A Ilha Da Madeira No Contexto Da Expansa

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A ILHA DA MADEIRA NO CONTEXTO DA EXPANSÃO IBÉRICA DOS SÉCULOS XV‐ XVI

Rui Carita*

INTRODUÇÃO nante levou à necessidade de implantar complexas


estruturas alfandegárias para cálculo da produção e ao
O povoamento do arquipélago da Madeira no quadro
desenvolvimento da aplicação dos algarismos árabes,
da expansão ibérica como o primeiro passo de uma
únicos capazes de corresponder às necessidades dos
atividade totalmente nova, quando o povoamento das
cálculos em questão.
ilhas Canárias ainda se debatia com a dificuldade de
pacificar as populações autóctones. Primeira experiên- As primeiras dificuldades ocorreram com o finan-
cia de povoamento e exploração das novas terras ciamento da continuação das viagens de exploração da
descobertas e até então não povoadas, para a Madeira costa de África, entregue a um conjunto de comerci-
vieram os pioneiros de uma nova mentalidade univer- antes internacionais residentes em Lisboa, tendo de
salista, que ali deram assento a uma nova sociedade. imediato sido acordado o reabastecimento das arma-
das na ilha da Madeira. Em breve fixavam-se no porto
Ensaiadas culturas que imediatamente deram
do Funchal delegados desses comerciantes, para
lucros consideráveis, como os cereais e, depois, a cana
localmente cativarem e controlarem os mil moios de
sacarina, este modelo veio depois a ser exportado para
trigo destinos ao “trauto da Guiné”.
as novas terras portuguesas, como os Açores e o
Brasil, para onde foram enviados modelos administra- Tendo o financiamento da florescente cultura
tivos e quadros próprios. Da Madeira saiu apoio à açucareira sido entregue inicialmente a capitais ale-
consolidação das praças do Norte de África, ao desco- mães e outros, tendo funcionado, inclusivamente no
brimento e depois povoamento do Brasil, às explora- Funchal uma feitoria alemã, os transportes e seguros a
ções e conquistas do Oriente, acabando por funcionar comerciantes e bancos italianos, e encontrando-se o
como a verdadeira ponta de lança dos descobrimentos principal centro de distribuição na Flandres, assistiu-se
portugueses e da expansão europeia. a uma quase primeira experiência do capitalismo euro-
peu, tendo o Funchal funcionado como um embrioná-
Com as viagens de descobrimentos e exploração,
rio centro internacional de negócios.
feitas por mar e, algumas vezes, por terra, passaram a
conhecer-se os “novos continentes” nos seus contor-
nos reais, revelaram-se povos e civilizações desconhe-
cidos entre si. Alterou-se assim, profundamente a
imagem que o Homem tinha do Planeta, rasgando-se
horizontes que abriram as portas a uma época nova e
imprimiram um sentido diverso à História. De uma
certa forma, os portugueses deram à Humanidade
uma dimensão de significado universal.

Acresce ainda que dadas as condições iniciais do


povoamento das novas terras, entregue pela coroa
portuguesa à Ordem de Cristo, mas depois integrado
na mesma coroa, o controlo de toda a produção per-
tencia à mesma, até por cativar não só os dízimos
reais como também os eclesiásticos. Como a cobrança
dos dízimos era feita por arrematação, tal condicio- Figura 1. Ilha da Madeira. 1567.

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O INICIAL COBERTO VEGETAL DA ILHA

Para iniciar o povoamento com a fixação dos colonos,


tornou-se necessário um certo espaço físico para a
construção e para a plantação das iniciais culturas de
subsistência, o que a vegetação luxuriante da Madeira,
“tanto arvoredo que estava (ali) desde o começo do
mundo”, não permitia. Optou-se pelo lançamento de
fogo, que não poucas vezes se virou contra os iniciais
povoadores, como chegou a ocorrer com o capitão do
Funchal e respetiva família, instalados nas arribas de
Santa Catarina, que, face a uma mudança de vento,
chegaram a ter de se refugiar na calhau da praia
(Aragão, 1981, 36), vendo arder as suas iniciais insta-
Figura 2. Juniperus cedrus (Gran Canaria).
lações e as alfaias agrícolas que ali tinham.

