Livro Volume 2 Ensaios Sobre Memória

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Maria Amália Silva Alves de Oliveira

Alan Curcino
Luciana Ferreira da Costa
Fernando Magalhães
(Coordenadores)

ENSAIOS SOBRE MEMÓRIA


Volume 2
ENSAIOS SOBRE MEMÓRIA
Volume 2
POLITÉCNICO DE LEIRIA

Presidente
Rui Filipe Pinto Pedrosa

ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS SOCIAIS


POLITÉCNICO DE LEIRIA

Diretora
Sandrina Diniz Fernandes Milhano

EDIÇÕES
https://www.ipleiria.pt/esecs/investigacao/edicoes/

Conselho Editorial
Alan Curcino
(Universidade Federal de Alagoas, Brasil)
Dina Alves
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
Emeide Nóbrega Duarte
(Universidade Federal da Paraíba, Brasil)
Fernando Paulo Oliveira Magalhães
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
José António Duque Vicente
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
Leonel Brites
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
Luciana Ferreira da Costa
(Universidade Federal da Paraíba, Brasil)
Marco José Marques Gomes Alves Gomes
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
Silvana Pirillo Ramos
(Universidade Federal de Alagoas, Brasil)
FICHA TÉCNICA

Título: Ensaios sobre Memória - Volume 2


Coordenadores: Maria Amália Silva Alves de Oliveira, Alan Curcino, Luciana
Ferreira da Costa, Fernando Magalhães
Projeto gráfico: Alan Curcino, Luciana Ferreira da Costa
Capa: Leonel Brites (com fotografia de @timmossholder)
Edição: Escola Superior de Educação e Ciências Sociais - Politécnico de Leiria
ISBN 978-989-8797-49-0
Dezembro de 2020
©2020, Instituto Politécnico de Leiria

APOIOS

Centro de
Investigação em
Qualidade de Vida

UNIVERSIDADE Rede de Pesquisa e (In)Formação em


FEDERAL DA PARAÍBA Museologia, Memória e Patrimônio

UNIVERSIDADE
FEDERAL DO ESTADO
DO RIO DE JANEIRO

RITUR
Revista Iberoamericana de Turismo
UNIVERSIDADE (Coeditada pela Universitat de Girona, Espanha)
FEDERAL DE ALAGOAS
Por uma necessária discussão prática e
epistemológica da Memória, desde os micro
aos macro espaços sociais e seus lugares, numa
cooperação internacional entre Brasil e Portugal.
ÍNDICE

Apresentação ....................................................................................................... 7
Maria Amália Silva Alves de Oliveira
Alan Curcino
Luciana Ferreira da Costa
Fernando Magalhães

Os Katxuyana, suas memórias e a defesa de seus direitos:


dos objetos musealizados à revitalização cultural ................... 10
Adriana Russi

Memória sobre a pandemia da Gripe Espanhola a COVID-


19: lembrar e esquecer vidas em jogo .......................................... 37
Lobelia da Silva Faceira
José Paulo de Morais Souza
Nívia Valença Barros

Memórias tecidas pela precariedade e pela vulnerabilidade


em vidas expostas a situações extremas ...................................... 60
Diana de Souza Pinto
Francisco Ramos de Farias

Materialidade e memória: a perspectiva arqueológica da


relação entre a informação, memória e patrimônio cultural 92
Carlos Xavier de Azevedo Netto

Destruição e resistência de imagens e objetos: políticas de


morte e memória ................................................................................. 118
Edlaine de Campos Gomes
Julio Cesar de Lima Bizarria
Pamela de Oliveira Pereira

A memória dos objetos: destruição e proteção de acervos


em museus .............................................................................................. 157
Yacy Ara Froner
As Carmelitas de Compiègne: a obra de Gertrud Von Lefort
como fonte para o estudo das relações entre memória,
literatura e história ............................................................................. 199
Artur Cesar Isaia
Cleusa Maria Gomes Graebin

Relendo a literatura brasileira contemporânea do ponto de


vista da Poética da Ausência ............................................................ 221
Zilá Bernd
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Apresentação

Os livros Ensaios sobre Memória – Volume 1, Volume 2 e


Volume 3 são resultado de uma cooperação científica internacional
envolvendo instituições, programas de pós-graduação e uma atuante
rede de pesquisadores em Memória capitaneada pelo Programa de
Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS) da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Brasil, no intuito de se fazer
referência e dar visibilidade do que se é produzido neste país, com
uma contribuição de Portugal.
Dessa forma, estes livros observam aos objetivos ampliados do
PPGMS/UNIRIO de investigação e publicação científica sobre a
Memória como construção no processo dinâmico da vida, como um
campo de disputas que inclui processos múltiplos de produção e
articulação das lembranças e esquecimentos dos diferentes sujeitos
sociais, suas redes de poderes que imperam nas sociedades em íntima
conexão com a construção das memórias, as tensões entre identidade,
alteridade e produção da diferença nos grupos sociais, os espaços e os
lugares da memória coletiva local, regional, nacional, global, além dos
monumentos, documentos e representações dos saberes, celebrações e
formas de expressão nos diversos domínios da prática social.
Para tanto, sobre a cooperação científica internacional que
possibilitou a publicação destes livros, o PPGMS/UNIRIO contou com
instituições e centros de excelência de pesquisa de Portugal e do
Brasil. Uniram esforços o Centro em Rede de Investigação em
Antropologia (CRIA) da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais
(ESECS) e o Centro de Investigação em Qualidade de Vida (CIEQV) da
Escola Superior de Saúde de Leiria (ESSLei), todos vinculados ao
Instituto Politécnico de Leiria (IPLeiria), Portugal, juntamente com a
Rede de Pesquisa e (In)Formação em Museologia, Memória e
Património (REDMUS) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
Brasil, e a Equipe Editorial da Revista Iberoamericana de Turismo
(RITUR).
Sendo assim, deve-se registrar que o percurso desta
cooperação se inicia com a publicação do Número Especial “Memória e
Turismo” (Volume 9, Ano de 2019) na RITUR, editada de forma
7
Ensaios sobre Memória – Volume 2

ininterrupta desde o ano de 2011 em conjunto pelo Observatório


Transdisciplinar em Turismo da Universidade Federal de Alagoas
(UFAL), Brasil, e pela Facultat de Turisme e Laboratori Multidisciplinar
de Recerca en Turisme da Universitat de Girona (UdG), Espanha.
Considerando o PPGMS/UNIRIO que o turismo enquanto um
fenômeno social e uma atividade marcada por valor econômico tem
seu processo de construção e manutenção como um locus privilegiado
para a captação de questões que envolvem os debates sobre diásporas,
sentidos atribuídos à religiões, revitalização e disputas de espaços,
reinvenções de tradições, planejamento urbano, memórias
traumáticas, patrimonialização, relações entre os contextos local e
global, nasceu a proposta de realização do III Seminário Internacional
em Memória Social, sob o tema “Memória e Turismo: roteiros,
trajetórias, discursos e subjetividades em construção” ocorrido no
período entre 15 e 18 de maio de 2018, promovido por este programa
de pós-graduação. Após a realização do evento, a sua Comissão
Organizadora entendeu que era necessário ampliar a visibilidade do
debate promovido. Desta forma, foi elaborada uma solicitação de
parceria com a RITUR no intuito de produção do Número Especial
citado, assentando-se esta parceria no entendimento de que a
produção do conhecimento deve estar em diálogo permanente com a
sociedade em seus contextos nacional e internacional, pois além da
referida revista priorizar abordagens interdisciplinares a
transdisciplinares, volta-se também para a comunidade externa
através de uma política de cooperação internacional de pesquisa e
desenvolvimento.
O retorno da publicação do Número Especial, já esperado pela
qualidade do que se foi publicado, gerou uma demanda de
continuidade, contudo, dessa vez, extrapolando os limites do Turismo,
abrindo uma possibilidade de publicação por contribuições das mais
diversas disciplinas das Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas,
Letras e Artes.
Daí os esforços por uma cooperação internacional diante da
demanda gerada com a publicação da RITUR.
Portanto, a partir do êxito do III Seminário Internacional em
Memória Social, da publicação do Número Especial da RITUR e da
demanda ampliada de publicação originada de diversos olhares e
disciplinas sob o foco da Memória, nasceu o projeto destes livros,
8
Ensaios sobre Memória – Volume 2

idealizado a princípio meritoriamente pela REDMUS/UFPB,


articuladora do projeto, e, como já registrado, capitaneado pelo
PPGMS/UNIRIO, tendo, por sua vez, como autores professores e
pesquisadores de instituições e programas de pós-graduação das
diversas regiões do Brasil, com o objetivo primordial de reunir um
conjunto de textos científicos capazes de plasmarem a grande
variedade e riqueza do que é produzido sobre a Memória.
Nessa trajetória, vale destacar novamente as quatro
instituições de ensino superior que uniram esforços, acreditando na
importância da publicação destes livros: da parte de Portugal, como
instituição editora que acolheu o projeto de publicação de caráter
internacional, o IPLeiria; e, da parte do Brasil, três universidades
federais como instituições executoras: a UNIRIO, a UFPB e a UFAL.
Para o leitor, descortinam-se aqui pesquisas e ensaios
contemporâneos sobre a Memória inter, pluri, multi e
transdisciplinares na perspetiva do que é produzido na
contemporaneidade.
Deve-se esclarecer que todo conteúdo de cada capítulo destes
livros, incluindo as figuras, fotografias, imagens, gráficos e quadros
analíticos, bem como suas resoluções e normalização, são da
responsabilidade dos seus respetivos autores.
Ademais, cabe ressaltar que cada capítulo aqui encontrado foi
submetido por avaliação por pares às cegas com vistas à qualidade da
publicação e que esta Apresentação se valeu das referências textuais
das publicações da Área de Concentração do PPGMS/UNIRIO e do
Editorial do Número Especial citado da RITUR sobre “Memória e
Turismo”, reconhecendo o esforço de muitos.
Ao final desta apresentação, fica o desejo a todos de uma
profícua leitura na perspetiva de seu uso e de sua ampla divulgação
como contribuição à evolução e futuro da área de estudos da Memória.

Maria Amália Silva Alves de Oliveira


Alan Curcino
Luciana Ferreira da Costa
Fernando Magalhães

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Ensaios sobre Memória – Volume 2

OS KATXUYANA,
SUAS MEMÓRIAS E A DEFESA DE SEUS DIREITOS: DOS
OBJETOS MUSEALIZADOS À REVITALIZAÇÃO CULTURAL1

Adriana Russi
Universidade Federal Fluminense, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-0738-1558

1INTRODUÇÃO

Este capítulo retoma uma experiência que acompanhei entre os


ameríndios Katxuyana, entre 2014 e 2015, uma de muitas de suas
iniciativas de valorização de sua cultura e defesa de seus direitos como
indígenas no país. A partir de premissas dos direitos dos povos
indígenas, assegurados em 2007 pela Declaração dos Direitos dos
Povos Indígenas, este relato sobre educação indígena revela aspectos
da abordagem da etnoeducação na interface interdisciplinar com o
campo da memória social.
Retomar essa experiência neste ano de 2020, assolado
mundialmente pela pandemia da Covid-19, reveste-se de múltiplos
sentidos e realça o lugar de destaque e a potência das memórias dos
anciãos para os povos indígenas. A crise sanitária que se espalhou
mundo afora, chegou também às aldeias indígenas. As notícias das
mortes de lideranças e anciãos importantes entre os indígenas no
Brasil fizeram emergir uma enorme preocupação com a (re)existência
desses grupos, de suas culturas, de seus patrimônios.
Segundo diferentes instituições não governamentais que atuam
diretamente na defesa dos direitos dos povos indígenas no Brasil, como
a Coordenação dos Povos Indígenas da Amazônia Brasileira [Coiabi] ou
o Instituto de Pesquisa e Formação Indígena [IEPÉ], a morte de
lideranças – como o cacique Aritana Yawalapiti, importante figura do
Parque Indígena do Xingu, ou de anciãos, como Honório Awahuku
Katxuyana, um dos guardiões das memórias do povo Katxuyana – abala

1Dedico este texto à memória de Honório Awahuku Katxuyana, guardião de


muitas memórias do povo Katxuyana, falecido em 17 de junho de 2020, em
Oriximiná-PA, e com quem muito aprendi.
10
Ensaios sobre Memória – Volume 2

e afeta muitos de nós. Para os povos que perderam essas referências,


tais perdas são inestimáveis.
Nosso trabalho com o povo Katxuyana remete há uma década,
quando em 2010 estivemos pela primeira vez em uma de suas aldeias,
chamada Santidade, localizada às margens do rio Cachorro, no
município brasileiro de Oriximiná, no estado do Pará, região norte do
país.
Naquela ocasião, algumas de suas lideranças, como o então
cacique João do Vale Pekiriruwa, seu filho Mauro Makaho e Juventino
Petirima Junior nos apresentaram o projeto de reconstrução de uma
casa tradicional, conhecida como tamiriki. Eles demostraram interesse
em participar de nosso programa da Universidade Federal Fluminense
[UFF] para a formação de educadores em etnoeducação2.
Desde então, por anos seguidos, os Katxuyana participaram de
projetos escolares voltados à valorização de seus saberes tradicionais
em que o presente, ao revisitar o passado, suas histórias e lembranças,
se lançava para o futuro. Um dos desafios deste povo era, e ainda é,
assegurar a retomada de seu território às margens do rio Cachorro
(Russi, 2014).
Neste texto, analiso a relação entre um projeto educativo de
valorização cultural, desenvolvido pelos Katxuyana como ação de uma
estratégia política na defesa de seus direitos. Em grande medida, esse
processo foi mediado pelas memórias dos anciãos. Para tanto, volto ao
ano de 2013, quando estive na aldeia levando fotografias de objetos
confeccionados por seus “ancestrais”, que foram posteriormente
musealizados.3 O relato da experiência que acompanhamos com os

2 O Programa Educação Patrimonial em Oriximiná funcionou como um


programa de extensão universitária ao longo de uma década, entre 2008 e
2018. Entre 2016 a 2020, fruto deste programa, desenvolvemos o curso lato
sensu em Etnoeducação. Os desdobramentos dessas iniciativas escapam aos
propósitos deste texto e atravessam inúmeras outras experiências em
distintas comunidades em Oriximiná. O site do programa traz mais
informações sobre as atividades promovidas e os resultados alcançados
(www.patrimoniocultural.uff.br).
3 O levantamento sobre os objetos katxuyana preservados em museus

europeus foi motivado pelos próprios Katxuyana. Essa pesquisa na Europa foi
realizada entre novembro de 2012 a março de 2013 com financiamento da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, bolsa PDSE-
11
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Katxuyana da aldeia Santidade, em sua oficina de confecção de canoas,


foi despertado pela fotografia de uma canoa katxuyana preservada no
Nationalmuseet, em Copenhagen, Dinamarca. Ao longo desse projeto
educativo, observamos atentamente o envolvimento dos moradores da
aldeia nessa atividade que transcorreu entre os anos de 2014 e 2015. 4

2 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS E


PROJETOS DE REVITALIZAÇÃO CULTURAL: ASPECTOS POLÍTICOS
NA DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS

A Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas


(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
[UNESCO], 2008), instrumento internacional norteador das obrigações
dos países-membros sobre medidas para garantir os direitos
indígenas, foi um marco na história da Organização das Nações Unidas
[ONU]. Importante desdobramento da Declaração Universal dos
Direitos Humanos (ONU, 1948), a Declaração sobre os Direitos dos
Povos Indígenas, aprovada na Assembleia Geral da ONU, em 2007,
reconhece o direito a autodeterminação desses povos e o direito que
têm a praticarem e a revitalizarem suas tradições.
Construída a partir da integração das visões e interesses dos
povos indígenas e dos não indígenas, o documento afirma que os povos
indígenas são iguais aos demais povos e que têm o direito de serem
diferentes, se considerarem diferentes e serem, por isso também,
respeitados. O documento revela a correlação entre direitos humanos,
justiça e desenvolvimento desses povos. No Brasil, nossa lei suprema, a
Constituição Federal de 1988, reconhece em seu artigo 5º os direitos
humanos. Ainda em nossa Carta Magna, os direitos indígenas, por sua
vez, estão assegurados nos artigos 231 e 232.
A Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas afirma
direitos fundamentais universais no contexto das culturas, realidades e

Sanduíche, durante meu doutoramento em Memória Social pela Universidade


Federal do Estado do Rio de Janeiro [Unirio].
4 Agradeço à parceria dos colegas da equipe do Programa Educação

Patrimonial em Oriximiná e, particularmente, à educadora Sonia Maciel, com


quem compartilhei esse trabalho na aldeia Santidade. Parte das reflexões
desenvolvidas aqui, remete às nossas conversas naquela ocasião.
12
Ensaios sobre Memória – Volume 2

necessidades indígenas. O documento contribui para a conscientização


sobre a opressão histórica impetrada contra os povos indígenas, “[...]
resultado, entre outras coisas, da colonização e da subtração de suas
terras, territórios e recursos, o que lhes tem impedido de exercer, em
especial, seu direito ao desenvolvimento, em conformidade com suas
próprias necessidades e interesses [...].” (Unesco, 2008, p. 3). Um dos
intuitos da declaração é a promoção da tolerância, da compreensão e
das boas relações entre os povos indígenas e outras sociedades.
A Assembleia Geral das Nações Unidas, por ocasião da
proclamação da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas,
mostrou-se preocupada com as dificuldades que esses povos
enfrentam para se desenvolverem conforme suas necessidades e
interesses. A declaração enuncia um conjunto de direitos que visam
proteger, promover, garantir e defender os povos indígenas. Tais
direitos são considerados normas mínimas para a sobrevivência, a
dignidade e o bem-estar desses povos em todo o mundo.
Desse conjunto de direitos, destacamos aqueles relacionados ao
direito desses povos serem diferentes, respeitados e de preservarem
suas memórias e patrimônios culturais, que constituem patrimônio
comum da humanidade. Para fins da reflexão do que expomos neste
capítulo, damos especial destaque aos artigos 8º, 11, 13 e 31 da
declaração citada, pois se voltam aos saberes tradicionais e aos
patrimônios culturais indígenas. Nesse sentido, destacamos o item 1 do
artigo 11:

Os povos indígenas têm o direito de praticar e


revitalizar suas tradições e costumes culturais. Isso
inclui o direito de manter, proteger e desenvolver as
manifestações passadas, presentes e futuras de suas
culturas, tais como sítios arqueológicos e históricos,
utensílios, desenhos, cerimônias, tecnologias, artes
visuais e interpretativas e literaturas.

O direito ao patrimônio cultural indígena está melhor descrito


no item 1 do artigo 31:

Os povos indígenas têm o direito de manter,


controlar, proteger e desenvolver seu patrimônio
13
Ensaios sobre Memória – Volume 2

cultural, seus conhecimentos tradicionais, suas


expressões culturais tradicionais e as manifestações
de suas ciências, tecnologias e culturas […]. Também
têm o direito de manter, controlar, proteger e
desenvolver sua propriedade intelectual sobre o
mencionado patrimônio cultural, seus
conhecimentos tradicionais e suas expressões
culturais tradicionais.

Em várias partes do mundo, inúmeros povos indígenas têm


protagonismo em projetos de revitalização cultural que se revestem de
caráter político na defesa de seus direitos.
Marshall Sahlins (1997) elaborou uma retrospectiva nesse
sentido, ao tratar da “resistência cultural” entre povos indígenas. O
autor destaca que desde os anos de 1970 surgiu no cenário mundial
uma série de iniciativas em que povos tradicionais pós-contato, que
vivem na economia moderna, desenvolvem projetos relacionados às
suas identidades. Esse fenômeno foi estudado e nomeado por outros
autores, como Richard Salisbury (1984), que o sintetizou na ideia de
“intensificação cultural” (cultural enhancement); Cris Gregory (1982)
denominou esse processo de “florescimento cultural”; para Dunbar
Moodie (1991), estaríamos diante de “culturas de resistência”;
conforme Terence Turner (1987), estes seriam processos de
“sobrevivência cultural”.
A expressão “autoconsciência cultural”, cunhada por Sahlins
(1997), refere-se a uma “fórmula” adotada por diferentes povos
tradicionais para reforçarem suas identidades e retomarem “o controle
do próprio destino”. Seguindo a formulação de Bruno Latour, Sahlins
ressalta que as culturas minoritárias, como os povos indígenas, por
exemplo, vêm reagindo às pressões dos processos de globalização e, de
forma paradoxal, não estão em processos de desaparecimento. Ao
contrário, tais povos têm conseguido sobrevier fisicamente às pressões
que sofrem há séculos, especialmente em decorrência dos processos
coloniais, e procuram caminhos para se (re) elaborarem culturalmente
(Sahlins, 1997).
Nesse sentido, Shepard, Garcés & Chaves (2017) também
contextualizam tal fenômeno nos anos de 1970, identificando como
importantes fatores o crescimento demográfico dos povos indígenas na
14
Ensaios sobre Memória – Volume 2

América do Sul e a titulação de terras indígenas. Os autores ainda


destacam a persistência desses grupos e as “novas modalidades de
inserção e interlocução” com os Estados-nações, desconstruindo do
nosso imaginário a ideia de que esses povos vão desaparecer.
Já há algumas décadas, vimos projetos de valorização cultural
desses povos lançando mão de objetos musealizados (Clifford, 1997;
Gallois, 1991). Sobre isso, podemos afirmar que desde os anos de 1990,
observamos, paulatinamente, um protagonismo cada vez maior dos
povos indígenas em iniciativas nos museus que conservam seus
objetos (Russi & Abreu, 2019). Esse protagonismo indígena decorre,
muitas vezes, das múltiplas lutas desses povos em diferentes partes do
mundo.
Os direitos dos povos indígenas também se estendem aos
acervos de instituições culturais, como os museus. Em muitos casos, a
pressão social provocou a criação de leis de defesa e proteção dos
direitos dos povos indígenas, especialmente voltadas aos seus
patrimônios culturais. Exemplo seminal nesse sentido ocorreu nos EUA
e suscitou, em 1990, a formulação do Native American Graves
Protection and Repatriation [NAGPRA]. Outros protocolos de
procedimentos entre museus e povos indígenas existem na Nova
Zelândia e Austrália, por exemplo. A Declaração dos Direitos do Povos
Indígenas (UNESCO, 2007), em seus artigos 11, 12, 13 e 15, volta-se
para os direitos culturais, das tradições e dos patrimônios dos povos
indígenas e recomendam que sejam adotados protocolos especiais
entre museus e povos indígenas. Questões sobre repatriação de objetos
sensíveis e restos humanos também integram o conteúdo dessa
declaração, embora Nova Zelândia, Austrália, Canadá e EUA tenham
votado contrariamente à adoção dessa declaração entre os países-
membros da ONU. Uma conduta ética dos museus com os povos
indígenas também está determinado pelo Código de Ética para Museus
do Conselho Internacional de Museus [ICOM] da Unesco (ICOM, 2017).
Tais mudanças de paradigma provocaram novos modelos para
a museologia (Abreu, 2007; Cury, 2016; Dias, 2007), bem como uma
nova formulação para o patrimônio cultural indígena.
Muitos povos indígenas, que vivem atualmente no território
brasileiro, resistiram a mais de 500 anos de colonização portuguesa,
lutando contra massacres, missionários, contra a invasão de suas
terras e iniciativas extrativistas, garimpos e projetos de grande porte,
15
Ensaios sobre Memória – Volume 2

como as hidrelétricas, rodovias e mineradoras. Em muitos casos, parte


de sua cultura material foi substituída por objetos industrializados e
suas indumentárias tradicionais foram trocadas por vestuários
ocidentais.
Entretanto, concomitantemente a muitas mudanças a que estes
povos foram forçados a se sujeitar, observamos a enorme capacidade
de resistência dos índios frente a todo esse contato. Há inúmeros casos
de uma profícua produção de cultura material ancorada em padrões
tradicionais que, por vezes, são atualizados contemporaneamente –
quer na substituição de matérias-primas, quer em novos formatos para
certos objetos, ou na idealização de uma bricolagem de tudo isso. O
caso dos povos que habitam a região do alto rio Negro, na Amazônia
brasileira, e diversos outros povos, ilustra um pouco isso (Freire,
2020). Há, pois, uma carga simbólica nos bens materiais que se
vinculam não apenas à obra propriamente, mas, sobretudo, à
capacidade humana de produzi-las e fruí-las.

3 POVOS INDÍGENAS NO BRASIL E A VALORIZAÇÃO CULTURAL: OS


KATXUYANA E SUAS MEMÓRIAS

No Brasil, existem aproximadamente 256 povos indígenas,


totalizando quase 900 mil pessoas (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística [IBGE], 2010), o equivalente a 0,47% da população
brasileira. Falantes de mais de 150 diferentes línguas, eles vivem
espalhados pelo território brasileiro, principalmente nas 724 terras
indígenas (Instituto Socioambiental [ISA], 2005) e em áreas urbanas,
como nas cidades de Manaus, na Amazônia, e em São Paulo. Esses
povos têm longa história, já que ocupavam o território que viria a se
tornar a nação brasileira, mesmo antes dos portugueses chegarem por
aqui, no ano de 1500, ou seja, há 520 anos. Atualmente, as relações
estabelecidas pelos povos indígenas com a sociedade brasileira são
muito diversas.

A maneira como cada povo se insere na sociedade


brasileira é bastante variada. Há povos cujos
membros trabalham no mercado regional e são
assalariados [...]. Há aqueles que vivem em centros
urbanos [...]. Um fato notável é o crescimento do
16
Ensaios sobre Memória – Volume 2

número de indígenas no cenário político brasileiro.


Somente em 2000, foram eleitos, entre vereadores,
vice-prefeitos e um prefeito, 80 índios. (ISA, 2005,
on-line).

Diversos grupos indígenas no Brasil mantêm relações de


parcerias com organizações da sociedade civil brasileira. Há também
os chamados “índios emergentes”, cuja população reivindica
publicamente sua condição de indígena no Brasil.
Em um balanço realizado para a ONU sobre a situação dos
povos indígenas no Brasil, uma de suas relatoras, Victoria Tauli-Coruz,
em 2016, já afirmava os graves riscos que esses povos estavam
sofrendo desde a adoção de nossa Constituição de 1988 (ONU, 2016).
Desde então, sobretudo nos últimos anos, foram inúmeros os casos de
violências contra esses povos no país e que vão desde a discriminação
contra os indígenas até a invasão de suas terras e assassinatos. Na
atualidade, no Brasil, cresceram as denúncias de invasão de territórios
indígenas já demarcados, de garimpo e exploração ilegal de outros
recursos, de paralização de processos de demarcação de novos
territórios indígenas. Muitas organizações não governamentais e
pesquisadores denunciam o governo do presidente Jair Bolsonaro de
fomentar o desrespeito dos direitos garantidos constitucionalmente
aos povos indígenas, e de violação dos direitos dos povos indígenas da
supracitada declaração, da qual o Brasil é signatário. Um alerta
importante nesse sentido foi emitido na reunião do Conselho de
Direitos Humanos da ONU, ocorrida em março de 2020.
Os Katxuyana são ameríndios do tronco linguístico Karib, que
vivem em aldeias espalhadas pelo norte do Brasil, sobretudo no Estado
do Pará, às margens dos rios Cachorro e Trombetas. Algumas de suas
aldeias se localizam noutras localidades como na divisa do Pará com o
estado do Amazonas, às margens do rio Nhamundá e no Parque
Indígena Tumucumaque, nas fronteiras do Brasil com o Suriname e a
Guiana Francesa. Conforme dados do Instituto Socioambiental (ISA,
2014) é um povo constituído por pouco mais de 380 pessoas. A
bibliografia sobre os Katxuyana (Frikel, 1970; Gallois, 1983; Caixeta de
Queiroz & Gonçalves Girardi, 2012) descreve que eles vivenciaram um
longo processo migratório no tempo e no espaço, tendo regressado ao

17
Ensaios sobre Memória – Volume 2

seu território, às margens do rio Cachorro (Oriximiná-PA), no final dos


anos 1990.
O trabalho realizado com os Katxuyana foi desenvolvido em
duas aldeias – Santidade e Chapéu – localizadas no município paraense
de Oriximiná, o quarto maior município do Brasil em extensão
territorial, com cerca de 107 mil km2 (IBGE, 2017). Entre 2010 a 2017,
realizamos projetos no âmbito do já mencionado programa da UFF
com os moradores da aldeia Santidade e desde 2016 acompanhamos
algumas ações educativas e de pesquisa cultural e material com os
habitantes da aldeia Chapéu. Essas aldeias estão na área da Terra
Indígena Katxuyana-Tunayana, declarada em 2018.

Mapa 1 – Localização das terras indígenas em Oriximiná, entre elas a


Terra Indígena Katxuyana-Tunayana
Fonte: Comissão Pró-Índio, 2020.

Seu território, a Terra Indígena Katxuyana-Tunayana, foi


oficialmente declarado terra indígena em 2018, através da portaria nº
1510, de 20 de setembro de 2018. Ocupa uma área de 2.184 mil ha,

18
Ensaios sobre Memória – Volume 2

onde vivem aproximadamente 575 pessoas, pois além do povo


Katxuyana, os Tunayana vivem também nessa região. Atualmente, esse
e outros povos estão apreensivos com a ameaça de construção de uma
usina hidrelétrica na altura da Cachoeira Porteira, na bacia
hidrográfica do rio Trombetas.
Conforme a Comissão Pró-Índio (2019) e outras instituições, as
iniciativas do governo federal para a instalação de hidrelétricas na
região remetem ao Plano Nacional de Energia 2030, datado de 2006,
em que está projetado a construção de15 hidrelétricas na região, sendo
que os estudos da unidade de Cachoeira Porteira é o mais adiantado
dentre todos estes estudos.
Para enfrentar os avanços em suas terras e as ameaças aos seus
direitos, os povos tradicionais, de uma forma geral, e aos povos
indígenas, particularmente, têm usado o patrimônio cultural como
importante elemento político. Apesar das ameaças aos direitos dos
povos indígenas, o Estado brasileiro tem inúmeros compromissos com
esses povos, entre eles o de contribuir na salvaguarda dos patrimônios
culturais brasileiros, conforme descrito em nossa Constituição Federal
de 1988 (artigos 215 e 216).
Seguindo o pensamento de Antônio Arantes (1984), a definição
de patrimônio se dá em função do significado que possui para a
população. O autor reconhece que o elemento básico na percepção
desse significado reside no uso que a sociedade faz de um bem cultural.
No caso do patrimônio cultural indígena da Amazônia, como aponta
Freire (2020, on-line), este não se limita: “[…] ao aspecto material.
Existe uma dimensão da produção não-material, estritamente
simbólica, evidenciada pelo uso e manejo da linguagem: a tradição oral,
os mitos, os cantos, os sistemas religiosos e, sobretudo, os saberes
condensados nas etnociências.”
Por isso, vemos fortes conexões entre a cultura material (os
objetos, por exemplo) e a memória social. Como sistematiza Russi
(2014, p. 203):

Em estudos contemporâneos das Ciências Humanas,


em muitos casos, a cultura material é tomada como
“sociotransmissora”, tal qual explicitado por Candau
(2008) e por isso se refere a todas as coisas que
ocupam o mundo (objetos tangíveis ou intangíveis)
19
Ensaios sobre Memória – Volume 2

que permitem uma conexão entre ao menos dois


indivíduos. Em Pierre Nora (1984), a cultura
material é suporte da memória que, ao evocar o
passado, reforça identidades no presente. [...] Na
museologia, por exemplo, conforme Cury (2005, p.
367), a cultura material é “vetor de conhecimento,
comunicação e de construção de significados
culturais.” Nas coleções privadas ou públicas nos
deparamos com uma infinidade de objetos. Segundo
Pomian (1984), os objetos têm um significado para
além de sua materialidade. Esses objetos
representam uma experiência importante para os
que o guardam ou veem. Eles são [...] “semióforos”,
categoria que criou para se referir aos objetos que
são opostos às coisas. Estas têm utilidade, mas não
possuem significado. Os “semióforos” seriam, então,
objetos sem valor de uso. Stallybrass (2008) também
reflete sobre as complexas relações entre as coisas
como objetos de uso (objetos nos quais deixamos
nossas marcas, nossas memórias) e as coisas como
mercadorias. Na coletânea de Appadurai (2008), são
discutidos o consumo e o consumismo modernos. O
consumo, nessa perspectiva, além de produzir
vínculos, geraria relações de solidariedade, confiança
e sociabilidade importantes para a vida social.

O interesse manifestado pelos Katxuyana de conhecer sua


cultura material preservada em museus se mostrou similar a inúmeros
outros casos de povos indígenas de que temos notícias no Brasil
(Abreu, 2005; Cury, 2016; Lima Filho & Athias, 2016; Velthem, 2012).
Como afirma Russi (2018, p. 76): “[…] muitos povos indígenas no Brasil
vivem experiências de autovalorização cultural de distintas formas
para preservar suas culturas e seus patrimônios culturais. Para vários
povos conhecer os objetos musealizados faz parte desses processos.”

20
Ensaios sobre Memória – Volume 2

4 ETNOEDUCAÇÃO: OBJETOS DE MUSEU, MEMÓRIAS E


AUTOVALORIZAÇÃO CULTURAL

Como apontou Sahlins (1997), observamos que a


autovalorização cultural tem sido estratégia política também entre os
Katxuyana. Aqui, a experiência da etnoeducação no aprendizado de um
saber ancestral se fez na confecção de canoas. Através da
etnoeducação, a educação indígena entre os Katxuyana tem se
constituído pela articulação de diferentes agentes e instituições. Entre
os agentes envolvidos, destacamos professores e estudantes
universitários, pós-graduandos, além, é claro, dos próprios Katxuyana
e dos professores indígenas e não indígenas da escola da aldeia
Santidade. Entre as instituições, além da UFF e seus parceiros,
destacamos a Aarhus Universitet (Dinamarca), a Associação Indígena
Katxuyana, Tunayana e Kahiyana [Aikatuk] e o Centro Educacional
Missão São Pedro.
Há uma década, o ponto de partida de nossas experiências em
etnoeducação na aldeia Santidade partiu do desejo do povo Katxuyana
de garantir que seu Kwe’toh kumu (nosso jeito de ser e viver)
persevere entre as futuras gerações (Russi, 2014).
Desde então, escutamos, sugerimos, aprendemos e fizemos
juntos – nós da universidade, os Katxuyana e nossos parceiros
institucionais. Nesse percurso, a cada ano, rapazes e moças escolheram
temas para seus projetos em etnoeducação. Os temas escolhidos
buscavam enfatizar aspectos da própria cultura katxuyana. Foi assim
em anos anteriores, com o aprendizado da casa tradicional – a tamiriki
–, e em outros projetos sobre a cultura material (potes de cerâmica,
tangas de miçanga, redes de algodão, peneiras de tala de arumã, canoa,
etc.). Esses projetos de etnoeducação evidenciam as memórias dos
anciãos como importante instrumento para a tradição katxuyana, cujo
povo voltou a reocupar sua terra natal e passou a se envolver na luta
pela demarcação de seu território, desde o final dos anos de 1990.
No ano de 2010, um dos pedidos iniciais dos Katxuyana era
conhecer sobre tudo o que dizia respeito a seu povo. As coleções
etnográficas musealizadas dos Katxuyana fazem parte dessa história.
Assim, paralelamente aos projetos de etnoeducação, por ocasião de
meu doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Memória Social
21
Ensaios sobre Memória – Volume 2

da Unirio, realizei pesquisas sobre suas coleções etnográficas e outros


patrimônios culturais desse povo (Russi, 2014; Russi, Kieffer-Døssing
& Endreffy, 2016).
Sobre as coleções etnográficas, é possível afirmar que a mais
antiga, com 46 objetos, estava no Brasil e datava do final da década de
1920. Infelizmente, essa pequena coleção foi queimada no incêndio do
Museu Nacional do Rio de Janeiro, em setembro de 2018. Deste acervo,
restam apenas registros fotográficos e um relatório de pesquisa (Russi
& Endreffy, 2017). Existem, ainda, pouco mais de uma centena de
objetos no Brasil, no Museu Paraense Emilio Goeldi [MPEG], na cidade
de Belém, e mais de 500 objetos preservados em diferentes museus na
Europa, como: o Museum am Rothenbaum Kulturen und Künste der Welt
[MARKK – antigo Museum für Völkerkunde, em Hamburgo, Alemanha],
o British Museum (Londres, Inglaterra), o Kulturhistorisk Museum (Oslo,
Noruega) e o Moesgaard Museum (Århus, Dinamarca). A maior coleção
de objetos do povo Katxuyana está no Nationalmuseet (Copenhagen,
Dinamarca), com 220 objetos. É nesta coleção que se encontra
preservada a canoa que foi tema do projeto educativo (Russi & Kieffer-
Døssing, 2019).
A partir de fotografias que encontramos na documentação dos
museus – tanto dos objetos musealizados, como dos antepassados dos
Katxuyana –, algumas ações vêm sendo realizadas, muitas delas na
escola bilíngue que funciona na aldeia Santidade. As experiências
educativas com os Katxuyana têm se constituído como práticas
interdisciplinares, sempre investidas de objetivos voltados à sua
autovalorização cultural.
A abordagem da etnoeducação se consolidou ao longo de uma
década, a partir do já mencionado Programa de Extensão Educação
Patrimonial em Oriximiná, no âmbito das ações da UFF. No exercício de
formular práticas educativas integradas às realidades das
comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e outras desse
município paraense, professores da UFF e educadores das
comunidades se empenharam em desenvolver projetos sensíveis aos
saberes tradicionais locais. A etnoeducação é um processo formativo
voltado para a formação continuada de educadores da educação básica.
Essa abordagem teórico-metodológica assume a perspectiva da
aprendizagem e da formação como processo de pesquisa-intervenção
(Rocha, Russi & Alvarez, 2013).
22
Ensaios sobre Memória – Volume 2

No termo “etnoeducação”, o prefixo “etno” remete à etnografia


– abordagem inspiradora de uma forma de pesquisar, ancorada no
encontro, no relacionamento e na aventura da experiência com a
alteridade. A proposta da etnoeducação se afina com o método
cartográfico de inspiração deleuziana, cujo conceito de pesquisar
supõe a análise das implicações dos sujeitos envolvidos na pesquisa,
com o intuito de cuidar e construir um corpo coletivo potente o
suficiente para promover certas transformações da realidade social em
que tais sujeitos estão inseridos.
Dessa forma, os projetos são concebidos no formato de
pesquisa-intervenção e seguem premissas teórico-metodológicas em
que o educador parte da construção de um problema, forjado por meio
da análise coletiva de situações reais e concretas, envolvendo os
educandos e seus familiares, bem como a comunidade escolar.
Educação, cultura, tradição, memória e alteridade estão conectados
com os saberes em diferentes contextos, sejam eles institucionais ou
cotidianos. A centralidade da etnografia na pesquisa-intervenção
contribui para o estabelecimento de relações que visam fortalecer um
patrimônio cultural comum.

5 O PROJETO “MINHA CANOA ESTÁ EM PRIMEIRO LUGAR, MEU


SONHO É SABER FAZER: SOMOS KATXUYANA DO RIO CACHORRO”

Nessa parte do texto, descrevo brevemente o processo de


ensino-aprendizado em etnoeducação sobre a canoa, que ocorreu em
2014 e voltou como tema de projeto no ano seguinte. Esse trabalho
compartilhado tem reverberado de muitas maneiras na escola indígena
e nós da universidade também aprendemos com os indígenas.
Iniciativas como essa demonstram a potencialidade das memórias dos
anciãos, motivadas por diferentes dispositivos. A oficina da canoa, por
exemplo, foi suscitada pela imagem de um objeto musealizado, que se
tornou inspiração nesse projeto de ensinar e aprender um saber fazer
ancestral. A fotografia da canoa katxuyana, preservada no acervo do
Nationalmuseet, da Dinamarca, chamou muito a atenção deles.
Essa canoa foi um dos objetos coletados no final dos anos de
1950, quando o pesquisador e curador do Departamento de Etnografia
do Nationalmuseet, Jens Yde, e etnógrafos amadores, como Gottfried
Plykrates e Christen Sødeberg, a serviço do museu, percorreram
23
Ensaios sobre Memória – Volume 2

aldeias na região da bacia do rio Trombetas, navegando pelos rios


Mapuera e Cachorro, coletando objetos de diferentes povos indígenas,
como os Waiwai, os Xerew, os Hiskariyana, os Katxuyana e outros.
Muitos desses objetos posteriormente foram incorporados ao acervo
do Nationalmuseet e de outros museus europeus (Russi & Kieffer-
Døssing, 2019).
Com essa experiência o objeto do acervo de um museu adquiriu
um novo sentido. Ao despertar memórias entre os anciãos da aldeia, a
imagem desse artefato suscitou neles a vontade de ensinar os jovens
uma tecnologia ancestral, sendo criada, assim, a oficina de canoas.
A ideia dos velhos se tornou um projeto educativo que recebeu
o título de: “Minha canoa está em primeiro lugar, meu sonho é saber
fazer: somos Katxuyana do Rio Cachorro”. A partir da produção de um
texto coletivo, rapazes do 2º segmento da escola explicaram seus
objetivos com esse projeto:

A primeira experiência de etnoeducação nós já


tivemos, pois nós construímos uma casa tradicional
(tamiriki), aprendendo os saberes de nossos
ancestrais. Nós adoramos estudar com nossos pais e
com nossas mães. Os mais velhos nos mostram o que
é importante, eles querem muito multiplicar o que
aprenderam com nossos bisavós no passado. No
presente, é nossa vez de aprender com eles. Nossos
pais que nos ensinaram querem nos formar. O que
não sabíamos ontem, hoje nós estamos sabendo.
Assim, queremos aprender a saber fazer a canoa,
para que possamos ter noção e ensinar nossos filhos
futuramente. Nós vamos aprender tudo aquilo que
servirá para nossa nova geração. (Russi, Alvarez &
Maciel, 2015, p. 46).5

Em maio de 2014, na aldeia Santidade, encontrei com os


professores e estudantes do 2º segmento do ensino fundamental da

5 Posteriormente, esse texto coletivo foi publicado pela UFF, no livro


“Cadernos de Cultura e Educação para o Patrimônio”, volume 4 (Russi et al,
2015).
24
Ensaios sobre Memória – Volume 2

escola dessa aldeia. Juntos, lembramos temas de projetos de anos


anteriores e as etapas de um projeto de etnoeducação: desde a escolha
de temas de interesse coletivo, às estratégias de pesquisa (coleta de
informações), registros do processo (fotografias, vídeos, desenhos,
textos, músicas, dramatização, etc.), até o momento de apresentarem
os resultados finais e compartilharem seus aprendizados com outras
crianças e com a comunidade.
Embora a motivação para a oficina de canoa tenha partido de
alguns anciãos, desde que viram as fotografias do objeto no museu, um
dos rapazes da turma defendeu o tema da canoa durante uma aula.
Para ele, era preciso aprender a fazer uma canoa: meio de transporte
imprescindível para circular pela região em seus rios e, assim, eles se
tornariam mais autônomos já que estavam comprando canoas de um
povo indígena vizinho. Outros rapazes sugeriram outros temas para o
projeto daquele ano, mas a justificativa para aprender a fazer canoa
acabou prevalecendo. Hoje, o rapaz defensor do tema da canoa, já
casado e com um filho pequeno, é professor nessa escola.
Decidido o tema da canoa, os rapazes começaram a colocar em
prática a ideia do projeto. Assim, em um primeiro momento, os homens
acompanharam os rapazes até a mata para escolher a árvore mais
propícia para a construção de uma canoa de grandes dimensões. Eles
saíram da aldeia e fizeram uma caminhada de mais de uma hora pela
mata até encontrar a árvore que foi derrubada naquele momento –
piyu. A caminhada até aquele local na mata, onde a canoa foi
confeccionada, passava por lugares difíceis, mata fechada e áreas
alagadas. Para essa oficina havia uma equipe de jovens, supervisionada
por um dos anciãos, que era responsável pela construção da canoa.
Uma canoa grande tem dimensões que variam. A que foi confeccionada
durante o projeto tinha 12 metros de comprimento e 2 metros de
largura. Sua confecção se deu na própria floresta por um processo
difícil e demorado até sua conclusão.
Nós, da universidade, voltamos à aldeia uns meses depois para
acompanhar o desenvolvimento do projeto. Como a canoa grande
levaria muito tempo até ser finalizada, naquela oportunidade, o velho
João do Vale Pekiriruwa decidiu mostrar, em uma única etapa, como se
faz uma canoa. Para tanto, ele escolheu a estratégia de confeccionar
uma canoa miniatura, demonstrando aos rapazes todas as etapas dessa
tecnologia ancestral.
25
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Por isso, ele sugeriu nossa ida ao lado oposto do rio para que
ele pudesse demonstrar como se faz uma canoa tipo katxuyana,
utilizando uma madeira mais mole conhecida como molongó. Os
rapazes, que na ocasião tinham entre 12 a 16 anos, observavam
atentamente as explicações e os movimentos do velho.
Foi um trabalho coletivo, cada um fazia um pouco, de forma que
todos puderam participar. Essa atividade, que inicialmente foi
planejada para produzir uma canoa em miniatura, acabou resultando
na confecção de várias minicanoas, tão entusiasmados ficaram os
jovens aprendizes. Na aldeia, os rapazes continuaram, mais tarde, a
talhar suas próprias canoinhas, sozinhos ou em grupos. Cada um
queria mostrar o resultado do seu trabalho, que se estendeu por uma
semana.
Ao final, fizemos um encerramento do projeto na escola, que
funciona na casa tradicional tamiriki, onde toda a aldeia estava reunida
para ouvir os relatos dos rapazes e também das moças. Um dos velhos
falava em katxuyana e depois traduzia para o português. Ele destacou a
importância do aprendizado dessas tradições e o quanto isso é
importante para a vida social e econômica da aldeia. Falou, ainda, sobre
a relevância desse conhecimento no processo de demarcação de seu
território.
No ano seguinte, de 2015, os rapazes escolheram “aprender a
fazer peneira” como tema do projeto. Porém, eles perceberam a grande
necessidade da comunidade: ainda faltavam canoas para as famílias se
deslocarem. Assim, eles resolveram voltar ao tema do projeto do ano
anterior. Como a canoa grande começada no ano anterior ainda não
tinha sido terminada, eles decidiram que aquele era o momento certo
para dar continuidade até que esta ficasse pronta.
Mais uma vez, um dos anciãos se prontificou a continuar os
ensinamentos para a confecção da canoa. No primeiro dia, todos os
alunos, e não apenas os rapazes, foram até o local da floresta onde
estava a canoa. Nessa aula de campo, as meninas observaram e fizeram
seus relatórios, já os meninos foram aprendendo na prática. Cada um
tinha uma tarefa a cumprir e, para tanto, usava algum tipo de
ferramenta ou equipamento (como facão, martelinho, enxó,
motosserra). Os meninos se dedicaram quase uma semana à confecção
da canoa que, por fim, foi concluída. No desenho a seguir, o jovem
Jacson detalha as etapas para a confecção de uma canoa.
26
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Legenda: À esquerda a versão katxuyana da tamiriki, onde funciona a


escola. À direita, uma versão mais antiga da casa, modelo “waiwai”. Na
frente, o campo de futebol usado diariamente pelos moradores da
aldeia.
Figura 1 – Fotos das tamiriki6
Fonte: Acervo próprio, aldeia Santidade, 2015.

Os desenhos apresentados a seguir mostram etapas desse


saber ancestral (Figura 2) e a aparência geral da canoa ao final do
processo (Figura 3).

6 O processo de recuperação do processo construtivo da casa tradicional


tamiriki entre os Katxuyana foi discutido em minha tese de doutorado em
Memória Social / UNIRIO (Russi, 2014). Na figura 1, a casa à direita, que ficou
nos moldes desejados pelos moradores da aldeia Santidade, pois foi
construída com ajuda dos indígenas Wawai, foi desativada porque o teto
cedeu.
27
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Legenda: Texto – Arte, cultura e identidade: o trabalho de


construção da canoa – como fazer a canoa, quantos metros pode
fazer uma canoa grande. 1. Primeiro procura a árvore chamada de
piyu. Corta o canto, tronco 11 metros. Depois queima para abrir
mais. A canoa está pronta para viajar para Cachoeira Porteira e
caçar e pescar.
Figura 2 – Desenho do jovem Jacson: “Fazendo uma canoa”
Fonte: Acervo do Programa Educação Patrimonial em Oriximiná, aldeia
Santidade, 2015.

28
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Figura 3 – Desenho do jovem Josivan – aspecto final da canoa: “A nossa


canoa”
Fonte: Acervo do Programa Educação Patrimonial em Oriximiná, aldeia
Santidade, 2015.

