenta ainda o investigador
brasileiro que lhe parece óbvio que o texto dramático de Vieira
tenha sido vastamente utilizado pelos professores dos colégios je-
suítas em Portugal, que dele se serviriam usando-o como modelo
para as suas próprias práticas didáticas. 2

2 “Sem dúvida, tal texto dramático deve ter sido muito útil para os colégios
jesuíticos de Portugal: afinal, tratava-se de um génio invejável, que já brilhava com

429
Nos apógrafos, o texto aparece classificado como sendo uma
tragédia,3 designação genológica a que o conteúdo do texto, bem
assim como a sua estrutura interna não fazem jus. De facto, a peça é
composta de cinco atos e um epílogo, sendo que o primeiro cumpre
uma função prologal que facilmente o permitiria associar a um exórdio
a que se seguiria um total de quatro episódios rematados precisa-
mente pelo epílogo. Do ponto de vista estritamente formal, tal divisão
corresponderia às características que tradicionalmente se associam à
estrutura da tragédia clássica. Porém, as aproximações entre o texto
de Vieira e este género teatral não vão além deste aspeto.
A peça vieiriana é um texto em prosa, pouco extenso, escrito em
latim com alguns segmentos em português, cujo argumento reproduz
um certame literário em que diferentes personagens discutem tópicos
de natureza gramatical. Nela intervém um total de 10 personagens
– um mestre, um aprendiz 4 e oito discípulos identificados através
de nomes próprios –, sendo que apenas o “mestre” permanece em
cena ao longo de toda a representação, assegurando assim uma certa
coesão ao argumento que de outra forma resultaria menos evidente.

luz própria. Sem dúvida o Colégio de Santo Antão, como revelam os apógrafos, deve
tê-lo utilizado muitas vezes nas suas atividades lúdico-práticas. Quiçá serviram para
apresentações até ao século xviii , aquando da expulsão dos Jesuítas” (Franco &
Calafate, 2013-2014, IV, IV: 67).
3 L5: “Tragédia que o Padre António Vieira da Sagrada Companhia de Jesus fez
no Páteo de seu Colegio de Santo Antão desta cidade de Lisboa, sendo Mestre da
Nona”; A1 apresenta de modo similar: “Tragédia que o Padre António Vieira da
Companhia de Jesus fez, sendo Mestre da Nona, no Páteo do Colégio de Santo Antão
de Lisboa” (Franco & Calafate, 2013-2014, IV, IV: 182).
4 Este “aprendiz” pode ser identificado com a figura do “decurião”, ou seja, do
aluno designado mensalmente pelo professor para o auxiliar nas tarefas a realizar
no decurso das classes de Gramática: “Nas classes mais numerosas de gramática,
os mestres instituíram um costume que assegurava a atividade constante dos dis-
cípulos: a divisão dos alunos em decúrias, ou grupos de dez. […] Cada decúria
era presidida por um decurião […]. O decurião tomava nota dos que faltavam ou
dos que prevaricavam, recolhia os trabalhos escritos para entregar ao professor, e
tinha sobretudo o papel de ouvir a recapitulação de cada lição e as repetições dos
colegas” (Miranda, 2009: 34).

430
No primeiro ato, que, como foi dito, cumpre a tradicional função
prologal, as personagens intervenientes – o mestre e o aprendiz
– apresentam o tema da peça, procedendo igualmente ao retórico
exercício de captatio benevolentiae. A primeira das tarefas cabe ao
“aprendiz” que, “de menino [é] feito homem e de aluno feito pro-
fessor” a fim de conduzir os trabalhos do certame. É pois ele quem
dá notícia ao leitor/espectador daquilo que poderá esperar ler/ver
num discurso em que fica bem expressa a modéstia, virtude não
apenas própria do bom cristão, mas igualmente atributo indispen-
sável aos cultores das Letras:

Finalmente armado com este capacete [o barrete dos pontí-


fices], ouvireis, homens humaníssimos, serem chamados os meus
alunos para um cer tame literário. Contudo, o que podem os
mesmos extrair dos rudimentos gramaticais algo digno de vossos
ouvidos, a não ser muito rude e informe! Certamente vos será
dado colher flores mais agradáveis da eloquência do outro vergel,
da primeira e da segunda Aula, e usufruir delas até às delícias;
nesta menor de todas e na última, nada há de esmerado, nada de
bem desenvolvido, tudo é rude e terrível, antes para ser escondido
que visto, como acontece com o cimento das construções. (Franco
& Calafate, 2013-2014, IV, IV: 185)

A benevolência dos destinatários é também requerida pelo


“mestre”, que os exorta nos seguintes termos:

seja por vós desculpável aquele que deu a ordem por aquele
crédito que, ciente de minha própria pobreza e ignorância, quis
experimentar esta primeira tentativa da fortuna […]. Realmente,
caso consiga algum louvor por vossa benevolência, ele me tornará
hoje glorioso: se assim não for, eu que nada tive nada perderei.
(Franco & Calafate, 2014, IV, IV: 183)

431
Ainda no primeiro ato, é fornecida ao leitor/espectador a in-
formação de que o exercício a realizar se enquadra nas atividades
próprias das classes iniciais, sendo, portanto, destinado a alunos
de tenra idade e ainda pouco versados no manejo da língua latina
e na prática dos exercícios de retórica e de dialética:

E porque esta nossa Classe está situada no começo da língua


portuguesa para a latina e nas proximidades de ambas, hoje vos
revelaremos ser tal essa cena, nem sequer latina nem portuguesa,
mas lusitânico-latina, de modo que satisfaça os desconhecedores
de ambas ou de apenas uma, do modo que for conveniente.
(Franco & Calafate, 2013-2014, IV, IV: 187)

O programa pedagógico dos Jesuítas, sistematizado na Ratio


Studiorum, era um programa de base humanista que estabelecia
uma hierarquia de saberes, conjugando o estudo da Filosofia, da
Teologia, das Humanidades e das Ciências Naturais, com vista a
um desenvolvimento harmonioso e integral do indivíduo na dupla
vertente intelectual e moral. O fim último da educação jesuítica era
formar homens cultos, que soubessem pensar e escrever e que esti-
vessem aptos a intervir publicamente em proveito do bem comum.
Para a consecução de tais objetivos, as diretrizes exaradas na Ratio
preconizavam a adoção de um currículo com uma clara distinção
tanto dos graus de ensino como das matérias correspondentes a
cada um deles, apresentadas numa lógica ascendente de grau de
dificuldade. A classe de Retórica figurava no topo da pirâmide do
plano de estudos, sendo o seu programa dedicado ao ensino da
arte da palavra e da eloquência. Na base dos estudos humanísticos
encontravam-se as classes de Gramática, divididas em três níveis:
classe superior, classe intermédia e classe inferior. Esta última, des-
tinada aos estudantes mais novos e menos avançados nas matérias,
exigia o conhecimento e a memorização das partes elementares

432
da morfologia e da sintaxe latinas: o nome, o pronome, o verbo,
o particípio, o advérbio, a preposição, a conjunção e a interjeição.
No capítulo xx da Ratio, dedicado às “Regras para o professor
da classe inferior de Gramática”, pode ler-se:

O programa desta classe consiste no conhecimento com-


pleto dos rudimentos da gramática e numa iniciação à sintaxe.
Começa-se pelas declinações e vai-se até à construção dos verbos
regulares. Nos colégios onde esta classe tiver dois níveis, o pri-
meiro nível ficará com o estudo dos nomes, dos verbos, dos
rudimentos e das catorze regras de construção, do livro primeiro.
O segundo nível estudará, ainda do livro primeiro, a declinação
dos nomes (sem apêndices), os perfeitos e os supinos; do livro
segundo, a introdução à sintaxe (sem apêndices) até aos verbos
impessoais. (Miranda, 2009: 230)

O tema da peça escrita por Vieira está, pois, em linha com


os objetivos e com o programa das aulas da classe inferior de
Gramática. De facto, os quatro atos que se seguem ao ato proemial
são encimados por epígrafes que, resumindo o seu conteúdo, fazem
referência às várias partes da oração, tal como elas são apresentadas
na gramática de Manuel Álvares, a qual foi adotada como manual
em praticamente todos os colégios dos Jesuítas. 5 Assim, os atos se-
gundo e quarto são dedicados à “definição do nome” e à “definição
dos pronomes”, respetivamente; os atos terceiro e quinto adotam
ambos a epígrafe genérica “As Oito Partes da Oração”.
Em todos os atos, o mestre assume a função de árbitro moderador,
propondo um tópico de natureza gramatical sobre o qual dois alunos

5 “De Institutione grammatica libri três, publicada pela primeira vez em Lisboa,
em 1572. A obra converteu-se num verdadeiro best-seller. Manuel Álvares S. J. (1526-
-1583) era natural da Madeira. Foi professor de Gramática e Humanidades em Coimbra,
Évora e Lisboa. A sua gramática conheceu mais de 500 edições” (Miranda, 2009: 72).

433
devem discorrer, no sentido de apresentarem argumentos suficiente-
mente convincentes para permitir que um seja derrotado e o outro saia
vencedor, graças ao poder dos seus conhecimentos sobre o tópico em
questão bem assim como da eficácia da sua estratégia argumentativa.
As razões esgrimidas pelos contendores não só constituem sú-
mulas sobre as diversas partes da gramática, como também fazem
referência a princípios da estética clássica de pendor humanista que
permanecia a base da teoria estética do barroco. Exemplo disso é
o passo do ato terceiro em que “Crisóstomo”, um dos participantes
na refrega verbal, defende a supremacia do conhecimento obtido
pelo estudo dos autores clássicos em detrimento daquele que pode
ser buscado nos modernos: “Quero dizer que estudo pelas fontes,
que são os autores antigos, de onde a doutrina se bebe pura, como
cristais, e não pelos regatos, ou torrentes, que são os autores mo-
dernos” (Franco & Calafate, 2013-2014, IV, IV: 193).
Para além da sua dimensão eminentemente pedagógica, enquanto
método de dar a conhecer e de permitir memorizar, por meio da
representação teatral, conteúdos de natureza académica relacionados
com o domínio das regras da gramática, a peça de Vieira persegue
ainda intenções educativas e doutrinárias. Por um lado, são recor-
rentes as falas destinadas ao treino da cordialidade e da urbanidade
que devem regular qualquer exercício de emulação como aqueles
que são figurados na peça; 6 por outro, os contendores socorrem-se
tanto de argumentos filológicos como teológicos, mesclando ciência
e doutrina na sua estratégia de argumentação. 7

6 São frequentes, no final dos atos, as falas atribuídas aos alunos vencidos em
que estes reconhecem a derrota e cumprimentam o adversário pela vitória alcançada:
“FRANCISCO - Respondeste óptima, elegante e adequadamente: estendo-te a mão
em penhor de amizade” (Franco & Calafate, 2013-2014, IV, IV: 191) ou “JACINTO
– Ainda estás na dúvida? NARCISO – De modo algum. Com beleza, elegância e
contentamento” (Franco & Calafate, 2013-2014, IV, IV: 201).
7 Veja-se, a título ilustrativo, o seguinte passo: “NARCISO – Provo por meio desta
pequena oração. Deus criou os anjos, e o mesmo <idem> também os homens; mas

434
Pese embora a importância desta dimensão formativa em sentido
amplo, se entendida como um exercício destinado ao treino das
regras da gramática e ao desenvolvimento das habilidades retóricas,
a peça escrita por Vieira fica aquém das expectativas criadas pelo
título, visto que, na realidade, nem todas as oito partes da oração
são dissecadas. Esta circunstância, se por um lado permite especular
sobre a possível intenção do autor de dar continuidade a esta in-
cursão no domínio da dramaturgia com a escrita de outras peças de
teor idêntico, por outro, é objeto de justificação pelo próprio Vieira
no epílogo. O dramaturgo-pedagogo, como que antecipando este
tipo de objeção por parte do público leitor/espectador, justifica tal
opção com a necessidade de adequar o exercício teatral realizado
às características e às capacidades dos seus destinatários, ou seja,
dos jovens alunos apenas iniciados em tais artes:

Faltou levantar as questões sobre as demais partes da Oração,


mas, para que as mentes dos meninos não sejam atulhadas com
a multidão de coisas, julgamos conveniente destiná-las para uma
época oportuna e adequada aos mais avançados em idade; e por
isso, somos forçados a impor um fim a esta peça de hoje. (Franco
& Calafate, 2013-2014, IV, IV: 209)

4. Conclusão
A leitura da peça de Vieira confronta-nos com uma faceta do
jesuíta como autor dramático e como pedagogo. Se é certo que a
peça por ele escrita dificilmente seria representável fora do con-

assim é que o Pronome idem [“o mesmo”] nesta oração significa pessoa infinita;
segue-se que o Pronome idem também significa não só pessoa finita, mas infinita.
JACINTO – Quem negaria essa verdade? Ainda que seguidor da fé ortodoxa, qual foi
Lutero? Concedo uma vez e outra mais que Deus é infinito. É necessário, porém, prestar
atenção para que compreendas bem a fundo esta definição de Pronome; quando se
diz que Pronome é aquilo que significa pessoa, assim deve ser entendido que “pessoa
finita” aqui é pessoa determinada” (Franco & Calafate, 2013-2014, IV, IV: 201).

435
texto para que foi criada, faltando-lhe aprimoramento a nível da
componente cénica e frescura em termos quer do tema, quer dos
diálogos que certamente não interessariam a um público contem-
porâneo, não é menos verdade que, como exercício pedagógico,
esta peça faz prova de uma surpreendente modernidade em termos
metodológicos ao apresentar os conteúdos académicos por meio de
uma atividade eminentemente lúdica, que certamente funcionaria
como um estímulo motivacional para os alunos.
Os Jesuítas foram agentes ativos na educação de geração suces-
sivas de jovens a quem procuravam dar uma formação completa tanto
em termos culturais e académicos como morais e civilizacionais.
Para esse fim, desenvolveram um aparelho pedagógico centrado no
culto da palavra pensada, escrita e dita e assente num método que
estimulava fortemente a emulação promovida pelas mais diversas
vias. O recurso ao teatro pedagógico assume-se sem dúvida como
uma das vias mais importantes, porquanto constituía um meio de
treinar “o aluno para o uso efectivo da palavra em público, fazendo
dele não apenas o homo sapiens mas também o homo eloquens, apto
para a intervenção na vida cívica à qual estava destinado, ou seja,
apto para vir a ser homo politicus” (Miranda, 2009: 34).
Exímio cultor da palavra, protótipo do homo sapiens, homo
eloquens e homo politicus, Vieira não poderia ficar indiferente ao
desafio de transmitir o seu saber e o seu talento àqueles que for-
mava. Fê-lo certamente com brilho através das suas obras maiores e
do exemplo da sua atividade pública multifacetada; mas não deixou
de o fazer também no exercício das suas funções como educador.
Assim, parece-nos justo reconhecer que também como dramaturgo-
-pedagogo o Padre António Vieira merece ser conhecido, estudado
e admirado.

