Análise O Sentimento Dum Ocidental - Cesário Verde

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“O sentimento dum ocidental” de Cesário Verde

1. Estrutura externa do poema organizada em quatro partes perfeitamente simétricas – 11


quadras com o primeiro verso decassílabo e os restantes alexandrinos (12 sílabas métricas).
A cada uma das partes corresponde um título indicador das diferentes etapas de um
percurso espácio-temporal e emocional levado a cabo pelo sujeito poético.

2. Linha narrativa do poema a partir dos subtítulos: “Ave Marias” (6 horas da tarde); “Noite
fechada”; “Ao Gás” e “Horas Mortas”.

3. Análise e interpretação de “Ave-Marias”

Estrofe 1: A visão das sombras que se acentuam e o cheiro a maresia exalado pelo rio despertam,
no sujeito poético, um generalizado “desejo absurdo de sofrer” que é a expressão subjetivada
da soturna melancolia da própria cidade.

Estrofe 2: Há uma sensação de opressão, a noite desce como uma barreira que esmaga a cidade.
A cidade está escurecida, toldou-se de uma cor “monótona e londrina”, símbolo da miséria e da
opressão provocadas pela sociedade industrial.
Conclui-se, então, que o ambiente citadino desagrada ao sujeito poético: “soturnidade”;
“melancolia”; “despertam-me um desejo absurdo de sofrer”; “o gás extravasado enjoa-me,
perturba”.

Estrofe 3: Por isso, o “eu” lírico sente uma absoluta necessidade de evasão. A visão dos carros
de aluguer despoleta no sujeito poético uma associação de imagens que nos remetem para
diferentes cidades, todas elas capitais de países desenvolvidos e, finalmente, para o mundo.

Estrofes 4-5: No entanto, a esta evasão no espaço contrapõe-se, novamente, a visão do exíguo
espaço da cidade de Lisboa, simbolizado pelos edifícios, ainda em construção, que já se
assemelham a gaiolas e que serão futuros viveiros. A partir deste momento, existe, no poema,
uma descrição dinâmica, sugerindo uma movimentação coletiva: os operários abandonam os
locais de trabalho.
Esta estrofe é um exemplo da visão alucinatória, da transfiguração da realidade através da
imaginação do sujeito poético. Os edifícios em construção são comparados com “gaiolas” e os
“mestres carpinteiros” ao descer das vigas, são comparados com “morcegos”.

Estrofe 6: A evasão manifesta-se agora através do tempo: a visão do cais e das embarcações
relembram ao sujeito poético algumas passagens da nossa história – as “crónicas navais” que
correspondem a um período áureo do passado português (os Descobrimentos), do qual Camões
faz parte (o imaginário épico). Note-se que este poema se destinava a celebrar o tricentenário
de Camões, em 10 de Junho de 1880. Contudo, há no poema a subversão da memória épica,
com a denúncia da realidade decadente e antiépica do final do século XIX.

Estrofe 7: Contudo, a realidade impõe-se, “e o fim da tarde inspira-me; e incomoda!”; “Os hotéis
da moda” e “o couraçado inglês” são, respetivamente, símbolos da riqueza e da alta burguesia
citadina e do poder naval que a garantia.
Note-se o imprevisto da associação das formas verbais “inspira-me; e incomoda”, referidos ao
mesmo sujeito, e separads por uma pausa que aumenta a surpresa: a segunda corrige o lirismo
da primeira afirmação.
Repare-se ainda na descrição sintética, por instantâneos, a que o impressionismo das imagens
dá ritmo e colorido. A escolha do decassílabo e do alexandrino justifica-se pela autonomia que
cada verso mantém, de acordo com o fragmentarismo da visão.

Estrofe 8: Mais uma vez é sugerida a vida fútil da burguesia citadina, através dos “querubins do
lar” que “flutuam nas varandas”, mostrando a sua fragilidade.