Com as primeiras plantações para subsistência,


logo se iniciaram também os trabalhos de aproveita-
mento das madeiras, que começaram a ser exportadas
para várias partes, destinando-se à construção civil e
naval. Escreveu Francisco Alcoforado, na Relação que
temos vindo a seguir, que se começaram a construir
na Madeira “navios de gávea e castelo de proa”, que
até então “não havia no reino, até porque não tinham
para onde navegar”, só existindo caravelas no Algarve
e barinéis em Lisboa e Porto.

Esta informação, no entanto, é um manifesto


exagero do cronista, pois já se navegava, havia muito
tempo, a partir do Algarve e havia mais de cem anos
que existia em Portugal o posto de almirante. Não
tendo qualquer outra informação na Madeira de se ter
procedido à construção naval, limitando-se os rudi-
mentares portos insulares desta época a fazerem
operações de manutenção e, por certo, também elas
rudimentares, deduz-se que as madeiras colhidas na
ilha seguiam para os estaleiros de Lisboa e outros
estuários onde se havia construção naval.

O termo náutico gávea é a segunda vela ime-


diatamente superior ao papa-figos nos navios redon-
dos, pelo que essa particularidade deve indicar a Figura 3. Barbusano.
construção de navios com várias ordens de velas
redondas, o que, em princípio, só ocorreu nos finais
Henrique era a barca, de convés corrido, fraco porte e
desse século XV. De qualquer forma, data dos anos
armada normalmente de um mastro com redondo,
seguintes à exploração dos arquipélagos da Madeira e
podendo usar remos, tirando, para os usar, a borda do
dos Açores a divulgação da caravela de três mastros e
tempo que normalmente levava montada. Nas viagens
da chamada “caravela redonda”, pois que até então a
mais longas, como para as ilhas, já utilizava um mas-
navegação atlântica se limitara à utilização da barca.
tro mais pequeno a vante, igualmente com velame
A embarcação usada na época do infante D. redondo e, nessas viagens de exploração, começou a

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utilizar também cesto de gávea, independente da chegado a utilizar, o que somente se veio a fazer
designação que depois teve de corresponder à se- quase 50 anos depois. Assim, só ao longo do reinado
gunda vela imediatamente superior ao papa-figos. de D. João II se iniciaram experiências no domínio do
armamento naval, que levaram a inovações nas forta-
Data, em princípio, dos meados do século XV a
lezas costeiras da barra do Tejo.
divulgação da caravela, embarcação de nítida inspira-
ção islâmica e aparentada com os caíques algarvios e A corte portuguesa possuía relações privilegiadas
pangaios árabes. Era um navio de coberta, ou seja já com o ducado da Borgonha, tendo sido daí que nas
com porão e convés, o pavimento que cobre o mesmo primeiras décadas do século XV veio o principal arma-
porão, de casco algo alteroso à popa e mais raso a mento para as conquistas do norte de África. Poucos
vante, embora de pequeno calado. Era aparelhado à anos depois, no entanto, iniciou-se também em Portu-
latina, com velame bastardo nos seus mastros, de um gal a fabricação em série de artilharia de bronze numa
a quatro, apresentando grande capacidade de navegar só peça, passando assim a serem conhecidas as novas
à bolina e podendo atingir grandes velocidades. Tal bocas-de-fogo: peças, no sentido de unitárias. Ainda
capacidade levou à sua utilização até ao século XVIII como príncipe, D. João II mandou realizar em Setúbal
como navio de aviso, exploração e comunicações experiências de colocação de "artilharia grossa" em
rápidas, então designada como “mexeriqueira” navios, sendo dessa época o armamento das baixas e
(Esparteiro, 2001, 118-119). rápidas caravelas portuguesas.