436
Bibliografia

Fernandes, F. A. M. (1980). A Comunicação na Pedagogia dos Jesuítas na Era Colonial.


São Paulo: Edições Loyola.
Franco, J. E. & Calafate, P. (dir.) (2013-2014). Obra Completa Padre António Vieira
(t. i , vol. iv ; t. iv , vol. iv ). S.l.: Círculo de Leitores.
Miranda, M. (2006). Teatralidade e linguagem cénica no teatro jesuítico em Portugal
(XVI). Humanitas, 58, 391-409.
Miranda, M. (2009), Código Pedagógico dos Jesuítas: Ratio Studiorum da Companhia
de Jesus. Regime Escolar e Curriculum de estudos. Lisboa: Esfera do Caos.
Schmitz, E. (1994). Os Jesuítas e a Educação: a Filosofia Educacional da Companhia
de Jesus. São Leopoldo: Unisinos.

437
(Página deixada propositadamente em branco)
O “Sermão do Espírito Santo” e o pensamento pedagógico
de Vieira

The “Sermon of the Holy Spirit” and the pedagogical thought of Vieira

Daniel Joana
Universidade de Coimbra

Resumo
O estudo que aqui passo a apresentar, no âmbito da secção de
“Pedagogia e Didácica”, tem como título “O Sermão do Espírito
Santo e o pensamento pedagógico de Vieira” e visa analisar o
ideário pedagógico-religioso dessa figura maior da cultura lusó-
fona que foi o Padre Vieira, no contexto das missões jesuíticas
do séc. xvii .
Palavras-chave: Pedagogia; Pensamento; Religião; Crítica; Missões;
Pregação

Abstract
The study presented here, under the section “Pedagogy and
Didactics”, is entitled “The Sermon of the Holy Spirit and the
pedagogical thought of Vieira” and aims to analyse the pedago-
gical-religious ideology of this major figure of Lusophone culture
that was Father Vieira, in the context of the Jesuit missions of
the 17th century.
Keywords: Pedagogy; Thought; Religion; Criticism; Missions;
Preaching

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_19
Foi muito antes de conhecer, nos bancos desta faculdade, John
Maxell Coetzee que tive uma experiência de leitura cujos contornos
só viria a reconhecer nas páginas do ensaio que o Nobel dedicou
à eterna questão “o que é um clássico?” (Coetzee, 2002).
Dez anos passaram desde esse dia em que um jovem aluno de
um curso de licenciatura da Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra comprou, numa livraria da baixa da cidade, um livrinho
de bolso que prometia desvendar uma trilogia de sermões por um
preço de liquidação bastante apetecível para a carteira de um es-
tudante. Mal sabia esse estudante a estranha experiência, quase de
transcendência, que a leitura daquelas páginas amarelecidas lhe
havia de causar. De facto, o rapaz sentiu, tal como Coetzee outrora
descrevera, o pasmo de quem se sente “falado” por um clássico e,
desde essa altura, não mais pôde parar de ler e estudar os textos
produzidos por quem havia escrito aquela tríade desinquietante.
Perdoe-se a manifesta falta de originalidade na expressão, mas o
rapaz havia descoberto o seu mestre. Foi essa a sensação imediata
que teve.
Muitos pelo mundo fora – e muitos dos que estão aqui presentes –
terão tido a mesma sensação que eu, quando leram os textos le-
gados pelo Padre António Vieira. A palavra “simpósio”, de acordo
com a sua origem grega, também significa festa e é, de facto, uma
festa a reunião de tantas pessoas vindas de diferentes partes do
mundo para revisitar, neste nosso séc. xxi , o autor global que, no
séc. xvii , Vieira foi.
O estudo que aqui passo a apresentar, no âmbito da secção de
“Pedagogia e Didácica”, tem como título “O Sermão do Espírito
Santo e o pensamento pedagógico de Vieira” e visa analisar o ideário
pedagógico-religioso dessa figura maior da cultura lusófona que
foi o Padre Vieira, no contexto das missões jesuíticas do séc. xvii .
É célebre a multiplicidade de papéis assumidos pelo Padre
António Vieira. De orador sacro a político, diplomata, missionário,

440
epistológrafo, ou utopista, o jesuíta notabilizou-se em distintas
ações e contextos. Na sombra, ou pelo menos num segundo plano,
tem ficado o papel de pedagogo que o autor também protagonizou.
Ao longo dos seus 89 anos de vida, o Padre António Vieira desem-
penhou funções de índole pedagógica – quer como professor de
Retórica, quer como mestre do príncipe D. Teodósio, quer sobretudo
como catequizador no contexto das inúmeras missões junto dos
“povos gentios” – resultando dessas experiências vários textos de
onde emana um pensamento relevante. Recordemos apenas, a este
propósito, algumas cartas, como as denominadas Cartas da Missão,
escritas entre 1651 e 1661, ou os poemas e peças de teatro escritos
por Vieira e agora trazidos a lume com a publicação da sua obra
completa (Franco & Calafate, 2013-2014), no tomo iv .
Mas a maior parte do pensamento pedagógico de Vieira é sinte-
tizada no “Sermão do Espírito Santo” (Franco & Calafate, 2013-2014,
II, V: 244-270). A peça, provavelmente proferida em 1657, em São
Luís do Maranhão, aquando da partida de uma grande missão para
o rio Amazonas, encerra uma espécie de súmula de uma certa fi-
losofia pedagógica que, pela sua profundidade e sensatez, merece
bem ser revisitada e analisada, até para servir de base de reflexão
sobre os ambiciosos desígnios da escola do séc. xxi. Trata-se de um
texto vivo – como são todos os bons textos oratórios – e cheio de
energia atuante – como quase todos os escritos de Vieira. Um texto
que cimenta uma série de ideias-chave acerca do nobre, intemporal
e humano ato de ensinar, aqui entendido como inerente ao ato de
catequizar, a cargo de missionários e leigos que viviam naquele
estado sul-americano.
Atendendo um pouco ao contexto do sermão, pode-se observar
que, depois da sua aventura política e diplomática pela Europa,
Vieira retorna à grande missão da sua vida e à sua mais genuína
vocação: trazer almas gentias para a casa da cristandade e fazê-lo
ensinando. Foi nesta década que o jesuíta mais empenhou os seus

441
esforços no ensino da boa-nova cristã, ao mesmo tempo que gran-
jeou, como se sabe, um enorme rol de inimigos entre os colonos
portugueses. Mas curiosamente foi também nesta década que pro-
duziu alguns dos seus textos mais célebres e literariamente mais
valiosos, tais como o “Sermão de Santo António” (conhecido por
“Sermão de Santo António aos Peixes”), o “Sermão da Sexagésima”
ou o “Sermão do Bom Ladrão”, para além do referido “Sermão do
Espírito Santo”, pregado em pleno contexto de missão.
Tendo em conta estes pressupostos, com a presente comunicação
pretendemos, em primeira instância, analisar o pensamento pedagó-
gico que emana do sermão dedicado à Terceira Pessoa da Trindade
Santa. Depois, tentaremos estabelecer breves conclusões acerca dos
desafios da escola atual e da missão de ensinar no nosso século.
Observando a peça como um todo, pode dizer-se que o “Sermão
do Espírito Santo” segue uma estrutura linear que lhe confere
simplicidade e, portanto, lhe garante eficácia comunicativa e per-
suasiva. Trata-se de uma enumeração desenvolvida de uma série de
qualidades que, segundo a visão de Vieira, o pedagogo religioso
ideal deveria possuir.
E são 10 os tópicos encontrados na peça parenética de 1657, 10
tópicos que acabam por delinear a própria arquitetura do sermão:
graça, amor, perseverança, compreensão, exemplaridade, força, fé,
alento, audácia e responsabilidade. Do início ao fim do sermão,
são estes os atributos que Vieira, de forma mais ou menos direta,
afirma ou insinua serem necessários para que eficazmente ocorra
o ato de ensinar.
Comecemos pelo exórdio. Segundo o jesuíta, não há ensino sem
a graça divina, ou seja, sem a luz do Espírito de Deus. Seguindo
uma linha de coerência com o seu pensamento de religioso, Vieira
assume que a disposição para oferecer ou receber um pensamento
requer, em primeiro lugar, a intervenção de Deus, fonte de todo o
bem e toda a sabedoria. É por isso que distingue, logo no início do

442
sermão, dois conceitos: “dizer” e “ensinar”. Nesta aceção, o “dizer” é
entendido como a palavra estéril, vinda exclusivamente do homem,
o “ensinar” como a palavra que frutifica pela intervenção divina.
Trata-se, portanto, de evidenciar a imprescindibilidade de Deus na
ação pedagógica, aqui concretizada na imagem da luz. Atentemos em
algumas passagens: “O Mestre na cadeira diz para todos, mas não
ensina a todos. […] Porque para aprender, não basta só ouvir por
fora, é necessário entender por dentro. […] Para converter Almas,
não bastam só palavras; são necessárias palavras, e luz” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, V: 244-245).
Assim, e para que quem quer ensinar seja assistido por essa luz
divina, o pregador chama a atenção para a disposição espiritual que
o pedagogo deve procurar para, precisamente, ser capaz de acolher
esse Espírito: “Dizemos, mas não ensinamos, porque dizemos por fora;
só o Espírito Santo ensina, porque alumia por dentro. […] Mas a
causa é: porque eu falo, e o Espírito Santo, por falta de disposição
nossa, não alumia” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 245).
Depois da graça divina, segue-se o amor. Segundo Vieira, não se
ensina sem se amar, por isso mandou Cristo, representante da sabe-
doria divina, que o Espírito Santo, representante do amor de Deus,
ensinasse os apóstolos. E não causa estranheza tal pensamento a um
leitor atento de Vieira, pois o amor pelo que se ensina e pelo ser en-
sinado – muitas vezes materializado num sentimento de benevolência
terna para com os aprendizes e suas imperfeições – transparece de
outros textos do mesmo autor, já citados acima. A capacidade de amar
é a qualidade mais premente de um pedagogo, por isso aparece
neste lugar de destaque em termos de dispositio e é elevada acima
da própria sabedoria. E tanto mais necessária será esta qualidade
quanto mais árdua for a tarefa de ensinar:

Porque para ensinar homens infiéis, e bárbaros, ainda que é


muito necessária a sabedoria, é muito mais necessário o amor. […]

443
Para ensinar homens entendidos, e políticos, pouco amor é neces-
sário, basta muita sabedoria; mas para ensinar homens bárbaros,
e incultos, ainda que baste pouca sabedoria, é necessário muito
amor. (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 246)

Todavia, a qualidade do amor tem de ultrapassar os limites do


amor humano. Tem de assumir uma natureza divina que, numa
aceção bem cristã, implica as ideias de entrega total e sacrifício, e
que deixa antever a dureza da tarefa: “Se é necessário amor para
ser pastor de ovelhas que comem no prado, e bebem no rio; que
amor será necessário para ser pastor de ovelhas que talvez comem
os pastores, e lhes bebem o sangue?” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, V: 248).
A capacidade de amar é, desse modo, a qualidade-chave do pe-
dagogo, a qualidade sine qua non que está subjacente a todas as
outras que Vieira enumera em seguida. O amor é, por assim dizer,
a força motriz de quem ensina no contexto em que os Jesuítas se
viam obrigados a ensinar.
A qualidade que o capítulo iii exalta é a perseverança. Partindo
do exemplo evangélico de S. Tomé, a quem couberam, pela sua
incredulidade, as partes do mundo mais difíceis de evangelizar,
Vieira disserta sobre a inconstância dos gentios cuja doutrinação
ficou a cargo do apóstolo. Segundo o pregador, estes aprendem e
desaprendem com a mesma facilidade, o que requer muita persis-
tência por parte de quem lhes ensina. Para ilustrar este argumento,
o jesuíta socorre-se da imagem de duas estátuas: a de mármore e
a de murta. E se, na primeira, que simboliza outros povos gentios
da Terra, a dureza do material representa a dificuldade com que
recebem a doutrina cristã, mas simultaneamente a constância com
que, posteriormente, perseveram nela; na segunda, que representa
os gentios do Maranhão, a ductilidade do material vegetal representa
a predisposição com que estes se deixam moldar à cristandade,

444
mas também a facilidade com que, depois, abandonam os prin-
cípios adquiridos. Assim, e ao contrário do escultor do mármore
que, depois da obra criada, pode, enfim, descansar, o escultor da
murta – portanto o pedagogo dos índios – terá de “assistir, e insistir
sempre com eles, tornando a trabalhar o já trabalhado, e a plantar o
já plantado, e a ensinar o já ensinado, não levantando jamais a mão
da obra, porque sempre está por obrar, ainda depois de obrada”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 253).
Depois da perseverança, segue-se a compreensão. Eis um grande
tópico sobre a alteridade no processo pedagógico. Para ensinar é
preciso estabelecer pontes, é preciso criar canais de comunicação
que permitam uma aproximação entre quem ensina e quem aprende.
Tal tópico é representado pelas línguas infinitas e dificultosas em
que os índios se expressavam. Para os ensinar, era necessário que os
missionários se dignassem empreender enormes esforços de descodi-
ficação desses idiomas, de forma a poderem estabelecer comunicação
com eles e lhes poderem transmitir a doutrina que traziam. Trata-se
de um enorme trabalho de aproximação – neste passo retoricamente
amplificado – que todo o pedagogo tem de envidar para poder aceder
aos espíritos, sempre tão diversos, dos aprendizes:

A segunda circunstância, que pede grande cabedal de amor


de Deus, é a dificuldade das línguas. […] O primeiro trabalho é
ouvi-la; o segundo percebê-la; o terceiro reduzi-la a gramática,
e a preceitos; o quarto estudá-la; o quinto (e não o menor, e que
obrigou a São Jerónimo a limar os dentes) o pronunciá-la. E depois
de todos estes trabalhos ainda não começastes a trabalhar. (Franco
& Calafate, 2013-2014, II, V: 254)

O capítulo v do “Sermão do Espírito Santo” é abundante em


qualidades que o bom pedagogo deve possuir. Vieira começa com a
exemplaridade, um tópico bem católico e várias vezes desenvolvido

445
na oratória vieirina.1 Trata-se do pregar com a vida e não apenas com
as palavras, a apologia da ação e sua supremacia sobre as palavras,
baseada na visão católica e jesuítica de que a salvação vem pelos
atos praticados e não apenas pela fé. Assim, cabe ao pedagogo dar
o exemplo. Mais do que com as palavras do mestre, os aprendizes
aprenderão com o seu exemplo: “vivendo bem, e dando bom exemplo”.
E dar o exemplo é, para Vieira, uma forma de ensino acessível não
só aos religiosos, mas uma pedagogia acessível a todas as pessoas,
inclusive aos leigos, homens e mulheres, que alcançam a dignificação
pela pureza e qualidade do seu exemplo de vida como cristãos – neste
texto representada pela concessão simbólica de uma categoria altíssima
no seio do corpo da Igreja: “Por este modo um pai de famílias, um
homem leigo fará em sua casa não só ofício Eclesiástico, mas ofício
Episcopal” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 260).
À exemplaridade segue-se a força, um dos pontos mais sensíveis
do texto de 1657. Vieira legitima o uso da força para catequizar:
“E quando a Fé se prega debaixo das armas, e à sombra delas, tão
Apóstolos são os que pregam, como os que defendem” (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, V: 261).
Assim se revela a conceção de guerra justa. Trata-se das ações
necessárias, ainda que pelo uso da força e da violência, para obter
as condições contextuais ideais ao trabalho do pedagogo, a com-
petência violenta para eliminar quaisquer fatores que impeçam o
ensino da doutrina cristã: 2

Pois também os soldados concorrem para a formação da Igreja?