Desenhos como estes e relatos que os rapazes, e também as


moças, apresentaram à comunidade serviram para que esses jovens
demonstrassem seu aprendizado. Os desenhos funcionaram também
como registro desta experiência, uma memória sobre a retomada deste
tipo de tecnologia. Num outro sentido, tais desenhos registraram os
próprios relatos dos velhos e aquilo que foram observando o ancião
fazer, um processo que alguns velhos só tinham em lembranças muito
remotas. Como os desenhos foram exibidos num mural da escola onde
os demais alunos puderam apreciar, inclusive às crianças pequenas
que não falam português, funcionaram ainda para compartilhar como
se dá o processo desse saber fazer antigo, dessa tecnologia katxuyana.

29
Ensaios sobre Memória – Volume 2

6 OS SABERES, OS FAZERES, AS MEMÓRIAS: À GUISA DE


CONCLUSÃO

A Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas defende um


conjunto de direitos a esses povos, que devem ser garantidos pelos
países-membros. O patrimônio cultural é um desses direitos. Como
afirmarmos anteriormente, a autovalorização cultural tem sido, para
muitos povos, uma importante estratégia política na defesa desses
direitos. As práticas educativas em etnoeducação evidenciam um
interessante percurso para a educação indígena, que pode contribuir
com essa perspectiva.
Algumas características da abordagem da etnoeducação nos
foram reveladas tanto pelos professores da escola, quanto pelos jovens,
ao final de mais um ano de projeto. Na avaliação sobre os projetos de
etnoeducação, eles destacaram alguns aspectos que consideraram
importantes: 1) o aprendizado fora da sala de aula; 2) a participação da
comunidade, especialmente dos mais velhos; 3) a percepção de que
errando também se aprende, ao longo do processo de pesquisa-
intervenção; 4) o grande envolvimento das crianças e de outros
estudantes da escola; 5) a escolha de temas sensíveis às demandas da
comunidade.
A participação de alguns anciãos da aldeia tem sido importante
em projetos como os de etnoeducação, por muitos motivos. Primeiro,
pelo próprio incentivo e protagonismo que eles têm nas ações de
valorização de sua cultura a partir de suas lembranças ou a partir da
análise das fotografias dos objetos dos museus, como foi o caso do
projeto aqui descrito. Segundo porque, em muitas ocasiões, eles
ajudam na comunicação com os estudantes, já que nem todos os jovens
compreendem bem o português, sua segunda língua.
Os velhos e as velhas participam não apenas como informantes.
Ao assumirem o papel de professores e professoras, eles compartilham
seus conhecimentos de diferentes maneiras, inclusive na própria
escola. Em algumas ocasiões, os estudantes os visitam em casa, em
outras, acompanham os anciãos em atividades fora da escola, que
chamamos de aula de campo.
Um dos velhos, o já referido João do Vale Pekiriruwa, tem sido
um grande incentivador para que antigas práticas culturais sejam
30
Ensaios sobre Memória – Volume 2

conhecidas pelos jovens. Não são apenas rememorações nostálgicas de


saberes e fazeres que não fazem mais sentido na atualidade, mas um
aprendizado que, atento às demandas contemporâneas da aldeia,
valoriza a própria cultura. Os jovens comparam e percebem, muitas
vezes, que alguns objetos dos não indígenas não são melhores se
comparados àqueles que os velhos faziam. As moças, por exemplo,
falaram que os potes de plástico usados para guardar líquidos não são
tão bons quanto os potes cerâmicos, que mantêm o líquido mais fresco
para beber.
É profundamente tocante o interesse dos jovens katxuyana em
aprender com os mais velhos e a mobilização da população da aldeia
para garantir a transmissão de saberes e fazeres, atualizando esses
saberes para a contemporaneidade.
A canoa conservada no acervo do museu da Dinamarca se
mostrou elemento potente para despertar memórias. O processo de
aprendizado dos jovens foi conduzido pelos anciãos e, no caso da
oficina de canoas, produziu miniaturas que se tornaram brinquedos
nas mãos das crianças, revestindo de novos significados os objetos
musealizados.
No Brasil contemporâneo, como apresentado no artigo,
vivemos tempos de retrocesso e ameaças aos direitos dos povos
indígenas. A morte de anciãos, como Honório Awaku Kaxuyana, traz
preocupações e tristeza ao povo Katxuyana. Há, ainda, muitos desafios
pela frente e projetos de educação de valorização de patrimônios
culturais, cujo protagonismo é dos próprios indígenas, podem
contribuir na defesa dos direitos desses povos.
Por fim, para Angela Amanakawa, importante articuladora
katxuyana, a geração de jovens adultos está “fazendo a sua parte”,
contribuindo no processo de reocupação de seu território. Segundo ela,
tais processos os tornam “[...] mais fortes e com a sensação de estarmos
no caminho certo nessa luta de retomar nossas casas e território.”
(Amanakawa apud Pereira, 2020, on-line).

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Ensaios sobre Memória – Volume 2

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36
Ensaios sobre Memória – Volume 2

MEMÓRIA SOBRE A PANDEMIA DA


GRIPE ESPANHOLA A COVID-19:
LEMBRAR E ESQUECER VIDAS EM JOGO

Lobelia da Silva Faceira


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-7295-4909

José Paulo de Morais Souza


Museu Penitenciário, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-8132-5912

Nívia Valença Barros


Universidade Federal Fluminense, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-0501-9371

1 INTRODUÇÃO

O capítulo se propõe a traçar uma linha de discussão entre as


duas Pandemias, a primeira denominada de Gripe Espanhola de 1918 e
a segunda COVID-19 de 2020, destacando as especificidades do
contexto prisional. Assim, buscamos pontos em que esses dois
momentos se tocam e conversam no tocante a traços sociais
emblemáticos de cada época, mas que reverberam do primeiro
momento assinalado até a atualidade.
Pensar duas pandemias e seus rebatimentos e atravessamentos
no contexto das prisões é pensar em processos de lembrança e
esquecimento. Ao pensar na prisão, suas contradições, ambivalências e
violações de direitos, por vezes, tentamos estudá-la e adjetivá-la numa
perspectiva interdisciplinar e múltipla.
É por ir atrás do interdisciplinar, das lembranças, do
esquecimento e dos restos, que a memória se diferencia dos demais
campos. É a partir dela que conseguimos construir um conhecimento
interdisciplinar e multifacetado que, longe de abalizar afirmativas e
certezas, nos leva por um caminho de significações que certamente se
voltará a novos questionamentos e pesquisas.

37
Ensaios sobre Memória – Volume 2

A memória social é uma construção processual, onde o sujeito


reconstrói o passado com base nas questões relacionadas à sua
subjetividade e sua perspectiva presente. Consequentemente, a
concepção de memória social não deve se restringir à esfera por meio
da qual uma sociedade representa para si mesma a articulação de seu
presente com o seu passado, ou seja, o modo pelo qual os sujeitos
sociais representam a si próprios e as suas relações sociais. A memória
social não deve se restringir ao campo das representações coletivas,
uma vez que a realidade social é um processo (constituído por tensões
e disputas) em constante movimento. (GONDAR, 2005).

Conceber a memória como processo não significa


excluir dele as representações coletivas, mas, de fato,
nele incluir a invenção e a produção do novo. Não
haveria memória sem criação: seu caráter repetidor
seria indissociável de sua atividade criativa; ao
reduzi-la a qualquer uma dessas dimensões,
perderíamos a riqueza do conceito. (Gondar, 2005, p.
26).

O capítulo analisa as duas pandemias e a política de saúde nas


prisões, compreendendo a memória social como um campo de estudo
dos processos dinâmicos e contraditórios da vida social, sendo
perpassado pelas redes de poderes, pela produção da lembrança e
esquecimento dos sujeitos sociais, pela identidade e diferenças dos
grupos sociais.
A Memória Social encontra-se inserida entre lutas e relações de
poder, caracterizando-se pelo embate de lembranças e esquecimentos
(GONDAR, 2005). A partir do campo da memória social, podemos
analisar as prisões como um espaço de disputa e embate de poder, no
qual o Estado define o que e quem deve ser lembrado, principalmente
aquele que está sob sua custódia.
Pensar a memória social no âmbito do sistema penitenciário
brasileiro é problematizar a ausência de ações do Estado no sentido de
preservar documentos, objetos e instituições, que retratam a memória
das prisões. Memória que é indispensável para dar visibilidade e
analisar as práticas punitivas, suas transformações e seus processos de
repetição da lógica disciplinar. Ao contrário, observamos a
38
Ensaios sobre Memória – Volume 2

desvalorização da documentação e acervo histórico, bem como o


processo de implosão ou abandono de construções históricas (as
primeiras prisões), constituindo processos de esquecimento.
O capítulo apresenta uma breve análise do contexto de pandemia
da Gripe Espanhola de 1918 e da COVID-19 de 2020 no contexto
prisional, enfatizando o campo de correlações de forças entre a
memória institucionalizada, oficial e a memória construída pelos
sujeitos sociais.
Para tanto, o capítulo está estruturado em três partes. Num
primeiro momento, abordamos brevemente a pandemia da Gripe
Espanhola e a memória social do centro de triagem e isolamento
Lazareto, inaugurado em 1886 na Ilha Grande, destacando os
processos de apagamento e esquecimento caracterizados pela ausência
de ações do Estado no sentido de enfrentamento da Gripe Espanhola e
também de preservação da memória do Lazareto e de outros dados e
documentos sobre as prisões neste período histórico.
Numa segunda seção, apresentamos uma análise da política de
saúde em espaços de privação de liberdade no cenário contemporâneo,
destacando os avanços efetivados a partir da configuração da Lei 7.210,
de 11 de julho de 1984 – denominada como Lei de Execuções Penais
(LEP) e os desafios da garantia do direito à saúde no âmbito da
execução penal.
A LEP é o instrumento legal que normatiza os direitos e deveres
dos presos, prevendo que o “tratamento” do preso no Brasil deve ser
realizado em condições, que permitam justa reparação do delito
cometido sem prejuízo da integridade física, mental e social do preso.
Para tanto, a legislação prevê o desenvolvimento de políticas sociais,
que possibilitem a garantia dos direitos humanos e sociais da
população carcerária, bem como o desenvolvimento das “condições de
retorno ao convívio social”.
O artigo 11 da LEP estabelece que a população carcerária tem
direito à assistência material, jurídica, religiosa, social, educacional e à
saúde; representando assim, no plano normativo uma inovação no
atendimento às necessidades sociais, jurídicas, religiosas e
educacionais dos presos, sendo os mesmos considerados legalmente
como sujeitos sociais e cidadãos.
Dentre os diversos direitos sociais da população carcerária, na
última seção, analisamos as contradições e mediações implícitas à
39
Ensaios sobre Memória – Volume 2

operacionalização da política setorial de saúde no âmbito da execução


penal, problematizando a perspectiva da universalidade, equidade e
integralidade da saúde nas prisões no contexto da pandemia da COVID-
19.

2 O LAZARETO E A GRIPE ESPANHOLA: RASTROS E


ESQUECIMENTOS.

Nietzsche (2003, p.7-8) relata que “o homem não pode esquecer


e por sempre se ver novamente preso ao que passou; por mais longe e
rápido que ele corra, a corrente corre junto”. As ações do passado
marcam de alguma forma nosso presente e, portanto, é de extrema
importância um olhar mais científico e nesse caso o ponto de apoio
deste artigo é a Memória Social. As ações do passado por vezes são
repetidas, reproduzidas e rememoradas, sendo privilegiada no campo
de correlações de forças da memória social a dimensão oficial e
institucional. Pensar as políticas de enfrentamento ou de não ação do
Estado com relação à Gripe Espanhola é rememorar o surgimento do
Lazareto, suas práticas punitivas e de isolamento.
Durante o império de D. Pedro II surgiu a necessidade de que um
Lazareto fosse construído, ou seja, uma espécie de hospital de
quarentena adequado ao tratamento de viajantes e imigrantes do
cólera-morbo, malária e outras doenças. Uma comissão foi constituída
para escolher o lugar apropriado para a construção do Lazareto e, após
sugestões, foi escolhida a Ilha Grande, pois apresentava as condições
necessárias de isolamento e habitação. A autorização de sua
construção deu-se em 06 de julho de 1884 (SANTIAGO et al., 2009).
Em 19 de novembro de 1884, a Coroa adquiriu de Alfredo
Guimarães a Fazenda do Holandês e, naquele mesmo ano, iniciaram-se
as obras cujo responsável foi o engenheiro Francisco de Paula Freitas e
seu ajudante, Henrique Álvares da Fonseca. A obra foi finalizada em
1886 e tiveram cuidado para dividir os alojamentos conforme as
classes dos navios (primeira, segunda e terceira classes), não
permitindo que se misturassem as classes. Para isso, aproveitaram parte
da construção da fazenda para os alojamentos. Os pavilhões de 1ª e 2ª
classes foram construídos a uma distância de 500m da orla marítima,
enquanto os de 3ª classe encontravam-se à beira-mar. O Lazareto

40
Ensaios sobre Memória – Volume 2

funcionou de 1886 a 1913. (SANTIAGO et al., 2009). Vale lembrar, nesse


contexto, das palavras de Foucault (1987, p. 139):

A vigilância médica das doenças e dos contágios é aí


solidária de toda uma série de outros controles [...]
Pouco a pouco um espaço administrativo e político
se articula em espaço terapêutico; tende a
individualizar os corpos, as doenças, os sintomas, as
vidas e as mortes; constitui um quadro real de
singularidades justapostas e cuidadosamente
distintas. Nasce da disciplina um espaço útil do
ponto de vista médico.

Assim, Foucault nos assevera o início das instituições de


controle, que surgem por meio das Escolas e dos Hospitais, por isso
transformar um hospital em prisão se deu de maneira natural. O
Lazareto possui as condições necessárias para uma prisão tendo em
vista o controle e a disciplina rígida, além do isolamento necessário
para a contenção das doenças infecciosas, o que de certa forma
contribuíram para a sua transformação em prisão.

Lazareto (Acervo Arquivo Nacional)

Pensar a divisão dos alojamentos em classes é evidenciar o


processo de hierarquização, subordinação e contradição das classes
sociais, sendo destinado as classes mais empobrecidas o pavilhão de
terceira classe, mais próximo do mar e com instalações mais
precarizadas.
41
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Para Goulart (2003, p. 34 e 35), o Lazareto da Ilha Grande era o


único do país e a prática da quarentena hospitalar tornava-se um
obstáculo às práticas comerciais e ao deslocamento da mão de obra.
Além disso, embora tenha sido uma das obras mais caras do período do
império, tendo em vista as acomodações da primeira classe, não
possuía instalações, nem material flutuante para a prática das
inspeções sanitárias aos navios que chegavam ao porto.
O Lazareto foi destinado à prisão militar preventiva em dois
momentos: entre 1925 e 1927, e de 1930 até 1945, durante o governo
de Getúlio Vargas. Tendo em vista as características arquitetônicas de
vigilância, o exército ficou responsável pela guarda dos prisioneiros,
sendo utilizado o prédio destinado à 3ª classe, cujas medidas eram de
55 metros em cada lateral, possuindo diferentes salas e salões e com
área interna subdividida em dois pátios cercados por muros.
Em 1932, foram presos os que participaram da revolta
Constitucionalista. Com o ingresso desses novos presos o efetivo
carcerário atingiu aproximadamente dois mil presos.

Pavilhões destinados aos passageiros de terceira classe no Lazareto


(Acervo Arquivo Nacional)

No ano de 1942 foi transferida para o espaço físico do Lazareto a


Colônia Penal Cândido Mendes, que existiu até 1962 quando, por
ordem do governador Carlos Lacerda, o prédio do antigo Lazareto foi
implodido. (SANTIAGO et al., 2009).
Rememorar o Lazareto é problematizar duas questões centrais:
primeiro, a ação de enfrentar questões de saúde com práticas de
isolamento, distanciamento, processos de disciplina e padronização de
42
Ensaios sobre Memória – Volume 2

hábitos e comportamentos, sendo perpassada como destaca Foucault


(1987) por uma lógica de controle social. Uma segunda questão é
destacar a ausência da preservação dos espaços de memória. O prédio
do Lazareto constituía um espaço de memória da prisão, de práticas de
saúde e controle social do final do século XIX e do século XX, que foram
implodidas, apagadas e esquecidas.
Atualmente encontramos as ruínas em meio a vegetação que se
alastra pelo local, onde fora o Lazareto e depois Colônia Penal Cândido
Mendes. Os visitantes e turistas que se dirigirem à Praia Preta (Ilha
Grande/ Rio de Janeiro) podem apreciar as ruínas que ainda resistem
ao tempo, mas pouco ou quase nada sabem sobre o local, a história das
prisões e suas memórias.

Ruínas da Colônia Penal Cândido Mendes (Acervo Museu Penitenciário


RJ)

Esses espaços, quase todos destruídos, são relegados ao


esquecimento pelas autoridades instituídas de forma que “também
podem ser lidos como patrimônios dissonantes, carregados de embates
éticos, oscilando entre tentativas de preservação e a condenação ao
esquecimento”. (BORGES. 2018, p. 312.) Assim, entre o espaço de
condenação e a preservação desses espaços de memória há uma lacuna
imensa que relega as antigas construções prisionais a meros vestígios
de um período e suas punições institucionais, algo que de fato não se
queira lembrar e por isso destinados ao apagamento.
No entanto, esquecer é mais político do que natural e mais
institucional do que social. Há uma condução em certos tipos de
esquecimento ou uma tentativa de apagamento realizado pelos órgãos
43
Ensaios sobre Memória – Volume 2

estatais como uma forma de controle, mas esse controle nem sempre é
efetivo, a humanidade reage a essas tentativas.

É perfeitamente possível que, por meio da


socialização política, ou da socialização histórica,
ocorra um fenômeno de projeção ou identificação
com determinado passado, tão forte que podemos
falar numa memória quase que herdada, podem
existir acontecimentos regionais que traumatizaram
tanto, marcaram tanto uma região ou um grupo, que
sua memória pode ser transmitida ao longo dos
séculos com altíssimo grau de identificação. (Pollak,
1992, p. 201)

Para Gondar (2000), quando observamos a memória no presente


é uma forma de pensar o passado a partir do futuro que se almeja.
Dessa forma, quando observamos antigas memórias trazemos reflexão
e aprendizado para o presente construindo um futuro com mais
experiências e possibilidades de acerto. Ao inverso, se não
aprendermos com o passado, somos induzidos ao acaso, nos colocando
frente ao inesperado e passando pela mesma experiência avassaladora
novamente, sem sabermos como que passamos por ela anteriormente.
Segundo Gondar (2000), esquecemos não somente a segregação,
mas a maneira pelas quais segregamos, e desta forma, o esquecimento
torna-se um fenômeno natural e ainda, segundo a autora, o tempo
passa a ser visto como um caminho na direção do idêntico, da
mesmidade e da homogeneidade, o que de certa forma deixa a
sociedade confortável em seu processo de punição, uma vez que o
apagamento é total.
Os processos de apagamento e esquecimento evidenciados na
ação do Estado com relação ao Lazareto se repetem quando analisamos
as políticas de enfrentamento à Febre Espanhola (1918). A Pandemia
de 1918 foi um fato marcante que deixou milhares de mortes, mas que
a extensão da doença foi apagada da "Grande Memória Popular" numa
proporção que ficamos apenas com rastros dessas memórias que
surgem ao acaso e assim, recaímos no mesmo erro de não tomar as
devidas precauções aprendidas no passado com erros e acertos,
“pagando um alto preço” com vidas humanas.
44
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Nesse sentido cabe aqui “lançarmos luz” sobre esse passado para
que possamos trazer algumas reflexões. Em 1918 uma pandemia de
gripe se abateu sobre o mundo e o número de mortos foi maior do que
os da Primeira e Segunda Guerra Mundial, da Guerra da Coréia e Vietnã
juntas e assim a doença foi denominada de influenza espanhola, gripe
espanhola ou espanhola. (GOULART, 2003, p. 12 e 13). Segundo
Monteleone7 tivemos três grandes ondas de gripe. Temos os primeiros
casos observados em março de 1918 no Kansas, Estados Unidos, sendo
acometidos pela moléstia os soldados baseados num campo de
treinamento que se preparavam para irem lutar na Primeira Guerra
Mundial. Num segundo momento, mais letal, a gripe atingiu a Europa,
matando soldados nas trincheiras e a população civil nas cidades. No
que diz respeito a denominação da Gripe, esta se deu tendo em vista
que a imprensa espanhola divulgou o elevado número de casos da
doença, provavelmente em Sam Sebatián (naquele país) e por isso
recebeu o nome de Gripe Espanhola. (GOULART, 2003, p. 12 e 13).
No Brasil a gripe chega em setembro de 1918, mas os médicos da
época atestam como simples resfriado coletivo (GOULART, 2003, p.
32). Nesse sentido, uma vez que a virulência da gripe foi abafada tento
em vista a Primeira Guerra e as possíveis consequências de uma notícia
desmotivadora para o campo de batalha, a doença que para muitos
viria a ser fatal não foi amplamente divulgada. Ainda segundo a autora,
a documentação oficial “lança pouca luz” as informações sobre a
Pandemia e quando informa atenua a moléstia. Sendo assim, uma vez
que não ocorreu uma prevenção de fato, os navios que aqui chegavam
com os doentes não passavam pelo Lazareto e a função deste que seria
a quarentena dos doentes não ocorreu.
Interessante ressaltar que diferente da COVID-19, a Gripe
Espanhola afetava em um número maior os mais jovens, entre 20 e 40
anos de idade. Um olhar da ciência hoje sobre esse fenômeno identifica
que o corpo dos infectados recebia uma elevada dose de resposta
quando contraía a doença, assim essa reação foi denominada de
“tempestade de citocina”, quando o corpo reage de maneira extrema a
um vírus, é uma hiper-reação do sistema imunológico. Os indivíduos

7https://www.brasildefato.com.br/2020/04/03/gripe-espanhola-a-

pandemia-esquecida-que-varreu-o-mundo-em-1918. Acessado em
29/07/2020 às 14:36
45
Ensaios sobre Memória – Volume 2

que possuíam um sistema imunológico deficiente, como os mais velhos


e as crianças morriam menos.
Com o avançar da doença no final da Pandemia, os corpos eram
amontoados em caminhões e segundo (GOULART, 2003, p. 51 e 52)
entre eles ocorriam de alguns estarem vivos e enterrados em valas
comuns. Trabalhadores foram contratados para os enterros, mas
muitos foram acometidos pela doença, e por fim o Estado retirou os
presos condenados da Casa de Correção para essa tarefa, o que causou
muito alarde por parte da imprensa e da população. Cada preso
receberia cinco mil réis por dia de trabalho como coveiro.

Presos da Casa de Correção da Corte destacados como coveiros no


Caju. A Careta. Nº 542. 09/11/1918

Ao analisar o contexto da Gripe Espanhola no cenário brasileiro,


observamos a falta de transparência nas informações sobre os
números de casos; o crescimento diário do número de enfermos; a
mudança constante do cotidiano das cidades; o fechamento de bancos
por falta de funcionários saudáveis; a diminuição do número de trens e
transportes públicos; a diminuição do número de médicos atendendo
em hospitais devido à contaminação; e as subnotificações, que geram
informações imprecisas, desencontradas e que respaldam a ineficácia e
ineficiência das políticas públicas.
Novamente evidenciamos a ausência de uma intervenção eficaz
do Estado e, principalmente, a adoção de uma política caracterizada
pela não ação ou pelo enfrentamento de uma pandemia como uma
“simples gripe”, ocasionando contaminação e aumento no número de
46
Ensaios sobre Memória – Volume 2

mortes. A subnotificação, a falta de acesso as informações e


transparência nas ações perpassam este cenário.
Os dados sobre o enfrentamento da Gripe Espanhola nas prisões
limitam-se as estratégias de isolamento dos casos identificados e a
utilização da força de trabalho dos presos em atividades ocupacionais
como coveiros, evidenciando a ausência do debate da saúde como
direito social da população carcerária e como objeto da política pública
de execução penal.
A partir das contribuições da memória social, analisamos que as
instituições que compõem a sociedade – dentre elas as prisões – não
são atemporais e a-espaciais. Isso significa que, primeiro: elas lançam
mão, com maior ou menor intensidade, de protocolos memorizados e
reproduzidos social e historicamente, que mantêm a sua existência e
reprodução ao longo do tempo. Se isso não ocorresse, não
presenciaríamos a manutenção de uma instituição, mas sim o seu
esfacelamento e a edificação de outra que funcionasse e assumisse o
seu lugar. Assim, os laços que ela estabelece com o passado funciona
como um fio de temporalidade, que liga as ações do presente com o
antes e, mais do que isso, conecta-se ao depois, ao futuro. Se a
instituição apresenta função/objetivo, ela atua de forma a alcançar
seus produtos a posteriori. Isso não quer dizer que estes espaços não
passam por processos de transformação e metamorfose. Na verdade,
sendo imprescindível manter a sua legitimidade – atrelada a sua
funcionalidade – é impreterível que estes lugares sociais abarquem as
novas demandas e necessidades que atravessam a vida social.
A instituição prisão faz parte do meio que ela está inserida.
Destarte, não é possível a concebermos sem considerar as tramas que
atravessam as relações sociais, econômicas e culturais que conformam
uma determinada realidade, configuram as relações e instituições que
ali se estabelecem. Esses elementos funcionam como linhas que
bordam o tecido social, criando formas variadas que conformam a
sociedade, cada qual com o seu contorno. Estas relações, que também
não se fazem descoladas de temporalidade – mas que estão em
constante e complexo movimento – influem nas relações e
subjetividades.
Pensar a categoria de memória social no âmbito das prisões e da
política de saúde no contexto da execução penal é evidenciar os
avanços que o aparato legal desenvolve na concepção de direitos
47
Ensaios sobre Memória – Volume 2

sociais e políticas sociais nas prisões, mas observar rastros da


concepção funcionalista e conservadora na forma como o Estado se
comporta e intervém perante uma pandemia. Neste sentido, na
próxima seção apresentamos os avanços e desafios que perpassam a
política de saúde no sistema penitenciário.

3 A POLÍTICA DE SAÚDE EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO DE


LIBERDADE NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO.

A Lei de Execuções Penais (LEP) e as normativas no âmbito do


sistema penitenciário estabelece, no seu artigo 11, o direito dos presos
às formas de assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social
e religiosa. Nesse sentido, a LEP ressalta um novo olhar sobre esses
indivíduos como sujeitos e cidadãos de direitos, considerando os
elementos necessários a reconstrução de suas vidas.
A assistência, anunciada na LEP como direito, é ressaltada na
perspectiva de efetivar ações voltadas à recuperação dos presos e a
garantia dos serviços sociais, que possibilitam a inclusão social do
indivíduo, sendo considerada, como ação indispensável ao “tratamento
penal”, colocando o preso na condição ambígua de cidadão e, ao
mesmo tempo, “sujeito em disfunção social”.
As políticas sociais desenvolvem-se na sociedade capitalista,
especificamente, a partir da Revolução Industrial como uma maneira
de assegurar à população o acesso a bens e serviços indispensáveis à
satisfação de suas necessidades básicas de sobrevivência, além de
mantê-la enquanto mercado de consumo mínimo.
Nesse sentido, as políticas sociais definidas no texto legal da LEP
representam estratégias de atendimento às necessidades básicas dos
presos, no processo de cumprimento da pena, caracterizadas
principalmente pela assistência material, jurídica e à saúde.
Por outro lado, as políticas sociais no cenário de execução penal
efetivam ações e atendimentos necessários à perspectiva de
“ressocialização”, “readaptação” e “reinserção social” dos indivíduos
privados de liberdade. Ou seja, a legislação apresenta uma concepção
funcionalista concebendo o indivíduo em privação de liberdade como
um sujeito que está em disfunção social, sendo necessário efetivar sua
reabilitação e ressocialização por meio de diversas ações educativas e
punitivas executadas no âmbito prisional.
48
Ensaios sobre Memória – Volume 2

O acesso e a efetivação dos direitos sociais no campo da execução


penal configuram-se, por um lado, como a reprodução de processos de
controle social e, por outro, como a possibilidade de elaboração de uma
cultura própria dos diversos segmentos sociais. Destacando-se o papel
da educação, religião e assistência social no acesso do preso à
informação, conhecimentos e habilidades imprescindíveis para o
desenvolvimento de uma visão critica da realidade. Logo, o acesso aos
direitos sociais – na dimensão ideológica - consistem num contexto de
múltiplas contradições e num campo de disputa de poder e de luta
hegemônica.
Outra contradição presente no texto legal e evidenciado no
cotidiano prisional consiste no binômio direito / beneficio, ou seja, os
direitos sociais, previstos na LEP, são efetivados no campo empírico da
execução penal como ações de benemerência aos presos, que possuem
bom índice de comportamento. Nesse sentido, o direito não adquire
status de cidadania, uma vez que sua operacionalização depende da
condição e índice de disciplina dos presos.
As políticas públicas são formuladas no sentido de atender as
legítimas demandas e necessidades sociais. Logo, a LEP estabelece as
assistências considerando o atendimento às necessidades sociais dos
presos, com vistas ao cumprimento da pena de reclusão. Nesse sentido,
as prisões não constituem espaços de efetivação da cidadania plena,
mas um lugar de atendimentos pragmáticos, emergenciais e
compensatórios de carências. O conceito de “cidadania regulada”
construído por Santos (1979) ilustra este pragmatismo, uma vez que
através da legislação se reconhece o status de cidadão, “cujas raízes se
encontram não em um código de valores políticos, mas em um sistema de
estratificação ocupacional e que, ademais, tal sistema de estratificação
ocupacional é definido por norma legal” (Santos, 1979, p. 68).
A condição meritocrática e particularista de atenção às
necessidades sociais dos presos retira sua condição de cidadão, uma
vez que o critério de acessibilidade, maior necessidade ou mesmo o
critério positivista do bom comportamento, restringe o acesso da
população carcerária aos bens e serviços previstos na LEP.
As políticas sociais, consideradas por Draibe (1996) como
meritocráticas e particularistas também são perpassadas por um
excesso de burocrativismo estatal. No campo da execução penal, o
preso para ter acesso aos direitos sociais trilha caminhos burocráticos
49
Ensaios sobre Memória – Volume 2

diversos, caracterizados pelo preenchimento de fichas e formulários,


pelo condicionamento, custódia e disciplinamento do tempo de espera
ou do tempo do atendimento, sendo o mesmo definido previamente
pela direção da unidade prisional ou pelos profissionais deste campo.
Outra característica das políticas sociais observadas no campo da
execução penal consiste nos processos de mercantilização e
refilantropização das políticas públicas no contexto neoliberal. A Lei de
Execução Penal evidencia que a responsabilidade pela execução das
penas privativas de liberdade é intrínseca ao Estado, devendo este
recorrer à colaboração da sociedade. Nesse sentido, o processo de
custódia e tratamento do preso, apesar de ser considerado
normativamente uma prerrogativa do Estado, pode ser executado de
maneira descentralizada pelas instâncias públicas, privadas e pelo
terceiro setor.
Existem estados brasileiros, como o Paraná e Minas Gerais, que
privatizaram o sistema penitenciário, repassando as responsabilidades
e intervenção no campo da execução penal para empresas privadas.
Estes rearranjos da execução das políticas sociais são perpassados pela
ideologia da ineficiência do Estado e da eficiência, eficácia e efetividade
da prestação de serviços pelo mercado. Mas, intrinsecamente,
configuram a expansão do mercado lucrativo e de acumulação do
capital para a área social. (Motta, 1995).
No estado do Rio de Janeiro é adotada, pela administração
penitenciária, a gestão mista de serviços, realizada diretamente pela
Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP/RJ) e por
empresas ou cooperativas terceirizadas. A assistência ao trabalho e o
desenvolvimento de atividades laborativas são desenvolvidas no
interior da unidade prisional por empresas privadas. Essas empresas
instalam a infraestrutura necessária à sua produção e utilizam a força
de trabalho do preso, reduzindo os custos da produção e
caracterizando o processo de mercantilização das políticas sociais.
As atividades e cursos de profissionalização (assistência à
educação), bem como a assistência religiosa e material são realizadas
através de parcerias do Estado com organizações não governamentais,
instituições religiosas e outras, que configuram o terceiro setor;
caracterizando o processo de refilantropização das políticas sociais. Os
presos, muitas vezes, obtêm assistência material através da sua
inserção numa atividade religiosa, reforçando o caráter filantrópico,
50
Ensaios sobre Memória – Volume 2

individualista e meritocrático do atendimento às necessidades do


preso, mediante sua inserção e participação religiosa.
A LEP não ganhou a efetividade necessária à garantia e ao acesso
aos direitos da população presa. Tal efetividade, na verdade, seria
configurada a partir da implantação de uma política penitenciária
contínua, sob a responsabilidade do Estado (nos três níveis: federal,
estadual e municipal), garantindo a intersetorialidade e integralidade
das políticas públicas.
O campo da execução penal é perpassado pelas mesmas
características e contradições das políticas sociais brasileiras, sendo
objeto deste artigo analisar brevemente as estratégias de
enfrentamento à pandemia em 2020 no âmbito prisional.

3.1. A política de saúde e as estratégias de enfrentamento ao


COVID-19 nas prisões.

A proposta desta seção é pensar as contradições no âmbito da


execução penal, problematizando as prisões como espaço de custódia e
“tratamento”, como esfera de privação de liberdade e de efetivação de
políticas públicas de atendimento à população carcerária.
O Modelo de Gestão Penitenciário (DEPEN, 2016) e a Lei de
Execução Penal (LEP) estabelecem que o preso deve ter direito à
assistência médica integral, incluindo especialidades como a saúde da
mulher. No artigo 14 - da seção III de Assistência à Saúde - da Lei de
Execuções Penais consta que a assistência à saúde do preso possui
caráter preventivo e curativo, compreendendo atendimento médico,
farmacêutico e odontológico.
A legislação prevê ainda a integralidade entre as unidades de
saúde em espaços prisionais e a rede de hospitais do Sistema Único de
Saúde (SUS), garantindo a universalidade e integralidade do
atendimento de saúde da população carcerária. Ou seja, caso não haja
instalações, remédios e atendimentos médicos no sistema
penitenciário, o preso pode ser transferido e atendido por qualquer
hospital da rede SUS.
No que tange às condições de saúde em prisões, o Relatório do
Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime em parceria com a
Organização Mundial de Saúde (UNODC & OMS, 2013, 02) evidencia
que a incidência de transtornos mentais e a transmissão de doenças
51
Ensaios sobre Memória – Volume 2

infecto contagiosas têm uma taxa significativamente maior na


população carcerária do que na população em geral.
Especificamente no Brasil, o Informe Mundial sobre os Direitos
Humanos no Mundo (Edição 2016), apresentado pela Human Rights
Watch, destaca que a incidência de HIV nas prisões é 60 vezes maior
que no restante da população, ao passo que essa mesma relação é da
ordem de 40 vezes mais para os casos de tuberculose.
Ademais, é importante lembrar que muitas pessoas chegam às
prisões adoecidas e, por vezes, sem o atendimento da Política de Saúde,
que também está precarizada e focalizada. Desse modo, segundo o
Modelo de Gestão para a Política Prisional (DEPEN, 2016) é de suma
relevância que os presos sejam submetidos a exames de saúde antes de
serem acautelados, a fim de mapearem as doenças mais comuns dentro
desses estabelecimentos, evitarem contágio de doenças
infectocontagiosas e garantirem assistência médica.
Segundo o Modelo de Gestão para a Política Prisional (2016), o
Estado assume o dever de garantir a proteção social dos apenados:

Como a instituição estatal tem absoluta tutela


sobre as pessoas que ali estão por determinação
judicial, o estabelecimento prisional deve também
ser compreendido como um espaço de proteção
social: proteção para o sujeito em privação de
liberdade, ao qual devem ser garantidos a vida e
todos os demais direitos consubstanciados em
normas e leis; proteção para a sociedade, uma vez
que esta, ao produzir as penas e as prisões, optou
por assumir que aqueles que são considerados
agressores das normas e leis devem ser
responsabilizados e ter seu convívio social
restringido; proteção para o próprio Estado, uma
vez que, ao assegurar direitos e assistências, o
Estado coloca em evidência seu papel de
regulador e mediador das relações sociais,
legitimando a si e às leis que o regem ,regem a
sociedade e regem as penas e punições. (DEPEN,
2016, 92)

52
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Embora tenhamos esse reconhecimento do papel do Estado na


garantia da proteção social dos presos, os dados do Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias: atualização julho de 2017
(INFOPEN, 2019), mostram uma escassez de recursos humanos e
materiais para a plena execução das Políticas de Saúde no âmbito
prisional. As instituições prisionais brasileiras se encontram em
condições de extrema insalubridade, superlotação e precarização.
O Estado do Rio de Janeiro tem 52 Unidades prisionais e cerca de
51.029 pessoas presas (INFOPEN, 2019). Apesar das recomendações
do Modelo de Gestão da Política Prisional (2016) e da LEP, nas
unidades prisionais do Rio de Janeiro: (i) 36% possuem sala de coleta
de material para laboratório; (ii) 10% das prisões não possuem
consultório médico; (iii) nenhuma unidade prisional possui enfermaria
com solário; (iv) 22% são aparelhadas com celas de observação; (v)
há apenas 21 médicos de clínica-geral, 4 médicos ginecologistas, 14
médicos psiquiátricos, 11 médicos de outras especialidades e 72
enfermeiros. Diante desses dados, fica evidente a precarização,
seletividade e focalização da Política Setorial de Saúde nas prisões do
Rio de Janeiro.
O Relatório do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à
tortura (09/06/2020) destaca que em 5 meses (01/01/2020 a
08/06/2020) cerca de 82 presos morreram no sistema penitenciário
do estado do Rio de Janeiro, dos quais 12 morreram por coronavírus e
15 por síndrome respiratória aguda grave (SRAG). O referido relatório
destaca que os maiores entraves ao enfrentamento do COVID-19 nas
prisões são caracterizados pela ausência ou controle de água, ausência
de itens de higiene e atendimento médico especializado, falta de
informação, problema no registro de óbitos, superlotação,
incomunicabilidade, ausência de vagas na rede (SUS). Esclarecemos
que a ausência de atendimento médico se caracteriza não apenas pela
ausência de infraestrutura e recursos humanos nas unidades
prisionais, mas pela violação de direitos e violência que, por vezes,
acontece na transferência e escolta dos presos para a rede de saúde
pública. Muitos presos relatam – às instâncias de controle social – que
preferem não comunicar seus problemas de saúde e demandar
atendimento médico, em função do medo de serem vítimas de violência
física durante a escolta.

53
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Apesar das denúncias de organismos nacionais e internacionais


no âmbito da violação de direitos nas prisões, grande parte da
população brasileira reafirma a concepção de que o indivíduo, que
cometeu um delito deve ser executado, punido e cumprir penas de
privação de liberdade (longas) em instituições totalmente
precarizadas. Retornando ao exemplo do direito à saúde, entre março e
maio de 2020, cerca de 2,5 mil presos receberam uma forma
alternativa de cumprimento da pena, como regime domiciliar e
monitoração eletrônica, em função da Recomendação n. 62/2020,
aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que prevê a
reavaliação emergencial de prisões para pessoas de grupo de risco.
Esta ação do CNJ efetivada no sentido de garantir o direito à saúde e de
incentivar medidas alternativas ao cumprimento da pena privativa de
liberdade foi amplamente criticada pela população, que ressalta a
necessidade constante de punição, sofrimento e exclusão destes
sujeitos.
Estes exemplos evidenciam a reprodução de uma memória
oficializada e institucionalizada, que enfatiza os aparatos punitivos, de
isolamento e apagamento; descartando, dissimulando e invisibilizando
os avanços na perspectiva de direitos e exercício da cidadania.
Historicamente, as prisões brasileiras se configuram como
espaços de violação de direitos humanos e sociais, insalubridade e
precarização dos serviços. A atual crise mundial causada pela COVID-
19 apenas agrava problemas já existentes no contexto prisional
brasileiro, como a seletividade e precarização da execução da política
de saúde.
A COVID-19 (Coronavirus Disease 2019) é uma doença causada
pelo coronavírus da síndrome aguda respiratória grave 2 (SARS-CoV-
2), sendo transmitida através de gotículas produzidas nas vias
respiratórias das pessoas infectadas. A Organização Mundial de Saúde
considera como grupo de risco os idosos e os indivíduos com doenças
crônicas graves, como doenças cardiovasculares, diabetes ou doenças
pulmonares.
A COVID-19 foi identificada pela primeira vez em seres humanos
em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, na China. O surto inicial
deu origem a uma pandemia que até a data de 15 de agosto de 2020
tinha resultado em 21.054.220 casos confirmados e 762.262 mortes
em todo o mundo. A doença não possui ainda cura ou mecanismos de
54
Ensaios sobre Memória – Volume 2

prevenção (como vacinas), destacando-se entre as medidas de


prevenção a lavagem frequente das mãos e o distanciamento social.
Segundo os dados disponibilizados pelo Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN) o Brasil possui uma população
carcerária de 726.354 presos, apresentando 1.208 casos suspeitos de
COVID-19, 5.022 casos confirmados, 63 óbitos e 3.070 indivíduos
recuperados. No Rio de Janeiro, a população carcerária é de 50.822
presos, apresentando 55 casos suspeitos; 32 casos confirmados, 12
óbitos e 21 presos recuperados (Dados do DEPEN de 06/07/2020).
O site do DEPEN possui um mapa de monitoramento diário da
doença nas prisões brasileiras e as estratégias de enfrentamento a
COVID-19, destacando as seguintes medidas: a restrição de entrada e
suspensão das visitas; atendimento de advogados e defensoria pública;
o isolamento de casos sintomáticos, presos maiores de 60 anos ou com
doenças crônicas; a triagem nas unidades prisionais (antes do
ingresso); a Recomendação n. 62/2020 do Conselho Nacional de
Justiça; a Produção de notas técnicas e manuais orientadores; a
distribuição de 87.000 Kits de testes rápidos – (custo de 11,2 milhões
de reais), a distribuição de equipamentos individuais (11 milhões de
reais); o apoio técnico de médico infectologista e epidemiologista; e a
assepsia diária nas celas (Dados do DEPEN de 06/07/2020).
Ressaltamos que apesar do DEPEN divulgar as medidas de
prevenção e enfrentamento a COVID-19, até o dia 06/07/2020 apenas
17.095 testes foram realizados num total de 726.354 presos. Logo,
problematizamos a repetição e rememoração da ausência de
informações precisas, a subnotificação, a ausência de políticas públicas
e de ações de enfrentamento. Questões que foram vivenciadas em 1918
com a pandemia da Gripe Espanhola são rememoradas e reproduzidas
em 2020 na pandemia da COVID-19.
As medidas de combate ao coronavírus efetivadas pelo DEPEN e
pelas secretarias estaduais de administração penitenciárias por um
lado objetivam impedir a intensificação do contágio, mas por outro,
evidenciam contradições e violações de direitos.
Uma das medidas efetivadas no sistema penitenciário do Rio de
Janeiro foi a restrição de entrada de advogados, assistentes sociais,
psicólogos e da defensoria pública; bem como a suspensão das visitas
de familiares. Problematizamos que essas medidas ressaltam o caráter
de aprisionamento e isolamento dos presos, que passam a ficar
55
Ensaios sobre Memória – Volume 2

distanciados socialmente de seus familiares e dos profissionais


(advogados, assistentes sociais e psicólogos), que no âmbito prisional,
viabilizam espaços de escuta, diálogo e acesso aos direitos sociais.
Outra medida recomendada pelo DEPEN é o isolamento de casos
sintomáticos de presos maiores de 60 anos ou com doenças crônicas.
Ressaltamos que o sistema penitenciário brasileiro possui 423.242
vagas e 726.354 presos. Do total da população carcerária, cerca de 250
mil têm algum tipo de doença. O Brasil ocupa o terceiro lugar no
ranking mundial de países que mais prendem no mundo, ficando atrás
apenas dos EUA e da China. Como garantir o isolamento preventivo
num contexto de superlotação? Como realizar um isolamento
preventivo numa cela projetada como espaço de castigo e punição?
O encarceramento em massa segue a lógica da seletividade penal,
ou seja, a população carcerária brasileira é uma população jovem,
negra e pobre, cujas condições de existência já a destituíram do
usufruto de bens, serviços e riquezas que podem ser produzidos pela
sociedade.
Os desafios da garantia de direitos da população carcerária
abrangem não apenas a operacionalização das normatizações previstas
na LEP, mas a efetivação da integralidade e intersetorialidade das
políticas públicas e, principalmente, a necessidade de colocar em
debate as medidas alternativas ao encarceramento massificado.
Pensar a política de saúde nas prisões brasileiras é evidenciar a
ausência, invisibilidade ou inconsistência dos dados oficiais, sendo de
grande importância a realização de pesquisas para desvelar a
realidade, subsidiar um debate crítico e o planejamento de novas
políticas públicas, ressaltando o desafio da garantia de direitos à saúde,
educação, habitação, trabalho, assistência e previdência. A pandemia
da COVID-19 evidenciou a necessidade premente dessas políticas no
âmbito prisional e da sociedade brasileira.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como aprender com os erros do passado? Essa pergunta se faz


pertinente ainda mais se pensarmos que milhares de vidas foram
ceifadas e continuam sendo perdidas ainda hoje. Um olhar mais
sensível para o passado poderia, provavelmente, nos levar a outra

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Ensaios sobre Memória – Volume 2

linha de raciocínio, no que diz respeito a prevenção de acontecimentos


menos traumáticos.
De acordo com Gognebim (2009, p. 70) é por meio do
desmoronamento da tradição que teremos uma retomada inventiva.
Assim, faz-se necessário repensarmos a tradição de não olharmos para
o passado com um olhar crítico e de aprendizado, evitando assim as
repetições de traços que podem ser efetivamente evitados.
A humanidade tem um olhar de desvalorização sobre o passado,
tal como um processo evolutivo. Pensa na tecnologia como um avanço
sine qua non e que o presente está mais aprimorado, deixando de se
beneficiar e aprender com as experiências únicas que tivemos
enquanto sociedade. Consequentemente, vivenciamos a reprodução e
repetição de problemas solucionados no passado.
Desvelar esse passado não é fácil, mas podemos utilizar o campo
da memória social como fonte de subsídios e arcabouços teóricos
necessários para o processo de criação e construção de determinado
passado fragmentado, mutilado e, por vezes, apagado.
Quem sabe um dia as sociedades encontrem seu futuro por meio
de um olhar mais atento para o passado que foi palco dos nossos
ancestrais, de tal sorte que possamos amadurecer enquanto civilização
e desfrutar da construção de um presente melhor e mais justo.

