Contos Escolhidos

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OS

"
1
MIRELAN
A
-
COELHO NETTO
11

CONTOS ESCOLHIDOS

1913
LIVRARIA CATILINA
de ROMUALDO dos SANTOS
LIVREIRO EDITOR
Rua Santos Dumont, N. 6
BAHIA
PQ 9697
C42075

1913

POMBOS VIAJANTES

M 357
Y
1

Pombos viajantes (*)

Na brenha cerrada da minha tristeza , onde os sorri

sos já não fazem ninho , viviam, pousados na arvore

secca da melancolia , tres pombos carinhosos .


Dia e noite arrulhavam ; ao pôr do sol , porem, um

delles , turturinando , trazia- me ao coração maguas , acer

bas maguas indefiniveis -era o mais escuro.

O menor, branco, niveamente branco , durante as noi

tes de luar gemia , mas a sua voz , posto que fraca , tinha

mais alegria , muito mais alegria do que a voz soluçada

do primeiro .

( * ) Das RHAPSODIAS, 1 '. edição do autor, 1891 ; 2°. edição de H. Garnier, 1911
10 CONTOS ESCOLHIDOS

O ultimo , um grande pombo forte, de azas triumpha

doras , capazes de vôos temerarios , dia e noite , cantava

no ramo secco , olhando ora o sol , ora as estrellas .

Para viver melhor com elles dei-lhes nomes.

Chamei ao primeiro Saudade , ao segundo Amor e

Esperança ao terceiro .

Um dia , á hora mansa da tarde , tomei no punho o

primeiro pombo e soltei- o no ar . Fiz o mesmo ao segundo

fiz o mesmo ao terceiro .

Voaram , ruflando as azas , foram-se, muito alto , como

se tomassem o rumo do ceu , como se fossem mariscar

as clarissimas sementes que a noite começava a espa

lhar pelo espaço .

Foram-se !

Solitario , puz- me a pensar na madrugada proxima


e na volta dos meus mensageiros .

Que me traria o pombo Amor de novo e os outros

dois que novas me trariam ?

Assim , a pensar , fitei os olhos no mesmo ponto - a

brenha enchia- se de lantejoulas brilhantes .

A' proporção que a treva ia se fazendo mais espessa ,


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apontavam mais estrellas e mais vagalumes appareciam


como reflexos sidereos .

Extrema solidão !

Meus olhos, por mais que se alongassem , não conse

guiam descobrir a luz das choças ; a cantiga melancolica

do zagal, no alto do monte , não me chegava aos ouvidos.


Olhar o ceu ! Olhar o ceu ! Fitei a vista nas estrellas .

Subitamente um gemido ... outro mais doloroso ...


uma ruflalhada em torno de mim.

Voltei -me... e ia levantar- me quando alguma coisa

rapida saltou para o meu hombro , depois para o meu pu

nho , gemendo , gemendo sempre .

Corri á claridade, cheguei-me á luz da lua e olhei .

Eterna companhia ! Não póde viver longe do cora

ção... Sombra da vida extincta, espectro das lagrimas e


dos sorrisos .

Eterna companhia ! Era a Saudade , o pombo escuro .

O Amor e a Esperança passam, de quando em quan


12 CONTOS ESCOLHIDOS

do , junto de mim , demoram- se alguns instantes , mas ,

pela madrugada , fogem, voam turturinando . Elle só não

me abandona, o pombo escuro , o que eu chamei Sauda

de , o triste , o melancolico , o dolente .

}
O BAPTISMO
O Baptismo (*)

Espinhos das asperas montanhas , tojos e pedregaes


dos caminhos silvestres iam-lhes tomando , aos poucos , os

vestidos.

Quasi nús , os pés em sangue , os cabellos crescidos ,

ora dormindo á luz das estrellas , nos altos cimos frios ,

ora invadindo as cavernas molhadas: ella encolhida , a

rezar no fundo do abrigo escuro ; elle , de ronda fóra ,

attento aos rumores da floresta e ao farfalho das folhas ,

na espectativa sempre de uma luta bravia com a féra ,

dona da humida morada.

( * ) Das .. RHAPSCDIAS
16 CONTOS ESCOLHIDOS

Andavam errantes , fugindo á vingança de um fidalgo

austero , simplesmente porque ella era a primogenita do

nobre e elle apenas trovador .

Fugiam porque os corações haviam peccado , aman


do-se.

O que lhes dava algum allivio nas horas de maior

tristeza era o sorriso da criança que , ora a mãi levava ao

collo , agarrada ao seio , ora o pai acariciava muito che

gada ao coração .

Nessa jornada amorosa , atravez dos desertos não

batidos , viviam , como barbaros , nutrindo - se de frutos ,

menos a criança : para essa havia sempre leite .

Certa noite , parando em esteril monte , a mãi des

venturada notou que o filho estremecia .

-Depressa , Alcindor ! Agua ! Agua , meu amor , que

o pequenino morre !

-Agua ! exclamou o trovador attonito , correndo

olhares anciosos pelo escalvado monte .

-Sim , depressa ! depressa ! para baptisal - o .

A criancinha agonisava á luz dos cirios pallidos do


ceu .
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Alcindor desceu desatinadamente o monte e ganhou a

floresta da aba , em demanda de rio ou fonte onde apa

nhasse um poucochinho d'agua .


Pobre Alcindor !

Não havia na floresta um veio ! Em toda a redondeza

nem signal de arroio .

Meia hora depois o trovador errante voltou com uma

folha verde , vagaroso , passo a passo , para não perder o

precioso achado:

-Aqui tens , Edwiges , toda a agua que encontrei na

selva: duas gottas de orvalho.

-E ' tarde , Alcindor : o pequenino foi - se !

-Sem baptismo ! Pagão !?


-Descança: baptisei- o . Tu não achaste fonte na flo

resta, eu achei-a bem perto .

-E onde , meu amor ?

-No coração : baptisei- o com lagrimas .


RITORNELLO
Ritornello ( ")

Velha ermida , tem cem annos ... Ha mais de um

seculo que ella é a mesma assim - branca , alvejando ao

sol, com a sua torresinha esguia , onde oscilla um sino ,

não sei se o mesmo que annunciou aos mortos de hoje

em dia, crianças nesse tempo , a primeira missa no pe


queno altar.

Cercam-na cajueiros frondosos, de cem annos talvez ,


talvez de mais.

Outras capellas surgem nas aldeias proximas , muito

maiores, muito mais formosas, entretanto as pombas e as

( * ) Das BALLADILHAS, editor Domingos de Magalhães, 1894


2
22 CONTOS ESCOLHIDOS

andorinhas dão preferencia á velha ermida branca e

vem gente de muitas leguas d'além, batendo as terras

áridas dos valles com os bordões das jornadas, ouvir as


rezas que o cura balbucia , o cura quasi cego , tremulo

de velhice ... de quantos annos ? ninguem sabe dizer ao


certo .

O rio que deriva ao fundo , por entre salgueiraes , em

cima é bebedouro -bebedouro de gado e de tricanas .

E' tão puro , tão limpido , tão alvo , que o acolyto vai ,

de quando em vez , cantaro ao hombro , buscar a agua

que corre para encher as pias .

A agua mansa do rio que desedenta e purifica , agua

que vai nos alcatruzes, agua que rola os moinhos , agua

que leva as barcas e as nymphéas , essa mesma baptisa ,

ha cem annos , na aldeia , desde que alveja entre os alou

rados campos a torre onde bimbalha o sino e onde as


pombas rôlas arrulham .

Nessa manhan de junho , fria , velada pela musselina


brumal sem sol ainda , dois velinhos descançavam nos
CONTOS ESCOLHIDOS 23

rusticos degraus do templo aldeão . Ella trazia o rosto

embiocado , elle , com a cabecinha branca exposta ao

vento, vestia um gabão de panno grosso , escuro .

Chegaram juntos .

Caminhavam desde meia - noite - tinham os pés bran

cos do pó finissimo dos atalhos e as roupas lantejouladas


de rócio .

Immoveis e calados como estavam pareciam mais

dois santos que tivessem descido dos altares para ficar

de guarda ao templo campesino . Não se lhes notava o


minimo movimento - estavam impassiveis .

As cabeças paradas , os olhos fitos no indigo severo

das montanhas , esfuminhadas pela garôa leve e tenue ,

braços cruzados , o cajado aos pés, não balbuciavam


estavam ali como dois extases .

Ao fundo murmurava o rio . Azas tatalavam no alto

e o azul emergia da neblina alumiado , resplandecente .

Vinha sol á terra ; já nas longinquas leiras havia gente a

mourejar e dos casaes subia tranquillamente o fumo espi


ralado .

Claro dia . Um raio de sol baixava sobre a torre; a

frontaria da ermida , as naves e a vinha do presbyterio


24 CONTOS ESCOLHIDOS

ficavam todas douradas. Vinha , na serena e matutina

brisa , um estribilho de canto camponez muito vago , mas


I
quem conhecia o tom compunha a estrophe . Era a moda 1
dos «Olhos negros » .

Começava:

«Deus do ceu , Senhor meu Deus !

Que olhos negros tão fataes .. >>

E rematava apaixonadamente :

« A propria Virgem Maria


Não tinha uns olhos iguaes ...»

O velhinho , voltando a cabeça, já encontrou o olhar


meigo da velhinha ; sorriram . E a canção sempre , ao lon

ge, no frescor matinal dos campos.

«Quem será ? » indagou a velhinha agitando a cabeça

dentro do bioco . «Quem cantará ?»


O velhinho encolheu os hombros sorrindo e acenou

balançando a mão tremula na direcção do campo .

-Vai para oitenta annos ! suspirou o velho .


-Oitenta annos ! disse a velhinha sem tristeza .
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-Lembras- te ? ainda não eramos noivos ...

-Ainda não eramos ....

-Falaramos somente , uma ou duas palavras no

correr do serão . Vestias uma saia de ramagens e trazias

na cabeça uma coifa branca ...

Encolheram- se , baixaram as cabeças; por fim o velho


disse:

-Fizeram- me cantar ... improvisei . Olharam- se e

as pupillas quasi extinctas tiveram um relampago de


malicia.

-Fingiste não perceber, disse o velhinho , raspando

a terra com o cajado .

-Bem que percebi ...

Calaram-se e a canção mais proxima:

<A propria Virgem Maria


Não tinha uns olhos iguaes.>>

-E não tinha , disse o velhinho . A velhinha , sacudida

pelo riso , foi-se levantando tremulamente .

-Onde vais ?
26 CONTOS ESCOLHIDOS

-Quero ver quem canta ... Anda ali pelas terras de

traz. E' moço do campo .

-Quero ver tambem ... O velhinho ergueu -se levan


do a mão em pala á altura dos olhos .

-E' um rapazola ... E' um rapazola , vês ?


-Vai carreando ... E' um carreiro .

-Quem será ?

O velhinho , por sua vez , encolheu os hombros , sem


pre a olhar, mudo de enternecimento .

« A propria Virgem Maria . . . »

disse no estribilho o carreiro cantador , e o velhinho ,

muito baixo , passando a mão pelos hombros da velhinha ,


attrahiu-a docemente e terminou a quadra

«Não tinha uns olhos iguaes >>

Sentaram- se calados . O tom da cantilena foi , aos


poucos , morrendo longe, nas viçosas culturas e o silen

cio cahiu, apenas interrompido pelos chilros dos pas


saros .

Subitamente a porta da igreja abriu-se de par em


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par e o cura, assomando na soleira , não conteve um grito

de indignação :
--Eh ! oh , corja !

Os velhinhos estremeceram e apartaram- se .

-Então , que é isto !? aos abraços aqui diante de

Deus ...! Mas vendo a figura do velhinho e o rosto encar

quilhado da velhinha , o cura desatou a rir andando

com o olhar de um para outro .

-Pois ainda ! ... Pois ainda! ... Olhem que já lá vão

velhissimos annos ... Até me parece que vocês casaram

ao ar livre, á sombra de uma arvore ... As pedras da


ermida dormiam ainda na rocha de onde vieram. Não

se me dava de jurar que foi o proprio Deus quem vos

casou , porque não havia padres nesse tempo ... e desa


tou a rir.

-Eh , eh, eh ! fez o velhinho ... Olhe que somos da

mesma idade ... Bem bons annos .. ! bem bons annos .. !

O Sr. cura era um rapaz e foi o primeiro casamento que


fez .

E o cura, dando a mão a beijar , sempre a rir, sempre


a rir:
28 CONTOS ESCOLHIDOS

-Póde ser ... mas garanto que já me não lembra .

E batendo pancadinhas leves no hombro do velho :

-Mas então que foi isso hoje ...? A manhan ? o

bom sol ou os amores dos passaros , porque andam deli

rantes, os patifes ... Que foi isso ? e para a velhinha :

Hein , velhota , que foi ?

-Foi uma canção do tempo , senhor cura ! disse o

velhinho estalando os dedos : uma velha canção .

-Uma canção que elle fez aos meus olhos , quando

noivo ; explicou a velhinha baixando a cabeça e torcendo

as franjas do chaile ; e cantou baixinho :

« Deus do ceu, Senhor meu Deus » ...

E o velhinho risonho :

«Que olhos negros tão fataes >> ...

-Sei bem... sei bem ... disse o cura , por signal que

acaba com um formidavel sacrilegio . E os tres , juntan

do - se , inclinando as cabecinhas , cantaram , como se bal


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buciassem um segredo para que os santos , lá dentro, não

ouvissem os versos da cantiga:

<A propria Virgem Maria

Não tinha uns olhos iguaes ...


1
OS VELHOS
C

Os Velhos (*)

A Olavo Bilac

Na encosta agreste da collina chamada da Ventania

a seis kilometros da obscura cidade de C ... , agasalha

va- se humildemente , branca como uma ermida , a casa

de Thomé Sahyra, cesteiro de profissão . Quem olhava


de longe para aquelle canto esquecido, avistando tama

nha alvura entre o frondoso matto , se não sabia da exis

tencia dessa habitação modesta , julgava ter dado , ao

acaso , com um pittoresco lençol dagua precipitando - se

da altura, alvo , espumoso , rolando , pedras abaixo, para

o corrego .

⚫ ) DO SERTÃO, 1, a edição (1997 ) , feita pelo autor,: 2.a edição (1903) , de Lello
& Irmão, do Porto,
34 CONTOS ESCOLHIDOS

A' frente, sob tres janellas , num escrupuloso aceio ,

o terreiro estendia-se cercado de espinheiros , tendo como

contra-forte os troncos apuados das laranjeiras que fecha

vam a caiçara - no tempo das frutas carregavam a


ponto de ser preciso andar gente , de manhan , apanhan

do as laranjas que, de maduras , cahiam rachando na

terra tostada e batida .

Em volta da casa , á sombra d'arvores , havia o chi

queiro , o aprisco , a palhoça para as gallinhas e o alpen

dre onde , á noitinha , as vaccas abrigavam - se . Os terre


nos de plantio eram na planicie onde cresciam os milhos

altaneiros e o feijoal alastrava . As ramas das aboboreiras

cobriam uma extensão larga , o mandiocal verde - negro

forrava a vertente da collina insinuando-se por entre o

cafesal, uma centena de pés , mas tão viçosos que


suppriam o paiol e, ás vezes , nos annos ferteis, transbor

dando as arcas, o velho levava o restante ao mercado

onde trocava os alqueires por peças de madapolão ou

de zuarte e morim e baêta para os rigorosos frios ou

então por instrumentos de lavoura ou louça para meza .

Que havia de fazer do dinheiro ? melhor era ter a

casa abastecida e um leito molle , que já não supportava


CONTOS ESCOLHIDOS 35

as duras palhas de milho dos catres sertanejos . Para que

o havia de guardar ? Ia - o empregando , mal o recebia,

para que algum ambicioso máu não fosse , á noite , arma

do , ameaçal - o no seu socego , assassinal- o mesmo , como

haviam feito no sitio dos pinheiros , por nome Terra Santa,

ao centenario Simeão , que passava por ter uma talha

cheia de ouro enterrada debaixo do soalho do quarto de

dormir. Havia apenas em casa uns cinco ou seis dobrões ,

que Romana guardava num mealheiro , fechado no orato

rio, coberto com um panno de crivo , servindo de peanha

á Senhora da Conceição . Viviam modestamente e felizes :

elle tecendo jequiás e côfos e , nas horas mais frescas da


manhan e da tarde , indo á sua roça fazer uma limpa ou

espalhar a semente , puxar a terra para as raizes mais

expostas ou cavar o sólo para arrancar a mandioca; ella

com os cuidados da casa : ora ao fogão , ora á beira do

corrego batendo a roupa , tratando das aves e dos porcos

ou ateiando o lume no forno de barro para fazer sequi

lhos . Tinha Thomé Sahyra sessenta annos , a sua sombra ,

emtanto , ao sol dos campos , era a de um rapazelho , tão

enfesado e secco era de corpo . O rosto , de uma côr fecha

da de bronze , engelhado , nunca tivera barba , o queixo


3
36 CONTOS ESCOLHIDOS

fugia-lhe agudo como um ariete , os olhos , sempre somno

lentos , pareciam os dum ébrio . Romana , tambem ma

gra, annos mais velha que o marido , a cabeça toda bran

ca, a pelle enrugada , era, todavia , forte , de uma saude

rija, e alegre como um passaro . Viram-se , a primeira vez,

perto de um corrego , no tempo em que Sahyra, rapaz

de vinte annos , faiscava nas aguas ricas do sertão ;

ligaram-se e vinham desse tempo numa prisão de amor ,

atravéz de accidentes, ora num canto de serra , ora no

coração de um povoado . um dia arranchados , no dia

seguinte , com os trens num carro de bois , abalando

para outros sitios , sempre alegres , sem queixas , com


uma viva esperança em Deus e na terra que as pesadas

rodas cavavam e que por ali fóra estendiam-se em cam


pos e em montes ferteis .

Um dia acharam essa encosta retirada e Thomé , por

que a terra era de Nosso Senhor , não se preoccupou com

saber quem era o dono e , cantando , ajudado pela mulher ,

levantou a palhoça . Um vento de borrasca descolmou-a ,

uma noite , num bravio e inclemente agosto frio e de ven

davaes e o cesteiro , que amealhára economias , diante

das ruinas do seu tugurio , concordou com a companheira


CONTOS ESCOLHIDOS 37

sobre a conveniencia de edificarem uma casinha que

resistisse ao tempo e os resguardasse dos rigores , de mu

ros fortes, coberta de telha .

Com uns tres camaradas começou Thomé Sahyra as

obras da casa , escolhendo , elle proprio , as braúnas para


os esteios , indo buscar os troncos á floresta , amassando

o barro e , porque vira o trabalho nas olarias quando

andára a correr terras , fez uma fôrma e , em pouco menos

de quinze dias , havia no terreiro um estendal de telhas

e a casa foi surgindo , graciosa e solida , entre as verdes

arvores. Caiada, alvejando , era a primeira que se avis

tava da estrada por ser a mais alta e a mais branca.

Elle mesmo plantou todas as arvores frutiferas e fez

a horta e a sua rocinha e , todos os annos , pelo Natal, cai

ava os muros , pintava portas e janellas , não só por


embellesamento como por conservação . E os temporaes

passavam rugindo sem que uma só pedra se despren

desse dos muros da casa nova . Deus abençoava- os vendo

os tão velhos e tão amigos, vivendo virtuosa e santa


mente , sem preguiça , com honra e muita caridade

porque , muitas vezes , pobresinhos que passavam , vendo

a casinha branca, de tão lindo aspecto , guardando, como


38 CONTOS ESCOLHIDOS

uma zagala , as vaccas e as ovelhas que pastavam nas

cercanias, subiam pela trilha estreita e, á sombra da

latada de maracujás , que á cozinha fazia um verde

alpendre , cheio sempre do ruflo das azas dos beijaflores

ou do zumbir monotono das abelhas , imploravam em

melopea triste: « Pelas santas chagas do Senhor dos Mar

tyrios, esmola , meu irmão , a um pobresinho ! » Não

desciam com o «Deus o favoreça ! » Romana sentava- os á

meza ou se, por vexame , preferiam ficar á sombra da

latada , lá lhes levava um prato cheio mostrando -lhes ,

com um gesto franco , os galhos das laranjeiras carrega


das.

Conhecendo a virtude das hervas e o prestigio das

rezas que sabia , para todos os males , desde o quebranto

das crianças até para ajudar a morrer, noite alta , não

raro , iam bater-lhe á porta, pedindo a sua presença junto

duma mulher em trabalho de parto ou de alguem que se

estorcia com os rins tomados ou com um ar e ella , paci

ente como uma freira , lá ia a pé , alumiando o caminho


com uma lanterna , a balbuciar orações para afugentar

as cobras e , á cabeceira dos moribundos , o vigario, mui


CONTOS ESCOLHIDOS 39

tas vezes , conversava com ella , pedindo - lhe um reme

dio para a sua erysipela rebelde .

Nada levava por essas misericordias , mas os pobres ,

logo que melhoravam, subiam á collina , como em roma

ria, levando gallinhas , leitões , frutos dos seus pomares ou

esmolas para o azeite da Virgem da Conceição .

Se acontecia ser alguem mordido de cobra , logo cor

ria gente á collina e Romana , chegando á porta da cozi

nha , estendia os braços na direcção do sitio em que se

achava a victima e ficava algum tempo hirta , extatica e

logo o coitado andava como se nada lhe houvesse succe

dido . Contavam até que , estando enferma , de cama , e sen

do procurada por Manuel Tiburcio , dos Cajueiros , para

benzer-lhe o gado comido de bicheira , animou- o dizen

do que -voltasse com fé porque São João já andava

curando os animaes .

Effectivamente , chegando á casa , Tiburcio ouviu dos

camaradas attonitos a narração do prodigio : « Que esta

vam pastoreando quando viram os bichos cahir, em mon

tes , deixando brocas immensas nas ancas , nas espaduas ,

nos ventres dos bois que , pacientemente, lambiam as


40 CONTOS ESCOLHIDOS

feridas ou , sacudindo as caudas , afugentavam as moscas

que voavam em enxames perseguindo - os . >>

Manuel Tiburcio foi grato - na mesma tarde mandou

á Romana uma vacca e o seu novilho , e frangos , além

duma esmola em prata para o azeite da santa .

Homem dalma ingenua , nascido e creado nos sertões

solitarios, sempre a ouvir, nas vigilias dos ranchos , nos

campos ou nos pousos das villas, lendas de espiritos mali

guos , casos estranhos de assombramento e de apparições,


vinganças dalmas , correrias de demonios ou de animaes
macabros ou beneficencias de velhos centenarios, que nos

rigorosos dias frios , batendo, á noite , á porta das cabanas ,

pediam lume e pão , tiritando , molhados, e que eram o

proprio Deus ou um santo da sua côrte que andavam

provando a piedade dos homens , Thomé Sahyra respei

tava, com terror supersticioso, todas as abusões e prati

cava a caridade , mais levado pelo receio do que pelo

coração, curvando - se muito , devoto e humilde , se lhe

chegava á porta estafado, faminto um velho caminheiro ,

desses que costumam trilhar vagarosamente as estradas


CONTOS ESCOLHIDOS 41

longas pela sombra fresca dos espinhaes, com um páu de

arrimo e um cão . Fartava- os e , quando os pobresinhos

gratos , de olhos altos , erguendo as mãos , imploravam do


ceu o premio para os bemfeitores , Thomé Sahyra bai

xava a cabeça como para receber contrito as mercês da

Altura e, vendo - os descer, lentos e satisfeitos, abenço

ando as arvores , de pé, num enlevo mystico , balbu

ciava, com enternecimento , á companheira:

-Quem sabe se não é Nosso Senhor, Romana ? ! E

ella , baixinho , espiando o pobre convinha :


-Póde muito bem ser que seja.

Se , á noitinha , da porta da casa , via uma estrella

cadente scindir o espaço , soerguia - se com respeito e

pronunciava sempre a phrase protectora : « Deus te


guie ! »; porque , na sua crença, era uma alma desgar

rada que procurava , afflicta , o caminho do ceu. Se lhe

chegava aos ouvidos a gargalhada da coruja , estreme

cendo , traçava no ar uma cruz ajuntando : « P'ra longe ,


agouro ! P'ra longe ! Credo ! >

A's sextas -feiras , dias aziagos , as codornas podiam

vir mariscar no terreiro , podiam as pacas e as cotias

devastar as roças, Sahyra deixava-se estar de braços


122
42 CONTOS ESCOLHIDOS

cruzados. Por nada, nem que lhe déssem todo o ouro

da terra, seria capaz de fazer uma morte em dias taes.

Mesmo nos outros , ás vezes , levando a arma á cara , se

The succedia ouvir um gemido no bosque : voz de rola

tristonha ou pio surdo de nambú , impressionado , baixava

a arma tirando presagios do canto d'ave mysteriosa , e a

caça abalava feliz, ganhando a tóca ou o ninho , sem que

Thomé ousasse perseguil-a. A' noite , no tempo dos gran

des ventos , os terrores do misero augmentavam .

Não raro , quasi a dormir , de olhos fechados , estre

mecia na cama e acordava a companheira, aterrado , tre

mulo : -<< Romana ! Romana ! Acorda ! » Ouvira o galope


desabrido de um animal lá fóra. Que seria !? Escuta , Ro

mana . Escuta ! E os dois , quedos, aconchegados, ficavam


attentos , balbuciando rezas . O estridor do vendaval cres

cia, o ramalhar das arvores estortegadas ia de mais em


mais . Escuta ! Escuta ! Nossa Senhora !

Romana, mais calma , tomando o rosario , saltava da

cama e , mesmo descalça , abrindo intrepidamente a ja

nella , soprava para a noite tragica palavras de exorcismo

e atiçava a lamparina que tremeluzia aos pés da Virgem

-E' vento ; está ventando, Thomé !


CONTOS ESCOLHIDOS 43

-Não , Romana , por Deus ! eu ouvi o galope de um

animal , como que subia e descia o caminho , chegando


até a beira do terreiro . Você estava dormindo . E enco

lhido , puxando os lençóes para o queixo, muito aconche

gado á companheira , Sahyra tiritava , mas sempre com o

ouvido á escuta , rezando mentalmente , invocando santos,

voltando - se na cama , falando para que a companheira


não adormecesse .

Emtanto ninguem o tinha em conta de covarde ,


até estranhavam que , tão entanguidinho como era , fôsse

capaz de fazer frente a homens como Silvino Péba , ne

gro de fama, atrevidaço e máu que , de uma feita , em

um mercado , para fazer rir e mostrar pulso, tentára sus


pendel - o pelo cós das calças. Thomé Sahyra , crespo e

agil como um maracajá , saltou atráz dois passos e

quando o negro avançou , viu que o « mirrado » apertava

na mão secca a faca aguçada e rangia os dentes, de olhos


accesos como uma féra acuada . Silvino riu e , desenro

lando o laço de couro crú que trazia á cinta , gritou que

ia derrubar o bicho . Fez - se um circulo . Os sertanejos ,

attrahidos pela luta do gigante e do anão , olhavam entre

risonhos e commovidos, em uma anciedade mal contida ,


44 CONTOS ESCOLHIDOS

emquanto o negro , vagaroso , paciente , dizendo graças ,

certo da victoria , ia desembaraçando o laço :


- Espera ahi , emperradinho . Você botou a unha

de fóra , mas eu vou - te buscar , filhote de jaguatirica .