A informação de Alcoforado, por certo, referia-se


à utilização das madeiras encontradas na ilha para a
construção naval no continente, permitindo a passa-
gem da inicial caravela de simples coberta, para mo-
delos mais evoluídos, alteando a popa e os mastros, e
daí o escrever-se “navios de gávea”, ou seja com
mastro dotado de vigia, tal como “castelo de proa”,
onde ficavam os alojamentos da guarnição, enquanto
no chamado “castelo de popa”, ficava o alojamento do
capitão.

A atividade náutica à volta da ilha da Madeira foi


notável no século XV, embora tal não transpareça à
primeira vista na documentação oficial. No entanto, o
primeiro documento existente no arquivo da câmara Figura 4. Barca Zarco e Tristão. 1420.
municipal do Funchal, de 1425, já regista os agradeci-
mentos do rei D. Duarte pelo apoio dado a uma em-
barcação em dificuldades (ARM, 1972, 7). Consultando
outra documentação, como a castelhana, são inúmeras
as queixas do assédio dos navios da Madeira àquele
arquipélago para a recolha de escravos guanches, mas
não só, guanches esses conhecidos pelas suas quali-
dades físicas e capacidades no pastoreio de cabras,
mas documentos, claro, que os arquivos portugueses
não registam.

Os navios da Madeira, inclusivamente, teriam


sido dos primeiros a serem armados, pois que regista
a Insulana, de Manuel Tomás, embora muitos anos
depois, em 1630, que teria sido o capitão Gonçalves
Zarco o primeiro a montar artilharia em navios, em
Ceuta, logo por 1417 a 1418, embora não a tendo Figura 5. Caravela Rios da Guiné. 1523.

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Os navios portugueses ao serviço do rei foram
então armados ao nível do convés e no cavername
abaixo, disparando quase ao nível da linha de água.
Quando D. João II mandou refazer as linhas de defesa
da barra de Lisboa, as fortalezas construídas aproxi-
mavam-se já de novos conceitos de arquitetura militar
e a colocação duma poderosa nau armada à entrada
da barra, marcou em Portugal o nascimento da fortifi-
cação marítima. Este aspeto da colocação da artilharia
é salientado por Garcia de Resende na crónica de D.
João II ao relatar as experiências do Rei com artilharia
em Setúbal, por volta de 1494, citando que anterior-
mente: "achou e ordenou em pequenas caravelas Figura 7. Arca. S. Roque. 1600-1700.
andarem muito grandes bombardas, e tirarem tão
rasteiras, que iam tocando na água" (Resende, 1991,
255). Na transição dos séculos XV para XVI teria sido
dos artesanatos importantes e sujeito a forte fiscaliza-
ção por parte dos examinadores nomeados pela
A CARPINTARIA E A CONSTRUÇÃO CIVIL
câmara (ARM, CMF, Vereações, 1508-1519, 130 v.),
O italiano Luis de Cadamosto parece ter sido o pri- referindo-se em 1499, no testamento de João Gonçal-
meiro a referir os trabalhos de carpintaria da Madeira, ves da Câmara, 2º capitão do Funchal, caixas de açú-
escrevendo que se “trabalhavam obras de carpintaria, car com cinco, seis ou sete arrobas cada. Esta ativi-
e bufetes de muitas invenções, de que se provê todo o dade terá sido de tal forma intensa, embora também
Portugal e outros países” (Aragão, 1981, 37). Por essa haja que ter em conta a construção civil, predominan-
altura, 1455, se deve ter incrementado o artesanato temente em madeira e a exportação, que em breve
em madeira, principalmente numa terra que possuiu era proibida a saída de açúcar em caixas de determi-
uma importante floresta e para a emergente exporta- nadas madeiras, como em cedro e em vinhático, dada
ção de açúcar. Para a segunda metade do século XV a sua raridade e a falta que já se fazia sentir, e permi-
temos várias informações a este respeito, com a utili- tindo-se só a saída em caixas de til (ARM, RG, T I,
zação das chamadas caixas de açúcar, essenciais na 1546, 45).
safra açucareira para a exportação dos pães.
Em 1506, Valentim Fernandes descrevia as
madeiras da ilha, mas utilizando, por certo, informa-
ções referentes ao século anterior. Assim, refere que
se explorava a madeira de cedro, sendo então possível
obter tabuado de sete palmos de largo, ou seja cerca
de metro e meio, referindo que quase parecia madeira
para mastros de navios. Desta madeira fabricavam-se
caixas, mesas e cadeiras. Saliente-se que para as
caixas de açúcar a madeira tinha de sofrer um especí-
fico tratamento, para o cheiro do cedro não afetar o
açúcar.