Sim; porque muitas vezes é necessário que os soldados com suas

1 A este propósito, vide Mendes, 1989 (parte i : “Ethos: Protótipo do pregador”).


2 A este propósito, veja-se a carta 77, ao padre provincial, in Franco & Calafate,
2013-2014, I, II: 185-196, em que Vieira alude ao uso de armas de fogo por parte dos
religiosos, defendendo, mesmo contra a vontade real, que os missionários tivessem
espingardas e as levassem consigo durante determinadas jornadas.

446
armas abram, e franqueiem a porta, para que por essa porta
aberta, e franqueada se comunique o sangue da Redenção […].
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 261)

Sucede à força a fé inabalável na redenção, a crença absoluta na


capacidade de recuperação de todos os seres humanos, tão recorrente
na doutrina de Cristo. Por isso, o pregador serve-se, neste passo, das
parábolas cristãs do bom pastor, que larga o rebanho para recuperar
a ovelha tresmalhada, e da dracma perdida, pela qual uma mulher en-
vidou persistentes buscas até à sua recuperação. Com isto o pregador
pretende mostrar que o pedagogo jamais poderá desistir de tentar
ensinar, insistindo no ofício ainda com mais vigor quando se trata de
ensinar aqueles que se mostram mais relapsos à assimilação da men-
sagem. A verdadeira alegria do pedagogo cristão está em recuperar e
converter aquele que parecia irrecuperável e inconvertível.
O capítulo vi é um dos mais belos e marcantes de toda a peça
parenética. Aqui o pregador empreende uma apologia do alento,
do ânimo pedagógico, da paciência ativa que não se deixa enfra-
quecer pela dureza das tarefas e que deverá assistir ao espírito de
todos os que ensinam para que o seu ensino dê frutos. Para isso,
Vieira recorre novamente à magistral imagem da estátua e do seu
processo de transformação, agora para a amplificar e mostrar
como um artista – neste caso o escultor –, com tempo e um mé-
todo meticuloso e constante, é capaz de transformar uma pedra
tosca vinda da serra não só na imagem de um perfeito homem,
mas também numa figura de um santo digno dos mais elevados
altares da igreja. Por analogia, assim será também com o pedagogo
que não se escusa, que não se esconde nem se desculpa com as
dificuldades da sua tarefa:

É uma pedra, como dizeis, esse Índio rude? Pois trabalhai, e


continuai com ele (que nada se faz sem trabalho, e perseverança),

447
aplicai o cinzel um dia, e outro dia, dai uma martelada, e outra
martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca, e informe, fazeis
não só um homem, senão um Cristão, e pode ser que um Santo.
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, V: 263)

Adjacente a esta qualidade do alento surge a da audácia. Todo


o missionário – e consequentemente pedagogo, entenda-se mais
uma vez – carece de ser audaz para poder afrontar os horizontes
de quem aprende e transformar esse ser num ser parecido a si
próprio. O que Vieira sugere, neste passo, é a ideia fisiológica
de apropriação e transformação da carne consumida em carne do
próprio corpo. E tal ideia é transmitida por via de duas metáforas
um tanto violentas, nas quais se pretende mostrar que o ensino
transforma a essência dos seres, e o ser ensinado se transforma,
em certa medida, no ser que ensinou:

Fostes à caça por esses bosques, e campinas, matastes o Veado,


a Anta, o Porco montês; matou o vosso escravo o Camaleão, o
Lagarto, o Crocodilo; comeu ele com os seus parceiros, comestes
vós com os vossos amigos: e que se seguiu? Dali a oito horas,
ou menos […], a Anta, o Veado, o Porco montês, o Camaleão, o
Lagarto, o Crocodilo, todos estão convertidos em homens: já é
carne de homem o que pouco antes era carne de feras. (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, V: 264)

[…] porque o modo de converter feras em homens é matando-as,


e comendo-as; e não há coisa mais parecida ao ensinar, e doutrinar,
que o matar, e o comer. Para uma fera se converter em homem,
há de deixar de ser o que era, e começar a ser o que não era; e
tudo isto se faz matando-a, e comendo-a: matando-a, deixa de ser
o que era, porque morta já não é fera; comendo-a, começa a ser
o que não era, porque comida, já é homem. (Franco & Calafate,
2013-2014, II, V: 265)

448
Para a peroração do sermão ficou reservada a responsabilidade.
E é grande, para o pregador, a responsabilidade de quem ensina,
principalmente quem ensina a doutrina de Cristo. No último passo,
Vieira imprime ao texto a marca do temor divino, lembrando aos
missionários-pedagogos o lugar-comum barroco da “grande conta
que Deus […] há de pedir” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, V:
266). Quem ensina tem de manter presente a sua enorme responsa-
bilidade sobre outros seres, e portanto o comprometimento coletivo
de quem tem “à sua conta Almas alheias” (Franco & Calafate, 2013-
-2014, II, V: 268). Quem ensina passa a ser responsável não apenas
pela sua alma, mas sim pela alma de todos aqueles que, bem ou
mal, ensinou, assumindo essa responsabilidade perante o Criador
e as criaturas que este lhe confiou:

Oh que justiças pedirão sobre vós naquele dia tantas infelizes


Almas, de cuja infelicidade eterna vós fostes causa! […] Oh que
espetáculo tão triste, e tão horrendo será naquele dia ver a um
Português destas Conquistas (e muito mais aos maiores, e mais
poderosos) cercado de tanta multidão de Índios, uns livres, outros
escravos; uns bem, outros mal cativos; uns Gentios, outros com
nome de Cristãos, todos condenados ao Inferno, todos ardendo
em fogo, e todos pedindo justiça a Deus sobre aquele desventu-
rado homem, que neste mundo se chamou seu Senhor! (Franco &
Calafate, 2013-2014, II, V: 269)

Em suma, são estes os 10 tópicos que Vieira desenvolve ao longo


de mais uma obra-prima da parenética peninsular do séc. xvii , de-
lineando, assim, o perfil do pedagogo cristão ideal.
Revisitar o “Sermão do Espírito Santo” no séc. xxi permite-nos
refletir sobre a pedagogia contemporânea e problematizar o perfil
do pedagogo atual à luz do pensamento de Vieira. Mas mais do que
refletir e problematizar, o “Sermão do Espírito Santo” é um texto

449
que, hoje como sempre, pode simplesmente inspirar os que levam
a cabo o intemporal ofício de ensinar. Numa época em que a escola
se depara com desafios importantes, como a universalização das
qualificações de nível secundário, a adaptação ao mundo digita-
lizado, a multiplicidade e omnipresença de fontes de informação,
ou o multiculturalismo dos alunos, o “Sermão do Espírito Santo”
representa um bom ponto de partida para pensar o ensino, os seus
desafios e obstáculos.
Assim, e ainda que de forma sumária, sempre podemos afirmar
que, mesmo que afastada a ideia da luz divina, continua a ser
necessário acreditar na transcendência que a missão de ensinar
encerra. É necessário que o professor esteja predisposto a acolher o
desassossego do seu ofício e a procurar constantemente os melhores
caminhos para o desenvolver. Continua a ser necessário encarar o
ofício como uma vocação, muito para além de uma simples profissão
pela qual se é remunerado.
O amor, a perseverança e a compreensão são valores e princípios
sem os quais não será possível atuar eficientemente na escola do
séc. xxi . A geração que agora se senta nos bancos das escolas fala
uma linguagem bem diferente da das gerações anteriores. Por isso
será necessário, à semelhança de Vieira, que o pedagogo se esforce
por compreender a sua forma de pensar, agir e comunicar, perse-
verar sempre durante a inconstância que a assola e amá-la na sua
imperfeição e nas suas limitações, demonstrando uma benevolência
assertiva capaz de incluir e até seduzir.
Também a exemplaridade continua a ser um dos fatores pedagó-
gicos mais decisivos, principalmente tendo em conta a faixa etária
da maioria dos estudantes, em pleno processo de formação da per-
sonalidade. Um professor será sempre um exemplo que ensina pelo
que diz, mas sobretudo pelo que faz. Assim, toda a sua conduta,
os hábitos que demonstra e a forma como trabalha serão modelo
de imitação ou rejeição para os alunos com quem lida diariamente.

450
A força representa a firmeza que quem ensina tem de assumir
em momentos-chave, para poder resistir às dificuldades externas
que um mundo de estímulos incessantes e omnipresentes tenta
impor à educação. É preciso que um professor seja forte, individual
e coletivamente, para, por sua vez, conseguir impor um contexto
favorável ao ensino e à aprendizagem.
A fé na capacidade de regeneração do ser humano será o único
fator que permitirá resistir ao desânimo que tantas vezes se instala.
Até que um aluno abandone definitivamente a escola – agora, pelo
menos, aos 18 anos –, o pedagogo tem o dever moral de, inces-
santemente e por todos os meios, o procurar motivar e recuperar,
mesmo quando este parece ser irrecuperável. A regeneração é a
essência do trabalho pedagógico, não acreditar na sua possibilidade
é negar o poder da educação.
O alento e a audácia permitirão, respetivamente, superar as
adversidades de várias ordens que se interpõem quotidianamente
no caminho dos professores, para que estes continuem a afrontar
os horizontes domésticos dos alunos que, só deste modo, poderão
sair da escola transformados. Alento para, tal como o escultor da
parábola de Vieira, trabalhar o material bruto com paciência e mé-
todo até o transformar na mais sublime das obras de arte. Audácia
para ousar caçar e matar as ideias mais preconceituosas, para des-
mascarar velhos e novos mitos e produzir seres livres no que ao
pensamento diz respeito.
Por fim, também a noção de responsabilidade deve pesar sobre
todas as pessoas que preparam a geração de amanhã e que in-
fluenciam coletivamente a vida de um sem-número de indivíduos.
E, para além dos professores, esta responsabilidade deveria estar
igualmente na mente de pais e encarregados de educação, assim
como daqueles que decidem o rumo das instituições de ensino e
de quem lá trabalha, como os decisores políticos locais, nacionais
e supranacionais.

451
Numa altura em que se diz dar tão pouco fruto a escola – re-
cuperando uma célebre metáfora do Padre António Vieira –, seria
interessante todos os professores medirem-se com estes tópicos
que o jesuíta aventou em 1657. Por isso, não constituirá, de todo,
um exercício despiciendo ponderar o ofício de ensinar à luz deste
texto, e seria, inclusive, bem pertinente que o “Sermão do Espírito
Santo” do Padre António Vieira viesse a integrar os curricula dos
cursos de formação de professores.

Bibliografia

Coetzee, J. M. (2002). What is a classic?. In Stranger Shores: Essays 1986-1999 (1-19).


London: Vintage.
Franco, J. E. & Calafate, P. (dir.) (213-2014). Obra Completa Padre António Vieira.
S.l.: Círculo de Leitores.
Mendes, M. V. (1989). Oratória Barroca de Vieira. Lisboa: Caminho.

452
O “Sermão de Santo António” no ensino secundário:
hipóteses para uma leitura que acabe em graça e glória

The “Sermon of Saint Anthony” in secondary education:


hypotheses for a reading that ends in grace and glory

Rui Afonso Mateus


Universidade de Coimbra/CLP
ORCID | 0000-0002-9127-5725

Resumo
A preservação do lugar do “Sermão de Santo António” no pro-
grama de Português do ensino secundário ao longo das suas
sucessivas revisões, ao mesmo tempo que sinaliza a resistência
da sua canonicidade, constitui um desafio de monta para os
professores, que se debatem com crescentes dificuldades no
trabalho pedagógico com o texto. O programa da disciplina
implementado a partir de setembro de 2015, ao atribuir um
lugar central à Educação Literária na aprendizagem da língua
materna, dá aos professores margem para abordar o sermão com
estratégias renovadas, profundamente escoradas na consideração
do contexto de escrita e atentas aos mecanismos discursivos e
retóricos de produção de sentido nele mobilizados. Tendo em
vista a realização de uma leitura compensadora por parte dos
alunos de hoje, a didática do sermão deverá apostar em atividades

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_20
que deem realce ao misto de estranhamento e identificação com
que o texto se apresenta perante o leitor atual.
Palavras-chave: oratória; pedagogia; programas de Português;
sermão

Abstract
The maintenance of the place the “Sermon of Saint Anthony”
has kept in the syllabus of Portuguese in Secondary Education,
throughout its successive revisions, conveys the resistance of
its canonic status, but also carries with it a huge challenge to
teachers, who tackle severe difficulties when dealing with the
text in class. The syllabus of Portuguese under implementa-
tion since September 2015 recognizes a central role of literary
education in the learning of the mother language, thus giving
teachers the possibility to explore the sermon with renewed
strategies, profoundly rooted in the consideration of the writing
context and particularly attentive to the discourse and rhetoric
mechanisms for the production of meaning involved in it. Aiming
at a responsive and gratifying reading by today’s students, the
didactics of the sermon shall rely upon activities that underline
the mixed sense of strangeness and identification with which
the text is delivered to contemporary readers.
Keywords: oratory; pedagogy; Portuguese syllabuses; sermon

454
1. Introdução
A existência do “Sermão de Santo António” como conteúdo curricular
e objeto de ensino na disciplina de Português do ensino secundário
configura um quadro pedagógico marcado por dois traços fundamentais:

(1) a longevidade, que diz essencialmente respeito à permanência


incontestada do texto no programa do ensino secundário nas
suas sucessivas revisões;
(2) como resultado natural do traço anterior, a resistência tenaz
do texto na lista de leituras obrigatórias do programa do
11.º ano de escolaridade, mantida nas suas sucessivas revisões,
inclusive na mais recente, que foi homologada em janeiro de
2014 e cuja implementação nas escolas estará generalizada
no ano letivo de 2017/2018.