Espera ahi , bicho . Então é você , mofino assim , que ha

de me tontear ? Onde é que se viu um homem ter medo

de móvitos ? Espera ahi , calunga . E emproado como


elle só...!

Thomé Sahyra , encantoado , esperava :


- - Vai-te embora, Silvino Você p'ra que ha de
.

inticar com quem está quieto ? Vai - te embora , rapaz .


Eu não sou homem de disputa ; deixa disso .

-Uè ! pois você não está arrotando valentia ? E o


negro avançou com arrogancia : Então bóta o ferro no

chão e pede perdão já , se não te caço ! Vamos : pede

perdão , seu setemez ! Sahyra , como se tivesse levado

uma bofetada , numa ira feroz , bramiu :

-Perdão !? Negro , você não me conhece ! E erguendo

tremulamente a faca que alumiava , bateu com o pé ,


bradando Perdão só a Deus Nosso Senhor , na hora da

agonia . Só a Deus Nosso Senhor , negro . E arquejou ,

oppresso.
CONTOS ESCOLHIDOS 45

- Então aguenta , seu tripa ! Derreando o corpo de

flanco , atirou o laço que se foi desenrolando num bote


certeiro sobre o caboclo . Houve um sussurro de applauso

entre os assistentes . Subito , porém , um grito partiu , e


o negro, agachando- se , com ambas as mãos no ventre ,

continha o sangue que jorrava de uma larga e profunda


ferida .

- Cão do diabo ! Esse mofino tem reza ! Esse mofino

tem reza ! E Silvino deixou - se cahir a um canto , gemendo ,

agarrando o ventre .

Acudiram todos , alguns com pena, outros com satis

facção cruel, applaudindo o salto agil de Sahyra , que


fugira ao laço e , lesto , num galão , cravára a faca no

valente escapando - se logo , a bom correr , matto dentro .


Silvino esteve mais dum mez sem poder mover- se , de

cama, e aos que o visitavam , dizia sempre , com terror :


<< O diabo tem reza . Pois eu não perco um garrano na

manada e havia de perder, a cinco passos, um diabo

daquelles ? Tem reza ».


Isso foi nas margens do S. Francisco donde Thomé

abalou fugindo á justiça e á vingança do negro mau .

Mas que terriveis noites passou, pungido pelo remorso ,


46 CONTOS ESCOLHIDOS

a ouvir sempre o grito agudissimo que o negro soltára

quando a faca se lhe enterrou no ventre . Sentia na mão

a tepidez do sangue que jorrára em gorgolões . Atirára

a um vallo a faca ensanguentada , parecia-lhe , emtanto ,

que ainda a trazia á cinta , via-a mesmo por vezes.

A' noite , seguindo as trilhas desertas , as grandes

sombras das arvores , ao pallido luar, tomavam fórmas

espectraes eram braços ameaçadores que o intimavam

a parar , vultos embuçados que avançavam em passos

subtis ; e gritos , rumores de vozes surdas , risinhos aba


fados ou lamentos doridos vindos do mais fundo da

brenha, ais ! que se prolongavam longamente . Se a besta

refugava fitando as orelhas , Thomé Sahyra , tiritando ,

persignava-se e bradava num vozeirão de apavorado :


«<< Perdoa , por Nossa Senhora d'Agonia , Silvino Péba !

Perdoa , creatura ! » Os grandes silencios atroavam . Só

teve paz no dia em que soube que o negro já andava

pelos campos de laço e vara como dantes .

Foi depois desse crime que Thomé Sahyra cahiu ,

pela primeira vez , no somno grande . Estava á porta da

casa , que era então um palhegal á beira do rio das Mor

tes, trançava um cabresto novo , quando sentiu uma nu


CONTOS ESCOLHIDOS 47

vem escurecer- lhe os olhos e uma ancia de morte no pei

to. Teve tempo apenas de chamar por Deus e rolou nas

pedras, batendo com a fronte na quina da soleira .

Romana acudiu logo , mas vendo o seu homem banba


do em sangue e prostrado , inerte , vacillou e teria cahido

sobre elle , se não se agarrasse á ombreira da porta ;


mas forte , reagindo , correu a tina , encheu uma cuia e

encharcou a cabeça do caboclo que , sem sentir a agua ,

continuava immovel , de bruços na terra que um fio de

sangue manchava.

A idéa de morte feriu logo o espirito de Romana ,

posto que uma tenue esperança lhe acorçoasse o animo :

« E' do choque . Coitado delle ! Como perdeu sangue !


Coitado delle ! » suspirava arrepanhando os cabellos , que

haviam rolado para as costas , negros e corredios .


Agachou-se e, com força d'homem , tomou - o nos bra

ços nervosos , levando - o para a cama , onde o deitou ,


despindo-o para friccional- o com uma infusão de hervas

e aguardente do Reino , que ella mesma preparára para

os casos de ataque .

Thomé Sahyra , dolhos mortos, molle , flaccido , não

dava signal de vida : o coração parecia parado e as extre


48 CONTOS ESCOLHIDOS

midades esfriavam , a pelle ia- se -lhe tornando livida ,

baça e engelhada , as orbitas cavavam-se, as maçans tor

navam- se a mais e mais salientes e a bocca, entreaberta ,


deixava vêr os dentes cerrados , negros do sarro do fumo ,

aguçados como os das féras .

-Nossa Senhora das Dôres ! como é que se morre

assim ! suspirava Romana afflicta , indo e vindo pela casa ,

sem saber que havia de fazer, aquecendo baêtas para o

ventre do enfermo , pondo -lhe aos pés botijas d'agua

quente . De quando em quando , um suspiro escapava

se-lhe com ancia e ella ficava vencida pelo desanimo , de

mãos cruzadas diante do leito, lacrimosa e calada, con

templando o companheiro .

Acendeu a lamparina da Virgem, fez promessas , ajo

elhou-se e orou devotamente , mas á tardinha , vendo que

o companheiro não despertava , traçou o chale e sahiu

para chamar alguem que ajudasse a acompanhar o morto


durante a noite.

Trancou a porta e foi - se , estrada abaixo , beirando o

rio tristonho, de margens mal assombradas, até á cabana

dum velho negro , entendido em curas.


CONTOS ESCOLHIDOS 49

Elle lá estava com o seu cachimbo , sentado á porta,

picando as aspas do urucungo .

Sexagenario, alto , magro , de intonsa barba branca ,

aspera como velha parasita reseccada num tronco, o

cabello duro e hirto , os olhos pequeninos , sanguineos ,

irrequietos nas orbitas fundas , a fronte curta , vincada , o

negro tinha o aspecto de um hamadryas , e cantava ao

som soturno do instrumento barbaro, emquanto as rolas


nos mattos piavam com tristeza sobre um resto de sol

que dourava as moutas .

Romana , ainda nova , com os seus olhos incompara

veis , negros e languidos como os das ovelhas , temia ,

como todas as mulheres , o velho pai de quimbande ,

luxurioso e atrevido , que vivia arredado na sua tóca


como um leão solitario , á espera de que lhe passasse ,

ao alcance da garra , a prèa descuidada .

Quando deu com elle esteve para voltar , tão feio lhe

pareceu o feiticeiro, com o peito nú, a cabeça baixa ,

sorumbatico , regougando o seu canto selvagem ; mas a

lembrança do companheiro , que talvez voltasse á vida


se o negro tomasse conta delle, deu-lhe animo . Passou a

cerca e parou diante do africano , ousada.


50 CONTOS ESCOLHIDOS

-Boa tarde, tio Adão .

O negro encolheu os hombros , ergueu a cabeça e

fitou-a , apertando os olhos , mastigando : -Eh ! Eh !

-Venho aqui móde vancê me acudir lá em casa .

Sahyra cahiu como morto e está que não dá acordo


de si.

O negro, coçando o queixo , piscava os olhos fuzilan


tes: -Eh ! Eh ! Cumu foi ?

-Estava arranjando um cabresto e , de repente,

rolou quebrando a cabeça no batente da porta . Eu acudi ,


mas já tarde , tio Adão . Não sei que é, só vancè vendo .
Já fiz tudo .

-Senta aqui , convidou o negro , afastando- se na so

leira da porta para dar lugar á rapariga . Bacorinhos sor

didos coinchavam no terreiro coberto de bagaços de

canna e cascas de laranjas e para as arvores voavam

gallinhas , empoleirando - se . Senta aqui ; bamo cunvêsá .

Bateu com o cachimbo na mão aberta , calcou o fumo e

tirou uma baforada . Senta ...

-Não posso , tio Adão ; tenho pressa .

-Entonce ocê não qué mi dizè cumu foi ? Senta , cria

tura . Eu não sou bicho nem tenho denti ; arreganhou a


CONTOS ESCOLHIDOS 51

boca mostrando as gengivas núas ; sorria bestialmente .

Senta ! E bateu na pedra com a mão espalmada , numa

irritação sensual , e logo , em movimento rapido , curvan

do-se, procurou agarrar a barra da saia da rapariga, que

recuou , franzindo a cara . Ah ! tola ! fez o negro amuado :


senta!

-Não posso . Vancê sabe que eu vim aqui por neces


sidade .

-Entonce qui tem , minha fia? Senta ...

-Não , tio Adão : sou séria . Vivo com um homem e

emquanto elle não me deixar , ninguem se gabará de

mim . Não sou quem vancê pensa . Se quer vir commigo ,


venha; se não e , encolhendo os hombros ...ha de ser o

que Deus quizer . E deu volta para sahir .

O negro ergueu-se a custo, ajudando- se com as mãos ,

a resmungar:

-Luxenta ! Mâ dêxa tá , disse pausadamente em tom


de ameaça, espalmando a mão no ar: raiz tá hi ... café

tá hi i , sapo inda canta n'aua . Quem póde tá li dent'o - e

apontou para a cabana escura . Eu vou , eu vou , mas o

dia ha de vi . Eu hei de vê uma pessoa vi chegando , vi

chegando, por seu pé cumu passarinho pr'a boca di cobra.


4
52 CONTOS ESCOLHIDOS

Sapo inda canta n'aua , sexta-feira é dia grande . E ria


perversamente , caminhando para a cabana.

Romana seguiu - o com os olhos brilhantes de colera .

Pouco depois o negro voltou com o cajado e uma com


buca e , de pé na soleira , bateu as palmas , assobiou e logo

um cão saltou dentre os mattos, contente , rebolindo-se .

<< Bamo ! » E , sorrindo , murmurando , deu volta á chave .


Foram os dois caminhando de vagar ao longo da

margem merencorea do rio . A tarde morria em tons sua

vissimos de violete e perola , a nevoa baixava accumu

lando - se nos cimos dos outeiros , esgarçando-se em oure

las alvas nas bases das collinas , espalhando - se pelos

campos disseminadamente em ilhotas , brancas como

nucleos de algodão , flutuando ao sopro da brisa cre

puscular.
Esfriava; rôlas turturinavam e codornas , com um

trillo alegre , abalavam das hervas rasteiras em vôo

direito , fugindo . O cão ia de focinho rente á terra , aba


nando a cauda no farejo da caça . Longe , bois mugiam .

Iam os dois calados , Romana á frente , quando , ao

chegarem a uma pinguela sobre um fervedouro , o negro


estacou :
CONTOS ESCOLHIDOS 53

-Pára ahi que eu não enxergo ; dá cá a mão . O cão,

que passara ligeiro , latia na outra margem, agachando

se sobre as mãos, avançando , recuando . Escurecia , a

noite vinha rapida . Não enxergo , disse o negro insistindo

e sondando o caminho com o cajado .

-Se vancê quer me dê a ponta do cajado que eu

vou guiando e vancê passa.

-Entonce bâmo sim. E Romana tomou uma das

extremidades do grosseiro bordão e foi levando o feiti

ceiro como se conduzisse um cégo .

Corujas piavam nos cêpos , vagalumes sahiam da rel

va faiscando , grillos cantavam e os sapos , em coaxar

constante , pareciam malhar em bigornas . Ultimas cigar

ras da tarde , já recolhidas , ciciavam e curiangús , piando,

saltavam no caminho , sempre adiante dos dois , voando ,

pousando , ganhando os galhos se o cão investia com


elles .

-Bâmo divagá que eu não enxergo nada , rapariga .

-Eu tenho pressa , tio Adão , e já é noite fechada .

-Móde isso mêmu , bâmo divagá ; não enxergo nada


i não tô p'ra dá uma topada por ahi.
54 CONTOS ESCOLHIDOS

-Ora , vamcê conhece esses caminhos todos ...Anda

de noite que nem caboré .

-Só na sexta -feira pruquê tenho candeia accesa

p'ra mi alumiá . Sexta-feira é dia grande .

-Tambem agora já estamos perto . E Romana ,

erguendo os olhos ao ceu , apprehensiva , suspirou : Ai !

minha Virgem Mãi de Deus !


-Ocê inda tá amuada commigo? perguntou o negro

enternecendo a voz .

-Não , tio Adão , mas vamos falar de outra coisa.

-Ma quem é qui sabe ?

-Eu , tio Adão . Basta que eu saiba . Então vamcê


pensa que a gente não tem consciencia ? Deus me livre !

com um homem morto em casa ... O negro, arregalando

os olhos , num assomo de inspirado , avançou para a ra

pariga lésto , agarrou - a pelo braço :

-E si elle ficá bom , Romana !? E si eu curá elle ?

fala ! e fitava - a , corcoveado , com os olhos humidos de

volupia. Ella estremeceu aterrada .

No campo deserto apenas as nevoas moviam-se ; mui

to longe, a luz de uma cabana ; o ceu estrellava - se . Ella

correu os olhos pela vastidão em busca de soccorro, mas


CONTOS ESCOLHIDOS 55

desanimada, quasi , a chorar, fitou o feiticeiro , repetindo


timida e airadamente as suas palavras :

-Se elle ficar bom ...

-Fala! rosnou o negro acocorando - se , apertando - lhe


o braço . Houve um silencio tétrico . Fala !

-Pois sim , balbuciou Romana com ancia .


-Jura !

-Juro !

-Por Deus Nosso Senhor ! Ella hesitou um instante ,

torcendo as franjas do châle , de olhos baixos.

-Jura, rapariga !

-Por Deus Nosso Senhor , disse em voz sumida .

-Bâmo ... ! E o negro passou á frente ligeiro , quasi

a correr , saltando e resmungando ; o cão precedia - o la

tindo . Já perto da cabana , á beira do rio que rosnava , o

negro voltou-se com um dedo hirto: Oia lá, Romana !

-Vamos , tio Adão .

-Se elle ficá bom , Romana ... Ocê jurô ... Mas

um grito surprendeu - os , um appello demorado atraves


sando o silencio dos campos : « Rooomaana ! » Pararam os

dois , aterrados ; o cão tambem, como em assombramento ,

de orelhas duras , olhava . « Rooomaana» !


56 CONTOS ESCOLHIDOS

-Uê ! fez o negro pasmado.

-E' Thomé ! disse a cabocla numa grande alegria.

Ah ! meu Deus ! Ia correr, mas o negro agarrou - a forte

mente , e com voz surda e tremula, poz - se a dizer :

-Ocê jurô ! Ocê jurô , Romana ...

-O que, tio Adão ?

-Se elle ficasse bom , Romana ...

De novo a voz longinqua bradou : « Rooomaana ! » O

negro , irritado , agarrava-se á rapariga:

-Oia , assumpta : é elle , tá curado só cuma reza que

eu fiz lá em casa ao santo . Ocê jurô , Romana. Deus cas

tiga ! A cabocla resistia ; o negro , porém , era forte e sub

jugava - a , passando-lhe um braço pela cinta , apertando- a

muito , e ia para abafar- lhe a boca quando ella , arremet

tendo , cravou-lhe os dentes no pulso e agarrou- lhe a

cabeça com ambas as mãos , repellindo - o :

-Sahe , diabo ! Sahe ! O negro , louco de dôr , levou o

pulso á boca e poz - se a lamber a ferida ; Romana , inde

cisa, compunha o chále .

-Deixa eu ir- me embora, tio Adão . « Rooomaana !


Ôoooh ! »
--Vail Ma ocê jurô , disse o negro com tranquili
CONTOS ESCOLHIDOS 57

dade , chupando , de instante a instante , a ferida . Vai !

mas oia, Romana: atraz dum sol vem outro sempre .

Deixa tá, o santo qui curou elle tá lá em casa e uviu o

que ocê disse , juradeira di farso . Vai lá p'ro teu homem .

Sapo canta naua.

Tomada de panico Romana gritou nervosamente :


-Thomé !

O negro fitou- a sorrindo e repetiu com maldade :

-Eu hei di vê uma pessoa vi chegando , vi chegando

por seu pé como passarinho p'ra boca de cobra ...


-Pois sim ! disse a cabocla e deitou a correr, dei

xando o negro parado no vassoural , confundindo-se com

a noite que baixava .

Já longe ouviu ainda : -Ocê jurô ...

Ainda á distancia Romana avistou a luz da choça e

viu a silueta do companheiro á porta mal alumiada pela


chamma escassa da candeia de azeite .

-Rooomana !

-Eh ! Thomé ! estou aqui . Precipitou-se e, effusiva

mente , commovidos , abraçaram-se os dois . Então que

foi isso , meu velho , que foi isso ? Porque você se levan

tou? E, enternecida, amparando- o , foi levando - o para o


58 CONTOS ESCOLHIDOS

quarto sombrio . Thomé sorvia o ar a grandes haustos ,

tremiam-lhe as pernas e, fraco , deixou - se cahir sentado


no catre , que rangeu . Romana foi buscar a candeia e

pousou-a no chão . O enfermo , prostrado, encolhido ,

enterrára a cabeça no peito e arquejava .

-Ah! Romana, que horror ! Eu não sei que foi que

senti de repente : nem que me tivessem dado uma bordo

ada nas fontes ; os olhos ficaram logo escuros e me subiu

uma coisa pela garganta , que eu nem pude mais gritar .

Mas que horror , minha velha, que horror ! Vi e ouvi

tudo que você fez : queria falar não podia ; queria me

mexer e parecia que eu tinha as pernas e os braços num

tronco ; no peito era um peso que nem sei .


-E dôr ?

-Quasi não doia, só a cabeça doia um pouco , mas a

afflicção ! ... Eu via e ouvia tudo , tudo, tudo , tudo : a

casa , você; ouvia o barulho lá de fóra , tudo ; mas parecia


que eu tinha uma teia diante dos olhos.

-E eu que fiz ?
-Primeiro você chorou , não foi ? depois me agarron

e me levou p'ra cama. Ah ! Romana, que pena eu tive de

você, coitada! Depois você me despiu e me esfregou o


CONTOS ESCOLHIDOS 59

corpo com uma agua , poz não sei que nos meus pés e

começon a chamar por mim , primeiro baixinho , muito

perto dos meus olhos, e eu estava vendo ; depois , deses

perada , com as mãos na cabeça, gritando , e eu estava

ouvindo sem poder falar, Romana , sem poder fazer nada.


Ah ! minha velha , que desesperação !

E depois ? indagou Romana , com anciedade .


-Você sahiu um instantinho , andou pela casa , soprou

o fogo; eu estava ouvindo tudo . Depois você veiu outra

vez e ficou com as mãos na cama, debruçada , olhando

p'ra mim.

-Que foi que eu disse ?


-Você disse : Minha Nossa Senhora! » não foi ?

-Não me lembro bem; parece que foi ...

-Eu estava vendo e ouvindo tudo. Depois você sahiu

e fiquei sósinho , tremendo de medo . Que medo ! Romana .

Quiz gritar, que força que eu fiz , minha velha , arran

cando por dentro , mas qual ! Duma feita , você estava na

sala , me pareceu que eu tinha soltado um grito muito

grande ; eu ouvi , mas foi illusão porque você estava ahi

pertinho , e, se tivesse ouvido , tinha corrido logo p'ra

junto de mim .
60 CONTOS ESCOLHIDOS

- De certo . Mas não ouvi nada , você nem bolia com

os olhos e estava todo frio . Thomé Sahyra , com voz

pausada, continuou , sem levantar a cabeça , olhando a


chamma da candeia :

- Fiquei sosinho . Ouvio rangido da chave na fecha


dura e depois só os grillos cantando lá fóra no campo .

Ah ! minha velha , que medo ! Fiquei falando commigo ,

por dentro : << Se eu não dou acordo de mim elles são

capazes de me mandar p'ra cova » .


-Nossa Senhora ! exclamou Romana, aterrada.
-
Mas você pensava mesmo que eu estava morto ,

não pensava ?
- Pensava?

-Ah ! minha velha ! ... Eu falava por dentro : « Se

elles me enterram, meu Deus ! ...» Era só nisso que eu

pensava. Que afflicção ! Parecia até que já estavam ati

rando terra em cima de mim. Eu sentia o peso , sentia a

friagem, sentia o abafamento. Estremeceu e persignou-se :


-Nossa Senhora !

-Nossa Senhora ! disse , por sua vez , Romana.


Houve uma grande pausa .

Thomé, d'olhos parados , meditava . Um fio de fumo ,


CONTOS ESCOLHIDOS 61

negro e tremulo , subia do morrão da candeia ; fitas de

luar entravam pelas frinchas do adobe dos muros .

-Se você não sarasse tão depressa eu era mesmo

capaz de deixar que enterrassem você .

-Misericordia , Romana !

-Mas que culpa eu tinha ? você estava como morto ,


Thomé .

- E' verdade : tal e qual !

-Nunca vi ataque assim


-Tambem não .
-
- Você já tinha tido ?
―――
Nunca, foi hoje a primeira vez . Minha mãi , que

Deus lhe fale nalma ! tambem , ás vezes , ficava desacor

dada muito tempo . De uma feita levou mais de meio- dia

sem dar signal de vida, mas ella, coitada ! era doente ...

e bebia . Mas eu , Romana , que sempre fui forte ...

Calou - se e, lentamente , erguendo a cabeça , disse

com terror: Isto é coisa feita , Romana; isto é coisa


feita . Nunca vi molestia assim. E como se soffre ! basta

a idéa da gente ir p'r'o fundo da terra , viva . Que morte

anciada que deve ser , Nossa Senhora ! que morte ago

niada, pouco a pouco ... A gente ouvindo os baques da


62 CONTOS ESCOLHIDOS

terra, sentindo o peso e a terra entrando pela boca, pelos

olhos , pelo nariz , abafando e a gente sem poder dizer

nada , amordaçado , amarrado ... Virgem do ceu ! que

morte agoniada ! E eu sentia tudo , tudo ! Quando o


vento sacudia a porta eu tremia por dentro e falava no

coração : « Ahi vêm elles me buscar para o enterro . Ahi

vêm elles , minha Mãi do ceu ! » e rezava , forcejando


para gritar, mas qual ! Podiam muito bem me ter levado

para o cemiterio , ainda foi Deus quem me valeu . Mas

ninguem me tira isso da cabeça , Romana : para mim é

coisa feita e foi Silvino Peba quem mandou . Aquillo é

negro de máus bofes , é negro que não perdoa .


-- Qual , Thomé , isso é molestia . Deixa estar , você

fica bom , descança . Você não está com fome ?

-Não , sêde só, muita sêde : estou com a garganta

secca ... até parece que tive febre . Passou as mãos

pelos olhos: Mas que horror ! uma creatura ser enterrada


viva. E nervoso : Mas eu ás vezes me mexia na cama ...
- Você ?! nem com um dedo .

-
- Que horror !

-Não pensa mais nisso ; você já está bom, passou .

E Romana foi ao pote encher a bilha e trouxe-a, e, com


no
CONTOS ESCOLHIDOS 63

a mão em concha junto ao queixo do caboclo para


aparar as gottas que pingavam , deu-lhe a beber. Sahyra

resfolegou e deitou-se estirando -se.

Só tenho medo que volte , Deus me livre !

-Não volta , descança . E' você não pensar mais


nisso: foi um ataque , passou .

Mas eu estou tão molle ainda ... nem que tivesse

feito um estirão a pé . As pernas doem tanto ! Estou com

a cabeça oca e zonza ... que coisa ! E você onde foi ,

Romana , quando sahiu daqui ?


-
Fui por ahi , batendo o mundo , á cata de alguem e
só achei tio Adão .

- Porque elle não veiu? Quem sabe se elle me cura,

Romana? Elle sabe tanto remedio para essas coisas ...

-Qual ! o que elle sabe é ser sem vergonha ; é um negro


muito adiantado ! Curar tambem eu sei ; ninguem enten

dia mais de curas do que mamãi . Aquelle negro perren

gue, com aquella cara de santo , é um descarado como

não ha outro . Pois eu fui lá afflicta pedir a elle que

viesse commigo para te vêr e o diabo do macaco bichento

em vez de me acompanhar pôz-se com dengues , todo


babão.
64 CONTOS ESCOLHIDOS

Com você, Romana ?

Commigo , sim . Eu é porque sou dura , senão elle


tinha feito muito bem o que queria no caminho , porque

é atrevido que nem o diabo . Agora a culpa não é delle ,

é dessas relaxadas que andam por ahi. Dão confiança ...

-Elle veiu com você ? e Thomé Sahyra erguia- se

a pouco e pouco , com os olhos brilhantes , fitando a

cabocla .

- Veiu até o redomoinho . Ali ouvimos a tua voz e

eu escapuli correndo . Aquelle negro precisa de uma


lição para tomar emenda .

-Eu vou lá , Romana .

-Não vale a pena . Deixa estar que elle ha de achar.

Pensa que todo mundo tem medo de mandingas . Romana


passou á sala resmungando . O vento fóra fazia farfalhar

o arvoredo .

-Não me deixa sósinho , Romana. Espera um instante

aqui .
-Já vou, meu velho ; estou fazendo alguma coisa

para comer, porque hoje ainda não puz nada na boca;

estou com o café que tomei de manhan .


CONTOS ESCOLHIDOS 65

-Ah! minha velha , estou com tanto frio . Está


fazendo frio ?
― Pouco .

-Então é da molestia.

- E' , mas isso passa . Isso é coisa de nada .

- Vem deitar. Que é que você tem ainda que fazer ?

Já vou ; é um instantinho só . O fogo crepitava na

sala e Thomé , as mãos cruzadas no peito , deixou - se , de


novo , escorregar esticando-se no catre , dolhos no tecto

por onde as gambás corriam, mettendo-se por entre as

palhas . Pensava na morte horrorosa pela asphyxia numa

cova, com os bichos molles da terra . Seguia imaginaria

mente o seu enterro , campo afóra , até o cercado do

cemiterio ; via os sertanejos descobertos , com os chapéus

atirados para as costas , descalços , levando o caixão e

elle dentro , immovel , impotente , indo vivo para o


tumulo , a ouvir a alegre barulhada dos passaros nos

ramos , o murmurio fresco das aguas , a voz do gado solto

nos pastos , a cantilena dos campeiros , todo o bulicio

alegre da vida forte no esplendor do dia azul , cheio de

sol , morno e affagante .

