Comentário Analítico - A Máscara Da Morte Escarlate
Comentário Analítico - A Máscara Da Morte Escarlate
Comentário Analítico - A Máscara Da Morte Escarlate
Matrícula: 2023.2.05986.11
Disciplina: Teoria da Literatura II
Professor: Matheus de Brito
COMENTÁRIO ANALÍTICO
Escolhi realizar a análise em texto corrido para guardar a fluidez e, por isso,
quando necessário, farei as inserções numéricas dos parágrafos entre parênteses
ao me referir a determinado trecho para melhor compreensão.
A leitura do conto A máscara da Morte Escarlate é entremeado de
simbolismos e representações que, no seu tato mais excêntrico, encosta em
temáticas que são acrônicas. A obra de Allan Poe apresenta, entre figuras e meios,
a fragilidade da existência humana, a débil tentativa de esquivar-se da morte e a
negação fantasiosa da condição mortal do homem através da devoção hedonística
ao desejo e às suas satisfações. Essas representações são inseridas gradualmente
no texto, de forma vagarosa, como quem retém a expectativa do leitor. A seguir,
trato de decompor a narrativa.
Na situação inicial do texto são apresentados os personagens e o espaço no
qual a narrativa se desenvolve. A “Morte Escarlate” é, ainda, representada aqui
como peste e doença que atinge um país não nomeado. “O sangue era a sua
encarnação e o seu sinete” (parágrafo 1). O narrador, como observador atento,
utiliza, das cores, o seu potencial alegórico e alusivo do início ao fim. O vermelho é
a materialização da peste, tal padecimento apresenta-se através de manchas rubras
pelo corpo, dores agudas e somente meia hora de vida após contágio. A cor
carmesim é motivo - elemento temático indecomponível - dinâmico, que modifica a
narrativa desde a sua primeira apresentação (já no título) até o decorrer da
progressão da narrativa e as apresentações subsequentes, que serão ainda
comentadas.
Com a epidemia em disseminação no país, é dito que um Príncipe Próspero
“feliz, intrépido e sagaz” (parágrafo 2) decide reunir mil amigos em uma abadia,
espécie de refúgio pomposo e de luxo, em que o exibicionismo e a suntuosidade
serviam de matéria-prima para sua constituição. O Príncipe resolve manter-se junto
aos escolhidos numa redoma de segurança e proteção ante o pânico e horror
difundidos no país. Há, nesse fragmento, uma barreira fortificada entre aqueles que
são intitulados dignos de uma certa preservação da vida e aqueles em que a
existência se mostra ordinária e insignificante. Proponho aqui, brevemente, um
entendimento que verse com a teoria literária marxista de Lukács; este entende que
a literatura pode, também, atuar como forma de representação da vida social e
concebe aos personagens de uma narrativa, a capacidade de personificarem
aspectos de determinadas classes ou grupos sociais de um dado contexto
sociocultural.
O Príncipe Próspero e seus amigos cortesãos estão encadeados nessa
estrutura social que reflete, nitidamente, dois lados, as duas faces do corpo social
presentes na narrativa. O Próspero como símbolo da classe aristocrática, que utiliza
de seu poder econômico e social para escapar de uma realidade pungente e
cadavérica e os excedentes, aquilo que sobra, o saldo irrelevante aos olhos da
corte, ou seja, o restante da população, que padece e se aflige no amargo escarlate
da doença.
Esse contraste recebe uma expressividade maior quando o narrador revela
as escolhas do Príncipe acerca da construção e preparo da abadia. O prazer era a
forma de cegar todos aqueles que ali, dentro do recôndito, estavam. A satisfação, o
deleite e a distração eram meios de borrar o sofrimento alheio. Entendo ser este um
motivo dinâmico e associado, pois, é na utilidade do prazer e na intenção do
regozijo e da satisfação que discorrerão, necessariamente, os conflitos posteriores.