Estas condições da existência curricular do sermão são sinal


inequívoco do sólido lugar canónico que é reconhecido ao texto
e ao seu autor, mas não deixam de ter, em termos práticos, um
efeito perverso. A prolongada escolarização do texto, orientada
por linhas pedagógicas sujeitas a muito poucas inovações ao nível
das determinações programáticas, conduziu a uma certa calcifi-
cação dos conteúdos, das estratégias e dos materiais de trabalho
preconizados para a sua leitura em contexto escolar. A dimensão
institucional que configura o estudo da literatura na escola en-
volve veículos e mecanismos de transmissão, a começar pelos
manuais, que, só por si, transfiguram o fenómeno de leitura
literária e inevitavelmente afetam a espontaneidade e a moti-
vação pessoal que caracterizam os seus contextos de ocorrência
natural. O prolongamento da submissão de um texto a regimes
de leitura como o que a escola promove acaba por o prender a
uma imagem institucional e por o associar a meios de circulação
muito próprios que, com o tempo, levam a uma colagem do objeto

455
literário ao seu sucedâneo escolar, roubando-lhe, até certo ponto,
o estatuto artístico original. E assim acabou por suceder também,
inevitavelmente, com o “Sermão de Santo António”.
Um cotejo, ainda que superficial, do programa cessante (de
2002) com o que se encontra em fase de implementação permite
verificar que, no caso de Vieira, apesar da visível e muito comen-
tada mudança de modelo pedagógico que o novo programa propõe,
se mantêm as principais linhas de leitura do “Sermão de Santo
António”, às quais é agora dada uma diferente contextualização
didática e uma nova orientação de trabalho, o que não deixa de
constituir um fator distintivo considerável. O seguinte esquema
permite fazer uma comparação entre as abordagens propostas
nos dois programas (Coelho, 2001: 41; Buescu, 2014: 19):

Critérios de Programa cessante (2002) Programa novo (2014)


comparação

1. Domínio de Leitura (textos Educação literária


aprendizagem argumentativos)

2. Extensão Excertos (de escolha livre) Partes I e V (integrais)


+ excertos das restantes
secções

3. Conteúdos 4 tópicos: 5 tópicos:


a) objetivos programáticos a) contextualização
da eloquência: docere, histórico-literária;
delectare, movere; b) objetivos da
b) estrutura argumentativa eloquência: docere,
do sermão; delectare, movere;
c) crítica social; c) intenção persuasiva
d) eficácia persuasiva. e exemplaridade;

456
Critérios de Programa cessante (2002) Programa novo (2014)
comparação

↓ d) crítica social e alegoria;


Opção por uma definição e) linguagem, estilo e
genérica das matérias, mas estrutura: visão global
passível de contemplar a do sermão e estrutura
generalidade dos conteúdos argumentativa; discurso
previstos no programa figurativo (alegoria,
novo, dos quais apenas não comparação, metáfora);
abarca o tratamento dos outros recursos
aspetos da contextualização expressivos (anáfora,
histórica, explicável pelo antítese, apóstrofe,
enquadramento do sermão enumeração, gradação).
num domínio que não é ↓
especificamente literário. Opção por uma
apresentação
pormenorizada e dirigida
das matérias.

Os pressupostos do novo programa colocam o professor perante


dois constrangimentos principais. O primeiro deles é o tempo, uma
vez que, considerando apenas o trabalho a desenvolver no domínio
da Educação Literária, é suposto que a leitura do sermão e o tra-
tamento dos conteúdos acima listados se façam em apenas oito
tempos letivos ou, em termos práticos, em quatro aulas de noventa
minutos, o que equivale a duas semanas de aulas.
Em segundo lugar, coloca-se o problema da orientação pedagógica
a dar às atividades de leitura que o programa preconiza, tendo em
conta que se exige ao professor que todas as tarefas propostas aos
alunos estejam em correspondência clara com um ou mais descri-
tores de desempenho das metas curriculares, o que gera algumas
consequências menos desejáveis:

(1) antes de mais, uma evidente limitação da autonomia peda-


gógica do professor;

457
(2) a promoção de manuais escolares fortemente decalcados da
estrutura do programa e muito condicionados pelas indicações
de gestão muito precisas das metas curriculares, que tendem
a substituir-se à planificação pensada pelo professor para as
suas turmas em concreto;
(3) a viabilização de manuais escolares que funcionam como
um ready-made didático, passível de uso acrítico e pouco
refletido, indiferente ao contexto e às circunstâncias de ensino,
às quais sobrepõem uma verdadeira artilharia de materiais
que espartilham a criatividade e a naturalidade do ato de
ensinar, que se vê reduzido a uma tarefa de administração
de recursos uniformes e pré-determinados (incluindo textos,
testes, formulários, questionários e as respostas que se espera
que os alunos forneçam aos exercícios);
(4) o desaparecimento acelerado e a reduzida adesão a manuais
que funcionam sobretudo como antologias literárias ou que
se baseiam nesse modelo.

Perante este quadro, o professor fará bem em dosear com co-


medimento os materiais e textos que tem à sua disposição nos
manuais, dando importância a um aspeto que tem eventualmente
ficado à margem do ruído que tem sido produzido em torno do novo
programa: os textos escolhidos podem continuar a ser os mesmos,
como acontece no caso de Vieira, mas a sua colocação num domínio
chamado “Educação Literária” consiste na sua recondução ao espaço
da pedagogia da língua materna que lhes reconhece especificidade
estética, histórica, comunicativa e institucional. Esta recondução resgata
os textos literários de práticas indiferenciadas de leitura eferente e
funcional, ao mesmo tempo que dá legitimidade ao professor para
lançar mão de procedimentos que persigam dois objetivos que
devem ser complementares e não incompatibilizados: ler o texto
de forma esclarecida e informada; em simultâneo, gostar de ler e

458
compreender o texto. Conseguir esse objetivo consistirá, no caso
concreto do sermão de Vieira e citando a sua frase de encerramento,
em chegar ao fim da leitura “em graça e glória”, pelo menos para
alunos e professor, já que aos peixes é o próprio pregador que não
deixa grandes esperanças…

2. A impor tância do texto de Vieira no atual prog rama do


ensino secundário
O “Sermão de Santo António” ocupa um lugar singular no pro-
grama de Português. Antes de mais, basta referir que, no plano
histórico-literário, é o único texto do período barroco previsto no
domínio programático da Educação Literária. Tendo em conta o cri-
tério cronológico que está implícito na organização dos conteúdos
literários do programa, a leitura do sermão anula ou, pelo menos,
suaviza o hiato temporal que separa a obra historicamente anterior
(a História Trágico-Marítima, compilada e publicada em 1735/1736,
mas contendo textos originários de meados do séc. xvi e inícios do
séc. xvii) e as que se lhe seguem no programa: Frei Luís de Sousa, de
Almeida Garrett, representado pela primeira vez em 1843; Viagens
na Minha Terra, de Almeida Garrett, com edição em livro de 1846;
Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano, publicadas inicial-
mente na revista Panorama, com edição em livro apenas em 1851.
O sermão de Vieira foi proferido em 1654, o que o faz funcionar
como cimento, como elemento de ligação e continuidade num vasto
arco temporal, que, sem esta obra, representaria um extenso vazio
temporal de quase 250 anos (de cerca de 1600 a 1843) no cânone
eleito pelo programa.
O texto merece também ser destacado no campo genológico,
por ser o único texto de pendor matricialmente argumentativo se-
lecionado pelos autores do programa, tornando-se assim no único
veículo de contacto com a realização literária da arte de argumentar
e com a variante estética de uma modalidade de discurso muito

459
presente no quotidiano dos alunos. Trata-se também de uma peça
de oratória que mobiliza instrumentos linguísticos, expressivos e
interpelativos semelhantes aos que os alunos identificam no dis-
curso político, na publicidade, na escrita jornalística e em alguns
formatos televisivos e radiofónicos com que convivem no quotidiano.
É, ainda, um objeto literário que permite estudar, de forma contex-
tualizada, a ocorrência e a eficácia dos mecanismos da pragmática
e da linguística textual que figuram como conteúdos do 11.º ano de
escolaridade, nomeadamente a coerência textual e os mecanismos
lexicais e gramaticais de coesão textual.

3. Propostas de leitura e exploração do sermão nas aulas de Português


Embora já existam edições adaptadas do “Sermão de Santo
António” dirigidas a crianças,1 a atenção e a boa vontade dos alunos
para com a leitura de um texto tão distante da sua realidade no
contexto de enunciação, na intencionalidade oratória, no modo
performativo, na arquitetura retórica e na linguagem fortemente
alegórica exigem da mediação docente um esforço de captatio be-
nevolentiae equiparável ao que o pregador teve de exercer, à época,
junto do seu público, conquistando a sua adesão pela novidade da
estratégia e pelo interesse do assunto. No caso de Vieira, a novi-
dade da estratégia fica clara desde muito cedo, por via da escolha
dos peixes para destinatários literais do sermão, um mecanismo
de inovação que o pregador se encarrega de ir relembrando ao
longo da prédica. O interesse do público que assistiu à pregação
do sermão em 1654 foi garantido pela premência, atualidade e
tempestividade dos temas abordados, que vinham sendo alvo de
denúncia por parte de Vieira, muito em particular a situação social
e humanitária dos índios à mão dos colonos portugueses que está
na base da sua escrita.

1 É o caso de Lage, 2008.

460
Ao ser recriada no plano da didática do texto, a novidade impli-
cada no estudo do sermão poderá ser explorada mediante estratégias
de estranhamento suscetíveis de causar impacto nos alunos pelo
facto de chocarem com as suas vivências habituais. Partindo deste
princípio, estas estratégias afiguram-se as mais adequadas para a
abordagem do primeiro conteúdo substantivo previsto no programa,
a “contextualização histórico-literária”, uma vez que põem em relevo
a alteridade diacrónica que o texto impõe aos alunos de hoje. Em
vez do habitual recurso a textos informativos de carácter histo-
riográfico ou enciclopédico sugeridos pelos manuais como objeto
de leitura funcional visando uma recolha passiva de dados pouco
significativos para uma efetiva compreensão dos textos, seria talvez
mais benéfico e útil levar os alunos a contactar com material que
lhes permitirá sentir os focos problemáticos do contexto histórico
e social do sermão por via de uma recriação da mentalidade coeva.
No que diz estritamente respeito ao enquadramento histórico
do texto, a questão que se reveste de maior significado é a defesa
dos direitos dos índios e o resultante conflito com os colonos que
o Padre António Vieira protagonizou. Esta polémica não só cons-
titui o enquadramento histórico do sermão como está subjacente
ao esquema alegórico que o suporta. Para a reconstituição desse
quadro em ambiente pedagógico, parece-nos de particular interesse
o recurso, entre outros, aos seguintes elementos:

(1) a carta do Padre António Vieira a D. Afonso VI, datada de


20 de abril de 1657, um documento que integrava a maioria
das edições escolares do sermão publicadas nos anos 50 e
60 do século passado (Vieira, 1961) e cuja leitura, associada
ao contacto com as partes iv e v do “Sermão da Primeira
Dominga da Quaresma” (de 1653, proferido na mesma época
do “Sermão de Santo António”), permite conhecer os termos

461
em que foi feita pelo pregador a denúncia das condições de
vida dos índios subjugados aos colonos do Maranhão;
(2) excertos do “Sermão da Epifania” (de 1662) e da carta a
D. João IV de 8 de dezembro de 1655, textos em que se
procede à descrição elogiosa da obra de evangelização e ao
trabalho humanitário desenvolvido pelos Jesuítas junto dos
indígenas do Brasil;
(3) documentários históricos sobre a época, de intuito mais ou
menos pedagógico, como sejam o curtíssimo filme Padre
António Vieira, o Imperador da Língua Portuguesa, dispo-
nibilizado pelo sítio RTP Ensina, ou o documentário Padre
António Vieira. Uma Vida, Uma Obra, de Alfredo Tropa (1977),
um objeto datado, cuja apresentação na íntegra aos alunos
poderá não resultar da melhor forma, mas que contém mo-
mentos que certamente contribuirão para o conhecimento
da importância da pregação na cultura, na sociedade e no
quotidiano do séc. xvii , para a compreensão do lugar parti-
cular do “Sermão de Santo António” na obra de Vieira e para
o contacto com o processo inquisitório a que o pregador foi
submetido por parte do Santo Ofício; 2
(4) no domínio da ficção, os filmes A Missão, de Roland Joffé (de
1986), uma recomendação frequente nos manuais escolares
do 11.º ano de escolaridade, e Palavra e Utopia, de Manoel
de Oliveira (2000), do qual são particularmente importantes
para a compreensão do contexto de produção do “Sermão de
Santo António” os primeiros 50 minutos;
(5) entrevistas a especialistas disponíveis em suporte digital,
muito em particular a entrevista a Alcir Pécora que integra a
série “Cursos livres” da Univesp TV (“Padre António Vieira e
a educação jesuítica”, em duas partes, com uma duração total

2 Cf., para cada um destes assuntos, os minutos 10, 15 e 22 do filme.

462
aproximada de 110 minutos), dada num registo de conversa
informal e com recurso a linguagem simples, o que a torna
num objeto de fácil assimilação por parte dos alunos, que nela
encontram uma via de acesso ao universo cultural e mental
que enquadra a escrita de Vieira.

No que diz respeito ao contexto artístico da feitura do sermão,


é fundamental que os alunos possam observar e apreciar imagens
ilustrativas da estética barroca, sobretudo dos aspetos em que se
verifica uma articulação direta com a arquitetura e o estilo do
texto, com destaque para o visualismo decorrente da omnipre-
sença de imagens, utilizadas como instrumento da agudeza de
raciocínio e da exuberância da linguagem, e para a proliferação
de alegorias, particularmente as que versam o topos da vanitas,
uma das linhas fundamentais da representação da existência
humana na arte barroca a que cabe lugar de relevo no “Sermão
de Santo António” (Calheiros, 1999). As críticas à vaidade feitas
por Vieira na parte iv do sermão, onde a rotula de “tão notável
ignorância, e cegueira” (Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 154)
que leva os homens à valorização do “triste farrapo” e das “joias”
(Franco & Calafate, 2013-2014, II, X: 154), decorrem da mesma
reflexão sobre a efemeridade das glórias e dos bens materiais que
inspirou, para nos circunscrevermos à pintura barroca peninsular
e evitarmos a referência recorrente aos trabalhos de Pieter Claesz
ou Harmen Steenwyck, a obra de pintores como Juan de Valdés
Leal e António de Pereda, 3 a cuja exposição os alunos não ficarão
certamente indiferentes. O reconhecimento do jogo de contrastes

3 Algumas das obras destes pintores fazem parte da impressionante coleção de


vanitas pertencente à Fundação Franco Maria Ricci que esteve exposta no Museu
Nacional de Arte Antiga em 2014 e 2015. Foi publicado pela Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda um catálogo da exposição com a reprodução de todas as obras
apresentadas aos visitantes.