-Romana , pelo bem que você me quer, não me


66 CONTOS ESCOLHIDOS

deixa sósinho ; eu estou doente . A cabocla, com a boca

cheia, correu para o quarto levando o prato .


- Estou aqui , meu velho . Acocorou-se a um canto e ,

enfeixando os dedos , poz-se a amassar o pirão dagua

fria. Um gato rajado entrou miando , corcoveando , num

espreguiçamento nervoso : - Toma, Calunga ! e atirou

uma fébra de carne que o bichano abocanhou enco


lhendo- se a um canto , a mastigar . Agora , sim , meu

velho , estou descançada . Olha que você me fez passar

um dia que só Deus sabe ! Num lugar como este , onde


não ha doutor , que é que a gente ha de fazer ? Aqui só

a Providencia Divina . Agora sim, vou dormir com o

meu espirito tranquillo ; e suspirou . Encostou-se á parede

com os braços repousados nos joelhos, as mãos pendentes.

E quando você acordou , Sahyra , como foi ?

-Parecia que eu tinha bebido uma coisa quente ,

começou assim : um calor por dentro ; depois uma dor

mencia em todo o corpo , tal qual como se um bando de

formigas passeiasse por cima de mim , e comecei a sentir

dores nas pernas , nos braços , no peito , muito ardor nos

olhos e abri a boca como se tivesse acordado. Que

allivio !
CONTOS ESCOLHIDOS 67

- E você levantou logo ?


--Não ; as pernas estavam esquecidas . Sentei na

cama e fiquei muito tempo apatetado , sem me lembrar

de nada . Depois chamei por você , chamei muito e foi


então que me levantei. Já estava escurecendo . Accendi

a candeia, apanhei um páu e sahi para a porta , onde


você me achou . Estou ainda com máu gosto na boca e

muito peso no estomago : parece que comi um boi ; e

somno, muito somno , nem parece que estive esse tempo


todo dormindo .

- Você não esteve dormindo ...

- E' verdade . Depois duma pausa , continuou : Se


fosse só a molestia ... Meu medo é ser enterrado vivo .

Que horror ir um homem p'ra baixo da terra com todos

os seus sentidos ... Mas agora você já sabe .


- De certo .

Eu cahindo outra vez assim é esperar, porque o

mal passa.

-De certo. Agora já sei .

Meu medo era só da cova, porque o soffrimento

não é tão grande assim , é mais a afflicção . Querer falar

e não poder ...


m
68 CONTOS ESCOLHIDOS

- Que horror !

- Você não pode imaginar que é , Romana .

-
- Faço idéa . O gato avançou de novo miando .
Romana repelliu-o :

- Sahe , Calunga; agora não tem mais . Vai procurar
gambá , seu mollenga . E' só dormir e encher o buxo ,

preguiça ... Ah !

-Então , eu tendo outra vez isso , você já sabe ...


-Já sei; descança .

- Vem deitar então .

-Já vou; Sahiu para lavar as mãos , trancou as

portas, dizendo da sala : Está uma noite muito bonita , e ,

alteando a voz : Olha que eu fiz uma promessa á Nossa

Senhora de você mandar fazer um oratorio para ella , se

ficasse bom, ouviu ?


- Sim ; eu mando , disse de dentro o enfermo ; mas

vem deitar.

Romana abafou o fogo com cinza e caminhou para o

quarto desatando a saia. Em camisa , descalça , diante

da imagem da Virgem, que a lamparina alumiava , fez


devotamente a sua oração , espevitou o pavio da marca

e deitou-se atirando os braços morenos ao pescoço do


CONTOS ESCOLHIDOS 69

caboclo que se encolhia e, com um arrepio, tremula

mente , fazendo- se pequenirfa , muito aconchegada ao

homem , disse :

-Nossa Senhora ! Deus me livre de perder o meu

caboclo tão bom. A candeia crepitava no chão e o gato

ia e vinha pelo quarto , miando .

- Você quer que apague a luz ?

Não , deixa ; assim é melhor. Houve um grande

silencio. Ouvia- se , muito de longe , o correr dagua . Mas

Sahyra suspirou .
- Que horror, meu Deus !

- Ah ! não pensa mais nisso : passou , vamos dormir.

E abraçaram -se apertadamente .


1
00000000

II

Annos tranquillos passaram e, se alguma coisa pertur


bava a vida correntia e serena dessas creaturas acon

chegadas , que envelheciam juntas , dentro do mesmo lar ,

aquecendo-se á mesma brasa nos friissimos invernos ,

cruzando lentamente , dentro do mesmo raio de sol , as

trilhas quando alumiavam tepidamente os campos os

grandes dias de verão , era a idéa insistente de Thomé

Sahyra , o medo de ser levado vivo á terra , a preoccu

pação obcecante da morte no aperto duma cova fria ,


calcada e tumida .

Como se receiasse os lugares em que pousava, não se

estabelecia definitivamente em sitio algum, a pretexto de


72 CONTOS ESCOLHIDOS

febres ou de frios intensos . O seu gosto era andar em

vida errante de campo em campo , de villa em villa, com

o carro atochado de moveis , as cabras berrando presas

aos fueiros , as gallinhas nas capoeiras de palha e os cães

pacientes, atrellados , seguindo o passo moroso das juntas


de bois , á sombra , por baixo do carro . Elle mesmo , com

a vara em punho , guiava o gado e a companheira , sob a

coberta de esteira, encolhida , com a almofada ao collo ,

ia atirando os bilros , cruzando as linhas do crivo ; e lá

iam , ao acaso , ao sol , ás estrellas , como ciganos .

Foi Romana quem decidiu o estabelecimento nessa

encosta agreste , queixando-se de fadiga : que já não

resistia áquellas viagens e , velhos como estavam , ambos

embranquecendo e enrugando , careciam de repouso para

trabalhar, fazendo alguma coisa que lhes garantisse os

dias futuros , quando , enfraquecidos pelos annos , não


resistissem mais á canceira da enxada . Viviam a traba

lhar para os outros , deixando sementeiras por onde

passavam sem nunca terem visto a flôr de uma só planta ,

sempre em mudanças , abandonando as cabanas que

edificavam , as hortas que acanteiravam.

Tinham alguma coisa que lhes ficára da vida longa


CONTOS ESCOLHIDOS 73

de trabalho e de economia , podiam arranjar um canto


onde ficassem repousados , accumulando para o tempo

da velhice, e foi a instancias da companheira que o

caboclo resolveu arranchar- se no sitio abrigado , á

sombra da collina, substituindo, pouco a pouco, os esteios

da primitiva cabana pelos reforçados troncos que fôra

lenhar na matta, rijos bastante para sustentarem o


telhado e resistirem á intemperie .

Sahyra, numa grande actividade, não se contentava

com o trabalho de cesteiro - trançava esteiras , redes de

palha , chapéus ; de manhan e á tardinha , á fresca , ia

correr a roça, com a enxada , e , no tempo das queimadas

fecundas , elle mesmo ateiava o fogo ás velhas palhas

dos milhos , preparando o terreno para a nova semente .

Romana , com a sua grande almofada ao collo, sen

tada á porta , fazia crivo . Os bilros atirados pelos seus

dedos ageis trillavam entrechocando- se e , no silencio


das horas de maior calma , quando os passaros reco

lhiam aos ninhos , arquejando , e as brisas cahiam dei


xando immoveis as ramas , á luz intensa , coruscante ,

do sol a pino , ella , com a sua voz afinada e meiga ,


entoava trovas sertanejas e o caboclo , entretecendo as
74 CONTOS ESCOLHIDOS

palhas , repetia o canto , num dueto triste , cheio de

melancolia .

A criação prosperava : ninhadas piavam e as gali

nhas , ciscando nos montes de palha de café , cacarejavam

chamando os pintainhos ; ranchos de bácoros , coinxando ,

seguiam, ás grotas de inhames , as grandes porcas de

mamas flaccidas , e , pelas lombadas verdes da collina ,


bois e vaccas , cabras e carneiros , subiam passo a passo ,

pastando .

Os maiores lucros do casal vinham das orações mila

grosas e dos conhecimentos de Romana em curas de

molestias más ; eram mais os presentes que os productos

da terra domestica que abasteciam a dispensa. E assim

viviam, com fartura , tranquillos , estimados de todos

pela muita caridade que praticavam desinteressada


mente .

Romana não só curava os enfermos como lhes for

necia os remedios . Ella mesma escolhia as hervas ,

catava- as, triturava - as, fazia as garrafadas , muitas das

quaes , para ganharem força e virtude , demoravam

semanas atoladas na terra humida das margens dos

pantanos ou nos areiaes mais expostos ao sol . Se eram


CONTOS ESCOLHIDOS 75

pobres os doentes ella ainda lhes dava a dieta - um

frango , uma quarta de arroz , a farinha sessada , o assucar

branco e , junto dos mortos, nas vigilias funebres , era

ella quem tirava as rezas , pondo á cabeceira do defunto.

uma vasilha com agua benta e um ramo de alecrim para


as aspersões .

Ninguem vestia um anjo como ella e tinha tal poder

que , de uma feita , morrendo um pastor no campo , ful

minado pelo raio , ficou com os olhos baços immensa

mente escancarados , resistindo a todas as tentativas , e

ella , chegando , impoz os dedos sobre as palpebras ,

dizendo , por tres vezes , lentamente , imperativamente :


-
« Fecha os olhos , Raymundo ! Fecha os olhos , Ray
mundo ! Fecha os olhos , Raymundo » e as palpebras ,

pouco a pouco , foram baixando , cerrando - se , como se

o morto houvesse escutado a intimação da rezadeira .


<< Santa creatura ! » diziam na villa. << Essa está com

a alma no ceu » . E era rara a casa onde ella não tinha

um afilhado , quasi sempre nascido nas suas mãos , e ,

com todos, bondosamente , repartia as suas sobras - uma

camisola a um , uma vara de chita a outro , não contando


76 CONTOS ESCOLHIDOS

o que lhes dava em moedas quando elles , saltando as

cercas , sahiam ao seu encontro pedindo a benção .

Thomé Sahyra , ás vezes , em meio do trabalho ,

pendia a cabeça sobre o peito , num grande abatimento

e, d'olhos parados , os braços em abandono , ficava com

o espirito em inercia, numa estagnação de hypnose ,

sem idéa , sem sentimento , como se uma nuvem densa

The passasse pela alma, escurecendo-a. Pouco a pouco ,

porem , desfazendo - se a sombra interior , elle recahia

soffredoramente na idéa sinistra do enterro . Erguia a

cabeça , passava a mão pelos olhos , buscava uma dis

tração em torno : nos pintainhos que corriam , nas for

migas que desfilavam por uma fita de caminho , carre


gando folhas .

Tudo quanto lhe despertava a idéa de morte

enchia-lhe o coração dum pavor indominavel . Cami

nhando , evitava certa picada que margeava o outeiro ,

preferindo ir por elle acima cançadamente , vagarosa

mente , ao sol , magoando os pés no pedregulho , só para


não dar com os olhos num cruzeiro tosco cravado entre

pedras , sobre as quaes havia ainda tocos de velas e

pastas de sebo , á sombra dum ranchinho de palha , mar


CONTOS ESCOLHIDOS 77

cando a sepultura dum assassinado . Fugia de vêl- a

desde que , uma tarde, passando perto , descobriu a terra

fendida, revolta, e veiu - lhe o pensamento de que a

victima, mal ferida , podia ter recobrado os sentidos e

lutára desesperadamente, forcejando para sahir da cova

profunda sobre a qual pesavam grandes pedras e


troncos .

Ia pelo outeiro evitando o caminho do morto e

quando , no alto , passava á distancia que julgava coin

cidir com o sitio do enterramento , na base , rezava

baixinho pela salvação da alma do que se finára em

peccado , aggredido á noite, traiçoeiramente , e derru

bado pela garrucha do assassino .

De casa não arredava um passo sem dizer á Romana

para onde ia ao mercado , á roça , á horta , á matta ;


mesmo ao curral , perto de casa, não subia sem avisar :

< Estou aqui , Romana . Vou ali , minha velha » , para

que, se se demorasse , a companheira o fosse procurar ,

sempre trabalhado pelo pensamento de ser accommettido

da molestia, que nem tempo lhe dava para gritar .

Uma noite , recolhiam-se os dois , Sahyra trancava a


casa, quando ouviram chamar : « -Nhá Romana »> !
78 CONTOS ESCOLHIDOS

Elle deu volta á taramella e , entreabrindo a porta , mer

gulhou a vista na noite negra cheia de faiscas de vaga


lumes :

- Quem é ?

-Sou eu , Firmino , do Pary ; venho pedir á nhá


Romana para ir ver Petronilha , que está com as dôres .

E a figura do homem , á luz vacillante da candeia , des

tacou- se da sombra , perto da porta, num largo e com

prido casaco de baêta , grande chapéu de palha de

abas molles e derreadas , cajado em punho . Os cães

rosnavam surdamente . « Eh ! Boca- negra, sahe ! Sahe ,

Frecha!» bradou Thomé ; e , abrindo a porta , convidou :

-Entra, Firmino . Era um mulato alto e grosso ,

barbado. Romana , mal o viu , interrogou- o :

-Começou agora , Firmino ?

-Não , senhora, nhá Romana ; ella está soffrendo

desde de tardinha . Eu quiz vir aqui em cima chamar

vamcê, mas ella disse que não esperava para hoje , que

podia ser um rebate falso , e não deixou . A' boca da

noite a dôr augmentou , ella nem poude comer e está


lá se torcendo . Eu até tenho medo que a criança nasça

sem ninguem. Vamcê sabe como Petronilha é medrosa


CONTOS ESCOLHIDOS 79

para essas coisas ; só quer vamcê. Tia Justa está lá em

casa, mas, coitada ! quasi não enxerga e fica tão ataran

tada que atrapalha mais do que ajuda . Vim por ahi


voando . Vamcê vem ?

-Como não ? Vou botar um chale e sigo já.

-Ah ! nhá Romana ... que trabalho !

-Qual trabalho ! Já no quarto pediu informações


minuciosas : se ella sentia dôres nas cadeiras, se o ventre

havia descido , se já havia signal . Firmino ia responden

do . Thomé Sahyra , calado , passeiava pela sala , nervoso ,

chupando com força o cachimbo . Firmino perguntou pela


roça: como ia; e falou da sua: que tinha enfeitado muito

com as chuvas. O caboclo , porém, mal o ouvia e , repen

tinamente , numa decisão subita, entrou no quarto onde

Romana, á luz de uma vela de sebo, acocorada diante

de uma canastra, revolvia pannos .

-Você vai passar a noite lá , Romana ? perguntou

timidamente , e ella sem voltar- se:

-Eu sei ?! se fôr preciso que é que hei de fazer ?


-E eu ?

-Ue ?!

-Hei de ficar sósinho ?


80 CONTOS ESCOLHIDOS

-Uma noite, Thomé ...

-Você sabe que , com a minha molestia , eu não

posso ficar sem uma pessoa em casa.


-Mas que é que eu hei de faze ? Hei de deix
r ar

uma criatura morrer sósinha , sem soccorro ? Não faço

isso , não , Thomé . Que medo tem você aqui ?


—Não é medo de nada: é da molestia.

-Ora , deixa disso . A molestia foi uma vez , você


nunca mais teve .

-Mas posso ter ...

-Logo hoje , então ?! Levantou a cabeça e fitou - o :

Por isso é que você não dorme direito . Tira essa idéa

da cabeça, homem de Deus. Ergueu - se , traçou o chále ,

embrulhou os pannos , tomou a lanterna e sahiu para a

sala, embiocada . Thomé acompanhou-a calado .

-Vamos , Firmino . O mulato levantou - se :

-Estou prompto , nhá Romana.

—Até já .

-Boa noite !

Sahyra resmungou e os dois partiram . Da janella

elle acompanhava o raio de luz que ia farejando o cami

nho salteadamente, ora aqui , ora ali , e ouvia a conversa


CONTOS ESCOLHIDOS 81

dos dois , até que sumiram entre as arvores . Os cães


ladravam de espaço a espaço.

A noite, de uma imperturbada serenidade , era negra ;

rarissimas estrellas luziam, pequeninas , tremulas ; nos


campos, porém , enxames de vagalumes scintillavam .

Por vezes, com um sopro mais rijo dos ventos , o arvo


redo farfalhava com furia e o frio augmentava . Sahyra ,

habituando os olhos á treva, via as arvores mais pro

ximas , quietas , adormecidas no silencio e na escuri

dade , e a massa compacta e sombria da matta , na altura


da collina, confundindo - se com o ceu negro .

Grillos cantavam e sapos , ao longe , nos charcos ,

em resmoneio continuo , quebravam a quietação da hora.

Regelado , sentia as palpebras pesadas , os olhos ardidos.

de somno , mas não se atrevia a fechar a janella , te


mendo o leito , na solidão do quarto , que a lamparina

da Virgem alumiava . Um mugido surdo , longo , passou

no ar taciturno ; Sahyra abriu os olhos e devassou a

sombra, com pavor.

Subitamente um toc - toc perto , bem perto e um

gemido fino . Elle firmou - se , os braços estendidos , as

mãos agarradas ao peitoril da janella , olhando fixa


82 CONTOS ESCOLHIDOS

mente , com o coração sobresaltado e , de novo , ouviu

o toc- toc abafado , depois o rosnar dum cão.

-Boca negra ! Frecha ! aqui ! chamou afflicto. Os mat

tos farfalharam e dois cães surgiram no terreiro , ga

nindo , atirando - se á janella, aos arrancos . Elle sentiu

um grande allivio vendo os animaes ; festejou -os com

palavras , derreou-se na janella, para lhes affagar a ca

beça , e elles lambiam-lhe as mãos soffregamente , ganin

do , ladrando , investindo aos pulos .-< Deita ahi ! Deita

ahi ! » dizia procurando prendel -os perto para que o

acompanhassem, guardando a casa . Outro mugido reso


ou, depois o balido duma ovelha .

Os cães , contentes , rolavam na terra rosnando , brin

cando ; mordiam- se , deixavam-se cahir com um baque

surdo, e Thomé , entretido , olhava - os perdendo - os de


vista quando partiam numa corrida desatinada circu

lando a casa , atropellando- se ás dentadas no terreiro .


<< Deita ahi ! Deita ahi ! » Os cães olhavam acenando

festivamente com a cauda , mas voltavam ao brinquedo .

O frio tornava-se a mais e mais intenso : elle sentia o

rosto gelado , os dentes entrechocavam-se e o vento ,

invadindo a sala , levantava a chamma do lampião e ,


CONTOS ESCOLHIDOS 83

pelas sombras , na parede , elle via que a lamparina tre

mia, em risco de apagar- se a uma lufada mais forte.

Vagarosamente encostou a janella , mas ficou parado ,

sem animo de arredar-se , num receio indefinivel , lançan


do os olhos aos cantos da casa, ao tecto , desconfiado .

Caminhou , por fim, em passos subtis , foi até o quarto ,

espiou o leito , de alvos lençóes lisos , com o cobertor

dobrado aos pés. Lá estava a Virgem, muito meiga ,

sobre o globo , pisando com o seu pequenino pé descalço

a cabeça da serpente contorcida, que cercava a esphera


azul e estrellada com os anneis do seu corpo maligno .

Estava assim absorvido nessa contemplação mystica

quando uma rajada impetuosa escancarou a janella ,

levando- a de encontro á parede com estrepito . Thomé


estremeceu , accenderam- se-lhe os olhos desmedida

mente abertos , os cabellos se lhe eriçaram . Pé ante pé ,

depois de anciosa demora , á espera , veiu á sala ;

o coração batia-lhe com força , perto da boca , aberta e

secca, Viu a janella escancarada, sentiu o vento frio

que entrava espichando a chamma do lampião que enfu

maçava o vidro , já negro .


Quedou- se aterrado ; de repente , em dois gritos , cha
6
84 CONTOS ESCOLHIDOS

mou os cães : -Frecha ! Boca-negra ! e , ouvindo os gani

dos , animou-se , foi á janella . Os cães , de pé , com as

patas na parede , procuravam formar o pulo ; vendo - o ,

assanharam -se mais , e com pequenos uivos , pediam -lhe

que os recebesse, raspavam a parede ; elle então resol

veu dar- lhes entrada: abriu a porta e logo os dois esta

banadamente precipitaram -se , atirando-se -lhe ás pernas ,

rodando em torno delle , farejando - o . Affagou - os e ria

com elles quando o gato , que acordára com o rumor,

sahiu do quarto lentamente , corcoveado , miando .

Sentou- se ; os cães , arquejando , estiraram- se-lhe aos

pés e o gato saltou para a meza , procurando affago , a

esfregar- se- lhe voluptuosamente no braço , todo arrepi

do . Cabeceando de somno , Sahyra mal fechava os olhos,

logo os abria, espantado . Intimamente revoltava - se con

tra Romana- « que cuidava mais dos outros do que

delle » e pôz-se a falar só , amuado :

« Sabe que sou um homem doente sahe me deixan

do sósinho . E se eu tiver alguma coisa, que Deus tal

não permitta ? Se eu fosse um homem forte , de saúde ,

ainda bem , mas assim ... E aqui , sem recurso . Se eu

tiver alguma coisa quem ha de vir me acudir ?» Voltou


CONTOS ESCOLHIDOS 85

os olhos para a janella que estalava . « O melhor é tomar

uma pessoa que cuide de mim. Se eu fosse outro homem ,

como muitos que conheço por ahi , não haviam de fazer

assim commigo ... E' sempre assim . Agora , para qual


quer coisa , é nhá Romana ; nhá Romana é p'ra tudo . Eu

queria ver se eu estivesse de cama . » Levantou - se res

mungando , foi á janella , abriu - a . A lua , em minguante ,

apontava, muito pallida , entre nuvens grossas .

Cravou os cotovellos na janella e , com o rosto nas

mãos , ficou a olhar o ceu , falando como se mandasse

uma queixa ao astro lento e nevado que o olhava d'alto :

-Mato-me aqui de dia e de noite trabalhando para

ter descanço e é isto . « Que é que ella ganha com essas

coisas ? doenças , cabellos brancos e , ainda por cima, falam

que é feiticeira. Bem que eu sei . Na frente muita coisa ,

mas eu bem sei o que é que si diz por ahi á boca pe

quena. E que não vá , como se ella tivesse obrigação , para

ver só como lhe cahem em cima com pragas . Ninguem


quer saber se é velha , se está doente - é nhá Romana

p'r'aqui , nhá Romana p'r'ali, com sol, com chuva , de


noite. »

Calou - se, com os olhos fitos num ponto , impressio


86 CONTOS ESCOLHIDOS

nado com um ruido que ouvira , um leve farfalhar como

de folhas seccas pisadas . Ariscamente , sahindo do matto,

um vulto veiu chegando de vagarinho , de rasto , como


sondando o caminho . « Uai ! murmurou baixinho o cabo

clo-querem ver que é porco ... ? » Olhava , d'olhos

apertados, attentando curiosamente -o vulto avançava

timido , parando á espreita . « Porco não é , parece mais

paca ... » De repente bradou : « Passa ! e , rapido , com

um secco estrépito , o animal desappareceu no matto .

Thomé bocejou , fazendo com o pollegar uma cruz diante

da boca aberta e fechou a janella disposto a deitar - se:

chamou os cães e caminhou para o quarto .

De pé, ia despir o casaco de brim, mas hesitou ,

baixando os braços , os olhos na Virgem . Os cães fareja

vam os cantos , mettiam-se por baixo da cama , iam e

vinham como á procura dum rasto . Thomé encheu o

cachimbo , accendeu-o e sentou -se no beiral da cama,

fumando , sem animo de deitar- se . Uma camisa de Ro

mana , pendurada á parede , movia-se lentamente . Elle

esteve muito tempo com os olhos nella , distrahido por

um pensamento . Subito levantou-se , abriu uma gaveta,

remexeu e tirou uma faca , resguardada por uma bainha


CONTOS ESCOLHIDOS 87

de couro crú; desembainhou-a . A' luz da lamparina exa

minou as duas faces da lamina polida , experimentou o

gume e a ponta na palma da mão , e escondeu- a depois


debaixo do travesseiro , deitando-se, então, vestido , sobre

os lençóes lisos , com os dois cães defronte , olhando - o .

O somno venceu-o ; mas, um dos cães , coçando - se,


acordou-o sobresaltado com o toc-toc no soalho . Sen

tou- se ás pressas , esgazeado, attonito correndo os olhos

pelo quarto , e o animal , como se comprehendesse a sua

culpa, aproximou-se humildemente do leito , agachado ,

rastejando ; Thomé repelliu-o , atirando -lhe ponta - pés :

«Sahe, Boca-negra ? Sahe ! »


O cão afastou-se humilde e a cadella acompanhou-o .

A lamparina crepitava . « Que horas serão , meu Deus ?! »

Levantou-se , passou á sala e viu o vidro do lampeão

tisnado e partido . Procurou o gato attribuindo- lhe o


incidente , mas o bichano , enroscado , a um canto sobre

um monte de palhas , dormia . « Foi ar , com certeza » ,


disse. O vento, fóra , soprava com furia . Descerrou a
-――
janella era ainda noite negra , a lua ia alta no ceu .

E Romana que não apparecia ! Debruçou-se e pôz- se a


cantarolar baixinho uma modinha do sertão . Subitas
88 CONTOS ESCOLHIDOS

pancadas estalaram perto e um gallo cantou demorada

mente, outro respondeu , numa voz mais vibrante e

alegre . Sahyra respirou alliviado - era a manhan que

vinha , Abriu a porta, enxotou os cães : « Passa fóra ! »

Sahiram os dois atropelladamente .

-Já agora...! suspirou fechando , de novo , a janella .

Sentia fome , tomou a candeia de folha , accendeu-a e

foi á cozinha , não sem receio , lançando olhares á direita


e á esquerda .

Um ruido precipite , como se amarrotassem papel ,


fel-o deter-se um momento , hesitante . « Passa ! »
> bradou

e, como voltasse o silencio , penetrou a cozinha de terra


e de telha van.

Dos caibros , negros da fuligem, pendiam cordas com

ganchos para as linguiças , para o lombo ; num bambú


atravessado estava a manta de carne . A' luz fraca e

tremula da candeia bailavam nos muros sombras extra

vagantes .

Thomé Sahyra , diante do fogão de barro , acoco


rou-se , puxou uma acha e soprou-a -- -a cinza voou e a

braza appareceu mortiça . Foi á prateleira , retirou um

boião, sacudiu e , sentindo , no sacolejo, que tinha alguma


CONTOS ESCOLHIDOS 89

coisa , pousou- o na chapa e pôz- se a atiçar o fogo . As


brasas reaccenderam-se e , emquanto o café aquecia, foi

vêr a caneca, o assucareiro e um pedaço de rosca no

armario. Prompto o café veiu saboreal- o na sala pas


seiando .