Estrofes 9-10: A estas mulheres opõem-se as varinas “hercúleas” geradoras de dramas


marítimos. “Ave-Maria” termina com um alerta para as condições de vida das varinas: “E
apinham-se num bairro onde miam gatas, / e o peixe podre gera os focos de infeção!”

4. Análise e interpretação de “Noite Fechada”

Estrofes 1-2: A viagem pelo espaço citadino projeta-se na viagem dentro da noite. A visão
opressiva e pessimista da cidade é sintetizada na referência à prisão. A progressão da noite é
sugerida pelo acender das luzes cada vez mais numerosas.
O sujeito poético continua a exprimir a tristeza que lhe provoca a cidade (“Chora-me o
coração”…). A forma pronominal é empregue com carácter afetivo, revelando o interesse do
sujeito poético. Repare-se que nesta deambulação o “eu” lírico medita e tem a noção dos
problemas que a cidade encerra, porque caminha só.

Estrofes 3-4: A comparação da lua ao “circo” e aos “jogos malabares” mostra, mais uma vez, a
visão surrealista da realidade, através da transfiguração pela imaginação criadora do sujeito
poético. Há uma anotação anticlerical. O sujeito poético contrapõe o mundo presente ao
passado repleto de perseguição inquisitorial / da Inquisição.

Estrofes 5-6: Os verbos “muram-me” e “afrontam-me” exprimem o tédio, o constrangimento


provocado pela cidade. O emprego do pronome pessoal “me” indica que todos os aspetos estão
referenciados ao sujeito poético, e traduzem um mal-estar íntimo.
O sentimento de opressão leva, mais uma vez, o “eu” poético a fugir à realidade. Esta fuga
verifica-se através de uma entrada progressiva na história. À medida que a noite avança o
sujeito poético recua no tempo.
Esta fuga é potenciada pela visão da estátua. Note-se o contraste entre a grandeza da estátua
“Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras”, a evocar um passado heróico, e a
vulgaridade do ambiente.

Estrofes 7-8: O passado ressuscitado é inicialmente o mundo sinistro da Inquisição. Mas a


repressão de antigamente continua no presente, simbolizada pelos soldados, pelas patrulhas e
pelos quartéis, antigos conventos. Assiste-se, sobretudo, à denúncia de uma sociedade onde um
palácio, símbolo de riqueza e do poder estabelecido, existe ao lado de um casebre.

Estrofes 9-10: Nesta triste cidade geradora de morte e de luto, o sujeito poético assiste ao
desfilar das costureiras e das floristas que regressam do trabalho curvadas, devido ao facto de
atender durante todo o dia as “elegantes” que se curvam perante as montras dos ourives.

Estrofe 11: Finalmente, o sujeito poético reflete sobre a sua produção literária, concluindo que
a observação do real é sempre parcial e subjetiva (“E eu, de luneta de uma lente só!,). A sua
intenção é, acima de tudo, despertar a consciência coletiva para as injustiças sociais.
5. Análise e interpretação de “Ao Gás”

Estrofe 1: A ideia de opressão provocada pela noite vai tornando-se cada vez maior: “A noite
pesa, esmaga.” A associação das “impuras” aos “hospitais” poderá simbolizar a doença da
própria sociedade.

Estrofes 2-3: Cercado por lojas tépidas, o sujeito poético transfigura a realidade através da sua
imaginação. Assim, pensa numa imensa catedral profana: assistimos à aparição de um novo
culto - o luxo – praticado por uma sociedade de consumo. As “burguesinhas do catolicismo” são
os fiéis deste novo culto. A sociedade de que fazem parte é composta por instituições minadas
e frágeis. A sua solidez, tal como a do chão “minado pelos canos” é ilusória.

Estrofe 4: No entanto, a esta classe fútil opõe-se a classe trabalhadora, símbolo de vigor, de
honestidade e de saúde. Note-se que o advérbio “rubramente” suscita uma imagem, “chama
rubra,” e está implícito no sentido da expressão “maneja um malho”. Note-se ainda a alternância
e a fusão entre uma imagem analiticamente desenhada e uma imagem global. Ainda nesta
estrofe, verifica-se a presença da hipálage “Um cheiro salutar e honesto a pão no forno”. O
adjetivo “honesto” sobrepõe à imagem visual e olfativa do pão a ideia do padeiro como símbolo
do trabalho “honesto”.