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Ensaios sobre Memória – Volume 2

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Ensaios sobre Memória – Volume 2

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59
Ensaios sobre Memória – Volume 2

MEMÓRIAS TECIDAS PELA PRECARIEDADE E PELA


VULNERABILIDADE EM VIDAS EXPOSTAS
A SITUAÇÕES EXTREMAS

Diana de Souza Pinto


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
https://orcid.org/0000-0003 4464-9103

Francisco Ramos de Farias


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
https://orcid.org/ 0000-0002-2966-077X

1 AS SENDAS DO UNIVERSO DA PRECARIEDADE

Refletir sobre os inúmeros traçados produzidos no percurso de


pessoas diante da exposição a situações extremas que põem à prova os
seus recursos subjetivos de suportabilidade, ao mesmo tempo em que
também acentuam a vulnerabilidade, não é tarefa fácil. A situação
assume contornos mais graves quando estamos na esfera das ações
humanas decorrentes do descaso, do ódio, da indiferença, do
descompromisso e de outras expressões que não reconhecem a vida
como o valor inestimável de que dispõe qualquer ser humano.
A exposição de pessoas que são, pelas injunções nas quais vivem,
obrigadas a atravessar situações extremas deixa rastros que tracejam
uma história do percurso de vida, podendo ter uma conotação positiva,
na medida em que se convertem em esteios para auxiliar as pessoas a
se confrontarem com situações de mesma naturezas e similares.
Também podem funcionar, de forma negativa, quando concorrem para
a produção de estados de impotência e aniquilamento em decorrência
do esgarçamento dos suportes subjetivos. De uma maneira ou de outra,
estamos diante de um processo de construção de memória que traz as
marcas da travessia de pessoas por situações mediadas pela violência.
Acentuar as condições de precariedade e de vulnerabilidade, pelos
mais diferentes motivos, são formas de imposição da violência,
principalmente pelo abalo e pela destruição quase completa da
confiança que as pessoas têm em si mesmas. Em certo sentido, uma das

60
Ensaios sobre Memória – Volume 2

formas mais eficazes de minar as resistências das pessoas, de um


coletivo ou de um povo, consiste na propagação de estratégias e ações
que façam as pessoas acreditarem que não confiam mais em si mesmas
nem nos outros. A adoção de uma estratégia dessa natureza pode ser
considerada como o conjunto de manobras utilizado por políticas
estatais na distribuição da precariedade. Em muitas das estratégias de
intimidação e controle, em situações extremas de vida, como a
exposição à violência, sem a intervenção do Estado para proteção, o
resultado que mais se destaca é a descrença nos agentes do Estado que
deveriam encarregar-se da proteção e segurança e, por extensão, a
perda da confiança em si mesmas. Devemos salientar que a confiança é
um dos vetores, de cabal importância, para que as pessoas vivam em
sociedade, mesmo que, nos tempos atuais em razão de inúmeros
acontecimentos, a vida tenha sofrido profunda transformação, não
apenas na naturalização da violência como também no tocante ao seu
monopólio. A esse respeito, vale lembrar a advertência de Reemtsma
(2011, p. 33) de que “o início da modernidade significou uma
transformação do laço social que é a confiança”.
Com bastante frequência, determinadas políticas estatais
funcionam para a produção de insegurança quando falham ou se
omitem em termos da assistência necessária à manutenção das
necessidades vitais. Desse cenário de violência que põe em xeque os
aspectos concernentes à precariedade, decorre uma separação nítida
entre vidas que são protegidas e vidas que são expostas a todos os
tipos de infortúnios. As vidas protegidas contam com suportes na
travessia de situações difíceis e conseguem sair delas sem grandes
desgastes subjetivos, enquanto que as vidas, em acentuado estado de
precariedade, são praticamente devastadas por essas mesmas
situações.
As vidas que são enquadradas nessa segunda categoria,
geralmente, engrossam a rubrica das vidas que não merecem viver e
frequentemente fraquejam e perecem devido à exposição a situações
extremas de violência, deixando restos que sinalizam as suas
passagens. São muitos os obstáculos dessa difícil caminhada, que vão
desde a dificuldade de contar com políticas de assistência até o
enfrentamento das consequências dos processos discriminatórios, na
medida em que elas são concebidas como pessoas segregadas pela
imputação de diferentes estigmas, tais como: a) aos lugares onde vivem
61
Ensaios sobre Memória – Volume 2

ser atribuído o rótulo de local de transmissão de doenças, b) o mito de


pertencerem a classes perigosas difusoras de violência (Coimbra,
2001), c) o alto grau de desintegração social resultante da prática
sistemática de maus hábitos, entre outros.
É provável que, essas pessoas, pelo fato de disporem de
precários recursos para resistir a determinadas forças que concorrem
para o aniquilamento, sejam presas fáceis de circunstâncias às quais
outras atravessariam com mais facilidade, haja vista as condições de
falta de proteção em que vivem diante do descaso do Estado e de
políticas que frequentemente contemplam setores privilegiados da
população, com relação a gênero, orientação sexual e raça, por
exemplo.
Cabe aqui trazer a discussão empreendida por Butler (2015). A
autora propõe uma ontologia corporal social e aponta: o que nos faz
considerar algumas vidas passiveis de luto e outras não são os
enquadramentos pelos quais apreendemos ou não a medida em que as
vidas, como um todo, podem ser violadas. Nesse sentido, repensa a
precariedade, a vulnerabilidade, a dor, a subsistência corporal, o desejo e
as reivindicações sociais. Para ela, investigar a ontologia do corpo implica
reconhecer que todo corpo está sempre inscrito socialmente; ou seja, ele
está circunscrito por um conjunto de normas e organizações sociais e
políticas que se desenvolveram, ao longo dos tempos, para
maximizar/minimizar a precariedade de alguns grupos. A partir de quais
molduras apreendemos ou não as vidas como perdidas/violadas? Esses
trabalhos de enquadramento “são em si operações de poder”. Eles
delimitam, segregam, excluem e inviabilizam aquilo que deve ou não ser
considerado uma vida. “Ser um corpo é estar exposto a modelagem e a
uma forma social” (p. 16). E o ponto de partida para pensar a ontologia
corporal é a alocação diferencial da condição precária.
Certamente, a precariedade, como conditio sine qua non do
fenômeno da vida, assume contornos diferenciados diante da
exposição a situações difíceis de tolerar, principalmente considerando
as tensões produzidas, devido aos evidentes traços que demarcam
vidas em situações de opulência, e outras em estados de miséria que
compartilham localidades próximas, conforme acontece nas grandes
metrópoles brasileiras que, mediante o processo da produção da
desigualdade e distribuição desigual da precariedade, concorreu para o
advento da categoria, dos condenados da cidade, expressão que
62
Ensaios sobre Memória – Volume 2

engloba os mais diferentes tipos de pessoas segregadas em razão de


estigmas. Fazem parte, no entender de Wacquant (2005, p. 7), do
grande catálogo dessa categoria as pessoas que vivem em:

[...] locais conhecidos, tanto para os forasteiros como


para os íntimos, como regiões-problema, áreas
proibidas, circuito selvagem da cidade, territórios de
privação e abandono e devem ser evitados e
temidos, porque têm ou se crê amplamente que
tenham excesso de crime, de violência, de vício e de
desintegração social. Devido à aura de perigo e pavor
que envolve seus habitantes e ao descaso que
sofrem, essa mistura variada de minorias insultadas,
de famílias de trabalhadores de baixa renda e de
migrantes não legalizados é tipicamente retratada à
distância em tons monocromáticos e sua vida social
parece a mesma em todos os lugares: exótica,
improdutiva e brutal.

Essas pessoas que congregam formações socioespaciais de


diversas naturezas decorrentes de ações e mecanismos institucionais
que resultam em segregação trazem, em seus históricos de vida, cuja
expressão principal é o isolamento, as ranhuras e as marcas
decorrentes de um processo de luta intensa, até pela sobrevivência,
com grande desgaste das próprias condições físicas e psíquicas,. De
certo modo, essas pessoas atravessaram experiências que marcaram
seus corpos a ferro e fogo em carne viva, evidenciando cicatrizes, na
qualidade de memória, de um passado nada glorioso e de um presente
repleto de tensões, tanto no que concerne às relações intragupos,
quanto no que tange ao relacionamento com as camadas sociais mais
privilegiadas.
Cabe destacar ainda que, muitas vezes, as necessidades de
sobrevivência se impuseram com tamanha força que obrigaram essas
pessoas a declinar de certos anseios para conseguir meios apenas para
se manterem vivas em razão da escassez de meios e de condições
favorecedoras, como, por exemplo, uma especialização técnica para
angariar melhores postos de trabalho no mercado e até mesmo acesso

63
Ensaios sobre Memória – Volume 2

a determinados bens culturais. Assim, distanciam-se, cada vez mais, da


classe social que têm suas vidas protegidas.
É nesse espaço de vida que se entrecruzam a precariedade e a
vulnerabilidade naqueles que conseguem sobreviver para deixar
legados de memórias, visto que muitas vidas são silenciadas sem
sequer deixar quaisquer rastros. Os vestígios indicadores dessas vidas
preservam-se, de forma volátil, na lembrança de entes queridos, sendo
logo abafados pelo esquecimento. Quantas pessoas morrem em
aglomerados humanos sem serem objeto das mídias, mesmo que seus
corpos permaneçam, por horas a fio, expostos em lugares públicos?
Como explicar essa postura da sociedade? Parece-nos que a sociedade
considera determinadas vidas completamente supérfluas e
descartáveis ou até indignas, conforma pontua Zaconne (2015, p. 24),
ao afirmar que existe “uma política pública, na forma de razões do
Estado, a ensejar os altos índices de letalidade do sistema penal
brasileiro, com destaque para aqueles praticados rotineiramente nas
favelas cariocas que alcançam o patamar de produto cultural do tipo
exportação”. Notadamente a violência policial incide sobre vidas
consideradas matáveis em decorrência de critérios raciais, geográficos,
econômicos e culturais. Para executar essa tarefa, o aparato que dizima
vidas não protegidas pelo Estado conta com o apoio de parte da
sociedade, bem como com interpretações que favorecem os operadores
de altos escalões do poder judiciário, no conhecido parecer de
arquivamento de processo por falta de provas, ou sob a alegação de
que as mortes praticadas por agentes do Estado decorreram,
sobretudo, de legítima defesa. Em certo sentido, podemos conjecturar
que alguns agentes sociais (policiais, milicianos, herdeiros do grupo do
esquadrão da morte), quando estão à frente de empreitadas de
extermínio, contam com a anuência e o incentivo de parte da
sociedade, ou seja, esses agentes matam, produzem massacres,
chancelados por apoios de vários setores sociais.
O desfecho dessas ações, na medida em que há o arquivamento
de processos a partir de decisões de setores da administração estatal,
nos aponta que as vidas em jogo encontravam-se fora do raio de
proteção, sendo que, muitas vezes, são responsabilizadas e
culpabilizadas pela própria morte, à luz de argumentos falaciosos e
moralmente construídos, a exemplo do uso da justificativa, por meio do
aparato policial, de legítima defesa de crimes contra a população jovem
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Ensaios sobre Memória – Volume 2

e negra das comunidades. Além do mais, como são habitantes de


espaços segregados e repletos de estigmas, difunde-se uma crença de
que esses seres vivos são expressões do mal e da maldade, motivo pelo
qual a perpetração da morte, por esses agentes, é considerada
socialmente legítima, aceita, necessária e até mesmo encorajada.
Na tentativa de colocar, lado a lado, essas nuances da tessitura
social com a precariedade relativa às transformações que ocorrem em
termos de memória, faz-se necessário situar determinadas formas de
violência, de certo modo, naturalizadas mas que convergem para o
campo de experiências traumáticas, principalmente se analisarmos sob
a ótica do trauma social (Ortega Martinez, 2011). Nesse sentido,
objetivamos abordar a memória em duas diferentes matizes: uma que
decorre de situações de violência extrema, colocando em xeque os
suportes de resistência de determinadas pessoas, fragilizados em
decorrência da exposição a situações em pronunciada condição de
vulnerabilidade e outra, considerando o destino no qual a sociedade
acomoda os restos de sua história, em termos da construção de uma
vertente de memória que é difundida como verdade para um
determinado acontecimento. Interessa-nos, sobretudo, pensar como
determinados acontecimentos da história de vida são, na medida do
possível, acondicionados em vestígios e restos no contexto da
produção de memória, pois faz-se necessário conhecer e saber,
conforme assinalam Becker e Debary (2012, p. 7), “como uma
sociedade trata seu passado por intermédios de lembranças e dramas”.
Os métodos empregados para lidar com os vestígios de vidas que
foram ceifadas pela máquina estatal sugerem a existência de veredas
sombrias, lacunas e formas de silenciamento que se fazem presente no
que tange à memória. No entanto, essas lacunas e omissões são uma
brecha da qual podem brotar muitos sentidos, especialmente os que
foram e ainda estão censurados nos arquivos existentes.
Objetivamos, assim, discutir os diferentes sentidos de memória à
luz das experiências de pessoas, sob a égide da vulnerabilidade e da
precariedade, considerando outras possibilidades de interpretação
além da vertente que é difundida pelos aparatos estatais, mesmo
considerando que essa vertente pode também ter outros sentidos.
Sabemos que a memória social tem várias definições de acordo com os
diferentes discursos disciplinares. Diferentes formas de concebê-la
transitam entre concepções que visam a dar a ver a capacidade
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Ensaios sobre Memória – Volume 2

criadora que ela mobiliza no ser humano a outras nas quais esse
conceito é forjado no âmbito da produção de saber com vistas à
manutenção dos valores de um dado coletivo social.
Tomaremos a memória aqui em uma matriz de compreensão
interdisciplinar e nos deteremos na ampla gama de significados
icônicos e simbólicos naquilo que tangencia os dois vetores que
orientam a nossa reflexão: precariedade e vulnerabilidade. Na via
interdisciplinar, pretendemos investigar os discursos construídos no
entrecruzamento de saberes, no âmbito da experiência humana em
condições singulares, nas quais se observa a existência de vidas
descartáveis e sem proteção.
Destacamos que os estudos que realizamos acerca da memória
social não circunscrevem qualquer tipo de exceção, pois a memória é
paradoxalmente silenciosa e ruidosa, motivo pelo qual consideramos
que ela é análoga ao movimento produzidos pelo fluxo e refluxo das
marés, responsáveis pela produção de, às vezes, calmaria e, às vezes,
grande agitação. Isto implica compreender a memória como um
processo em constante movimento e transformação.
Assim, a memória é uma modalidade de violência em função de
seu caráter seletivo, mesmo quando se ocupa de dar corpo aos
vestígios de ocorrências violentas que esgarçaram os limites de
suportabilidade de pessoas em pronunciados estados de precariedade
e vulnerabilidade. Quer dizer, tecer as evidências traçadas pelos
rastros da violência implica sempre um tipo de escolha e, se há escolha,
existem indícios que recebem um sentido, mas existem outros tantos
sentidos que podem ser produzidos. Ainda, considerando o critério
seletivo, pode acontecer que a escolha de alguns indícios será
significada, enquanto que outros permanecem em silêncio. Todavia,
esse processo é circunscrito por diferentes fatores que influenciam e
interferem, de forma direta, no processo de acomodação de vestígios e
restos que venham a ser lidos e possam circular socialmente como um
legado produzido pela memória.
Referimo-nos a um processo de transformação que culmina com
a produção de sentido e, por esse motivo, essa operação, ao produzir
uma nuance de sentido, deixa de fora tantas outras possibilidades,
razão pela qual estamos considerando, nesta reflexão, a produção de
memória atrelada à violência. Nem sempre as produções monumentais
alçadas à condição de memória são aceitas por toda a população, visto
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Ensaios sobre Memória – Volume 2

que as memórias que circulam no contexto social têm valorações


diferentes para determinadas classes sociais, ou seja, existem pessoas
que as reverenciam enquanto outras as atacam e destroem. Assim,
dadas as disparidades de reações advindas das produções de memória,
do caráter seletivo, é praticamente impossível esse processo conseguir
escapar de verdadeiras armadilhas, conforme propõem Latour e
Woolgar (1977), relativas aos acontecimentos que devem fazer parte
da história, pelas versões produzidas acerca dos fatos e, ainda, pelas
contingências de circunstâncias temporais. A construção de memória
quando pretende fazer circular os seus sentidos não dispõe de outro
meio, senão o processo de categorização criado em função da escrita
com referências precisas ao espaço e a uma temporalidade inscritos no
universo da experiência humana.
São diversos os tipos de produção de escrita que inserimos na
rubrica de memória: pinturas rupestres, esculturas, pinturas, revistas,
jornais, livros, filmes, arquivos, murais, romances, catacumbas com
seus epitáfios, fotografias, arquivos digitais, entre outras tantas
possibilidades. Esse manancial de produções elevada à categoria de
memória tem, por finalidade, produzir um certo conforto diante da
certeza angustiante e esmagadora da finitude. Saber que a vida é uma
experiência transitória que começou não se sabe quando, mas que tem
um fim que é o perecimento, arranca o ser humano do estado de
letargia e acomodação com vistas à criação, posto que “todos os
desígnios humanos com vistas à imortalidade contêm algo da ânsia de
sobreviver. Não se quer apenas existir para sempre: quer-se existir
quando os outros já não existam mais” (Canetti, 1995, p. 227). Eis uma
forma imperiosa de supremacia conclamada em nome da
sobrevivência mediante a criação de diferentes produções que
transcendam os tempos e atravessem os séculos, perpetuando os seus
criadores no pensamento de gerações futuras.
Adotamos, como ponto de partida, a concepção de que a
memória não se constitui como uma forma de apaziguamento da
violência. Abraçamos a premissa de Butler (2016) de que as ações
corpóreas podem ser consideradas como mecanismos que tanto
podem ter fins pacíficos quanto incitar ondas de violência,
principalmente na modalidade de vingança como acontece com o
ataque e a destruição de certos monumentos históricos, motivadas

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Ensaios sobre Memória – Volume 2

pelo ressentimento, ódio, racismo e outras formas de sentimentos


humanos.
O que são os monumentos e outras produções de memória?
Serão vestígios que apontam para a glória de uns e o fracasso de
outros? Na imperiosidade de que são necessários para evocar o
processo de lembrar, são também assentamentos de poder que
contêm, às vezes de forma escamoteada, grandes marcas de destruição.
Esse deve ser considerado em relação ao ímpeto de pessoas que
desejam destruir monumentos em razões de representações de
exclusão, impotência e dominação, ou seja, muitos monumentos que
são representativos de glória, honra e bravura para uns, são também,
para outros, indicadores de humilhação, fracasso, não reconhecimento,
silêncio e omissão. Assim, os traçados de glória de uns são sugestivos
do fracasso de outros e, por esse motivo, encerra-se aí uma grande
contradição no que tange à relação com essas produções de memória:
postura de reverenciamento e respeito por uns, indiferença e revolta
por outros.

2 OS LIMITES ESTRUTURAIS DA VIDA

Partimos da suposição de que a vida, em função de suas


marcantes ocorrências, é um traçado de linhas que se encontram e se
cruzam em decorrência do processo da construção de memória, o qual
garante ao ser humano uma singularidade histórica em comparação
aos demais seres vivos, nos quais a memória atende a condições de
sobrevivência, sem constituir um legado transmissível de geração à
geração.
A experiência humana é uma travessia sinuosa pelas marcas
deixadas pelas pegadas, em percursos em tempos distintos. Esses
vestígios têm vários significados: podem ser expressão de júbilo, de
alegria, de glória, de vergonha, de decepção, de tristeza, de
ressentimento, de dor e, enfim, de outras tantas formas de sensação.
No tocante aos sentimentos considerados positivos, o ser humano, de
bom grado, tem a inciativa e o querer de conservá-los como
lembranças; já no que concerne aos sentimentos derivados de
experiências avassaladoras e insuportáveis, há uma verdadeira moção
para acomodar os restos dessas experiências no terreno do
esquecimento. Não obstante, nem sempre essa tarefa é exitosa uma vez
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Ensaios sobre Memória – Volume 2

que as lembranças inquietantes sejam frequentes e, pelo seu caráter de


desagrado, baterem continuamente à porta, sem possibilidades de
negociação para o devido distanciamento.
Contudo, o que faz essa categoria de lembranças verter-se em um
tormento para as pessoas que viveram e testemunharam situações que
excedem os limites de suportabilidade? Em princípio, sabemos da
vulnerabilidade do ser humano, em razão de sua transitoriedade, mas
sobretudo devido à intempéries decorrentes da natureza que se
convertem em verdadeiras fontes de ameaça para a qual não dispomos,
na esfera da condição humana e provavelmente no tocante à vida, de
meios para evitar ou se livrar. O ser humano, em sua errância
fundamental, está em constante perigo, seja pela impotência diante dos
acontecimentos, por vezes inesperados da natureza, seja pelas
alterações irreversíveis que produziu, de forma desordenada, na
dinâmica e funcionamento do topus onde vive, a terra.
A sensação de impotência em relação aos enigmas insondáveis
da natureza, bem como diante da impossibilidade de controle das
consequências do progresso científico paira sobre todos: humanos,
seres vivos e fundamentalmente o planeta. Conforme assinala Stengers
(2015, p. 21), trata-se de “uma ameaça mantida por aqueles que se
apresentam em nome da dura realidade”, mas que, de certo modo, em
razão de determinados interesses, tornam-se cegos para determinadas
evidências.
Porém, faz-se necessário assinalar que se com o passar dos
tempos, o mundo nos evidencia um cenário de transformação não
devemos ignorar o fato de que estamos, de certa forma, completamente
desprovidos de qualquer preparo para o confronto com as novas
ameaças que podem decorrer desse mundo mudado em razão das
descobertas científicas, como, por exemplo, a fissura do núcleo do
átomo produzida pela invenção humana que serviu tanto de meios de
tratamento quanto de estratégias fatais de destruição. Encontramo-nos
diante de uma situação de impotência, como Freud (2010) já nos
alertou na década de 1930 antes das devastações e convulsões
causadas pela II Guerra Mundial, quando fora taxativo ao apontar os
três tipos de ameaças inexoráveis em relação ao ser humano:

O sofrimento ameaça de três lados: a partir do


próprio corpo que, destinado, à ruina e à dissolução
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Ensaios sobre Memória – Volume 2

também não pode prescindir da dor e do medo como


sinais de alarme; a partir do mundo externo, que
pode se abater sobre nós com forças superiores,
implacáveis e destrutivas, e, por fim, das relações
com outros seres humanos. O sofrimento que
provém dessa última fonte talvez seja sentido de
modo mais doloroso que qualquer outro; tendemos a
considerá-lo um ingrediente de certo modo
supérfluo, embora não seja menos fatalmente
inevitável do que o sofrimento oriundo de outras
fontes (pp. 63-64).

Diante de uma evidência tão contundente, somos obrigados,


assim, a constatar que nenhum artifício produzido pela técnica é capaz
de suplantar, por completo, a nossa condição de vulnerabilidade. Seria
ingênuo pois esperar um milagre depois de uma grande catástrofe, mas
as relações entre os seres humanos podem ser mediadas por condições
que considerem essas evidências, seja para o ser humano, e por
extensão à vida (é do conhecimento de todos que a expansão das
cidades provavelmente concorreu para um grande desequilibro na
fauna e extinção de animais), seja para o próprio planeta,
principalmente em relação à preservação de ecossistemas.
Refletir sobre a precariedade inerente ao ser humano, bem como
a distribuição desigual de condições para a manutenção da vida,
parece-nos um exercício interessante para entender a violência a que
somos cotidianamente confrontados em meio a um mundo que se
transforma em uma velocidade que foge ao alcance do pensamento e
das expectativas humanas, mas que tem consequências avassaladoras:
as experiências com o gadgets são marcadamente efêmeras devido às
exigências do mercado em lançar novos produtos para serem
consumidos. Por esse motivo, é preciso uma tomada de consciência que
parta do presente, não para deduzir esse presente do passado, “mas
dar espessura ao presente: para interrogar os protagonistas de uma
situação do ponto de vista daquilo de que eles podem se tornar capazes
da maneira pela qual são capazes de responder a essa situação”
(Stengers, 2015, p. 25).
Essa advertência nos leva a pensar que, na época em que
vivemos, já alcançamos muitos progressos em domar a natureza (a
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Ensaios sobre Memória – Volume 2

imposição da técnica em um rio para transformar o seu curso com


vistas à produção de energia), além de descortinar alguns enigmas;
apesar de todas as interferências do ser humano, não estamos diante
de uma natureza frágil e completamente adestrada pelo arsenal
tecnológico; do mesmo modo, não somos partidários de que a natureza
é uma fonte que pode ser explorada de forma desmedida e
descontrolada, somente para atender aos interesses e ganâncias de uns
poucos.
Como marca primordial do século XX, em função de um novo
modus vivendi que se estrutura, temos outro tipo de regulador das
relações sociais e ainda entre países. Curioso é um fato a esse respeito:
os países promovem guerra, porém a lógica da guerra não consiste em
vitória ou derrota e sim na demonstração de produtos de última
geração e material bélico de precisão para serem consumidos no
mercado e fazer girar grandes montantes de capital, sendo essa mais
uma forma de catástrofe que marca esse século, principalmente pelo
fato de que o azeitamento das engrenagens para consumo imediato
requer, prioritariamente, uma remodelação nas relações humanas, ao
lado da difusão de duas formas de banalização: da vida e do
sofrimento. Além das inúmeras catástrofes responsáveis pela escrita de
inúmeras páginas da história, podemos afirmar que a singularidade
desse século, sem qualquer possibilidade de comparação aos
anteriores, consiste na caracterização do século XX, segundo Farias e
Pinto (2016, p. 177):

[...] em sua primeira metade, como a era das grandes


catástrofes. Já sua últimas décadas caracterizam-se
pelo movimento de produzir registros de quaisquer
naturezas sobre esses acontecimentos (escritas,
documentos, monumentos, museus) não apenas no
intuito de documentá-las, mas também de construir
formas de resistência para minimizar e até mesmo
banir qualquer possibilidade de reedição. Em certo
sentido, esse movimento de escrita sobre esses
acontecimentos representa o imperativo criado por
políticas de memória de que é preciso deixar rastros
e vestígios sobre determinados acontecimentos, a

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Ensaios sobre Memória – Volume 2

fim de que não caiam no esquecimento voluntário e


sejam, então, mapeados pela história.

Todavia, mesmo diante desse esforço, a produção de


mecanismos que amenizem ou façam desaparecer as modalidades de
destruição não foi exitosa e recrudescem, no início do terceiro milênio
com mais vigor, alimentada por políticas separatistas e pela reedição
de políticas de ultra direita que, em muitos países, beiram o fascismo.
Toda a empreitada de produzir significado para os rastros e vestígios
das ocorrências sangrentas do século XX, para impedir que as mesmas
voltem a ocorrer, não conseguiram eliminar definitivamente todas
essas propensões no âmbito da experiência humana. Em primeiro
lugar, pelo fato de que as chamadas políticas em nome da paz são
realizadas às custas do emprego da violência. Em segundo lugar,
vivemos diante de um verdadeiro paradoxo: como podem os países
pensar em ações para a paz preparando-se para guerras, na corrida
desenfreada para alcançar um lugar de destaque na esfera econômica?
Esses projetos, colocados em prática em nome de ações democráticas,
não se distanciam da violência por meio dos mais diferentes disfarces e
argumentos para contornar um círculo mortífero que aprisiona a
imaginação do ser humano em uma espécie de beco sem saída e sem
qualquer possibilidade de retorno ao ponto de partida. Em outras
palavras: o cenário sociopolítico se organiza e se reconstitui, pelas
mais variadas estratégias como a guerra, a produção de miséria, a
massificação de doenças, entre outras formas, como um arsenal
potente cujo foco é a morte, visto que, conforme afirma Mbembe (2018,
p. 15):

Não é mais uma questão, por lei e justiça, de excluir o


assassinato dos relatos da vida comunitária. Cada
vez, é a aposta suprema que se trata de arriscar. Nem
o homem do terror, nem o homem aterrorizado, os
novos substitutos do cidadão, renunciam a matar.
Pelo contrário, quando eles simplesmente só
acreditam na morte (dada ou recebida), a sustentam
como garantia final de uma história inscrita a ferro e
fogo: a história do Ser.

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Ensaios sobre Memória – Volume 2

A situação é intensificada quando a vulnerabilidade de todas as


formas de vida e, em particular, a do ser humano, vítima de guerras,
massacres, misérias, intempéries naturais, doenças letais, do ódio,
exige que qualquer vida seja igualmente considerada e reconhecida
como digna de ser vivível. Conforme assinala Butler (2018, p. 17), “nos
deparamos, de uma maneira nova, com a ideia de que algumas
populações são consideradas descartáveis”. Cabe, então, indagar quais
são os fatores considerados signos de descartabilidade para
determinadas vidas?
Examinemos um aspecto bastante evidente em nossos dias: por
um lado, os interesses do mercado, e por outro, a lógica que serve de
suporte às políticas neoliberais são duas poderosas forças no tocante à
decisão de quais vidas devem ser protegidas ou não, uma vez que
funcionam em termos da distribuição desigual da precariedade, a
ponto de tornar umas pessoas mais vulneráveis do que outras. Não
obstante, existem políticas que são erigidas com vista à morte de
determinadas pessoas como em situações de extermínio e genocídio,
além de circunstâncias decorrentes de negligência e de descaso que
culminam com a morte de pessoas. De certo modo, as políticas que
fomentam o neoliberalismo estão calcadas na gestão de vida e de
morte das pessoas, relativas à incapacidade de alguns em gerenciar
seus projetos de vida e, por esse motivo, responsáveis pela própria
morte, ou seja, não dispõem dos aparatos adaptativos para sobreviver
face a determinadas injunções da vida. Essa é a prerrogativa das
políticas neoliberais, se analisadas em profundidade, uma vez que
exigem de cada pessoa uma plasticidade infinita de acomodação para
enfrentar novos desafios.
Contudo, a política do neoliberalismo, adotada em escala
mundial, pode ser considerada como um ataque frontal às relações
sociais a medida em que produz uma cultura antidemocrática
atingindo diferenciados níveis das camadas da população, começando
pelos mais vulneráveis. Ao mesmo tempo, ela abre espaço para o
surgimento, de forma legitimada, de práticas antidemocráticas de
setores de poder que decidem os caminhos possíveis da humanidade,
administrando tanto as relações políticas quanto as humanas como um
grande e lucrativo negócio. No momento em que esse cenário se
edifica, segundo Brown (2019, p. 40), “quando o governo é

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Ensaios sobre Memória – Volume 2

administrado como um negócio [....] os cidadãos-clientes tornam-se


seus objetos de lucro desprotegidos, exploráveis e manipuláveis”.
As justificativas que circulam para garantir a execução de um
plano dessa natureza são formuladas a partir de dois princípios: em
princípio, difunde-se a ideia de que a desigualdade é a peça chave para
o desenvolvimento e, em segundo lugar, assevera-se que um processo
evolutivo não acontece sem danos nem perdas, ou seja, os seres
humanos devem conviver com a ideia de que a evolução não é justa. A
única possibilidade de justiça, nessas circunstâncias, consistiria na
cientificação maciça das regras que serão aplicadas universalmente,
mas também os seres humanos não podem se esquivar da
conscientização de que em todo processo há resultados positivos e
negativos; quer dizer qualquer modalidade de aposta pressupõe
ganhador e perdedor. Diante de um quadro pintado com tintas
sombrias, justifica-se que o progresso deve deixar de lado as fraquezas
humanas e os acontecimentos atribuídos ao acaso. Conforma-se, assim,
a propagação, em todos os níveis de relações humanas, de um discurso
estatal que se apresenta contrário aos processos de reforma social, às
experiências e ações que concorrem para a igualdade, uma vez que o
mercado é o único guia. Nesse contexto, as pessoas são consumidores
vorazes, e aquelas que não aderem a essa condição são recriminadas
moralmente, como também discriminadas e segregadas. Decorrente
desse projeto, engenhosamente elaborado para regular as relações
sociais e econômicas, tem-se então modalidades sutis e, às vezes,
brutais de violência que convergem para acentuar as condições de
precariedade.
Face ao contexto, Wieviorka (2006) indaga profeticamente:
haverá um horizonte que possibilite a vida diante da entrada da
humanidade em uma nova era? Aliás, estamos vivendo em uma época
marcada “por uma mudança histórica decisiva, planetária, mas
perceptível na vida de sociedades em que a objetividade e a
subjetividade separavam-se” (p. 3). Havia, até certa época do
desenvolvimento científico, uma clara separação entre o mundo da
economia, dos mercados, da técnica e o universo das condições
subjetivas com suas afirmações culturais. Possivelmente, essa
separação tinha a função de escudo protetor diante de algumas
circunstâncias que atenuavam a vulnerabilidade.

74
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Pretendemos, nesta reflexão, analisar a precariedade que, pela


maneira como é distribuída em função das assistências e preocupações
estatais, concorre para a exposição de pessoas e populações inteiras a
níveis extremos de vulnerabilidade, diante dos quais a morte parece
ser o único fim possível. De certo modo, as ações estatais decretam, por
meio de suas políticas, que algumas modalidades de vida não merecem
proteção nem cuidado ficando a mercê da própria sorte. Enquadram-se
nessa rubrica os chamados condenados da cidade, categoria que inclui
diferentes segmentos de pessoas pobres nas grandes cidades que
vivem segregadas, em condições precárias e quase sempre de
desintegração social devido à omissão de políticas do Estado,
correspondendo, segundo Wacquant (2005, p. 96), a “um agregado
heterogêneo [...] composto de categorias fundamentalmente
heteróclitas, que só devem estar amalgamadas desse modo por serem
percebidas como geradoras de uma ameaça, ao mesmo tempo física,
moral e fiscal, à integridade da sociedade urbana”. Tratam-se de
pessoas que habitam regiões urbanas diferenciadas, as quais, ao longo
dos tempos, são alvos de denominações que por si só carregam o
estigma da segregação: inner city na Inglaterra e Holanda; banlieue e
cités na França; gueto e urban underclass nos Estados Unidos da
América; favelas ou comunidades no Brasil; poblacione no Chile; villa
miseria na Argentina; e cantegril no Uruguai.
Em todos esses países, esses habitantes são incluídos na
categoria de párias sociais que, ambiguamente, devem ser severamente
contidos, mas constituem mão de obra barata e imprescindível para as
regiões abastadas das grandes metrópoles. É muito comum essas
pessoas residirem em regiões urbanas rotuladas como problemáticas,
violentas, de modo que, geralmente, são negligenciadas pelo poder.
Quase sempre a única presença, da parte do Estado, consiste na
aplicação de medidas repressoras para controle, face à difusão da
crença de que esses espaços urbanos são aqueles onde proliferam a
violência, o crime, o vício e os demais mecanismos de degradação
social. Não obstante, assinala Body-Gendrot (2018, p. 160), “as
perturbações da ordem e a disfunção urbana apontam para problemas
agudos de governança urbana, de relações entre os níveis de governo,
bem como para defeitos e obstáculos no processo de fazer política”. De
certo modo, os aparatos estatais deixam, em segundo plano, suas ações
de governança voltadas para camadas da população consideradas de
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Ensaios sobre Memória – Volume 2

vida sem valor e o fazem em prol de comando, organização e controle


da economia priorizando essa dimensão, ao passo que relega outras
tais como planejamento urbano, saúde, habitação e transportes.
Devido aos percalços administrativos de gestores públicos, as
cidades conhecem um modus vivendi de pessoas encurraladas em
espaços bastante exíguos nos diferentes tipos de aglomerados urbanos,
sendo, de modo geral, consideradas como perigosas para a sociedade.
O Estado munido dessa crença, com amplo respaldo social,
disponibiliza seus aparatos coercitivos, para, de forma violenta,
controlar o contingente de pessoas que vivem em condições
extremamente precárias, seja devido à vida atribulada por condições
adversas, como por exemplo, o número de horas que gastam em
transportes para se deslocarem para o trabalho quando conseguem
ocupar determinados postos, seja em razão das políticas de
esquecimento do Estado quando à assistência em regiões onde
predominam os bolsões de pobreza e miséria. Cabe salientar que essas
pessoas não escolhem deliberadamente viver sob essas condições, pois
são as dificuldades da vida, bem como as faltas de opções, que as
empurram para esse tipo de franja de exclusão, sem quaisquer
possibilidades dignas de retorno.
É curioso observar que essas pessoas, em sua grande maioria,
desprovidas de capacitação para ocupar determinados postos no
mercado de trabalho, são, de certa forma, mantidas em prol da garantia
do bem estar e conforto da elite economicamente dominante que
abomina, por exemplo, executar determinadas atividades domésticas,
por considera-las pouco importantes, mantendo, em certo sentido, um
tipo de relacionamento que, em muito, se assemelha às características
do regime escravocrata, cujo suposto término é completamente
lamentado por essas elites e pelos setores de produção econômica que
também se valem de uma mão de obra barata para obtenção de
grandes lucros, mesmo considerando que a exploração do trabalhador
é um tipo de crime.
Há um aspecto bastante curioso em relação às estratégias
empregadas na eliminação de pessoas, de forma direta ou implícita,
visto que, conforme propõe Mbembe (2017, p. 63):

Os próprios modos de matar são variados. Nas


carnificinas, em particular, os corpos sem vida são
76
Ensaios sobre Memória – Volume 2

rapidamente transformados em simples esqueletos,


simples restos de uma dor não enterrada;
corporeidades esvaziadas e insignificantes;
estranhos despojos mergulhados numa cruel
brutalização. Muitas vezes, o mais impressionante é,
por um lado, a tensão entre a petrificação das
ossadas e a sua estranha frieza e, por outro, a sua
obstinação em quererem forçosamente significar
algo. Noutras circunstâncias, não parece existir
qualquer serenidade nestes pedaços de ossos
marcados pelo fracasso; nada, a não ser a ilusória
recusa de uma morte que já aconteceu.

Assim, firma-se uma escrita estruturada pelos resíduos deixados


por muitas vidas que foram ceifadas em acidentes que poderiam ser
evitados, caso houvesse políticas estatais destinadas a essa finalidade.
A situação se agrava ainda mais se considerarmos, na atual conjuntura,
a perda de direitos sociais, especialmente em relação às garantias
trabalhistas, resultado do processo massificante de crescimento
econômico e enriquecimento de muitos poucos, azeitado pelas políticas
neoliberais que parecerem ignorar ou propositalmente agem
considerando que as nuances subjetivas devem ser deixadas de lado na
concorrência competitiva, voraz e nefasta para a produção da
autossuficiência proclamada em nome do empreendedorismo.
Conforme afirma Brown (2019, p. 30), “a revolução neoliberal foi
projetada para anular as expectativas da classe trabalhadora, tanto no
mundo desenvolvido quanto nas regiões pós-coloniais em
desenvolvimento, ao produzir um nivelamento por baixo global dos
salários e das condições de trabalho”. Os resultados mais óbvios dessa
empreitada são decorrentes da liberação expressiva de capital para a
ocupação de pessoas em mão de obra barata, cujo efeito recai no
avolumar da produção em larga escala, que contou com a colaboração
direta dos paraísos fiscais em praticamente escala planetária.
A escalada do neoliberalismo que gera lucros e patrimônios
consideráveis mudando significativamente a posição de países em
termos de extratos económicos, responde, ao mesmo tempo, pela
manutenção da desigualdade. Esse processo transcorre de uma
maneira bastante sedutora. Constata-se que o avançado progresso é
77
Ensaios sobre Memória – Volume 2

fonte de lucros, mas somente de uma camada privilegiada que serve de


aspiração para outras que dificilmente conseguirão alcançar seu status.
Todavia, a maximização de capital circulante nas mãos de poucos se
assenta em um contexto frágil devido principalmente às possíveis
oscilações de mercado, considerando interessados competidores em
prosperar e enriquecer. No extremo inferior dessa pirâmide,
encontram-se as pessoas consideradas necessárias e úteis para
prestação de serviços braçais, de certo modo rebaixadas
principalmente sob a alegação de que as suas habilidades são restritas
ou não se ajustam às novas exigências da distribuição do trabalho
especializado, mesmo que em níveis bem elementares. São as pessoas
que, por diferentes razões, não conseguem se ajustar às rápidas
mudanças da sociedade, consideradas excluídas, compondo o conjunto,
de acordo com Body-Gendrot (2018, p. 260), de “normais sem
utilidade” que compreende as pessoas que não assimilaram os
dispositivos da tecnologia necessários para a realização de
determinadas tarefas, mas que não apresentam aspectos em si
invalidantes ou deficitários.
Disso decorre a predominância de uma vulnerabilidade calcada
em aspectos puramente econômicos que produz efeitos de insegurança
naqueles que mal conseguem dramatizar as suas agruras e infortúnios
em espaço público. Sem a possibilidade de contar com as assistências
governamentais e com a confiança, na qualidade de capital social, essas
pessoas ficam praticamente paralisadas, sem conseguir produzir
condições para enfrentar as adversidades e a imprevisibilidade. Desse
modo, ocupam a linha de frente para a morte quando determinadas
catástrofes têm lugar. São as primeiras que sofrem os mais brutos
impactos e, uma vez na condição de vidas sem proteção, facilmente
perecem.
Essas pessoas não dispõem de proteção de órgãos do estado para
auxiliá-las, o que pode ser um indício de desintegração social no
processo de luta pelas condições mínimas de sobrevivência que, com
frequência, as coloca em dois extremos problemáticos: por um lado, o
isolamento decorrente da descrença na intervenção do Estado e na
desconfiança das pessoas em relação as outras e, por outro, a
apreensão acerca de seus destinos em um horizonte sombrio e incerto,
especialmente pelo fato de viverem em um regime de disputa em que
cada pessoa representa um perigo em potencial para outra, em uma
78
Ensaios sobre Memória – Volume 2

espécie de uma lógica hobbesiana pautada no conflito de que, quando


duas pessoas querem uma mesma coisa, conforma-se um impasse: uma
se torna um grande obstáculo e ameaça para que a outra alcance seus
objetivos; então, a solução, em termos ideais, seria uma pessoa
eliminar a outra para desobstruir o caminho para alcançar seu
objetivo. Em um desenrolar dessa natureza, o ser humano em função
de suas vaidades lança mão da tentativa de ludibriar visando à
obtenção de condições mínimas que garantam a sobrevivência.
Considerando ainda o grande contraste socialmente produzido,
nas grandes cidades e também no meio rural, razão pela qual umas
vidas não são reconhecidas como tal por outras, “como fundar uma
relação com os outros baseada no reconhecimento recíproco da nossa
vulnerabilidade e finitude comuns?” (Mbembe, 2017, p. 10). Cabe
assinalar que essas barreiras são erguidas a partir de determinadas
condições sociais. Em princípio, as fronteiras geográficas e humanas
entre as diferentes regiões de uma cidade, bem como das cidades e os
meios rurais, não apresentam mecanismos de permeabilidade, de
modo que elas são ínfimas. Além disso, existem rígidos mecanismos
que fomentam linhas de separação entre as pessoas, não apenas físicas,
mas subjetivas. Nesse sentido, os esteios das condições de igualdade
são estilhaçados pela sustentação de uma origem que,
interessadamente, é traduzida em termos de superioridade e pelo
apelo a uma comunidade integrada formada somente por pessoas que
apresentem determinadas características físicas e, sobretudo,
econômicas. Assim, são criados dois agrupamentos de pessoas: as
úteis e necessárias para a prestação de serviços, com circulação
restrita nos espaços nobres das metrópoles, e as que detém o poder
econômico, dispostas em um nicho privilegiado, sob proteção do
estado, especialmente pelo fato de dispor de capital para a obtenção de
serviços.

3 AS MEMÓRIAS DE EXPERIÊNCIAS DIANTE DA EXPOSIÇÃO A


SITUAÇÕES EXTREMAS

Sabemos que a memória se situa no jogo entre lembrança e


esquecimento. Face a episódios marcantes na história da humanidade,
sobretudo no século XX, forma criadas políticas de memória, por meio
da construção de monumentos, memoriais, museus, entre outros
79
Ensaios sobre Memória – Volume 2

dispositivos, cujo lema central poderia ser resumido em lembrar para


não esquecer. Muitas dessas operações de memória, como veremos
nesta seção, elegeram determinados segmentos sociais mais
privilegiados como objeto de ações de reparação e reconhecimento
acentuando, assim, as desigualdades já existentes entre eles. As
catástrofes do século XX, como tantas outras ocorridas na história da
humanidade, deixaram rastros indeléveis não obstante as tentativas de
eliminá-los ou até mesmo negá-los. Inúmeros foram os massacres e
genocídios que produziram restos sinalizadores de vida. Em face
desses vestígios, o século XX adotou, como política de reparação, a
construção de monumentos que representem a memória das pessoas
que foram dizimadas. Certamente essa preocupação teve uma razão,
visto que no entender de Todorov (2002, p. 135):

Os regimes totalitários do século XX revelaram a


existência de um perigo antes insuspeitado: o de um
domínio completo sobre a memória. Não que, no
passado, se desconhecesse a destruição sistemática
dos documentos e dos monumentos, o que é um
modo brutal de orientar a memória de toda a
sociedade.

Ao lançarmos um olhar em retrospectiva para diferentes épocas


do passado da humanidade, observamos que, em muitas circunstâncias
que resultaram na eliminação de determinados povos bem como de
todos os seus artefatos, esses empreendimentos de controle e domínio
da memória conseguiram, com bastante sucesso, eliminar os vestígios
do passado. Todavia, cabe registrar também que, com relação a outros
acontecimentos, essas tentativas foram fracassadas, deixando
transparecer restos que clamam por sentido.
De um modo ou de outro, os esforços para controlar a memória,
pela omissão, silêncio ou apresentação de uma versão falseada, são
incontáveis e bastante conhecidos, até mesmo pelas versões
contraditórias: nem sempre os historiadores que abordam a Inquisição
retratam a mesma versão divulgada pelo Vaticano; da mesma forma, a
dizimação de povos indígenas é explicada por versões diferenciadas,
dependendo de quem está à frente do processo de produção da
memória. Ainda, a escravidão justificada por critérios raciais tem
80
Ensaios sobre Memória – Volume 2

nuances distintas a depender das explicações dos povos colonizadores,


dos povos colonizados e dos próprios povos escravizados.
Depreendemos, assim, que as catástrofes, os massacres e os
genocídios, ao longo da história da humanidade, que conservaram
vestígios de memória, podem ser interpretados como uma luta contra
o apagamento de seus rastros. Sabemos que esse esforço de construção
de memória esbarra em limites, seja pela queima de arquivos e
documentos, pela destruição de testemunhas e, até mesmo, pela
intimidação de pessoas, para proibi-las de procurar informações sobre
determinados acontecimentos, bem como de difundi-las.
Certamente, em oposição a uma tentativa de esquecimento, de
anulação, de distorção, de negação e de omissão, diante dos poucos
vestígios existentes, a Segunda Guerra Mundial teve um tratamento
especial, não apenas pelo ineditismo concernente à produção da
indústria da morte, mas, principalmente, em relação às vítimas do povo
judaico. Foram edificados, em escala quase planetária, monumentos,
museus, casas de cultura, além da indústria cinematográfica com
riquíssimas produções e de livros que se tornaram mundialmente
conhecidos.
Todas essas produções de memória têm uma finalidade:
possibilitar o não esquecimento das atrocidades perpetradas a
pessoas, de diferentes raças e condições subjetivas, em épocas
passadas. Os monumentos, os museus, os filmes, os livros e outras
tantas produções falam por si pelo fato de não deixarem em silêncio
acontecimentos sangrentos nos quais inúmeras vidas conheceram seu
fim, pois conforme afirma Todorov (1995, p. 37):

[...] corremos o risco de repetir o passado, se o


ignoramos. Não é o passado, como tal, que me
preocupa, mas sim o fato de eu acreditar que há nele
uma lição para nós, contemporâneos. Mas... qual? Por
si mesmos, os acontecimentos nunca revelam seus
sentidos: os fatos não são transparentes; para nos
ensinar alguma coisa, precisam ser interpretados.

Contudo, mesmo considerando a grandiosidade desses


monumentos, bem como as políticas de memória adotadas para as suas
construções, uma necessidade se faz premente: esses monumentos e
81
Ensaios sobre Memória – Volume 2

todos os restos de catástrofes devem ser interpretados por cada


interlocutor que provavelmente se apresenta como destinatário, de
forma consciente ou não. Assim, podem ser produzidos diferentes
sentidos, para um mesmo rastro, ou um resto de vida, que passem a
fazer parte de qualquer produção alçada à condição de memória.
A essa altura de nossa reflexão, cabe-nos indagar qual a
motivação para a produção de sentido que opera na construção que
tem lugar nos vestígios de memória? As justificativas para a produção
de diferentes traçados de memória são inúmeras e são apresentadas
em razão de contextos bem específicos. Por exemplo, a memória dos
vencedores, daqueles menos vulneráveis, ocupa um lugar bem
diferente quando comparada à memória dos derrotados. Do mesmo
modo, as lembranças conhecidas sobre determinados acontecimentos
de algozes e operários da violência (Huggins, Haritos-Fatouros &
Zimbardo, 2006) são bem diferentes no que concerne às lembranças
das vítimas.
A história dos acontecimentos referidos à condição humana é
repleta de atos de violência que geraram muita riqueza, sendo essas
ocorrências sangrentas enaltecidas por determinados setores da
sociedade que, diretamente, se beneficiavam de seus resultados. Essa
prática ainda continua em nossos dias, mas o instrumento de ação é
outro: a distribuição desigual da precariedade e a concentração de
riquezas nas mãos de muitos poucos. É sabido que o continente
europeu teve sua opulência, em termos de riqueza, sobretudo no
tocante ao processo de colonização de países de outros continentes. No
entender de Fanon (2015, p. 122):

Muito concretamente, a Europa se locupletou


desmesuradamente do ouro e das matérias-primas
dos países coloniais: América Latina, China, África.
De todos esses continentes, diante dos quais a
Europa ergue hoje a sua torre opulenta, partem há
séculos, rumo a essa mesma Europa, os diamantes e
o petróleo, a seda e o algodão, as madeiras e os
produtos exóticos. A Europa é literalmente, a criação
do Terceiro Mundo. As riquezas que a sufocam são as
que foram roubadas aos povos subdesenvolvidos. Os
portos da Holanda, Liverpool, as docas de Bordeaux
82
Ensaios sobre Memória – Volume 2

e de Liverpool, especializadas no tráfico de negros,


devem sua celebridade aos milhões de escravos
deportados.