Os gallos cantavam de novo anunciando a alvorada .

Abriu a porta e , diante do ceu livido , embaceado , onde

as estrellas minguadas esmoreciam , bocejou alto esti


rando os braços .

A nevoa flutuava quasi ao rés da terra , fugindo

brandamente ao sopro fresco da brisa ; passaros piavam

e, dos ramos , das folhas das arvores molhadas , gotta a

gotta, lentamente, o orvalho pingava. Os cães rondavam

a porta. Thomé sahiu para o terreiro aspirando, a plenos

pulmões , o ar purissimo e frio , contente com a luz que

vinha apparecendo no ceu vermelho que se desanuviava.

Mugiam os bois lembrando -se para que os soltassem . E

elle foi subindo vagarosamente , caminho do cercado,

abriu a porteira e tocou os animaes : quatro bois , um


bezerrote e a vacca pesada , com o ventre enorme, os

ubres pojados . Cabras e carneiros sahiram em lóte e ,

conhecendo o caminho do pasto , subiram a collina a cor


90 CONTOS ESCOLHIDOS

rer, atravéz da herva humida e cheirosa , espantando as

rôlas que voavam ruflando as azas .


Pôz-se a olhar os animaes com enternecimento , mas ,

tornando á casa, tomou a chave do paiol , encheu uma

medida de milho e , pipiricando ás aves , pôz-se a atirar


mancheias de grãos . Surgiram , de todos os cantos , cor

rendo , voando das arvores , gallinhas , frangos, ninhadas

de pintainhos, patos e os gallos , debicando , raspando a


terra, cacarejavam chamando as retardatarias .

O ceu , dourado e sanguineo , illuminava - se . Já os

montes longinquos tinham uma bruma amarella , a luz

estendia - se pelos campos , vinha chegando rapida até


que o astro enorme , fulgurante , assomou no mais alto da

serra, alumiando a paizagem larga , orvalhada diamanti

namente. Um cheiro acre de capim misturava-se com o

perfume suavissimo das açucenas abertas e, pela estrada ,

larga e branca , onde ainda não chegára o sol , sob a

frescura dos ramos inclinados , uma tropa de mulas des


filava com um alegre tinir de campainhas.

Thomé procurava no terreiro um sitio de repouso ,

mas o orvalho havia molhado o banco e as pedras ,

as arvores gottejavam ainda. Recolheu-se então , abriu


CONTOS ESCOLHIDOS 91

todas as janellas , apagou o lampeão que esmorecia e dei


tou-se . O sol estendeu-se-lhe pela cama aquecendo - a

e dourando-a e, quando Romana appareceu , encontrou-o

pesadamente adormecido sem sentir o sol que lhe dava


em cheio no rosto . « Eh ! Eh ! Thomé ! »

Elle acordou estremunhado , sentou-se tonto , fechan

do os olhos , esfregando - os , offuscado pela grande luz ;


- « Que não
vendo - a, porém , queixou - se mollemente : -<<<

dormira um minuto durante a noite ; estava que não

podia. E ella , suspirando , contou - lhe os trabalhos que

tivera com Petronilha : « que perdera as forças e só de

manhansinha conseguira ter a criança , um meninão que

parecia de mez, grande e forte . Deixára tudo prompto e

ia encostar um pouco a cabeça » . Elle levantou- se espre

guiçando -se e Romana, vendo-o sahir, perguntou :


-Onde vai você ?
――― Botar alguma coisa no fogo . Você está cançada ;

dorme .
-
- Ora deita , já fiz tudo . Você pensa que cheguei

agora ? mas riu , dizendo logo , a desabotoar o paletó :

Justa veiu commigo , está ahi , ella arranja tudo , dorme .

Fechando a janella pôz o quarto em penumbra somno


92 CONTOS ESCOLHIDOS

lenta e , em camisa , deitou- se . Thomé bocejava , moido .

Esteve algum tempo quieto , estirado , os olhos no tecto,

mas, não podendo conciliar o somno , levantou-se e

sahiu . Romana dormia profundamente , encolhida , as


pernas núas .

Os terrores de Thomé Sahyra cresciam com o avan

çar do tempo . Mal permittia á Romana que o deixasse

um instante , sempre desconfiado , a ouvir falas , com


superstições e agouros , tremendo se um bezouro atra

vessava a sala zumbindo , se um beija-flôr estonteado

entrava no quarto , se rôlas vinham cantar no telhado ,


se os cães uivavam á noite . Quando o ceu ennegrecia,

carregado de nuvens tormentosas , subia para a cama ,


embrulhava- se no cobertor, balbuciando , tremente ,

orações contra o raio . Romana irritava-se :


-
Você está perdendo o juizo , homem de Deus !
Que coisa ! E' só pensando na morte. Nem que eu tivesse

empenho em te enterrar vivo . Até parece caduquice .

Pois olha eu sou mais velha do que você e a minha

cabeça está direita , graças a Deus.

Quando os trovões retumbavam , elle , em voz baixa


CONTOS ESCOLHIDOS 93

e surda, pedia á Romana que enxo tasse os cães , não

queria um só perto de casa porque attrahiam aquillo ;

não dizia « raio » receioso de que o fogo do ceu acudisse

ao nome ; tremia ao estrepito das descargas electri

cas e só descançava quando os aguaceiros jorravam


copiosamente e as trovoadas , distanciando-se , ensurde

ciam num rumor de carros rodando ao longe , sobre

pontes.

Ia para os sessenta annos ; alquebrado e enfermo ,

pedia insistentemente, com humildade, um padre : queria


confessar-se e commungar, tinha medo de morrer em

peccado , e , do mais fundo da sua mocidade , vinha - lhe

sempre a lembrança sinistra do crime : a facada que

déra no negro Silvino Peba , na feira .


- Vamos num domingo á igreja , Romana ; não custa .

A gente sahe daqui de manhansinha, de vagar , e volta


antes do meio dia .

- Pois sim, concordava a companheira : mas , che

gado o dia, elle era o primeiro a queixar-se de dôres ,

fraqueza nas pernas . O melhor era pedir ao vigario que

o fosse ver , elle nem podia andar , cançava logo .

Tinha , ás vezes , crises de choro á mesa , na cama , e ,


94 CONTOS ESCOLHIDOS

ás consolações de Romana , respondia desalentado : « que

estava perdido , sentia tantas dôres pelo corpo , tamanha

fraqueza. Ah ! Romana , minha velha , mas não é da

morte que eu tenho medo, não é da morte , você bem


sabe. »
-
- Que coisa , homem . Você parece que desconfia de

mim ! E elle , acabrunhado :


-
A gente saber que vai para uma cova vivo, meu

Deus ! Antes acabar na ponta de uma faca...


-- Já você começa ...

- Mas é verdade , minha velha . E' porque você não

sabe. Eu digo do coração : antes acabar na ponta duma

faca. Discutiam e Romana, para distrahil- o, punha- se a

falar do que haviam de fazer na roça , e elle , suspirando ,

maguadamente : « Ai ! que nem para limpar um cafe

eiro tinha forças ; os braços já não podiam. »

Effectivamente a plantação abandonada murchava

ao sol, a herva de passarinho agarrava-se mortalmente

aos ramos , o matto crescia viçoso nos canteiros da horta ,

no cafesal, invadindo a leira . Já no terreiro apontavam

rebentos de vassourinha e carqueja e o joá espinhoso ,

com os seus frutos de ouro , nascia encostado aos muros


CONTOS ESCOLHIDOS 95

da casa. Romana ainda cuidava das laranjeiras mais pro

ximas , mas não se sentia com animo de trabalhar de

enxada na terra dura , reseccada pelas soalheiras .

Thomé, sentado tristemente no banco do terreiro ,

lançava os olhos pela terra em torno , meneando a cabeça

branca num grande desanimo , á vista da ruina do seu

trabalho . A herva brava reivindicava o seu antigo ter

reno, como se as raizes houvessem ficado , durante o

longo prazo dos annos ferteis , quietas , adormecidas ,

alheias ao appello do sol , á espera do momento oppor

tuno de sahirem a flux invadindo , palmo a palmo , o

alqueive abandonado.

Os milhos, já mortos , pendiam resequidos , o feijoal


sumira, as aboboreiras ainda lutavam alastrando acima

dos arbustos , com exuberancia , num desespero de vida ,

adherindo á leva agreste que vinha matando as semen

teiras . O gado pastava sobre os canteiros da horta, trans


formada em capinzal .

Romana propoz uma manhan a venda dos bois e dos

carneiros que envelheciam sem utilidade , destruindo - lhes

os cercados, fatigando-a quando se embrenhavam pela

matta, forçando - a a ir buscal-os nos caminhos intrin


96 CONTOS ESCOLHIDOS

cados onde as juremas , ouriçadas de espinhos , lhe ras

gavam a carne e as roupas. Thomé deu de hombros ,


indifferente :

Que vendesse . Assim como assim , se haviam de

morrer ou de fugir. Que vendesse . E , um a um , partiram

todos os animaes , antigos companheiros, deixando em

silencio a varzea e deserta a encosta da collina , onde os

dois velhos já se haviam habituado a vel- os pastando ao

sol , muito juntos . Ficaram apenas as cabras , os cães e as


aves que reproduziam.

A saudade do trabalho levava, ás vezes , Thomé Sa

hyra a tecer um chapéu , um cesto ; raramente , porém ,

rematava a obra cahindo em prostração , a suspirar , os

olhos perdidos . Romana , já sem vista para trabalhos deli


cados , esquecera a sua almofada de crivo e dedicava- se

inteiramente ao preparo de remedios , catando hervas nos

montes , á beira dagua, nas grotas , cavando raizes e


tuberculos e , como as suas queixas suspiradas davam a

perceber a pobreza em que vivia, os que a procuravam

retribuiam com dinheiro , mézinhas e rezas . « Não se

nhora , nhá Romana , vamcê precisa . Justiça é justiça,

vamcê trabalha , é natural » . E ella , bondosamente , sem


CONTOS ESCOLHIDOS 97

fazer preço , recebia o que lhe davam em dinheiro , em


presentes , e ia accumulando como se antevisse futuros

dias de miseria e doença , com o companheiro prostrado ,

incapaz de um esforço , buscando o sol , calado e taciturno.

Junho frio e tempestuoso entrara . Thomé Sahyra ,

tiritando , agachado diante da brasa , as mãos abertas ,

estendidas acima do lume , batia os dentes ; Romana ,

arrastando os passos , com uma perna enorme , tomada

pela erysipela , cuidava da casa , e os dias , regelados e

sombrios, passavam monotonamente , desoladamente ,

quando , uma noite , zunindo fóra os ventos , ella acordou ,


violentamente agarrada na coxa pelos dedos crispados

de Thomé Sahyra.

A luz da lamparina bruxoleava ; ella voltou- se rápida

no leito, sentou - se assustada e , á meia claridade , enca

rando o companheiro , perguntou :

-Que é isso ?

Mas vendo-o de olhos dilatados , a boca aberta, o

rosto contrahido , arquejando , pôz- se a chamal - o , sobre


saltada :

-Thomé ! Thomé ! Que é que você está sentindo ?


98 CONTOS ESCOLHIDOS

Elle abriu a boca , agitou a cabeça no travesseiro e ,

rolando os olhos com ancia , firmando- se na cabeça ,

empinando o ventre , procurando-a com um olhar sup

plice, batendo os beiços, grugrulejou , com a lingua flac

cida e tropega , tartareios soprados , balofos , procurando

levantar o braço , que lhe cahia impotente e molle . Os

dedos , contrahindo - se , arrepanhavam os lençóes .


Romana , aterrada , saltou da cama descalça e, para

ver melhor, accendeu uma véla , indo precipitadamente

para junto do enfermo. Dando com a luz , Thomé Sahyra


abriu escancelladamente os olhos cheios de pavor e

entrou a sacudir-se na cama com ancia, emittindo , aos

arrancos, um ahn ahn ! de choro, e o movel , como se

com elle gemesse , rangia . Os ventos impelliam as portas

e sopravam fóra com um uivo dolorido e longo de mati

lha damnada . « Thomé ! Thomé ! »

Elle olhava fixamente , a boca aberta, e ella , compre

hendendo o grande soffrimento que elle não podia expri

mir, tolhido como estava , inclinou - se , abraçou- o e


falando -lhe com ternura :

-Deixa estar... deixa estar ... já sei que é , meu

velho . E elle , sempre a gemer agoniadamente , balan


CONTOS ESCOLHIDOS 99

çando a cabeça : « ahn ! ahn ! ahn ! » Mas os movimentos

foram retardando ; cerrou os dentes , sempre de olhos

abertos , os braços estendidos ao longo do corpo.

Romana ficou a contemplal- o e , baixinho , como se

falasse á sua propria alma , dizia :

-Ah ! meu Deus ! que molestia ! Que molestia , coi

tado ! Bem que elle desconfiava . Já o julgava quieto ,

cahido em torpor , quando Sahyra sacudiu-se todo , num

estremeção , com um gargarejo aspero , e quedou . As

palpebras foram baixando lentamente ; fecharam - se . Ro

mana , de pé , olhos fitos , assistia , múda , á scena tragica ,

mas as lagrimas subiram-lhe em borbotão aos olhos e,

para que o companheiro não a visse chorar , soprou a

vela e o quarto voltou á penumbra . Sentou-se á beira da

cama, carinhosamente , levantou os pés de Sahyra, em

brulhou-os no cobertor , cobriu - o com o seu chale , endi

reitou-lhe a cabeça no travesseiro , olhou - o ainda uma

vez e sahiu para a sala , pé ante pé , suspirando .

O gato ia e vinha pela casa, miando baixo ; as bate

gas de chuva ruflavam nas janellas e na matta as

arvores , abaladas pela ventania , enchiam a noite dum


estrondoso rumor.
- 100 CONTOS ESCOLHIDOS

-Ah ! minha santa Virgem do ceu , pelas chagas de

Vosso amado Filho , fazei com que elle melhore depressa .

E, na porta do quarto , de modo que o companheiro não

a visse , foi ajoelhando lentamente , os braços abertos nos

umbraes e , de mãos postas, fitando de longe a Concei


ção , que resplandecia no seu oratorio , illuminada pela

lamparina , pediu : Minha Santissima Virgem , pelas


Vossas sete dôres , pelas Vossas lagrimas , pelo Vosso

padecimento no Calvario , tende piedade de nós ! Fazei

com que elle melhore e eu, Santa Mãi de Deus , mesmo

sem vista como estou, prometto bordar um manto para


os Vossos sagrados hombros.

As lagrimas escorriam-lhe grossas pela face e ella , a

cabeça derreada , os cabellos brancos desfeitos , voando

em falripas , calou -se aterrada vendo , na parede do

quarto, a sua grande sombra tremula , na postura devota

da prece em que estava . Levantou-se lentamente , pre

occupada com Thomé , para que não ficasse impressio

nado e , querendo animal- o , contendo os soluços , entrou

no quarto , dizendo alto , para que elle ouvisse e descan

çasse : Coitado do meu velho ! Coitado ! Deus permitta


CONTOS ESCOLHIDOS 101

que isto passe até amanhan . Ha de passar , serhɔ fé na

Virgem . Inclinou - se , beijou - o na fronte gelada .

Vibrantemente , atravéz da zoada do vento na grande

noite tormentosa , um gallo bateu azas e cantou .


!
III

Fôra- se a noite tempestuosa . Os ventos haviam

cahido, uma chuva fina molhava os campos . Os montes

longinquos sombreavam em tons apagados , como atravéz


da lamina de um vidro fosco . O frio era grande .

Romana, sentada á mesa, o rosto nas mãos magras ,

fitava os olhos no soalho pensando em Thomé que dormia

o grande somno , hirto e frio como um cadaver. Ardia

ainda, livida e mortiça , a candeia de folha posto que ,

pelas frinchas da porta , já entrasse uma claridade baça.

Duas botijas cheias dagua quente aqueciam os pés rege

lados do caboclo, duas outras esquentavam-lhe os flancos ,

só o rosto apparecia macilento, cavado , entre lenções e


104 CONTOS ESCOLHIDOS

cobertores com que Romana lhe cobrira o corpo . De


quando em quando , em pontas de pés, ella entrava no

quarto, á espreita : ficava um instante parada , enterne

cida , diante do leito , e falava, como se elle podesse


ouvil- a .

- Pobre do meu caboclo , coitado ! Vejam só que

molestia, meu Deus ! E logo agora , com esse tempo tão

frio , sem um bocado de sol. Beijava o carinhosamente ,

sentindo a frialdade da fronte , mettia de vagar a mão

por baixo das cobertas , para sentir a temperatura do

corpo ; era fria de gelo , apenas os lugares attingidos

pelas botijas tinham um calor forte : junto ás costellas ,

nas plantas dos pés ; mas o ventre tumido , as pernas

seccas, o peito cavado estavam frios , como de pedra ,


apezar das cobertas . Ah ! meu Deus ! como está gelado !
Que é que eu hei de fazer ? Tambem está tão frio , de

mais a mais com esta chuva que não cessa . Pensou em

accender um foguinho no quarto e , resoluta , foi á

cozinha, trouxe um velho tacho , encheu-o de gravetos

e, junto da cama, ateiou o lume .

A fumaça , subindo da lenha que ella , ajoelhada, so

prava, ia invadindo o aposento abafado , tornando o ar


CONTOS ESCOLHIDOS 105

denso , irrespiravel, asphyxiante ; ella ergueu-se tossindo

suffocada e entreabriu a janella para que o fumo sahisse.

A luz da manhan , sem brilho , alumiou crepuscular

mente o aposento -a cabeça de Thomé Sahyra , afun


dada no travesseiro , ficou á sombra das cobertas , immo
vel .

-Coitado ! essa fumaça póde até incommodal - o . A

lenha crepitava, uma chamma viva e alegre levantou- se

e o fumo ficou reduzido a um filete que fugia pela fresta

da janella por onde , de vez em vez, em lufadas, entrava

o ar gelado dos campos .

Apezar da fogueirinha , Romana sentia mais frio no

quarto

-Ora ! de que serve isto se o vento entra pela ja

nella ? só faz encher o quarto de fumaça, não vejo mu

dança nenhuma . Tomou o tacho pelas alças e levou - o .

Na sala poz - se a suspirar: Ah ! meu Deus ! pois não ha

de haver um remedio para uma coisa assim ? Ha de uma


creatura ficar uma noite inteira e uma manhan estendida

na cama, como morta, sem comer nem beber e a gente,

de braços cruzados , sem poder fazer nada ? Se aqui hou

vesse um doutor ... mas quem ? Pôz - se a varrer a casa,


106 CONTOS ESCOLHIDOS

abriu a porta e , diante do terreiro encharcado, apoian

do-se ao cabo da vassoura, sem sentir a chuva miuda

que lhe fustigava o rosto, ficou de pé , d'olhos ao longe ,

nas arvores da matta , reluzentes dagua . As gallinhas,


molhadas, friorentas , acolhiam-se junto da casa , tiritando ;
os cães sacudiam- se fazendo espirrar a agua do pello .

Nem um passaro no ar, como se todos houvessem mor

rido durante a terrivel noite de aguaceiro e vento .

Suspirou por fim , num desabafo , e , encostando a

vassoura a um canto, foi á cozinha fazer fogo , aprovei

tando as brasas do tacho que fumegava no meio da sala .

As gallinhas e os cães entraram , procurando acon

chego e calor e Romana , com pena , deixou - os , enxotan

do - os para a cozinha para que não sujassem o soalho da

sala e lá espalhou o milho atirou o angú aos cães e poz

se a socar o café emquanto a agua fervia.

Interrompeu-se um momento : parecera - lhe ter ou

vido a voz de Thomé, muito fraca, chamando- a . Prestou

attenção : uma cabra berrava na collina de instante a


instante e os cães rosnavam defendendo os seus qui

nhões : -<< Fica quieto, Boca - negra ! » Pôz- se de novo

a socar o café , mas com a attenção voltada para o quar


CONTOS ESCOLHIDOS 107

to , á espera de novo appello e , repentinamente , deci

dindo - se , sahiu , pé ante pé , e foi espiar o adormecido .

Thomé continuava immovel, sob as cobertas em

monte. Chamou - o , falando - lhe muito perto do rosto :


-Meu velho ! Thomé ? Você me chamou ? Ficou á

espera-debalde : o caboclo mantinha-se immovel , hirto

e frio . Desanimada , encolhendo os hombros , sahiu do

quarto . Qual ! desta vez parece que ainda é peior.

Nem signal ! A agua fervia aos borbotões .

Feito o café , Romana sentou -se desalentada e esteve

largo tempo com a caneca na mão , como esquecida ,

sem sorver um góle , a olhar vagamente , meneando com

a cabeça de vez em vez , a acompanhar o pensamento ;

por fim , suspirando , pôz - se a beber o café , lentamente ,

distrahida . Ha de ser o que Deus quizer ! suspirou . Já fiz

tudo que estava nas minhas mãos .... agora ... Lem

brou-se de esfregar o corpo do companheiro com uma

infusão forte de gengibre, mas prevaleceu a idéa das

botijas e , pensando nellas , ergueu -se : E' verdade , a agua

já deve estar morna . Encheu uma grande chaleira e

foi-se ao quarto: o corpo continuava gelado. Ah ! meu

Deus , não esquenta... Não sei mais que hei de fazer. E


108 CONTOS ESCOLHIDOS

o dia passou em angustiosa espectativa . Ao menor ruido

Romana corria ao quarto , espiava , curvando- se sobre

o companheiro , apalpava - o : -Qual !

A' noite , estendeu a esteira aos pés do leito , deitou


se, mas tão preoccupada que, de instante a instante ,

acordando em sobresalto , lançava os olhos á cama ; uma


vez, soerguendo- se, perguntou : « Que é ? » mas Thomé

continuava rigido.

Amanhecia; raios de sol conseguiram atravessar as

nuvens pesadas que forravam o ceu ; passaros surgiam

cantando e os montes , lavados , muito azues , destaca

vam-se fortemente da paizagem raza , dum verde fresco

e alegre de hervas novas .

-Agora, sim, póde ser que elle melhore com o sol,

coitado ! O dia, porém , passou em esperança e com os


mesmos cuidados .

Já parecia resignada posto que , de momento a mo

mento , parando em meio da casa , deixasse escapar uma

phrase de duvida terrivel: « Mas ... tanto tempo assim ... !

da outra vez não levou um dia , num instante ficou bom .

Que coisa ! » Mas cuidava do serviço , sahia ao terreiro ,


CONTOS ESCOLHIDOS 109

não se distanciando para poder ouvir o chamado de

Thomé quando elle acordasse.

Eram já passados quatro dias quando Romana , en

trando no quarto , de manhan , para substituir as botijas,


notou certa humidade no corpo de Thomé Sahyra e
parou examinando as mãos , espantada.

-Uê ! parece que elle está suando . E é suor mesmo ,

coitado ! Quem sabe se elle não está para acordar ?!


Como os dias eram de sol ella attribuia ao bom calor

vital o renascimento das forças e o degelo do sangue nas

veias . Ficou em grande alegria e mais redobrou os

cuidados . Se eu pudesse arranjar alguma coisa para


esquentar mais elle ... Para mim elle ainda está assim

por causa do frio . Mas que é que eu hei de fazer ? não

tenho mais nada para botar em cima delle .

Apezar da certeza de que elle despertaria nesse dia,

a noite estrellou-se sem que Thomé fizesse o mais leve

movimento no leito. Romana deitou -se e , em camisa ,

com o seu rosario , fazia a oração diante da imagem da

Virgem, quando sentiu um cheiro estranho de coisa

azeda ; pôz- se a farejar voltando a cabeça dum lado

para outro , aos fungos:


110 CONTOS ESCOLHIDOS

- -Que
é que está cheirando assim que nem coisa

podre !? Franzia o nariz , dilatava as narinas : Isso não

passa de arte de Boca-negra que trouxe algum bicho

morto aqui p'ra dentro . Ajoelhou - se na esteira, espiou

debaixo da cama , sempre fungando , a murmurar contra


o cão: Bicho damnado ! Foi elle ! Por fim deitou -se . Mas

o cheiro impunha - se, insupportavel . Cobriu a cabeça ,

nem assim pôde conciliar o somno e levantou- se mur

murando contra os cães : Ah ! pestes ! vejam só ... Nem

se póde dormir com um fedor assim . Amanhan vocès me

pagam .

Tomou a candeia : vagarosamente , pacientemente ,

pôz -se a examinar os cantos da casa , espiando debaixo


dos moveis, sem nada descobrir . Tornou ao quarto e , de

pé na esteira, farejando , disse : E' aqui ... Diabos ! deitou

se, mas só pela manhan conseguiu adormecer, cançada.

Logo ao despertar, abriu todas as portas e janellas ao

sol e, canto por canto , com cuidado, percorreu a casa á

procura do animal podre que os cães haviam trazido dos

mattos . Na sala parou um instante , d'olhos levantados :

-Quem sabe se não morreu algum bicho debaixo da

casa ? Mas como é que eu hei de dar com elle ? Seja tudo
CONTOS ESCOLHIDOS 111

pelo amor de Deus ! Resignada, encheu um texto de

brasas, espalhou sobre ellas alfazema e assucar e andou


pela casa defumando-a. Feito isto , foi cuidar de Thomé .

-Ainda não , hein , meu velho ? falou enternecida á

beira do leito . O quarto , fechado , estava escuro e humido


e o fortum tornava-se mais nojento . Romana , entretanto ,

não parecia sentil- o . Curvou - se e puxava as cobertas

quando um enxame de moscas voejou , levantando-se do

rosto de Thomé . Ella enxotou- as , primeiro com a mão ,

mas os insectos , zumbindo , voavam por perto , voltando

logo a assentar. Tomou , então , uma toalha e poz- se a

sacudil- as, pensando leval-as até a porta , mas quando

tornou ao leito já as moscas lá estavam . Enfureceu - se ,

abriu uma gaveta e , tirando um lenço , estendeu-o sobre

o rosto do adormecido . Depois , mergulhando as mãos

por baixo das cobertas , procurou as botijas , mas retirou


os dedos apressadamente :

-Huê ! Querem vêr que estão vasando ? Que agua é

essa ? Sentia os dedos peganhentos , viscosos, como mo

lhados em gomma . Instintivamente cheirou-os , bufando ,

enjoada com o mau cheiro que exhalavam. Então ! era

coisa podre que estava nas botijas . Eu bem dizia .


112 CONTOS ESCOLHIDOS

Cuspiu e pôz-se a retiral-as todas , com pressa, indif

ferente á humidade que ia encontrando , e punha- as no

chão , perto da cama , uma a uma .

-Eu bem dizia que o cheiro era aqui . Eu bem dizia.


Foi bicho que entrou nellas... estavam abertas. A exha

lação tornava - se mais forte , sahia em grandes bafos de

baixo das cobertas . Romana levou as botijas do quarto ,

atirando-as, pela janella , ao terreiro . A casa tresandava ,

apezar da briza purissima que a arejava sem descon


tinuar.