Escreve este editor alemão que se utilizava tam-


bém o til para caixas de açúcar, referido como “tão
gordo”, que permitia também obter tabuado de cinco
palmos de largura, ou seja um metro e pouco, mas
que obrigava também, tal com ao cedro, a um trata-
mento especial. São ainda citadas as madeiras de
Figura 6. Serra manual. Cadeiral da Sé do Funchal.

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vinhático, suscetíveis de tabuado de quatro palmos, Se relermos o doutor Gaspar Frutuoso, que des-
pau branco, utilizado no fabrico de eixos e parafusos creve a ilha por volta de 1590, temos de reconhecer
nos engenhos de açúcar, aderno, “pau muito forte”, do que as suas informações estavam perfeitamente
qual se obtinha tabuado de três palmos, barbuzano, desatualizadas. Escreve então que “toda esta ilha é
“pau muito pesado e que nunca apodrece”, dando fragosíssima e povoada de alto e fresco arvoredo; que
tabuado de cinco palmos e ainda a urze, de que fabri- por ser tal, se perdem alguns caminhantes nos cami-
cava carvão e de que se podia obter tabuado de cinco nhos, e já aconteceu alguns perdidos morrerem”.
palmos. Acrescenta ainda o cronista, que existia então muito
til, “que quando o cerram, dentro do cerne é muito
Com o surto da safra açucareira, na transição do
preto e cheira mal”; vinhático, “de que se fazem caixas
século XV para o XVI, o inicial revestimento florestal
para o serviço de casa, que são muito boas”; aderno,
encontrava-se quase extinto na capitania do Funchal.
“de que se faz muita madeira para pipas para vinho e
Para além de outros casos, para a construção da sé do
mel, e o qual pau de aderno é tão rijo, que se fende à
Funchal, por exemplo, teve de se recorrer à madeira
cunha”.
do norte da ilha e, num curto espaço de tempo, nem
se encontrava na cidade madeira para caixas de açú- Ainda refere o cronista açoriano o cedro branco,
car. No entanto, as madeiras encontradas nos séculos o pau branco, o folhado, para armações de casa, o
XV e XVI na ilha tornaram-se uma legenda dessa azevinho, para cabos de machado, a giesta, de que se
época e, ainda nos meados do século XIX, Almeida colhia verga para cestos, “muito galantes e frescos
Garrett ao descrever o convento dos Jerónimos, no para serviço de mesa, e oferta de batismos, e outras
seu poema Camões, não resiste em citar um móvel de cousas, por serem muito alvos e limpos”, e o barbu-
“pranchas de escuro til, rudo lavradas...”, e em nota zano, de que se faziam “tanchões para latadas, por ser
refere que “o til é madeira escura e de pouco poli- pau muito rijo e durar muito no chão” (FRUTUOSO,
mento que naquele tempo se usava muito. Vêem-se 1968, 137-138). Tratam-se, no entanto, de informa-
ainda restos em casas antigas” (Garrett, 1854, 38 e ções sobre a costa norte, pois que por esses anos toda
158). a costa sul padecia de falta de madeira.

CRISTÓVÃO COLOMBO, A MADEIRA E O TRATADO DE


TORDESILHAS

A ilustração da importância da Madeira no quadro do


Atlântico na segunda metade do século XV pode ilus-
trar-se pela sua relação com o então aventureiro e
comerciante italiano Cristóvão Colombo. O futuro
navegador estava na Madeira em 1478, como funcio-
nário dos mercadores italianos da colónia lisboeta,
Paulo di Negro e Spinola, e por conta da casa geno-
vesa dos Centorione, encarregado de comprar duas mil
e quatrocentas arrobas de açúcar, que deveriam ser
carregadas no navio do capitão português Fernando de
Placência, mas a ordem de pagamento não chegou a
tempo ao Funchal para concretizar a transação.