Assim como essas cidades, os palácios russos, espanhóis, o ouro


e a madeira nobre provenientes sobretudo do Brasil, estocados em
Portugal, são produtos de anos de extração desmesurada, de
exploração das riquezas de povos que até os dias atuais encaram a vida
da mais marcante pobreza devido aos estragos provocados por
potências colonizadoras no decorrer da história que se apresentavam
com o eufemismo de descobrimento e a implantação de modos
civilizados para os povos que eram considerados primitivos, segundo a
ótica dos europeus interessados. Seria oportuno refletir sobre os
grandes monumentos do mundo ocidental erigidos a partir do
processo de colonização e das chamadas grandes descobertas posto
que são de uma beleza que obscurecem a barbárie que se reedita em
nossos dias com outras roupagens.
Sendo assim, as memórias encarnadas nesses monumentos que
são impostas ao mundo representam um discurso em nome do que se
promulgou como marco civilizatório, pelos termos da soberania dos
Estados e cidadania que se promulgam e se impõem aos povos na
atualidade.
Pretendemos questionar aqui o processo pelo qual certas
modalidades de memórias foram escritas, para serem transformadas
em verdadeiros legados que são impostos como uma face gloriosa da
história, cujas representações evocam a vanglorização, o heroísmo, o
nacionalismo, a coragem, a defesa e a segurança de territórios, entre
outros. Causa-nos uma certa estranheza que existam esforços para
legitimar apenas uma vertente desses acontecimentos, sem quaisquer
alusões a outras tantas possibilidades, se considerarmos que a
condecoração de um guerreiro, pela sua perícia e seu heroísmo,
corresponde, quase sempre, a morte de muitos seres humanos,
considerados inimigos e ameaças. É nesse sentido que triunfa o
sobrevivente, em estado glorioso, diante dos rastros produzidos por
vidas ceifadas, ou seja, conforme aponta Canetti (1995, p. 227), “o
morto, porém, não deve desaparecer por completo: sua presença física
como cadáver é imprescindível a esse sentimento de triunfo”. Nesse
sentido, para um ser humano em situações extremas como a guerra,
83
Ensaios sobre Memória – Volume 2

vitória, glória por ter conseguido se manter vivo e a constatação de ter


subjugado, dominado, vencido e eliminado aquele que é,
ideologicamente, considerado inimigo são, na verdade, semelhantes.
Os acontecimentos referidos a triunfos, vitórias, domínio de uns
povos sobre outros, muitas vezes, são apresentados em escritas
monumentais reveladoras do heroísmo de povos que sequer ainda se
encontram entre nós, como, por exemplo, os fenícios que foram
dizimados pelo Império Romano, os tebanos, entre tantos outros, cujas
memórias dos vencedores e daqueles que triunfaram somos obrigados
a compartilhar. Estas revelam, quase sempre, as empreitadas dos
dominadores, sem abrir espaço para registros dos indícios de vidas que
foram dizimadas nessas circunstâncias, como aconteceu com a
população indígena e com o tráfico de escravos. Certamente esses
povos, ao serem encaminhados forçosamente para o desaparecimento,
deixaram vestígios e pegadas que podem ser considerados na
construção de uma memória, mesmo que as instâncias de poder
tentem apagar obstinadamente esses rastros e restos, como aconteceu
com o aterramento do Cais do Valongo8 (porto de chegada dos
escravos), na cidade do Rio de Janeiro, que só foi conhecido pelos
povos do século XXI, em função da preparação da cidade para os Jogos
Olímpicos de 2016. Como afirma Lima (2013, p. 182), “o local de
desembarque, somado ao lazareto, ao cemitério onde eram sepultados

8 O Cais do Valongo foi construído em decorrência de uma determinação do


Marquês do Lavradio que considerou inevitável a transferência do local de
recepção dos escravos que acontecia em um lugar nobre da cidade do Rio de
Janeiro. A sua argumentação era a de que os negros recém-chegados eram
portadores de doenças contagiosas e, igualmente, as suas silhuetas esquálidas
não deviam ser exibidas, bem com o fato de que estarem praticamente
seminus não se vertia em um cenário aprazível aos olhos da elite carioca. Daí,
entã,o o comércio de escravos deveria acontecer em um lugar de pouca
visibilidade para evitar a exposição de seres humanos negros considerados
desagradáveis aos olhos das pessoas brancas de alto poder aquisitivo. Por
esse motivo, D. João VI ordenou que fosse criada uma rampa e um cais de
pedra na Praia do Valongo com iluminação por lampiões de gás. Na mesma
época foi criado, nas proximidades um lazareto destinado à quarentena dos
escravos recém-chegados, um cemitério para aqueles que chegavam mortos.
A criação desse local de desembarque foi responsável pela duplicação do
número de escravos que chegavam. (Lima, 2013).
84
Ensaios sobre Memória – Volume 2

indignamente os que não resistiam às doenças, e ao mercado, local de


venda, compuseram, à época, um bem articulado complexo destinado
ao negócio da escravidão”. Contudo, a decisão pelo aterramento
desconsiderou que o local era utilizado, em uma época da história da
humanidade, na qual se justificou e naturalizou o aprisionamento, a
tortura e a imposição de trabalhos forçados de pessoas consideradas
inferiores em razão de sua cor de pele (Mbembe, 2018).
O soterramento do Cais do Valongo resultou da construção de
um novo cais para receber uma princesa. O novo cais passou a se
denominar Cais da Imperatriz, firmando-se como signo de
esquecimento e da negação de praticamente todos os vestígios dos
povos a quem foram impostos traçar linhas trágicas de suas
existências, ainda mais no início do século XX quando sofreu mais
aterramento na Reforma Pereira Passos. Aliás, o local, em função
dessas duas operações de apagamento, tomou o contorno de uma
amnésia social, no século XX, visto que os moradores da cidade do Rio
de Janeiro se referiam ao local como a Praça Jornal do Commércio
(Lima, Sene & Souza, 2016), uma vez que o modo com a História
acondicionou esses restos, pelos operações de aterramento e
encobrimento e pelas mudanças de denominações do lugar (Debary,
2017), tinha a intenção de banir ou mesmo silenciar o vergonhoso
período da história da humanidade no qual pessoas, em função do
critério racial, foram consideradas inferiores e escravizadas. Para
tanto, era importante que nada restasse ou que nada fosse lembrado
desse passado; daí a mudança de nome do lugar de cais para praça.
Praticamente durante mais de cento e cinquenta anos, aquela
região representou a glória da chegada da princesa, mesmo sendo
alçada à condição de uma praça cujo nome retrata um grande jornal da
época, o Jornal do Commércio, completamente diferente da que se
encontrava soterrada e que se transformou em local de silêncio e de
dor de pessoas. Os restos ocultados clamavam por sentido, uma vez
que sinalizavam vestígios de vida.
Nesse quesito, deparamo-nos com o seguinte paradoxo: como foi
tomada a decisão das autoridades, certamente pouco sensibilizadas
com o destino e o sofrimento dos escravos, para tentar apagar vestígios
de memória, ao passo que essa mesma operação de tentativa de
apagamento significou a possibilidade de uma existência de restos que
a história não tem interesse em preservar? Qual teria sido o motivo
85
Ensaios sobre Memória – Volume 2

para tentar apagar da história o capítulo de vida referente aos


escravos? Durante muito tempo perdurou a versão oficial que
monumentaliza a região em prol da Imperatriz do Brasil, sem que
nenhuma alusão fosse feita aos traçados deixados pelos escravos em
suas curtas trajetórias de vida.
São raríssimas as situações em que nos ocupamos de refletir por
que determinados acontecimentos trágicos comovem determinados
grupos sociais e não provocam qualquer questionamento em outros
que convivem em um mesmo país. Sem recuar muito na História,
poderíamos pensar nos assassinatos pelos aparatos do Estado em
favelas das grandes cidades brasileiras, principalmente na cidade do
Rio de Janeiro. Conforme aponta Zaconne (2015), os crimes de ódio e,
enfim, as agressões põem em risco a vida de pessoas. Esses
acontecimentos são apresentados pelas mídias, sobretudo, as mídias
sociais, com grande frequência, sensibilizando algumas pessoas no
tocante à avaliação do que seja uma vida, enquanto que outras, diante
dessas mesmas evidências, são tidas como indiferentes ou avaliam bem
as ações dos matadores. A quem importa a produção de cadáveres
humanos, muitas vezes deixados ao longo de ruas e vielas de bairros
pobres e favelas?
Contudo, se algumas pessoas são apáticas e indiferentes em
relação às mortes de pessoas pobres e pretas, geralmente moradoras
de favelas e de bairros periféricos dos grandes centros urbanos, estes
não demonstram a mesma falta de sensibilidade na visita a um museu a
um monumento que preserva restos de guerras como, por exemplo, a
Segunda Guerra Mundial. Diante da presença de objetos cultuados
quase como sagrados e reverenciados pelos visitantes do Monumento
Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, na cidade do Rio de
Janeiro, segundo Rocha (2007), (fotografias, objetos pessoais,
vestimentas, armas, munições) algumas pessoas se sentem mobilizadas
e afetadas pelos acontecimentos representados acerca da participação
dos soldados brasileiros que exalta a coragem, a bravura e o feito
glorioso.
Contudo, não se conhece o mesmo tratamento para o sofrimento
e o fim de vida dos escravos no Cais do Valongo, uma prática
justificada e naturalizada para a época, como também para os
moradores de favelas e bairros pobres periféricos das grandes cidades
que compartilham o trágico destino de pessoas despossuídas de
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Ensaios sobre Memória – Volume 2

reconhecimento social e por parte do Estado: suas práticas são


chanceladas por setores da administração pública que encarrega
agentes a execução, deixando, por vezes, rastros das ações sangrentas
pelos corpos largados em espaços públicos. Indagamo-nos, ainda, como
uma expressão humana praticada por agentes estatais responsável
pelo fim de uma vida (Zaconne, 2015), pode ter a conotação de
docilidade, por mais estranho que pareça, para uns; ser indiferente a
outros e mobilizar afetivamente um pequeno número de pessoas por
breves intervalos de tempo?
A esse respeito, em termos meramente comparativos, podemos
afirmar que o caso do assassinato da vereadora carioca Marielle
Franco, em 2018, imputado a agentes reformados da Polícia Militar do
Estado do Rio de Janeiro, principalmente em razão das circunstâncias
em que ocorreu, ainda está bastante vivo na memória de parte do povo
brasileiro. Não obstante, o assassinato do ajudante de pedreiro
Amarildo, em 2013, praticado por agentes em atividade da Polícia
Militar, quase já caiu em uma zona sombria de esquecimento (Rocha,
2016). Vale lembrar que inúmeros outros assassinatos acontecem
cotidianamente nas periferias pobres e favelas das grandes cidades
brasileiras, sem sequer serem noticiados.
O cenário atual nos conduz à reflexão sobre a invasão de bairros
pobres e favelas por parte de agentes policiais e da milícia, como um
resquício do processo de colonização com imposição de domínio, pela
ameaça de umas pessoas sobre outras. Esses locais, mesmo sendo
relegados pela a sociedade, são frequentemente lembrados como
espaços exóticos de visitação (como, por exemplo, a inclusão de favelas
em atividades turísticas na cidade do Rio de Janeiro). Todavia, mesmo
nessas condições, constituem uma cosmogonia em relação a qual as
memórias construídas oficialmente são rastros e resíduos deixados
pelos antigos colonizadores e transmitidos como memórias de glória,
sucesso e desenvolvimento.
A esse respeito, vale lembrar que as estruturas políticas
existentes em nosso país (em especial, a Polícia Militar) são heranças
dos regimes de colonização dos chamados grandes descobridores:
Espanha, Portugal e França, bem como do período da ditadura militar.
Sendo assim, as memórias construídas pela pluma oficial não se
apresentam na condição de dominantes por uma mera causalidade.
Quer dizer, são o produto da ação de corpos aliados. Melhor dizendo,
87
Ensaios sobre Memória – Volume 2

conforme sinalizou Butler (2018), as operações de enquadramento que


circunscrevem a presença do corpo na esfera pública, delimitando suas
formas de agir de sentir e de operar, implicam a adoção de valores do
Ocidente desigualmente experenciados por vários setores sociais. Vida,
liberdade, progresso e democracia, por exemplo, são aspectos da vida
desigualmente distribuídos. Setores da sociedade segregados são
constantemente enquadrados discursivamente por meio de
terminologias que os afastam da categoria de humanos.
Os termos empregados para nomear esses corpos, (animais,
monstros, feras, peixes grandes, elementos), principalmente no tocante
às pessoas que se encontram nesses locais, compõem uma espécie de
classificação zoológica no tratamento atribuído às classes
marginalizadas pelos agentes de determinados aparatos estatais. Sem
sombra de dúvida, esse modo de tratamento imposto às pessoas revela,
nada mais, nada menos, a maneira pela qual a precariedade é
desigualmente distribuída pelas camadas da sociedade.
Investigar a distribuição desigual da precariedade torna-se
fundamental aqui, posto que é justamente a partir desse tipo de
operação pública de enquadramento que se delimita quem são as
pessoas que têm direitos a serem representadas nas memórias que
resultam dos processos pelos quais a História confere um destino aos
restos de acontecimentos. Ainda, podemos também entender quem,
pela ótica do poder público, é merecedor de solidariedade pela
sociedade em processo de luto e quais vidas merecem viver, bem como
quais vidas são consideradas matáveis pelos órgãos do Poder Público
(Butler, 2015).
Não esqueçamos que os agentes que se encarregam das tarefas
de dizimação de vidas estão munidos de diferentes justificativas, por
vezes calcadas em princípios ideológicos, como também contam com a
aceitação e a proteção de grande parte da Sociedade que, não somente
legitima esse tipo de ação, como também a aprova.
Um lembrete importante para inquietar e preocupar
principalmente as mentes tranquilas: quase sempre do biopoder
(direito à vida) à necropolítica (decisão da matar) transitam agentes
distintos que utilizam diferentes escudos de proteção e argumentos
para justificação. Na medida em que assistimos o suposto espetáculo,
sem qualquer posicionamento ético, engrossamos a lista, na condição

88
Ensaios sobre Memória – Volume 2

de cúmplices, dos operários da violência do Estado e de organizações


vinculadas às facções criminosas, esquadrões da morte e milicianos.

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91
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MATERIALIDADE E MEMÓRIA:
A PERSPECTIVA ARQUEOLÓGICA DA RELAÇÃO ENTRE A
INFORMAÇÃO, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL

Carlos Xavier de Azevedo Netto


Universidade Federal da Paraíba, Brasil.
https://orcid.org/0000-0001-6105-3518

1. INTRODUÇÃO

A relação entre a memória e os diferentes materiais que


compõem o universo humano é muito próxima, mas nem sempre tão
assumida. Como Le Goff (2003) aponta, no início da discussão acerca
da memória, que nela assume uma dimensão não material quando
afeita as instâncias cerebrais que os indivíduos possuem, ao mesmo
tempo indica uma dimensão material, quando a memória está
interligada às sociabilidades. Podendo ver, de modo inicial que a
relação entre a memória e a materialidade, exposta pela cultura
material, está nos processos de constituição das comunidades em sua
construção identitária (Wilson, 2010). Considerando que esses
conjuntos de materiais, essa materialidade, está dada por outro
conjunto, os das técnicas que as constroem enquanto produto ou
apropriação humana. Neste ponto, é necessário considerar que essa
materialidade tem decorrência das técnicas, enquanto práticas
culturais (Simondon, 2007), o que acaba configurando os elementos
constitutivos do Patrimônio Cultural, em perspectiva mais ampla e
atual, como será tratada a seguir.
A discussão acerca da memória em tempos atuais vem
ganhando contornos dos mais variados, mas sempre interligando
cenários e formas de afirmação identitária e social. A construção de
diferentes passados vem sendo considerados como fundamentos de
formação de coletivos humanos nas mais variadas instâncias socais,
onde participa de um jogo entre indivíduos e grupos para agrupar ou
separar os atores dentro de um arcabouço cultural. Esse jogo se dá
dentro de um universo material, que se faz pela ação de representação
de seus signos, que fazem com que os atores de uma coletividade

92
Ensaios sobre Memória – Volume 2

interpõem as diferentes significações dos contornos que assumem,


como seus, como é dito por Neal e Eber (2001).
Assim, a configuração material da memória vem sendo foco de
estudos e pesquisa acerca do papel que tem desempenhado nos
coletivos humanos, incorporando o universo digital entre seus modos
de disseminação e preservação, como foi discutido por Dodebei (2015).
Com isso, o presente texto tem como objetivo apresentar uma
discussão acerca da relação entre a memória e o patrimônio cultural,
quando considerados como signos, no sentido peirceano, com a
dimensão da materialidade, onde se encontra a informação, se fazendo
presente e fundamental a efetivação dos processos construtivos, da
própria memória, e a sua possível decorrência que é a identidade.

2. A INFORMAÇÃO E A AÇÃO SEMIÓTICA

Cabe uma distinção entre o conceito de informação e o


fenômeno em si. Enquanto fenômeno, a informação tem presença nos
coletivos humanos deste os seus primórdios, podendo indicar como
um dos atributos que diferencia nossa espécie de outras formas
animais, como é assegurado por Bronowski (1997). Já como conceito,
que delimita uma disciplina, a Ciência da Informação, ele se apresenta
como polissêmico, situação muito próxima ao conceito de cultura. A
cada investigador, em função das circunstâncias peculiares que a
informação se apresenta, promove um entendimento próprio deste
conceito, de forma isolada ou integradas a outros, como foi apontado,
em 1988, por YueXiao.
Ainda sobre a conceituação de informação, e as de discussões a
respeito da sua delimitação, bem como as suas formas de uso, tanto no
nível social, cotidiano, quanto no nível analítico, dentro da Ciência da
Informação, mostram-se circunscritas às demandas de cada
investigação, onde muitas vezes leva a confusão com o conceito de
conhecimento. Para uma delimitação de fronteiras conceituais, Zeman
(1970), a partir do materialismo dialético frente aos estudos da
informação, considera-a como uma qualidade da realidade material a
ser organizada, considerando que ela só existe em um tempo e espaço,
como foi apontado por Pinheiro e Loureiro (1995, p. 45) e em uma
forma percebida pelos sentidos, portanto, material. A Informação só
existe na presença do humano, como seu receptor, já que é nesta
93
Ensaios sobre Memória – Volume 2

instância que se dá o reconhecimento da Informação, tanto no


momento de sus percepção, materialidade, como de sua potência de
significação, não só como indivíduo, mas também como ser e ator
social. A presença humana, fundante, como produtor no processo
informacional passa a considera-la como artefato (Pacheco, 1995), no
sentido de ser um produto de confecção humana, já que ela é uma
ferramenta, produzida e/ou percebida pelo homem, como um dos
elementos necessários para a construção do conhecimento. Como
artefato, a Informação só tem existência quando é percebida como tal, e
só é estabelecida esta percepção quando, de algum modo, em alguma
circunstância, é criada uma relação de significação. Assim essa relação
é efetivada na medida em que:

Se a informação é um artefato ela foi criada num


tempo, espaço e forma específica, que formam um
dos contextos pelo qual deve ser interpretada - o
contexto de sua geração. Sendo artefato ela pode ser
utilizada em um contexto distinto daquele para o
qual e no qual foi produzida, sendo, portanto,
passível de recontextualização. (Pacheco, 1995, p.21)

Assim, esses artefatos são considerados fonte de informação,


onde já se insere a materialidade, do comportamento de grupos que os
utilizaram pela recuperação desses dados, descrever e entender os
comportamentos humanos no passado9, já que cada atributo
observado nos artefatos equivale a um vestígio de uma ação ou
conjunto de ações, como signos dessas ações ocorridas, que acaba por
expor determinada forma de comportamento, o que leva a considerar
um sistema cultural em que há a transferência da informação de
condutas, crenças, valores e modos de fazer, mostrando a informação
como um produto cultural. Assim, o conjunto de coisas recuperadas,
parte da cultura material, é um segmento significativo de um sistema
cultural mais amplo, sendo que:

9Onde, fazendo-se uma aproximação com o conceito de ferramenta de Fischer


(1983), coloca que é o ato humano que conecta uma necessidade passada, com
ações presente para uso futuro, a idéia de projeto.
94
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Por conseguiente, el hombre depende de la


información de comportamiento aque le transmiten
sus mayores y los individuos de su propia edad
dentro del grupo social, y uma de las primeiras
funciones de este aglomerado social será de
“enseñar” al joven hominidio a sobreviviren las
condiciones prevalecientes em su medio.[...] los
sistemas culturais son sistemas de transmisión
continua da la información adquirida e acumulada,
que completan el comportamiento instintivo del
hombre, y em los que intervienen signos y símbolos
particularmente útiles frente a la selección natural
[...] Em cualquer caso, la eficacia de un sistema
cultural determinado depende claramente de la
quantidade de información que puede almacenar y
difundir por cualquer medio a nível consciente o
inconsciente. (Clarke, 1984, p.75)

Com a manutenção e mudança nos tempos e espaço dos


comportamentos culturais, vai depender de uma determinada
permanência que permita estabelecer e acionar as representações
desses comportamentos na composição dos acervos de conhecimentos,
quer do indivíduo, quer de seus grupos. Com essa noção de reflexo de
ações humanas dos artefatos, produzidos ou apropriados, volata a
aparecer a noção de cultura material, como o conjunto de “coisas” 10.
Assim, são formadas e transmitidas as formas de conhecimento
desenvolvidos dentro das instâncias coletivas, como se dá com a
memória (como será visto), que está das estruturas coletivas de
representação dos conhecimentos, como foi exposto por Gonzaléz de
Gomez (1993), agregando-se a isso:

O conhecimento incluí e pressupõe a representação.


A representação de um objeto é um ato muito
diferente de seu simples manuseio. (...) Para
representarmos alguma coisa não basta manipulá-la

10A noção de COISA será delimitada mais adiante do texto a partir da ótica de
Ingold (2012).
95
Ensaios sobre Memória – Volume 2

corretamente e utilizá-la com finalidades práticas.


Precisamos ter uma concepção geral do objeto e
considerá-lo de ângulos diferentes, a fim de
descobrir lhe as relações com outros objetos; e
localizá-lo determinando sua posição em um sistema
geral (Cassirer, 1977, p.31).

Voltando a Zeman (1970), a informação escapa dos limites da


pura quantificação, quando se afasta da procura de medição de fluxo de
informação em determinado canal, como era feito por Shannon &
Weaver (1975), mas, principalmente, sob a ótica da organização em si,
enquanto processo resultante de fatores de ordens diversas (social,
cultural, moral, ético, etc.). Para Zeman, portanto:

A informação é, pois, a qualidade da realidade


material de ser organizada (o que representa,
igualmente, a qualidade de conservar este estado
organizado) e sua capacidade de organizar, de
classificar um sistema, de criar (o que constitui,
igualmente, sua capacidade de desenvolver a
organização). É, juntamente com o espaço, o tempo e
o movimento, uma outra forma fundamental de
existência da matéria - é a qualidade de evolução, a
capacidade de atingir qualidades superiores. Não é
um princípio que existiria fora da matéria e
independentemente dela (como são, por exemplo, o
princípio idealista da entidade ou o termo da
“entelequia”) e sim inerente a ela, inseparável dela
(Zeman, 1970, p. 157).

Concordando-se, explicitamente, com a visão da informação


enquanto artefato, vendo-a como resultado da ação intencional de uma
forma de registro, esta informação passa por diversos níveis de
interpretação, por conseguinte de contextualização, dentro do
processo, já mencionado, de interlocução, no qual a experiência-
distante passa a ser a experiência próxima (Geertz, 1983).
Reconhecendo-se que, nesta recontextualização, deve-se levar em
conta dois fatores de afastamento para o entendimento das novas
96
Ensaios sobre Memória – Volume 2

interpretações dessa informação, o tempo e o espaço, poder-se-ia


discutir, nesse ponto, as novas tecnologias de informação, as redes de
informação, a Internet etc., mas essa discussão acabaria fugindo do
foco central do trabalho, se bem que, estes dois fatores não devem ser
levados em conta sob seu aspecto físico, mas sim sob o prisma da
cultura, ou seja, a distância espaço-temporal de uma cultura, ou seu
momento, para outra. Sem esquecer de entender a noção da
informação como coisa (Buckalnd, 1991), já que demanda e produz
ações dentro de um organismo social, em e com uma dinâmica própria.
Para considerar a informação exclusivamente dentro do
universo humano, recorreu-se a Bronowski (1997) para expor essa
circunscrição. Este autor aponta que a informação não faz parte dos
processos de comunicação entre os animais, já que estes não fazem uso
de informação, enquanto multiplicidade de potências de significação,
mas sim, instrução, onde há somente uma possibilidade de significação.
Essa diferença se dá em função da variedade de possibilidades de
formação de mensagens, de acordo com as formas de perceber e
pensar de cada receptor, dentro de uma perspectiva de conhecimento
estabelecida anteriormente. Trazendo para os processos
informacionais a subjetividade, já que não é possível, nem ao emissor
(quanto for humano), nem ao receptor, estar desvinculado das
emoções, o que torna a informação, a partir dessa ótica, um produto
exclusivamente humano e, portanto, um artefato.
Procurando ampliar a noção de informação, saindo da esfera
dos suportes textuais, recorreu-se a Buckland (1991), quando
considera a informação como uma coisa, já apontado. O que seria essa
noção de coisa colocada para a informação pelo autor? Para tanto
recorreu-se às três configurações que esse autor dá para o fenômeno
informação como processo, como conhecimento e como coisa. Nessa
categorização Buckland (1991), procura especificar os contornos da
informação, de forma distinta do conhecimento, quando coloca a
inf0rmaçao de modo intangível (ou imaterial) dentro do escopo do
conhecimento, sendo incorporada a ele. Quando essa informação passa
por uma perspectiva da sua tangibilidade (ou materialidade),
assumindo um caráter representacional, ela começa a assumir uma
autonomia, distinguindo-se do conhecimento, passando a ser uma
coisa, ressaltando sua materialidade. Pode-se ver essa distinção do
conhecimento e especificação como:
97
Ensaios sobre Memória – Volume 2

(…) Knowledge, however, can be represented, just a


an any such representation is necessarily in tangible
form (sign, signal, data, text, film, etc) and so
representation of knowledge (and of events) are
necessarily information-as-thing (Buckland, 1991, p.
352).

Nesta linha de raciocínio, nota-se a aproximação da informação


com o ato ou processo de representar, podendo até mesmo inferir que
ela é a parte do conhecimento passível de ser materializada, de forma a
produzir um ente de representação, que é o signo. A parti desta
constatação, a informação pode ser vista a partir da Teoria Semiótica
de Peirce, onde desempenharia, por meio da representação, o papel de
signo, como algo que está no lugar de alguma coisa (Eco, 1980).
Aprofundando essa correlação, poderíamos ver que na tríade que
Peirce (1977) coloca na formação do signo, signo-objeto, signo-veículo
e signo-interpretante, sendo que o primeiro e o terceiro, estão
diretamente ligados à mente do emissor ou do receptor, enquanto que
o segundo está afeito ao processo de sua transferência, na “mensagem”,
passível de ser percebido pelos sentidos do receptor, com a sua
materialidade, onde reside a informação, que afeta e promove o
conhecimento desse receptor.
Assim, a informação aqui considerada é aquela que diz respeito
uma determinada coisa que é percebida pelos sentidos, e por isso
material, a uma produção de significados socialmente aceitos. É aquele
fenômeno em que há não só a produção de um bem simbólico, mas
também sua disseminação e consumo, que implica na sua própria
reprodução, já que a dimensão espacial é extremamente dinâmica,
dentro da sua recontextualização, a partir de um acervo de
conhecimentos também sociais. Enquanto todo esse processo
informacional somente dá dentro de circunstâncias histórico-culturais,
de um determinado segmento ou grupo social (Capurro, 2003). Vendo
aí uma questão de identidade, já que a informação implica em
significação, ela poderia estar restrita a setores ou segmentos culturais,
que podem ser mais ou menos permeáveis, produzindo, assim, novos
significados sobre a informação disseminada. Com isso, podendo
circunscrever a informação como aquela parcela do conhecimento, em
98
Ensaios sobre Memória – Volume 2

qualquer instância social, que pode ser materializada, assumindo uma


função de mediadora das relações entre os indivíduos de uma
coletividade.

3. A MEMÓRIA E SEUS SIGNOS

Toda ação humana está embasada por sistemas simbólicos que


os seus vários coletivos configuraram. Desde a contidianidade mais
mundana, da escolha da roupa, como foi visto em Miller (2013), do
alimento entre outras coisas, até os momentos mais sagrados, essa
dimensão simbólica do fazer humano está presente, podendo
categorizar o humano como um animal simbólico (Cassirer, 1977).
Considerando que a interação do humano com o mundo passa pela
cultura e compondo com a citação de Clarke (1984), a visão da essência
simbólica do humano, vislumbra-se os sistemas simbólicos, que podem
ser colocados, em uma perspectiva semiótica como:

It is fundamental structure of the sign purely formal?


Without doubt it is not so, since it appears as the
consequence of a common origin, which will be
called the symbolic function. […] To Hughlings
Jackson (1932), not only language but also writing
and pantomime are representative behaviors; they
belong to the same function, which allows
representation through or images. For Head (1926),
as particular type of behavior exist, which he calls an
activity of formulation and symbolic expression and
which symbol, either linguistic or not, plays a role
between the initiation and the execution of an act;
within this category of activity we find behaviors as
diverse as language and writing, as well as
calculation, music, plans and itineraries, designs,
dates and so on. […] consist in being able to
represent something signified-object, event,
conceptual scheme, etc. – by means of a
differentiated “significant” whose sole purpose is to
provide this representation: language, mental image,
symbolic gesture, etc. (Molino, 1992, p. 17-18).
99
Ensaios sobre Memória – Volume 2

A noção de memória vem passando por inúmeros contornos e


discussões, em função das novas configurações que as diversas
sociedades contemporâneas vêm assumindo e as novas perspectivas
teóricas que têm se instalado para investigar os eventos sociais,
possibilitando ver essas ocorrências como processos, contínuos e
circunstanciados. Nas reflexões que serão apontadas aqui estão
voltadas as memórias intersubjetivas, quer de conotação social ou
coletiva. Assim, percebe-se a memória como um fenômeno socialmente
engajado, fruto de interações dos indivíduos entre si e de uma
coletividade em seu cotidiano. Nisso, a memória vem sendo vista como
uma construção pela questão da sua dinâmica, de duração perene com
conteúdo fluidos, diretamente relacionada com as formas de vida e
materialidade que cada circunstância de ação promove. Podendo ser
considerada como uma construção em um tempo e espaço social dado,
como nos é apontado por Bergson (2011).
Por uma proximidade de relação com o passado, muitas vezes a
memória é confundida ou equiparada à história. Para essa distinção,
vale indicar o que foi colocado por Pelegrini (2008), quando discute a
relação entre identidades culturais, patrimônio e memória, utilizando-
se da distinção de Nora, ela coloca que:

Não por acaso, Pierre Nora concluiria que “a


verdadeira percepção do passado consistia em
considerar que ele não era verdadeiramente
passado” e, nesses termos, estabeleceria claras
distinções entre as duas categorias. A memória,
afirmaria: “[...] se enraíza no concreto, no espaço, no
gesto, na imagem, no objeto”, ao passo que a história
estaria no seu entendimento vinculada a “[...]
continuidades temporais, às revoluções e relações
das coisas.” (Nora, 1993, p.9). A narrativa histórica
na modernidade seria uma construção “relativa” e a
memória pairaria soberana, tal qual os mitos
fundadores o faziam para eternizar os ancestrais nas
antigas civilizações (Pelegrini, 2008, p. 155).

100
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Colocando a memória como distinta da história, já que a


primeira não está submetida aos contornos de formalização,
objetividade e rigidez, que o discurso produzido pela segunda
prescinde, em uma aproximação com o que foi discutido por Ricouer
(2007). Assim, mantendo o direcionamento, a memória deve ser vista
com uma ligação significativa com a imaginação, já que suas estruturas
memoriais são construídas a partir de lembranças, no sentido
entendido por Diehl (2002). Para tanto, a noção se lembrança, em que
o indivíduo se interliga com outros sujeitos de sua coletividade, traz
em si a vinculação com as imagens, como uma forma mais efetiva de
reciprocidade (Mauss, 1983), que vão além dos objetos em si,
chegando as trocas de representações dos indivíduos entre si. Assim,
nesse entrelaçamento de subjetividades, o esquecimento entra como
elemento seletivo das estruturas memoriais (Ricouer, 2007) que são
construídas em cada momento, em cada espaço e em cada
circunstância, para o atendimento de demandas específicas de ações
sociais.
Em uma discussão acerca do caráter individual ou
intersubjetivo da memória, Candau (2013) faz uma série de colocações
acerca da essência individual da memória, onde a sua solidez se dá na
instância do indivíduo, não podendo ser verificada de forma rigorosa
fora dessa dimensão. Traz à discussão o conceito de memória coletiva
de Halbwachs (2013), onde é abordado de forma vaga e prática, mas
desfaz a distinção entre o individual e o coletivo. Nesta discussão,
relaciona a noção de memória coletiva à representação, onde a prática
de partilha de recordações faz com que uma memória seja construída
em cada momento de compartilhamento, o ato de partilhar está
inscrito no processo de construção da memória. E a partir dessa
constatação que os mecanismos de reciprocidade de um segmento
social, interligando a dimensão individual à coletiva que participam no
processo memorial, pode-se dizer que:

De facto, nenhum antropólogo pode contestar a


vontade dos grupos humanos de elaborar uma
memória comum, uma memória partilhada cuja idéia
é muito antiga. Os mitos, as lendas, as crenças, as
diferentes religiões são construções memoriais
coletivas. Assim, pelo mito, os membros de uma dada
101
Ensaios sobre Memória – Volume 2

sociedade procuram veicular uma imagem do seu


passado de acordo com sua própria representação
daquilo que eles são, o que é completamente
explicito nos mitos de origem. O conteúdo da
narrativa será objeto de uma regulação memorial
coletiva que dependerá, tal como a recordação
individual, do contexto social e dos jogos do
momento da narração (Candau, 2013, p. 91).

Com a noção de construção, incorpora-se a questão da


multiplicidade dos tempos sociais, traz a discussão o que Candau
(2014) chama de memória longa, que ignora o rigor da história, o que
leva a um reforço da identidade, quando coloca seus eventos fora do
tempo, como pode ser exemplificado pelos “mitos de origem.
Colocando fora do tempo, essa memória longa vem a partir de uma
materialidade. Nesta linha, pode-se incorporar a noção de memória
cultural de Assmann (2008), em que essa categoria de memória, de
longa duração, é construída a partir de heranças simbólicas que são
materializadas em diferentes suportes. Entendendo-se essa
materialidade como a produção e/ou apropriação das ações no mundo,
utilizando-se de diferentes materiais, que são passíveis de serem
percebidos pelos sentidos humanos (Kanppett, 2012). Com isso
configuram-se acervos documentais, em uma determinada lógica e
coerência, sem necessariamente institucionalizar-se, o que vem incluir
a noção de objeto. Aproximando-se de Bergson (2011), quando institui
a questão da vida junto a memória, transforma-se a noção de objeto,
que denotaria algo sem vida para Ingold (2012) 11, para a noção de
coisa, como o conjunto de referências para a construção das memórias
nos fluxos vitais, o que desdobra em outros aspectos dos fazeres
humanos. Para essas ações a materialidade pode estar em configurar-
se em informação, exposta em variados suportes.

11Considerando a amplitude da categoria COISA, onde a vitalidade é o seu


fundamento, observa-se a aproximação com a noção de coisa de Buckland
(1991).
102
Ensaios sobre Memória – Volume 2

4. CONTORNOS E MATÉRIA DO PATRIMÔNIO CULTURAL

A figura do Patrimônio Cultural, na atualidade, tem assumido


um caráter cada vez mais presente dentro dos vários tecidos sociais
como foram de manifestações das vozes dos diferentes atores que
compõe os segmentos das várias sociedades. A perspectiva
arqueológica para tratar do patrimônio cultural, enquanto produtos,
fora de uma cotidianidade, que se inscrevem dentro do que foi
denominado de cultura material, pode ser justificada na medida em
que como campo de conhecimento, tem o seu objeto de estudo a
cultura material, os artefatos produzidos e utilizados pelo homem no
passado, como proposto por Dunnell (2005). Nesse sentido, o
patrimônio cultural, devido a seus contornos fluídos (Bauman, 2017),
como uma forma de conectar diferentes temporalidades, indica que a
crise do paradigma disciplinar ainda não foi devidamente tratada,
como foi discutido por Fahlander e Oestigaard (2004), colocando os
estudos da cultura material, enquanto objeto de estudo compartilhado,
em um espectro de uma pós-disciplina, com a inclusão não só da
Arqueologia ou Ciência da Informação, mas outros campos também,
que poderiam estabelecer diálogos e construir conhecimento acerca
desta faceta humana que interliga presente passado e futuro.
Como já foi indicado anteriormente, ocorre de forma
disseminada na sociedade a era da explosão do patrimônio, conforme
nos diz Dodebei (2007), em um processo de construção e afirmação de
memórias e identidades, contrapondo-se aos meios de comunicação e
informação que permeiam os vários cotidianos. Isto se dá como reflexo
das vozes dos diferentes segmentos sociais que compõe a sociedade,
como pode ser exemplificado pelo texto constitucional, que define
como patrimônio cultural os elementos que referenciam a memória e
as identidades dos diferentes grupos que compõe a sociedade
brasileira, conforme consta da Constituição da República Federativa do
Brasil, promulgada em 1988.
Pode-se considerar como patrimônio cultural, tendo como
norte o texto constitucional, o conjunto dos elementos que compõe a
cultura material enquanto referencial de construções memoriais e
identitários. Entendendo como um produto humano, o fenômeno do
patrimônio cultural assume uma dimensão simbólica, em um sentido
103
Ensaios sobre Memória – Volume 2

semiótico, ou seja, esses elementos materiais funcionam como signos


veículos de um processo social de construção de significados dessas
referencias, mas de forma distinta do que é considerado pela ótica
estruturalista. Nesse sentido pode-se falar sobre o patrimônio cultural
enquanto uma coisa, já que muda e não é cristalizado no tempo,
apresenta-se como veículo e símbolo de vontades e fazeres que as
diversas instâncias sociais promovem e resultam. O patrimônio
cultural então, será a aglutinação de uma dimensão material, que se
apresenta à percepção (Santella, 1993) e de uma dimensão simbólica,
que permite a interpretação e significação dessas coisas, quer sejam
tangíveis, quer intangíveis12
Essa diferenciação de concepção do signo, leva em conta o
fundamento originário da escola estruturalista, que deriva da escola
linguística de Saussure, que vai influenciar profundamente os estudos
simbólicos da cultura, tem como núcleo a idéia dicotômica de signo,
onde o significado assume o papel de elemento compositor desse
signo, juntamente com o significante (Erickson & Murphy, 2015), o que
vai diferenciar totalmente do aspecto triádico de concepção do signo a
partir de uma lógica pragmática (Coelho Neto, 1983), como será visto
no decorrer deste texto. Enquanto fenômeno semiótico, vincula-se a
observação do aspecto simbólico do patrimônio cultural pela ótica da
semiótica de Pierce (1977), que quebra a dicotomia estruturalista
saussuriana, passando por um direcionamento pragmático e lógico,
onde o signo não carga o significado, mas antes como mediador da
construção dele, como pode ser deduzido de estudo de Eco (1980).
Quando considera o signo, sendo ser da representação, como
produto triádico de instâncias específicas, leva-se a considerar as três
esferas de ação que ele promove e resulta, como foi indicado por Nöth
(1985). O caso signo-objeto que parte de uma percepção, real ou não,
de um emissor acerca de uma coisa do mundo, que é construída em sua
mente, como uma representação mental (Santaella & Nöth,1998), e
pode ser voltada para a formação de um outro signo, de natureza
distinta, o signo-veículo. Essa faceta do signo, que está da esfera das
representações públicas como entendido por Santaella & Nöth (1998),

12 Ressaltando-se que a tangibilidade ou intangibilidade do patrimônio


cultural é um recurso classificatório para estruturação de mecanismos de
preservação dele.
104
Ensaios sobre Memória – Volume 2

estando diretamente relacionada à intensão do emissor de representar


algo à alguma instância, ele torna-se produtor e reprodutor de outra
categoria de signos, o signo-interpretante, que volta a esfera das
representações mentais, já na instância do receptor. Esta dimensão do
signo aparece por ação da faceta anterior, dentro da feição interna do
dispositivo de informacional. Mas todas essas facetas dos signos são
mediadoras de construção de significados, que estão voltados aos
diferentes níveis de percepção que se vai construir dos signos13.
Nesta dinâmica de ações e reações dos signos, que se dão na
visão do que vem a ser o patrimônio, passando a ser visto como um
elemento de representação, aproximando-o do conceito de informação,
cabendo indicar que ele apresenta agências resultantes e promotoras
de ações sociais. Em certa forma esse patrimônio tem uma presença
tão marcante no cotidiano humano, em suas diversas configurações,
como pode ser relacionado inclusive com os fazeres, como é indicado
por Leroi-Gourhan (1985), que dirige, de forma pontual e circunscrita,
as diferentes percepções de mundo que os segmentos sociais
constroem circunstanciadamente, como foi observado por Gonçalves
(2003). Essas ações do patrimônio, resultam de negociações realizada
na coletividade que dele se utiliza e, algumas vezes, de conflitos,
quando se inscrevem as estruturas de poder das coletividades
humanas em suas convivências, como foi colocado por Velho (2007),
produzindo ou transpondo barreiras que se colocam como resultantes
dessas ações. Percebendo que o patrimônio se instaura nas mais
variadas instâncias sociais das coletividades humanas, podendo ser
colocado dentro da categoria de fato social total de Mauss (1983).
Com isso, a aproximação que Gonçalves (2003) indicou do
patrimônio com as formas de pensar e agir dos grupos humanos está
bem coerente, que que está como produto e promotor dessas ações e
pensamentos, configurados intersubjetivamente. Enquanto signos de
um acervo coletivos, com significações circunscritas nas negociações e
conflitos dos fazeres, ocorrendo mudanças de tempos, lugares e atores
sobre um mesmo patrimônio acabam produzindo instâncias simbólicas
específicas, e com a ação desses coletivos e dos próprios patrimônios
sobre as diferentes individualidades, delimitam como estas vão agir,

13As percepções de primeiridade, segundidade e terceiridade como é colocado


por Santaella (1993)
105
Ensaios sobre Memória – Volume 2

por isso “O patrimônio é usado não apenas para simbolizar, representar


ou comunicar: é bom para agir” (Gonçalves, 2003, p. 27), com um
sentido simétrico do agir, em que a ação humana sobre a constituição
desse patrimônio, como também a ação do patrimônio sobre as formas
de fazer e construir o humano.
Nesse sentido, o conjunto de coisas produzidas e apropriadas
pelo humano delineiam o quadro do que seria entendido como
patrimônio cultural de forma mais simétrica e processual, detentores
de uma materialidade e de simbolismos fundantes. Com isso esse
conjunto de bens que tornam-se uma ligação entre a atualidade,
individual ou coletiva, com uma concepção de passado, passa a ser
entendido como uma propriedade difusa dependendo das posições e
momentos em que estão circunstanciado (Sousa, Azevedo Netto &
Oliveira, 2018), onde os conflitos e disputas se dão, como já foi
apontado antes (Velho, 2007). Partindo desta situação, processos de
significação, fruto da ação semiótica desses signos, são implementados
atendendo as demandas sócio-históricas e espaciais que formam uma
malha de relações.
Esta interrelação dessas coisas que formam o patrimônio
cultural se dá por meio dos rumores que esses objetos estabelecem em
sua relação com os humanos. Essa questão foi apontada por Azevedo
Netto, Loureiro e Loureiro (2013), quando apresenta um texto sobre as
ações documentais dos objetos, enquanto suporte informacional para
construção das memórias. Nesta linha, a partir de uma perspectiva
arqueológica, pode-se extrapolar, indicando que os objetos além de
estabelecerem ações sobre os humanos, também estabelecem outras
ações sobre os outros objetos que se encontram na mesma
circunstância, podendo ser a mera presença ou interferência dos
objetos, uns sobre os outros, como sucessões de semioses14. Nessa
discussão vislumbra-se a relação entre o patrimônio cultural com a
informação, como já foi apontado por Azevedo Netto (2008 e 2011).

14Entendendo a semiose como a ação de um signo sobre outro, em um


processo de significação conforme Eco (1980).
106
Ensaios sobre Memória – Volume 2

5. A FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES

A questão do conceito de identidade tem, há muito, fomentado


intensos debates acerca de sua aplicabilidade. Observando que ela se
dá de formas múltiplas, com o foi indicado por Hall (2002), mas não
estando circunscrita somente ao que ele chama de pós-modernidade.
Desde as abordagens tidas como mais pontuais, onde a identidade era
considerada como algo dado e estabelecido, até os dias atuais, quando
o conceito passa a ser visto e tratado como algo mais fluído, processual,
na qual a “identidade pode ser um estado [...], uma representação – eu
tenho uma ideia de quem sou – e um conceito, o de identidade
individual, muito utilizado nas Ciências Humanas e Sociais” (Candau,
2014, p 25). Cabe insistir na complexidade da noção de representação
que a identidade é vista por determinado segmento do conhecimento,
mas cabe considerar uma ampliação desta complexibilidade, quando os
contornos da identidade saem da esfera do indivíduo e assumem
desenhos mais coletivos, onde passa a efetivamente considera com
representação, onde:

Desse ponto de vista, seria preciso atribuir nuances


às concepções situacionais de identidade, sem no
entanto, rejeitá-las, afirmando que pode existir um
núcleo memorial, um fundo ou substrato cultural, ou
ainda o que Ernest Gellner chama de “capital
cognitivo fixo”, compartilhado por uma maioria de
membros de um grupo e que confere a este uma
identidade dotada de certa essência (Candau, 2014,
p. 26).

Essas materialidades, produzidas ou apropriadas, trazem em si


uma configuração estética que seriam as formas de que as coisas do
mundo se manifestam, dentro de um determinado tecido sócio-
temporal. Este fator, é que vai promover a identificação dos diferentes
modos de interlocução entre os produtos/apropriações com os
espectadores, na medida em que estão dispostas de acordo com
determinado “estilo” aceito e desenvolvido por grupo, em uma
circunscrição espaço-temporal. Com a identificação dos estilos, chega-
107
Ensaios sobre Memória – Volume 2

se ao que Fischer (1987) chama de mapas cognitivos, onde se detecta


que toda a formação do padrão estético está relacionada à construção
de identidades culturais, o que remete ao trabalho de Duarte (1997)
acerca das formas sociais de representação e construção de
identidades, relacionando as formas de classificação e ordenação dos
grupos culturais às identidades expressas simbolicamente.
Uma dessas materialidade pode estar fundada no que Nora
(1993) chama de lugares de memória, espaços destinados aos
processos e construção das memórias de uma determinada
coletividade, de modo institucional ou natural. Para tanto, observa-se
uma relação entre esses espaços e a construção das próprias
identidades, quer individuas, quer coletivas, com isso:

[...] definirmos “lugares de memória” como locus


privilegiado de referenciais étnicos, regionais,
sexuais, religiosos e, talvez, como algo capaz de
perpetuar costumes, rituais, valores que somente
fazem sentido se conjugarmos simultaneamente
história e memória. (Pelegrini, 2008, p. 155)

Em relação ao fundamento espacial na constituição das


memórias, com questões que circunscrevem os indivíduos em
coletivos, mais ou menos rígidos, é visualizada a relação da memória
com a formação das identidades. Assim:

[...] a compreensão das identidades (no plural) evoca


inquietudes que abrangem desde a percepção dos
elementos que caracterizam os indivíduos como
pessoas ou como grupos sociais até os aspectos que
os diferenciam dos demais (Hall, 2005; Castells,
2003; Pelegrini & Funari, 2008). [...] as identidades
não configuram heranças de ordem natural ou
genética, elas derivam de práticas sócio-culturais.
Ora, elas perfazem artifícios historicamente
utilizados por segmentos humanos que criam
determinadas designações para explicar
racionalmente as relações humanas, organizando-as
e hierarquizando-as (Pelegrini, 2008, p. 157).
108
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Em uma proximidade mais estreita entre memória e


identidade, coloca-se no centro as formas de construção e
representação do tempo, que afasta de uma acepção de ilusão quanto a
memória, mas a torna transitório nos percursos culturais que
estabelece e que se insere. Nessa linha:

Pensar o tempo supõe classificá-lo, ordená-lo,


denominá-lo e datá-lo.
São diferentes temporalidade próprias às sociedades
consideradas que vão ter um papel fundamental nos
processos identitários. Estes vão ser forjados e
instaurados a partir de memórias cuja natureza
depende estritamente de modalidades segundo as
quais os membros de um grupo representam o
tempo – falamos da multiplicidade de tempos sociais
– e se acomodam num fluxo temporal irreversível
(Candau, 2014, p. 85).