Romana, em grande preoccupação de aceio , correu

toda a casa, sacudiu as prateleiras da cozinha , mas sen

tindo sempre o cheiro , lembrou-se de mudar a roupa de

cama que devia ter ficado suja . De instante a instante ,


enchendo -se-lhe a boca dagua , cuspia . - Mas como

a casa ficou tomada , meu Deus ! O melhor é mesmo

mudar toda a roupa da cama para o coitado não ficar


naquella immundicie . Encostou a vassoura a um canto

e caminhon para o quarto .

Entreabriu a janella , um raio de sol penetrou , alumi

ando frouxamente o aposento . Romana estendeu a esteira,

forrou-a com lençóes , foi á arca tirar a muda de roupa e


CONTOS ESCOLHIDOS 113

accumulou-a sobre uma cadeira : lençóes, fronhas ,

colchas .

Parada diante da cama esteve a pensar endireitando

os cabellos , que lhe cahiam pelo rosto esguedelhados , e


mediu as suas forças antes de atrever-se a carregar o

adormecido , mas animou- se :


- Não , elle não pode ficar assim . Isto até faz mal .

Avançou , arregaçando as mangas do casaco . Vamos ,

meu caboclo ; tem paciencia . E' para teu bem. Começou

a tirar as cobertas , mas com a idéa de que a correnteza

de ar podia fazer-lhe mal , quente, como o julgava, da

cama, fechou a janella . Pôz - se então a retirar as cobertas ,

uma a uma, vagarosamente e falava sempre : Pobre de

mim , sósinha com uma coisa destas. Quando apenas

havia sobre Thomé um leve lençol - agachou-se e , met

tendo os braços por baixo do corpo , amparou- o pelo

tronco e pelas coxas , experimentando levantal - o . O

corpo, humido , molle , vergava ; de frio regelava -lhe os

braços nús e humedecia-os . Lentamente , com esforço ,

levantou- o da cama ; a cabeça , sem apoio , tombou para

as costas . Moscas voavam estonteadamente com grande


114 CONTOS ESCOLHIDOS

zoeira ; o lenço escorregou, ficando o rosto descoberto.

Vamos , meu velho , tem paciencia ...

Com toda a força dos braços ergueu-o e , agachando

se vagarosamente , já o tinha quasi na esteira , ia a do

brar um joelho quando , perdendo as forças cahiu , com


o corpo, que bateu no soalho surdamente.

-Ah ! minha Mãi do Ceu ! Apezar de ter ido com a

cabeça d'encontro á canastra não se deu por sentida ,

preocupada com o companheiro : Coitado delle ! Coitado

delle . Vão vêr que se machucou . Que caiporismo , meu


Deus !

Solicita, querendo vêr se o maguara , abriu a janella


francamente e o sol inundou o quarto . Romana , ajoe

lhando-se diante de Thomé Sahyra , vendo - o á grande

luz , ficou assombrada , dolhos abertos, immensamente

abertos e fitos . O rosto do adormecido estava quasi

todo denegrido , das narinas apertadas , da boca entre

aberta , escorria-lhe uma baba espumosa e, por entre as

palpebras , um liquido fugia , côr de resina; toda a face

exsudava. Ella olhava aterrada . Ergueu - se muda , lan

çou os olhos á cama desfeita e viu - a toda molhada no

lugar do corpo , exhalando putridamente .


CONTOS ESCOLHIDOS 115

Agoniada, com uma indizivel expressão de medo e

soffrimento, andava com os olhos do companheiro para a

cama; de repente , numa resolução subita , ajoelhando - se ,

com os dedos incertos , poz -se a desabotoar a camisa de


Thomé e viu -lhe o peito fundo , com a ossaria em adu
ellas salientes , manchado e fétido , o ventre alto , tumido ,

tambem coberto de placas arroxeadas, o pescoço quasi

negro; e as moscas zumbiam em enxame, fugindo , vol


tando teimosamente como se lhe disputassem o compa

nheiro; ella enxotava - as e , num pavor, olhando o corpo,

poz- se a dizer torcendo as mãos :

-Como ha de ser ? E agora ?! Como ha de ser !


Voltou-se para a imagem da Virgem a pedir-lhe

conselho e misericordia , mas afflicta , abotoando a ca

misa do adormecido , poz -se a limpar a sanie que lhe

escorria das narinas e pelos cantos da boca. Como ha de

ser ?! Eu não sei que é isto . Um mau cheiro assim , essa

baba, essa roxidão , e frio , frio ... Apalpava - lhe os pul

sos: As veias não latejam mais , o coração não bate , e

está tudo parado . Eu não sei ... pobre de mim ! Coitada


da gente, meu Deus !

Repentinamente ficou immovel , extatica , olhando .


8
116 CONTOS ESCOLHIDOS

De sopetão , com voz surda, disse , num arranco: Morto!

Os olhos andaram vagamente pela casa e fixaram - se na

imagem, supplices ; ajuntou as mãos , repetindo : Morto !

mas meneou com a cabeça e tão desesperadamente que


os cabellos brancos despenharam - se : Não ! não ! Elle

falou sempre ... pediu sempre . Não ! e arquejava. Da

outra vez foi assim mesmo , ficou que nem morto . Isto

póde ser da doença , mas não está morto , não . Ah ! meu

Deus ! não está morto, não ! Tá não ……


. tá não ... tá não ...

Ergueu-se desesperada : Como ha de ser para eu saber ,

minha Virgem ? Nem sei que é que elle tem... Está todo
roxo , todo frio , não bole ... e este cheiro assim . Como

é que eu vou ficar sósinha com elle neste estado ? Mas

se eu chamar uma pessoa ha de dizer que elle está mor

to , porque ninguem sabe da molestia, ha de querer que

seja enterrado ... Isso não , eu prometti ; eu sei que elle

acorda. Deus ha de permittir que elle acorde .

Sahiu estonteada , foi á sala. Um dos cães , que entrá

ra, penetrou o quarto e poz-se a andar em torno do cor

po, farejando -o , a rosnar. -Sahe , Boca-negra ! Vai-te

embora ! e, com um páu , enxotou-o . Estava desatinada ;

da janella , lançava os olhos aos caminhos e vendo , ao


CONTOS ESCOLHIDOS 117

longe , uma cabana , lembrou- se de lá ir implorar soccor

ro , mas recordando - se da promessa que fizera ao com

panheiro , meneou com a cabeça negativamente: Qual !

se vier gente aqui , eu sei ... Não ! Elle pediu , ha de


ser o que Deus quizer. Eu fico com elle . Deus me livre !

para o pobre acordar debaixo da terra e me amaldiçoar .

Nem é bom pensar em semelhante coisa ... Nossa Se

nhora ! Um suspiro arrancado sahiu-lhe do peito . « Valha

me Deus ! Uma pobre mulher como eu , que não entende

de nada... Tornou ao quarto de vagar e , vendo o corpo

coberto de moscas , sacudiu -as frenetica: E estes diabos

que não deixam o coitado . Sahe ! Sahe , porcaria ... !

Frenetica, poz-se a agitar o lençol que arrancára da

cama. O máu cheiro desenvolvia - se e ella , sentindo a

humidade viscida do lençol, que lhe roçára pela face ,

precipitou - se para uma toalha e , tomando-a , esfregou-se

enjoada. Depois , voltando o colchão , bateu- o e poz- se

a fazer a cama com a roupa limpa , esticando- a muito :

Seja como fôr , nem que me custe a vida , hei de cumprir

até ás ultimas o que prometti . Póde ser que elle esteja


morto, mas ... E se estiver dormindo ? Não ! não se

morre assim. Eu tenho visto muita gente morrer, mas


118 CONTOS ESCOLHIDOS

assim nunca vi . Não se morre assim. A morte dóe , a

morte dóe, a gente não morre sem gemer . Suspendeu o

que fazia e , cruzando os braços , os olhos na parede ,

meneando com a cabeça, recordava a noite tragica, as

ancias de Thomé , o seu olhar cheio de angustia , os


movimentos agoniados que fizera. Não, não póde ser, a

morte dóe , a morte dóe ... Carregou o sobr'olho e ,


·
como se respondesse a alguem, disse : Como não dóe?!

Então eu não tenho visto ? Quanta gente eu tenho aju

dado a morrer: gente grande , crianças, tudo ... Como

não dóe ? Por que é que elles choram na hora da morte ?

Como não dóe ?! a morte dóe , sim... Poz -se de novo a

trabalhar, enfronhando os travesseiros . Prompta a cama ,

arregaçou as mangas do casaco e , com um suspiro ,

agachou-se diante do corpo , apanhou- o nos braços e,

em dous arrancos, procurou levantal - o , mas faltaram

The as forças . Veiu-lhe , então , uma crise de desanimo e

de piedade ; as lagrimas escorreram - lhe dos olhos , os

soluços sacudiram - n'a . Ah ! meu Deus , coitado ! Meu

pobre caboclo ! tão bom... Tão bom e soffrendo tanto !...

E eu sem poder fazer nada , sem uma pessoa para me

ajudar. As suas lagrimas pingavam sobre o corpo hirto


CONTOS ESCOLHIDOS 119

do companheiro . Sahiu um instante á sala : o sol doirava

o arvoredo ; as gallinhas , estranhando a demora da ra

ção , reuniam- se no terreiro, mariscando , e os dois cães ,

com fome , vendo Romana á janella , levantaram os olhos


meigos , acenando com as caudas, ganindo , rosnando.

Ella nem os via, a chorar, e esqueceu-se muito tem

po á janella em dolorido extase : Valha - me Deus ! sus

pirou sahindo , mas á porta do quarto deteve -se hesitante:

Mas eu não posso com elle ... o melhor mesmo é cha

mar alguem. Eu conto a molestia e peço para ficar com

migo. As moscas, assanhadas, perseguiam-n'a voando

lhe em torno do rosto , pousando - lhe no braço , attrahidas

pelo cheiro que ella trouxera do corpo de Thomé Sahyra.

Que perseguição de moscas ! Diabos ! Caminhou para o


quarto . Vamos vêr ... Ah ! minha Nossa Senhora do Soc

corro ... e concluiu a prece no coração , firmando - se

aos umbraes , como abalada . Um homem que nunca fez

mal a ninguem , coitado ! Até eu chego a pensar que isso

foi mesmo coisa feita , nunca vi assim e com esse máu

cheiro ... só se é alguma ferida que elle tem por den

tro . De novo as lagrimas jorraram-lhe dos olhos : Eu sósi

nha não posso ! sósinha não posso ! Desesperada , levou


120 CONTOS ESCOLHIDOS

as mãos á cabeça : Que horror , meu Deus ! tambem que

foi que eu fiz para merecer tanto ! Que foi que eu fiz ?!

Agora, depois de velha assim , meu Senhor , é que eu hei

de soffrer ?! Tanto não ! Soluçava , limpando as lagrimas

com a manga do casaco, mas o cheiro que tinha no bra

ço causou -lhe nojo ; cuspiu , limpou a boca com a toalha


e, sacudida pelos soluços , passou ao quarto , parando

contemplativamente diante do corpo : Vamos , meu velho .


Agachou-se de novo e, com toda a sua força , levantou

o companheiro , mas fraquearam- lhe os braços ; então ,

num esforço supremo , agarrou- o pelo tronco e o foi

arrastando , erguendo - o perto do leito até repousar o

busto ; levantou- lhe as pernas depois , estendeu-as na

cama, arranjando-lhe commodamente a cabeça nos tra

vesseiros . Cruzou-lhe os braços no peito , mas , supersti

ciosamente , para que não parecesse morto , esticou - os

ao longo do corpo e sahiu .

A cinza esfriára no fogão quando Romana , debili

tada, foi procurar o boião de café na prateleira . Catou

uns gravetos pelo chão , e , ateiando o lume , poz - se a

soprar até que viu as primeiras labaredas: tomou , então,

alguns páus mais seccos dum monte que havia a um


CONTOS ESCOLHIDOS 121

canto da cozinha e poz o boião ao fogo , mas fez uma

careta quando enchendo , a caneca , provou o café sen

tindo um estranho cheiro e sabor de coisa podre; cuspiu ,

repellindo a vasilha , enjoada .


-Que horror ! a mode que está tudo estragado ...

Sahiu , então , para o terreiro , mas em toda parte o chei

ro a perseguia como se della propria partisse . Sentia - o

em tudo: nas paredes, nos cantos da casa, nos moveis ,

nos pannos e, mais ainda - o ar tresandava , as folhas

das arvores , os frutos , as hervas tenras , o halito da

matta, sempre cheiroso , tudo exhalava á carniça como

se toda a natureza apodrecesse ao sol que sobre ella

adejava como uma varejeira de ouro . E moscas acudiam

de todos os cantos , assanhadas , em enxames - era o

cheiro que as attrahia. Chegavam rapidas e promptas

as expeditas serviçaes da Morte, com um de profundis

soturno , e invadiam a casa como para fazer quarto ao


que lá estava estendido .

Romana desceu á grota para lavar os braços ; mergu

lhou- os nagua fresca , esfregou - os , acocorada entre as

largas folhas dos inhames , depois com elles estendidos ,

apoiados nos joelhos , deu curso ao pensamento , e medi


122 CONTOS ESCOLHIDOS

tava, quando viu uma grande sombra passar pela terra ,

fugindo . Levantou os olhos : de azas abertas, baixando ,

um urubú seguia o rumo da sua casa . Teve um arrepio :

-Se elle entrasse ? ! se désse com o corpo de Thomé

Sahyra, indefeso , sósinho no quarto ? Se lhe arrancasse


as entranhas e os olhos a bicadas crueis ? ! Ah ! minha

Mãi do ceu ! exclamou apavorada . Com os braços molha

dos levantou-se e , arrastando pesadamente a perna in

chada, foi- se , a largas passadas .

Em caminho , ouviu o latido furioso dos cães; mes


mo de longe açulou : -— Isca , Boca negra ! Péga , Frécha !

Isca ! Os cães , ouvindo-a , ladraram com mais furor . Ao

chegar ao terreiro , extenuada , logo descobriu a gran

de ave, negra e sinistra , pousada no beiral do telhado ,

de azas abertas , immovel ; e os cães raivosos investiam

atirando- se á parede como se quizessem subir por ella

acima . Romana poz-se a bradar ao urubú impassivel :


- Sahe ! Chiii ! Sahe ! Vendo , porém , que não se mo

via, tomou uma pedra e atirou- a ao telhado . O animal ,

sem ser attingido , mudou apenas de lugar, caminhando

com gravidade e vagar sobre as telhas: Sahe ! Atirou

outra pedra . Alcançada , ou apenas espantada , a ave


CONTOS ESCOLHIDOS 123

levantou vôo , pousou adiante empoleirando - se numa

arvore , á espreita . Os cães ladravam sempre . Romana ,

que apanhára outra pedra , deixou-a cahir no chão ven

do a ave tão alta , mas esconjurou- a .

Cahia a tarde rosada; rôlas turturinavam e bemtevis

desferiam a grita alegre . Começava docemente , com o

esmaecimento da luz , a tristissima symphonia vesperal.

Era lua cheia; havia ainda claridade quando o astro

alvo foi- se levantando no ceu, estendendo , por montes

e campos a sua pallidez . Romana sentia fome, mas tudo

The repugnava e o cheiro , cada vez mais forte , dava-lhe

tonteiras e nauseas ; todavia , para não abandonar o com

panheiro , foi até ao quarto espial - o :

-Thomé ! Thomé ! Meu caboclo ! ... Apertou o nariz

para não sentir o cheiro : Thomé ! Thomé ! Sempre o

mesmo silencio de morte. Encolheu os hombros , puxou

a esteira para a sala , estendeu- a e deitou -se ao luar que

entrava pelas janellas abertas .


Os cães uivavam no terreiro entristecidamente e ella,

extasiada, o cotovello em terra, a face na mão , parecia

de todo esquecida quando ouviu , fóra , um forte bater de


124 CONTOS ESCOLHIDOS

azas e logo a sinistra gargalhada da coruja. Sentou-se e ,

fazendo o signal da cruz , resmungou um esconjuro .

Deitou-se de novo , mas não pôde supportar por mais

tempo o fedor e disse com resignação , arrastando a

esteira para a porta : « Está bom , fico aqui . Isto ha de

acabar. Mas o frio foi-se tornando grande , ella tiri

tava ao relento e com somno quando resolveu recolher

se : puchou de novo a esteira para a sala e deitou -se

cobrindo a cabeça para não sentir o cheiro .

Pelas janellas abertas o ar e a luz pallida entravam

juntamente . Romana adormeceu , mas não dormira uma

hora quando começou a contorcer -se , gemendo surda

mente , depois alteando a voz , até que um grito longo ,

agudo , sahiu -lhe do peito opprimido ; acordou e , sobre

saltada , sentou - se na cama , olhando com desvairamento

e assombro - Oh ! que coisa medonha !


Em sonho vira-se coberta de vermes , molles como

lesmas ; parte do seu corpo desfazia- se, a carne despega

va-se dos ossos e cahia ensanguentada , coberta de


bichos. Larvas mordiam-lhe o rosto , entravam- lhe pela

boca, pelos olhos , pelos ouvidos ; ella debatia- se sem


CONTOS ESCOLHIDOS 125

poder livrar-se dos terriveis inimigos e já os sentia na

garganta, suffocando- a, quando acordou afflicta.

Sorveu o ar com ancia, mas logo o cheiro horrivel

reappareceu .

-Ah ! meu Deus ; se ao menos eu pudesse fazer al

guma coisa para acabar com esta fedentina . Já queimei

alfazema , foi mesmo que nada : não passa . Só eu sahindo

para o terreiro, ali não fede tanto . Aqui dentro não

se aguenta .

Levantou- se, mas estava tão fria a noite que lhe faltou

coragem para desabrigar-se . Foi á cozinha , lá tambem ,

de todos os cantos , o fedor sahia . Lembrou -se do pe

queno quarto onde Thomé guardava a pindoba para os


cestos : ali fechada talvez não sentisse . Entrou com a

candeia fumarenta . Havia montes de cestos, samburás ,

balaios, alguns chapéus , esteiras enroladas e rolos de

trança de palha . Trancou - se por dentro e sentou - se a


um canto.

A principio sentia apenas o cheiro do cipó secco , mas,


pouco a pouco , como se a invasão se fosse dando lenta

mente , por baixo da porta , o pequeno quarto tornou - se

insupportavel.
126 CONTOS ESCOLHIDOS

- -Não ! só mesmo lá fóra. Não ha lugar , nenhum ,

aqui dentro . O melhor é andar até que amanheça ,

dormir não posso . Accendeu o cachimbo e sahiu vaga

rosamente para o luar frio , mas não se animou a afas

tar-se do terreiro , receiando sempre alguma coisa .


Sentou-se no banco , cochilando . Ali mesmo , apezar da

brisa, sentia o cheiro perseguidor : Tudo féde ! Que

coisa ! Não ha um lugar para a gente estar . Até as arvo

res estão com máu cheiro . Começava a irritar - se . Deus

permitta que já chegue a manhan . Não posso mais . Os

cães vieram festejal - a , deitaram-se-lhe aos pés , aba

nando as caudas .

A manhan rompia . Romana cochilava com a cabeça

encostada ao tronco de uma laranjeira quando um dos

cães ladrou desesperado e um ruflo d'azas abalou o silen

cio . Despertou sobresaltada. Erguendo os olhos ainda

teve tempo de vêr um urubú voando para uma paineira

proxima . Dois outros passeiavam no telhado , outro equi


librava-se no ramo flexivel de uma arvore , abrindo e

fechando as azas ; e voando no alto um bando delles


rondava a casa .

Romana, ás pressas, foi examinar a porta que deixára


CONTOS ESCOLHIDOS 127

encostada ; achou-a entreaberta ; - Ah ! minha Nossa

Senhora elles entraram , entraram ! Teve um grito de

desespero : Damnados ! e , quasi a correr , com tanta

agilidade quanta lhe consentia a perna inchada , pene


trou o quarto , escancarando a janella para vêr melhor .
Silencio . Sobre o rosto do adormecido as moscas fervi

lhavam , e era só.

Tocou-lhe a fronte fria e , como calcasse sobre a

face , sentiu a carne ceder, afundando , e a boca encher

se-lhe de espuma fétida . Fóra os cães ladravam furiosa

mente . Fechou a janella e , para saber o motivo da furia

dos animaes , foi á porta que abria sobre o terreiro .

Dando com ella , os cães partiram desabaladamente em


direcção á collina e ella viu dois urubús levantarem

vôo . Mas quantos outros ali perto ? ! ...


No tellhado um bando delles , immoveis , como

feitos de bronze ; nas arvores: um só galho da paineira

sustentava tres ; outros vinham voando de longe , azas

abertas, em direitura ao telhado.

Romana, que até então encarára tudo sem pavor ,

não poude dominar a impressão de medo e , de olhos

dilatados , contava as aves negras que sitiavam a casa :


128 CONTOS ESCOLHIDOS

-Um , dois , tres ... apontando-os. Quantos , meu Deus !


Quantos , Pai do ceu ! Incitava os cães: Isca ! isca ! os

urubús , porém , nem se moviam , indifferentes ao ladrar

dos cães .

Romana teve uma inspiração salvadora: foi á pare 1


de, tirou a espingarda de Thomé, o polvarinho , o chum

beiro , carregou os dois canos e , da janella , fez pontaria ,

mirando um urubú que se havia empoleirado no galho

da paineira . O tiro partiu e os cães precipitaram-se ; as


aves , porém , já iam longe , fugindo e um vôú- vôú surdo

sobre o telhado dizia que outros haviam igualmente aba

lado . Um apenas ficou no galho mais alto da paineira .

Segundo tiro partiu , atroando , sem que o animal se mo

vessse. -Ah ! couro do diabo ! praguejou Romana , reco

lhendo com a espingarda . A polvora restante não dava

para uma carga e a cabocla , ameaçada , vendo as aves

circularem na altura , como se bailassem de contenta

mento , antegosando a delicia do repasto , comprehendia

que todas, em breve , tornariam e poz-se a tremer de


medo.

Effectivamente o primeiro urubú desceu sobre o

telhado , pousando estabanadamente ; depois outro , outro


CONTOS ESCOLHIDOS 129

e outro ; á paineira baixaram muitos e os cães iam desa

lojar alguns que se mettiam, como em cilada , entre as


hervas baixas .

-Ah ! minha Virgem ! E agora ?! como é que eu

hei de ficar assim, cercada por esses bichos ? Se elles

entram aqui , que é que eu sósinha posso fazer ?

Os braços pendentes , entrecruzados os dedos ficou a

pensar e , numa decisão desesperada , numa resolução


forte , inspirada pelo medo daquella morte horrivel de

que se via ameaçada : ser devorada em vida por todos

aquelles bichos negros que , certos da rendição , espera

vam tranquillamente , vindo de todos os pontos para as

immediações da casa -traçou o chale e sahiu para o ter

reiro , fechando a porta por fóra . Os urubús lá estavam ,

sinistramento quietos nos seus postos . Fraca das constan

tes vigilias , inanida , mal podia caminhar ao sol e gesticu

lava desatinada, como se acompanhasse idéas revolvidas

discretamente no seu intimo . Os cães haviam desappare

cido, farejando , talvez alguma caça ; debalde chamou-os.

Um urubú , voando , passou acima da sua cabeça ; estre

meceu num choque de panico e , tirando o chale , agitou- o

no ar, enxotando a ave , que já ia longe . Pôz- se a andar ,


130 CONTOS ESCOLHIDOS

rezando . Ia buscar o Firmino , do Pary , Elle , sim , era

uma boa creatura , talvez lhe prestasse esse favor.

Ia já perto da estrada quando estacou hesitante:


-E Thomé ? Eu não sei , meu Deus , mas póde estar

vivo . Depois pediu tanto, eu jurei . Que é que hei de

fazer ? Se Firmino dá com elle naquelle estado ?! Vol


tou-se para o lado da casa e, vendo os urubús no telha

do , sentiu o calafrio do medo ; ficou, emtanto , a olhal-os ,

e, inconscientemente , arrastada por uma força superior

á sua vontade , tornou á casa , sorrindo a murmurar:


-
Como é que vou fazer isso , se prometti ? Não pro

mettesse . Ainda que seja verdade , ainda que esteja

morto , ainda que não me amaldiçôe debaixo da terra, e

a alma, a alma delle ? Uê ! antes aquillo tudo que está

ali , daquillo eu sempre posso me livrar ... mas se a


alma delle vier, hein ? então ? Verdade, verdade , eu pro

metti . Elle pediu , eu prometti . Uê , então é assim ? e

cantarolou ao sol , parada , compondo o chale , de olhos

baixos , fitando a sombra do proprio corpo :

De noite, nos carreirinhos ,


As almas vêm passeiar.
Ail de quem engana as almas ...
Nunca póde socegar.
CONTOS ESCOLHIDOS 131

Uê ! Eu não , iche ! Foi -se caminho acima e, como

se lhe não pesasse a perna , seguia apressada , falando :

Para que ? aquillo foge ; a gente espanta , aquillo foge e


alma ? alma , não vê ! fica perto da gente gemendo , ge

mendo , gemendo ... Alma , sim , isso sim. Depois , eu pro

metti : elle pediu , eu jurei . Fico lá, vou p'ra lá ... Ora !

Ajustou o chale ao peito cruzando as pontas . Elle ha de


se levantar . A semente não fica no fundo da terra uma

porção de tempo ? fica ; morre ? não morre ! O lagarto

não dorme , não muda a pelle , não acorda quando o sol

vem ? então ! Elle ha de acordar . Por que não ha de ?


Já não se levantou duma feita ? Então morte é assim ?

Que morte? Onde ?! Uê ! Isso não ! riu entre dentes . Pro

messa é promessa , quem jura , jura ! Eu não ! A outra

não ficou maluca ? porque ? porque fez uma promessa e

esqueceu . Que é que faz agora ? corre o mundo penando .


Eu não ! Nunca fui disso , mesmo no tempo de moça

nunca quebrei juramento . Riu de novo , levando a mão

á boca como para conter alguma palavra indiscreta .

Séria, de repente, parou e batendo no peito magro com


a mão espalmada: Eu ! dizer uma coisa e fazer outra ?
132 CONTOS ESCOLHIDOS

Misericordia ! não sou d'isso , não . Então como é ? aga

chou-se e bateu no chão : Está dormindo aqui ? dorme .

Está deitado ? fica . Que é que tem ? Deus Nosso Senhor

é Pai . Levantou os olhos para o ceu resplandecente: Elle

está lá em cima .. Pensa que elle não vê ? Vê tudo ,

escuta tudo . Ora ! Que é que tem ? Vamo - nos embora .

E' assim mesmo , então eu não sei ? Uê ! como não ? ...

Arrancou uma folha d'arvore e poz- se a mastigal - a . E'

assim mesmo . Vamos-nos embora. Seguiu .