O caso da compra de açúcar na Madeira acabou


nos tribunais de Génova, a fazer fé no documento
Assereto, onde Colombo, então com 27 anos, se en-
contrava a 25 de agosto de 1479, tendo prestado
declarações na qualidade de testemunha e cidadão
Figura 8. Contador. Funchal. Assembleia Regional. 1720. genovês. No dia seguinte, 26 de agosto de 1479,

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Colombo embarcaria novamente com destino a Lisboa,
onde casaria com Filipa Moniz, filha de Bartolomeu
Perestrelo, 1º capitão do Porto Santo, falecido em
1457.

A relação de Cristóvão Colombo com a ilha da


Madeira ter-se-ia assim mantido, pois segundo Barto-
lomeu de Las Casas teria sido aí, através de António
Leme, que tivera acesso a informações sobre terras ou
ilhas situadas muito para Ocidente. A partir de 1492 o
reino de Castela lançou-se na conquista do Oceano
Atlântico e, embora com tecnologias ainda rudimen-
tares e, até certo ponto, aprendidas em Portugal, esta
ação apresentou-se como uma nítida concorrência ao
expansionismo português. Cristóvão Colombo ao ser-
viço dos Reis Católicos, Isabel de Castela e Fernando
de Aragão, tinha conseguido atingir a América nos
finais de 1492, pensando tratar-se da Índia, alterando
assim as relações de força na área dos "descobrimen-
tos" do Oceano Atlântico. Figura 10. Casa Colombo-J. Esmeraldo.

Ciente, em princípio, das alterações que iria pro-


duzir a sua missão no quadro político ibérico e, tam-
bém, provavelmente, para se vangloriar do seu feito
perante D. João II, que alguns anos antes recusara o
seu projeto de atingir a Índia pelo Ocidente, antes
mesmo de comunicar a notícia aos Reis Católicos, o
navegador foi comunicá-la ao rei de Portugal, então no
convento de Vale Paraíso, perto de Almeirim, tendo
conferenciado com o rei nos dias 9, 10 e 11 de março
de 1493.

Nesta sequência acabou por se fazer nova parti-


lha do mar oceano entre portugueses e castelhanos,
então por um meridiano, celebrada pelo Tratado de
Tordesilhas, enquanto no anterior tratado se optado
pela divisão por um paralelo. Não vamos aqui enunciar
as complicadas negociações que este tratado envol-
veu, mas somente as que dizem respeito ao assunto
do nosso trabalho, que foi protelarem-se as negocia-
ções por quase um ano e, segundo os negociadores
castelhanos, por terem partido da ilha da Madeira
várias caravelas na rota de Colombo, por ordem de D.
João II.

A diplomacia dos reis católicos movimentara-se


em Roma, conseguindo obter-se do papa Alexandre
VI, nascido Rodrigo de Borja e que fora arcebispo de
Valência, a bula Inter Coetera, de 3 de maio de 1493,
Figura 9. Cristóvão Colombo. H. Moreira. 1940. reservando para os mesmos as terras então desco-

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bertas, ou a descobrir, “na direção dos índios”, com
idênticos direitos e privilégios que os portugueses
tinham pelas bulas anteriores. Uma segunda bula, sob
o mesmo título, de 4 de maio do mesmo ano, reproduz
a primeira parte da anterior e estabelece a linha de
demarcação entre os povos ibéricos: cem léguas a
oeste das ilhas dos Açores e de Cabo Verde.