463
e opostos que subjaz a muitos dos jogos conceptuais da prosa de
Vieira tornar-se-á também mais fácil e imediato para os alunos se
for acompanhado pela observação de obras que ilustrem a técnica
do chiaroscuro, que se pode considerar o equivalente pictórico do
discurso meândrico, rico em antíteses, gradações e imagens con-
trastivas que caracteriza a prosa barroca. 4
Também se justifica, para a compreensão do contexto artístico
da produção do sermão, o reconhecimento de alguns traços da
arquitetura religiosa jesuítica que se relacionam de forma muito
imediata com o florescimento da oratória barroca. A construção de
igrejas com características de auditório, como é o caso da igreja de
S. Roque, 5 onde Vieira pregou, vem responder à centralidade que
as recomendações litúrgicas do Concílio de Trento atribuíram ao
momento da pregação, sendo, por isso, importante que os alunos
verifiquem a articulação muito estreita que se estabelece entre a re-
ligiosidade pós-tridentina e o papel fundamental que, a nível mental
e social, foi reconhecido à atividade oratória ao longo do séc. xvii
(Maravall, 1997). De alguma forma, a revalorização da palavra e o
protagonismo que é, nesta época, reconhecido ao púlpito são uma
reação da Contrarreforma ao rito luterano, no qual a celebração do
Verbo (por via da leitura e do comentário) ganhou uma prepon-
derância que se fora elidindo do ritual cristão anterior à Reforma.
É fácil levar os alunos a perceber esta mudança através da apreciação
de imagens do interior de igrejas protestantes, onde o púlpito 6 é

4 A exibição e o comentário de reproduções dos quadros A Ceia de Emaús e


David e Golias de Caravaggio, por exemplo, serão uma boa estratégia para o reco-
nhecimento desta técnica específica de pintura.
5 É inteiramente justificada uma visita dos alunos à igreja e ao Museu de S. Roque.
Não sendo viável a deslocação ao espaço, é sempre possível apresentar aos alunos a
visita virtual disponível, entre outros, no sítio RTP Play: Visita guiada (VI). RTP Play.
Acedido a 19 de julho de 2018, em www.rtp.pt/play/p2366/e238703/visita-guiada.
6 Sugere-se, a título exemplificativo, o interior da Nieuwe Kerk de Amesterdão,
onde o belíssimo e muito burilado púlpito em madeira da autoria de Albert

464
alvo do destaque arquitetónico e do investimento artístico que a
arquitetura religiosa tradicional reservava para outros pontos do
edifício, como o altar, o cadeiral ou as capelas radiantes. As igrejas
que a Companhia de Jesus mandou edificar na sequência do Concílio
de Trento adotaram, de algum modo, esta linha arquitetónica das
igrejas reformadas, o que é representativo da nova disciplina litúr-
gica e do novo significado que interessava impor ao ritual cristão.
Quando está em causa despertar o interesse para o assunto e
para o conteúdo do sermão, faz sentido recorrer a estratégias que
levem o aluno a identificar-se com o texto. O quarto tópico previsto
no programa (“crítica social e alegoria”) presta-se a uma discussão
pedagógica de valores inscritos na obra, como a justiça, a igualdade
e a dignidade dos seres humanos, a que os jovens são em geral
muito sensíveis, não só por constituírem uma fonte intemporal de
interrogação, mas também porque a realidade atual continua a jus-
tificar uma reflexão profunda sobre o seu lugar no desenvolvimento
da humanidade, raramente por boas razões. O sermão, sobretudo
na parte v , cuja leitura está prevista na íntegra, tem a capacidade
de urdir, com a agudeza das palavras e das metáforas, imagens
alegóricas (sobretudo as que se relacionam com as quatro grandes
figurações em torno das quais se estrutura este segmento do sermão,
os quatro peixes que são alvo da crítica acerada e minuciosa do
pregador) que sustentam conceitos aplicáveis à realidade de hoje
e a que os alunos da faixa etária a que corresponde o 11.º ano de
escolaridade reagem de forma empenhada e comprometida, muito
em particular se for estabelecida com a leitura uma fértil articu-
lação com outros conteúdos da disciplina de Português (como a
compreensão oral de discurso político) ou de outras disciplinas,
nomeadamente a Filosofia.

Vinckenbrinck chama de imediato a atenção de visitantes e fiéis, constituindo, in-


dubitavelmente, o foco do edifício.

465
Na abordagem de alguns tópicos de conteúdo que o programa as-
socia ao sermão fará todo o sentido procurar soluções que combinem
as duas estratégias didáticas descritas até aqui: o estranhamento e
a identificação. Tome-se como exemplo o tratamento da segunda
rubrica do programa, “objetivos da eloquência”, a propósito da
qual interessa lembrar Torga (1973: 96), que, no seu Diário, fala
da oratória de Vieira como a “estatuária” do idioma português, por
se tratar de uma arte que, embora aplicando continuadamente o
burilado e o detalhe, produz um resultado onde a estrutura é os-
tensiva e se impõe com rigidez no tecido expressivo da palavra.
De algum modo, dá-lhe razão o próprio Vieira quando afirma, no
prólogo ao leitor que antepõe à edição dos sermões, que os seus
“borrões” escritos “sem a voz que os animava, ainda ressuscitados,
são cadáveres” (Franco & Calafate, II, XV: 285). Somos com isto
levados a concluir que é importante que os alunos reconheçam e
percebam que o sermão é uma modalidade discursiva incompleta
como ato comunicativo se ou quando veiculada apenas no suporte
escrito, uma vez que só a sua realização performativa através da
pregação é capaz de lhe conferir integridade semântica. É, portanto,
fundamental propiciar aos alunos atividades que lhes permitam
entender e apreciar a complexidade discursiva do sermão (que
era, à época, mais um happening dinâmico, dirigido ao coletivo
e temporalmente inscrito do que o objeto de leitura individual a
que a hegemonia dos modernos protocolos de receção dos textos
clássicos o conduziu) e o seu impacto na sociedade da época.
É imprescindível que os alunos conheçam a excecional fortuna de
que Vieira gozou como performer do púlpito (e do qual é frequente-
mente apontado como prova o testemunho de D. Francisco Manuel
de Melo nas Cartas Familiares (Melo, 1980: 330)) e que concebam
a pregação como resultado de uma composição dramática em que
o espaço cénico, a luz, os gestos e movimentos, a voz e a entoação
do pregador, a marcação e a resposta do público são mobilizados

466
para servir o objetivo moralizador e prático que Vieira deixa exa-
rado na abertura do “Sermão de Santo António”: invocando perante
os ouvintes a memória de sermões anteriores, Vieira assume que a
intencionalidade da pregação, que é a inculcação da doutrina “mais
necessária, e importante” para a “emenda, e reforma” das ações dos
homens, só se concretiza se a performance do pregador a tornar
“muito clara, muito sólida, muito verdadeira” (Franco & Calafate,
2013-2014, II, X: 139).
O trabalho com as turmas sobre a dimensão performativa da pre-
gação exige, antes de mais, o recurso a registos sonoros 7 e fílmicos
que exibam, em trechos curtos, o exercício ilustrativo dos objetivos
da eloquência (docere, delectare e movere), devendo ainda integrar
atividades que permitam a recriação da ação oratória do sermão
por parte dos próprios alunos, tomando como exemplo algumas
modalidades contemporâneas da sua existência, das mais usuais,
como as que ocorrem no âmbito do discurso político, às menos
convencionais, como as que encontramos nas intervenções públicas
dos oradores (mais ou menos) anónimos do Speakers’ Corner 8 ou
nas TED Talks9 americanas ou em objetos ficcionais como os filmes

7 Estão disponíveis no mercado e nas bibliotecas vários registos em suporte digital


de sermões (ou excertos de sermões) do Padre António Vieira, sendo de destacar
as gravações do “Sermão de Santo António” por Ary dos Santos, João Grosso, Diogo
Infante e Luís Lima Barreto. Há registos de outros sermões feitos por Luís Miguel Cintra
(“Sermão de Quarta-Feira de Cinza”, pronunciado e gravado em S. Roque em 2011) e
por Luís Lima Barreto (que, no livro-CD Do Tejo ao Amazonas, associa a leitura de
vários excertos de sermões e cartas de Vieira à execução de música sacra da época).
8 Trata-se de uma tribuna pública e informal situada ao ar livre, junto a uma das
entradas de Hyde Park, em Londres, onde qualquer cidadão pode tomar a palavra
e improvisar sobre um tema perante um auditório muito fluido e heterogéneo, mas
sempre ávido de discursos provocatórios e polémicos.
9 As TED Talks são conferências públicas com a duração de 18 minutos em que
os palestrantes procuram impressionar uma plateia exigente através do tratamento
original, empenhado e muito persuasivo de uma determinada ideia, projeto ou
opinião. Surgiram em 1990 por iniciativa da Sapling Foundation, com o objetivo de
apoiar ideias inovadoras (“Ideas Worth Spreading” é o mote das conferências) nas
três áreas que dão nome ao evento: “Technology, Entertainment, Design”.

467
O Discurso do Rei, de Tom Hooper, 10 ou, num registo mais radical,
arrojado e subversivo, em Magnolia, de Paul Thomas Anderson. 11

4. Fecho
Os professores de Português estão cientes de que, para os alunos
de hoje, o “Sermão de Santo António” não é a mais aliciante e ape-
tecível das propostas do programa, no que ao campo da Educação
Literária diz respeito. Esta consciência generalizada é comprovada
pela experiência nas escolas, que nos diz que o trabalho com este
texto nas aulas resvala facilmente para reações de saturação que
levam à rejeição por parte das turmas, o que transforma a leitura
coletiva do sermão na aula num enorme desafio à imaginação e à
perseverança do professor. Sendo certo que não existem fórmulas
fixas para a resolução de problemas de natureza pedagógica, o
recurso a estratégias que combinem a surpresa perante o muito
que é desconhecido no sermão e no seu tempo de produção com
o também muito que nele continua atual, reconhecível e pertinente
(tanto no plano do conteúdo como no plano da performatividade
discursiva) poderá abrir múltiplas portas para um diálogo mais
frutífero e compensador com o texto, cujo estudo pode, ainda hoje,
terminar “em graça e glória”.

10 A parte final deste filme de 2010, que retrata as dificuldades do rei Jorge VI em
lidar com o problema da gaguez, sobretudo quando é necessário falar aos cidadãos
do país e mobilizá-los para a guerra, é uma boa ilustração da importância de fatores
como a ortoépia, a entoação e a dicção sempre que se toma a palavra perante um
auditório que tem de ser conquistado e persuadido.
11 Neste filme de 1999, a construção psicológica da personagem Frank Mackey
passa pela extraordinária capacidade para persuadir auditórios exclusivamente
masculinos em agressivas palestras de autoajuda em que a oratória é triunfalmente
usada para criar nos ouvintes uma sensação de poder, sedução e afirmação pessoal
perante o elemento feminino. Trata-se, pois, de um excelente exemplo do impacto
que o ethos do palestrante tem junto do seu público.

468
Bibliografia

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Curriculares de Português: Ensino Secundário (Atualizado). Lisboa: Ministério
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abril de 1657). (5.ª ed.). Lisboa: Textos Literários/Seara Nova.

469
(Página deixada propositadamente em branco)
Leitura(s) de Vieira em contexto escolar. Hoje como ontem?

Readings of António Vieira in a secondary school context:


is today the same as yesterday?

Amélia Correia
Universidade de Coimbra/CLP

Resumo
Em “Leitura(s) de Vieira em contexto escolar. Hoje como ontem?”
intentar-se-á uma resposta a esta questão elegendo como objeto
nuclear da nossa investigação instrumentos reguladores das
aprendizagens no sistema educativo em Portugal desde a segunda
metade do séc. xx até à atualidade. Constituirá este um corpus
potencialmente esclarecedor de pressupostos educativos e dis-
tintos paradigmas que presidem à elaboração dos programas e
determinam a constituição de um cânone escolar, a consagração
de textos e autores como clássicos ou os respetivos movimentos
de inclusão e exclusão (temporária ou definitiva) desse mesmo
cânone. Merecerá atenção particular a presença de António Vieira
e a representatividade da sua obra no elenco de leituras literárias
previsto para lecionação no ensino secundário.
Palavras-chave: cânone; leitura(s) literária(s); programas escolares

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_21
Abstract
In “Readings of António Vieira in a secondary school context: is
today the same as yesterday?” we intend to answer this question
by selecting, as a nuclear object of our investigation, regulatory
instruments of the learning processes in Portuguese educational
system since the second half of the 20th century until our days.
This will be a potentially enlightening corpus of educational
assumptions and distinctive paradigms which conduct the ela-
boration of programs and establish the creation of a school
canon, the consecration of texts and authors as classics or the
inclusion and exclusion movements of this same canon (whether
temporary or permanent). The presence of António Vieira and
the representation of his work in the list of literary readings to
be taught in secondary education deserve particular attention.
Keywords: canon; literary readings; school programs

Introdução
O presente estudo incide na representatividade de António Vieira
e da sua obra no cânone literário escolar. Elege, por conseguinte,
como objeto de análise instrumentos reguladores da atividade letiva
no nosso sistema educativo desde a homologação do programa da
disciplina de Português para o ensino liceal, aprovado pelo dec.-
-lei n.º 39807/54, de 7 de setembro, até à homologação, em janeiro
de 2014, do mais recente programa de Português, elaborado na
sequência do disposto no desp. n.º 5306/2012, de 18 de abril.
Abrangendo, cronologicamente, a segunda metade do séc. xx e as
primeiras décadas do atual, constituirá este um corpus que permitirá
uma reflexão (que entendemos profícua) em torno de pressupostos
educativos e distintos paradigmas que presidem à conceção e à ela-
boração dos programas e determinam a constituição de um cânone

472
escolar, a consagração de textos e autores como clássicos ou os
respetivos movimentos de inclusão e exclusão desse mesmo cânone.
Que lugar é reservado a António Vieira nos programas escolares?
Que obra(s) integra(m) o elenco de leituras metódicas e obrigató-
rias em sala de aula? Que sermões ou cartas de Vieira se propõem
para leitura(s) extensiva(s) construindo e alargando enciclopédias
culturais e pessoais dos alunos? Que autores se estudam a par com
Vieira – ilustrando as mesmas categorias genológicas e/ou em repre-
sentação de um mesmo enquadramento histórico, periodológico e/ou
epocal? Que destaque lhe é atribuído no conjunto de autores e obras
que promoverão a educação literária dos nossos jovens na escola
do séc. xxi ?... Eis algumas das questões que requerem resposta(s).

Leitura(s) de Vieira em contexto escolar. Hoje como ontem?