O sol dava-lhe de chapa na cabeça nùa , esguedelha

da e, com os olhos de um desusado brilho , nem mais se

preoccupava com os urubús e a delirar, seguia , ora sor

rindo , ora franzindo o rosto , accusando na physionomia

as varias e multiplas versatilidades do pensamento . Di


ante da casa deteve-se -os urubús andavam no terreiro

com mesuras , vagarosos , desageitados ! Investiu com

elles, sapateando e todos voaram ganhando as arvores

e o telhado . Riu ás gargalhadas , dobrando -se com as


mãos nas coxas :

-Gallinha preta ! Gallinha preta ! Vem cá dentro ,

gallinha preta . Escancarou a porta e convidava os uru


CONTOS ESCOLHIDOS 133

bús : Entra, vem cá dentro , gallinha preta ! Franziu o

nariz, atirou uma cusparada . Cruz ! que cheiro !

-Sentou- se no limiar , derreou a cabeça sobre o

peito . Um urubú pousou no terreiro ; ella levantou os


olhos e poz -se a miral- o tranquillamente , sem cuidado ,

sem medo , puxando as farripas brancas . A ave , parada ,

olhava-a receiosa , mas avançou lentamente ; outro bai

xou , outro e era continuo o vôú-vôú d'azas .

Romana, alheia a tudo , esfiava o cabello , mas um dos

animaes , num pulo , aproximou- se ; ella, então , arrega

lando os olhos, fitou - o . Ergueu-se lesta escancarando os

braços entre os umbraes da porta , defendendo a entra

da, a gritar desesperadamente :

-Sahe ! Sahe ! Sahe ! Que é, gallinha preta ? Sahe !

e atirava pontapés , sapateava frenetica , voltando , de

instante a instante , a cabeça para dentro, receiosa de


que algum houvesse penetrado. Sahe ! Sahe ! Cruzes !

Credo ! Subitamente , num arrojo de audacia , avançou .

As aves recuaram , algumas fugiram a pequenos vôos ,

mettendo-se nas moitas , outras treparam nos ga

lhos baixos das laranjeiras que as balouçavam . Sahe !

Sahe ! Poz-se a atirar pedras , espantando - as , mas tornou


134 CONTOS ESCOLHIDOS

á porta, recuando , sempre de frente para os urubús . Ga

nhando a soleira, abriu os braços e ria ; depois , canta

rolando baixinho , poz -se a dizer : Agora vamos ver !

Agora vamos vêr . Foi recuando de vagarinho e , quando

se viu na sala, gritou para as aves que vinham chegando :

Chooo ! gallinha preta ! e bateu com a porta violenta


mente.

Foram os urubús que denunciaram o drama sinistro


da casa da collina . Já no povoado corriam murmurações

e conjecturas sobre a ausencia dos velhos : « Nem o ces

teiro , nem nhá Romana » quando um campeiro , buscan


do um boi que tresmalhára , chegou á vista da casinha ,

muito branca no pomar viçoso , como uma flôr entre fō


lhas , e parou , boquiaberto , vendo- a fechada e coalhada

de urubús que bailavam no telhado , no terreiro e voeja

vam de ramo a ramo , e bicavam a soleira da porta como

se batessem, querendo entrar.


-Uai ! fez elle , detendo - se á distancia : Que mundo

de bicho é esse em casa de nhá Romana !? Vagarosa


mente, por entre as hervas altas e duras , ainda molhadas

de orvalho , foi - se aproximando e , ainda longe , sentiu o

cheiro horrivel : Eh ! eh ! Uhum ! a modo que tem coisa


CONTOS ESCOLHIDOS 135

pôdre ahi . E tem ! isso de urubú é carniça . Subiu mais ,

pé ante pé . Um dos urubús , descobrindo -o, voou , e

todos , assustados , abalaram com um forte vou - u- vou - u

d'azas . Não se distanciaram emtanto , buscaram as arvo

res mais proximas e , pousados , como para se aquecerem


ao sol , abriram largamente as azas negras .

O campeiro deu volta á casa , apertando , por vezes,

o nariz, incommodado com a exhalação putrida .

-P'ra dizer que elles morreram aqui dentro ... Ex

perimentou uma das janellas , empurrando-a , depois a


porta : fechadas . Que tem coisa pôdre lá dentro , isso

tem ... Encostou a boca ao buraco da fechadura e pôz

se a chamar : Nhá Romana ! Nhá Romana ! Eh ! gente ?

Desanimado afastou - se , mas logo investiu com o cajado

e poz-se a bater e o éco, ao longe , tatalava. Passou

aos fundos da casa , sempre a chamar : Tio Thomé ! Nhá

Romana ? O' de casa ? Ficou impressionado , a olhar em


torno num assombro mudo .

O silencio era grande - nem uma folha bolia, nem

um passarinho piava , apenas os urubús que chegavam ,

um a um, para o telhado , para o terreiro coberto de

folhas seccas que estalidavam sob os pés das aves va


136 CONTOS ESCOLHIDOS

garosas. O campeiro fez o signal da cruz e desceu ater

rado , voltando - se , de vez em vez, como desconfiado de

que os abutres o seguiam e metteu-se pelo capinzal que


cortava o caminho.

-Ninguem responde ... a casa toda fechada ... p'ra

dizer que elles sahiram ? Mas aquelle cheiro de coisa pô

dre... e os urubús ? Parou em meio do capinzal . Quem


sabe se não mataram elles ? E a idéa de um crime fixou

se no espirito do campeiro . Não póde ser outra coisa. De

doença não foi ... Mas quem seria ? Gente daqui não ,

isso não ! Gente d'aqui , não !

Afflicto , ancioso por levar a communicação da sua

descoberta , deitou a correr em direcção ao povoado .

Atravessou o pasto , onde os seus bois modorravam dei

tados na herva rasteira , ao sol ou acolhidos á sombra

fresca das arvores , perto d'agua , ruminando . Um touro ,

cabeça alta, toutiço forte, berrava esticando o pescoço

musculoso , outro respondia de longe . O campeiro avan


çou para o animal que lançava o estrondoso desafio e

tocou-o para que não se encontrasse com o adversario ,

um marroá atrevido , por nome Malhado , que era o ter


ror das manadas .
CONTOS ESCOLHIDOS 137

-Eh ! Cruzeiro , sahe ! Você já qué pegá outra

vez ? Vai-te embora , olha o tombo . Sahe ! e atirou - lhe

uma bordoada aos chifres . O touro sacudiu a cabeça e

fugiu , pasto acima ; o outro , que surgira do matto , esta

cou ao longe , com o pello liso e reluzindo ao sol , gordo

e atarracado, olhando sobranceiramente com um mugido


surdo . Passa fóra , Malhado ! Mas a preoccupação do

crime fazia com que o campeiro esquecesse os animaes .

Suando , extenuado, corria sempre , saltando vallos

com a agilidade de um potro , até que chegou ao povo


ado . Diante da venda de Firmino estava um carro de

bois descarregando . Precipitou -se para o grupo de ho

mens que trabalhavam e perguntou cançado : -Gente ,

que é que houve lá em cima ? e estendeu o braço na

direcção da collina . Firmino , que estava á porta, em

mangas de camisa, disse tranquillamente :

-Que afobamento ! Que é que houve lá em cima ...?


não houve nada.

-Ali ha alguma coisa , seu Firmino . Ali ha alguma

coisa, por Nossa Senhora ! Eu venho agora mesmo de lá

Os homens deixaram o serviço e cercaram-n'o . Petroni

lha appareceu á porta da venda com uma criança nos


138 CONTOS ESCOLHIDOS

braços . Gente chegava curiosamente, e o campeiro disse :

-Eu estava no campo quando um boi tocou pelo cami

nho e foi-se embora ; botei-me atráz delle quando topei


com um bando de urubús em cima da casa de nhá Ro

mana . Está assim ! e apinhou os dedos . E é um máu

cheiro que ninguem aguenta . Os homens apertaram mais

o circulo e mulheres , que lavavam no corrego, acerca


ram-se do grupo .

-Você bateu, Benedicto ?

-Como não ? bati , chamei , qual , nada ! E' um fedor


da gente ficar tonta . Uma das mulheres adiantou - se :

—E' verdade , ha muito tempo que nenhum delles


apparece , nem nhá Romana , nem tio Thomé . Petronilha

ajuntou descançadamente , sacudindo a criança que cho

ramingava :
-Ha mais duma semana . Entreolharam - se todos e

foi Firmino quem decidiu :


-
-Vamos vêr , gente ? Quem sabe se aconteceu algu
ma coisa ?

No grupo disseram :

-Qem sabe se não mataram elles ? Firmino lançou


CONTOS ESCOLHIDOS 139

um olhar em torno , como se procurasse o que falára em


crime e confirmou desconfiado :

-Quem sabe mesmo ! Então , resoluto , convidou :

Vamos ver ! Tomou um páu e o seu largo chapéu de pa

lha e poz- se á frente do grupo que foi engrossando pelo


caminho .

Homens , mulheres , crianças subiram a trilha que

levava á casinha branca, no recosto da collina . Avistan

do os urubús pararam todos e o campeiro saltou na

frente , apontando com o cajado :

-Olhem lá , estão vendo ? está tudo cheio .. No alto ,

um bando circulava . As crianças iam descobrindo e

apontando outros nas arvores , por entre os mattos , nos


caminhos.

-E' coisa pôdre ... disse Firmino convencido , e o

campeiro , triumphante :

-Pois eu não disse ? Eu estive lá perto. Vancê vai vêr.

Antes do terreiro já os da turba abanavam com as

mãos diante do nariz, bufando .

-Isso ainda não é nada , lá perto é que é . Não se

póde , disse Benedicto . Os urubús abalaram á aproxima

ção da gente :
140 CONTOS ESCOLHIDOS

-Lá vão elles p'r'o ceu ! disse uma criança e todos ,


levantaram os olhos .

No terreiro nem todos ousaram chegar á porta fican

do á distancia, apertando as ventas, soprando :

-E' coisa pôdre mesmo ... Nossa Senhora ! até


pode fazer mal ! disse uma das mulheres afastando-se .

As mãis receiavam que os filhos se aproximassem , cha

mavam -n'os , retinham-n'os presos : « Fica aqui ! Você

não tem nada que fazer lá . » Os homens andavam em

volta da casa, sondando . Por fim , Firmino , com um

resto de esperança, bateu á porta , chamando :

-Nhá Romana ? depois de longa espera bateu e cha


mou de novo : Nhá Romana ? Na casa era absoluto o

silencio . Ia bater pela terceira vez quando todos , num

vozeirão de clamor, chamaram :

-Nhá Romana ? e longamente os echos reboaram .

Desesperançado , Firmino voltou-se para os compa


nheiros :

--Então, gente; vamos ? O melhor é arrombar a

porta.

-Pois sim, disseram, e o mulato , sem mais esperar,

metteu o hombro á porta , que foi dentro com estrondo .


CONTOS ESCOLHIDOS 141

Um bafo putrido fel - o recuar enjoado : - Uúh ? mas

avançou corajosamente : Vamos , gente ! Entraram com

elle dois outros. Os de fóra ouviam as suas exclamações :

<< Nossa Senhora ! » « Ufa ! » « Passa ! » De repente, a um

grito , um delles sahiu a correr , apavorado e os dois


outros acompanharam-n'o tomados de panico . Os de fóra

recuaram , alguns correram para o matto :


-Está lá no quarto ... Lá no quarto, na cama ...
eu vi ... !

-Morto ? Quem é ? perguntaram; mas o homem, sem

folego , olhava esgazeado :

-Nossa Senhora ! e quê de moscas !

-Vamos vêr , insistiu Firmino animando . Quem tem

phosphoros ?

-E' melhor abrir tudo , mesmo por causa do cheiro.

Abriram todas as janellas .

A' luz, a casa appareceu desarrumada : uma esteira

na sala amontoada de trapos, cestos em cambulhada ,

montes de pindoba, chapéus, cacos de garrafas , talheres ,

a manta de carne atirada a um canto , bolorenta . Um dos

homens entrou intrepidamente no quarto e, tacteando ,

deu com o ferrolho da janella , correu - o abrindo - a ,


142 CONTOS ESCOLHIDOS

- Virgem Nossa Senhora ! e poz - se a dar com as mãos

tocando as moscas que se levantaram assanhadas , zum

bindo , e viu a face do morto , denegrida, inchada , com


as narinas e a boca infiltradas de sanie .
--Está pôdre , gente ! bradou ; tio Thomé está aqui ,

está pôdre. E sahiu logo , com ambas as mãos na boca ,


atordoado .

-E nhá Romana ? perguntaram . Onde é que está ?

Outros esquadrinhavam a casa , canto por canto . Foi Fir

mino quem descobriu a rezadeira , na cozinha, deitada

na terra fria, muito encolhida , com o queixo nos joelhos ,

abraçada á imagem da Conceição . Espalhadas pelo chão


reluziam moedas de prata.

-Nhá Romana ! Nhá Romana ! Acocorou- se ; justa

mente um dos homens abrira o postigo da cosinha . Um


raio de sol entrou illuminando a velha que não se movia,

gelada, com a imagem muito aconchegada ao peito .


Mas estava viva , contrahia os dedos , pestanejava , e

seus olhos esmaecidos , extaticos , fitavam as moedas .


-Nhá romana está viva ! Ajuda aqui , gente . Levan

taram -n'a : Firmino segurando - a pelo tronco , outro sus

tendo-lhe as pernas . Quando passavam pela sala deba

teu- se , sem forças e emittiu um gemido surdo :


CONTOS ESCOLHIDOS 143

-Que é ? Que é ? Agitava a cabeça , sacudia o braço

que lhe pendia molle.


-A Santa ? vancê quer a santa ? Ella já vem . Mas ,

quando a repousou no terreiro , entre as pessoas que a


lastimavam compadecidamente , muitas chorando , Fir

mino poude perceber o que ella dizia sem, todavia ,

entender os seus gestos extravagantes : « Tá dormindo ...

Tá dormindo » ; disse num sopro ; bateu na terra lentas

pancadas fracas ' e acenou com o dedo negativamente ,


juntando logo as mãos como se fosse rezar . Depois
repousou a face na mão , fechou os olhos , apontou para

a casa, abriu de novo os olhos repetindo com o dedo o


gesto negativo. « Tá dormindo ... » Raspou a terra, espe
tou-a com o dedo hirto , poz- se a anciar, a debater com
as mãos , a boca aberta , agitando- se , estirando os braços
como se empurrasse alguma coisa imaginaria , em grande

afflicção . Houve um piedoso murmurio : « Está aca


bando ... » Ella porém , tranquillamente , de vagar, apon

tou a casa e repetiu num fio de voz : « Tá dormindo ... »

e, de olhos parados , quedou , a boca entrecerrada .

O melhor é a gente levar ella daqui . Lidavam


todos , suggerindo idéas :

-A gente faz uma maca , cobre de folhas ...


144 CONTOS ESCOLHIDOS

-Qual ! no collo mesmo .


-E a carrocinha ... ? a carrocinha com um col
chão ...

-Levanta ella primeiro dahi , gente. O campeiro


era o mais azafamado . - E o morto ? perguntaram . O

campeiro avançou :

A gente carrega elle logo mais e enterra por aqui


mesmo. E' o melhor. E Firmino disse :

-No eitosinho . Ninguem está para carregar muito


um corpo assim .

-Nem se póde , disseram : é até capaz de se des


manchar no caminho.
-E nhá Romana ?

-Vai commigo , disse Firmino . Vai lá p'ra casa.

-Se ella chegar lá em baixo ... suspirou uma das


mulheres . Está tão fraquinha ; nem póde respirar . E
levantou a cabeça perguntando : Quem tem leite ahi ?
Quem está criando .

-Margarida.

-Chega aqui , Margarida ...


−Pra quê ?

-Anda, é uma obra de caridade. Ella foi tão boa ,

coitada... ! Uma negra forte , retinta , com um panno á


CONTOS ESCOLHIDOS 145

cabeça, á maneira de trunfa , adiantou-se desabotoando

o corpinho . Dá um bocadinho a ella, Margarida ; dá um


bocadinho .

A negra ajoelhou-se , tomou ao collo a cabeça da ve

lha e, descerrando - lhe a boca , que parecia travada pelo

trismo , espremeu o peito negro , pojado . O leite esgui


chou e ficou muito branco entre as gengivas roxas . A

velha fechou os olhos , estremeceu e, docemente , a sua

cabeça branca pendeu no collo da negra .


-A móde que ella expirou . Vê , gente ! disse a negra

espantada . Acudiram todos , uns ao pulso , outros des


cerrando-lhe as palpebras.

-O leite deu na fraqueza ; morreu mesmo .

-Deus te dê o reino da gloria ! murmuraram.


Os homens descobriram-se respeitosamente . A negra,

limpando o bico do peito, recolheu - o e repousou a morta


na terra morna do terreiro .

-Que coisa, minha Nossa Senhora ! Dentro , na casa ,


tiniam ferros e dois homens sahiram com enxadas para

o terreiro .
- Vão cavando duas juntas , emquanto eu vou falar

ao capitão, disse Firmino . Vão cavando , nada de corpo

molle . Eu vou n'um pulo e volto já com alguma coisa


146 CONTOS ESCOLHIDOS

p'ra vocês . Voltou - se e baixou os olhos sobre o cadaver

da velha: Coitada de nhá Romana ! Mulheres choravam ,

mas, como elle descesse , muitos do grupo acompa


nharam - n'o .

-E seu vigario , Firmino ?


- -Vou vêr...

Duas mulheres piedosas ficaram á sombra das la

ranjeiras acompanhando o cadaver de Romana , que


haviam estendido sobre o banco do terreiro.
--
De que teria sido ? Quem sabe se não foi algum

bicho que mordeu elles ? Mas Thomé na cama , todo co


berto ... Não atinavam . Uma das mulheres lembrou as

velas , a outra disse :

- P'ra quê ? vela p'ra què ? está um sol tão bonito.

Ah ! eu queria ter a certeza de ir p'r'o ceu como


essa vai .

Seccamente , a um tempo , as duas enxadas cahiram

na terra do eitosinho . Uma das mulheres , abanando as

moscas que voejavam em torno do rosto da defunta ,


disse :

- Estão abrindo as covas. Subitamente um grito

partiu :

-Ah! Mucúra, damnado , Você tambem veiu vê,


CONTOS ESCOLHIDOS 147

seu sem vergonha ... Era o campeiro. Descobrindo ,

entre os mattos altos , o boi que fugira á manada , correu

brandindo o cajado : Tóca ! tóca , Mucúra ! e metteu- se

pelos capins enxotando o boi que fugia .

Na verde paizagem , ao sol , era grande a alegria dos

passaros e , sobre o telhado da casa , nas arvores , vo

ando alto , em circulo , os urubús pareciam vigiar a

presa , negros e silenciosos . Longe , de espaço a espaço ,


surdamente , tristemente , um touro mugia e , atravez do

campo, dolente , vibrou a primeira badalada do toque a

finados . As duas mulheres levantaram-se em silencio e ,

de pé, as mãos postas , fitaram o ceu azul . Os homens ,

suspendendo o serviço , firmaram- se ás enxadas , tiraram

os largos chapéus e ficaram ouvindo religiosamente, de


cabeça baixa , immoveis .

Was

10
{
LENDA DO REI AVARO
ja
mkenaan
Immuunga
I
Lenda do rei a var
ava roo (*)

Naquelle tempo , em toda immensa e afortunada terra

d'Asia, desde as altas regiões quasi nuas , onde as neves

se não dissolvem e , para um lado , até a orla tepida do

mar onde se pescam as perolas , e para outro até os


vastos e adustos desertos de areia amarella, hispidos de

cardos , sem sombra de arvores ou brilho d'agua , onde

alveja a tenda ligeira do beduino e o gypaeto , do alto das

rochas seccas espia, as serpentes, só se falava das riquezas


maravilhosas do soberano da Ilha dos Arômas , essa que,

ao findar de uma tarde de quente nevoaça , como referia,

(* ) Na 2, ª edição do ROMANCEIRO, de Lello & Irmão , Porto, 1906. A 1,8 edição


de Laemmert & Ca., é de 1898,
152 CONTOS ESCOLHIDOS

aterrada , a tripolação de um pangaio , com um leve

tremor, que nem abalou as torres dos templos nem

assustou o gado nos campos , afundou lentamente , sumiu

se nas aguas , como um barco que sossobra ao bater


num rochedo .

Esse principe, que governava um grande povo indus

trioso e tinha , para defender o seu reino , o mais aguer


rido exercito e a frota mais numerosa do Oriente , logo

que deixou o cadaver do pai no sumptuoso mausoléu de

marmore , levantado entre as esbeltas palmeiras do

bosque sagrado , e assumiu o governo , quiz examinar

os thesouros que os reis vinham pacientemente accumu

lando , desde que os primeiros escravos cavaram o ter- .

reno das minas e os primeiros exercitos espalharam - se

impondo pesados tributos aos povos fracos dos paizes


proximos.

Desceu ao subterraneo e, caminhando por entre

abarrotados ceirões d'ouro e prata, arcas acoguladas de

pedrarias, armas preciosissimas , vasos do mais fino lavor ,

pannos attalicos e telas levissimas , esvoaçantes , tecidos

nos templos por virgens que só trabalhavam para os

deuses , e moedas de varios cunhos que luziam amon


CONTOS ESCOLHIDOS 153

toadas , espalhadas nas lages , sorriu da miseria , não com

prehendendo como reis tão fortes , que podiam dominar

o mundo , se contentassem com tão pouco .

Disseram -lhe que , todos os •annos, com as primeiras


flores da primavera, chegavam barcos com o tributo em

ouro de setenta fertilissimos Estados , que os impostos

das provincias eram abundantes ; disseram- lhe o numero

das minas que produziam, das rezes que se espalhavam

nos campos , dos navios que faziam o commercio da pur

pura, dos teares que trabalhavam, das mil fabricas em

que se facetavam as pedras preciosas , polia-se , rendi


lhava e floreava o marmore , cozia-se a louça transpa

rente , enformavam- se as amphoras, trançavam - se as

corbelhas, fundia - se o metal das armas - o principe

sorria sempre, desdenhoso , achando tudo mesquinho .


Subindo á sala dos despachos logo decidiu augmentar

os impostos e os tributos para o dobro do que pagavam ,

exigir dos capatazes da mineração maior quantidade

de ouro, prohibir aos pastores a matança de uma só


rez - que se contentassem com o bolo de farinha e mel

e com as hervas tenras que nascem nas terras humidas

- dar mais porte aos barcos e exigir das mulheres do


154 CONTOS ESCOLHIDOS

povo todas as joias que traziam . Mandou equipar e ape


trechar navios e soltou - os nos mares para a rapina.

Espalhadas , ao som de tambores , as ordens do sobe

rano, o povo , que o temia , deu- se pressa em cumpril- as

e centenas d'homens fieis, encarregados de receber o que


a gente humilde levava ao erario real , não conseguiam

attender a todos com a resalva que era devida aos que

se desfaziam dos seus pequenos valores .

As fundições trabalhavam dia e noite reduzindo a

grossas barras de ouro as joias de que a pobresa se havia

despojado e as pedras , tiradas das encarnas, scintillavam

em acervos de côres sobre o branco lagedo dos pateos ,


entre eunuchos armados .

Ao porto abicavam diariamente altos navios carre

gados ; caravanas numerosas desciam das minas, em lento

andar, com o peso dos fardos que derreavam os ani

maes, e os pastores reclamavam mais campos onde pu

dessem espalhar os rebanhos que cresciam prodigiosa

mente , já entrezilhando á mingua de pastura .

E o rei , percorrendo o subterraneo , contemplava a

sua riqueza , mas como ainda lhe não bastasse o que via ,
CONTOS ESCOLHIDOS 155

mandava cavar galerias maiores , mais fundas , e exigia


mais ouro.

A' noticia das victorias dos seus soldados , das presas

dos seus navios , logo pedia nota dos thesouros sem


preoccupar- se com a mortandade , nem com o soffrimento
dos vencidos .

A' noite, quando a cidade real dormia e das chaminés

das fundições subiam , lambendo a tréva , as linguas

rubras de fogo , levantava os olhos e ficava ambiciosa


mente contemplando os astros que tremeluziam no céu .

Não dormia . Se , algumas vezes , reclinava-se ven

cido pela fadiga , logo um sonho o despertava em sobre

salto punha - se de pé e, seguido pela guarda palaciana ,


que o acompanhava a correr, atropelladamente , fazendo

resoar a longa escadaria de marmore , subia á torre mais

alta para devassar o mar vasto porque , no sonho , o vira


coalhado de navios que vinham cheios de guerreiros ,

que eram gigantes, assaltar o seu thesouro , passar a fio

de espada a sua gente , esgotar as suas minas , abater o


seu gado .

Recommendava o mais vigilante cuidado ás senti


nellas, ameaçando- as de morte se não annunciassem o

que fossem descobrindo na terra, no mar, no espaço .


156 CONTOS ESCOLHIDOS

A's vezes , no arroxear sereno do crepusculo , uma

aguia retardada punha em alvoroço a cidadella . Rugiam

buzinas roucas de uma á outra torre, armas brilhavam ,

retiniam na pressa tumultuosa com que a soldadesca se

lançava pelas escadas e arquejando , esbaforidos , os


guerreiros que chegavam á plataforma , atesando os

arcos rijos , viam apenas um ponto negro que se sumia

no espaço , longe .

Certa noite , ao recolher-se , sentiu o rei uma dôr

violentissima na cabeça como se a varassem ferros tere

brantes e em brasa , e um peso tão grande que só a podia


trazer tombada sobre o peito .

Immediatamente , em grande pressa , foram chamados


os magos e o rei , por entre gemidos e brados de an

gustia , dizia-lhes o seu soffrimento promettendo - lhes


immensos thesouros se o curassem ou a morte se nada

conseguissem .

O primeiro tudo fez : velou noites seguidas , invoco u


os deuses , experimentou as mais complicadas formulas ,
tentou todos os recursos da magia.
CONTOS ESCOLHIDOS 157

Um dia longo e quente , ao sol , e toda uma noite,

passou- os no eirado do palacio consultando o vôo dos

passaros e o brilho dos astros e , com o soar das bu

zinas annunciando a madrugada , resignadamente , entre


guardas desceu para morrer .
Outro veiu e teve a mesma sorte.

De todas as partes chegavam magos e feiticeiros e

todos desciam ao pateo lobrego onde o carrasco abatia-os

de um golpe . E o rei , gemendo e sem poder levantar

a cabeça , augmentava as promessas de riquezas e in


ventava supplicios mais dolorosos .
Continuamente subiam sabios á real camara, conti

nuamente o machado do carrasco decepava cabeças ve


neraveis.

O povo , estarrecido de medo , nem cuidava de nego

cios porque os guardas tinham ordem de matar todo

aquelle que falasse mais alto nas ruas e , todas as tardes ,

eram levados para as cavernas funebres centenares de

cadaveres de mulheres . Nos templos os victimarios es

corriam em sangue e nos altares não se extinguia a


chamma dos holocaustos .

Já os cortezãos desesperavam da salvação do mo


158 CONTOS ESCOLHIDOS

narcha, cujo soffrimento augmentava a mais e mais ,

quando um velho mago , havia muito apartado da corte ,

vivendo solitariamente numa montanha , foi trazido a

palacio .