Essa aproximação com a noção de classificação, no tocante à


formação das identidades, está afeita à formação dos conjuntos que os
atores sociais elaboram para organizar suas relações e trocas, quer das
dinâmicas internas dos coletivos, quer nas interações entre coletivos
diferentes, em quaisquer distâncias culturais, como foi apresentado
por Geertz (1993). Assim, de acordo com os elementos que cada
coletivo elege como distintivo seu, como foi discutido por Couche
(2003), ele elabora uma rede de relações e hierarquias que inserem os
indivíduos que atuam nessas ações. Essa forma de considerar a
formação de identidades, expressa um processo onde aglutina e
arranja determinados indivíduos em relação à outros, formando
conjuntos que exprimem essas relações, com a configuração e
abrangências dos papeis a serem desenvolvidos por esses atores.
Assim, a identidade enquanto um evento coletivo, se dá em um
substrato, ou circunstância, cultural, onde esse substrato é ordenado e
reordena toda uma gama de relações entre os indivíduos, na
construção identitária e suas sucessivas variações e reformulação.

109
Ensaios sobre Memória – Volume 2

6. COSIDERAÇÕES E QUESTÕES

Em se tratando de ver a materialidade, enquanto o conjunto de


coisas passíveis de percepção pelos sentidos humanos, fruto da sua
ação em produzir ou se apropriar de coisas do mundo, nessa discussão
é observada uma estreita relação entre informação, memória e
´patrimônio na construção das identidades dos indivíduos dentro de
suas coletividades. Iniciando-se pela informação, essa materialidade
pode ser vista como o atributo primeiro de sua existência, anterior a
sua potência de produzir sentido, já que podemos considerá-la como
uma coisa produzida pelo humano, um artefato. Não podendo-se
negligenciar a proximidade entre informação e conhecimento, que está
mediada em um sentido representacional, a circunscrição da primeira
encontra-se nos processos socais de sua ação, chegando-se a afirmar
que a informação seria aquela parcela do conhecimento que seria
passível de materialização, configurando-se enquanto um signo
veículo, de ser percebida pelos sentidos, nos processos de interação
entre os humanos, de uma mesmo grupo, ou de grupos distintos.
Para a memória, seguindo os pressupostos de indicados por
Halbawch (2013), onde a memória do indivíduo se dá a partir da
memória do coletivo e vise-versa, já que o humano em um ser social e
só pode se entender por meio das suas coletividades. E como essas
coletividades não são perenes, mas em constante modificações,
resultado dos processos de interação e reciprocidade entre os
indivíduos, a memória é um produto dessas interações, que se
constroem a partir das demandas que são presentes naquele momento.
Com isso, podemos considerar a memória como uma construção
resultante das relações entre agentes sociais, em determinado espaço e
tempo, que recorre a elementos de um passado, real ou mítico, para
atender as demandas de sociabilidade que o presente do grupo exige.
Nisto, a materialidade se torna a base onde essas ações se dão, já que
em uma coletividade, as memórias de um indivíduo devem ser
percebidas pelos sentidos, por quaisquer meios, por aqueles com quem
dividem aquele momento, que só possível pelo seu aspecto material.
Para o caso do patrimônio cultural, entende-se que não está
dissociado das feições socioculturais que os delimitam e
circunscrevem, espacial e temporalmente, até porque, embora sendo
110
Ensaios sobre Memória – Volume 2

produtos de um determinado passado, ele só pode ser percebido na


sua materialidade, que está carregada de uma dimensão simbólica.
Nessa materialidade do patrimônio em conjunção indissociável com
seu aspecto simbólico, permite denotar uma abordagem semiótica
deste evento enquanto suporte de informação. Ou seja, o patrimônio
cultural, tangível ou intangível, só pode existir quando combina em
uma mesma configuração a sua materialidade, enquanto percepção
pelos sentidos, de seu aspecto semiótico, ou simbólico, nas variadas
mediações de construções de significados para essas coisas.
Essa sociabilidade do patrimônio estabelece uma ligação muito
próxima com a memória, já que está afeita a sua função de
referenciamento das construções memoriais, em qualquer âmbito
(individual ou coletivo), promovendo a ligação entre faixas temporais
distintas (passado, presente e futuro). Isto porque, enquanto
construções socialmente delimitadas, circunscritas temporal e
espacialmente, essas memórias necessitam de algumas referências
para sua consolidação, importam elementos que se expressam
materialmente, passíveis de promover a articulação dos diferentes
atores sociais que se dão naquele momento. Portanto, o patrimônio
cultural encontra-se intimamente articulado com os processos de
elaboração da noção de pertencimento, desde a sua origem conceitual,
em seu aspecto hegemônico, até o presente com as outras formas de
sua significação, com essas referências frente ao marco memorial que
uma coletividade elege como representativo de seu eu e diferenciador
do outro.
Nessa discussão, entre em foco a questão da identidade, que
está sempre presente nos processos sociais. As sociabilidades que
delimitam os coletivos humanos circunscrevem o papel de cada
indivíduo dentro do grupo, de foram a estruturar as suas ações,
ordenar as diferentes formas de produção e dar conta dos conflitos que
ocorrem. Para tanto, a formação desse processo de organização das
forças individuais e coletivas de uma grupo, passam por sua
categorização, o que aproxima da classificação, mas, de novo, isso se dá
dentro das interações dos atores sociais no desenvolver de seus papeis,
e essa relação somente pode ocorrer por meio de materialidades
percebidas pelos sentidos, o que a faz presente nesse aspecto do social.
Considerando a informação, a memória, o patrimônio e a
identidade, pode-se perceber que esses fenômenos humanos
111
Ensaios sobre Memória – Volume 2

compartem, pelo menos, duas características fundamentais. A primeira


apresenta-se na questão representacional, partindo da concepção de
Cassirer (1977) que a espécie humana é uma espécie simbólica, onde o
ato de representar, consciente ou inconsciente, faz parte das formas
com que o humano encontrou para poder se relacionar com o mundo,
estando presente na informação, na memória, patrimônio cultural e
identidade. Assim, como a representação, a materialidade também é
um atributo marcante para os três conceitos, visto que, tanto a
informação, como a memória, o patrimônio cultural e mesmo a
identidade, para sua efetiva ocorrência devem se dar de forma material
para que possa ser percebida pelos membros de uma determinadas
coletividade, o que faz da materialidade uma presença definidora do
fazer humano.

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117
Ensaios sobre Memória – Volume 2

DESTRUIÇÃO E RESISTÊNCIA DE IMAGENS E OBJETOS:


POLÍTICAS DE MORTE E MEMÓRIA

Edlaine de Campos Gomes


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-5166-0496

Julio Cesar de Lima Bizarria


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-1067-6130

Pamela de Oliveira Pereira


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-7013-0052

“Por que as imagens têm atraído tanto ódio?


Por que elas sempre voltam a retornar, não
importa o quanto queiram livrar-se delas? Por
que os martelos [sprays] dos iconoclastas
sempre parecem bater obliquamente,
destruindo algo além, que parece, a posteriori,
importar imensamente?”
(Latour, 2008, p. 115)

1 INTRODUÇÃO

As reflexões constantes neste capítulo integram uma agenda de


pesquisa desenvolvida pelo Observatório do Patrimônio Religioso,
grupo de pesquisa constituído ao abrigo do Programa de Pós-
graduação em Memória Social (UNIRIO), Brasil. Este se propõe a
produzir um inventário de ações voltadas à conservação e preservação,
em diálogo com outras temáticas que tangenciam ou mesmo definem
as trajetórias sócio-históricas de objetos, imagens e manifestações
religiosas e laicas, confessionais e não-confessionais, assim como
aquelas identificadas à religião civil e outras formas implícitas do
fenômeno religioso (Bellah, 1993; Bailey, 1990; Casanova, 1994;

118
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Duarte, Jabor, Luna e Gomes, 2006), considerando a diversificação do


campo religioso brasileiro e as linhas de força atuantes neste contexto.
A análise de grafites e outros grafismos públicos, objetos e
coleções como os que apresentamos aqui evidencia disputas de sentido
e ações de agentes que desequilibram narrativas hegemônicas. As
situações sociais críticas selecionadas, pautadas por ações de
destruição, material ou/e simbólica, contribuem para a compreensão
de processos de produção de apagamentos e esquecimentos
propositais, assim como de resistências de grupos sociais
subalternizados. Pretende-se, assim, explorar as conexões entre os
casos descritos, na perspectiva da memória social, destacando
percursos de estratégias de resistência a “políticas de morte”
produzidas pelo Estado — e também aquelas cotidianas.
Neste sentido, foram selecionadas situações de pesquisas que
apontam tais processos e se constituem como recursos heurísticos
para o debate mais geral proposto. Aborda-se aqui a dimensão da
chamada necropolítica (Mbembe, 2008; Carneiro, 2004) voltada à
materialidade, a partir da quebra, da interrupção brusca ou contínua
do fluxo da vida de objetos, que são violenta, simbólica e/ou
fisicamente, retirados do circuito de reciprocidade ao qual estão
inseridos. Destruir, criminalizar e utilizar objetos sagrados em
contextos não originais, é aspecto decisivo das políticas de morte
impingidas historicamente pelos Estados. O debate proposto procura
mostrar-se atento aos processos de epistemicídio, etnocídio e
genocídio (Nascimento, 1978; Santos, 1997, 2016) que regem o
“contrato racial” (Carneiro, 2004) no Brasil, atuando sobremaneira em
todas as esferas das relações sociais. A violência material e simbólica
exercida nas situações analisadas encerra o princípio necropolítico que
impõe o extermínio de grupos sociais e suas pautas, na busca pela
perpetuação de um modelo histórico-social que os exclui da condição
de sujeitos de direitos, vastamente analisado pelas ciências sociais, e
aqui problematizado, especialmente, a partir da leitura de referências
como Abdias do Nascimento, Sueli Carneiro e Achille Mbembe.
O primeiro material de pesquisa apresenta uma complexa e
centenária trama de disputas, que repercute até a atualidade, e diz
respeito à controvérsia da transferência de objetos sagrados afro-
brasileiros, oficialmente denominados Coleção de Magia Negra,
“aprisionados” no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro. A ação
119
Ensaios sobre Memória – Volume 2

jurídica é resultado de disputas de narrativas e ampla luta


empreendida pelo “povo de santo”15, que há mais de quarenta anos
reivindica a saída dos objetos sagrados e outros bens desse local. As
ações de reivindicação empreendidas, sempre sob apreciável tensão,
marcam a possibilidade de reescrita da memória por aqueles sujeitos
cujas práticas religiosas foram criminalizadas por mais de dois séculos
no Brasil (Pereira, 2016). Seguindo o mesmo contexto de tensões e
conflitos que caracterizam o complexo campo religioso brasileiro, com
predominância histórica do cristianismo católico, atualmente
contrabalançado pela emergência evangélica, a segunda situação
apresenta um conjunto de exemplos de destruição material do sagrado,
processo identificado e amplificado nas últimas décadas, tendo como
foco preferencial as religiões afro-brasileiras e a religiosidade popular
(Gomes, 2010; Gomes, 2009a, 2009b; Gomes e Oliveira, 2019). Por fim,
trazemos o terceiro material de pesquisa, um breve conjunto de
grafismos mortuários inscritos no espaço público para denunciar as
diversas políticas de morte e reivindicar justiça memorial às
populações subalternizadas e racializadas na cidade. Esses grafismos,
frequentemente presentes sob a forma de grafites, pichações e outros
elementos que se costuma associar às diversas culturas do grafite,
consistem em homenagens realizadas a duas jovens negras cujas vidas
foram encerradas prematuramente, como efeito da violência
necropolítica, por uma denúncia espirituosa, anônima e coletiva desse
mesmo processo e por uma análise preliminar do local em que foram
assassinados a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson
Gomes. Buscamos, desse modo, colocar algumas indagações sobre as
condições em que os clamores contidos nos grafismos mortuários — e
suas eventuais remissões religiosas — podem contemplar as vítimas
mais vulneráveis da administração necropolítica.

15 “Povo de santo”, “povo de terreiro”, “povo de axé”, são categorias nativas


que identificam integrantes das chamadas religiões afro-brasileiras, podendo
ser utilizadas por estes em diferentes contextos, e mesmo incorporadas como
categorias analíticas por estudos acadêmicos. O mesmo pode ser dito em
relação às várias maneiras de nomear os lugares de culto dessas religiões:
terreiro, casa de santo, casa de axé, comunidade de terreiro, egbé, ilê etc.
(Gomes e Oliveira, 2019). Os usos dessa nomenclatura podem ser políticos,
identitários ou cotidianos.
120
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Por fim, os grafismos realizados em memória a vítimas da


administração necropolítica, como a vereadora Marielle Franco, assim
como objetos (a placa em sua homenagem), desfigurados ou
quebrados, reproduzidos ou restaurados; os objetos como roupas e
imagens de santos destruídos, e algumas vezes salvos, em casos de
conversão religiosa; e o aprisionamento e libertação da Coleção de
Objetos Sagrados das religiões afro-brasileiras, são dinâmicas de um
mesmo processo de produção de apagamento e subalternização das
memórias negras no Brasil. São exemplos complexos e cada qual
passível de aprofundamento16, mas que foram reunidos nesta reflexão
com o intuito de problematizar o lugar de objetos, coleções e grafismos
no âmbito dos debates sobre memória social. Em despeito da
composição bastante diversa dos materiais de pesquisa constantes
nesta análise, considera-se que os casos apresentam pistas para o
debate sobre expressões materiais e imateriais no processo dinâmico
de produção de memórias e esquecimentos, um aspecto central da
biografia cultural dos objetos. (Kopytoff, 1986; Gonçalves, Guimarães e
Bitar, 2013). As “biografias culturais” dos objetos e ações citadas são
compostas por ambiguidades, controvérsias, disputas de sentido,
estando definidas estruturalmente pelo racismo, em particular,
político-religioso.
Pode ser útil para esta discussão refletir sobre a distinção
utilizada por Ingold (2012, p. 29) entre objeto e coisa, à luz de
Heidegger: “O objeto coloca-se diante de nós como um fato consumado,
oferecendo para nossa inspeção suas superfícies externas e congeladas.
(...) A coisa, por sua vez, é um "acontecer", ou melhor, um lugar onde
vários aconteceres se entrelaçam”. Os aconteceres aqui discutidos
revelam a continuidade do pensamento racialista, instaurador da
identidade nacional no período republicano, e de suas aspirações a um
modelo de nação “civilizada”, processando um movimento pautado
pela higienização, pelo branqueamento e pelo expurgo de qualquer
lembrança material ou imaterial de matriz afro-brasileira. A
abordagem, desta maneira, também está conectada a estudos que
entendem que “acompanhar o deslocamento dos objetos ao longo das
fronteiras que delimitam esses contextos é em grande parte entender a

16Os autores produzem pesquisas individuais sobre os casos aqui abordados,


alguns são citados no decorrer do capítulo.
121
Ensaios sobre Memória – Volume 2

própria dinâmica da vida social e cultural, seus conflitos, ambiguidades


e paradoxos, assim como seus efeitos na subjetividade individual e
coletiva” (Gonçalves, 2007, p. 15).
Experimentamos na presente abordagem refletir sobre as
ressonâncias de políticas de morte voltadas aos aspectos material e
simbólico, no que concerne às ações do Estado e as relações cotidianas.
O iconoclasmo nos ajuda a alinhavar esse debate, na medida em que
“sabemos o que está acontecendo no ato de quebrar e quais são as
motivações para o que se apresenta como um claro projeto de
destruição” (Latour, 2008, p. 112-13) 17. Vale para nós, no momento, a
pista de que a iconoclastia não prescinde de conhecimento sobre o
objeto a ser apagado ou extinto; na ação de destruir estão entranhados
valores sociais e culturais construídos e transmitidos por gerações. As
perguntas de Bruno Latour, destacadas na epígrafe, podem nos ajudar
a refletir sobre as relações entre a administração necropolítica e a
destruição ou submissão estatal de imagens/objetos.
Nas relações de poder, o “outro” gera tanto repulsa quanto
medo, conforme a intenção de apagar, por diferentes estratégias de
destruição material e simbólica, a memória dos chamados,
pejorativamente, pelo pensamento colonizador, de primitivos,
bárbaros, mágicos — é uma estratégia de poder mencionada por
Halbwachs (1990, p. 157). Ao abordar as religiões, o autor observa que
estas se expressam sob formas simbólicas que ocorrem nos espaços, no
material, “por isso é preciso derrubar os altares dos antigos deuses e
destruir seu templo se quisermos apagar da memória dos homens a
lembrança dos cultos ultrapassados”. Vale referir que tais ações de

17 Latour elabora a noção de iconoclash (2008, p. 113), que possibilita novos


olhares sobre o ato de destruir: “é quando não se sabe, quando se hesita,
quando se é perturbado por uma ação para a qual não há maneira de saber,
sem uma investigação maior, se é destrutiva ou construtiva”. O debate sobre
vandalismo, desfiguramento e destruição é revitalizado em Goyena, A. (2013).
Como grafitar um castelo medieval: "street art" nas fachadas da nobreza
britânica. Interseções [Rio de Janeiro] v. 15 n. 1, 194-217. O autor analisa, em
suas analises, intervenções realizadas em monumentos e outras edificações
nas quais novos contornos semânticos são acionados pelos agentes que
(inter)agem com os objetos. Não investimos, aqui, no debate sobre as
potencialidades analíticas da destruição, dos restos, descartes e resíduos.
Consideramos essa discussão importante e a inserimos em outras reflexões.
122
Ensaios sobre Memória – Volume 2

destruição não são via de mão única, nem a memória social atua desta
maneira; o alvo da destruição material possui uma biografia, que não
raro pode prescindir da materialidade.

2 O SAGRADO EM DISPUTA: O SAGRADO AFRO-BRASILEIRO NO


MUSEU DA POLÍCIA CIVIL

Em 07 de agosto de 2020 foi assinado termo de transferência


de acervo entre dois museus do Rio de Janeiro: o Museu da Polícia Civil
do Estado do Rio de Janeiro (MPCERJ) e o Museu da República
(MR/IBRAM). Somavam-se à formalização da assinatura, além dos
representantes de ambos os museus, lideranças religiosas de matriz
africana. Tratou-se de ato resultante dos processos de disputa em
torno do sagrado afro-brasileiro, que há um século encontrava-se sob a
guarda do Museu da Polícia, e que integra empreendimento de
reescrita do passado no tempo presente a partir de suas narrativas
originárias.
Os bens em questão possuem especificidades que afirmam o
caráter sui generis da sua trajetória e constituição como coleção
museológica, reunidos por meio de batidas e apreensões policiais
ocorridas ao longo do século XX, mantiveram-se expostos ao lado de
armas, máscaras mortuárias, itens de jogos de azar como roletas e
cartas, materiais de origem nazista etc. A apreensão de objetos
relacionados às religiões Afro-brasileiras como provas de crimes foi
uma prática efetuada pela Polícia da Corte, no século XIX, e continuada
na República a partir do cumprimento dos artigos 155, 156 e 157 do
Código Penal de 1890 18, que versavam sobre a prática ilegal da
medicina e do curandeirismo, da magia e de seus sortilégios (Pereira,
2016).
A coleção foi considerada patrimônio nacional por meio de
tombamento, instrumento jurídico efetuado em 1938, quando recebeu
a denominação “Coleção de Magia Negra”, um ano após a criação do
Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual

18 O Código Penal de 1890 completo está disponível em:


http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-
outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 16/08/2020.

123
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que


completou oitenta anos de sua inscrição no Livro de Tombo
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico em 2018 (Figura 1).
Entretanto, desde 1980, há disputas políticas em torno da devolução
dos itens, reivindicação que considera ilegítima a forma de aquisição e
que desaprova o título dado ao conjunto, considerado desrespeitoso e
desqualificador das práticas religiosas.
A justificativa para criação de coleções com tais contornos está
profundamente vinculada às ressonâncias do racismo científico no
Brasil. Na Bahia, uma coleção com características semelhantes recebeu
o nome de Nina Rodrigues e, posteriormente, Estácio de Lima (Pereira,
2017). Para Paul Gilroy (2007), o conceito de raça constitui-se num
momento em que: “os corpos humanos passaram a comunicar as
verdades de um Outro irrevogável, as quais eram então confirmadas
por uma nova ciência e uma nova semiótica no momento mesmo em
que a luta contra a escravidão racial atlântica estava sendo travada” (p.
81). O autor aponta para a importância da construção de uma distância
temporal para ratificar o estabelecimento destes locais: representantes
do passado, categorizados como pré-históricos e pré-políticos.
Com papel fundamental na construção de um outro, as ciências
— e, aqui são destacadas as ciências sociais — funcionaram como
dispositivos de saber e poder que, atreladas à noção de controle e
violência epistêmica, serão marcas da colonialidade. É o Estado-Nação
o centro do controle e as ciências sociais serão “plataforma de
observação científica sobre o mundo social”, legitimadoras do poder
regulador do Estado (Gomez, 2005). Para se criar a noção de cidadania,
faz-se necessário o estabelecimento da barbárie, em contraposição. A
primeira categoria cria um tipo ideal: Branco, homem, casado,
heterossexual, disciplinado, trabalhador, dono de si mesmo; já a
segunda contempla todos os outros que naquela não se encaixam. Para
o autor, a legitimação dessas categorias nos termos jurídicos e de
direitos culmina no que é entendido como violência epistêmica.
As categorias binárias sustentaram as ciências sociais,
produzindo alteridades como “barbárie e civilização”, “tradição e
modernidade”, “comunidade e sociedade”, “mito e ciência”, “infância e
maturidade”, “solidariedade orgânica e solidariedade mecânica”,
“pobreza e desenvolvimento”. Dessa forma, permeiam os modelos
analíticos das ciências sociais (Gomez, 2005), sua influência percebida
124
Ensaios sobre Memória – Volume 2

também nas ciências sociais aplicadas e, por consequência, nas práticas


museológicas dos séculos XIX e XX. A instituição museu terá papel
fundamental na materialização daquelas categorias na Europa, com
repercussões nas Américas.
O museu consolida-se como marco civilizatório quando seus
contornos institucionais são delimitados, principalmente durante a
formação dos Estados Nacionais. Além das antigas coleções
principescas, aponta-se para a criação de coleções que, de alguma
forma, refletissem a memória nacional, fincando em um passado
comum a origem das novas fronteiras (Choay, 2001). Em contraponto,
e tendo como gênese os gabinetes de curiosidades, foram incorporados
a estes acervos objetos entendidos como “exóticos”, provenientes de
mundos distantes, classificados a partir de um ponto de vista
evolucionista. Nesse sentido, os museus foram essenciais para a
construção de um outro, localizados em espaços-tempos distintos, de
forma hierarquizante e que, ao longo dos séculos XIX e XX, foram
representados em instituições por todo o mundo.
Estes objetos foram adquiridos por meio de pilhagem ou de
aquisições com fortes traços assimétricos, e formam ainda hoje as
grandes coleções europeias, em museus que alcançam, ano após ano,
recordes de visitação, como o Museu do Louvre e o Museu Britânico,
apenas a título de exemplificação. Entretanto, isso não se deu sem a
resistência dos grupos de origem que, nas últimas décadas, reivindicam
a repatriação de objetos museológicos, mas que em primeira instância,
constituem divindades e até mesmo ancestrais, no caso de
remanescentes humanos (Sleeper-Smith, 2009).
Em trabalho anterior (Pereira, 2017), analisaram-se as
múltiplas categorias nas quais os objetos sagrados afro-brasileiros
foram classificados a partir do conceito de biografia cultural dos
objetos (Kopytoff, 1986), quando se empreendeu um novo olhar, com
destaque para o caráter sagrado e sua relação com a biografia das
lideranças religiosas. Este debate está inserido em um contexto de
mudanças históricas, que marcam significativamente o campo da
Museologia. A reivindicação de objetos retirados de seus contextos
originais, principalmente no período colonial, para integrarem
coleções de museus, apresenta-se latente há, pelo menos cinco
décadas. Trata-se de uma questão controversa, que atinge vários

125
Ensaios sobre Memória – Volume 2

museus ao redor do mundo, principalmente os denominados


etnográficos (Sleeper-Smith, 2009; Nason 1997).
A disputa por protagonismo na construção de narrativas tem a
memória como fator legitimador e, como tratado por Gomes e Vieira, é
em momentos de “controvérsias públicas” que as narrativas se
reestruturam, quando “é relevante a 'eliminação das ambiguidades',
por meio de esquecimentos produzidos pelas narrativas, orais ou
escritas, que fixam e transmitem acontecimentos e personagens,
portadores das marcas identitárias” (Gomes e Vieira, 2016, p. 274).
Compreende-se que o movimento por transferência do sagrado
configura “controvérsia pública”, tendo sido permeado por embates ao
longo de todo o processo.
O ano de 2017 marcou novas reordenações no campo de
disputas em torno da coleção de objetos sagrados, originando um novo
panorama. Em março de 2017 têm início reuniões sediadas na
Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), mais
precisamente sob direção de mandato de deputado estadual pelo PSOL
(Partido Socialista), que darão origem à campanha intitulada, no
primeiro momento, “Libertem nossos Orixás”. No dia do lançamento da
campanha, ocorre a sugestão de alteração do nome para “Liberte nosso
sagrado”, tendo em vista que, dessa forma, Umbanda e Candomblé,
assim como outras religiões de matriz africana, estariam
contempladas.
Ao lançamento oficial da campanha seguiu-se a criação de uma
página na rede social Facebook com o mesmo nome, que atualmente
conta com 7.633 seguidores e tem recebido o apoio do “povo de
terreiro”, de acadêmicos, ativistas sociais, políticos e sociedade civil.
Para fins de divulgação, foi proposto que os apoiadores enviassem
fotografias, tendo em mãos o cartaz com a logomarca, publicadas na
página oficial. Dessa forma, empreendeu-se a midiatização por meio de
redes sociais, ação que garantiu ampla difusão do movimento “Liberte
nosso sagrado”.
O desenrolar da campanha contou com ações diversas, dos
quais destacam-se: Audiência pública ocorrida em 19 de setembro de
2017 no Auditório Nelson Carneiro, localizado no prédio anexo à
ALERJ, que contou com lideranças religiosas, membros do legislativo
fluminense, representante do Museu da Polícia Civil, diretores de

126
Ensaios sobre Memória – Volume 2

museus e de órgão ligados à cultura e ao patrimônio em nível estadual


e federal, pesquisadores e representantes da sociedade civil.
Ressalta-se a presença de dois conceitos notadamente
presentes nas falas: reparação e conciliação. Aos favoráveis à saída dos
objetos do museu, a devolução era entendida como reparação por
parte do Estado brasileiro que, por uma prática vinculada ao racismo
institucional, manteve os objetos sob sua guarda como provas de
crimes. Aos contrários à devolução, existia a possibilidade de
conciliação e de manutenção dos objetos no museu, onde seria cedida
uma sala para receber a coleção.
Durante a audiência emergiram outras divergências,
notadamente em relação ao contraponto entre o tratamento dos
objetos sagrados do ponto de vista religioso e museológico. Destaco
aqui um dos tópicos: a possibilidade de restauração. Enquanto objetos
museológicos, a manutenção de sua integridade física poderia ser
garantida por meio de intervenções reconstitutivas de partes soltas,
por exemplo. Entretanto, para parte dos religiosos, os objetos não
deveriam sofrer quaisquer alterações ou mesmo serem manuseados
por pessoas de fora da religião. O tratamento, aqui, não se refere
apenas à fisicalidade dos objetos, mas também ao sagrado inerente a
eles: diz respeito aos cuidados religiosos que deveriam ter sido
dispensados, mas foram impossibilitados pela ação violenta do Estado.
Logo, as fronteiras entre o religioso e museológico são demarcadas.
A campanha estruturou-se em dois eixos centrais a fim de
reivindicar uma nova escrita do passado de violência dirigido ao “povo
de santo”. Em primeiro lugar, a imediata transferência do sagrado para
outra instituição museológica, ação já oficializada e que terá como
depositário o Museu da República, como mencionado anteriormente.
Para assessorar a equipe técnica será criado conselho de lideranças
religiosas que, por fim, terá o direito de ingerência sobre o tratamento
e exposição (ou não) de seu sagrado.
Ainda, a alteração do registro da coleção no IPHAN, de “Museu
de Magia Negra” para “Coleção de objetos sagrados Afro-brasileiros” (o
processo se deu por meio de ação no Ministério Público Federal).
Entende-se que a denominação proposta permite a valorização dos
objetos por ressalta seu significado original e dessa forma, agregar
reconhecimento e valorização às contribuições das religiões afro-
brasileiras para sociedade brasileira
127
Ensaios sobre Memória – Volume 2

A política da morte instituída pelo Estado contra a população


negra e pobre ao longo dos últimos séculos materializa-se no sagrado
afro-brasileiro apreendido e exposto ao lado de objetos considerados
provas de crimes. O conjunto de leis que criminalizaram as religiões
afro-brasileiras durante a construção do Estado moderno brasileiro
fazia parte de um código que incentivava a perseguição à capoeira e ao
samba, tendo em vista se tratarem de práticas culturais negras. A soma
das ações repressivas buscava o epistemicídio dos saberes e das
manifestações afro-brasileiros como um todo, no interior de um
projeto nacional que possibilitasse o embranquecimento da população
rumo à modernidade.
Entretanto, as religiões afro-brasileiras resistiram às expulsões
e destruição de suas casas, permitindo que suas lideranças hoje
reivindiquem a devolução do sagrado preso pela polícia, exposto como
provas de crimes cometidos. Nesse sentido, pode-se compreender as
demandas pela transferência e alteração do nome como aparatos
jurídicos que buscam a ruptura das violências perpetradas pelo Estado
e, por fim, a reivindicação pela reescrita do passado.

3 DESTRUIÇÃO E ADOÇÃO DE IMAGENS DE SANTOS

A discussão sobre destruição de imagens religiosas vem


recebendo maior visibilidade diante da conexão singular entre
traficantes e determinados segmentos evangélicos no Rio de Janeiro,
que adotam como prática ações violentas sobre o que entendem ser
religiões e religiosidades que qualificam como malignas. Já nos anos
1990, essa articulação era percebida pela literatura das ciências
sociais. Lins e Silva (1990) identificam (re)ações iconoclastas
singulares de substituição radical de imagens religiosas, com base na
disputa, na batalha e conquista de território por traficantes e religiosos
nessas localidades. Vital da Cunha (2014, 2015) analisa um movimento
de apagamento e substituição de imagens religiosas na favela de Acari,
Rio de Janeiro, entre as décadas de 1990 e 2010, antes identificadas ao
catolicismo e às religiões afro-brasileiras e, posteriormente, ao campo
evangélico. A autora demonstra uma visível mudança na paisagem
local nesse período, em um processo de produção, desfiguramento e
substituição de imagens de santos e referências religiosas plurais, por
um projeto de cidade religioso e específico, epitomado na inscrição por
128
Ensaios sobre Memória – Volume 2

meio da qual certa facção do tráfico de drogas costuma afirmar seu


domínio nas regiões da cidade que busca dominar: “Jesus é o dono do
lugar”.

Figura 1. Listagem original que integra o dossiê de tombamento da


Coleção (Dossiê de Tombamento 0035-T-38 Volume I, Folha 008,
Arquivo Noronha Santos, IPHAN.

129
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Figura 2. Reprodução. G1. 29 de março de 2019. Disponível em:


https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/03/29/terreiro-
de-candomble-e-depredado-em-nova-iguacu-religiosos-foram-
expulsos.ghtml. Acesso em 15 de agosto de 2020.

O espécime da Figura 2, especificamente, foi inscrito no muro


adjacente a um terreiro, invadido no município fluminense de Nova
Iguaçu por traficantes que se identificavam como evangélicos. Gestos
desse tipo são aspecto extremamente relevante dessa dinâmica no
âmbito do debate sobre intolerância, racismo religioso,
apagamento/violência material e simbólica, mas também no campo da
memória coletiva e das estratégias de resistência.
A identificação de determinadas religiões e crenças religiosas
ao mal, ao primitivo, não emerge na atualidade. Pode-se dizer que,
historicamente, religiões afro-brasileiras e/ou cosmologias
afrocentradas, assim como o catolicismo popular, entre outras crenças
religiosas, foram e são classificadas, dicotomicamente, como ligadas ao
profano e à malignidade. Não cabe retomar neste texto os processos de
construção sócio-históricos que edificaram a estigmatização, a
discriminação e o racismo estrutural, presentes nessas relações, em
particular no caso das religiões de matrizes africanas. Importa
contextualizar que a dinâmica de destruição de imagens e expulsão de
terreiros de Candomblé e Umbanda, por exemplo, de determinados
territórios disputados, como favelas do Rio de Janeiro e da Baixada
Fluminense, repercutem políticas de morte, de submissão e
subalternização do “outro”, sejam elas perpetradas ou combinadas a
práticas difundidas pelo Estado, e incorporadas às práticas cotidianas.

130
Ensaios sobre Memória – Volume 2

A adesão a determinadas instituições religiosas do campo


evangélico (neo)pentecostal19 demanda o desprendimento afetivo e
material de imagens e objetos da religião anterior. Para a nossa
reflexão, selecionamos aqueles concernentes ao catolicismo e às
religiões afro-brasileiras, considerados os “outros” preferenciais no
embate simbólico-religioso e material em questão. Notícias sobre
vandalismo, ataques e invasões a terreiros de Candomblé e Umbanda
são recorrentes e se intensificaram nos últimos anos. Violências físicas,
materiais e simbólicas ocorrem no dia-a-dia dos integrantes dessas
religiões, e podem ganhar espaço nas diferentes mídias e repercutirem
as tensões sociais pautadas por embates religiosos, embora sejam,
historicamente, invisibilizadas, sendo transmitidas pelas memórias
subterrâneas, silenciadas (Pollak, 1989). Estamos tratando de tipos e
escalas de iconoclastia, violência simbólica e física, que podem ser
impingidas por instituições, grupos religiosos ou não, e indivíduos
isolados. Podem ser invasões de edificações, como igrejas e terreiros;
imagens podem ser destruídas nesses lugares ou fora deles, no espaço
público.
Integrantes dessas religiões podem ser atacados física e
simbolicamente na rua, no transporte, em diversas ocasiões. A própria
paisagem urbana pode servir de suporte para a hostilidade, por meio
de pichações/grafites/palimpsestos, por exemplo. Ao deparar-se com a
frase “Quem adora as imagens adora o diabo”, pichada em um muro na
região portuária da cidade do Rio de Janeiro, Hussak (2019, p. 139)
observa uma “tendência iconoclasta” no Brasil atual. A mensagem é
direta e subscreve um tipo de visão de mundo identificada ao que
denomina de iconoclastia neopentecostal: “o iconoclasta considera que
toda imagem é obra do Maligno que busca desviar o fiel do seu
verdadeiro caminho. Por isso, justifica-se como um ‘bem’ a passagem
ao ato para a destruição física das imagens”. Outro autor, na mesma
direção, aponta a existência de uma “onda iconoclasta” (Valle, 2020)
com motivações religiosas, em particular, provenientes do campo
evangélico, direcionada às religiões afro-brasileiras. Os dois autores

19 Vale referir que este é um campo religioso diversificado, portanto não


homogêneo em suas ações e valores, assim como considera-se que regras e
práticas são diferencialmente incorporadas pelos indivíduos aderentes às
instituições religiosas no cotidiano (Duarte, 2006b, Duarte et al., 2006).
131
Ensaios sobre Memória – Volume 2

seguem caminhos parecidos para analisar os sentidos desses casos de


iconoclastia. Complementa-se aqui a característica fundamental desse
campo religioso, na qual o espaço público é compreendido como lugar
a ser ocupado e disputado, investindo em ações efetivas de ocupação e
visibilização (Gomes, 2010). Concordando com Valle (2020, p. 160), “o
rastro de destruição funciona, assim, como um testemunho de que os
iconoclastas têm a seu lado um poder maior que os protege”. No
entanto, esse suposto poder vem sendo constantemente pressionado,
por reações de diferentes setores da sociedade, fato que não pode ser
desconsiderado ou sofrer o constrangimento das políticas de
esquecimento.
Um marco importante dessa “iconoclastia neopentecostal” foi o
evento descrito pela literatura socioantropológica como o “chute na
santa” (Giumbelli, 2003; Almeida, 2007), dois personagens dividiam a
cena, veiculada no programa “Despertar da Fé”, da Rede Record,
pertencente Igreja Universal do Reino de Deus (IURD): Bispo Sérgio
Von Helder e a imagem de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do
Brasil. O “Chute na Santa”, episódio ocorrido em 12 de outubro de
1995, foi diversas vezes repetido à época, estando gravado na memória
das controvérsias protagonizadas pela IURD. Ainda hoje, o vídeo pode
ser encontrado no YouTube
(https://www.youtube.com/watch?v=N8tipx5Cw-c, recuperado em
15, agosto, 2020). Foram proferidos insultos e gestos simbolicamente
violentos contra a imagem, chama de “boneco tão feio, tão horrível, tão
desgraçado”. Com a ampla repercussão negativa, rapidamente o Bispo
Macedo, maior liderança da igreja, desculpou-se publicamente e
“puniu” o envolvido, afastando-o do país. O pedido de desculpas de
Macedo pelo ataque à Santa foi um ato diplomático e uma tentativa de
apaziguar o conflito. Embora não tenha ocorrido a destruição física
daquela imagem particular, o efeito gerado pelas ações do então pastor
Von Helder é lembrado pelo Bispo Macedo, como “a pior coisa que
aconteceu dentro do trabalho da Igreja Universal”, chegando a dizer
que foi um “chute no estômago, para não dizer um lugar mais baixo”
(https://www.youtube.com/watch?v=AtXXyhYxBNc, recuperado em
15, agosto, 2020).
As posições defendidas por esses atores diziam respeito à
idolatria e à liberdade religiosa. O primeiro justificou que seu ato
estava apontando para o que se tratava de um simples objeto, uma
132
Ensaios sobre Memória – Volume 2

mercadoria, que podia ser comprada, “feia e desgraçada”, em uma


crítica ao catolicismo e ao feriado dedicado à Nossa Senhora Aparecida.
O Bispo Macedo faz a crítica institucional ao “vandalismo” cometido, já
que sua igreja prega o respeito às demais religiões. Em suas palavras,
extraídas do Programa Conexão Repórter, de 26 de abril de 2015, da
mesma emissora, ele menciona o evento como uma passagem crítica
para a igreja: “eu condeno o ato de chutar a santa, ou mesmo de falar
de qualquer igreja ou outra religião, eu apenas não concordo com as
religiões. Isso não quer dizer que eu não tenha que respeitar os seus
religiosos. Eu não aceito as religiões, mas eu aceito os religiosos”.
Evidentemente, tais argumentos não prescindem de contextualização e
das reações aos acontecimentos, que foram vastamente discutidos por
diferentes autores.
Trouxemos esse caso por este visibilizar a questão da
iconoclastia e atores sociais que protagonizam controvérsias sobre
destruição de objetos e imagens religiosas nas últimas décadas,
movimento intensificado em especial no Rio de Janeiro. O papel desse
evento no debate sobre intolerância religiosa e racismo religioso é
fundante, em particular, pela repercussão gerada que alcança os dias
atuais. De toda maneira, a maioria dos casos de destruição de templos e
objetos não se relacionam diretamente à IURD e nem ao catolicismo.
No entanto, sua divulgação acaba por associar a primeira a tais
práticas, justamente por se caracterizar como a maior referência do
campo neopentecostal, identificada por investir em uma adesão
exclusivista e cercada por controvérsias (Gomes, 2010).
A conversão de uma integrante do Candomblé à Igreja
Universal do Reino de Deus serve de exemplo para nossa discussão. Em
situação de campo coletada por Gomes (2010), o descarte de roupas e
objetos sagrados da religião anterior é condição para o
empreendimento da conversão. Passam de sagrados a malignos,
portadores de “encostos”, que precisam ser destruídos. Segundo o
relato, o processo se iniciou com a disposição dos elementos em sacos
de lixo que, posteriormente, foram levados para um terreno próximo e
ali foram queimados. Trata-se aqui de um ritual de purificação, de
apagamento das memórias do passado religioso “maligno”, que

133
Ensaios sobre Memória – Volume 2

impulsiona as narrativas do “ex-macumbeiro”20. Tal ato não ocorre sem


tensões, queimar esses objetos significava romper com estruturas
familiares atribuídas, já que o Candomblé era a religião de sua família,
que considerou o ato “uma loucura”. A autora complexifica a situação
com a inclusão de um personagem presente no relato: um empregado
da casa, evangélico, que teve papel fundamental ao auxiliar na
execução do ritual de destruição das peças. Os atos de quebrar imagens
de santos ou queimar as roupas usadas nos terreiros publicamente
demonstram materialmente o rompimento, ao menos em termos
performáticos, com a religião de herança.
Na mesma direção, mas como estratégia singular, existem os
casos de “adoção” e “cuidado” desses objetos. Em trabalho anterior
Gomes (2009) apresenta situações exemplares de conflito e tentativas
de convívio em um campo religioso plural, cuja dinâmica se apresenta
cada vez mais complexa diante de posicionamentos exclusivistas e, em
determinados momentos, violentos. O cenário apresentado naquele
momento trazia o caso da adoção de uma imagem de São Jorge (Figura
3) e de uma imagem de São Sebastião (Figura 4), que seriam quebradas
no processo de adesão à nova religião, pentecostal. O dilema: a
detentora dos objetos não sabia o que fazer deles, as estátuas estavam
na família há tempos, e foram transmitidas a ela para seu cuidado,
como guardiã da memória familiar. A conversão impôs o afastamento,
a recusa, a demonização da devoção aos santos. A ruptura é pré-
requisito, uma demonstração explícita de seu novo pertencimento
religioso. No entanto, os objetos têm vida, carregam a memória
familiar. A forte adesão à nova confissão religiosa desequilibrou o
conjunto de referências coletivas acumuladas, levando a convertida ao
dilema de supostamente ter que descartar/destruir as imagens, sem
desejar fazê-lo. Quaisquer das situações, destruir ou salvar, leva a
mediações e certo descontentamento de alguma das partes envolvidas.

20 No testemunho público as experiências anteriores são expostas para marcar


a transformação radical, como recurso pedagógico e exemplar para os demais.
Ser um “ex” (traficante, homossexual, “macumbeiro”, por exemplo) integra a
identidade do convertido e o qualifica a testemunhar (Natividade e Gomes,
2006)
134
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Figura 3 (à esquerda) (2008). São Jorge. Figura 4 (à direita) (2008).


São Sebastião. Imagens resgatadas. Fotografias de Edlaine Gomes.

A insatisfação com a iminência do descarte, a fez se lamentar


com amigos. Essa narrativa de descontentamento seguiu o fluxo das
redes de pertencimento, que são multifacetadas, dentre as quais estão
a religiosa, de amizade, da vizinhança etc. Vale referir que estamos
lidando com uma etapa especialmente crítica no processo de adesão
religiosa, cuja escolha individual se sobrepõe à religião atribuída
anteriormente, podendo mesmo gerar conflitos familiares em
diferentes níveis de tensão. De toda maneira, a repercussão do dilema
teve ressonância quando foi transmitida ocasionalmente a uma
senhora, católica praticante, que integra a tradicional Irmandade Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Em sua casa, já
reunia quadros e estátuas de santos, em um espaço dedicado
especialmente a eles. Essa coleção não ocupa grande espaço no
conjunto da casa, mas se destaca por representar sua forte adesão ao
catolicismo. Ao saber que as estátuas de São Jorge e São Sebastião
135
Ensaios sobre Memória – Volume 2

poderiam ser destruídas, propôs sua adoção. “Problema resolvido. Ex-


devota convertida não tendo que eliminar os santos. Católica satisfeita
por salvar as imagens e, de certa maneira, por defender a crença nos
santos” (Gomes, 2009, p. 135). Em contato recente com essa
informante, foi relatado que ela continua com essa função de
“cuidadora de imagens”. Lamentou que imagens de santos continuam
sendo destruídas, fato evidenciado pela presença de destroços em
lugares específicos do bairro. Conta que ao passar em uma rua avistou
uma imagem abandonada, mas estava com muitas bolsas e foi
rapidamente para casa. Retornou ao local em seguida, mas ela já estava
quebrada, encontrando apenas os pedaços destruídos no chão.
Para Duarte (2006b, p. 55) família e religião se constituem no
âmbito do privado, estando alheios ou em antagonismo em relação à
ordem pública, ao menos em termos formais. A adesão a uma nova
congregação religiosa se “apresenta frequentemente como uma
alternativa à família, na verdade uma hiper-família dotada de um senso
de comunhão e reverência capaz de produzir uma redobrada
intensidade” (Duarte, 2006a, p. 20). A ruptura pode apresentar
barreiras, não ocorrendo de forma radical, considerando os níveis de
vínculos familiares e afetivos estabelecidos anteriormente. O exemplo
da “adoção dos santos” segue esse horizonte: o cuidado é transmitido
para quem deseja preservá-lo, mesmo que não seja alguém próximo. O
ato de quebrar a estátua do santo impede a transmissão da memória
familiar. A adoção, de certa maneira, mantém viva a possibilidade de
sua manutenção ou mesmo de seu retorno ao circuito afetivo-familiar
original. Essas são resoluções locais, encompassadas pelas relações
mais próximas inscritas no cotidiano, que não refletem as orientações
institucionais.
A prática da adoção indica estratégias de resistência à
destruição e merece maior atenção de pesquisas. Não se pretende
diminuir nesta discussão os impactos da destruição de objetos e
patrimônios religiosos em ações de intolerância ou racismo religioso, o
que se quer apontar é a complexidade dessas relações e experiências,
que extrapolam aspectos puramente instrumentais e imediatos. O
lamento pela destruição relatado pela senhora católica, informa a
incapacidade de proteger os objetos diante da velocidade da
destruição. Não houve tempo hábil para o resgate, apesar do desejo de
proteção. No entanto, para uma efetiva proteção, este não pode se
136
Ensaios sobre Memória – Volume 2

restringir a ações meramente individuais. Os destroços despojados em


espaços públicos também atuam como disseminadores dos valores que
guiaram a destruição. Os fragmentos dispostos irregularmente no chão
comunicam e impactam as percepções sócio-políticas. Canevacci
(2008, p. 108) contribui com sua abordagem sobre caráter multi-
sensorial da cidade polifônica, incluindo aqui a “polifonia dos
silêncios”. Escutar os silêncios ou olhar imagens silenciadas, seja por
apagamentos simbólicos ou materiais, são ações inscritas em culturas e
contextos particulares, “por isso a atenção à escuta do silêncio não se
concentra no órgão a isso predisposto (o ouvido), mas na multi-
sensorialidade do sujeito”. Assim, como nos objetos destruídos ou
mesmo resgatados, veremos este aspecto nas outras situações
descritas neste texto. A análise dos grafismos aponta o quanto são
eloquentes, interagem e afetam paisagens e pessoas, mais ou menos
intensamente. Evocam o poder da imagem para tornar visíveis
enunciados dos mais variados propósitos e posicionamentos, por meio
da provocação da visão e demais sentidos, de um público.