O Programa Oficial de Português do Curso Complementar para
o Ensino Liceal, aprovado pelo dec.-lei n.º 39807/54, de 7 de se-
tembro, prevê um “estudo convenientemente graduado da história
da literatura portuguesa, baseado na leitura e análise literária dos
textos” (979) e, definindo os objetivos da disciplina, insiste na ideia
de uma “exposição metódica da história da literatura portuguesa,
à luz de numerosos documentos que permitem acompanhar a
evolução dos sentimentos, das ideias e da arte, bem como da lin-
guagem, numa síntese da vida mental da Nação” (980). Com efeito,
o critério primeiro que preside à seriação e à arrumação de autores
e obras/textos neste programa é o das sucessivas épocas e/ou dis-
tintos períodos da nossa história literária em que os mesmos se
inserem numa reprodução muito próxima dos índices das Histórias
da Literatura então existentes. Obedecendo a estes pressupostos,
Vieira é estudado no 7.º ano do ensino liceal, integrando o elenco
de autores representativos de um segundo período da Época Clássica
(séc. xvii) nas Letras nacionais. Pretende-se que as suas obras pro-
piciem “leituras demonstrativas na poesia lírica, mística e satírica e

473
na prosa” da “deformação do ideal clássico no sentido do cultismo
e do concetismo: o barroco e a sua interpretação; suas causas mais
gerais, seus aspetos peculiares” na produção (literária) seiscentista,
assim como do “valor estético” e dos “resultados positivos do estilo
afetado” (980). Neste elenco de autores e visando a consecução de
um tal desiderato, António Vieira surge em representação da arte
no púlpito, assim como do apogeu da prosa clássica e suas deter-
minantes. No domínio específico da epistolografia, ler-se-ão textos
seus e de D. Francisco Manuel de Melo; para ilustração da prosa
seiscentista, far-se-ão leituras ilustrativas do P. e Manuel Bernardes
e de Fr. Luís de Sousa. Figuram ainda neste elenco Francisco
Rodrigues Lobo, em representação da poesia do sentimento e
das obras de didática social (associando-se-lhe, neste último
caso, também D. Francisco Manuel de Melo), e os historiadores
da Monarquia Lusitana. Prevê-se igualmente o estudo do Auto do
Fidalgo Aprendiz como demonstração da “persistência do elemento
tradicional no teatro” e a referência ao “trabalho associado” neste
período de que constituem exemplo as “academias” (987).
O relevo e o reconhecimento concedidos à obra do autor de que
nos ocupamos testemunham-se nas afirmações seguintes, constantes
em observações anexas ao elenco de conteúdos programáticos:

No século xvii merecerá atenção especial a figura do Padre


António Vieira, de quem se estudará o conceito que fazia dos
objetivos da oratória, relacionando-os com o seu temperamento
de homem de ação; como procurou realizá-los na esfera da sua
atividade política e missionária; e como revelou sentimentos de
justiça e humanidade. Em relação com a arte literária estudaremos
o seu processo artístico, o modo como reagiu às tendências es-
téticas da época, as particularidades do seu estilo, a qualidade
da linguagem. Extratos de sermões, talvez algum sermão inteiro,
e cartas escolhidas serão objeto de leitura na aula e estudo em

474
casa. […] Acrescentem-se alguns traços históricos, porque a obra
de Vieira anda como poucas estreitamente ligada à vida do autor
e ao seu tempo (987).

Cremos que o até aqui exposto não deixará grandes dúvidas


quanto ao facto de os textos não se estudarem (privilegiadamente)
por si mas antes subordinados à ilustração de uma fisionomia, parti-
cularidades ou especificidades de estilo da época em que se inserem
e/ou, em alguns casos, da biografia dos seus autores. Igualmente
se poderá inferir que (em conformidade com a ideologia do Estado
Novo) a literatura era então valorizada na disciplina de Português
enquanto património (cultural e identitário) que concorria – em
articulação com outras áreas dos curricula escolares – para forta-
lecer um sentimento nacional. É pois num corpus de leituras, que
se apresenta enquanto legado a transmitir às sucessivas gerações
de estudantes, que têm representatividade os sermões e as cartas
de António Vieira nos anos 50 e 60 do século passado. A sua lei-
tura – assim como a dos restantes autores e obras – terá sido feita
em conformidade com um paradigma historicista que determina
a constituição de um cânone escolar que integra (numa linha
ininterrupta) textos e autores desde os tempos mais recuados da
nossa história literária até às obras e nomes mais significativos da
literatura finissecular oitocentista – não indo, porém, além destes.
Privilegiavam-se então os clássicos numa atitude que quase pode-
remos considerar de desconfiança em relação aos que o tempo
ainda não havia consagrado como modelares…
Os programas de décadas imediatamente subsequentes (70 e
80), concebidos em momento de emergência e/ou afirmação de
teorias formalistas e estruturalistas, privilegiam a materialidade
dos textos e impõem novos modelos de análise e estudo dos
mesmos, determinando a (re)configuração do cânone literário
escolar. O Programa de Português do Curso Complementar para

475
o Ensino Liceal (1.º e 2.º anos), implementado no ano letivo de
1974/1975 – e imediatamente subsequente ao documento a que
fiz referência, assenta, por exemplo, numa “assinalável redução
das rubricas relativas a obras e autores menos representativos do
ponto de vista estético-literário” e introduz, em contrapartida, em
rubrica intitulada “Perspetivas literárias contemporâneas”, o estudo
de obras “consideradas significativas da Literatura Portuguesa do
século xx ” (19). Privilegia uma perspetiva sincrónica no estudo
das obras e elege a análise de texto enquanto “atividade nuclear”
(20) da disciplina. Seguindo esta linha de pensamento, o elenco de
autores e textos previstos para lecionação é agora precedido – o
que constitui uma novidade em relação ao programa de 1954 – de
uma rubrica intitulada “Introdução ao estudo do texto literário”, in-
cluindo conceitos nas áreas da linguística e da teorização literárias, 1
pretendendo facultar ao aluno “um mínimo de bagagem suscetível
de lhe facilitar o acesso à obra literária” (19).
Esta sobreposição de um paradigma imanentista relativamente a
um paradigma historicista anterior não afeta a presença de António
Vieira no cânone, ainda que restrinja a representatividade da sua
obra nos curricula. Mais prescritivo que o documento homólogo
anterior, o programa implementado em 1974/1975 determina o
estudo de dois textos de Vieira – o “Sermão de Santo António” aos
peixes e o “Sermão da Sexagésima” –, cuja leitura e análise em
sala de aula deverá ilustrar aos alunos “o barroquismo de estrutura
conceptual e formal” dos seus sermões (23). A partir desta data, a
vertente epistolográfica da sua obra não figurará mais no elenco de
leituras escolares. Em representação da mesma época, estudar-se-ão
também poemas da Fénix Renascida, textos ilustrativos do “equilíbrio
e simplicidade clássicos” na oratória do P. e Manuel Bernardes e o

1 Lembramos, a este propósito, que a primeira edição da obra Teoria da Literatura


de Aguiar e Silva vem a lume no ano de 1967.

476
Auto do Fidalgo Aprendiz de D. Manuel de Melo. Em programas ho-
mologados em finais da década de 70 e inícios da seguinte, quer no
ensino diurno quer no ensino noturno, é de assinalar a exclusão de
Vieira do elenco de autores a lecionar em cursos não vocacionados
para a área de Letras. Assim, se nos reportarmos aos Programas
de Português (Índole Literária e Científica) do Curso Complementar
Nocturno, implementados a partir do ano letivo de 1976/1977, é
possível verificar que apenas o programa de “índole literária” prevê
o estudo de excertos de um sermão de Vieira – cabendo ao pro-
fessor a escolha entre o “Sermão da Sexagésima” ou o “Sermão de
Santo António” aos peixes – com o objetivo de dar a conhecer aos
alunos o “barroco na prosa” e, mais especificamente, a “oratória
seiscentista” (3), enquanto o programa de “índole científica” deixa
simplesmente de contemplar Vieira – ou qualquer outro autor, obra
ou texto do barroco – no elenco dos conteúdos a lecionar. Também
no ensino regular diurno, apenas o Programa de Português do Curso
Complementar da Área de Estudos Humanísticos prevê o estudo do
“Padre António Vieira – pregador barroco”, mediante a “análise e
interpretação” da “estrutura” e do “método de argumentação” do
“Sermão de Santo António” aos peixes, assim como do “Sermão da
Sexagésima” enquanto “texto de autorreflexão” ou texto “teórico da
pregação barroca” (9). Na mesma rubrica figuram ainda “poemas
escolhidos” da Fénix Renascida e o Auto do Fidalgo Aprendiz em
representação do “teatro barroco” (9).
Notamos, porém, que as primeiras reservas relativamente a um
modelo de análise textual (exclusiva ou privilegiadamente) es-
truturalista têm lugar já nos inícios dos anos 80. É neste sentido
que apontam as indicações metodológicas constantes no início
do Programas de Português do Curso Complementar das Áreas de
Estudos Científico-Naturais, Estudos Científico-Tecnológicos, Estudos
Económico-Sociais e Estudos das Artes Visuais, implementados a
partir de 1979/1980 – decorrentes de uma reestruturação curricular

477
no ensino secundário (que passa a contemplar cinco áreas de
estudos nos 10.º e 11.º anos de escolaridade 2) – e que passamos
a transcrever pela importância que lhes reconhecemos enquanto
exemplo inequívoco de uma nova metodologia da leitura literária
em contexto escolar:

Considerando-se legítimo que o discurso crítico de um texto


literário se aproveite, em certos casos, das aquisições teóricas e
dos métodos das ciências naturais, não se pode deixar de ter pre-
sente que também estas ciências não concebem a matéria como
um conjunto de […] corpos indivisíveis, nos quais nada ocorreria,
mas, muito pelo contrário, como corpos de energia, nos quais
forças e tensões se fazem e desfazem. Significa […] isto que são
tanto de ultrapassar critérios factualistas ou historicistas, como
outros quaisquer, se de natureza imanentista ou de mecani-
cismo funcionalista. […] a abordagem textual não poderá ficar
na atenção para o modo como uma obra esteja construída ou
composta. Haverá que ultrapassar tal fase e levar o discente para
uma leitura valorativa ou crítica, levando-o a descobrir não só a
estrutura das obras, mas principalmente a sua intencionalidade.
Deve o aluno estar lembrado de que o estilo de um autor ou
de uma obra não se apresenta divorciado de uma visão sua do
mundo e da vida (6).

O início da década de 90 marcaria um ponto de viragem signifi-


cativo no modo de perspetivar a disciplina (e a aula) de Português.
Esta(s) abre(m)-se à pluralidade dos textos (literários, paraliterários
e não literários) e à diversidade das literaturas (nacionais, de língua

2 Estas áreas recebem a designação de áreas A, B, C, D e E – reportando-se, res-


petivamente, às áreas de Estudos Científico-Naturais, Estudos Científico-Tecnológicos,
Estudos Económico-Sociais, Estudos Humanísticos e Estudos das Artes Visuais.

478
portuguesa e/ou estrangeiras). Com efeito, no contexto da Reforma
Curricular de 1989, entram em vigor os Programas de Português A
e B dos Cursos Gerais e Tecnológicos do Ensino Secundário, 3 que
elegem a classificação genológica dos textos como critério primeiro
de arrumação dos conteúdos e estabelecem temáticas organizadoras
das leituras em cada ano de escolaridade. António Vieira integra,
em ambos os documentos, o elenco de leituras a realizar no 11.º ano,
ilustrando uma tipologia textual específica: a do texto argumentativo.
O Programa de Português A – tendo como destinatários os alunos que
escolhem uma formação na área de Humanidades – prevê o estudo
do “Sermão de Santo António” aos peixes e excertos do “Sermão
da Sexagésima”, 4 enquanto o Programa de Português B – tendo
como destinatários os alunos das restantes áreas de estudos –
determina a lecionação de apenas excertos do “Sermão de Santo
António” aos peixes. 5
No entanto, não se faria esperar muito tempo o reconhecimento
de uma excessiva abertura e amplitude dos corpora textuais na
disciplina. Orientações e ajustamentos efetuados nos programas,
respetivamente em julho de 1996 e janeiro de 1997 – num momento
de clara revitalização da história literária em contexto escolar, que
não significará “uma reabilitação do ensino tradicional e excessiva-

3 Ambos os documentos são elaborados no contexto dos trabalhos de reforma


do sistema de ensino em Portugal coordenados por Fraústo da Silva. Sendo apro-
vados pelo desp. n.º 124/ME/91, de 31 de julho, entram em vigor a partir do ano
letivo de 1991-1992.
4 Em representação do mesmo período (séc. xvii ), o Programa de Português
A integra o estudo dos poetas barrocos Francisco de Vasconcelos, Jerónimo Baía,
Francisco Manuel de Melo, Gregório de Matos e Rodrigues Lobo e, para ilustração
do discurso doutrinário, D. Francisco Manuel de Melo, com excertos da Carta de
Guia de Casados.
5 Em representação do mesmo período (séc. xvii ), o Programa de Português B
prevê, no 12.º ano, a lecionação de poemas da Fénix Renascida e excertos da Carta
de Guia de Casados, em representação da literatura seiscentista.

479
mente dirigido” 6 daquela –, 7 determinariam que a obra de António
Vieira (e restantes autores) se apresentasse agora num elenco de
conteúdos essenciais privilegiando critérios de ordenação cronológica.
Na Introdução das Orientações de Gestão dos Programas de Português
A e B dos Cursos Gerais e Tecnológicos do Ensino Secundário
supracitada, explicitamente se considera esta ordenação (ou o
ensino sistemático e diacrónico da história literária que pres-
supõe) necessária para o aluno “compreender que o pensamento
humano se foi modificando, evoluindo”, e “que o passado ajuda a
compreender o presente” (1) e, portanto, pedagogicamente mais
eficaz que o critério da organização temática – prevalecente em 91 –
que, como se lê no Programa de Português A homologado em ja-
neiro de 1997, “se fundará sempre numa excessiva e incontrolável
arbitrariedade” (29). A opção por um novo corpus de leituras lite-
rárias escolares – reabilitando virtualidades da história literária no

6 Na explicitação dos critérios de seleção das leituras metódicas e obrigatórias


da disciplina de Português A, afirma-se: “A educação literária deve começar pela
leitura. O contacto com a história literária de uma comunidade organiza e melhora
os pontos de referência necessários a uma leitura cada vez mais profunda e cons-
ciente. O conjunto de textos e autores selecionados como corpus essencial obedece
a esse critério. Assenta numa organização coerente e cronológica que permitirá dar
ao aluno iniciado nos estudos literários uma visão homogénea e arrumada da sua
história literária”. E acrescenta-se: “O ensino sistemático e diacrónico da história
literária, numa perspetiva aberta e criativa que não se confunde com uma reabilitação
do ensino tradicional e excessivamente dirigido da história da literatura, permitirá
distinguir, nas suas linhas-mestras, épocas, períodos e correntes do que constitui o
seu património literário e cultural; permitirá ainda situar corretamente os autores e
obras lidos com fundamento estético-literário; ideológico e histórico-cultural, que
nenhum outro critério (por exemplo, o da organização temática, que se fundará
sempre numa excessiva e incontrolável arbitrariedade) poderá realizar” (29).
7 A este respeito são particularmente elucidativas declarações constantes num
parágrafo que finaliza o elenco de textos indicados para leitura metódica e obriga-
tória: “Todos os autores/obras/textos deverão ser integrados no respetivo contexto
histórico, social, cultural. Para que tal integração se faça, os professores e os alunos
deverão mobilizar textos não-literários, de diferentes tipologias textuais (textos de
História, de história da cultura, de crítica literária, biografias, etc.) que façam inte-
ragir com os textos literários” (45).