Não ignorava as condições impostas pelo rei - a

fortuna ou a morte e , como o pateo de supplicio ficava

em caminho da torre em que se havia isolado o enfermo ,

o ancião , levantando a aba da simarra , passou sobre o

sangue dos que o haviam precedido e viu o carrasco in

flexivel , afiando o machado junto ao cepo de cedro onde


tinham rolado tantas cabeças cheias de sabedoria .

Não se intimidou : serenamente , seguindo o cama

reiro que o guiava , chegou á presença do rei que gemia .


Os aulicos , curiosos da sciencia do solitario , cer

caram -n'o , elle , porem , depois de haver purificado as

mãos num vaso de ouro , declarou que , para conseguir

a cura, era necessario ficar a sós com o monarcha .

Com um leve murmurio, como o dum fio d'agua a

fluir, os cortezãos sahiram e o velho correu , experi

mentou os ferrolhos de todas as portas. Dirigindo - se ,

então , ao enfermo que apertava a cabeça entre as mãos ,


disse :
CONTOS ESCOLHIDOS 159

-Senhor, para que eu vos examine , como convem,

é necessario que adormeçais. Tenho commigo um elixir


de somno que vos dará um momento de allivio . E dum

guturnio verteu num pequeno copo cavado em uma

esmeralda as gotas dum narcotico que o rei bebeu sem


hesitar , cahindo immediatamente em profundo lethargo .

O mago tirou , então , do seio uma pequena bolsa ,

despejou-a sobre uma patena de prata e miudas lascas

de ouro scintillaram. Olhou-as sorrindo e despertou o

rei que, ao reabrir os olhos , logo pôz- se a gemer :

-Porque tão depressa me tiraste do somno ?

Senhor , não foi para adormecer- vos e sim para

curar- vos que aqui me trouxeram, entre armas . Se vos

mergulhei no somno de que sahistes foi para examinar ,

com descanço , a vossa cabeça e descobrir a causa do

soffrimento que vos traz combalido e todo o reino em

grande e justa tristeza .


-- E então ?

- Tenho o que basta para garantir- vos a cura —- é o


conhecimento do mal . E, adiantando - se com a patena ,

no fundo da qual brilhavam as lascas de ouro , explicou :


A vossa molestia é de natureza estranha e , a meu ver,
160 CONTOS ESCOLHIDOS

originou-se no vosso constante pensar em riquezas. A pro


va aqui a tendes nestas pepitas . A idéa fixa materialisou

se. A vossa cabeça está se transformando em ouro . Com

prometto-me a curar-vos em menos de uma hora ras

pando toda a crosta que forra o vosso craneo e destacando

todas as particulas que se acham incrustadas na massa

cerebral, se assim julgardes que devo fazer. Como é

um thesouro não quiz proceder sem ouvir a vossa palavra.

O rei ficou largo tempo a pensar e a gemer. Tomou

entre os dedos as pepitas luzentes, chegou- as bem aos

olhos , examinou -as , só pesou -as na palma da mão , mur

murando : Bom ouro ! Bom ouro ! Por fim , disse : Fizeste

bem em consultar-me . Tal molestia só póde ser um ca

pricho dos deuses , porque não consta que homem algum

houvesse jamais produzido ouro . E suspirou : Cumpra-se

a vontade divina. E em quanto tempo julgas que terei

toda a cabeça transformada em ouro?


- Senhor, em menos tempo do que gasta a lua para

mostrar ao mundo as suas quatro faces.

-Bem, vai ! Concedo-te a vida ... E o mago , incli

nando -se, ajuntou :


-E outro maior thesouro não me podieis conceder.
CONTOS ESCOLHIDOS 161

Todavia , se vos quizerdes curar, senhor, eu lá estou na

montanha , disse o mago de cabeça baixa , sorrindo por

tráz das grandes barbas alvas que rojavam no chão .

-Curar- me ! ... suspirou o rei . Pudesse eu melhorar


um segundo e daria , de bom grado , metade do meu

reino , o mais rico da terra ... mas como hei de eu con

trariar a vontade superior dos deuses ! Já agora soffrerei

até que toda a minha cabeça se transforme em ouro . Vai !

e que os deuses sejam propicios á tua velhice.

O mago retirou-se contente com a sua astucia , reco

lhendo- se ao silencio religioso da montanha e numa doce

noite de lua, á hora em que cessavam os canticos no

templo , o rei deixou de gemer no seu leito de ouro e


marfim .
O BERÇO
O berço ( *)

Entre violetas e rosas, pequenino e risonho , as mão

sinhas cruzadas sobre o peito , Dedê, de cinco annos ,

dorme para o todo sempre .

Veste-lhe o corpinho rechonchudo a mesma cambrai

eta com que foi á pia , á cabecinha loura a mesma touca

branca. Parece que esperam que acorde para leval - o

novamente á igreja . Baby , de tres annos , guarda o pe

quenino irmão . Sabe que dorme porque lh'o disseram .

Para não despertal -o pisa de manso , cautelosa , aper

tando nos braços Colombina.

(*) DO ROMANCEIRO
11
166 CONTOS ESCOLHIDOS

O sol faz um translucido veusinho de ouro para o

rosto risonho de Dedê . Os cirios empallidecem e as flo

res vão murchando junto ao corpinho frio do defunto .

Batem palmas á porta . Baby estremece . Aperta mais

Colombina e lança um olhar ao irmão , receiosa de que

haja despertado . Mas Dedê não desperta : dorme, as

mãosinhas cruzadas sobre o peito , como rezando . Batem

palmas de novo .

Baby , cautelosa , em pontas de pés , vai á porta e ,

coitadinha ! não consegue abafar um grito dando com os

olhos no velho negro que traz debaixo do braço , como

um estojo , o pequenino esquife côr de rosa e branco ,

cercado de franjas de ouro . Baby não consegue suffocar

um grito: bate palmas , contente , deixa cahir Colombina

e entra, a correr, annunciando :

-Está ahi o berço novo de Dede ! Está ahi o berço


novo de Dedê .

E, com voz de choro , agarrando - se ás saias da avó

tremula , que vai compondo ramos para a pequenina ,

implora.

-Mandas fazer um berço igual para mim, vovó ?

mandas fazer , vovósinha ? E , para convencel- a , beija


CONTOS ESCOLHIDOS 167

lhe , repetidas vezes , a mão magra e a velha , soluçando ,


beija-lhe os cabellos louros .

Ha dias , indo , de visita , á casa , encontrei- a silenciosa

Fóra , no rosal, já não cantavam passaros , dentro , no

interior , não se balançavam berços . Senti que ali faltava

alguma coisa ... não havia barulho . A mãi , viuva , de

vez em vez, levantando a cabeça , punha os olhos no ceu

e baixava-os molhados . A velha não falava. Senti que ali

faltava alguma coisa ... Voltando os olhos , por acaso ,


descobri Colombina sobre uma peanha. Pobre Colom

bina ! Lembrei -me , então , de Baby e perguntei por ella .

A velhinha poz-se a tremer. A mãi baixou os olhos ,


soluçando .

Teria a complacente avó satisfeito o desejo da cri

ança ? Teria a velha dado á Baby um berço cor de rosa

e branco igual ao de Dedê ? E não foi outra coisa ...

Essas velhas avós fazem tantas vontades aos netinhos ...


1
1
A MORTE
A Morte (*)

Em verdade , irmão Chrispo , o mundo tem os seus

regalos . Não ha nada mais doce do que sahir com a ara

gem da manhan, quando o céu se vai distingindo da noite ,

e passear entre as frescas hervas , ouvindo os passaros

do Senhor , sentindo o aroma das rosas . Eu , que tudo

plantei nesta leira , desde a arvore que nos abraça com a

sua sombra até as alfaces que nos deram o caldo , tenho

por ella tal amor que já me tem levado a commetter


crimes bem negros .

Lembro-me de haver passado toda uma manhan de

( * ) DO ROMANCEIRO, 2.ª edição , de Lello & Irmão, Porto, 1906.


172 CONTOS ESCOLHIDOS

guarda aquella figueira, a sacudir um ramo para afugen

tar os gulosos passarinhos e ainda cumpro a penitencia

que me impuz por haver esmagado aos pés, com furia,


uma lagarta que me roia as alfaces.

São animaes do bom Deus, têm tanto direito á vida

como nós e, se vamos ao bosque detorar as arvores para

que nos dêem lume , se recolhemos a verdura que nasce ,

se tomamos na celha a agua que corre , porque nos have

mos de revoltar, com tanta ferocidade , contra os que

vivem como nós vivemos ? Mas a gente apéga- se a estas

coisas precarias como o avarento aferra - se ao seu the


souro de moedas.

E' quasi o mesmo peccado .

-Tambem eu tenho culpas, irmão Honorio , culpas e

grandes que me fazem tremer. A vinha que plantei no

meu terreno cresceu , alastrou com viço tão prodigioso

que cheguei a pensar em um milagre e , mais duma vez ,

de pura alegria , olhando aquelles sarmentos e aquelles

pampanos , ajoelhei - me louvando o Senhor que nem


esquece a planta na sua misericordia .

No tempo da carga é um gosto vel - a , toda verde ,

com os seus cachos pyramidaes oscillando e vergando a


CONTOS ESCOLHIDOS 173

cepa, tão doces que o assucar se vai crystallisando nos

engaços , á medida que o caldo escorre; e as abelhas

põem -lhes tal cerco e os passarinhos dão - lhes em cima

com tanta gana que eu tambem , como tu , meu irmão ,

por mais de uma vez, tenho interrompido a oração para


sahir, aos brados , sacudindo varas, a enxotar os bichi
nhos.

Mas o que mais me tortura -porque ainda não me

julgo limpo de tamanha culpa -é o arranco que tive no

anno passado , anno rico , de fartura e sabor : os me

lhores frutos que tenho provado neste refugio e os me

lhores legumes foram os que elle nos deu .

-Anno de muito peccado , irmão .

-Nesse anno funesto tive eu o primeiro assomo de

ira e não estou longe de o attribuir a traças subtis com

que o demonio arrasta-nos ao peccado.

Estava eu a folhear uns manuscriptos , que me foram

legados pelo beato Angelo, quando ouvi o piar dum pas


saro , lá para os lados da vinha . Logo , assustado , levan

tei os olhos e descobri o furtador, que saltava por entre

as folhas, lépido e cantando . Bradei , um grande brado


que atroou . O passarinho bateu azas , assustado. Tornei
174 CONTOS ESCOLHIDOS

á leitura, mas o espirito estava longe , a rondar a vinha ,

e , assim , não lhe foi difficil descobrir o esperto passa

rinho que tornára. De novo bradei , mas as uvas eram

tão doces , a folhagem era tão espessa , que o animalsi


nho lá se deixou ficar. Levantei - me de rebentina , tomei

um calhau e, tão desastradamente o lancei , que a ave,

colhendo as azas , rolou por entre as folhas e cahiu no

chão palpitando , com um fio de sangue a escorrer-lhe do

biquinho aberto , e ali expirou, a meus olhos. Ah ! meu

irmão, a dôr que tive !

A' tarde , indo á cisterna , junto á qual ha uma grande

arvore , ouvi tão triste piar entre as ramas que levantei

a cabeça e , guiado pelos queixumes , descobri um ninho

e logo um presentimento me disse que as avesitas que

ali choravam era filhas da que eu matára . Para conven


cer-me deixei - me ficar sob a ramada, a ver se chega

vam os pais dos pobresinhos .


Desenrolaram-se no ar calado as nevoas finas da

tarde , a brisa refrescou e as estrellas nasceram annunci

ando a noite e , entre os ramos , cresceu , mais afflicto , o

lamento dos passarinhos . Então , apezar da minha fra

queza , difficilmente e com risco , fui - me guindando pelos


CONTOS ESCOLHIDOS 175

galhos até que alcancei o ninho e , como se colhe um

fruto delicado , assim o desprendi do ramo .

Recolhi com elle-no fundo , entre molles achegas ,

tres implumes piavam, escancaravam os bicos , com os


cotos das azas tremendo .

Ai ! de mim, irmão Honorio ... que dôr funda alan

ceou - me o coração arrependido ! As lagrimas saltaram

me dos olhos , mas , pensando em salvar os pobresinhos

que a minha ambição orphanára , corri ao corveiro a or

denhar a cabra e , ajuntando ao leite fina flor de farinha ,

fiz uma papa com que fui alimentando os pequenitos .

Durante um mez foi essa a minha penitencia e só me

senti alliviado quando os vi voando e chilreando , e com

que alegria os segui ao vinhal e os vi debicar as mosca


teis mais gordas .

Onde andarão elles ? por esses ares , por esses bos

ques ... talvez tecendo um ninho . Nesse tempo , meu

irmão, o meu terror era grande-eu só pensava na morte

e , cingindo mais fundamente o cilicio e pedindo mais frio

e dureza ás lages em que me deitava , e minguando , a

mais e mais , as minhas rações, tremia com a idéa de

morrer em peccado e pedia , com ancia, a vida traba


176 CONTOS ESCOLHIDOS

lhosa , não pelo gozo de viver, mas para expurgar- me

da culpa infame em que cahira.

Ah ! a morte... a morte , meu irmão ... ! Deus que

me perdôe o pensamento , mas como seria bom se rece

bessemos um aviso misericordioso prevenindo -nos do dia


tremendo . Vagarosamente nos iriamos preparando para

o transe , com orações e jejuns , catando dalma , uma a

uma , todas as culpas , apagando todos os pensamentos


maus e, com o espirito puro e leve, bem sacudido dos

peccados, deixariamos tranquillamente o mundo , como


quem se apercebe para uma longa , difficil e arriscada

jornada , dispondo tudo com segurança , acautelando - se

contra todas as surpresas do tempo e dos caminhos

agrestes e mal corridos , para vencer a fome e a sêde , os

sóes e as neves , as féras e os assaltos dos assassinos .

-Sim , seria, talvez , melhor do que é , mas não com

mentemos a ordem que Deus pôz no mundo : Elle , que

assim pensou e decidiu, foi porque assim lhe pareceu que

estava bem. Chrispo , porém, calando um pensamento ,

meneou com a cabeça toda branca, suspirando como a

desopprimir-se .
CONTOS ESCOLHIDOS 177

Já a tarde esfriava nublada quando elle tomou o

cajado e partiu .

A sua cabana ficava á meia encosta dum outeirinho,

dentro dum airoso bosque de palmeiras que uma fresca

fonte alegrava . Honorio , de tempos a tempos , ia até lá

cima resolver alguma duvida theologica , esclarecer um

ponto dos sagrados livros, ou algum dos anachoretas que


descera aos mosteiros , de volta á sua solidão , surpre

hendido pela noite , temerosa em tão ermas paragens ,

batia á cancella pedindo guarida.

Ia o eremita embebido na belleza da paizagem quieta

e toda dourada pelos ultimos clarões do sol , louvando

intimamente o Senhor , que sempre punha um novo en

canto na terra e no céu , áquella hora de melancolia ,

quando , já no caminho da cabana , pisando as folhas que

forravam a trilha solitaria , avistou um mancebo airoso ,

de rara belleza , que jazia sentado em uma pedra mus

gosa.

Um passaro cantava de ramo a ramo e a aguasinha

da fonte, derivando em corrego , viva e alegre , fugia ,

com um murmurio de falas cochichadas , por entre as

hervas finas , que se inclinavam, como para ouvil- a .


178 CONTOS ESCOLHIDOS

Chrispo parou um momento, enleado , admirando o

estrangeiro , tão entretido a ouvir o canto do passarinho

que não lhe sentira o rumor dos passos na secca e aca

mada folhagem, que estrallejava como ramalho ao fogo .


De olhos fitos e todo arrepiado de emoção , o soli

tario ficou como de pedra ao descobrir as grandes azas

que o peregrino colhera , como para occultar a sua na

tureza etherea , e lembrou - se da idade de plena graça ,

das terras abençoadas do paiz chaldeu , quando , ás ulti

mas luzes da tarde , os pastores, sentados á beira das

tendas, calavam-se, tomados de espanto , vendo pousar


no cimo dos outeiros entre as ovelhas deitadas , moços

alados , que traziam mensagens do ceu aos patriarchas .

Então , com immensa e devota humildade , Chrispo incli

nou-se e murmurou de mãos postas :

-Bemdito seja sempre o santo nome de Deus . E o

anjo , voltando- se e illuminando - o com o olhar , mais azul

e mais claro do que o ceu de verão, saudou- o docemente :

-Seja a paz do Senhor comtigo , Chrispo .


Chrispo ficou tolhido de vexame , sentindo toda a sua

miseria: a nudez da cabana , a dureza do catre de palha

e ripas , o grosseiro canhamo dos lençóes , tão asperos


CONTOS ESCOLHIDOS 179

como as urzes que os sóes reseccam nos cerros . Mas o

anjo, como se lesse no seu pensamento , a pretexto da

friagem da tarde e da fome que trazia , pediu-lhe agasa

lho e ceia , adiantando-se graciosamente para a horta,

elle mesmo colheu as alfaces mais tenras , rorejou - as na

fonte e encaminhou -se para a cabana . Seguiu- o o ere

mita e , em poucos minutos , ardia um fogo alegre e o


caldeirão fumegava com um referver gorgolejante .

A lua subia, grande e pallida , e , de longe , dos areaes

desertos , vinha o rebusno dos onagros que cabriolavam .

Depois da ceia , que foi lauta - duas vezes o anjo


estendeu a escudella reclamando nova ração de legumes

-Chrispo , pondo- se de joelhos , agradeceu a graça ma

gnifica daquella visita e o anjo disse-lhe com serenidade :

-E ha que agradecer. Não foi sem motivo que vim

ao teu eremiterio amavel : trago - te um recado de Deus

e consiste em dizer- te , para tua satisfação , que tens um

anno justo de vida .

-Não ha meia hora ainda que pensei em tal ...

-Ha meia hora que te espero , sentado sob os ramos

da cerejeira, ouvindo cantar um passaro e vendo correr ,

por entre as hervas , a agua clara da fonte . D'hoje a um


12
180 CONTOS ESCOLHIDOS

anno , nesta mesma hora da tarde, passarás da vida á

morte , sem agonia e sem peccado , se te mantiveres em


graça diante de Deus .

-Ai ! de mim , suspirou o eremita , rojando - se com

a face na terra , aos pés do anjo ... Ai ! de mim , que tão


pouco tenho feito e tanto recebo de Deus em misericor

dias , disse ; e as lagrimas rebentaram - lhe dos olhos , e ,

chorando , clamava contra os gozos que ainda fruia :

aquellas arvores que lhe acenavam com os ramos fartos ,

aquellas aguas tão puras , aquelle asylo de tanto con

forto e , ainda um leito de ramos cheirosos , quando havia

pobres , famintos e maltrapilhos que , no rigor das neves ,

nem achavam um palheiro onde se escondessem ...

Clamava em vozes altas, quando ouviu um fórte

bater dazas . Levantou a cabeça : a cabana estava

deserta -correu á porta , ergueu os olhos e viu , entre as

radiantes estrellas , um clarão que fugia aladamente , res

plandecendo .

Nessa mesma noite , Chrispo , que sempre resava um

longo rosario, mais de uma vez reteve as contas entre os

dedos, a pensar nas palavras do anjo . « Ao cabo dum


CONTOS ESCOLHIDOS 181

anno, áquella hora quieta , elle ali estaria hirto , estirado


no chão ... »

E olhava a sua sombra estendida na terra, a tremer

com otremor da lampada , como se a idéa de morte tam

bem lhe causasse pavor . E elle , que tinha as carnes vin

cadas das flagellações , que passava magramente a hervas

cozidas , que dormia em duro grabato , que tiritava de


frio, só; elle , que nunca conhecera o gozo, sentia saudade

da vida e das dores e até do medo que , muitas vezes ,

noite alta, o tolhia quando , no zoar do vento , passavam

fremitos de féras ou, em torno da fragil cabana , animaes

galopavam surdamente e detinham-se bufando na soleira ,


arranhando a porta , que rangia .

Não poude conciliar o somno . Sahiu ao horto , alvo á

luz do luar , e nunca lhe pareceu de tanta belleza aquelle

retiro e que lindo era o céu e que aroma nos ares puros!

Ficou-se a pensar no recado divino .

Era preciso forrar- se contra as tentações , preparar- se

para o transe , pôr - se em virtude perfeita e cuidando ,

imaginando , sem sentir as horas , atravessava semanas

esquecendo penitencias e orações , errando pelos cami

nhos, parando attonito á sombra das arvores , contando


182 CONTOS ESCOLHIDOS

os dias , marcando- os em entalhes fundos nos troncos das

arvores, com os seixos das fontes e com folhas seccas, que

ia pregando pelas paredes ... E os dias passavam : as


penitencias accumulavam-se , tão adiadas iam ficando e o
horto, abandonado , cobria - se de hervas damninbas .

Uma manhan, em grande desespero , desceu á choça

de Honorio : encontrou - o tranquillo , a cantar , limpando

a azequia da sua horta. Logo ao dar com elle - tão


demudado estava-Honorio estremeceu : o aspecto de

Chrispo era o de um energumeno : os olhos queima

vam de incendidos , rugas fundas vincavam- lhe a fronte e

as faces, um tremor sacudia- lhe todo o corpo esqueletico .

-Que afflicção assim vos transformou , irmão ? inda

gou em sobresalto o manso eremita . Chrispo deixou- se

cahir em um banco rustico e grossas lagrimas subiram

lhe em borbotões aos olhos e foi por entre lagrimas que

narrou o caso daquella tarde de belleza e doçura- a

visita do anjo portador do recado divino ...

Ah ! os cuidados em que , desde então , andava : só a

pensar naquelle momento espantoso que vinha tão perto

e que elle esperava , impotente , como um crucificado que


CONTOS ESCOLHIDOS 183

visse vir nos ares , faminto , um abutre d'arremettida

cruel ao seu corpo indefeso .

Todo o seu pensamento fixava-se na morte : tudo


esquecera a herva crescia avassallando a cultura , a

agua da fonte, dantes limpida e corrente , rebalsava-se


em atascadeiros cobertos de folhas que apodreciam e a

sua alma ia- se tambem tornando , como o campo , bravia


e agreste porque não rezava , não lia , nem mais exerci

tava as penitencias , tão regulares antigamente . « E ' que


eu sei o dia da minha morte e isso , irmão , tolhe- me para
tudo mais ... >

-Que disse eu, irmão Chrispo ? Quizeste entrar nos


arcanos de Deus , ahi tens . Tudo está bem como está não

queiramos andar adiante dos minutos , contentemo - nos


com os horizontes porque até lá chegam os nossos olhos ,
não varejemos o que se nos occulta . Eu sou feliz e sei eu ,

por acaso , se ouvirei , até o fim, o canto desta cigarra


que nos alegra ? não sei ... e morreria docemente com a

impressão de o ter ouvido . O melhor da vida é o myste


rio e o unico bem da morte é o imprevisto . Tendes o se

gredo de Deus , fazei - vos agora digno do seu perdão ,

porque, a meu ver, peccastes iniquamente. E é tudo

quanto vos posso dizer ...


184 CONTOS ESCOLHIDOS

-E' tudo !

-E' tudo ... Chrispo inclinou a cabeça e ficou pen

sativo , a arquejar tão anciadamente que o burel zim

brava no seu peito cavado .

Era o tempo em que os ninhos despedem as novas


gerações e , por todos os ramos , vozes ensaiavam- se em

pios respondendo aos reclamos gazis que nas frondes


altas trinavam .

Chrispo encaminhou-se vagarosamente para a can

cella , abriu - a , sahiu ao caminho e foi - se , sem voltar a

cabeça, desapparecendo na estrada de saibro , que ardia

e faiscava ao sol áquella hora abrasada do meio dia.

Honorio sentiu, então , uma intensa piedade pelo com

panheiro e , ajoelhando- se na terra fofa, preparada para

a sementeira, ficou até tarde , orando ao Senhor para que

preservasse aquelle espirito de tão entranhada angustia

e , durante longos dias e noites seguidas, todas as suas


orações foram em favor do solitario.

Ao dealbar duma manhan luminosa , Honorio descia

á ribeira quando viu uma nuvem de abutres voejando na

direcção do palmar airoso que encerrava a cabana de

Chrispo e um pensamento de morte atravessou - lhe o


CONTOS ESCOLHIDOS 185

espirito . Sem demorar um minuto endireitou para o ou

teiro a passos apressados.

Logo ao passar a cancella travou-se-lhe o coração de


pena ao ver tão acceitoso retiro transformado em intenso

mattagal e a casa palhiça aberta , em abandono , com


herva a cobrir a soleira secca e no colmo , d'azas espal

madas , abutres gozando o sol .

Bradou pelo eremita : tres vezes os échos atroaram .

Então , resolvido, passou o limiar e logo os seus olhos , já

humidos , fitaram a parede onde se enfileiravam folhas

seccas espetadas no adobe com espinhos agudos e , con

tando -as, achou noventa e cinco , que tantos tinham sido


os dias atormentados do miserando .

De novo bradou o nome de Chrispo e , sem resposta ,

sahiu a procural -o . Correu a horta onde os legumes mir

ravam , passou ao pomar que o corrego , transbordando ,

transformára em paúl e , ao fundo , pendente do galho

duma arvore, viu o corpo do eremita oscillando , com

abutres pousados sobre os hombros atassalhados , o burel


rôto , o rosto em caveira, os ossos nodosos das mãos e dos

pés amarellando ao sol .

O desespero levara- o a precipitar a morte , a adiantar


186 CONTOS ESCOLHIDOS

se ao destino e Honorio , sem conter o pranto , ajoelhou

se rezando pelo companheiro e , até á tarde , ali esteve e á

noite, com o luar, cavou uma sepultura e deitou o cada

ver. Então , fechando a cabana , desceu vagarosamente ,


caminho do eremiterio , repassando , em silencio, as con

tas do rosario, a ouvir as vozes agourentas das aves que

voavam dentro da noite e o rebusno dos onágros nos

areaes do deserto .
CORAÇÕES LOUCOS
1
1
Corações loucos (*)

Nesse recolhido e calmo povoado , entre collinas sem

viço , solitario e tristonho no correr do inverno , buli


çoso , movimentado , alegre durante o verão , com a che

gada dos que iam ás aguas por molestia - macilentos ,


molles; por chic - em flanellas claras, alpenstock , po
lainas ; á caça de casamentos - grandes ares , phrases de
velludo , olhares doces , muito ao papá , muito á maman ,

officiosos , solicitos , risonhos ; ás oito da noite , a não ser o

concerto das rans , que Aristophanes celebrisou no côro


da comedia: Brekekex , coax , ... outro rumor não agitava
a tranquillidade exterior.

( ) Da SEARA, DE RUTH Domingos de Magalhães, editor, 1898.