4 GRAFISMOS MORTUÁRIOS E JUSTIÇA MEMORIAL NA CIDADE

A noção de grafismo mortuário consiste na proposta mais


ampla e rigorosamente não adjetiva para interpelar os registros
materiais que, inscritos sobre a paisagem, insurgem-se contra o
exercício necropolítico. Embora a maior parte dos grafismos
mortuários integre aquilo a que artistas, críticos e pesquisadores
consideram participar das diversas culturas do grafite, eles também
dizem respeito a quaisquer inscrições realizadas com finalidades não
artísticas ou antiartísticas, ou quaisquer espécimes que, inicialmente
abrigados por alguma dessas culturas, passam a ser rejeitados
enquanto “arte” pelos atores envolvidos.
Grafismos dotados de suficiente sanção social podem se tornar
celebrados e até mesmo protegidos enquanto elementos do patrimônio
público. Tendencialmente, articulam verdadeiros altares urbanos, e
modificam o tecido urbano circundante no sentido da produção de luto
e justiça memorial. Não é incomum que essa variedade cultual de
grafismo mortuário se realize sob forma de grandes e ornados murais,
comissionados a artistas publicamente reconhecidos, e auráticos desde
sua concepção. São, em princípio, retratos de composição
137
Ensaios sobre Memória – Volume 2

relativamente convencional, tipicamente afeitos ao uso de cores


crepusculares — refletindo a terminação da vida — e à representação
dos epigrafados junto a objetos que aludam às idiossincrasias que
cultivavam em vida (Menezes e Gomes, 2011), eventualmente com
expressões faciais ou textos que reflitam as condições da morte, do luto
e das homenagens.
Por outro lado, há grafismos mortuários que desdenham
qualquer necessidade de sanção social ou legal, insurgindo-se contra
ela de modo explícito, eventualmente. Essas formas anticultuais ou
anatêmicas de grafismo mortuário, contrapartes objetais das vidas que
Giorgio Agamben (1998) denominava “sacras” ou “matáveis”, podem
ser suprimidas sem alarde, porque facilmente associadas ao vilipêndio
e à conspurcação da coisa pública. Sua expressão mais frequente são
inscrições velozes, com pouca ou nenhuma diversidade de cores,
realizadas sobre gabaritos (estênceis) ou a traço livre, caso em que são
frequentemente referidas, no Brasil, a partir da pecha infamante de
“pichação”. Em sua aparente insignificância, porém, essas formas não
sancionadas de grafismo mortuário podem resistir até às mais
draconianas políticas de controle e censura de grafismos públicos.
Com efeito, importam-nos muito pouco querelas de crítica
artística e outras “distinções taxonômicas”, para retomar expressão
jocosa de Leila Gándara (2004). Apesar de grafismos mortuários se
apresentarem, em regra, como inscrições deliberadas sobre as
superfícies fixas da cidade, o chamado exoesqueleto urbano (De Landa,
p. 1997), também podem apresentar-se sobre uma variedade bastante
ampla de superfícies móveis, como placares, veículos, cartazes, papel
moeda etc. Com efeito, a única distinção que consideramos útil para a
análise de grafismos mortuários diz respeito à medida de sanção social
que lhes toca e às condições de auraticidade e reprodutibilidade
técnica resultantes (Benjamin, 2006).
Há muitos atravessamentos entre as formas de grafismo
mortuário, mas sua composição tende a quadrar importante hipótese
de Van Gennep (1960, p. 148), que destaca o status social dos
epigrafados como característica central da suspensão da vida social
exigida pelo luto. Assim, pessoas que reuniam suficientes recursos
materiais e simbólicos, como Marielle Franco, ou cuja morte tenha sido
capaz de galvanizar o debate público com intensidade particular, como
no caso de George Floyd, tendem a ser lembrados em todas as
138
Ensaios sobre Memória – Volume 2

variedades de grafismo mortuário, enquanto variedades mais


modestas e velozes são tipicamente as únicas destinadas a pessoas a
quem escasseavam tais recursos. No limite, estaremos diante de
vítimas cuja própria identidade se encontra em desfazimento, até o
franco anonimato, a morte coletiva.
Investindo sobre uma noção de equidade na justiça memorial
reclamada pelos grafismos mortuários, propomos discutir brevemente
espécimes anatêmicos de autoria coletiva ou não identificada,
destinados a homenagear duas jovens negras cuja morte infletiu sobre
o debate público com intensidade diversa, e as vidas negras em seu
conjunto. Como último caso, abordamos algumas considerações sobre
os grafismos presentes no local em que Marielle Franco e Anderson
Gomes foram assassinados, aos 14 de março de 2018.
No primeiro dia de abril de 2017, aos treze anos, no pátio de
sua escola, morria a estudante Maria Eduarda Alves da Conceição,
alvejada por disparos efetuados por policiais militares em incursão nas
imediações do prédio, em Acari, na Zona Norte da cidade. Como é
pouco plausível que estudantes uniformizados em aula de Educação
Física sejam encontrados “com armas e drogas”, para mencionar a
fórmula editorial com a qual o noticiário busca inocentar agentes do
Estado responsáveis pelo extermínio de vidas negras, a morte de Maria
Eduarda logrou certa medida de comoção pública, assim como a
eventual prisão de seus algozes. A despeito dos poucos recursos que
lhe aproveitavam, portanto, a jovem chegou a ser homenageada em
grafismos autorais e policromáticos. Nossa observação recolheu,
porém, um espécime de características não sancionadas, realizado por
autor(es) não identificados, mas particularmente eloquente no sentido
de registrar, a partir de uma remissão singela ao catolicismo popular, a
inocência da jovem e a iniquidade do Estado (Figura 5).
Na rua Bento Ribeiro, no centro da cidade do Rio, em um dos
acessos meridionais ao Morro da Providência, a mais antiga entre as
favelas remanescentes da cidade, a visibilidade do local escolhido e a
possibilidade apreciável de repressão exigia que o retrato de Maria
Eduarda fosse realizado com velocidade. Para tanto, seu rosto foi
inscrito com pigmento preto sobre um estêncil de cerca de quarenta
centímetros, aplicado contra um fundo de pigmento amarelo-
alaranjado, explicitamente sugestivo de um halo, e um emolduramento
em linhas curvas, delimitando um escapulário, inscrito sobre uma
139
Ensaios sobre Memória – Volume 2

parede de tijolos estruturais — cinzenta como um ossuário — para a


santificação de uma vida manifestamente inocente. O rosto da jovem,
porém, não se apresenta nem com a placidez dos mártires do
catolicismo popular brasileiro, nem com o sorriso terno das fotografias
que sua família distribuiu à imprensa. Conformando-se a uma
convenção específica de homenagens realizadas a pessoas de
reconhecida importância na luta antirracista, o rosto de Maria Eduarda
é representado com expressão altiva e corajosa, ecoando retratos de
Angela Davis e Amílcar Cabral, entre heroínas e heróis da memória
negra transnacional.

Figura 5: Autor não


identificado. 2017. Sem
título (“Escapulário”).
(Detalhe) Grafite.
Intervenção situada no
acesso meridional do
Morro da Providência,
pela Rua Bento Ribeiro.
Fotografia de Júlio
Bizarria.

O destino da estudante Rafaela Cristina Souza dos Santos e de


sua discreta homenagem, realizada na praça Primeiro de Maio, no
bairro operário de Bangu, é bem diverso. A adolescente morreu em 26
de abril de 2015, aos quinze anos, por exsanguinação decorrente de
violência obstétrica praticada contra ela no Hospital da Mulher
Mariska Ribeiro. Sem médicos disponíveis para atender às
complicações de sua gravidez, os profissionais da casa resolveram
forçar o parto vaginal, o que produziu perfurações não esclarecidas no
útero da jovem. A circunstância de seu falecimento, no interior de uma
ambulância, a caminho de outra unidade de saúde, recorda

140
Ensaios sobre Memória – Volume 2

irresistivelmente que o expediente biopolítico do “deixar morrer”


(Foucault, 1997) é também um aspecto inextricável do genocídio da
população negra e da administração necropolítica, tanto quanto o
desespero do pai que recebia, com o corpo inerte da companheira, o
corpo (ainda) indene de seu filho comum.
O local escolhido para recordar a morte de Rafaela foi uma
superfície do viaduto da praça Primeiro de Maio, nas imediações do
hospital a que fora admitida. Como se tratava de um evento de
inscrição em um dos locais mais visíveis — e vigiados — do bairro, o
autor não identificado realizou uma homenagem que se apresenta
como caso particular de grafismo a traço livre, ou “pichação”, pois há a
centralidade de um elemento figurativo com relação à epígrafe (Figura
6). Com sua vida transcorrida em condições tão vulneráveis quanto a
de Maria Eduarda, a morte de Rafaela teve o revés de não provocar a
mesma comoção: sua homenagem é quase um ato privado, lançado
como grito ou gemido no espaço público. Deste modo, ela já não tem
mais um rosto, senão uma vaga silhueta, que se esvai, como seu
próprio sangue, em pigmento vermelho, junto à inscrição Rafaela,
corpo marcado.

Figura 6: Autor não


identificado. 2015.
Rafaela, corpo
marcado. Grafite.
Intervenção situada na
praça Primeiro de
Maio, bairro de Bangu.
Fotografia de Leila
Bizarria.

141
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Mortes ostensivamente causadas por ação de agentes do


Estado, como o martírio de Maria Eduarda, costumam fazer com que a
imprensa local, sem poder recorrer razoavelmente à fórmula editorial
de “armas e drogas”, se demore por semanas a fio sobre a fábula do
chamado “despreparo da polícia”, enquanto atores sociais
progressistas se expressam em fórmulas igualmente gastas, como o
clamor pela “desmilitarização”. Afirmar diretamente, porém, que a
Polícia Militar fluminense é um dos mais importantes instrumentos da
administração necropolítica, com a maior parte de seus quadros
ostensivamente favorável a um governo marcial irrestrito, não é algo
que se pode fazer sem uma medida de risco. É necessário, porém, um
aparte para afrontar resolutamente a ideia de que os principais
operadores da violência necropolítica possam, por qualquer ato de
vontade ou imaginação, proteger ou defender a mesma população que
exterminam cotidianamente. Não há que falar, portanto, em
“despreparo da polícia” no Brasil contemporâneo, sobretudo em uma
cidade como o Rio de Janeiro, balão de ensaio do regime de exceção
social e política que paira sobre o conjunto do país. O aparato
repressivo fluminense, pelo contrário, é preparado para fazer
exatamente aquilo que faz com excelência: ceifar vidas de uma
população civil e desarmada de “inimigos internos”, a saber, os
elementos mais profundamente racializados e subalternizados da
classe operária local, e fazer sinistro orgulho às suas congêneres
históricas no Holocausto, no Apartheid Sul-Africano ou na ocupação
tardo-colonial da Palestina (Mbembe, 2008). Será sempre oportuno
recordar que a unidade mais destacada desse aparato repressivo é
constituída por homens que se fazem conhecer por certo culto — nem
tão implícito — à figura de uma caveira humana trespassada por uma
faca, nosso próprio Totenkopf, percorrendo as zonas sob administração
necropolítica em veículos curiosamente apelidados de caveirões.
Os autores do terceiro espécime sob análise (Figura 7) têm
inteira consciência dos riscos associados a essas afirmações, sobretudo
os de as realizar sem qualquer forma de chancela institucional. Os
leitores verão, porém, que os autores anônimos do estêncil o fazem de
modo bem mais elegante e econômico do que nós, à maneira de uma
verdadeira guerrilha discursiva. Os dizeres “vende-se carne negra”,
aludindo, simultaneamente, a estênceis que anunciam a venda
clandestina de carne de caça (rãs, frequentemente) e à voz de Elza
142
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Soares, que cantou que “a carne negra é a mais barata do mercado”, são
uma denúncia poderosa do genocídio da juventude negra e periférica
da cidade nas mãos do vendedor-caçador, que atende pelo mesmo
número da Polícia Militar.

Figura 7: Autor não identificado. 2017. Vende-se carne negra. Grafite.


(Estêncil). Intervenção situada na Praia de Botafogo. Fotografia de Júlio
Bizarria.

Como observamos, pessoas da estatura de Marielle Franco


tendem a ser homenageadas em todas as variedades de grafismo
mortuário, desde as inscrições mais modestas até os mais complexos e
celebrados murais. Permanecemos entre aquelas, em nosso percurso
pelo local em que foram assassinados a vereadora e seu motorista,
Anderson Gomes, por apresentar-nos um caso particular entre
grafismos mortuários não sancionados, de formação coletiva e
espontânea.
Marielle Franco e Anderson Gomes foram emboscados em
importante artéria do centro da cidade, a caminho do bairro
setentrional da Tijuca, após realizar a vereadora sua última
conferência, na Casa das Pretas, importante centro de cultura
afrocentrada e feminista local.

143
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Figura 8: Autores não identificados. (2018-presente). Sem tpitulo


(“Antialtar a Marielle Franco e Anderson Gomes”). Grafite e outros
grafismos. Intervenção colefica na margem meridional da rua João
Paulo I, entre os bairros do Estácio e da Tijuca.

Embora as câmeras da Secretaria de Segurança Pública tenham


sido convenientemente desligadas na véspera do assassinato (Siqueira,
2018), trata-se de local extremamente visível e frequentado da cidade,
junto a um parque público e a um dos acessos ao Metropolitano.
Interceptado na margem esquerda da rua João Paulo I, o veículo que
transportava Marielle foi atingido por ao menos nove disparos de
submetralhadora, com todos os projéteis, de munição expansível,
atingindo o banco de trás. Seria provável que alguns atingissem a meia
parede que margeia a avenida, não fosse a extrema perícia de seus
algozes. É a essa meia parede (Figura 8), que não foi atingida uma vez
sequer, que desejamos dirigir nossa indagação.
Enquanto as imediações do local do assassinato se tornaram
um ponto central para a realização de diversas homenagens a Marielle
Franco e Anderson Gomes por artistas locais, ligados à cultura dos
grafites, ao movimento negro, ao partido Socialismo e Liberdade
(PSOL), no qual militava a vereadora, e vários outros atores sociais,
parece haver um acordo tácito de que a meia parede não é uma
144
Ensaios sobre Memória – Volume 2

superfície adequada para a realização de trabalhos figurativos e


policromáticos, e isso não se deve simplesmente a questões de forma e
extensão do suporte. A meia parede possui uma profusão de inscrições,
mas praticamente todas elas realizadas com pretensões antiartísticas
bastante evidentes, contrastando com a verdadeira galeria de arte
urbana que se formou em seus arredores, inclusive com clamores
coletivos para que o Município do Rio de Janeiro desse à rua João Paulo
I a designação de rua Marielle Franco21. Com efeito, a meia parede
intrigará a observação mais desinteressada, interpelando o observador
com o motivo de sua manutenção naquele estado, propositadamente
decadente.
Aleida Assmann, escrevendo sobre lugares traumáticos,
permite esboçar uma resposta: a meia parede de Marielle é um desses
lugares de dor, que “se fecham a uma formação afirmativa de sentido”
(Assmann, 2011, p. 349), e isso determina que ela funcione como uma
espécie de antialtar, um monumento propositadamente horrendo e
decadente, em meio às imagens de alegria e resistência entre os quais
ela se encontra. Um observador estrangeiro, considerando as
peculiaridades da cultura brasileira da pichação com relação ao
tagging e outras culturas de grafite relativamente próximas, observou
sua relação profunda com o fenômeno da putrefação (Lewinsohn,
2009, p. 55). Não se trata de acidente, mas uma condição para que a
meia parede exerça seu propósito no espaço público: funcionando
como mediadora material dos corpos de Marielle Franco e Anderson
Gomes, a meia parede os exibe publicamente para que, de certo modo,

21 O episódio levou à realização de atos públicos para a distribuição de placas


de sinalização impressas sobre lâmina acrílica que, antecipando-se à possível
aquiescência da municipalidade, designavam o endereço por seu novo e
almejado topônimo. Após o deputado federal Daniel Silveira (PSL/RJ) destruir
ritualmente um exemplar da placa, coletivos negros e feministas organizaram-
se para reproduzi-la e distribuí-la aos milhares. Contra a atitude do
parlamentar, que mantém os fragmentos da placa destruída emoldurados
como troféu em seu próprio gabinete, em Brasília, a viúva de Marielle Franco,
Mônica Benício, disponibilizou publicamente os gabaritos para a impressão de
novas placas por quaisquer pessoas interessadas. Com efeito, a controvérsia
da placa mereceria seu próprio estudo. Podemos antecipar, porém, que se
trata de um espécime peculiar de grafismo, móvel e reprodutível, trazido para
o centro de disputas entre culto e anátema.
145
Ensaios sobre Memória – Volume 2

insepultos, eles permaneçam inesquecíveis. Não será possível não


perguntar, enquanto a parede se mantiver em seu estado decadente,
quem mandou matar Marielle Franco, e por qual/quais motivo(s).

5 POLÍTICAS DE MORTE SOBRE CORPOS, OBJETOS E IMAGENS:


CONSIDERAÇÕES INTERMINÁVEIS.

As relações sociais e simbólicas que envolvem sujeitos, objetos


e grafismos incluem ambiguidades e confrontos. São resultado da
existência de sistemas de valores distintos dentro da sociedade
brasileira. Não percamos de vista o histórico do racismo estrutural e
das políticas de morte vigentes no país, que conectam as experiências
de pesquisa aqui abordadas pelos autores, que apresentam o vilipêndio
e a destruição de objetos representativos para grupos sociais
subalternizados, como ações políticas e relações assimétricas de poder.
Evidenciam-se linhas de força e resistências em diferentes níveis e
duração no tempo. Das diversas políticas de morte impostas a corpos e
vidas racializados e subalternizados na cidade resultam inúmeros
registros gráficos e iconográficos da administração necropolítica,
cumulando-se e sucedendo-se uns contra os outros no espaço público
como uma crônica contínua e intrinsecamente pública da iniquidade do
Soberano.
A formação relativamente espontânea e a abundância de tais
registros confirmam a constatação de Michel Foucault (1979), segundo
a qual nenhum poder é exercido sem uma medida concomitante de
resistência. Com efeito, o recrudescimento do exercício necropolítico
na cidade do Rio de Janeiro fez com que as lutas por justiça memorial e
contra o genocídio do povo negro, conforme Nascimento (1978),
passassem ao centro das preocupações de militantes ligados às favelas
cariocas no início do século XXI, suplantando e reformulando pautas
anteriores, em geral centradas na luta por direitos equitativos à cidade
e a habitação (Bizarria, 2019). O mesmo ocorre no caso da Coleção de
Objetos Sagrados, que somente neste ano foi “libertada” mediante a
luta contínua de movimentos sociais e lideranças das religiões afro-
brasileiras, que incansavelmente reivindicaram a transferência da
coleção para outro espaço. Na mesma medida, as reações contra a
destruição de templos e objetos religiosos afro-brasileiros são

146
Ensaios sobre Memória – Volume 2

contundentes e reúnem ações político-jurídicas, com intuito de frear o


afã iconoclasta.
Sensíveis a esses clamores, as pesquisas de nosso Observatório
vêm se dedicando às formas materiais e rituais das diversas formas
resultantes do exercício necropolítico. Grafismos e objetos religiosos
de matriz africana expostos ou não no espaço público produzem
reações histórica e culturalmente construídas, sempre em tensão com
o modelo civilizatório ocidental, particularmente cristão, que demoniza
suas crenças e práticas. Os objetos sagrados são atravessados, movidos
pelo sopro dos ancestrais22, integram a categoria das coisas que
conduzem a força mágica, religiosa e espiritual do grupo: o Mana
(Mauss, 2003, p.197). Retirados do contexto dos terreiros pelas forças
do Estado, deslocados para espaços voltados ao controle e à detenção,
ou à destruição em situações de conversão religiosa não deixam de
manifestar sua potência. Neste caso, apesar da tentativa de efetivarem
o total desenraizamento, como estratégia de desagregação da memória
(Bosi, 2003, p. 28), falham justamente por aplicarem uma concepção
distinta, colonizadora, daquela que os concebe apenas como objetos,
destituídos de memória e valores civilizatórios afrocentrados (Sodré,
2002; Gomes e Oliveira, 2019).
Em continuidade ao imaginário cristão prevalente, a
malignidade dos objetos e demais manifestações afro-brasileiras
permanece legitimada ao serem publicamente acusados de “desgraças”
e “diabólicos, conforme Sansi (2005) descreve no caso das
representações escultóricas de orixás localizadas no Dique do Tororó,
das imagens e terreiros destruídos, ou expulsos de favelas por
traficantes-evangélicos (Vital da Cunha, 2015). Estes não são eventos
isolados, os ataques são contínuos e vão desde um olhar de repulsa,
pedras atiradas, destruição de objetos sagrados, à invasão de terreiros.
A criminalização saiu do papel, da letra da Lei, mas se perpetuou em
ações de intolerância e racismo religioso. No Brasil sabe-se que o
processo de laicização do Estado não seguiu o percurso preconizado
pela modernidade ocidental, com a retirada da religião do espaço
público, sendo restrita aos espaços privados das respectivas confissões

22Em Sodré e Lima (2004) aparece a associação dos orixás com o vento
sagrado, segundo a definição do principal personagem analisado no livro,
Babalaô Agenor Miranda Rocha.
147
Ensaios sobre Memória – Volume 2

religiosas e das famílias (Montero, 2006). Nota-se tal característica


contemporaneamente, como o prosseguimento de políticas de morte,
que atinge corpos e expressões religiosas, talvez com maior nitidez e
visibilidade pública nas últimas décadas, na medida em que está
inserida no campo de tensões do próprio campo religioso brasileiro e
no acirramento do estado de exceção direcionado às populações
periféricas. Categorias como cristofascismo (Py, 2020) e
neoconservadorismo (Cunha, 2015) emergem neste cenário de debates
sobre Religião e Política. O que vemos nas primeiras décadas deste
século contradiz percepções de que “no fundo, ninguém está mais
muito interessado em defender nenhum status quo religioso”, diante
da suposta prevalência do conhecimento científico sobre a religião na
explicação da vida, estando a religião no âmbito individual (Prandi,
1996, p.67).
A “batalha espiritual” soerguida por determinados segmentos
deste campo religioso reverbera em ações iconoclastas individuais ou
coletivas, até mesmo contra objetos e práticas católicas, lembrando que
existem segmentos católicos conservadores, responsáveis diretos por
ações políticas na esfera pública. Tais ações não estão livres de reações
diante do acirramento e publicização dos casos, que levou à formação
da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) (Miranda,
2010). No entanto, esse combate organizado teve forte repercussão
entre as décadas de 1980 e 1990, com a reunião de lideranças de
terreiros e ativistas do movimento negro para empreender ações
cívico-jurídicas contra os ataques de segmentos neopentecostais e,
consequentemente, desenvolver estratégias de preservação das
religiões afro-brasileiras, grupo que ficou conhecido como Projeto
Tradição dos Orixás, que produziu o Dossiê “Guerra Santa Fabricada”,
documento que fundamentou o posicionamento jurídico do movimento
(Gomes e Oliveira, 2019). A atuação desses ativistas permanece até
hoje, inclusive com participação no CCIR e no caso da repatriação dos
Objetos Sagrados do Museu da Polícia, como é o caso de Mãe
Meninazinha de Oxum.
As biografias culturais dos grafismos mortuários apresentam as
mesmas tensões dos objetos destruídos em processo de conversão
religiosa e da trajetória da Coleção de Objetos Sagrados. Os
acontecimentos que envolveram(em) o conjunto de material de
pesquisa apresentado aqui comporta ações de ódio e destruição, mas
148
Ensaios sobre Memória – Volume 2

também reações e resistências, produzindo múltiplas ações e reações


materiais e simbólicas, como a reivindicação, formulação de
documentos, processos judiciais, restaurações e adoções. O Museu da
Polícia Civil, os lugares escolhidos para o descarte das imagens
quebradas, sacrificadas pelos convertidos, os muros degradados que
servem de suporte aos grafismos, abordados aqui, se constituem em
grande medida como “lugares traumáticos”, lugares de dor.
Concomitante e paradoxalmente, são lugares que produzem ou
visibilizam apagamentos e resistências.
Analisar as tensões entre esconder e exibir, lembrar e esquecer,
destruir e restaurar, podem nos dar uma chave de compreensão para
refletir sobre as situações abordadas. A exposição pública de objetos
religiosos ou homenagens mortuárias de personagens políticos como
Marielle, que evocam movimentos identitários, minoritários e
historicamente subalternizados, é compreendida como afronta por
segmentos conservadores e extremistas. Quando existem brechas ou
mesmo pactuação com um Estado que promove exceção, o extermínio
e a exclusão histórica da população negra, este posicionamento se
agrava, pelo fato de encontrar ressonância e apoio político.
Esconder indica uma ação tanto de proteção quanto de produção
de esquecimento, depende de quem a produz e quais os interesses
envolvidos. Lembremos aqui a criminalização das religiões afro-
brasileiras (Maggie,1992; entre outros), sob a orientação do Código
Penal de 1890, vigente até 1940, que baseou juridicamente a
perseguição, a repressão policial e o processo de migração de terreiros
para áreas afastadas dos centros urbanos, em particular, o Rio de
Janeiro. Essas práticas repressivas e de invisibilização são recorrentes
em relação a populações periféricas. Embora não mais pautadas por
uma legislação, a expulsão/destruição de casas de santo e seus
integrantes de favelas por traficantes, que proíbem inclusive o uso da
indumentária religiosa, fatos amplamente divulgados e foco de
pesquisadas acadêmicas (Vital da Cunha, 2014, 2015), atualizam o
histórico da perseguição religiosa na cidade.
Grafismos, objetos e coleções dotados de suficiente sanção social
podem tornar-se celebrados e até mesmo protegidos enquanto
elementos do patrimônio público. Em acordo com Gonçalves (2005),
que destaca as categorias “ressonância", "materialidade" e
"subjetividade" para refletir sobre patrimônio, destaca que sua
149
Ensaios sobre Memória – Volume 2

preservação não prescinde de ressonância junto ao público. É


imprescindível alguém (indivíduos, grupos, movimentos sociais,
organizações, Estado) se importar com sua existência material e
simbólica. Pode-se dizer também que há um trabalho de produção de
ressonâncias, que pode ser encaminhado de diferentes maneiras pelos
grupos afetados. Na sociedade contemporânea essa estratégia tem sido
realizada com êxito por meio das mídias sociais, denúncias e processos
jurídicos, como ocorreu no caso do movimento Liberte nosso Sagrado,
assim como nos exemplos de invasões de terreiros, vilipêndio e
destruição de objetos sagrados.
Assim, considerando a complexidade das situações e seus
contextos particulares, as imagens quebradas que ficam expostas ao
olhar dos transeuntes não são meramente restos, amplificam
imposições e hierarquizações provocadas por relações de poder,
religioso e político. Neste sentido, vale problematizar os processos de
conversão religiosas que pressupõem o despojo dos bens associados à
adesão anterior, para além da escolha individual, como pode ser
explicitado no exemplo de estratégias de preservação, nomeada como
“adoção dos santos”. Corpos matados, objetos religiosos quebrados
dentro e fora dos espaços originais, grafismos rasurados indicam a
impossibilidade de sua existência e do que representam, em última
instância, nem no privado nem no público. Para terminar, repetimos a
epígrafe com as perguntas de Latour, porque há ainda muito a dizer
sobre o que elas suscitam: “Por que as imagens têm atraído tanto ódio?
Por que elas sempre voltam a retornar, não importa o quanto queiram
livrar-se delas? Por que os martelos [sprays] dos iconoclastas sempre
parecem bater obliquamente, destruindo algo além, que parece, a
posteriori, importar imensamente?”

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A MEMÓRIA DOS OBJETOS:


DESTRUIÇÃO E PROTEÇÃO DE ACERVOS EM MUSEUS

Yacy Ara Froner


Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-5675-6945

1 INTRODUÇÃO

Apesar da força discursiva do objeto – configurado na produção


artística ou no artefato –, nos últimos anos, inúmeras coleções de
museus ao redor do mundo foram destruídas por atos de vandalismo,
crimes de guerras, negligência e acidentes. A perda dessas coleções
pode ser analisada sob a ótica da perda do potencial de estudos, mas
acima de tudo através da compreensão do impacto dessas perdas em
relação ao esvaziamento de vozes de comunidades nativas
remanescentes, grupos ou sociedades com propriedades religiosas,
raciais, políticas, culturais e territoriais particulares, a partir do
desaparecimento da memória dos modos de produção de artefatos,
tanto em relação aos objetos de uso cotidiano, quanto em relação aos
objetos simbólicos.
Tais perdas são agravadas quando dimensionamos o impacto
da destruição de acervos oriundos de comunidades extintas, cuja única
memória permanece viva nos vestígios culturais deixados.
Hoje, mais do que nunca, o modelo civilizatório de colonialismo é
questionado, principalmente pelas teorias decolonias:

Podemos afirmar que o decolonial como uma rede de


pesquisas que busca sistematizar conceitos e
categorias interpretativas tem uma existência
bastante recente. Todavia, isso responde de maneira
muito parcial à nossa pergunta, uma vez que
reduziria a decolonialidade a um projeto acadêmico.
Para além disso, a decolonialidade consiste também
numa prática de oposição e intervenção, que surgiu
no momento em que o primeiro sujeito colonial do
sistema mundo moderno/colonial reagiu contra os
157
Ensaios sobre Memória – Volume 2

desígnios imperiais que se iniciou em 1492.


(Bernardino-Costa; Grosfoguel; 2016)

Cada vez mais percebemos que os objetos são capazes de lançar


luz e ampliar as vozes, revisitar questões e propor novas óticas,
quebrar paradigmas consuetudinários e rever modelos de análise,
aproximação, acesso e apropriação.
Desde a Carta de Nova Zelândia de 1992, comunidades
indígenas reivindicam sua atuação como agentes de preservação de
sua própria cultura, herdeiros de seus objetos, donos de sua própria
memória e entes capazes de discutir os significados de sua própria
cultura material e imaterial. O Tratado de Waitangi (1840) é a base
histórica da confirmação da sociedade indígena como mantenedora e
guardiã de sua própria cultura, confirmada em seu texto:

This interest extends beyond current legal


ownership wherever such heritage exists. Particular
knowledge of heritage values is entrusted to chosen
guardians. The conservation of places of indigenous
cultural heritage value therefore is conditional on
decisions made in the indigenous community, and
should proceed only in this context. Indigenous
conservation precepts are fluid and take account of
the continuity of life and the needs of the present as
well as the responsibilities of guardianship and
association with those who have gone before. In
particular, protocols of access, authority and ritual
are handled at a local level. General principles of
ethics and social respect affirm that such protocols
should be observed (New Zealand Charter. Charter
for the Conservation of Places of Cultural Heritage
Value, ICOMOS New Zealand, October 1992.).

Portanto, objetos não devem ser vistos como um produto


manifesto fora da vida social, alheio a sua existência e ignorante de
seus valores, mas como uma manifestação integrada à complexa rede
das relações sociais. Desde o momento em que o homem atua sobre a
matéria, modificando-lhe as formas, o discurso entre esta matéria e a
158
Ensaios sobre Memória – Volume 2

humanidade já está presente. A obra de arte e o objeto tornam-se


possíveis e vivem por intermédio de uma relação integrada com a
sociedade; caso contrário, seus discursos inexistem.
De acordo com Le Goff, o termo latino documentum, derivado
de docere “ensinar”, evoluiu para o sentido de “prova”: o documento
que para a escola histórica positivista do séc. XIX será o fundamento do
fato histórico, ainda que resulte da escolha e de uma decisão do
historiador, parece apresentar-se por si mesmo como prova histórica
através das fontes escritas; sua objetividade parece opor-se à
intencionalidade do monumento ao afirmar-se essencialmente como
um testemunho escrito, retirando dos objetos e das construções a força
discursiva que lhes é inerente (Le Goff, 1984, p.96).
Berenson (1947, p. 230) afirma que nenhuma história pode ser
escrita sem valores postulados, conscientemente manifestos ou
inconscientemente supostos. Os objetos adquirem valor pelas mãos do
conhecimento, mas o conhecimento não é um produto engessado ou
existente fora de uma rede de intercomunicações. Enunciados são
revistos, assim como a percepção dos objetos.
O objeto existe enquanto um elemento a ser preservado
quando lhe é imputado um valor histórico, artístico e cultural. Assim, a
noção de objeto permeia duas possibilidades de significados na rede
das trocas simbólicas: o valor é dado em função da luz que ele traz ao
conhecimento e é inerente à sua condição estética, fazendo com que os
parâmetros oscilem entre esses polos.
De fato, tanto a cultura material como a história das artes
referem continuamente objetos que não teriam sentido sem este dado
imprescindível: a referência ao objeto concreto e também ao valor
estético que concorre para lhe definir a especificidade, ambos
interligados pelas várias análises discursivas. O modo de ver de uma
sociedade não é um modo de ver único, mas vários modos de ver,
determinados por uma relação contínua e circular entre o saber
erudito e o saber popular. Os diversos níveis sociais influenciam-se
mutuamente, ainda que de maneira diferenciada, estabelecendo um
comportamento característico intimamente ligado à sua história,
tempo e lugar. Walter Benjamin afirma: O cronista que narra os
acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em
conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser
considerado perdido para a história (1985, p.223). Assim, todo produto
159
Ensaios sobre Memória – Volume 2

da ação humana torna-se um documento fundamental para o resgate


do passado: a produção artística destaca-se não apenas como objeto
inserido no sistema das artes, mas como um produto elaborado pela
consciência humana, e deste modo, o registro de uma mentalidade,
uma época, uma ideologia e um modo de fazer; a força do registro
artístico consiste em determinar, por intermédio de um ato voluntário,
uma parcela do mundo visível.
A partir dessas reflexões, é possível perceber a transformação
dos sentidos em relação aos objetos; porém, não é possível localizar os
parâmetros que determinam quais são os objetos que merecem lugar
nos enfoques da preservação e do sistema de organização da memória,
a partir dos espaços museológicos: a exceção; o raro; o documento; a
obra de arte; o artesanato; o sagrado; o profano; o cotidiano; o
incomum?
Considerando a função social dos acervos, em 2015, o IBRAM
(Instituto Brasileiro de Museus) assumiu o protagonismo internacional
da elaboração da Recomendação referente à Proteção e Promoção dos
Museus e Coleções, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade, aprovada
na UNESCO. O texto, é uma referência para as políticas públicas de
gestão, interpretação, uso e difusão de acervos, destacando o papel dos
museus e suas coleções no campo do resgate das memórias.
Na atualidade, os estudos relacionados à memória reivindicam
as mobilidades de percepção e revisitação dos sentidos atribuídos. Na
introdução de A memória, a história e o esquecimento (2010, p.23), Paul
Ricoeur questiona: De que há lembrança? De quem é a memória?
Essas duas perguntas estabelecem os princípios fundamentais
que determinam a demanda da preservação da cultura material na
atualidade. O império dos sentidos sobre os objetos tem sido
construído pela lógica colonialista ancorada em uma única visão de
mundo e, a partir do momento que ocorre o deslocamento das
estruturas de dominação para as estruturas singulares, os objetos
adquirem sentidos polifônicos e políticos, múltiplas vozes escondidas
por atrás de um único denominador. A preservação material das
coleções garante a todas aos atores esquecidos, omitidos e ignorados a
possibilidade do estabelecimento de novos diálogos, conexões e
apropriações, gerando uma outra relação de memória para com as
coleções expostas ou ocultas nas reservas técnicas dos museus.

160
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Assegurar a proteção dessas coleções é fundamental,


principalmente se considerarmos políticas de descarte geradas de
forma inconsequente, a partir da premissa de que a digitalização
garante a preservação; a falta de planos museais voltados à prevenção
de danos subsidiados por protocolos de gestão técnico-científica e a
carência de políticas públicas, tanto em relação ao apoio às pesquisas
quanto aos princípios norteadores que suportam o sistema legal de
proteção ao patrimônio cultural, os editais de fomento direcionados à
medidas protetivas ou a formação de profissionais de museus
capacitados para atuar no campo da documentação, diagnóstico e
conservação preventiva.
O texto que apresentamos ao compêndio organizado procura
articular as bases epistemológicas, metodológicas e conceituais que
suportam o projeto Protocolos de gestão sustentável de acervos em
museus: competências técnico-científicas para a definição de standards,
recomendações e políticas públicas de salvaguarda, desenvolvido pelo
Grupo de Pesquisa ARCHE e vinculado ao Programa de Pós-Graduação
em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da Escola de
Arquitetura da UFMG.
Ao longo de sua condução, esperamos demonstrar a demanda
do diálogo em uma via de mão dupla sobre o significado plural da
memória exposta na cultura material e a demanda técnico-científica
para sua proteção.

2 MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E DESTRUIÇÃO DAS COLEÇÕES

Nos últimos anos, tanto no Brasil quanto em outros lugares do


mundo, assistimos inúmeras perdas de importantes coleções,
insubstituíveis em relação ao seu valor intrínseco e ao seu potencial de
pesquisa, como resultado de vandalismo, crimes, negligência e
desastres naturais.
Em 2010, o incêndio do Instituto Butantã destruiu um dos
maiores acervos vivos de cobras tropicais do mundo, estimado em
oitenta mil exemplares, além de milhares de aranhas e escorpiões; em
2013, o incêndio do Memorial da América Latina arruinou os interiores
do auditório Simón Bolívar, parte integrante do complexo, além
danificar totalmente a tapeçaria da artista Tomie Ohtake que recobria
uma de suas paredes; em 2015, o incêndio do Museu da Língua
161
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Portuguesa atingiu principalmente a torre do museu, instalado no


prédio da Estação da Luz, consumindo todo seu acervo, em sua
maioria, digital.
No entanto, nenhuma perda foi tão irreparável em relação à
memória nacional quanto o incêndio que consumiu toda a exposição e
todas as reservas técnicas do prédio principal:

On the night of September 2nd, 2018, one of the


greatest tragedies in the fields of science and culture
befell Brazil: the burning of the National Museum, a
federal patrimony and research center linked to the
Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ). The
disaster affected not only Brazilian scholars and the
public, but was a tragedy felt around the globe in
view of the importance and significance of its
collections to humanity worldwide. Priceless objects
lost to the fire include: the Throne of the Kingdom of
Dahomey offered to King João VI by King Adandozan
in 1811; linguistic recordings of Brazilian indigenous
communities now extinct; the oldest human remains
found in Brazil, named “Luzia”; remnants of the
Maxakalisaurus topai, a sauropod dinosaur found in
Minas Gerais; ethnographic collections composed of
cultural artefacts from all continents; and
international archaeological collections, including
Pompeian frescoes and the Egyptian collection of
Pedro II, as well as the national archaeological
collection. The entomological collection alone,
consisting of about five million insects, including
specimens collected by the naturalist Fritz Müller, a
popularizer of Charles Darwin’s ideas, was a horrific
loss to scientific communities internationally. In
short, more than two hundred years of research in
several significant areas of science were impacted by
the fire (Froner; Nunes, 2019, p. 9).

Estas tragédias tornam expostas a falta de protocolos


antecedentes às perdas que poderiam minimizar os prejuízos; a
162
Ensaios sobre Memória – Volume 2

carência de gestão documental, capaz de informar com clareza a


população e os órgãos públicos os bens perdidos ou danificados; ou a
inexistência de projetos de controle, combate e evacuação em caso de
incêndio que poderiam mitigar os danos.
Em 2011, o ICCROM efetuou uma pesquisa encomendada pela
UNESCO indicando que 60% das coleções em armazenamento estão em
risco, seja por questões de gestão e documentação, edificação,
mobiliário ou acondicionamento inadequados, e que essa situação
existe em todos os países, independentemente do seu nível de
desenvolvimento. Também indicando que, em média, apenas 10% das
coleções do museu são exibidas e acessíveis ao público, enquanto 90%
estão armazenadas.
A maior parte das perdas ocorrem, exatamente, nas áreas de
guarda, significando a destruição ou degradação da maioria dos objetos
pertencentes aos acervos museais. Torna-se mais temerária esta
situação, quando as instituições são incapazes de informar à sociedade
quais bens culturais foram perdidos ou danificados, simplesmente por
uma falta de uma política mínima de catalogação, inventário,
documentação ou geração de base de dados. Como consequência da
falta desta documentação, comunidades ali representadas jamais
saberão quais objetos relacionados à sua própria cultura foram
perdidos.
Em 2019, a 34ª Assembleia Geral do ICOM, em Kyoto-Japão,
aprovou a resolução Measures to safeguard and enhance collections in
storage throughout the world. Este documento não é o único, mas
demonstra a premência de ações técnico-científicas em relação à
proteção de acervos. O princípio que gerou este documento decorre de
um longo amadurecimento da área. Contudo, não estabelece
determinações específicas, mas como estruturação de princípios
amparados em conceitos gerais sobre significado. O documento
conclama aos membros do ICOM, instituições, governos e profissionais
de museu a:

• take all measures to reduce risks for collections in


storage throughout the world. This includes
allocating funds and making use of all available tools
and methodologies at their disposal, ensuring

163
Ensaios sobre Memória – Volume 2

museums’ mission for research, education, and


enjoyment by present and future generations.
• recognise the importance of culture in its various
forms in time and space, and the need to adopt
appropriate methods to preserve natural and
cultural testimonies, in their diversity, in national
and international development policies, in the
interest of communities, peoples and countries;
• reaffirm that different kinds of institutions of
memory have a fundamental value as custodians of
heritage, and that their role involves preserving the
material characteristics and documentation of their
collections for further study, exhibition, and access;
• consider the fundamental mission of museums,
libraries, archives and other institutions of memory
to preserve, produce knowledge and give access to
material culture, thereby contributing to the wide
diffusion of culture and the education of humanity
for justice, freedom and peace;
• further affirm that the preservation of collections
contributes to the enhancement of human rights, as
set out in the Universal Declaration of Human Rights,
and in the International Covenant on Economic,
Social and Cultural Rights; and
• commit to strengthen the role of Conservation
Science and Heritage Science in the production of
specialized knowledge for the preservation and
conservation of collections in favour of the
protection of cultural and natural heritage,
considering their role and related social
responsibilities;
• rethink the management of cultural heritage, and in
particular the policies, practices and exhibiting
criteria of collections stored in deposits.

Apesar dos avanços, tanto em relação às discussões apontadas


na Recomendação referente à Proteção e Promoção dos Museus e
Coleções, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade (2015), quanto em
164
Ensaios sobre Memória – Volume 2

relação à resolução de orientação estabelecida pelo ICOM, em 2019, há,


no sistema de museus, uma demanda emergencial para o
desenvolvimento, aplicação e adoção contínua de ações de
salvaguarda, subsidiada por competências técnico-científicas.
A inexistência de um campo interdisciplinar voltado à Ciência
do Patrimônio, tanto nas agências de pesquisa brasileiras –
notadamente CAPES e CNPQ – produz uma lacuna epistemológica, além
da falta de subsídios voltados às pesquisas relacionadas à essa área de
conhecimento.
No Reino Unido, em 2010, o relatório National Heritage Science
Strategy (NHSS) foi produzido para abordar a pesquisa sobre Ciência e
Patrimônio junto à House of Lords Science and Technology. A pesquisa
constatou que o setor estava fragmentado e subvalorizado e
recomendou que o setor do patrimônio deveria se unir no
desenvolvimento de uma estratégia nacional ampla para a ciência do
patrimônio (Cassar, 2013). De acordo com Froner (2015, p.1):

Heritage science is a cross-disciplinary scientific


discipline leading to improved care for heritage and
its understanding and can have a decisive impact on
sustainable development, as demonstrated in the
analysis below. The following provides an overview
of how Heritage Science, research and innovation,
with their culture of collaboration and inclusion can
contribute to global sustainable development.

A compreensão histórica da Ciência do Patrimônio e de seus


avanços no campo do conhecimento é indispensável para a geração de
ações que permitam a preservação das coleções e dos mecanismos de
acesso, interpretação e uso das memórias dos objetos.

3 DA MUSEOGRAFIA TÉCNICA À CONSERVAÇÃO PREVENTIVA:


PRINCÍPIOS EPISTEMOLÓGICOS DA GESTÃO CONSERVATIVA DE
ACERVOS

A UNESCO reorganizou um programa internacional focado na


proteção do patrimônio cultural após a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945) por meio das recomendações e estatutos que foram
165
Ensaios sobre Memória – Volume 2

elaborados em suas Conferências, Convenções e Assembleias. O


estabelecimento do Conselho Internacional de Museus (ICOM) em
1946, do Centro Internacional para o Estudo da Preservação e
Restauração de Bens Culturais (ICCROM) em 1956 e do Conselho
Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) em 1965, estruturou o
campo do conhecimento e da cooperação internacional com o objetivo
de produzir espaços sinérgicos para reunir pesquisadores,
profissionais e instituições a fim de debater e promover pesquisas
voltadas à salvaguarda dos bens culturais. Diversas diretrizes
internacionais aprovadas pela UNESCO e assinadas por seus Estados
Membros saíram dessas instituições e se tornaram a base para o
desenvolvimento de várias políticas nacionais de proteção do
patrimônio cultural, incluindo no Brasil. Em relação a essas instituições
mencionadas, o ICOM desempenhou um papel fundamental ao focar
suas discussões na proteção do acervo museológico.
A partir de 2016, os Comitês Internacionais de Conservação do
ICOM (ICOM-CC), de Arquitetura e Técnicas de Museus (ICAMT) e de
Coleções (COMCOL) articularam um ponto de partida para uma
discussão sobre a gestão de acervos em Reservas Técnicas, gerando a
recomendação aprovada na 34ª Assembleia Geral do ICOM, em Kyoto,
em 2019, denominada Measures to safeguard and enhance collections in
storage throughout the world, anteriormente citada.
A origem deste debate pode ser vista a partir da conferência
Muséographie: Architecture et Aménagement des Musées D´Art,
organizada pelo Escritório Internacional de Museus e realizada em
Madrid, em 1934. Destaca-se nesta conferência a pesquisa do
professore Alfred Stix (1882-1957), diretor do Kunsthistorisches
Museum de Viena, intitulada Organization des dépôts, réserves et
Collections d´études, e a comunicação Problèmes Soulevés par
l´accroissement des Collections feita por George Oprescu (1881-1969 ),
diretor do Museu Toma Stelian, de Bucareste. Ele coloca várias
questões no início de seu texto:

Mais la question se pose: où placer (les objets) dans


les musées qu'on évince? Où mettre encore ceux qui
proviennent des achats, de dons ou des legs ? Et dans
certain musées préhistoriques ou archéologiques,
des fouilles de la région ? Que rythme donner
166
Ensaios sobre Memória – Volume 2

dorénavant aux acquisitions nouvelles, pour ne pas


surcharger les salles, que ne sont que trop
encombrés ? Quelles règles suggérer aux donateurs
et aux testateurs - pour autant que cela peut se faire -
afin que l´effet de leur sollicitude à l´égard des
musées ne se traduise pas par des embarras plus
grands pour les personnes qui dirigent ces
institutions (Oprescu, 1934, p.295).

Ele também aponta outras questões significativas: como


impedir o aumento irracional das coleções? O que fazer com objetos
que não podem ou não devem ser expostos permanentemente?
Questões como essas são extremamente atualizadas e determinam
uma gestão segura dos acervos em museus.
Em julho de 1932, o Comitê Internacional de Cooperação
Intelectual, ao avaliar o impacto do movimento de intercâmbio e
colaboração entre as coleções públicas de museus, dando ao público
acesso à produção artística e científica em diferentes regiões do
mundo, enviou uma recomendação à Liga dos Nações, posteriormente
aprovadas, sugerindo aos Estados membros a criação de leis nacionais
capazes de apoiar a demanda de intercâmbio. Para Oprescu, esta
colaboração deveria ter sido feita por uma avaliação real sobre a
situação dos museus superlotados.

Les initiatives de l´Office International des Musées


dans ce domaine marquent ainsi une étape
essentiale, aussi bien dans le développement de la
collaboration internationale entre musées que dans
les progrès de l´esprit de solidarité intellectuelle au
sens le plus général (Oprescu,1934, p.310).

Todas as publicações que envolvem os estudos de arquitetura,


iluminação, ventilação e controle de temperatura em museus passam a
ser denominadas Museografia Técnica (Muséographie Technique) nas
inúmeras publicações do Escritório Internacional de Museus no
período entre guerras (1919-1939), principalmente na revista
Mouseion.

167
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Quase quarenta anos após o encontro em Madrid, a UNESCO


organizou uma Conferência Internacional sobre Armazenamento de
Museus, realizada em 1976, em Washington DC. De acordo com o
Relatório Final, Yuri Tuchenko, chefe da Divisão de Patrimônio Cultural
da UNESCO, e Luis Monreal, secretário-geral do Conselho Internacional
de Museus de 1974 a 1985, foram os responsáveis pela coordenação da
reunião e pela preparação do documento básico de trabalho.

The meeting discussed at length and in detail the


requirements of stored collection, recent advances in
storage and information retrieval techniques,
problems of conservation and security and the
differing need of museums throughout the world.
The participants represented museum whose
problems differed widely; nevertheless, from their
discussion there emerged a consensus concerning
the steps to be taken to improve museum storage
(UNESCO, 1976, p.2).