480
patamar de ensino a que nos reportamos – é igualmente justificada
no Programa de Português B:

O programa prevê que, ao sair do Ensino Secundário, o aluno


tenha feito a sua educação literária básica [...]. Assim, pretende-se
que ele adquira uma visão sintética e informada da Literatura
Portuguesa que lhe permita distinguir e caracterizar, no essencial,
épocas e períodos e nestes situar os autores e obras lidos. De tal
constatação decorre a necessidade de estabelecer um cânone
organizado e bem ordenado de textos a ler, metodicamente, sem
excessiva preocupação com a aquisição de modelos de explicação
teóricos […]. As leituras que se propõem como obrigatórias são
os marcos significativos da nossa história literária, aquelas sem as
quais nenhum cidadão deve terminar os seus estudos literários.
Embora muito sumária, a visão diacrónica que o aluno terá, no
final do 12.º ano, permitir-lhe-á, enquanto leitor autónomo, com-
pletar, durante toda a vida, a sua educação literária (93).

A redução do elenco de leituras literárias – a que uma identifi-


cação de conteúdos essenciais (de que acima falámos) obriga – não
afeta (mais uma vez) a presença de António Vieira no cânone.
A única alteração introduzida com a implementação dos Programas
de Português A e B dos Cursos Gerais e Tecnológicos do Ensino
Secundário com os ajustamentos de 97 respeita ao facto de o “Sermão
da Sexagésima” passar a leitura extensiva – ao lado do “Sermão dos
Bons Anos” – na disciplina de Português A (46). 8 Nesta década de
90, o estudo do autor é precedido da lecionação de alguns poemas

8 Intentando propiciar-lhes ainda um alargamento da sua enciclopédia literária


e cultural do barroco figuram no mesmo elenco de leituras “Poemas de Francisco
Rodrigues Lobo”, “Poemas de Francisco de Vasconcelos”, excertos da “Carta de Guia
de Casados de D. Francisco Manuel de Melo”, “Poemas de Jerónimo Baía” e “Poemas
de Gregório de Matos” (46).

481
do barroco. Se excetuarmos – apenas nos documentos vindos a
lume em 91 – o estudo de excertos da Carta de Guia de Casados
de D. Francisco Manuel de Melo – Vieira é agora o único represen-
tante da prosa seiscentista nos programas escolares.
Visivelmente conformados por um novo paradigma comuni-
cacional (e linguístico), pondo a tónica no desenvolvimento de
destrezas comunicativas e aptidões do aluno para a compreensão, a
expressão e a produção de enunciados (orais e escritos) no âmbito
de diferentes tipos de texto(s), seriam os documentos vindos a lume
no contexto da Revisão Curricular de 2001 que ditariam novas (e
mais significativas) mudanças em contexto escolar. 9 Pela primeira
vez no nosso sistema educativo o ensino da literatura surge – num
mesmo ano e num mesmo ciclo de estudos – em disciplina autó-
noma relativamente ao ensino da língua. É significativo o elenco
de autores que são excluídos do cânone com a implementação do
Programa de Língua Portuguesa – disciplina da formação geral de
todos os Cursos Gerais e Tecnológicos do Ensino Secundário –,
que regula, ainda hoje, as práticas letivas nos 11.º e 12.º anos de
escolaridade. 10 Neste documento, as leituras literárias passariam a

9 Desenha-se, a partir desta data, um novo quadro de áreas de estudos no en-


sino secundário, na sequência do disposto no dec.-lei n.º 74/2004, de 26 de março.
Lembramos, porém, que as matrizes dos Cursos Científico-Humanísticos então criados
passariam a ter uma redação distinta com a publicação do dec.-lei n.º 272/2007, de
26 de julho. De entre os ajustamentos efetuados nos planos de estudos do patamar
de escolaridade em que fizemos incidir a nossa investigação, importa-nos destacar
a criação do “Curso Científico-Humanístico de Línguas e Humanidades resultante da
junção dos [anteriores] Cursos de Ciências Sociais e Humanas e de Línguas e Literaturas,
contemplando a oferta de disciplinas da componente de formação específica dos dois
cursos”. Assim se intentou permitir “uma escolha menos condicionada aos alunos
que pretendam prosseguir estudos na área das Línguas e Literaturas” (4785).
10 Poetas do período trovadoresco, Fernão Lopes, Gil Vicente, Sá de Miranda,
Jerónimo Baía, Gregório de Matos, Francisco de Vasconcelos, António Barbosa Bacelar,
Bocage, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett (enquanto poeta e romancista),
Alexandre Herculano, Antero de Quental, Teixeira de Pascoaes, Vergílio Ferreira e
Agustina Bessa-Luís são alguns dos autores e nomes que – tendo figurado em docu-
mentos homólogos anteriores e configurado um capital cultural comum as sucessivas
gerações de jovens portugueses – deixam de ter lugar no elenco de leituras literárias

482
figurar a par com as restantes leituras a realizar em sala de aula
para uma exemplificação mais cabal de distintas tipologias textuais
em estudo – estas, sim, destacadas enquanto critério primeiro de
seriação e organização de conteúdos no programa de uma disciplina
que coloca a ênfase no propósito de fazer do aluno “um bom utili-
zador da língua, habilitando-o a ser um comunicador com sucesso e
um conhecedor do seu modo de funcionamento”, estruturando-se
e construindo “a sua identidade através da linguagem para poder
agir com e sobre os outros, interagindo” (2). 11 Excertos do “Sermão
de Santo António” aos peixes são agora estudados como leitura li-
terária ilustrativa de uma tipologia textual específica – a dos textos
argumentativos e/ou expositivos/argumentativos –, sendo analisados
com os alunos após a lecionação do “discurso político” (41). No con-
texto da mesma revisão curricular, é homologado o Programa de
Literatura Portuguesa do Curso Geral de Línguas e Literaturas – uma
disciplina de formação específica e meramente de carácter opcional.
Os alunos inscritos no curso a que nos reportamos – escolhendo
a frequência da disciplina – poderão ampliar o seu conhecimento
da obra de Vieira mediante o estudo de excertos do “Sermão da
Sexagésima”. Mesmo num documento exclusivamente centrado
no ensino da literatura, Vieira é o único autor representativo da
prosa seiscentista.
Seria o mais recente Programa de Português do Ensino Secundário,
elaborado na sequência do disposto no desp. n.º 5306/2012, de 18 de
abril, homologado em janeiro de 2014, a determinar uma (re)valorização
do papel da literatura na educação dos nossos adolescentes e jovens.

obrigatórias previsto no Programa de Língua Portuguesa que passaria a regular


a(s) prática(s) letiva(s) em contexto escolar do ensino secundário a partir de 2002.
11 Elegendo “a reflexão e o uso da língua materna” como objeto nuclear de
estudo, as aprendizagens a realizar e as competências a desenvolver centram-se
nas “realizações linguísticas” e nas “estratégias de comunicação” (2-3). Com este
propósito, far-se-á “a análise e o estudo de textos literários, assim como de outros
de diversa natureza com valor educativo e formativo” (3).

483
Logo na Introdução se afirma ser este um documento assente “num
paradigma de complexidade crescente”, que se associa “à progressão
por géneros nos domínios da Oralidade, da Leitura e da Escrita” e
valoriza o texto literário enquanto “texto complexo por excelência,
onde convergem todas as hipóteses de realização da língua” (4).12
Enfatizando-se “a forma diversificada como nele se oferece a comple-
xidade textual”, entende-se a literatura como um domínio decisivo na
“compreensão do texto complexo e na aquisição da linguagem concep-
tual, constituindo, além disso, um repositório essencial da memória de
uma comunidade, um inestimável património que deve ser conhecido
e estudado” (7). Ampliam-se assim os corpora de leituras literárias
a trabalhar com os alunos em sala de aula. (Re)assumem lugar no
cânone – e/ou (re)adquirem maior representatividade nos programas –
autores e obras que dos mesmos haviam sido excluídos. Sendo este
um documento organizado em cinco domínios – Oralidade, Leitura,
Escrita, Educação Literária e Gramática –, 13 António Vieira in-
tegra o elenco de conteúdos programáticos da Educação Literária
previsto para lecionação no 11.º ano de escolaridade. Continua a
privilegiar-se – para um primeiro contacto dos nossos jovens com
a obra de Vieira – o “Sermão de Santo António. Pregado na cidade
de S. Luís do Maranhão, ano de 1654” (9) mediante a leitura in-

12 “O texto complexo é entendido […] como um dos pilares sobre que assenta o
desenvolvimento de uma literacia mais compreensiva e inclusiva” (5). Optando por
esta centralidade concedida ao “texto complexo”, este programa teve em linha de
conta todo um “conjunto de documentos que, no quadro da OCDE, se organizam em
torno das orientações de referência para a educação do século xxi e se articulam com
Education Today: The OCDE Perspetive, publicação trienal sobre políticas educativas”.
Bauerlein, por exemplo, opina que todos os “textos complexos” são caracterizados
por um “sentido denso, uma estrutura elaborada, um vocabulário sofisticado e in-
tenções autorais subtis” (6).
13 Lê-se na Introdução: “A não coincidência dos domínios da Leitura e da
Educação Literária […] consagra […] dois pressupostos essenciais: o direito a um
capital cultural comum, que é função do sistema educativo, e o reconhecimento
da diversidade dos usos da língua, numa ótica de valorização dos textos, predomi-
nantemente não literários nos domínios da Oralidade, da Leitura e da Escrita” (5).

484
tegral dos capítulos iv e v e a análise de excertos dos restantes
capítulos. Seja no domínio da prosa seja no de qualquer outra
categoria genológica, não figuram no mesmo elenco de leituras
literárias outros autores ou obras da literatura do séc. xvii – como
já vinha sucedendo nos últimos documentos analisados.

Considerações finais
O exposto permite considerar António Vieira uma presença as-
sídua no cânone escolar. Com efeito, as sucessivas reformas, revisões
curriculares e respetivos ajustamentos que tiveram lugar no período
temporal em que fizemos incidir a nossa investigação não afetaram
significativamente a sua inclusão no elenco de leituras literárias
escolares do ensino secundário. Cremos que teremos de ler esta
permanência inquestionada do autor nos corpora dos documentos
analisados – desde 1954 até à atualidade – como um testemunho
inequívoco do seu reconhecido mérito literário. Vieira persistiu
no cânone quando outros principiaram a ser excluídos; resistiu
quando muitos outros deixaram de figurar no elenco de leituras
literárias. Uma tal constatação ganha ainda maior relevo quando
nos reportamos a autores, obras ou géneros do séc. xvii . De igual
modo, também a representatividade da sua obra não foi (mas só apa-
rentemente…) afetada por sucessivas reduções do corpus de leituras
literárias – seja em programas que excluíram obras de épocas mais
recuadas para darem lugar a perspetivas literárias contemporâneas
seja em documentos que diminuíram aquelas para dar lugar a uma
mais ampla diversidade de textos (literários, paraliterários e não li-
terários). De facto – se excetuarmos o programa de 54, em que essa
representatividade era mais ampla –, a partir de 1974, o contacto
dos nossos jovens com a obra do autor é feito na escola a partir da
leitura do “Sermão de Santo António” aos peixes e/ou, menos recor-
rentemente, de excertos do “Sermão da Sexagésima”. No entanto, só
uma leitura muito superficial dos documentos analisados permitirá

485
pensar assim. As leituras em contexto escolar não se alhearão dos
diferenciados paradigmas que enformam os programas – constituindo
estes sempre o principal instrumento regulador das práticas letivas.
Com efeito, um mesmo texto – neste caso, o sermão de Vieira – exigirá
abordagens distintas consoante figure no elenco de conteúdos de um
programa com uma matriz historicista, de um programa concebido
à luz de teorias formalistas e estruturalistas e/ou de um programa
conformado por um paradigma comunicacional… Temos a convicção,
por exemplo, de que no próximo ano letivo – estando já em vigor
o programa homologado em 2014 também no 11.º ano – os alunos
beneficiarão para a compreensão do “Sermão de Santo António” aos
peixes, em termos de contextualização histórico-cultural, do facto de
no 10.º ano lhes haver sido proporcionada uma panorâmica clara
de sucessivos momentos, autores e obras que constituem referências
incontornáveis nas Letras nacionais. Uma tal panorâmica (ou o que
poderemos designar de uma enciclopédia cultural e literária) não
foi, na nossa perspetiva, facultada do mesmo modo aos alunos que
os precederam – visto que a lecionação dos conteúdos na disciplina
de Português se organiza ainda, no ano letivo em curso, em torno
de sequências de aprendizagem privilegiando tipologias discursivas
que a leitura literária – assim como outros textos – deverá ilustrar.
Será portanto necessário concluir que não se lê hoje Vieira como
se leu ontem; com igual legitimidade se poderá deduzir que não se
lê hoje como se lerá (provavelmente) amanhã. O que nos parece
certo é que António Vieira sempre figurará no elenco de autores
que Italo Calvino – em Porquê Ler os Clássicos? 14 – considera que

14 Diz-nos este estudioso, quanto a nós, de forma assaz lúcida e pertinente: “[…]
não se leem os clássicos por dever ou por respeito, mas só por amor. Salvo na escola:
a escola deve dar-nos a conhecer bem ou mal um certo número de clássicos entre
os quais poderemos depois reconhecer os ‘nossos’ clássicos. A escola destina-se a
dar-nos instrumentos para exercermos uma opção: mas as opções que contam são
as que se verificam fora e depois de todas as escolas” (Calvino, 1994: 10).

486
se deverão dar a conhecer na escola (ainda que correndo o risco
de os mesmos não serem então plenamente fruídos ou entendidos),
uma vez que, assim procedendo, se ampliam as probabilidades
de, anos mais tarde, os alunos – desejavelmente leitores assíduos
e autónomos e já com a maturidade (cognitiva e afetiva) da idade
adulta – se sentirem genuinamente impelidos a (re)visitar Vieira…
no séc. xxi e em tempos vindouros.

Bibliografia

Buescu, H. et al. (2014). Programa de Português do Ensino Secundário. Lisboa:


Ministério da Educação e Ciência.
Calvino, I. (1994). Porquê Ler os Clássicos?. Lisboa: Teorema.
Coelho, M. C. et al. (2002). Programa de Língua Portuguesa dos Cursos Gerais e
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Coelho, M. C., Serôdio, M. C. & Campos, M. J. (2001). Programa de Literatura
Portuguesa do Curso Geral de Línguas e Literaturas. Lisboa: Ministério da
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Decreto-Lei n.º 74/2004 de 26 de março. Diário da República n.º 73 – I Série – A.
Ministério da Educação.
Decreto-Lei n.º 272/2007 de 26 de julho. Diário da República n.º 143 – I Série.
Ministério da Educação.
Decreto-Lei n.º 39807/54 de 7 de setembro. Diário da República n.º 198/54 – I Série.
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Divisão do Ensino Secundário (1996). Orientações de Gestão dos Programas de
Português A e B dos Cursos Gerais e Tecnológicos do Ensino Secundário. Lisboa:
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Divisão do Ensino Secundário (1997). Programas de Português A e B dos Cursos
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Despacho n.º 124/ME/91 de 31 de julho. Diário da República n.º 188/91 – II Série.
Ministério da Educação.
Direção-Geral do Ensino Básico e Secundário (1991). Programas de Português A
e B dos Cursos Gerais e Tecnológicos do Ensino Secundário. Lisboa: Ministério
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Complementar para o Ensino Liceal. Lisboa: Ministério da Educação Nacional.
Direção-Geral do Ensino Secundário (1977). Programas de Português (Índole Literária
e Índole Científica) do Curso Complementar Nocturno. Lisboa: Ministério da
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487
Direção-Geral do Ensino Secundário (1979). Programa de Português do Curso
Complementar da Área de Estudos Humanísticos. Lisboa: Ministério da Educação
e Investigação Científica.
Direção-Geral do Ensino Secundário (1979). Programa de Português do Curso
Complementar das Áreas de Estudos Científico-Naturais, Estudos Científico-
-Tecnológicos, Estudos Económico-Sociais e Estudos das Artes Visuais. Lisboa:
Ministério da Educação e Investigação Científica.
Secretaria de Estado da Orientação Pedagógica (1974). Programa de Português do
Curso Complementar para o Ensino Liceal. Lisboa: Ministério da Educação e
Cultura.
Secretaria de Estado da Orientação Pedagógica (1976). Programa de Português do
Curso Complementar para o Ensino Liceal. Lisboa: Ministério da Educação e
Investigação Científica.