Estrofe 5: Seguidamente, o sujeito poético reflete sobre a sua obra, tal como aconteceu em
“Noite Fechada”: o real e a análise do real, projetados em “versos magistrais, salubres e
sinceros”, produzirão o tipo de livro que considera válido – “Um livro que exacerbe”. A
exacerbação desejada é um desafio e um incentivo à consciência do leitor. O registo e a análise
dos factos reais, não são um fim, mas um meio de expressão crítica de uma realidade social
complexa através do registo de factos objetivos. Nesta estrofe verificamos ainda os contrastes
da vida citadina: luxo / miséria (“Casas de confeção e moda resplandecem / Pelas vitrines olha
um ratoneiro imberbe”.

Estrofes 6-10: A cidade vai sendo abandonada à sua escuridão. As luzes apagam-se e o grito
rouco do cauteleiro corta o silêncio da noite. Note-se a sonoridade da frase conseguida através
da aliteração e da assonância.

Estrofe 11. Finalmente, o sujeito poético denuncia frontalmente as instituições sociais que
permitem que um velho professor de latim acabe os seus dias pedindo esmola.

6. Análise e interpretação de “Horas Mortas”


Estrofe 1: Neste momento do poema, a escuridão é ainda mais profunda. O “eu” lírico ao
observar as trapeiras vai transfigurar a realidade e associá-las a “astros com olheiras” donde
escorrem “lágrimas de luz”. O trabalho noturno é associado ao sofrimento e a sua visualização
leva o sujeito poético a pensar na “quimera” de “transmigrar”.

Estrofe 2: A cidade continua a revelar-se enclausurante. As personagens noturnas regressam a


casa. O som do parafuso que cai denuncia o fundo acústico de uma cidade adormecida e
despovoada. Esta visão da cidade deserta termina com a imagem alucinatória dos “olhos dum
caleche… sangrentos”.

Estrofe 3: O passeio noturno pela cidade leva o “eu” lírico até às ruas geometricamente rígidas
como as linhas de uma pauta musical, onde predomina apenas a rigidez das fachadas. Note-se o
desenvolvimento metafórico da comparação “Eu sigo como as linhas de uma pauta,” que se
verifica nos dois últimos versos da estrofe: opondo-se a tudo isto surgem as notas” pastoris de
uma longínqua flauta”, sugerindo uma libertação através do campo e de tudo o que ele pode
conotar.

Estrofes 4-6: Mas a evasão não basta. O sujeito poético sonha com a libertação da prisão final
que é a morte, sonha com a eternidade, com o desejo de que o amor tome o lugar da solidão e
do desespero. Contudo, a morte é certa e a esperança pertence apenas às gerações futuras, a
uma nova geração.

Estrofes 7-8: Seguidamente o sujeito poético constata que a liberdade é impossível “no vale
escuro das muralhas”. O desfalecer da esperança é marcado pelo regresso à náusea (a mesma
náusea doentia dos primeiros versos), o que mostra o impasse a que esta civilização (ocidental)
chegou.

Estrofe 9: Note-se a descrição de um ambiente citadino cada vez mais agressivo sugerido pelos
cães que “parecem lobos”. Para esta imagem dos cães contribui a tripla adjetivação “ósseos,
febris, errantes”, a comparação aos lobos e ainda o efeito impressionista do uso do advérbio
“amareladamente” com valor de adjetivo, fazendo sobressair primeiro a sensação visual
cromática e só depois o objeito.

Estrofes 10-11: O poema acaba da mesma forma como começou. A última estrofe sintetiza
metaforicamente os sentimentos e as perceções do sujeito poético: a cidade é a imagem da
solidão, do sofrimento e da morte. Só resta a dor que, “como um sinistro mar”, se manifesta num
constante fluxo e refluxo, em “marés de fel”.

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