As negociações foram sendo proteladas até em


março de 1494, altura em que se apresentou em
Tordesilhas nova embaixada, desta vez constituída por
Rui de Sousa e João de Sousa, seu filho, “embaixado-
res e procuradores ao ditos reis”, o licenciado Aires de
Almada, corregedor da corte e Estêvão Vaz, “por se-
cretário”, citados por Garcia de Resende como “pes- Figura 12. Nau. Duarte Pacheco Pereira. 1501-1529.
soas do reino de muito bom saber, grande confiança e
muita autoridade, e com eles mui honrada compa-
nhia”, ou sejam, Duarte Pacheco Pereira, futuro autor
do Esmeraldo de Situ Orbis, Rui Leme, irmão de Rui de
Foi com este conjunto de embaixadores e cartó-
Leme, ambos filhos de Martim Leme, mercador de
grafos que D. João II acabou por fazer valer, em
Bruges e radicado em Portugal e João Soares de Se-
meados de 1494, não o meridiano a 100 léguas para
queira, navegador ou comerciante, mas do qual tudo
ocidente das ilhas de Cabo Verde, proposto pelos reis
se ignora.
católicos e pelo papa Bórgia, mas um a 370 léguas das
mesmas Ilhas. A concretização de 370 léguas, ou seja
nem 300 nem 400, o que seria mais lógico, indiciam
toda uma outra atividade profundamente científica
levada a efeito em segredo por D. João II para ter
chegado a um tal número.

A alteração e, principalmente o pormenor tão


específico das 370 léguas, tem levado à formulação da
hipótese de que D. João II já então conhecia a exis-
tência de terras brasileiras, pois só através desta
alteração era possível englobar tais terras na zona de
influência portuguesa. Esta hipótese tem tido bastante
recetividade, embora não tenha uma confirmação
segura e documental. No entanto, como os biógrafos
do almirante das Índias citam o navegador António
Leme, vereador da câmara do Funchal, como lhe
tendo dado as informações sobre as terras existentes
para ocidente da Madeira, face à presença do irmão
Rui de Leme na assinatura do tratado de Tordesilhas,
tudo parece indicar que nas caravelas que partiram da
Madeira na rota de Colombo, seguiram António de
Leme, talvez Rui de Leme e, por certo, Duarte Pacheco
Pereira, que mais tarde no seu trabalho Esmeraldo de
Situ Orbis, confirma ter estado a fazer medições em
terra firme, no que seria depois o Brasil, antes de
Figura 11. Armas de António Leme. 1500.

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CONCLUSÕES Teria sido também essa situação no quadro do
Atlântico, mas que não só, claro, a responsável pela
O regime de ventos e de correntes condicionaram a
quase total emigração dos mestres de engenho de
navegação das caravelas portuguesas na segunda
açúcar da Madeira, primeiro para Cabo Verde e São
metade do século XV, obrigando a que quase todas as
Tomé, mas depois e com pessoal, material e, inclusi-
armadas com destino ao Novo Mundo tivessem de
vamente animais, para o Brasil. Num curto espaço de
passar pelos mares da Madeira. No regresso, entre-
tempo a produção brasileira eclipsava a madeirense,
tanto, dada a navegação em arco, face ao regime de
que foi quase que completamente abandonada, pas-
ventos, passavam também quase que obrigatoria-
sando o açúcar que era utilizada no consumo domés-
mente pelos mares dos Açores. Esta situação explica,
tico da ilha a ser importado do Brasil.
por exemplo, a quase imediata participação dos ma-
deirenses nas primeiras viagens para o Oriente e, A ilha, entretanto, recorria a nova e rentável
depois, para o Brasil, tal como a importância do arqui- produção para fazer face à sua subsistência: o vinho
pélago dos Açores no regresso das mesmas armadas da Madeira, continuando a ocupar assim um impor-
ao continente europeu, carregadas com as especiarias tante papel no quadro do Atlântico Norte, então no
e, por tal, o palco de contínua guerra de corso que se reabastecimento das armadas inglesas, especialmente
constituiu naqueles mares. com destino à América do Norte, onde se acreditava
possuir este vinho especiais qualidades terapêuticas. A
4 de julho de 1776, quando o congresso continental
aprovou o documento pelo qual as treze antigas coló-
nias inglesas declaravam a sua independência da
Inglaterra, o brinde final foi celebrado com Madeira.

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*
Figura 13. Ratificação. Tratado de Tordesilhas. 1494. IAP/Universidade da Madeira.

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