488
POS F ÁCIO
P o u r q u o i l ’ u to p i e ?

Pierre Antoine Fabre


École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris

J’avais donné pour titre primitif à cette intervention: “António


Vieira en Europe: perceptions d’un continent”. Perspective ambi-
tieuse, que je ne pourrai pas développer ici. Mais je voudrais dire
quelque chose des motifs de cette proposition. Le premier motif, et
le dernier sans doute, est documentaire: l’immense massif d’écrits
de Vieira attaché à ses voyages européens (lettres, sermons, traités,
notes de travail) désormais largement disponible dans l’édition mo-
numentale de ses œuvres complètes, coordonnée par José Eduardo
Franco et Pedro Calafate, n’a pas encore donné lieu à une traversée
qui parviendrait à tracer un trait continu – ou discontinu – entre les
séjours de Vieira au Portugal, en France, en Espagne, en Italie et
dans d’autres pays encore pendant sa très longue vie. Ecrire cette
histoire, c’est écrire une tranche d’Europe du xvii e siècle, comme
on ne peut le faire qu’avec un petit nombre de grands européens
dont les traces sont suffisantes pour articuler l’ensemble de ces
espaces, et pour les articuler horizontalement, sans que l’une des
stations du voyage se donne comme la station centrale. On pour-
rait de ce point de vue rapprocher ce voyage de ceux, au siècle
précédent, d’Erasme ou de Jerónimo Nadal, bien que pour celui-ci,
le pôle romain s’impose, tout au moins dans la respiration d’une

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1815-9_22
correspondance largement adressée aux généraux de la Compagnie
de Jésus.
Mais ce projet avait une autre instigation: celle d’inscrire
aujourd’hui l’œuvre de Vieira dans l’historiographie des missions
d’évangélisation, non pas seulement pour son activité au Brésil bien
connue, et récemment profondément retravaillée du point de vue
des conflits internes à la Compagnie de Jésus comme puissance
religieuse coloniale; 1 mais pour son activité en Europe.
En effet, le paysage historiographique a changé, il a même été
complètement transformé depuis une vingtaine d’années: le para-
digme centre/périphérie sur lequel reposaient les recherches les plus
avancées, celles qui promouvaient les périphéries contre le centre
(européen), a explosé en plusieurs étapes: d’abord par la découverte
de plusieurs centres, par rapport auxquels s’élaboraient les straté-
gies de l’évangélisation chrétienne à l’échelle planétaire (comme par
exemple Rome, Lisbonne, Goa, Alexandrie, qui doivent être mobilisés
pour entendre quelque chose à l’expédition jésuite d’Ethiopie au
milieu du xvie siècle2), une pluralité de centres qui concernera aussi
la production du récit de l’évangélisation (comme c’est le cas pour
l’aventure éthiopienne); ensuite par une circulation entre ces centres,
comme par exemple entre Mexico, Lima, Santiago dans la postérité du
Concile de Trente et avec le développement des conciles nationaux,
des juridictions inquisitoriales, etc.; enfin par une circulation entre les
anciennes “périphéries” et le centre européen, c’est-à-dire par les retours.
L’importance du cas Vieira est aussi là. Elle est là jusqu’au vertige:
qui est António Vieira? Un voyageur d’Europe vers l’extrême-occident?

1 On citera ici en particulier les recherches de Carlos Zerón sur l’affrontement


de Vieira et des paulistas et de Camila Dias sur l’espace amazonien. Voir pour ces
travaux et d’autres indications le volume coordonné par I. Mendez, C. Zerón et
moi-même (2016). António Vieira: Nouvelles Recherches. Paris: Honoré Champion.
2 Rappelons ici le remarquable ouvrage d’H. Pennec (2003). Des Jésuites au
Royaume du Prêtre Jean. Paris: Fondation Gulbenkian.

490
Ou un voyageur de l’extrême-occident vers l’Europe? Rappelons
brièvement les lieux, mouvements et dates:
1614: premier départ pour le Brésil
1641: retour à Lisbonne
1647: départ pour la France, l’Angleterre, la Hollande, Rome
(Rome où Manoel de Oliveira, par son film Parole et Utopie, le réunit
pour l’éternité à son vieil ami João Francisco Marques, sous l’habit
d’un prélat romain, dans l’église Saint-Antoine-des-Portugais – cette
brève intervention étant aussi un hommage à ces deux hommes de
haute culture, à ces deux lecteurs d’Antonio Vieira dans leur siècle
et leur temps)
1653: retour au Brésil
1654: retour à Lisbonne
1655: retour au Brésil
1661: retour au Portugal, à Lisbonne puis à Porto et à Coimbra
1667: retour à Rome
1674: retour à Lisbonne
1681: dernier retour au Brésil
Comme on le voit, plusieurs centres européens (et plusieurs
centres romains même), plusieurs centres brésiliens aussi, qu’il
faudrait cartographier dans le détail. Aussi peut-on dire qu’Antonio
Vieira accomplit dans sa vie le changement de paradigme de
l’historiographie du dernier xx e siècle. Mais il va au-delà, car il est
tout-à-la fois l’homme du départ et l’homme du retour, il est l’un
et l’autre voyages.
*
Je voudrais vous proposer un autre voyage encore, qui nous con-
duira de l’île d’Utopia au film de Manoel de Oliveira, Parole et Utopie.
Pourquoi un passage par l’utopie? J’anticiperai ici sur la dernière
étape de ce voyage en rappelant une image, qui aura certainement
frappé comme moi ceux qui ont vu le film d’Oliveira: l’image de la
mer, l’image des flots bleus, roulant sous le soleil, impénétrables,

491
proprement insensés. Un entre-deux mondes, un “plan de coupe”.
De quelle rive vers quelle rive? Pourquoi pas même d’une rive à
la même rive, par ce détour? Et c’est ici, au milieu de ces flots,
que surgit l’île d’Utopia. Car, on s’en souvient, après les nombreux
voyages que Raphaël, le héros de Thomas More, a effectué de par
le monde, et tout particulièrement du Portugal vers l’Amérique, le
livre s’ouvre en 1516 sur le premier retour de Raphaël d’un pays
d’où nul n’était jamais revenu avant lui. Mais le marin revient-il
bien de cette île? Louis Marin a attiré l’attention du lecteur, dans
son grand livre Utopiques: Jeux d’Espaces, 3 sur le fait que la toux
bruyante d’un voisin brouille la conversation de Raphaël et du nar-
rateur lorsque le premier annonce au second la localisation de l’île
mystérieuse d’Utopia. Cette toux est un événement dans l’histoire
du monde: elle ouvre la possibilité que l’île d’Utopia ne soit pas
quelque île lointaine, mais l’Angleterre du premier xvie siècle, dont
le livre de More serait la description avec un regard étranger, le
regard de celui qui croit avoir accosté sur une île lointaine et voit
pour la première fois son propre pays.
Or cette définition de l’utopie comme regard critique (issu d’une
crise, d’une rupture) est essentielle pour nous ici, à Coimbra, en
2016, pour deux raisons.
D’une part, les réductions jésuites américaines ont souvent été
considérées comme des utopies sociales, et se sont progressivement
inscrites comme telles dans la pensée politique européenne:4 non pas
parce qu’elles auraient construit un autre monde, mais parce que leur
destin historique a été de produire des effets critiques sur ce monde,
dans deux directions tout-à-fait contradictoires: d’une part une cri-

3 Paris: Minuit, 1981. L. Marin reviendra sur cette œuvre essentielle dans une
série d’articles postérieures repris après sa mort dans Politiques de la Représentation.
Paris: Kimé (2007).
4 Voir sur ce point le livre inépuisable de G. Imbruglia (1987). L’Invenzione del
Paraguay. Naples.

492
tique sociale du libéralisme économique au nom de la recherche du
“bien commun”, d’autre part une critique libérale de l’autoritarisme
secrètement à l’œuvre dans l’imposition de ce bien commun au nom
d’un ordre fondé, en dernière instance, sur l’arbitrage de Dieu. Aussi
bien l’utopie des réductions a-t-elle été mobilisée tout aussi bien
comme la projection parfaite d’une société libérée des intérêts par-
ticuliers que comme l’épouvantail d’une société asservie au modèle
d’une théocratie, ou de tous ses avatars tyranniques.
D’autre part, l’utopie comme discours critique 5 ne serait pas
seulement pour António Vieira, celle d’un monde, mais de deux
mondes: dans l’entre-deux des flots bleus, dont on ne sait pas
vers quelle terre ils portent ou reportent (et de moins en moins
au fur et à mesure que Vieira va et vient), il y a un double regard
critique porté sur le monde européen et sur le monde américain; ou
pour le dire autrement sur la monarchie inquisitoriale, l’oligarchie
esclavagiste – non exclusives l’une de l’autre évidemment, comme
l’a bien montré l’historiographie de ces dernières décennies,
sur le travail forcé en Europe et sur la persécution religieuse en
Amérique. Or il faut bien reconnaître qu’avant de devenir un monu-
ment national portugais, sous le masque du “grand écrivain”, puis,
enfin, dans le cadre d’un volume comme celui-ci, un simplement
“grand homme”, Vieira a été rejeté par ces deux mondes.
*

5 Il faut aussi entendre dans ce discours un effet de langage: comme pourrait le


montrer une étude approfondie, qui reste à entreprendre, des Lettres Edifiantes et
Curieuses des missionnaires européens occupés à écrire le vaste monde, il y a une
virtualité fictionnelle – bien reçue comme telle par les lecteurs du xviii e siècle -
dans cette écriture au présent, comme si on y était (et alors même qu’on y est).
Or ce même présent de narration est la modalité temporelle fondamentale de la
description utopique: çà se passe ailleurs dans le même temps qu’ici, dans le temps
présent. Il n’y a pas d’utopie passée (elle s’appelle alors un paradis perdu), ni future
(elle s’appelle alors un avenir radieux). L’utopie, c’est maintenant, pour reprendre
là encore le titre d’un article de L. Marin. Le maintenant utopique. In G. Raulet (éd.)
(1978). Stratégies de l’Utopie. Paris: Galilée.

493
Or cette puissance utopique est aussi, me semble-t-il, le secret de sa
puissance, aujourd’hui. Et c’est ce que le film de Manoel de Oliveira,
Parole et Utopie, a compris. L’u-topie est une u-chronie, un temps
par défaut, ni hier ni demain,6 et donc aujourd’hui. Le génie simple
d’Oliveira est là: aujourd’hui, eh bien, c’est aujourd’hui! Et c’est
l’événement, saisissant chaque fois que le film, à nouveau, vient
devant les yeux: au fur et à mesure de la progression du récit, le
cadre se resserre autour du prédicateur Vieira dans ses âges suc-
cessifs. Et lorsque celui-ci se retrouve seul, seul parce que nul n’est
prophète en ses pays, il n’est pas seul parce que moi, spectateur, je suis
là, maintenant. Le lien se noue ici profondément entre parole et utopie:
utopie d’un entre-deux mondes – l’océan – qui progressivement prive
Vieira de tout lieu (sauf celui de son écriture inlassablement reprise:
l’île d’Utopie est un livre). Mais ce non-lieu, qui est aussi l’abîme du
temps présent, bascule le vieux prédicateur dans l’aujourd’hui.
Je voudrais, pour provisoirement finir ce texte de conclusion à
un travail, revenir encore une fois à Louis Marin, qui aura manqué la
découverte politique et poétique magnifique qu’auraient été pour lui
les œuvres complètes de Vieira; Louis Marin qui, comme il le fait très
rarement, parle d’aujourd’hui dans “L’Utopie ou l’infini au neutre”, en
1991, un an avant sa mort: “Aujourd’hui, septembre 1991, alors que
s’ouvre soudain à l’Est le grand vide de la fin de l’Utopie...”.7 La fin
de l’utopie comme utopie du “socialisme réel”, mais le vide d’un non-
-lieu, d’une u-topie renaissante, ouverte à nouveau, ouverte à jamais
dans le sillage de Vieira prêchant sur l’océan.

6 Voir ci-dessus, note précédente.


7 L. Marin (1992). L’utopie ou l’infini au neutre. Voyages aux frontières. In Le
genre humain. Paris: Seuil, 50. L’enregistrement en ligne du Congrès de Coimbra
révèle de ma part un étrange lapsus: je n’ai pas parlé du vide de la fin de l’utopie,
mais du “vide de l’utopie”. Entre parole et écrit, ce brouillage restera – hommage
involontaire aux accidents de la communication dans l’Utopie de Thomas More.

494
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
2020
“Revisitar Vieira no Século XXI é uma obra única e necessária, cons-
tituída por um conjunto fundamental de reflexões em torno de dez
núcleos, que nos permitem uma visitação do mestre, de modo a poder
conhecê-lo melhor à luz dos tempos modernos. E assim encontramos,
a cada passo, a demonstração da genialidade do orador e do homem
de cultura, bem como um apelo constante, que a atualidade não pode
olvidar, relativamente à consagração da dignidade humana. Os dez nú-
cleos têm um forte sentido analítico e pedagógico, permitindo conhecer
e compreender um manancial único na cultura portuguesa: biografia,
historiografia e receção – para nos integrarmos no percurso de vida
do genial autor; epistolografia e interlocutores – para entendermos a
importância da sua intervenção; teologia e espiritualidade – para com-
preendermos os fundamentos do que nos diz; visões do futuro: obra
profética – para considerarmos a sua capacidade de antecipação; po-
lítica e sociedade – para percebermos a importância do compromisso
político, num tempo pleno de incertezas e ameaças; oratória sagrada e
retórica: artes, usos e sentidos – para cuidarmos da oficina de criação
do artista ímpar; literatura e arte – para continuarmos a perscrutar a ca-
pacidade encantatória do artífice; escritas polémicas e a visão do outro
– para lidarmos com a coragem e a determinação do intelectual; ciência
e natureza – para nos apercebermos da genuína atração que tinha
pelos saberes; e pedagogia e didática – para nos colocarmos na posição
de quem deseja aprender ao máximo com a lição de Vieira.”

Guilherme d’Oliveira Martins

Do Prefácio

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