“A área de armazenagem é mais do que uma instalação física”


afirma o documento, refletindo sobre o papel do museu como guardião
e intérprete do conhecimento cultural e científico. Ao avaliar que a
porcentagem de objetos armazenados muitas vezes é maior do que em
exposição, principalmente em museus nacionais e de grande porte, os
depósitos de coleções – denominados Reservas Técnicas (RT) em
museus - devem ser tecnicamente e conceitualmente planejados,
recomendam as atas finais do encontro.
A década de 1970 foi especialmente promissora nas discussões
relacionadas à pesquisa em Conservação Preventiva, tanto sobre a
demanda de proteção de objetos em exposição quanto em RT. É
importante destacar o relevante papel do ICCROM na promoção do
Curso de Segurança, Controle do Clima e Iluminação em Museus (SEC-
1975/1985), fortalecendo o conceito de Conservação Preventiva para a
área, bem como do ICOM que, através do Comitê de Laboratórios
Científicos de Museus – por meio da Moção nº 17 discutida na 4ª
Assembleia Geral realizada em Genebra, em 1956 e aprovada pela 5ª
Assembleia Geral do ICOM realizada em Estocolmo, em 1959 –,
recomendou que os estudos sobre as condições climáticas para a
168
Ensaios sobre Memória – Volume 2

conservação de objetos de museu fossem extensivamente investigados


e que os profissionais de museus fossem formados na aplicação desses
estudos.
O foco nas questões climáticas desde a publicação de The
conservation of cultural property with special reference to tropical
conditions (Series Museums and Monuments, XI, 1968) até o final da
década de 1990, com as pesquisas de Stefan W Michalski (1990),
parece ter se distanciado da percepção integral da gestão, já indicada
por Oprescu e Stix desde a reunião em Madrid.
A documentação, as políticas de formação de acervo (aquisição
e descarte), os estudos potenciais de acervos fora da exposição, a
demanda de manutenção predial, os suportes adequados de
acondicionamento, o mobiliário correto para armazenamento
planejado a partir da tipologia dos objetos, os princípios de segurança
– incluindo sistemas contra roubo, vandalismo, desastres naturais e
incêndio – parecem ter sido deixados em segundo plano em relação às
discussões centradas na climatologia.
Porém, no final do século XX, o entendimento da pesquisa em
Conservação Preventiva como um campo da área das Ciências da
Conservação foi significativamente ampliado com o desenvolvimento
de distintos estudos, resultando em um crescente corpo de literatura
técnico-científica, na formação de pesquisadores em distintos níveis
(da graduação à pós-graduação) e na elaboração de metodologias.
Conforme Dardes e Staniforth (2015, p.2),

An examination of the practical aspects of preventive


conservation shows the complexity of the concept of
the museum environment, an ecosystem comprising
both physical and organizational layers. While
research is clearly essential for a better
understanding of collection materials and their
preservation, preventive conservation is
fundamentally an applied pursuit, using scientific
knowledge as a basis for policies and practices that
contribute to safe collection environments.

A partir dos anos 1990, uma visão integrada das relações


interconectadas relacionadas à preservação do acervo de museus
169
Ensaios sobre Memória – Volume 2

parece ter recomposto o debate. O princípio da gestão prioritária em


relação ao controle do clima começa a ser revisto, principalmente
quando a área passa a desenvolver uma percepção ampliada das
demandas das coleções. No mesmo período, a crise energética e
financeira passou a ser um fator determinante nas discussões,
considerando o alto investimento em equipamentos para
monitoramento e controle do clima, além do início das discussões
sobre sustentabilidade e uso consciente da energia. Nesse contexto,
percebe-se que a gestão da documentação como ferramenta de
conservação preventiva antecede as ações subsequentes no
planejamento físico das coleções, conforme a tese de doutorado
orientada A documentação como ferramenta de preservação: protocolos
para documentação e gestão do acervo artístico da UFMG, de Ana
Panisset, atual professora do ECI-UFMG (2017).
O Getty Conservation Institute (GCI) lançou neste período uma
série de projetos de capacitação, como o curso de Preventive
Conservation: Museum Collections and their Environment.

This course was designed to encompass both


technical information and the management skills
essential for implementing preventive conservation
within museums. One significant feature, unique for
the time, was the focus on museum buildings and
their systems and on the role conservators can play
within museum design, building, and renovation
projects to ensure that preventive conservation
concerns are addressed early in the design and
construction process (Dardes; Staniforth, 2015, p.3).

Com o objetivo de qualificar profissionais da América Latina e


integrar projetos na região, em 1995 foi ofertada na cidade de Oaxaca,
no México, a versão do curso em formato bilíngue – espanhol e inglês -
Conservación preventiva: Colecciones del museo y su medio ambiente,
atendido pela pesquisadora proponente e com disciplinas ministradas
pelo membro do projeto Prof. Dr. Luiz Souza.
Várias ferramentas de modelagem e avaliação foram
desenvolvidas para coleções de museus no final dos anos 1990 e no
início dos anos 2000. Erica Avrami, Kathleen Dardes, Marta de la Torre,
170
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Samuel Y. Harris, Michael Henry e Wendy Claire Jessup publicaram, em


1999, The Conservation Assessment: a Proposed Model for Evaluating
Museum Environmental Needs. A publicação foi produzida a partir das
experiências acumuladas nos cursos ministrados pela equipe do GCI e
a partir do documento anterior The Conservation Assessment: a Tool for
Planning, Implementing, and Fundraising, publicado em parceria com o
Instituto Nacional de Conservação (NIC).
Com base nessa ferramenta, o ICCROM e a UNESCO lançaram
em 2007 um projeto com foco na conservação preventiva de coleções
de museus em perigo, principalmente em países com crise financeira,
política ou com demanda de formação de recursos humanos.

This project aimed to improve museum skills and


provide tools to analyze documentation systems and
storage areas to facilitate conservation, research and
education, and prevent theft and illicit traffic. It was
felt by both organizations that these two issues
required stronger political support and a greater
involvement of decision makers at both institutional
and professional levels. ICCROM responded by
developing new tools designed to address the
specific context of small institutions with limited
access to resources or expert technical advice
(Lambert, 2011, p.6).

De acordo com Lambert, este projeto, intitulado Re-Org, deve


ser visto como a primeira metodologia de reorganização de coleções
em áreas de Reserva Técnica e de exposição. Por sua vez, compreende
que questões de qualificação de recursos humanos estão
necessariamente associadas ao contexto de origem e que, muitas vezes,
profissionais que atuam em museus não possuem uma formação
regular, dependendo assim de cursos de treinamento específicos e de
curta duração para suportar suas atividades cotidianas de forma
subsidiada.
Nesse período, também foram desenvolvidas diversas
ferramentas, tais como Conservation Assessment e Risk Management of
Collections, além de outros instrumentos metodológicos, a maioria
deles enfocando áreas de conhecimento específico, como coleções de
171
Ensaios sobre Memória – Volume 2

arte, museus arqueológicos ou de história natural, bem como


relacionados a áreas como Museologia, Ciência da Informação,
Arquitetura e Ciência da Conservação.
No Reino Unido, o Benchmarks for Collection Care foi
desenvolvido em 2002 pelo Conselho para Museus, Arquivos e
Bibliotecas. De acordo com Anna E. Bülow (2010, p. 66):

Benchmarks is a very good tool to show strengths


and weaknesses in collection management by
assigning basic, good and best practice levels to
particular practices. However, as well as identifying
areas for improvement in The National Archives’
collection management, the project also aimed to
quantitatively assess collection needs in order to
help prioritize necessary improvements and
underpin strategic decisions. In addition, a
quantitative assessment would be pivotal in helping
to strengthen arguments at senior management level
for improvement measures. Assessment results in
the form of numerical values allow graphic
demonstrations of a collection’s needs. As
Benchmark assessment does not result in numerical
values, it was necessary to look at other evaluation
methods.

Bülow cita duas outras ferramentas de avaliação disponíveis no


Reino Unido: o Preservation Assessment Survey, publicado e avaliado
por meio do National Preservation Office (atualmente, Preservation
Advisory Center) e o British Standard BS 5454, atualizados em 2000 e
2010.
Robert Waller, professor Art Conservation Program, da Queen's
University at Kingston, no Canadá, vem produzindo, desde 1994,
diversas pesquisa sobre modelos de diagnóstico de conservação e
diagnóstico de risco voltados à preservação, com base em sua
experiência com o Museu Canadense da Natureza (CMN). O modelo de
Diagnóstico de Risco desenvolvido por Waller envolve tanto a
aplicação da Ciência da Informação para a geração modelagens
informatizadas que avaliam o desempenho institucional em relação à
172
Ensaios sobre Memória – Volume 2

gestão de acervos, quanto parâmetros que determinam os danos


potenciais que podem levar à degradação, desaparecimento ou
destruição das coleções. Do ponto de vista econômico, tais modelagens
também são capazes de definir o valor econômico dos acervos,
determinando o patrimônio de instituições públicas e privadas e as
implicações financeiras decorrentes da perda do capital – simbólico e
econômico – que gestões inadequadas podem ocasionar. De acordo
com o pesquisador,

In the past ten years, there has been considerable


interest in and development of ideas about how the
preservation of cultural property can benefit by
adopting a risk assessment model (Waller 1994,
Michalski 1994, Ashley-Smith 1999). There appears
to be a growing consensus that this approach will
improve the effectiveness of preventive conservation
(Waller, 2002, p.102).

Em 2012, a Conferência Internacional sobre Gestão de Risco em


Museus realizada em Ancara, Turquia, teve como objetivo discutir a
proteção do patrimônio em situações de emergência. Organizada pelo
Museu das Civilizações da Anatólia em cooperação com os Amigos do
Patrimônio Cultural (FOCUH) e o Conselho Internacional de Museus
(ICOM), esta conferência priorizou as seguintes questões: normas e
ferramentas para combater o tráfico ilícito de bens culturais;
preparação para riscos e segurança em museus em contextos de
conflito; gestão de risco em museus; colaboração intersetorial e o papel
das comunidades na gestão de risco.
José Luiz Pedersoli Jr., Catherine Antomarchi e Stefan Michalski
escreveram, em 2016, a cartilha intitulada A risk management
approach to the preservation of cultural heritage, uma publicação
conjunta do Instituto Canadense de Conservação (CCI) e do ICCROM. O
`Método ABC´ descrito no guia foi baseado no curso de três semanas do
ICCROM sobre Reducing Risks to Collections organizado em parceria
com a Agência do Patrimônio Cultural da Holanda (RCE) e o Instituto
Central para Conservação da Sérvia (CIK). O objetivo desta cartilha foi
apresentar um guia simplificado e acessível, capaz de orientar o

173
Ensaios sobre Memória – Volume 2

planejamento e implementação de práticas institucionais em diferentes


contextos e por diferentes tipos de funcionários de museu.
Além dos problemas das diferentes metodologias de avaliação
da conservação e gestão de risco, os museus e outras instituições de
memória enfrentam hoje o problema da organização dos dados e do
acesso à informação, tanto em termos de seu acervo como de sua
própria história. No campo das Novas Tecnologias da Informação e
Comunicação (NTICs), diversos sistemas e plataformas de modelagem,
como o Collection Trust e Spectrum, buscaram gerar parâmetros
operacionais.
The Collection Trust é uma plataforma desenvolvida no Reino
Unido, projetada para elaborar padrões de gestão de documentação de
museus, sistematizando e atualizando o uso de novas tecnologias no
campo da gestão da informação. A sua história remonta à década de
1970 e ao trabalho pioneiro do Information Retrieval Group of the
Museums Association (IRGMA). Em 1977, este grupo formou a
Museum Documentation Association (MDA) e, posteriormente, em
2008, foi relançado como Collections Trust. Este grupo é responsável
pela criação do SPECTRUM Standard – the Museum Collections
Management Standard - em 1994, um sistema de modelagem de
informações para o gerenciamento de coleções, incluindo orientações
sobre como tratar os artefatos em cada etapa do seu ciclo de vida em
uma coleção. A norma SPECTRUM, nascida no contexto jurídico e
profissional do Reino Unido, é hoje a principal referência internacional
para a gestão e documentação de coleções em Museus (Poole, 2011,
2013).
No contexto brasileiro e português, a norma foi traduzida e
publicada na versão 4.0, com o apoio da Secretaria da Cultura do
Estado de São Paulo, em 2013, objetivando apresentar às comunidades
museológicas dos países de língua portuguesa um instrumento
normativo de referência (Panisset, 2017).
No entanto, as rápidas transformações tecnológicas e a
volatilidade do sistema obrigam que o campo específico de
documentação de acervos, vinculado à área de Ciência da Informação,
busque atualizações constantes, quase simultaneamente com o
lançamento dos produtos de sua pesquisa. Ao discutir questões sobre
obsolescência de equipamentos, sistemas e softwares, este projeto
propõe estabelecer protocolos estruturantes que compreendem de
174
Ensaios sobre Memória – Volume 2

forma técnica, científica e conceitual os problemas relacionados à


gestão documental de acervos.
No início do século XXI, novos parâmetros começaram a ser
delineados a partir da visão interdisciplinar da Ciência da Conservação,
associando Humanidades e Ciências Naturais, uma vez que os
princípios relacionados à gestão de coleções não podiam mais ser
estruturados a partir de um único enfoque. Definir o valor e o risco
potencial das coleções foi gradualmente reconhecido como elemento
integrante da gestão estratégica de coleções. Palavras como
sustentabilidade e resiliência resgataram o princípio fundamental da
preservação do acervo em museus: seu papel social. Essa nova
abordagem requer um pensamento flexível, o compartilhamento de
conhecimento, a integração de campos e, acima de tudo, um espírito
colaborativo não hierárquico entre as áreas de conhecimento.
Da mesma forma, standards, diretrizes, modelos e ferramentas
metodológicas transitam entre os dispositivos técnicos e os estudos
científicos, conformando a relação interdisciplinar necessária à visão
holística dos processos de gestão:

Within the conservation field, the notion of an ideal


environment for collections was replaced by the
concept of an appropriate environment. In place of a
universal standard (that was neither quite universal
nor a true standard), a localized approach was taking
hold. With this approach, preventive conservation
solutions were geared to the specifics of a given
climate, museum building, collection, set of identified
risks, mission, and range of operational priorities, as
well as to the available resources (Dardes;
Staniforth, 2015, p.4).

O que significa sustentabilidade atualmente? Como podemos ou


como podemos abordar esta questão no campo da preservação do
patrimônio cultural?

Since the 1970s, the concept of sustainability has


been used more and more in the sense of natural and
cultural heritage sustainability, which coincides with
175
Ensaios sobre Memória – Volume 2

the 1972 Convention concerning the Protection of


World Cultural and Natural Heritage, and involves
discussions regarding climate change, ecology, and
the impact of the industrialization and urban growth
on nature and society. After the 1980s, the
discussion of human sustainability (economic and
social) has resulted in the most widely quoted
definition of sustainability as a part of the concept of
sustainable development, considering the impact of
socio-economic unbalance towards nature, and vice
versa. According to the Brundtland Commission of
the United Nations, sustainable development is a
development that meets the needs of the present
without compromising the ability of future
generations to meet their own needs (Froner, 2017,
p.212).

Em 2016, como convidada para discutir o escopo da


organização da rede E-RIHS, em Amsterdã, Holanda, a partir da
atuação junto ao LACICOR e à ANTECIPA, principalmente pelo
interesse comum de se produzir ações conjuntas, questões
relacionadas à sustentabilidade no campo da Ciência do Patrimônio
foram assim definidas:

(1) Sustainable cultural heritage should be


understood as a technical and scientific approach to
maintain the physical integrity of a cultural material
property, as well as to ensure the expression and the
memory of immaterial culture. In the first case, it
depends on qualified personnel at all levels, and of
the conservation science field to support the
preservation of material culture, both movable and
immovable. In both cases (material and immaterial
culture), these actions require legal protection,
training, and approach from the heritage science
field. In this sense, the concept of sustainability of
cultural heritage is attached to the management
capability to support, over time, the material and
176
Ensaios sobre Memória – Volume 2

immaterial protection by employing the use of


advanced transdisciplinary knowledge. The memory
tools such as records and inventory apply both
immaterial and material culture, also require
knowledge and creative ability to self-centered
innovation. Sustainable management requires
qualified professionals to manage the cultural
heritage and institutions from a scientific and
technical basis.
(2) The sustainability of cultural heritage is strongly
related to the political, legal, and economic
programs, and it requires the capacity of
management and legal skills to provide the financial
support required to fulfil the previous item.
Governmental, intergovernmental, non-
governmental, and private programs, at national and
international levels should foster economic and
political assistance regarding this topic. However,
sometimes the most prominent problem of the
institutions is not the absence of financial support,
but the inexistence of management capacity, as well
as no defined sustainable institutional conservation
program over the short, medium, and long term
based on primary assessment tools. Hence,
sustainable heritage requires management skills for
the financial administration of an institution, such as
the ability to produce assessments and projects
aside from raising funds. At the governmental level,
it means the facilities and skills to create and
develop government programs for the cultural area
supported by legal instruments.
(3) The central implication of the concept of
sustainable cultural heritage to society comes from
the meaning that the cultural heritage acquires for a
particular community. Primarily, it is related to the
environment in which cultural heritage is installed,
as local community must be understood as the
original and principal articulator of meanings.
177
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Sequentially, it relates to the meaning constructed


for the various communities who have the usufruct
of its existence or manifestation. Regarding the
neighboring community of the material culture or
the immaterial manifestation, they must be involved
in the projects a way to manage and safeguard it, and
continually be educated regarding its value and
meaning. Self-pride of memory is an essential factor,
as is the cultural testimony that remains from the
past. Sustainable tourism policies, which are
designed to maintain the community’s well-being
and the cultural heritage preservation, should be
designed to foster local development. The
community’s sense of belonging is the primordial
relationship of its protection (of the community and
its culture). When it incorporates the local workforce
into cultural management, and the advantages
regarding the cultural heritage protection are
demonstrated, the community becomes the main
force of sustainability. Likewise, economic
development attached to the concept of culture
became a two-way street for sustainability, to
heritage and the social context (Froner, 2018, p.6-7).

Tendo em vista as enormes perdas geradas pelas guerras


principalmente em regiões como o Oriente Médio e África; os desastres
naturais fortemente ligados às mudanças climáticas e a instabilidade
econômica vivida por muitos países no início do século XXI, qual é o
papel das coleções de museus? Por que investir em coleções não
expostas? Por que investir em Reservas Técnicas invisíveis apesar de
um mundo virtual de possibilidades?
Sociedade e cultura formam uma totalidade histórica, de forma
que a busca pela liberdade e pela justiça econômica é indissociável da
questão da cultura, assim como da educação e da geração de
conhecimento científico. Em contextos totalitários ou em crise, a
ruptura com as estruturas políticas e jurídicas põe em risco a
diversidade das identidades culturais, como também em relação às
condições sociais de vida. Museus são espaços polifônicos, guardiões
178
Ensaios sobre Memória – Volume 2

das múltiplas vozes, formas de pensamento e modos de viver distintos,


expressos na cultura material preservada, sob sua tutela.
Diante de uma cultura de massa, geralmente superficial,
errática e promotora de um pensamento uniforme e não crítico, a
educação, a ciência, a cultura e a arte podem fazer alguma diferença?

We see two contrasting ways of understanding the


present, and both appear to have resonances for
sustainability issues. The first viewpoint asserts the
present only manifests its narrative across the past
and the future, and the process of transition is more
important than the present per se. The second
viewpoint understands that the present is not a
continuous system of transition, a connecting
operator between the past and the future, but a
primordial space in which to live (Froner, 2017,
p.213).

Assim, o problema da gestão das coleções não é apenas um


problema de preservação para as gerações futuras, mas um problema
para a geração presente que, por meio da educação, da ciência e do uso
dos equipamentos museais como centros integradores da comunidade,
fazem dos museus espaços primordiais de vivencia. Assim,
recomendações que visem subsidiar a gestão participativa torna-se
fundamental na composição do escopo desta proposta.

4 PROTOCOLOS DE GESTÃO SUSTENTÁVEL DE ACERVOS EM


MUSEUS: COMPETÊNCIAS TÉCNICO-CIENTÍFICAS PARA A
DEFINIÇÃO DE STANDARDS, RECOMENDAÇÕES E POLÍTICAS
PÚBLICAS DE SALVAGUARDA

Na realização desta investigação, propomos uma revisão dos


termos "protocolo" e "standard", as suas históricas retrospectivas com
base na etimologia das palavras e as atribuições de conceito, conforme
empregados pelos diversos autores que tratam dos temas
correlacionados às áreas que compõem esta pesquisa.

179
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Inicialmente, o conceito de protocolo 23 utilizado está associado


às imputações definidas em dicionário da língua portuguesa: "um
documento que incorpora uma declaração oficial de uma regra ou
regras", bem como "um documento que especifica princípios nacional
ou internacionalmente acordados." Assim, as normatizações que regem
as políticas de aquisição e descarte, o acesso às pesquisas e as condutas
específicas dos setores em relação às coleções, podem ser consideradas
protocolos de gestão. Por sua vez, o conceito de standard, recorrente
nas línguas inglesa24 e portuguesa25, é empregado como "padrão, tipo,
modelo", mais específicos aos parâmetros de modelagem, como
temperatura, umidade relativa, iluminação, vibração, ruído, índice de
poluentes e particulados, próprios do campo da Conservação
Preventiva; e também em relação aos sistemas computacionais,
próprios da Ciência da Informação.
Cabe ressaltar que este último termo vem continuamente sido
absorvido no campo da Conservação Preventiva e da Ciência da
Conservação, fundindo ambas terminologias. De acordo com Rebeca
Alcantara (2002, p.5):

In recent times, a standard has come to mean “a


document embodying an official statement of a rule
or rules” as well as “a document specifying nationally
or internationally agreed principles for
manufactured goods, procedures, etc.” Thus, a
museum’s rules for allowing access to its collections
could be considered a standard.

23 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:


Ed. Objetiva, 2009, p.1566.
24 Standard. 1. Something considered by an authority or by general consent as a

basis of comparison; an approved model. 2. An object that is regarded as the


usual or most common size or form of its kind: We stock the deluxe models as
well as the standards. 3. A rule or principle that is used as a basis for judgment:
They tried to establish standards for a new philosophical approach. 4. An
average or normal requirement, quality, quantity, level, grade, etc.: His work this
week hasn't been up to his usual standard. The New Shorter Oxford English
Dictionary, Vol. 2, Clarendon Press, Oxford, 1993, p. 3028.
25 HOUAISS, op. cit, p.1777.

180
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Durante a década de 1960, surgem os primeiro artigos que


usam a palavra “standard” em relação às medidas preventivas de
conservação. Um dos primeiros foi Standards of Exposure to Light de
Robert Feller (1963), relacionado ao uso do "Blue Wool Scale",
amostras de tecido azul que aferiam o impacto da incidência de luz nos
objetos. Sua pesquisa contribuiu para a apropriação da ISO 105,
aplicada à indústria têxtil, como um de método de testagem para medir
a resistência da cor à luz.

The International Organisation for Standardisation


(ISO) currently defines standards as documented
agreements containing technical specifications or
other precise criteria to be used consistently as
rules, guidelines, or definitions of characteristics, to
ensure that materials, products, processes and
services are fit for their purpose (Alcantara, 2002,
p.6).

Voltado majoritariamente à indústria, no campo da


Conservação Preventiva a ISO é utilizada para comprovar a qualidade
dos exames e procedimentos nos estudos da materialidade dos bens
culturais.
Em virtude do volume considerável de documentos levantados,
a sistematização proposta nesta investigação procurou estabelecer
inter-relações entre as fontes e a geração de parâmetros sintéticos em
relação aos protocolos de gestão conservativa de coleções em museus.
Assim, a metodologia que subsidia esta investigação está vinculada ao
estudo do desenvolvimento de standards, normatizações,
recomendações e protocolos de gestão conservativa de acervos em
museus a partir de documentos já estabelecidos na área, procurando
identificar os princípios comuns e as orientações práticas advindas
desse estudo, visando suportar prioritariamente as políticas públicas
no Brasil, mas também apresentar um produto conceitual de referência
para a comunidade internacional.
Gestão conservativa ou gestão em conservação estabelece um
recorte específico na pesquisa, uma vez que está relacionado às
questões determinadas pelo campo da Conservação Preventiva, ainda
que integrado com outras áreas, demandando delas uma associação
181
Ensaios sobre Memória – Volume 2

interdisciplinar a partir de uma compreensão de suas competências


exclusivas.
Ao propor uma definição clara dos termos, procuramos
contribuir para o estabelecimento de documentos normativos internos
aos museus que abarquem as orientações internacionais, independente
da diversidade das tipologias museais, uma vez que os princípios
instrucionais genéricos podem ser vistos como estruturantes, capazes
de se adaptar às distintas realidades de forma inclusiva.
Do mesmo modo, propomos, o levantamento dos instrumentos
normativos torna-se fundamental para o estabelecimento do percurso
da área.

5 INSTRUMENTOS NORMATIVOS

Ao discutir os parâmetros técnico-científicos para a geração de


protocolos e standards voltados à gestão conservativa de acervos em
museus, por meio da compilação e análise dos documentos basilares
estruturados desde o encontro de Madrid (1934), mapeamos um
conceitos estruturantes da área, a partir de sua origem e por meio da
compreensão de sua evolução. Como objetivo desta investigação,
procuramos sistematizar os instrumentos normativos relacionados à
gestão de salvaguarda de coleções, com o intuito de compreender as
transformações dos parâmetros, conceitos, modelos e ferramentas
desenvolvidos na área.
Cabe pontuar que, para a sistematização da recomendação
Measures to safeguard and enhance collections in storage throughout
the world, aprovada em Kyoto-Japão, na 34ª Assembleia Geral do ICOM,
em 2019, o grupo de trabalho do ICOM-CC levantou a seguinte
documentação:

a) Museographie, Architecture and Management of Art Museums,


organizada em 1934, em Madrid pela Liga das Nações, durante
a qual se levantou a situação alarmante de coleções nos
depósitos de museus;
b) A Convention on the Means of Prohibiting and Preventing the
Illicit Import, Export and Transfer of Ownership of Cultural
Property, adotada pela Conferência Geral da UNESCO em sua
16ª sessão em 1970, em Paris;
182
Ensaios sobre Memória – Volume 2

c) A 1st International Conference on Museum Storage, organizada


em 1976 pelo ICOM, em parceria com o Smithsonian
Institution, em Washington D.C., que instou aos profissionais de
museu a dar atenção imediata à gestão de Reservas Técnicas
em museus;
d) A resolução D2, votada na mesma conferência em 1976, que
exigia que o ICOM criasse um Comitê Internacional de RTs de
Museus, o qual nunca foi criado;
e) As publicações da UNESCO sobre o tema, enfatizando Museum
Collection Storage (1979) e Collection Storage (1995) nas quais
se afirma que “na verdade, provavelmente mais danos foram
causados às coleções de museus por meio de armazenamento
impróprio do que por qualquer outro meio”;
f) O relatório Standards in Preventive Conservation: Meanings and
Applications, produzido por Rebeca Alcá ntara, em 2002, no
ICCROM;
g) A resolução aprovada na XXVII Assembleia Geral do ICCROM
em 2011, sobre a necessidade de uma estratégia global para
abordar a situação das coleções em armazenamento em todo o
mundo;
h) O resultado da pesquisa ICCROM-UNESCO de 2011, indicando
que 60% das coleções em armazenamento estão em risco, seja
por questões de gestão e documentação, edificação, mobiliário
ou acondicionamento inadequados, e que essa situação existe
em todos os países, independentemente do seu nível de
desenvolvimento. Também indicando que, em média, apenas
10% das coleções do museu são exibidas e acessíveis ao
público, enquanto 90% estão armazenadas;
i) Declaration on the Collections Preservation Environment,
proposto em um encontro organizado pelo Smithsonian
Institute, em 2013;
j) A Recomendação sobre a Proteção e Promoção de Museus e
Coleções, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade, articulada
pelo IBRAM e pelo ICOM-BR, adotada pela Conferência Geral da
UNESCO em sua 38ª Sessão em 2015, em Paris.

Em relação ao último instrumento normativo, o documento de


trabalho 38 C/25, da 38a Sessão da Conferência Geral da Unesco,
183
Ensaios sobre Memória – Volume 2

denominado Proposal for a non-binding standard-setting instrument on


the protection and promotion of various aspects of the role of museums
and collections, reconhece a importância do estabelecimento
normativos.
Antecedem a essas discussões, a responsabilidade estabelecida
no Artigo 2.23 do Código de Ética do ICOM, que afirma: “É uma
responsabilidade essencial dos membros da profissão de museu criar e
manter um ambiente de proteção para as coleções sob seus cuidados,
sejam elas armazenadas, expostas ou em trânsito.” (2009, p.23).
Concomitantemente ao desenvolvimentos de padrões de
conservação no campo de bens culturais móveis, a partir da década de
1970 estudos começam a estabelecer standards no campo da
conservação-restauração de edifícios e sítios. Em 1975, os Estados
Unidos desenvolveu suas Standards for the Treatment of Historic
Properties.
Durante os últimos cinquenta anos, as normas que tratam da
conservação preventiva e da gestão de coleções procuraram auxiliar,
principalmente, na orientação de políticas públicas em estados ou
regiões específicas:

• Na Rússia, em 1973, Recommendations on Projecting Artificial


Light in Museums, pelo Ministério da Cultura;
• No Canadá, Standards for Saskatchewan Museums (1991) e
Standards for Manitoba Museums (1995) foram produzidos no
contexto de associações regionais;
• Na Inglaterra, distintos instrumentos gerados entre 1990 e a
atualidade, a partir da Museums and Galleries Commission, de
Londres;
• Na Venezuela, Normativas técnicas para museos (1991),
elaborada pelo Consejo Nacional de la Cultura;
• Standard di qualità dei musei (2001), desenvolvido pelo
Ministero per i Beni e le Attività Culturali da Itália;
• Nos EUA, Preservation of Historical Records, em 1986, pelo
National Research Council e Draft Environmental Standards for
Exhibiting Library & Archival Materials, em 1995, pela National
Information Standards Organization; Standards for Museum
Exhibitions and Indicators of Excellence, em 2012, pela AAA;

184
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Internacionalmente, no âmbito do ICOM:

• ICOM Guidelines for Loans (ICOM Secretariat, 1974);


• Labelling and Marking Objects (CIDOC Fact Sheet 2, 1993)
• Guidelines for Disaster Preparedness in Museums (ICMS, 1993)
• Registration Step by Step: When an Object Enters the Museum
(CIDOC Fact Sheet 1, 1993)
• International Guidelines for Museum Object Information: the
CIDOC Information Categories (CIDOC, 1995)
• International Core Data Standards for Ethnology/Ethnography
(CIDOC, 1996)
• The CIDOC Conceptual Reference Model (CIDOC, 2001; 2011)
• University Museums and Collections – Importance, Responsibility,
Maintenance, Disposal and Closure (UMAC, 2007)
• Lightweight Information Describing Objects (CIDOC, 2010)
• Recommendations for Identity Photography (CIDOC, 2010)
• Statement of Principles of Museum Documentation (CIDOC,
2012)
• Environmental Guidelines: ICOM-CC and IIC Declaration (ICOM-
CC, 2014)
• Best Practice in Museum Education and Cultural Programmes
(ICOM-CECA, 2017)
• Education Toolkit, Methods and Technique from Museum and
Heritage Education (ICOM-CECA/LCM, 2017)
• Natural History Museums Conference Planning Guide (NATHIST,
2018)
• Guidelines on Deaccessioning of the International Council of
Museums (ETHCOM, 2019).

O que é possível mapear a partir desses instrumentos


normativos? Qual o descompasso entre as discussões acadêmico-
científicas e as políticas públicas? De que forma e em qual medida os
objetos sofrem pela dupla inércia do sistema: a incapacidade de utilizar
as competências técnico científicas para a salvaguarda dos acervos e a
incapacidade de expandir seu acesso, prioritariamente às comunidades
de onde estas coleções advêm?

185
Ensaios sobre Memória – Volume 2

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fenomenologia da memória aponta para uma relação diversa


das questões postas pelas áreas acadêmicas, principalmente por
considerar as relações de afetividade despertas pelos objetos. A relação
do conhecimento expresso pelos documentos, obras de arte e artefatos
tem sido privilegiado nas estruturas conceituais, em detrimento das
relações afetivas e simbólicas de uso e percepção. Essa abordagem
restrita imputa um problema operacional acerca da validade e do
significado dos objetos dos museus no plano da memória ao longo do
tempo, sua capacidade de reminiscência e reverberação de
identidades, além de seu uso político enquanto instrumento de
resistência de determinadas culturas ou modos de vida.
Ao compreender o deslocamento dos sujeitos em relação aos
objetos e a demanda de uso desses objetos como instrumentos para o
resgate dos modos de fazer e se expressar de distintas comunidades, as
coleções de museus passam a trilhar um caminho inverso: se no
passado estes objetos foram expropriados das comunidades de origem
por meio da ação de compra, coleta e, eventualmente, tráfico ilegal, na
sociedade contemporânea produzir sistemas de acesso das
comunidades aos seus bens culturais devolve para essas comunidades
o sentido de pertencimento e identidade cultural.
Contudo, tal operação não é simples e demanda uma rede
interdisciplinar, colaborativa e subsidiada por competências técnico-
científicas. Antes de dar acesso, torna-se necessário um trabalho
extenso de documentação e conservação dos acervos do museus. Da
esma forma, nenhuma discussão conceitual sobre o papel social do
museu na atualidade poderá responder a esta questão sem uma
política clara de preservação, uma vez que os objetos perdidos devido
aos incêndios, negligência, crimes ou degradação perderão, totalmente,
sua capacidade de articular novas vozes através da interpretação,
acesso e reintegração de sentidos.
Assim, manifesta-se aqui o ouroboros da questão: os princípios
conceituais que discutem o significados das coleções são esvaziados
diante da destruição da cultura material; da mesma forma, a
salvaguarda da cultura material por meio de uma gestão conservativa
técnico-científica não tem sentido diante do esvaziamento do
significado conceitual dos acervos.
186
Ensaios sobre Memória – Volume 2

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Ensaios sobre Memória – Volume 2

AS CARMELITAS DE COMPIÈGNE: A OBRA DE GERTRUD VON


LEFORT COMO FONTE PARA O ESTUDO DAS RELAÇÕES
ENTRE MEMÓRIA, LITERATURA E HISTÓRIA

Artur Cesar Isaia


Universidade La Salle, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-7195-8027

Cleusa Maria Gomes Graebin


Universidade La Salle, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-2919-5687

1 INTRODUÇÃO AO DRAMA

Ou quem é que permanecerá vivo na memória das


gerações futuras: os tiranos que usam e abusam do
poder ou o povo que, com dignidade, sobre ao
patíbulo, testemunhando suas crenças e cantando
seus hinos? (Tonin, apud Le Fort, 1988, p. 8).

A motivação para a escrita desse texto veio de uma coincidência


na vida dos autores. Ambos guardávamos a lembrança do filme Diálogo
das Carmelitas, a película de 1960, dirigida por Brukcberger e Agostini
e ambos havíamos lido há muitos anos atrás a novela A última ao
cadafalso de Gertrud Von Le Fort. Como nos ocupamos
simultaneamente com estudos sobre memória social e religião,
imediatamente passamos a refletir sobre a emergência, em
determinados tempos, de temas que evocam “[...] o que não pode ser
diretamente apresentado ou representado” (Seligman-Silva, 2003, p.
380). Passamos a discutir a obra de Le Fort tanto do ponto de vista da
memória e sua narrativa, quanto da sua articulação a dois contextos
diferentes: o da ação dramática narrada e o vivenciado pela autora.
Gertrud Von Le Fort escreve sobre dezesseis freiras carmelitas
executadas na guilhotina, em 17 de julho de 1794, durante a Revolução
Francesa. Posteriormente, Georges Bermanos escreveria a peça
Diálogo das Carmelitas e Francis Poulenc comporia a ópera homônima.

199
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Em comum, todas estas obras remetem não a um heroísmo


hagiográfico super-humano, mas ao contrário, à superação da fraqueza
em nome de um sentido de vida transcendente. Todas essas obras
chegam a seu ápice ao subirem as religiosas os degraus da guilhotina,
indo ao encontro do que acreditam ser a bem aventurança eterna,
cantando o Veni Creator, o qual é substituído pela Salve Regina na
ópera de Poulenc. A última a subir ao cadafalso é justamente Blanche
de La Force, personagem a qual Le Fort constrói hipertrofiando a luta
agonística entre a fraqueza e a fortaleza, vinda da fé no destino
transcendental humano. Blanche aparece como uma jovem de alta
linhagem, de natureza medrosa e frágil, apresentada pela autora em
total oposição ao evocado por seu ilustre sobrenome: “O alto título da
sua linhagem parecia ter-lhe sido infligido como pura etiqueta, por
injustiça, e o nome de La Force, por derrisão” (Le Fort, 1998, p. p. 55).
O livro de Le Fort e as memórias de Irmã Maria de l’Incarnation
constituíram-se no corpus sobre o qual nos debruçamos, indagando-
nos sobre o que teria motivado Le Fort a construir uma obra literária
que se constitui, na nossa concepção, como um aflorar de memórias
subterrâneas (Pollak26, 1989). As vozes das carmelitas chegaram até à
autora, a partir de um diário, com fragmentos biográficos. Esses
documentos e o que eles geraram, contemplam o registro da
experiência das freiras carmelitas, reconstruindo suas trajetórias no
Carmelo de Compiège e pondo em discussão as narrativas sobre a
Revolução Francesa, as quais não deram espaço para as vozes que
foram caladas no cadafalso. Já a obra de Le Fort é escrita de forma
epistolar. Trata-se de uma carta destinada a uma aristocrata
emigrante, constrangida a abandonar a França revolucionária. A carta é
datada de outubro de 1794, portanto, alguns meses depois de serem
executadas as carmelitas.
De acordo com Camargo, esse tipo de documento permite
“rastrear, identificar, analisar o modo como, através das cartas
enquanto prática escrita [...], uma realidade social é construída,
pensada, dada a ler e materializada” (2000, p. 205). Já um diário é um

26Recuperado de
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417
Acesso em 20 maio 2020.
200
Ensaios sobre Memória – Volume 2

documento “unilateral e ambíguo”, como aponta Moreira 27 (1996, p.


16). Traz o tempo de seu autor, os silêncios propositais, a construção
de uma determinada memória. Por outro lado, o tom coloquial
epistolar permite observações agudas sobre a natureza dos
personagens, que de outra forma poderiam ficar apenas implícitos.
Assim já no começo da obra, a emigrante é informada que Blanche não
é uma heroína. Trata-se de uma jovem medrosa, fraca, a qual, inclusive
foge do convento, traindo o juramento de martírio feito pela
comunidade. Assim, respondendo a uma carta da emigrada, na qual
esta se refere à Blanche de La Force como uma heroína, pondera o
missivista:

[...] ela não foi uma heroína no sentido em que


empregas o termo. Essa delicada criatura não foi um
exemplo da dignidade da natureza humana. Foi,
antes, um signo da infinita fragilidade de toda a força
e soberania humanas [...] Talvez ignores que Blanche
de La Force foi uma religiosa fugida do Carmelo de
Compiègne, ao qual pertencera dirante algum tempo
como noviça... Deixa-me, então falar-te desse
episódio breve, mas muito importante, pois é nele –
ao menos, assim me parece – que se inicia o hino
cantado ao pé do cadafalso. (Le Fort, 1998, p.49).

É assim que o missivista introduz a narrativa da agonia de


Blanche, dividida entre a comodidade da sobrevivência conseguida
com a fuga do Carmelo e a aceitação do martírio no epílogo da obra, ao
juntar-se às suas irmãs de comunidade no momento de sua execução
pelo Comitê de Salvação Pública.
Os fragmentos biográficos sobre as carmelitas tratam-se de
uma invenção literária a partir de produção de memórias que remetem
a rastros de vividos que dizem algo sobre o seu passado. Os autos do

27Recuperado de
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/download/2021/11
60 Acesso em 20 maio 2020.
201
Ensaios sobre Memória – Volume 2

processo movido contra as carmelitas pelo Tribunal Revolucionário 28


estavam plenos de uma representação imaginária que abarcava duas
categorias, ou seja: a existência de suspeitos e de
contrarrevolucionários. Não havia defesa e as acusações eram
montadas em função de boatos, de falsos testemunhos e de
documentos forjados. Naquele contexto, as acusadas seriam inimigas
da França, simpatizantes do despotismo e da tirania. 29 Consideradas
como traidoras da nação pelo Tribunal Revolucionário, na novela elas
são reabilitadas, sacralizadas. Há um quê de pedagógico na novela, com
as personagens dando exemplos de fidelidade, uma espécie de
hagiografia, um estudo exemplar. Ao atentarmos para o contexto
histórico em que as obras sobre as carmelitas foram produzidas,
saberemos mais sobre seus autores do que sobre a concretude da vida
das freiras.

2 O TEMPO E A MEMÓRIA DO DRAMA

No quadro de relação com o passado, que é sempre,


eletivo, um grupo pode fundar sua identidade sobre
uma memória histórica alimentada de lembranças de
um passado prestigioso, mas ela se enraíza com
frequência em um “lacrimatório” ou na memória do
sofrimento compartilhado. (Candau, 2011, p. 151).

Para compreendermos como as memórias relativas às


dezesseis carmelitas martirizadas durante a Revolução Francesa
atravessaram o tempo, temos que nos ater à dimensão, a um só tempo,
narrativa e social da memória. Neste sentido, Ricoeur nos mostra,
concordando com Halbwachs, a impossibilidade de uma memória
desvinculada de relações de sociabilidade; a necessidade de a memória
estar inserida em “lugares socialmente marcados” (Ricoeur, 2007).

28 Entre 1756 e 1794, Jean-Baptiste Carrier, advogado Jacobino criou os


Tribunais Revolucionários. O de Paris passou a existir a partir de 1793, com
amplos poderes. Carrier, como membro da Convenção Nacional, perseguiu
clero, ordenando o afogamento de sacerdotes. A Lei dos Suspeitos de 1793
propiciava o aumento dos poderes desses Tribunais.
29 Para saber mais ver Bibnotto, N. (2010). As aventuras da virtude: As ideias

republicanas na França do século XVIII. São Paulo: Cia. Das Letras.


202
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Ora, ao tentarmos compreender o drama das dezesseis carmelitas, a


narrativa sobre elas construída e a forma como esta narrativa
relacionou-se com o decurso do tempo, esses “lugares socialmente
marcados” emergem como nexos de inteligibilidade para
compreendermos a construção narrativa das mártires pela igreja ou
das fanáticas pelo poder revolucionário.

Figura 1 – Reprodução da capa da obra com a narrativa de Irmã Marie


de l’Incarnation, uma das sobreviventes do Convento de Compiègne
serviu de fonte para a obra de Gertrud Von Le Fort.

Fonte: Disponível em
https://play.google.com/books/reader?id=Ds8aAAAAYAAJ&hl=pt&pg
=. A publicação em 1836, mesmo ano da morte da carmelita, é indício
do projeto católico, no sentido de tornar conhecida a sua história, bem
como reverter a laicização aprofundada com a Revolução Francesa.

Mártires ou fanáticas, esses sentidos aparecem de forma


predominante conforme nos voltemos para épocas e fontes diferentes.
Conforme a documentação esteja inserida no que Foucault (1996)
denominou regimes de verdade. Em outra apreensão teórica, Pêcheux
203
Ensaios sobre Memória – Volume 2

(1995) evidencia que os discursos são histórica e socialmente


enraizados. Mostra que os discursos constituem-se a partir da
memória ou do esquecimento frente a outros discursos. A partir dos
estudos de Pêcheux, Orlandi (1995, p.20) remete a noção de
interdiscurso exatamente para a memória. Como o domínio do “já
dito”, como o domínio do “dizível” e da “memória do dizer”. Desta
forma, a narrativa do Tribunal Revolucionário ao tentar simplesmente
proferir o contradiscurso do passado cristão francês levava adiante a
mesma pretensão de outra medida revolucionária, incapaz de triunfo
na França do século XVIII: a extirpação do calendário gregoriano, ou
seja, do Cristianismo como marco temporal, finalmente restabelecido
no começo do império de Napoleão (Girard, 1985; Rosanvallon, 1985).
No Brasil, um exemplo desta tentativa vã do poder, de virar as costas
para a memória, temos na luta inglória da república recém-instituída
em inaugurar uma simbologia não amparada nas relações vividas,
conforme estudou José Murilo de Carvalho (1987, 1990).
Este “dizível”, sobre o qual nos falam Pêcheux e Orlandi,
permanece como possibilidade de recordação, mesmo em conjunturas
nas quais o poder tenta regulamentar verticalmente o que dizer, o que
escrever e o que pensar. Uma questão de oportunidade histórica
separa a publicização dos conteúdos do interdiscurso, da memória, da
sua tentativa de regulação. Desta forma compreendemos como a
narrativa do martírio hagiográfico, a partir das memórias de uma das
carmelitas de Compiègne não guilhotinada, pode ser publicada em
1836, em uma conjuntura marcada pela liberdade de imprensa e pela
tolerância religiosa sob a monarquia de Luiz Felipe I 30.
Devemos ter em mente a presença saliente que o culto e a
narrativa referente às carmelitas de Compiègne tiveram na “batalha
entre as duas Franças” a que se refere Zuber (2010): uma França
católica, herdeira das tradições medievais e outra que escolhia
aprofundar o processo de laicização. Nesse sentido, a beatificação das
carmelitas pelo Papa Pio X em 1906 é bastante sintomática se
articularmos esse fato, tanto com a situação interna do Catolicismo
francês, quanto com as relações entre a França e a Santa Sé. A
beatificação das carmelitas atestava o reconhecimento oficial da Igreja

30Essas memórias foram publicadas inicialmente no jornal católico L’Univers,


edição de 19 de julho de 1836 .
204
Ensaios sobre Memória – Volume 2

de que havia mártires, frutos do processo revolucionário francês


(Butler, 1989). Em 1905 completou-se o processo de separação entre
estado e religião na França, prontamente respondido por Pio X com
duas encíclicas condenatórias: Vehementer Nos e Gravissimo Officci.

Figura 1 – Reprodução de uma aquarela pintada por uma carmelita,


divulgada próximo à beatificação das Carmelitas de Compiègne em
1906.

Fonte: David (1906, n.p.). Obedecendo aos códigos visuais com que são
apresentados os santos católicos, as religiosas aparecem portando a
palma, símbolo do martírio. Por outro lado, o momento desta
beatificação é particularmente importante. Pode ser lida como uma
resposta de Roma à separação entre Igreja e Estado, a qual se completa
em 1905. (Baubérot, 2004).

Assim, a divulgação da narrativa e da iconografia do martírio,


favorecidas pela beatificação, cumpria um papel importantíssimo,
conectando-as ao esforço mnemônico e identitário católico na país. A

205
Ensaios sobre Memória – Volume 2

narrativa e as imagens do martírio foram avivadas por publicações


católicas francesas vindas a público por ocasião da beatificação (David,
1906; Pierre, 1906; Victor, 1906), cumprindo o papel de simplificação e
radicalização da realidade, apontado por Boia (1998) como inerentes
ao trabalho imaginário. Nelas vinham à tona imagens totalmente
simétricas ao esforço revolucionário em deificar o povo e a nação;
simétricas ao esforço da III República no sentido de atualizar a herança
revolucionária e de ambos, no sentido de exaltar o triunfo das virtudes
do estado republicano. Assim, à narrativa revolucionária e republicana,
respondia o esforço católico em exaltar a santidade das freiras de
Compiègne e de relacioná-las, de maneira heroica, a um martírio
conhecido não apenas por clérigos e religiosos. Dessa maneira, Victor
(1906) exaltava o reconhecimento das carmelitas como veneráveis 31:

Quantos padres, religiosos e religiosas, mulheres e


moças da nobreza, da burguesia e do povo foram
perseguidas e condenadas à morte pela lei! Já muitas
causas estão em processo: as dezesseis carmelitas,
proclamadas veneráveis, abrem a brecha para que
outras as sigam neste reconhecimento, sem dúvida.
(Victor, 1906, p. 185).

Entre os anos 1906 com a beatificação das carmelitas e 1986,


essas foram lembradas em obras ficcionais com narrativas de
memórias associadas ao acontecimento histórico da Revolução,
saturado da violência a que foram submetidos os que eram condenados
no Tribunal Revolucionário. Le Fort valeu-se de fontes
contemporâneas à execução das carmelitas, dando-lhes vida e voz
como personagens da sua novela. Neste momento em que escrevemos
este texto, refletimos que a novela, a peça teatral, a ópera e os filmes
também estão colocados num determinado presente, sendo indícios de
outros acontecimentos, conflitos, práticas políticas e trocas
intelectuais, documentos, como indica Prost, que “[...] conservam traço

31Quando Pierre Victor escreve esta obra, as carmelitas de Compiègne ainda


não tinham sido beatificadas e sim reconhecidas na condição de veneráveis. O
reconhecimento da santidade pela Igreja Católica passa por quatro etapas:
servo de Deus, venerável, beato e a canonização (Nota dos autores).
206
Ensaios sobre Memória – Volume 2

de existências múltiplas, de paixões hoje extintas, de conflitos


esquecidos, de análises imprevistas, de cálculos obscuros” (1999, p.
386).
Acreditamos que essas obras, na sua busca em esclarecer os
eventos traumáticos pelos quais as freiras passaram, alinham-se ao
movimento de insurgência de memórias subterrâneas por parte da
Igreja Católica, lutando contra o que considera como injustiças
pretéritas, estimulando e apoiando, inclusive financeiramente, a
reconstrução do passado. Pollak (1989) nos ajuda a pensar a memória
enquadrada, isto é, disputada por diferentes atores e construída em
meio a conflitos sociais e políticos. Dessa maneira, entende-se que não
há unicidade e estabilidade das construções memoriais, uma vez que
estão vinculadas a atores sociais em confronto. Assim, entendemos que
Le Fort, com sua novela, “A última do Cadafalso”, e as obras
decorrentes, podem ser compreendidas como elementos de um
trabalho de memória, no esforço de fazer aflorar, de subverter o
silêncio e dar sustentação à memória das carmelitas como vítimas,
afirmando identidades e restaurando-lhes a voz.