O hedonismo carregado estava presente nas intenções do Príncipe, uma
atitude de procedimento perceptível na narrativa através da contratação de músicos,
bailarinos, improvisadores, bufões e do consumo de vinho. “Que o exterior se
arranjasse como pudesse. De sua feita, seria uma loucura afligir a alma com
meditações sobre a peste. O príncipe havia fornido aquele refúgio com todos os
meios prazerosos” (parágrafo 3). O Duque ornou, sublimemente, um reduto de
prazeres, um espaço impenetrável pela mazela que tomava todo resto da população
fora de seu castelo. O contraste salienta-se: dor e alegria, prazer e sofrimento.
Após um certo tempo, quando todos os cortesãos já estavam em reclusão na
abadia e a peste rubra atingia o seu ápice fora daqueles muros, o Príncipe decide
preparar um baile de máscaras embebido de grandeza. Situa-se neste momento o
nó da narrativa. O baile de máscaras, como motivo dinâmico, contribui para o
desfecho final posterior, perfazendo uma mudança nos acontecimentos ligados
entre si. O narrador, de perspicaz observação, cuida de descrever minuciosamente
os salões imperiais, onde o festim ocorreu. Essa descrição e apresentação de teor
preciso e pormenorizado tem a sua razão. O narrador evidencia a tendência do
Duque por tudo aquilo que é bizarro, seu gosto excêntrico pelo jogo de luz e pelo
uso das cores são expostos na narrativa como estranhos, extravagantes e sinistros.
A caracterização do Príncipe é direta, mas acompanhada de seus feitos como forma
de constatação. Há aqui a tentativa de confeccionar uma imagem tenebrosa e
insana do Duque.
As construções dos salões eram incomuns, quando comparados às
construções de outros palacetes imperiais. Os 7 salões só podiam ser visualizados
um por vez, precisando, obrigatoriamente, passar pelo salão precedente para que o
próximo pudesse ser visto e assim, consecutivamente. “Cada janela era guarnecida
de vitrais cujas cores harmonizavam-se com a tonalidade dominante da decoração
do salão para o qual se abria.” (parágrafo 6). Assim como a janela de cada salão
possuía a coloração do vitral de acordo com a cor da decoração da sala (azul,
púrpura, verde, laranja, branco, violeta e escarlate), cada corredor que unia os
salões tinha uma espécie de braseiro que iluminava os vitrais. Assim, cada sala era
refletida pela cor de seus vitrais. A narrativa, nesse ponto, passa por um lapso de
caracterização de ambiente, que acredito ser de suma importância para a
compreensão de seu espaço diegético. Durante a descrição, os salões são
apresentados um por um, até chegar no último, o mais esperado, o salão que ganha
a maior soma de particularização: o salão da câmara negra, adornado por tapeçaria
de veludo negro (teto, parede e tapetes) com a única distinção - o vitral escolhido
para a janela não era negro, conforme se seguia a ordem de harmonia até aqui, o
vitral era rubro, escarlate, vermelho sangue. Suponho que seja esse jogo de
encadeamento harmônico junto à quebra de expectativa que chame a atenção do
leitor. Se 6 salões são harmonizados - vitral correspondente com decoração interior
- por que no último salão haveria de ser diferente? Esse tipo de composição elenca
a quebra da ânsia de algo que o leitor esperava, a coerência contínua e linear é
descontinuada. E é, justamente, essa ruptura que levanta no leitor a curiosidade,
que retém a sua atenção, ou nas palavras de Tomachevski, é isso que contribui a
sustentação do interesse do leitor.
Alçando de uma descrição sanguinolenta, o narrador constroi uma imagem
macabra para o interior daquele salão, onde nem mesmo os dançarinos “se sentiam
com suficiente coragem para penetrar no recinto” (parágrafo 7). O medo psicológico
é amparado pelas palavras do narrador na investida deste de criar, no espaço
mental do leitor, o salão como lugar intransitável, uma zona que se deve evitar, que
se deve ter, de alguma forma, reverência ou submissão para ali estar.
Na sequência da narrativa, em meio às celebrações suntuosas do grande
festim, um relógio de ébano toca de hora em hora. Presumo ser essa a grande
tensão do conto, um estado de ameaça e sobrecarga no tempo psicológico do leitor.
É como o preparo para algo que sucederá em algum momento. Nesse ponto, a
narrativa é disposta de modo apreensivo. Toda vez que uma hora é completada, o
relógio produz um som, que é construído, pelas palavras do narrador, como
ostentoso (próprio do local), pesado, profundo e claro. Essa noção faz imaginar
como o som conseguia penetrar - de modo entranhado - no íntimo dos que ali
estavam. Durante a melodia todos que estavam presentes paravam,
obrigatoriamente, o que estavam fazendo. Os músicos paravam de tocar, os
dançarinos paravam de dançar, os mil amigos voltavam para si. Havia uma
reverência melódica, uma subordinação de amedrontamento, temor, receio e
apreensão dentro de cada indivíduo. O paralelo aqui é interessante, pois, a morte é
essa imobilidade, a paralisação do corpo e quanto mais próximo do salão de vitral
escarlate, mais denso era se movimentar, quanto mais próximo da morte, mais difícil
é se concentrar em viver. É plausível, fazer aqui a representação da melodia
sombria e respeitosa com o recordação da morte. Pois no momento em que o
tique-taque soava, os cortesãos se lembravam da inevitável condição humana,
aproximavam-se um pouco mais do fim, e quando a música se dissipava, a estranha
perturbação sumia, voltavam a se alegrar, a viver, esqueciam-se do medo,
colocavam-no debaixo de seus regozijos.
Nesse detalhamento feito pelo narrador, a tensão dramática aumenta, o que,
de certa forma, traz a sensação de que o desfecho se aproxima. Por repetidas
vezes, o relógio batia, não havia escape, o carrilhão de ébano era a lembrança que
não queria ser rememorada por ninguém. Nesse contraste de vida e morte, de
dança e inércia, de música e mudez, de alegria e medo, o parágrafo 12 faz surgir o
clímax, o ponto de tensão máxima do conto. “E o baile continuava, chegava ao seu
ápice, quando do carrilhão soou a meia-noite. Então, como já se disse, a música
parou; os que dançavam detiveram-se em suas evoluções. E a angustiante
imobilidade a tudo dominou. Agora, porém, o carrilhão bateria doze vezes”
(parágrafo 12). Quando a meia-noite chegou, a melodia do relógio alcançou um
tempo mais prolongado nos salões. Nesse momento, todos que ali estavam
afastaram-se da alienação provocada pelo prazer leviano oferecido dentro do
cenário festivo. Assim que se atentaram para o seu contorno, para os outros que
também estavam na festa, perceberam a presença de um mascarado diferente de
todos os outros. Importante citar aqui que as máscaras utilizadas no baile foram
escolhidas a dedo pelo Príncipe, selecionadas por critérios que beiravam desde o
belo, até o terrível e bizarro. Mas aquele mascarado provocava uma repugnância e
inconveniência díspares. Era uma máscara que se confundia com a realidade, era o
medo do real. A reprodução de um cadáver frente a todos do salão.
O desagrado do Príncipe e sua repulsão são citados no 14° parágrafo,
quando, cheio de ira, tenta ir atrás do indivíduo desconhecido e cai, imediatamente,
prostrado, morto, após a aproximação. Os que estavam presentes também se
acercam e o desfecho da narrativa, como revelação e esclarecimento, se dá
quando, num estado de terror, todos se apercebem que não há ali substância
corpórea, mas sim a materialização da “Morte Escarlate”. O mascarado era a
representação e manifestação em nível transcendente da Morte. A imediatez da
morte é um paralelo importante traçado nessa altura da narrativa, onde inicialmente
o conto se refere a “Morte Escarlate” como doença e enfermidade, que permitia ao
ser humano infectado, 30 minutos de vida após o contágio, e que agora como Morte
materializada, o fenecimento é imediato. A intensidade do “dano” acompanha a
manifestação/materialização da peste.
Num cenário geral, essa intensidade reforça, ainda mais, a temática do conto
de expor a inutilidade dos esforços humanos ao tentar evitar a morte. Quanto mais
fugimos dela, mais tangível se torna dentro de nós. Nesse caminho, o conto
apresenta, dentro de um enredo mergulhado de simbologia, que a única certeza da
vida é o seu perecimento, realidade essa que se estende a todos, sem nenhuma
ressalva ou tipo de exclusão.