3 O DRAMA E O CENÁRIO

Somente a autoposição do presente social parece


compensar o ato que remete o passado à sua
ausência. Então a ausência não é mais um estado,
mas o resultado de um trabalho da história,
verdadeira máquina de produzir separação, de
suscitar heterologia, esse logos do outro. (Ricoeur,
2007, p. 378).

Gertrud Von Le Fort, ao transformar o drama vivido por


dezesseis carmelitas guilhotinadas pela Revolução Francesa em obra
literária, dava um suporte material a uma legenda. Falamos em
legenda, por claramente a autora compor a narrativa a partir da
construção do martírio hagiográfico, apesar de acrescentar conteúdos
claramente ficcionais, dos quais o principal é, justamente, a criação da
personagem Irmã Blanche.

207
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Figura 2 – Reprodução de gravura sobre o momento em que as freiras


deixam o Convento de Compiègne para embarcar nas carroças que as
levariam a Paris.

Fonte: Les Carmélites (1897, p. 13). Em torno da narrativa dos


episódios vividos pelas carmelitas de Compiègne produziu-se uma
iconografia a serviço do ideal católico de retomada da ascendência
cultural sobre a sociedade francesa, vulgarizada no século XIX e na
primeira metade do XX.

A mesma opção, igualmente, seguiria Georges Bermanos, ao


transformar o seu romance em peça teatral em 1949. Bernanos, em
suas obras, propunha uma denúncia social e política, inconformado
com a não renovação espiritual da França após o término da Segunda
Guerra (Santidrián , 1997).
De 1794 a 1931 (ano da publicação do romance de Gertrud Von
Le Fort), a imaginação popular, a iconografia e as transformações
sócio-históricas acontecidas na Europa, certamente foram
responsáveis por captarem singularmente os acontecimentos. Assim,
temos a narrativa do Tribunal Revolucionário, a partir de cuja
documentação as religiosas aparecem como fanáticas, como loucas,
como supersticiosas ou como criminosas monarquistas. A essa
narrativa opunha-se a desenvolvida pela piedade católica pós-
208
Ensaios sobre Memória – Volume 2

revolucionária, a partir da qual as dezesseis religiosas apareciam como


mártires da fé contra a opressão antirreligiosa. A memória das
mártires católicas foi, sem dúvida, avivada pelos escritos de Irmã Marie
de L’Incarnation, bem como pelos testemunhos das irmãs dominicanas
inglesas, contemporâneas das carmelitas durante sua prisão na
Conciergerie, as quais conseguiram retornar ao seu país.
Segundo a narrativa do Tribunal Revolucionário, as carmelitas
representavam o atraso obscurantista, que deveria se curvar às luzes
da razão. O Carmelo de Compiègnes era visto como uma forja de
doentes mentais, exercendo a religiosidade mórbida aí cultivada um
efeito deletério sobre mulheres indefesas. Nessa narrativa o
Catolicismo, seus ritos e doutrina apareciam como resquícios
opressores de uma França dominada pela Igreja e libertada pela ação
revolucionária. Por outro lado, devemos contextualizar a morte das
carmelitas de Compiègne no momento político vivido em Paris, onde
desde 1792 intensificavam-se as acusações dentro e fora do governo
contra membros da nobreza e do clero, vistos como mancomunados
com os estados absolutistas estrangeiros. Essas acusações reforçavam
para Saborit (2009) a imagem deificada do povo como entidade
onisciente e onipresente, em uma clara referência interdiscursiva,
mnemônica à religião. Dessa forma, como uma divindade pessoal e
providencial, o povo que tudo via, tudo sabia, castigava os maus a fim
de salvar os bons, a revolução e a nação. Sintomáticas nesse sentido
são as palavras de um jornal revolucionário no qual o povo aparece
com atributos divinos, punindo os contrarrevolucionários, inimigos da
humanidade e da revolução:

O povo que como Deus tudo vê, está presente em


toda a parte, e sem o consentimento do qual nada
ocorre aqui em baixo, uma vez tendo tomado
conhecimento desta conspiração infernal, optou por
uma decisão extrema, mas a única que convinha: a de
prevenir os horrores que lhes estavam sendo
preparados e mostrar-se sem misericórdia para com
as pessoas que não teriam tido nenhuma com ele
(Révolution, apud Saborit, 2009, p. 140).

209
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Essas palavras acenam, portanto, para a criação e reprodução da


oposição imaginária entre o povo francês e o catolicismo; entre a razão
revolucionária e a desrazão católica. Construía-se narrativamente a
periculosidade das religiosas, aliadas com os contrarrevolucionários,
com aqueles capazes de afrontar e vilipendiar o povo para levar
adiante o seu intento de retomada do poder. Já na denúncia
apresentada em 1794, antes da sua ida à Paris, as carmelitas apareciam
como fanáticas perigosas, como:

[...] antigas religiosas permanecendo sempre em


comunidade, vivendo sempre submissas ao regime
fanático de seu antigo claustro, podendo trocar
correspondência criminosa com os fanáticos de Paris
e manter na sua casa reuniões criminosas marcadas
pelo fanatismo. (Les Carmélites, 1897, p.10).

Como fanáticas, as freiras apareciam como perigo potencial à


nação. Como capazes de qualquer ato em prol da antiga ordem há
pouco deposta. O assassinato de Marat por Charlote Corday ocorrido
em 1793, atestava o evidente do perigo dessas mulheres fanáticas... É
interessante a peculiaridade semântica das acusações do Tribunal
Revolucionário sobre homens e mulheres fieis à fé católica. Os padres
são vistos como refratários, enquanto as freiras são tachadas de
fanáticas (Bannon, 1992). A documentação revolucionária parecia
aprofundar uma divisão de gênero, segundo a qual os homens
apareciam como sujeitos ativos, senhores de uma ação volitiva e
racional que os fazia refratários e reacionários à ordem revolucionária,
enquanto as mulheres apareciam como seres irracionais, vivendo
morbidamente a religião. Ou seja, a ação contrarrevolucionária
masculina era vista como estribada na vontade e a feminina na emoção
que as contagiava até o fanatismo (Bannon, 1992). Obviamente que a
fonte geradora, tanto da oposição volitiva masculina, quanto da
oposição ilógica feminina era a religião católica, contra quem a
revolução devia lutar e retirar a direção ideológica.
Para complicar a situação das religiosas, somava-se o fato de o
Carmelo de Compiègne abrigar uma descendente em linha indireta da
casa de Bourbon, justamente Irmã Maria de L’Incarnation, braço
direito da priora. Além de todos os fatos, indícios e suposições levados
210
Ensaios sobre Memória – Volume 2

adiante contra as freiras, aparecia uma questão simbólica de não


menos importância como agravante da sua situação. A cidade de
Compiègne notabilizou-se por sua ligação com a casa real francesa e,
particularmente sob Luiz XIV e Luiz XV, essa relação foi realçada. A
topografia, a vegetação e fauna de Compiègne fizeram dela um cenário
ideal para as caçadas reais, principalmente no reinado de Luiz XV. Os
elos do Carmelo com a casa real francesa seriam intensificados com a
familiaridade com Ana da Áustria, casada com Luiz XIII, o que continua
com Maria Teresa e Madame de Maintenon (primeira e segunda
esposas de Luiz XIV), bem como Maria Leszczynska, casada com Luiz
XV (Pierre, 1906).
Esse elo manteve-se no reinado de Luiz XVI, com Maria Antonieta
conservando a condição de benfeitora das rainhas antecedentes. Por
seu turno, a espiritualidade mantida intramuros no Carmelo, como o
culto ao Menino Jesus, ornado com coroa e manto real, bem como o
costume carmelitano de referir-se a Deus com o pronome de
tratamento real, “Sua Majestade”, só intensificavam as implicâncias do
Comitê de Salvação Pública. A própria representação da realeza divina
(ISAIA, 2016), no futuro tão explorada pela Igreja, chegando à festa de
Cristo Rei ser proclamada por Pio XI em 1925, gerava uma leitura
indiciária da obsessão monárquica das carmelitas, o que aparece
claramente no interrogatório das religiosas. Isso fica claro quando as
carmelitas são perguntadas do porquê de as religiosas ornarem o altar
do Santíssimo Sacramento com atributos reais como coroa e manto
(Soeur, 1836).
O importante é que os acontecimentos que culminam com as
mortes das carmelitas ocorrem em uma conjuntura na qual eram muito
mais importantes as acusações do que a compreensão dos fatos. Se
havia a memória de uma França católica, indissoluvelmente ligada à
monarquia, não é menos verdade que essa narrativa perdia terreno dia
após dia, intensificada pela propaganda laica e anticlerical. Não é sem
razão que, tanto o romance de Gertrud Von Le Fort, quanto a peça de
Bermanos começam com menções ao parto de Blanche.
As duas obras fazem menção às comemorações do casamento
do príncipe herdeiro da França. É durante as festas pelo casamento do
delfim da França com Maria Antonieta, que uma pedra atinge a
carruagem que conduzia a mãe de Blanche, a marquesa de Le Fort, em

211
Ensaios sobre Memória – Volume 2

adiantado estado de gravidez, acompanhada de gritos e palavras de


vingança do povo contra a nobreza, quando um homem lhe diz:

-Madame [...] vós gozais neste momento do conforto


de vossa carruagem, enquanto o povo é massacrado
pelas patas de vossos cavalos. Mas não passará
muito tempo sem que morra a gente de vossa laia e
nós ocuparemos os vossos lugares! (Le Fort, 1998, p.
53).

A mãe de Blanche não resiste ao medo do incidente e morre ao


dar-lhe a luz prematuramente. Assim, se a intenção de Le Fort e de
Bermanos é de acentuarem a característica agonística da personagem
Blanche, dividida entre o medo e a fé, a menção desse fato é
sumamente indiciária da disputa entre a memória religiosa e a crença
no futuro revolucionário. Luta entre a crença na legitimidade dinástica
e na igreja, por um lado, e a crença no povo como entidade autônoma,
livre, política, com capacidade de decidir racionalmente o seu destino,
para além do costume e da tradição (HUNT, 2007).
Estas diferentes concepções estariam no cerne de lutas pela
representação e pela narrativa do passado francês: a luta entre uma
história e uma memória católica e monárquica, contra uma narrativa
laica e revolucionária. Luta que em breve apareceria com saliência nas
oposições historiográficas da segunda metade do século XIX, entre a
sobrevivência de uma França católica e monárquica, representada pela
“Revista das Questões Históricas” e uma França laica e republicana,
representada pela “Revista Histórica” (Monod, 1876).
Por outro lado, o período pós-revolucionário francês
intensificaria a luta pela superação da memória de uma França, “filha
predileta da Igreja”, cujo marco era a conversão e o batismo do rei
Clóvis no final do século V. Particularmente, o século XIX acirraria a
luta pela narrativa de uma França católica contra outra construção
memorial, a que punha em evidência o passado pré-cristão, dando
centralidade às tradições célticas. Um exemplo dessa batalha por dar
um sentido ao passado e, logicamente, ao presente francês, vamos
encontrar na ficção literária. Neste sentido inscreve-se a tragédia
escrita em versos, “Norma ou l’infanticide”, de Alexandre Soumet, de
1831, que, posteriormente, serviu de libreto à ópera de Bellini.
212
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Igualmente, inscreveu-se a luta do Espiritismo francês do século XIX


para reabilitar o passado céltico como próximo a uma projetada
identidade francesa (Isaia, 2017, p. 77). Pensamos que esses dados são
importantes para dar inteligibilidade à característica política e ética da
memória proposta por Gondar: “a memória é tecida por nossos afetos e
por nossas expectativas diante do devir, concebendo-a como um foco
de resistência no seio das relações de poder, como propôs Foucault”
(2016, p. 24).

4 BLANCHE/GERTRUD: TEMPOS DE MEDO/ESPERANÇA

O medo, de certa maneira, é também filho de Deus,


resgatado na noite de Sexta-Feira Santa. Não se
apresenta sob um belo aspecto – ao contrário – ora
amaldiçoado, ora ridicularizado, por todos
repudiado... Mas não se iludam: presente à cabeceira
de cada agonia, o medo intercede pelo homem.
(Bermanos, 1960, p. 9).

Gertrud Von Le Fort, ao voltar-se para as memórias de Irmã


Marie de L’Incarnation, parece muito longe de evocar simplesmente o
passado. Dessa maneira, o drama vivido por Irmã Blanche no ocaso dos
dias do terror revolucionário francês aparece claramente como
imagem do presente vivido pela autora. Não nos referimos
simplesmente às “coincidências” entre a personagem Blanche e a
autora (ambas têm o mesmo sobrenome, descendem de uma linhagem
aristocrática e provêm de famílias distantes do Catolicismo — o pai de
Blanche professava um indiferentismo religioso, enquanto a família de
Gertrud era protestante. Para Bush, Gertrud Le Fort, “testemunhando a
ascensão de Hitler criou uma heroína totalmente ficcional, Blanche de
La Force, em quem projetou seu próprio medo metafísico” (2013, p.9).
Pensamos que o passado de Blanche e o presente de Gertrud se
entrelaçam na mesma característica de ruptura, violência e medo,
capaz de aproximar os dias do terror revolucionário, da Alemanha dos
anos 1930. Em ambas as conjunturas, personagem e autora escolhem
o Catolicismo como via de superação das agruras do presente.
Escolhem a memória de uma Europa cuja solidez e organicidade era
afiançada pela Igreja. Assim, as memórias da Irmã Marie de
213
Ensaios sobre Memória – Volume 2

L’Incarnation e a narrativa de Gertrud Von Le Fort podem ser vistas


como documentos denunciatórios da violência e do arbítrio, mas, ao
mesmo tempo, encomiásticos frente a uma condição historicamente
ligada à constituição histórica do Cristianismo: o martírio. A origem
grega da palavra remete-a para testemunho, que é exatamente o que,
tanto Irmã Marie de l’Incarnation quanto Gertrud Von Le Fort se
propõem a dar através da sua escrita. Se a primeira não é mártir,
segundo o estrito ensinamento da Igreja, ambas propõem-se a
testemunhar a adesão ao Cristianismo em épocas diferentes.
Assim, a narrativa de Le Fort a conecta com a memória do
Cristianismo, avivada ritualisticamente no ano litúrgico católico a ela
tão familiar. Nesse sentido, a memória católica e o cotidiano dos
conventos acenam para a antítese das acelerações revolucionárias, das
confusões e das convulsões sociais. Cotidiano conventual a que a
própria Gertrud Von Le Fort buscou, na proximidade intelectual e
religiosa com sua amiga Edith Stein32 (Blanco, 1999) e como abrigo no
período que antecedeu à escrita da obra (Burguera Nadal, 2013). A
repetição cíclica das horas litúrgicas aparecia como alternativa a um
tempo “acelerado”, devorador do que para Le Fort deveria ser
intrínseco aos “exsules filii Hevae”: a esperança de um porvir de
beatitude eterna. O etos hostil e estranho deste mundo,
assumidamente assustador a Blanche/Gertrud aparece para Kosseleck
(2006, p. 320) como marcado pelo conflito generalizado, no qual o
“velho e o novo entram em choque nas ciências e nas artes, de país
para país, de classe para classe”. Realidade esta a qual “a partir da
Revolução Francesa se converteu em experiência cotidiana” (Kossleck,
2006, p. 320).
Esse mundo que parecia para Blanche/Gertrud caótico,
aterrorizante, ainda conservava a reserva de sentido implícita na
esperança cristã. Apesar da violência e do arbítrio, tanto do terror
revolucionário francês quanto do nazismo, a história “ipsa” no sentido
agostiniano sobreviveria, apontando para a certeza escatológica da

32 Como Gertrud Von Le Fort, a qual se converte do Luteranismo ao


Catolicismo, Edith Stein converteu-se do Judaísmo à Igreja Católica. Nascida na
Alemanha, Edtih Stein foi levada, já como religiosa carmelita, ao campo de
concentração de Auschwitz, onde morreu em 1942, tendo sido canonizada
pelo Papa João Paulo II em 1998.
214
Ensaios sobre Memória – Volume 2

realização do plano divino. E onde Blanche/Gertrud visualizavam de


forma mais clara esta sobrevivência? É nesta resposta que o Carmelo
aparece como a antítese do que de pior o gênero humano podia gerar.
A vida conventual aparece como capaz de dar sentido e dignificar o
medo e a fraqueza de Blanche e, como contraponto simbólico, aos
mesmos sentimentos de Gertrud, em uma época que, igualmente, o mal
era banalizado. Por um lado, o Carmelo aparece como um lugar no qual
era possível viver a repetição cíclica de um tempo mítico, marcado pelo
ano litúrgico e pelas horas litúrgicas em meio à convulsão, ao caos, à
tirania. Também, o Carmelo aparece como a reiteração da ordenação
de um mundo, conforme mostrou Canetti (1983) ao abordar o caráter
simétrico, previsível, ordeiro do cotidiano conventual vigente até o
Vaticano II, com suas procissões, suas hierarquias, seus gestos
marcados, com cada um devendo saber o seu lugar e devendo
contentar-se, resignadamente a ele.
O Carmelo, para Burguera Nadal (2013), aparece como o lugar
do desenvolvimento das virtudes femininas, dos aspectos noturnos,
lunares, que se opõem ao domínio das paixões políticas que levam à
violência, à opressão, à miséria, os quais este autor remete para a
constelação arquetípica masculina, para um imaginário no qual a ideia
de conquista, de poder se afirma de forma estruturante. Burguera
Nadal acena para a relação entre a peça que Bermanos escreveu a
partir de Le Fort e Antígona. Seu ponto de vista é estribado na leitura
feita por Derrida sobre a peça de Sófocles, calcada no embate entre o
mundo masculino, público, solar, e o âmbito do oculto, do lunar, que
remete ao mundo feminino. Daí, talvez, a valorização dos temas da
reclusão, da ascese, da virgindade, da submissão à Regra de Santa
Teresa, da repetição cíclica litúrgica, apenas indiciando o elogio maior
à submissão à Vontade de Deus. As carmelitas de Compiègne se
constituem como a antítese de um mundo que se rebela, que se divide,
que desafia a própria ordem que se quer cosmológica. Está no elogio à
obediência, a possibilidade de Blanche transmutar o medo em
determinação ao martírio.

215
Ensaios sobre Memória – Volume 2

5 CONCLUINDO

A criação ficcional da personagem Blanche de La Force por


Gertrud Von Le Fort parece-nos ir ao encontro, tanto do caráter
extratextual da literatura estudado por Sevcenko (1985), quanto da
articulação da autora ao que Halbwachs (1990) denominou quadros
sociais da memória — ambos autores remetem às relações entre
indivíduo e sociedade.
A obra de Le Fort revela, tanto o gênio individual da autora
como a sua inserção axiológica e social a um presente vivenciado, a um
passado rememorado e a um projeto de futuro. É no presente da autora
na Alemanha nazista dos anos 1930, que o passado revolucionário
francês adquire significado. O medo de Gertrud dando significação ao
medo de Blanche, ambos tendo no Cristianismo a fonte capaz de
redimensioná-lo.
Como nos mostra Sevcenko, todo o escritor possui uma
liberdade “condicional de criação, uma vez que seus temas, motivos,
valores, normas ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela sua
sociedade e seu tempo” (Sevcenko, 1985, p. 20). A obra de Le Fort,
assim, está conectada com a memória discursiva, com o interdiscurso,
com o dizível, inseparável da “relação de forças e de sentidos” capaz de
situar histórica e socialmente os sujeitos (Orlandi, 1995, p. 21).
Desta forma, Le Fort, descendente de uma linhagem nobre,
apostava na restauração cristã e monárquica da Europa (Meis, 1997).
Esta restauração aparecia como caminho para vencer a agressão
sistemática do homem sobre o homem, a qual vivencia na Alemanha
dos anos 1930. Sendo assim, Le Fort produziu uma obra denunciatória
do espírito de rebelião que, em seu ponto de vista, possibilitou a
Revolução Francesa. Ambos os momentos foram marcados e unidos
pelo medo, por um medo capaz de ser iluminado e transcendido,
renascido em coragem e esperança. Daí a valorização temática de
Gertrud, daí a decisão final de Blanche, optando pela morte no epílogo
da obra.

216
Ensaios sobre Memória – Volume 2

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220
Ensaios sobre Memória – Volume 2

RELENDO A LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA DO


PONTO DE VISTA DA POÉTICA DA AUSÊNCIA

Zilá Bernd
Universidade La Salle, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-2546-6099

Luiz Ruffato publicou em 2004 a antologia 25 Mulheres que


estão fazendo a nova literatura brasileira (Reccord) e, em 2005, pela
mesma editora, +30 mulheres que estão fazendo a nova Literatura
Brasileira. Verifica-se em ambas as antologias a ausência de escritoras
afro-brasileiras. A presente reflexão visa, do ponto de vista da Poética
da Ausência, concebida por Fernando Catroga (2009), apontar essa e
outras rasuras da historiografia literária brasileira, assinalando o
trabalho de representificação exercido por escritoras afro-brasileiras.
Em inúmeras publicações elas buscam tornar visível sua presença no
cenário da Literatura Brasileira, em obras que lidam com a “matéria da
ausência”, inventariando ausências e reconhecendo a herança de seus
ancestrais que estiveram na impossibilidade de transmitir seus
patrimônios culturais. Suas escrituras desbaratam, assim, os
emaranhados fios da memória afro-brasileira, rasurada desde a
chegada dos navios negreiros ao Brasil.

Dans ce qui s´est effacé


Chaque Trace épelle
Chaque Trace appelle
(Chamoiseau, 2016) 33

1 INTRODUÇÃO

O que entendemos por “Poética da ausência”? Segundo


Venturini, a poética da ausência pode ser definida como “o modo de
tornar presente o não existe mais” (Venturini, 2017, p. 139).

33No que foi apagado / cada traço (vestígio) soletra / cada traço (vestígio)
chama
221
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Em La matière de l´absence, Patrick Chamoiseau (2016, p.51),


chama a atenção para a falta fundadora (le manque fondateur), para
falar sobre o que considera “apagamento estruturante” que resiste a
tal ponto que todos, inclusive artistas e escritores, acabam por assumir
o apagamento, ou seja, a ausência, o desaparecimento de informações
e de dados sobre determinado povo, etnia, ou narrativa que
corresponda ao interesse dos detentores do poder em ocultar. Aquilo
que deixou de ser nomeado é assumido como inexistente. A memória
da escravidão no Brasil, assim em outros países, foi rasurada, apagada
e depois recontada de diferentes modos, a ponto dos próprios
descendentes de escravos tentarem apagar os traços da negritude em
suas consciências e até em seus cabelos, na tentativa de tornar
invisíveis as marcas do passado e da condição de escravos de seus
ancestrais as quais eram percebidas como estigmas:

Primeiro o ferro marca


A violência nas costas
Depois o ferro alisa
A vergonha nos cabelos
(Cuti, Ferro, In Batuque de Tocaia, 1982)

Só recentemente, a partir dos anos 1980, emergem na


literatura as vozes que representam a tomada de consciência de ser
negros e da importância de tornar visível sua história. A urgência em
preencher as lacunas e recontar do ponto de vista negro a história da
escravidão no Brasil vai permitir aos negros “jogar o ferro fora” para
“quebrar os elos dessa corrente de desesperos” (Cuti, 1982).
Apesar de vozes pioneiras como as de Maria Firmina dos Reis,
que escreveu o romance Úrsula, em 1859, e Ruth Guimarães, mulher
negra que publicou a saga do sertão “do avesso”, como afirma o
escritor José de Sousa Martins, da Academia Paulista de Letras, será
somente a partir dos anos 1980 que uma consciência negra dilacerada
começa a despontar no panorama da Literatura Brasileira. As vozes
primeiras como as já citadas, assim como a de Luís Gama e seus
poemas satíricos publicados em pleno período escravagista, a de Cruz
Souza que representa o limiar de uma consciência do racismo, ou
Solano Trindade que cria o teatro Experimental do Negro em 1945,
permanecerão na invisibilidade. Mesmo publicações posteriores de
222
Ensaios sobre Memória – Volume 2

poemas exprimindo uma consciência trágica da escravidão e do


racismo como as de Eduardo de Oliveira, Domício Proença Filho e
Oswaldo de Camargo se perdem nos descaminhos e nas ausências da
historiografia literária brasileira.
Embora contundentes tais poemas permaneceram invisíveis
para a Literatura Brasileira como instituição que deixa
sistematicamente de inclui-los nos compêndios de história da
literatura brasileira e nas principais antologias que têm funcionado
muitas vezes como mecanismos de exclusão. Como se percebe, serão
precisos mais de 100 anos da Abolição da escravatura no Brasil para
que se inicie, através da emergente literatura negra ou afro-brasileira,
o processo de representificação - através de diferentes linguagens -
dessas ausências. Reescrevendo a história a partir da visada dos que
foram até então invisibilizados, esse importante conjunto de poetas,
aos quais vieram somar-se os componentes do Grupo Quilombhoje -
que produzem coletâneas anuais, os Cadernos Negros que chegaram,
em 2019, à 42. edição - permanecerá, contudo, ausente do ensino da
literatura nas escolas, fora da maioria das bibliotecas e dos catálogos
das grandes editoras, passando só muito recentemente – já no século
XXI – a receber prêmios e indicações para academias literárias.

2 UM MAPA DE AUSÊNCIAS

Uma das poucas teóricas e professoras de literatura brasileira a


empreender a representificação dessas ausências no Brasil, é Regina
Dalcastagnè, da Universidade de Brasília. Em seu livro Literatura
brasileira contemporânea: um território contestado (2012), ela
comprova tais ausências, através de longa pesquisa que se constituiu
de questionários e quantificações minuciosas. Partindo da afirmação
de Antonio Candido: “Nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, e não
outra, que nos exprime” (1964, p. 10), a pesquisadora argumenta:

Nos exprime não apenas pelo que nos diz, mas


também por aquilo sobre o qual cala. Os silêncios da
narrativa contemporânea, quando conseguimos
percebê-los, são reveladores do que há de mais
injusto e opressivo em nossa estrutura social.
(Dalcastagnè, 2012, e-book, p. 3936)
223
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Em artigo intitulado “Entre silêncios e estereótipos: relações


raciais na L.B.” (2008), a autora já se preocupava em apontar que
“a invisibilidade dos negros e os estereótipos a eles associados não são
problemas exclusivos da literatura: estudos sobre jornalismo,
telenovela e cinema, apresentam dados similares” (2008, p. 97).
Embora obras substantivas tenham sido publicadas nas últimas
décadas, como as de Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo, 1992);
Paulo Lins (Cidade de Deus, 1997); Ferréz (Ninguém é inocente, 2006);
Conceição Evaristo (Ponciá Vicêncio, 2003), Ana Maria Gonçalves (Um
defeito de cor, 2006), Na minha pele (Lázaro Ramos, 2017), convidando
os leitores a vestirem outra pele, ainda não foram transpostas as
barreiras existentes em nossa sociedade, para se enxergar a
diversidade cultural, social e racial como riqueza e positividade.
Escritores e escritoras que animam a assim chamada literatura
negra ou afro-brasileira estão ausentes das principais antologias como
35 melhores Contos do Rio Grande do Sul (Maria da Glória Bordini,
2003); 25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Luiz
Ruffato, 2004); 30 Mulheres que estão fazendo a nova literatura
brasileira (Luiz Ruffato, 2005); Os melhores contos brasileiros de todos
os tempos (Flávio Moreira da Costa, 2009), para citar apenas algumas
das mais conhecidas.
Por outro lado, o número de publicações de autores afro-
brasileiras vem crescendo continuamente tanto em quantidade quanto
em qualidade e refinamento escritural. Excluídos das antologias
chanceladas por editoras de âmbito nacional, escritores afro-
brasileiros assumiram a tarefa de organização de suas próprias
antologias como Cadernos negros 42, contos afro-brasileiros, de 2019,
apresentando 41 autores, em volume de 342 páginas, e Olhos de
azeviche. Dez escritoras negras estão renovando a literatura brasileira
(contos e crônicas), publicado pela editora Malê, em 2017.
Se em algumas destas antologias como as 42 publicadas pelo
grupo Quilombhoje desde os 1970, predominam as temáticas de
denúncia do preconceito e dos episódios de racismo vividos por seus
autores, várias publicações vêm se destacando por ampliar seu
espectro temático abrangendo questões relativas a gênero, abusos
sexuais, marginalização social, desigualdades, ecologia, enfrentamento,
resiliência, enfim todos os temas que povoam a literatura de todos os
224
Ensaios sobre Memória – Volume 2

tempos como o amor, a amizade, as paixões, os sonhos, a vida, a


violência e a morte.

3 A MATERIALIDADE DA AUSÊNCIA

De acordo com Patrick Chamoiseau, os conteurs do Caribe


francófono consideram-se capazes de vencer a morte através de sua
arte de contar, pois assim conseguem “transmutar o vazio aparente
que a morte suscita em espaço de vida” (2016, p. 32) 34. De onde
podemos depreender a importância da voz e da escrita que podem
fazer com que o invisível e o impronunciável emerjam sob a forma de
narrativas que serão contadas e transmitidas de geração em geração. O
autor martiniquenho, considera que o maior desafio para os escritores
das regiões submetidas ao sistema escravocrata não é apenas o de
negar a falta ou assumi-la, mas o de fazer dela “um imenso horizonte”
(p. 51)35, recriando “pequenas gêneses”. Note-se aqui a visão de
Chamoiseau relativa à representação: trata-se de uma forma de
representação capaz de desencadear processos de criação, permitindo
a emergência de novas entidades, novos horizontes.
Assim, na visão do poeta e escritor francófono do Caribe, não
são os monumentos materiais, nem as estelas, nem as estátuas, nem a
visão europeia registrada nos primeiros compêndios de História que
nos representam, mas os vestígios memoriais que são ao mesmo tempo
individuais e coletivos, sejam eles ligados à nossa comunidade ou
trans-comunitários os quais testemunham vivências e um passado
onde predominaram injustiças e discriminações. “Enquanto o
monumento testemunha sempre a força memorial dominante
enraizada e vertical” (Chamoiseau, 1993), para os descendentes de
escravos, são as lembranças da senzala e dos quilombos, os tambores e
as religiosidades, as artes de fazer de origem africana, assim como a
língua crioula ainda viva na região do Caribe, que se constituem em
Traces-mémoires (vestígios memoriais), ou seja, monumentos
imateriais dignos de preservação como quaisquer outros patrimônios
materiais.

34 Transmuter le vide apparent que suscite la mort en espace de vie!


35 Um immense horizon.
225
Ensaios sobre Memória – Volume 2

Moi créole américain, je chante les histoires contre l´Histoire.


Je chante les mémoires contre la Mémoire.
Je chante les Traces-Mémoires contre le Monument.36

Se já neste texto de 1993 “Contre les statues: les traces-


mémoires”, Chamoiseau salientava a importância dos traços (vestígios,
rastros) memoriais, em seu livro de 2016 (La matière de l´absence), o
autor retoma o conceito salientando que, apesar de frágeis e incertos,
os traços-memória são poderosos na medida em que há a possibilidade
de serem evocados e ressignificados no presente. Das ruínas, das faltas
fundamentais, pode emergir nas senzalas através da música, da dança,
da religiosidade e do som dos tambores uma consciência de si que, na
contemporaneidade, irá aflorar através da literatura afro-americana. O
autor nos lembra da tradição milenar no Benin, país da África ocidental
de língua francesa e antigo reino de Daomé, onde, antes de enviarem os
escravos para as Américas, os faziam girar nove vezes em torno de uma
árvore ancestral, conhecida como a árvore do esquecimento. Esperava-
se que com esta prática os escravos perdessem a memória de sua
origem e não guardassem nem transmitissem suas memórias e seus
rancores às futuras gerações. Talvez essa estratégia tenha funcionado
por um período já que até hoje tão pouco sabemos da história africana.
Contudo, o esquecimento imposto embora, deixando marcas indeléveis
na memória dos africanos chegados ao Novo Mundo na condição de
escravos, não é definitivo, já que não é possível decidir sobre o
apagamento de memórias: os traços remanescentes subsistiram e o
som dos tambores africanos foram ouvidos nas Américas. A sonoridade
dos tambores dá início às representificações do passado no presente,
dando origem ao que hoje chamamos de literaturas afro-americanas e
afro-brasileiras, que constituem-se como formas da poética da

36 Eu, crioulo americano, canto as histórias contra a História. / Eu canto as


memórias contra a Memória. / Eu canto os traços memoriais contra o
Monumento.
IN : Contre les statues: les traces-mémoires (transcrição parcial)
https://entreleslignesentrelesmots.blog/2020/06/21/patrick-chamoiseau-
contre-les-statues-les-traces-memoires/
226
Ensaios sobre Memória – Volume 2

ausência, ou seja, como formas de representação da continuidade


memorial.

Sans vêtements, sans armes, sans valises, sans


ustensiles, sans bibliothèques, sans le moindre
instrument, ils n´étaient porteurs que de Traces.
(Chamoiseau, 2016, p. 150). 37

Hoje, passados os tempos de (re)fundação dessa poética feita


de ausências e traços reatualizados no presente, inaugura-se o que
Édouard Glissant chama de Poética da Relação, ou seja, a rememoração
do passado associada a estratégias relacionais com o Outro na
diversidade das culturas americanas.

4 A FORÇA DE REPRESENTIFCAÇÃO

O trabalho da representação ou da representificação pode


ocorrer, portanto, na dimensão de deixar emergir, tornando presente
ou materializando o que “não existe mais”, mas também na dimensão
criativa da representação que desemboca na emergência de novas
entidades, novos horizontes. Em filosofia, o conceito de
representificação remete a « rendre de nouveau présent à la
conscience un élément absent ou présent, mais caché »38.
Em Os passos do homem como restolho do mundo (2009), o
historiador português Fernando Catroga consagra muitas laudas sobre
a importância que tem para ele o conceito de “representificação”. Para
o autor:

[...] só com o esquecimento irreversível a morte se


transforma em definitivo nada, o diálogo com os
signos da ausência é uma re-presentificação,
mediante a qual, ao darem futuros ao passado, os

37 Sem vestimentas, sem armas, sem malas, sem utensílios, sem bibliotecas,
sem o menor instrumento, eles portavam tão somente Traços (rastros
memoriais).
38 https://www.cordial.fr/dictionnaire/definition/repr%C3%A9sentifier.php

227
Ensaios sobre Memória – Volume 2

vivos estão a afiançar um futuro para si próprios


(2009, 7).

Dessa forma, é o esquecimento e não a morte que transforma as


pessoas e os acontecimentos em “definitivos nada”. Lembrar é,
portanto, manter um diálogo com “os signos da ausência”, é a
representificação do passado que garante não só a preservação da
memória dos ausentes, como assegura nosso próprio futuro. Nesse
sentido, é a metamemória, o terceiro tipo de memória segundo Joël
Candau, sendo a primeira a proto-memória (que se confunde com o
habitus), a segunda, a memória propriamente dita. A metamemória é a
“representação que cada indivíduo faz de sua própria memória”
(Candau, 2012, p. 23), remetendo, portanto, às “representações de
pendor comemorativo que o indivíduo faz de um modo compartilhado”
(Catroga, 2009, p. 11). Dessa forma, a recordação se torna prática
representificadora quando são gerados enunciados que “ordenam o
caos e a descontinuidade événementielle, doando sentido à vida dos
indivíduos e dos grupos em que cada um se integra” (Catroga, 2009, p.
22).
Assim definido, pareceu-nos oportuna a aplicação de tal
conceito à análise da literatura afro-brasileira contemporânea que
tenta preencher os vazios e as ausências memoriais através do
trabalho da memória, mostrando que os traços e as ruínas do passado
podem ser representificados através de poemas, contos e outros tipos
de narrativa, trazendo à tona e ressignificando no presente o que se
tentou ocultar. Os escritores e escritoras afrodescendentes, ao
selecionar as lembranças, mostram que o passado não prescreveu e
que a literatura pode apontar novos caminhos no presente e projetar
espaços de significação no futuro a partir das reminiscências do
passado.
Os autores da literatura afro-brasileira na virada do século XXI
encontram-se na difícil situação de representar o irrepresentável qual
seja a manutenção na atualidade de manifestações de preconceito e
racismo em relação à população negra no Brasil que ainda vive, em
muitos casos, em situação de extrema vulnerabilidade, sendo a
violência prática corrente até mesmo em relação a crianças e mulheres.
Tomemos alguns exemplos da recente antologia Olhos de
azeviche; dez escritoras negras renovando a literatura brasileira
228
Ensaios sobre Memória – Volume 2

(2017). Quem acompanha a negro-literatura, expressão utilizada por


Fernanda Felisberto que faz a apresentação da antologia, sabe que,
desde seus primórdios nos anos 1980, com o surgimento dos Cadernos
negros do grupo paulistano Quilombhoje, mulheres sempre
participaram das antologias de poemas e contos. É surpreendente,
entretanto, encontrar uma antologia composta unicamente por
mulheres, embora a participação feminina, como já mencionamos,
tenha surgido desde o início dos anos oitenta, sem contar o trabalho
das precursoras dos séculos XIX, como Maria Firmina dos Reis, e do
início do século XX, como Ruth Guimarães, seguidas por Carolina Maria
de Jesus e Ana Maria Gonçalves. Vozes vibrantes, portanto, precedem
as dez mulheres que compõem a antologia Olhos de azeviche cujas
autoras dão seguimento à afirmação da consciência negra e à
transmissão memorial de suas ancestrais.
Se nas antologias anteriores do grupo Quilombhoje, as
narrativas se constroem muito próximas aos referentes do passado
escravocrata dos ancestrais e da denúncia de situações de
discriminação e de racismo explícito sofrido pelas narradoras, em
Olhos de azeviche, observamos narrativas de dor, violência e exclusão,
mas com um diferencial importante: mulheres negras e não negras são
vítimas de violência, opressão e adversidades de todo tipo. Crianças
abandonadas, violência policial, situações abusivas são denunciadas,
mas o que articula a narrativa é a importância da expressão das
subjetividades das autoras e de seu empoderamento enquanto
mulheres na sociedade brasileira atual.
Em um dos contos de autoria de Cidinha da Silva, há uma
enfática menção à permanência do racismo no Brasil onde, até mesmo
em cidades como Salvador (Bahia), com elevado percentual de
população de ascendência afro, manifestações de racismo são
registradas: “Soterópolis continua linda e os resquícios da escravidão,
vivíssimos como sempre estiveram” (2017, p. 32). Representificar é
trazer à presença do leitor a representação da catástrofe que foi a
escravidão no Brasil e nas Américas, regime sob o qual foram
eliminados, só na travessia para o Brasil cerca de 2,5 milhões de
africanos, dos 12 milhões embarcados nos tumbeiros 39, em um dos

39

https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2007/04/070405_esc
229
Ensaios sobre Memória – Volume 2

maiores genocídios já praticados no planeta. Como admitir que seus


descendentes continuem em pleno século XXI a sofrer discriminação?
Essa parece ser a pergunta que as dez autoras dos contos incluídos em
Olhos de Azeviche tentam responder.
Já os dois contos de Conceição Evaristo, Os Amores de Kimbá
(p. 39-46) e Di Lixão (p. 35-37), correspondem à representação da vida
como beco-sem-saída, ou com uma única saída que é a morte: no
primeiro caso por suicídio e no segundo por abandono. Essa
desesperança de personagens negros mas também de personagens
brancos nos leva a pensar em um certo impasse da representação ou
em um profundo pessimismo em relação à situação do negro na
sociedade brasileira, tributária ainda da “era das catástrofes” como
pode ser considerado o longo período de escravidão que durou mais de
300 anos em nosso país, sem mencionar a herança trágica da
escravidão que foi o preconceito e o estigma da cor da pele.
Podemos citar aqui o pensamento de Arthur Nestrovski e
Márcio Selligmann-Silva, que organizaram o coletivo Catástrofe e
representação (2000), no qual vários autores refletem sobre a
dificuldade de representação depois da Shoah (catástrofe, em
habraico). Podemos estabelecer um paralelismo entre a Shoah e a
escravidão negra no Brasil, já que os crimes cometidos sob a égide do
período escravista podem igualmente receber tal denominação:

A consciência da catástrofe modifica nosso modo de


perceber e representar, mas também de nos
contrapor ao mundo. A exposição rotineira à
violência talvez nos obrigue a aceitar, agora, a
ampliação dos meios, e acatar o excesso como
instrumento de sensibilização [...]
Representar ou não representar: essa é uma entre
outras questões antigas, que retornam com acento
próprio na era da catástrofe. Representar ou não
representar: isto não altera, afinal, a consciência do

ravos_database_pu.shtml#:~:text=O%20mapeamento%20indica%20que%20
12,chut%C3%B4metro'%22%2C%20diz%20Florentino.
230
Ensaios sobre Memória – Volume 2

que precisa ser dito. “O irrepresentável existe” 40

(Nestrovski e Seligmann-Silva, 2000, p. 11)

Miriam Alves cujos contos encerram a antologia, apresenta


igualmente situações chocantes para o leitor: duas mulheres negras
com relacionamento homossexual são selvagemente atacadas por
policiais que, além de estuprá-las, as agridem verbalmente quando elas
já se encontram desfalecidas no chão: “Suas negras nojentas, sapatas
filhas da puta, não gostaram? Vão reclamar no inferno” (2017, p. 137).
Resta às vítimas compartilhar “angústias e revoltas” já que, como bem
sabem, o processo sem testemunhas resultará em nada. “A vida
continua”, é a frase final do conto (p. 137).
Observamos nesses contos a noção de que a realidade atual no
Brasil para os negros – e também para muitos não-negros é vivida
como catástrofe. Em seu livro sobre a escravidão, Laurentino Gomes
afirma ter sido a escravidão “uma tragédia humanitária de proporções
gigantescas” (2019, p. 34). Ainda segundo o ator, essa foi a experiência
“mais determinante da história brasileira” (p.34), de sorte que os
reflexos dessa verdadeira barbárie de humilhações e sevícias sofridas
pelos negros se reflete em sua descendência até os dias de hoje. A
capacidade de representificar através da arte literária todo o
sofrimento e todas as injustiças cometidas contra os negros, revela a
imensa capacidade de resiliência dos autores afro-brasileiros bem
como uma dimensão de criativa da representação.

5 CONCLUINDO

A memória é a via régia do inenarrável: é ela que


permite, enfim, a entrada do “real” nas palavras, para
além da simples higiene ou apagamento. (Nestrovski,
Artur. 2000, p. 187)

Preencher as lacunas, reviver o não dito e desmascarar o que


foi contado do ponto de vista dos escravocratas, tem sido tarefa da
literatura afro-brasileira, embora estejam poetas e escritores bem

40A citação entre aspas é de Lyotard. La condition post-moderne. Paris: Minuit,


1979. APUD : Nestrovski e Seligmann-Silva, 200, p. 11).
231
Ensaios sobre Memória – Volume 2

conscientes de estarem revelando apenas a ponta do iceberg. A Poética


da Ausência opera em dois níveis: no da rememoração involuntária e
no da evocação consciente que Walter Benjamin definiu como
reminiscência. Dito de outra forma, verificamos nos contos analisados
o trabalho da reminiscência, ou seja, a procura ativa e consciente de
lembranças, e da rememoração, espontânea e involuntária, como a do
narrador de Em busca do tempo perdido, para quem as lembranças
chegam ao presente como flashes do passado, normalmente
estimuladas sensorialmente por cheiros, gostos, sons, emoções etc.
Os dois exercícios são praticados pelos autores/as da literatura
afro-brasileira: as memórias podem aflorar espontaneamente através
de processos associativos, mas também podem ser buscadas de modo
consciente para que sejam representificadas, pois correm o risco de
desaparecer ao longo do tempo. Daí a necessidade de registrar,
escrever individualmente, escrever em antologias, em livros, jornais e
revistas. Lembrando uma vez mais Fernando Catroga: a prática re-
presentificadora deve ser não somente a imaginação mas também a
“enunciação que ordena o caos e a descontinuidade do événementiel
(acontecimento), doando sentido à vida dos indivíduos e dos grupos
em que cada um se integra” (2009, p. 22).
O título do livro de Catroga: Os passos do homem como restolho
do tempo é significativo na medido em que “restolho” aponta para os
resíduos deixados no campo após a colheita. Assim, poderíamos
depreender que o sentido do título remete à constituição do humano
através de fragmentos ínfimos de temporalidades que devem ser
reunidas para fazerem sentido. Como sabemos desde os ensinamentos
de Maurice Halbwachs, memória e tempo estão interligados:

Como uma sociedade, qualquer que seja ela, poderia


existir, subsistir, tomar consciência de si mesma, se
não abrangesse com um olhar um conjunto de
acontecimentos presentes e passados, se não tivesse
a faculdade de retroceder no fluxo do tempo e
repassar ininterruptamente os vestígios que deixou
de si mesma? Sociedades religiosas, políticas,
econômicas, famílias, grupos de amigos,
relacionamentos e até reuniões efêmeras num salão,
numa sala de espetáculos, na rua – todas imobilizam
232
Ensaios sobre Memória – Volume 2

o tempo a sua maneira ou impõem a seus membros a


ilusão de que pelo menos por algum tempo, num
mundo que está sempre mudando, certas zonas
adquiriram uma estabilidade e um equilíbrio relativo
e nada de essencial nelas se transformou por um
período mais ou menos longo.(Halbwachs, 2003, p.
156).

Se tempo e memória têm que ser pensados juntos, a memória


exige algo mais do que pensar o tempo somente como linha
cronológica. Gilles Deleuze pensa o tempo não como linha (Cronos),
mas como “emaranhado de fios, como labirinto”. Nesse sentido,
poderíamos interpretar o título de Catroga como o movimento - os
passos do homem - no emaranhado de fios de suas múltiplas
memórias.
Na literatura do Quebec, Gaston Miron, escreveu um belíssimo
conjunto de poemas intitulado L´Homme rapaillé (1970), que foi
traduzido para o português por Flávio Aguiar como O homem
restolhado. “Rapailler” significa igualmente reunir a palha dispersa no
campo após a colheita e o poeta utilizou-se desta metáfora para
conclamar os quebequenses a pensarem-se em termos de unidade em
torno da língua francesa, juntando, unindo em um só conjunto, o que
estava disperso.
Reunir o que está disperso, o que foi omitido, esquecido,
apagado é também a função dos poetas que se inscrevem nesta linha da
Poética da Ausência, empenhados em preencher os vazios, as ausências
e as lacunas de sua História, contando histórias, restolhando traços-
memória, recuperando rastros e pegadas no já tão longo caminho do
negro nas Américas. O ato de representificar demanda uma valorização
do que foi tirado do esquecimento e relaciona-se tanto com a atividade
intencional da reminiscência como com a espontaneidade da
rememoração, tornando presente o que se fez ausente.
A Poética da Ausência se realiza no que Maximilien Laroche
chamou de “dupla cena da representação”. Para o autor, haitiano de
origem e cidadão quebequense, a literatura haitiana se desenvolve em
uma dupla cena de representação: uma exterior e oficial que se
exprime em língua francesa, caracterizada pela dependência aos
“modelos” dos antigos senhores; e outra interior e privada, escrita na
233
Ensaios sobre Memória – Volume 2

língua crioula do Haiti, “caracterizada pela vontade de resistência à


dominação externa” (1991, p. 22-23).
É possível estabelecer também no âmbito da literatura afro-
brasileira uma dupla cena da representação: uma escritura voltada
para própria comunidade afro, com a intenção de preencher as
ausências, deixando aflorar no texto as memórias subterrâneas, e
outra voltada para o leitorado em geral, na tentativa de apontar a
persistência do racismo e todas as suas múltiplas formas de expressão.
Evidentemente que há um processo de intercomunicação dos dois
cenários que faz com que resquícios da oralidade aflorem no texto,
convocando à existência os saberes imemoriais de origem africana. A
literatura afro-brasileira se constrói, assim, através da reinvindicação
da herança, do assumir-se como herdeiros de um patrimônio cultural,
cujos textos tentam desbaratar os emaranhados fios da memória afro-
brasileira, rasurada desde a chegada dos navios negreiros ao Brasil.

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