190 CONTOS ESCOLHIDOS .

No velho casarão do hotel , vasto , sombrio , echoante ,

de longos corredores claustraes , por onde passeiavam

lentamente hepaticos , á luz tibia de uma lanterna fuma

renta , brincava- se até tarde - eram walsas loucas , ao

chocalhar de um piano da familia das cascaveis ... (como


as flanellas claras circulavam ! e os caçadores , com que

garbo passeiavam os veneraveis e adiposos corpos das fu

turas sogras ...) eram correrias pela varanda, revoadas

de moças, tranças soltas, olhos ternos; rodas de petizes e

gritinhos : << Mentes tu ! Onde estavas tu ?!» Homens de

gorro , aos pares , intimos em pouco tempo , passeiando ao

longo da sala a digestão e as idéas politicas , com arrotos

abafados e graves conceitos sobre a marcha do paiz ,

outros, bebendo a pequenos sorvos e , de momento a mo

mento , um esbaforido , esguedelhado , pallido sacudindo

gestos de maldição , pedindo alcool , qualquer alcool com

os olhos gazeos fulminando uma ficha apertada entre os


dedos .

Durante a estação das aguas é agradavel a vida nesse

canto de provincia , aonde me levara a mais cruel , a mais

obstinada dyspepsia que jamais atanazou creatura . Em

quanto andei abeberando o mal , vi sahirem desse jocundo


CONTOS ESCOLHIDOS 191

hotel , seis curas radicaes , duas fallencias , quatro flanellas

claras sem recibo ... e sem malas , dezoito divorcios em

perspectiva, varios enterros e trinta sogras ... logo que


chegassem ao Rio .

O meu visinho de quarto (n . 8 ) , um velho secco , so

lidamente constituido , rijo , teso nos seus musculos de

aço, methodico nos seus habitos , acordando ás cinco para

a ducha e o seu passeio a cavallo : meia legua de corrida

pelos campos orvalhados , antes do sol - cinco ou seis

dias depois da minha chegada procurou-me e ficamos

amigos desde então , bons amigos . Conversamos sobre

assumptos geraes : arte , politica , historia , sociologia e

mulheres . Bom espirito, de uma inquebrantavel jocun

didade . Durante o dia jogavamos o bilhar ou sahiamos

pelos caminhos a pé , discutindo . Foi em um desses pas

seios que elle me fez saber as razões da sua viagem a esse

canto taciturno: hygiene espiritual , aconchego na mul


tidão . Não acreditava na efficacia das aguas que jorravam

effervescentes , não sahia dos seus habitos :

-Xerez e Selters - ia ali unicamente para viver em


192 CONTOS ESCOLHIDOS

familia . Tinha , de vez em quando , uma nostalgia vaga ,

indecisa , que logo desapparecia desde que elle sentia em

torno a garrulice das crianças , o riso alegre das moças ;

entretanto aborrecia o tumulto , detestava a convivencia .

Nada como a solidão suggestiva . Tinha fortuna , era

só, podia gozar e viver largamente , mas preferia a exis


tencia sobria e calma .

A' noite, recolhidos , palestravamos , Iamos até tarde


nessa intimidade toda intellectual. A' meia - noite , porem ,

invariavelmente , o meu vizinho estendia - me a sua mão

fidalga, fria e secca , e despedia-se sempre com a mesma

phrase:

-Vou enterrar a particula finada . Até amanhan .

Confesso que, na primeira noite , essa phrase me passou

despercebida , mas , como elle insistisse , entrei a scismar ,

procurando a significação do comprimento mysterioso , e ,

uma noite , antes de entrarmos a discutir idéas , pedi a

explicação .

-E' simples , meu amigo , muito simples .

Talvez pareça extravagante o meu modo de ver o

facto , entretanto , nada tem de original - é comesinho , é


vulgar como uma mulher.
CONTOS ESCOLHIDOS 193

Sou isolado , vivo inteiramente só , o sangue que me

corre nas veias é o derradeiro de uma raça de fortes , vem

dessorado por muitos seculos , atormentado por muitos

soffrimentos . Commigo vai desapparecer um nome . O meu

estudo profundo , consciencioso e serio , fez com que me

surgisse na alma uma obtusidade- não comprehendo


a amisade .

Vivo só, inteiramente só . Toda approximação é ego

ista - duas creaturas não se ligam senão para se destruir :

o amor é uma parasita , a amizade é um polypo . Vivo só .


O meu companheiro é o sol - vivo com elle na melhor har

monia ; não o aborreci ainda , porque a noite encarrega-se

de o fazer desejado . Quando a luz se retrahe recapitulo

o meu dia e annoto - o : é a pequena historia de doze horas


de vida . Um dia que morre é para mim uma particula

de minha vida que desapparece : é mais uma pagina para

o meu diario , que outra coisa não é senão um mausoléo

onde me vou enterrando pouco a pouco . Ali estão os

meus dias felizes , os meus dias de amor e de sorrisos , as


minhas horas de melancolia . Guardo o diario commigo

como alguns outros guardam a urna , o ossuario dos

parentes . Quando quero reconfortar a alma exhumo :


194 CONTOS ESCOLHIDOS

leio uma das paginas felizes e , para ter coragem para os

infortunios , retempero-me nas paginas desgraçadas . Não

ha espiritas que fazem evocações pedindo a presença dos

que se foram ? Eu não perturbo os outros mortos , satis

faço - me com revolver o tumulo em que vou baixando

aos poucos , porque estou convencido de que a morte co


meça no dia do nascimento - a vida esvai-se lentamente

em desillusões e em esperanças , em lagrimas e em sor

risos ; a morte é o desmoronamento de um corpo , cujas

particulas se vão desaggregando pouco a pouco ... E

ninguem sente o dia que perde ; mas , notando - se com

attenção , percebe- se que a morte nos levou parte da

vida ... O morto não volta a caminhar no mundo e

quem é capaz de readquirir o que perdeu na vespera ?


-
Hontem eis o nome da porta da eternidade . Não é ori

ginal o facto ; o modo de ver é que é extravagante . Eis

ahi a explicação da minha phrase habitual : «Vou enterrar


a particula finada . >>
Sorriu e , descobrindo sobre a minha mesa um numero

do Figaro - Salon , onde vinha a reproducção do quadro de

Béraud- « La Madeleine chez le pharisien » -entrou a dis

cutir pintura ... E , ás onze horas , tendo percorrido todas


CONTOS ESCOLHIDOS 195

as regiões da Arte , disse - me naturalmente a phrase ,

e eu respondi com sentimento e um forte aperto de


mão:

-Sinto muito da minha parte .

13
Į

I
A GOTTA D'AGUA E AS NUVENS
A gotta d'agua e as nuvens ( *)

Os pastores mais velhos juravam não haver , em

memoria d'homem, lembrança de tão rigorosos sóes ,

queimando aquelles ferteis lugares , como os do abra

sado verão que passava, lento e suffocante .

De tantos rebanhos que pasceiam nas achadas e

pelos verdes reconcavos alegrando , com as suas vozes ,

o agreste silencio , poucas ovelhas restavam, essas mes

mas entresilhadas , balando tristemente no fundo das

grotas seccas .

Mantendo-se o ceu sempre azul , sumindo-se , chu

(") Dos APOLOGOS , 1.ª edição, Campinas, 1904; 2.ª edição de Lello & Irmão,
Porto, 1910.
200 CONTOS ESCOLHIDOS

pados pela terra , os derradeiros fios d'agua , quasi todos

Os zagaes abandonaram as pasturas montesinas des

cendo á planicie com o fato dizimado .

Na serra ficaram apenas dois moços resistindo ao


flagello , esperando que se rompessem as nuvens que

atravessavam o ceu, fartas d'agua , rolando além dos


cimos remotos .

Um dos moços , preguiçoso e desanimado , depois dum

dia de penoso andar por fraguedos e balsas , á cata

de fonte ou arroio , tornou ao seu tugurio descorçoado

e , sem pensar no rebanho que ia , aos poucos , ficando

reduzido , resolveu entregar- se á Providencia , certo de

que ella o havia de soccorrer .

O outro , mais activo e corajoso , metteu - se ao matto ,

invadiu cavernas , desceu a grotões a ver se encontrava

um broto d'agua a saltar da terra ou toalha espumante

a alagar penedo , porque não lhe parecia possivel

que aquellas rochas , sempre copiosamente lavadas ,

seccassem dum momento para outro .

Ao cabo de muita fadiga viu um escasso lacrimal

instillando d'alteroso alcantil e , contente , partiu a levar

a noticia ao companheiro .
CONTOS ESCOLHIDOS 201

Encontrou- o deitado á sombra , lamentando a sua

miseria e, em torno delle, os magros animaes esfalfados ,

ávidos, baliam baixinho como em queixa triste .

Sem conter a alegria deu parte da sua fortuna , des


crevendo o sitio acceitoso e fresco onde encontrára

agua.

- Rio ou fonte ? perguntou o lerdo pastor .


-Nem rio nem fonte : é uma lagrima lenta que pinga

da pedra .

Pareceu ao outro tão minguada a ração que nem se

quiz fatigar descendo ao sitio sombrio .

—Lenteja gotta a gotta o manancial que encontraste


e que é isso para a sède dos animaes ? Não será com

gottas d'agua que hei de salvar o pouco que me ficou do


rebanho. Se se tratasse de fonte ou corrego , onde os

pobresinhos bebessem á saciedade , eu desceria comtigo

supportando o sol que abrasa ; mas por tão pouco não

quero aggravar o soffrimento com o cançaço .


-Mas se houvesse fonte ou corrego nós não lamen

tariamos a inclemencia do sol e a serra estaria animada ,

como dantes , com todos os pastores nos seus ranchos e

todos os pastos cobertos de gado . E' justamente por


202 CONTOS ESCOLHIDOS

ser aepocha de apertada miseria que me alegro o achado


que fiz. Vem !
- Não , disse o outro ; as nuvens ennegrecem e

incham a mais e mais , annunciando as desejadas chuvas .


Com um só dia de aguaceiro as fontes rebentarão de
novo e as aguas desfiarão das rochas.

- E emquanto não chove?

O moço encolheu os hombros com indifferença .

Vendo que o não decidia , o outro partiu levando ao


hombro duas urnas .

Logo que chegou ao alcantil procurou aproveitar as

duas gottas que manavam das arestas da pedra e , vendo

que cahiam nas urnas , lentamente, a espaços longos ,

sahiu a reunir o seu pequeno rebanho.

Os animaes , sem alegria , abatidos , estiravam-se na

relva queimada , arquejando .

O ceu quente estava todo doirado e , por toda a serra,


cantavam cigarras . As folhas seccas estalavam sob os

pés do pastor e subia de todos os pontos um cheiro acre


e morno de rescaldo.

Pacientemente , vagarosamente , foi o moço condu

zindo ovelhas e borregos , guiando - os , por escolhidos


CONTOS ESCOLHIDOS 203

caminhos faceis , para o sitio amavel e , quando lá chegou ,

antes mesmo de procurar um ponto resguardado onde

se agasalhasse , correu a vêr as urnas e descobriu no

fundo d'ambas a agua que subia e brilhava , tremendo


com o insistente e vagaroso gottejar.

Anoiteceu com luar e o moço , deitado na palha, sem

somno , pensava em noites iguaes áquella , nos tempos

ferteis, quando todos os pastores juntos discorriam, can

tavam em torno de lumes, ouvindo o rolar das aguas


beneficiadoras .

E o companheiro ? Elle , ao menos , buscára aquella

gotta d'agua, soubera descobril-a e ouvia-lhe o lentejo

pausado , certo de que , ao clarear da manhan , teria com

que desedentar-se e ás ovelhas ... E o outro ? Lá es

tava á espera das nuvens que passavam no ceu , som

brias , levando agua para outras regiões mais felizes .

Pastor e gado adormeceram .

Ao romper d'alva , com o canto jocundo dos passa


rinhos e o sussurro da brisa nas folhas, o moço, acor

dando e ouvindo o lepido ruido do estellicidio , correu

ás urnas e achou -as quasi cheias .

Alegre , reunindo o pequenino rebanho e o rafeiro


204 CONTOS ESCOLHIDOS

que o guardava , abeberou -os com a agua duma das

urnas e , aproveitando a da outra , regou a terra no sitio


em que pretendia ficar e logo sentiu a gratidão das

hervas desalteradas : como que acordaram do torpor

estival em que jaziam respondendo , com o viçor , ao


beneficio inesperado .

Tornaram as urnas ás gottas do alcantil e o rebanho ,


contente e reanimado , poz- se a correr no bosque catando
as folhinhas tenras .
Passaram-se dias e dias . As nuvens não se desfa

ziam em chuva, a mais e mais as hervas serranas mirra

vam esturricadas , mas o alcantil não negava o seu


pouco e já o pastio reverdecia á volta do rancho de

palha do moço activo e o rebanho e o cão refaziam- se


saciados.

Lembrou- se , então , o moço do companheiro e subiu


a vêl-o no tugurio da serra.

Caminhando notava pelas trilhas a devastação da


secca. Planaltos que seus olhos avistavam , planaltos

outr'ora viçosos, eram pardos e arrasados taboleiros de

resequidos gravetos ; os leitos dos corregos eram vallos

pedregosos e longe , nas chans avelludadas , nem um


filete d'agua luzia.
CONTOS ESCOLHIDOS 205

Ao sahir numa clareira viu um esqueleto de ovelha ,

outro adiante, ainda outro ; os corvos haviam- se fartado

nos miseros animaes . Seguia e , num fosso , descobriu o

cão de pastoreio que o outro tanto estimava . E o dono ?


achou-o tambem .

Estava estendido , como morto , junto a uma arvore,

os olhos semi - cerrados , a boca entre-aberta . Ajoe

lhou-se e, tomando a borracha que levava a tiracollo ,

chegou-a aos labios do desfallecido .

Logo que sentiu o refresco o desgraçado abriu os

olhos e, fitando - os no companheiro , sorriu tristemente :


-E Deus ! murmurou . E Deus que nos abandona !

As nuvens passam , todos os dias , carregadas d'agua ,

passam devagar, como zombando do nosso soffrimento ,


e vão despejar longe , talvez no mar . Essa é, então , a
misericordia divina ? Vi morrerem, uma a uma , todas

as minhas ovelhas , hoje seria a minha vez se não viesses


em meu soccorro . Achaste por áhi algures fonte ou
corrego ... Eu bem sabia que nem todos haviam

estancado . De mim não se compadeceu o Senhor.


Tambem .. quem sou eu para merecer a compaixão de

Deus !?
206 CONTOS ESCOLHIDOS

-Não blasphemes , disse o pastor : se chegaste a tal


extremo de ti sómente te deves queixar , que não procu

raste remedio contra o flagello . Deus não quer inertes

nem desalentados : o preguiçoso e o pusillanime são


inuteis para o mundo e fracos perante Deus . Sem ini

ciativa e coragem, actividade e esforço , nada se con

segue . Eu , procurando , achei as gottas do alcantil e ,

perseverando pacientemente com ellas , salvei - me e

salvei o que era meu e ainda revigorei as plantas quasi

mortas e vim a tempo de chamar - te á vida.


Confiavas demasiadamente em Deus . Deitado e

rezando , delle esperavas tudo contando com as nuvens

do espaço . Si houvesses imitado o meu exemplo não te

rias soffrido tanto . Eu aproveitei o pouco e todas as

noites, ajuntando as gottas, achava , de manhan , com

que abeberar o gado e regar o pasto ; e tu, com os olhos


nas nuvens carregadas d'agua , que passavam no ceu , ias

acabando entre as. ovelhas mortas de sêde .

Eu nunca confiei nas illusões : achei mais seguro o


pouco do rochedo do que a abundancia que , todos os

dias, passava entre o sol e a terra.

As nuvens eram mais copiosas , não nego, mas esta


CONTOS ESCOLHIDOS 207

vam tão longe e é tão incerto desfazerem-se ... e a gotta

pingava sempre da pedra enchendo as urnas.

Foi o teu mal, e esse é o mal de muitos : deixar o pe

queno bem, que é certo , pelas illusões immensas que


vagam na altura.
B
A ARVORE QUE CANTAVA
3
Gedo es

A arvore que cantava (*)

Certa manhan o rei , que promettera a mão da prin

ceza a quem conseguisse chegar ao reino das fadas ,

foi avisado de que certo mancebo desejava falar - lhe ,

para referir episodios maravilhosos da viagem que em

prehendera ao paiz encantado , onde mortal algum


jamais chegára .
O rei ficou em alvoroçada curiosidade e todos os
aulicos agitaram- se com a noticia , sendo immediatamente

despachada ordem para que o mancebo fosse introdu

zido na sala do throno , onde o monarcha o esperava


entre os nobres da sua côrte .

(*) Dos APOLOGOS


14
212 CONTOS ESCOLHIDOS

A princeza não desviava os lindos olhos da porta por


onde devia entrar o ousado moço que , por seu amor,

arriscára a vida entre gnomos e dragões , que taes eram

os guardas das sete portas de bronze da capital do reino


das fadas e sorriu , alegremente commovida , com duas

rosas vivas nas faces, vendo apparecer o heroe , que

era joven, formoso e senhoril .

Inclinando - se graciosamente diante do rei e daquella

que seria sua , se as provas confirmassem o que alle

gara, poz - se a narrar a sua viagem longa e penosa ,

por entre penhascos , atravez de campinas eriçadas de

espinheiros , cheia de episodios interessantes, aos quaes ,

nem faltaram combates que teve de travar com anões

que surgiam aos milhares , das moutas de violetas , com

um soido impertinente que era a voz das suas tubas ,


enristando espinhos , que eram as suas lanças .

Descreveu os immensos e alfombrados jardins , as

fulgurantes montanhas de crystal , os vastos palacios de

jaspe e onix sustentados por fortes columnas de porphyro

e ladrilhados a agathas e topazios .

Falou dos gigantes , altos como torres, que guardavam

rebanhos de carneiros de vello de sêda lustrosa e cha


CONTOS ESCOLHIDOS 213

velhos de ouro ; falou das formosas mulheres , que tanta

vez admirára nos prados floridos , banhando - se nas

mansas ribeiras coalhadas de nenuphares , aderençando

ginetes , mais alvos do que a neve ou remontando - se ,

em carros prefulgentes , que eram tirados por aguias


brancas .

Todos ouviam-no interessado e , ao cabo da narração ,

como o rei pedisse uma prova , porque não bastavam

palavras, mostrou o moço uma roman de ouro , cujas


bagas eram preciosos rubis , dizendo havel- a colhido no
pomar do palacio da rainha das fadas .

O rei e a princeza admiravam o formoso fruto quando


um dos cortezãos , homem invejoso e que tambem pre
tendia a mão da donzella real, adiantou-se dizendo :

-O fruto é lindo , senhor , mas bem pode ter sahido

da officina de algum ourives . Se veiu de galho darvore

outros iguaes tenho eu visto em montras de joalheiros.

Todos os cortezãos concordaram com o fidalgo , mas


o rei , que sympathisára com o mancebo , pediu - lhe outra
prova do que dissera.

-Senhor, disse o joven , tenho commigo o bastante


para convencer, não só a V. M. como a todos os nobres

da côrte . E, fitando os olhos no invejoso , perguntou :


214 CONTOS ESCOLHIDOS

-No vosso andar pelo mundo já vistes , por acaso,

alguma arvore que cantasse , desferindo accentos tão

suaves como o desfere a mais afinada garganta ?


――- Confesso que ainda não vi , não poude deixar de

responder o odioso fidalgo . E todos entreolharam- se com

visiveis signaes de duvida , alguns sorriram , tomando ,

talvez , por louco ao moço pretendente . Elle , porem ,


tirando do bolso da vestia uma semente , apresentou- a

ao rei dizendo :
- Senhor, foi no parque do palacio da rainha das

fadas que vi e ouvi a arvore que canta. Era linda a noite :

de luar e animada pelos sylphos luminosos , pequeninos

como lavandiscas, que iam duma a outra flór . Uns sen

tavam-se nas petalas , outros escondiam - se nas corollas ,

rindo . Eu caminhava quando ouvi o canto delicioso .


Julguei , a principio , que era uma das fadas que des

afiava os rouxinoes , mas um elfo esvoaçou , sussurrando

a uma pequenina sylphide : « E' a arvore que canta , >>

E eu , seguindo - lhe o vôo , cheguei ao sitio onde ficava a

arvore e toda noite , deliciado , deixei-me estar a ouvil - a ,

até que a manhan rompeu e a arvore calou - se .

Trago commigo uma semente da arvore que canta .


CONTOS ESCOLHIDOS 215

Plantai-a no vosso parque e, antes de uma semana , tereis

a arvore frondosa , provando com os seus gorgeios , a


verdade do que vos disse .

Aceitou o rei a proposta . Mas o invejoso fidalgo , que

só pensava em desfazer-se do rival , que tão depressa


conquistára as graças da princeza , disse severamente :
-Senhor , é justo que se faça a experiencia , mas ,
para que se não diga que fostes victima de um embus

teiro , que se lhe dè um prazo improrogavel ao fim do

qual caiba-lhe o premio ou seja punido como merece ser

todo aquelle que mente ao seu rei .


-Dou-lhe um mez, disse o soberano .

- Dois, delongou a princeza . Mas o mancebo replicou :


-Basta-me uma semana , nem mais um dia requeiro .

Se, ao fim do prazo , não se houver realisado o que eu

disse , que o carrasco me venha buscar na prisão em que

devo ficar . E, assim dizendo , entregou ao rei a semente

preciosa.

- Planta-a tu mesmo , disse o monarcha ao invejoso .

Planta - a no parque , perto das janellas dos meus apo


sentos, para que eu seja o primeiro a ouvir-lhe o canto .

E o mancebo , que se sujeitára á condição , desceu ,

entre guardas para a prisão do palacio .


216 CONTOS ESCOLHIDOS

De posse da semente maravilhosa , o cortezão per

verso desceu ao parque com toda a côrte e , emquanto

o jardineiro abria uma cova, poude sorrateiramente ,

substituir a semente por um seixo que foi logo coberto

sem que os do grupo dessem pela troca e , certo da

victoria, voltou -se radiante , dizendo :


― Dentro de uma semana teremos uma arvore a

cantar, se a não tivermos lá fóra , ao sól , balançando

um corpo no seu galho secco . Referia - se á forca em que

devia ser justiçado o seu formoso rival .

Recolhendo ao seu palacio , desceu ao subterraneo e

lá , bem no fundo cavando um fosso , deixou ficar a se

mente , cobrindo - a com terra e perouços para que não

vingasse e , tranquillo - porque tinha por inevitavel a


morte do mancebo- subiu , dizendo que fora á adega

escolher um vinho precioso para offerecer ao rei no dia


do seu proximo anniversario .

Todas as manhans a princeza , muito interessada na


victoria do mancebo e tambem curiosa de ouvir o canto

da arvore, abria a janella e , nada ouvindo , descia ao

parque e ia examinar o sitio em que fora plantada a se

mente . Nada ! E a princeza chorava pesarosa , lamen


CONTOS ESCOLHIDOS 217

tando que tão guapo moço acabasse na forca por seu


amor.

Os cortezãos sorriam . O proprio rei , impaciente , não

occultava o seu despeito, louvando a subtileza do fidalgo

que o ia vingar exemplarmente da mystificação do em


busteiro . « Que morra ! » bradava enfurecido . E os dias
passavam.

Na vespera de findar o praso foram á prisão e


acharam o moço dormindo tão tranquillamente que os

proprios guardas tiveram pena de despertal - o . Mas o


fidalgo , para gosar a sua crueldade , chamou- o :
-Eh ! amigo , expira amanhan o praso que pediste

e da arvore não ha signal na terra do parque . Andam

operarios na praça a levantar a forca em que , ao romper


d'alva , se fará justiça ao teu procedimento vil .

Os olhos do mancebo relampejaram d'odio . Logo ,


porem , contendo - se respondeu serenamente ao fidalgo :
--
Se a semente foi plantada , a arvore cantará antes
da minha morte.

E , de novo , deitou - se nas palhas do carcere .


Ao alvorecer do dia fatal as trombetas soaram cha

mando os burguezes á grande praça onde fora levan


tada a forca.
218 CONTOS ESCOLHIDOS

A tropa estendia - se em duas alas , desde o palacio

real até o sitio do suplicio . As janellas ficaram apinhadas

de curiosos e era tamanha a agglomeração nas ruas que

iam ter á praça que os soldados difficilmente man

tinham as posições , sendo , ás vezes forçados a repellir

a turba com violencia para contel - a á distancia , dei

xando livre a passagem por onde devia transitar o si

nistro cortejo .

O palacio do invejoso dava a frente para a praça ,

fronteiro ao paço em cujo balcão o rei e a princeza,

cercados de camaristas e damas, esperavam o condem


nado .

Ao clangor das tubas o povo ondulou apertando - se

a mais e mais e logo appareceu a carreta em que vinha

o mancebo , d'alva , manietado , entre soldados que em

punhavam lanças . Um esquadrão de cavallaria acom

panhava o tragico vehiculo .

Justamente quando chegava á forca o mancebo es


tremeceu e , no silencio commovido que se fizera , ou

viram todos uma voz suavissima cantando . O condemnado

sorriu e erguendo os olhos para o balcão real , disse :

Senhor, é a arvore que canta . Escutai - a .


CONTOS ESCOLHIDOS 219

E todos , extasiados , procuravam a direcção do canto .

O fidalgo, pouco antes alegre , triumphante, empalle

decia á janella do seu palacio e a voz , cada vez mais


meiga, soava docemente.

De repente alguem disse na multidão , apontando o

palacio do invejoso : « E' d'ali que vem o canto ! » E uma

turba immensa avançou contra o palacio , aos brados ;

mas as portas , que eram de bronze , resistiram ao choque.

O rei, então, que começava a suspeitar do fidalgo ,

desceu á praça e , entre os seus archeiros, intimou o

vassallo a abrir-lhe as portas . O miseravel obedeceu ,

recebendo o monarcha no vestibulo , zumbrido , com um

suor gelado a escorrer-lhe da fronte . E a voz , cada vez


mais suave , encantava com a sua melodia.

-Quem canta no teu palacio ? perguntou o rei sere

namente. Dize a verdade se não queres que os meus

archeiros levem-te d'aqui arrastado ao patibulo que


fizeste levantar na praça .

- Senhor, é a arvore que canta .

-Onde a plantaste ?

No subterraneo do palacio .
220 CONTOS ESCOLHIDOS

Leva-me , quero vêl- a. Caminhando humilhado , o

fidalgo desceu á cava tenebrosa e humida , precedendo o

rei e a sua comitiva, e lá estava a arvore frondosa ,

verde , florida , e cantando .

- E que plantaste no parque real ?

-Um seixo , senhor. E, sem achar palavra para de

fender-se, o vilissimo homem prostrou-se aos pés do rei

pedindo apenas a vida .

O soberano desprezou -o e , subindo em passos ligeiros ,

atravessou a praça, ordenando que conduzissem á sua

presença o moço condemnado .

A princeza exultava e maior foi a sua alegria quando ,

ao apparecer o moço , o rei o levou ao balcão , apresen

tando - o ao povo como o promettido noivo de sua


filha .

Estrugiram acclamações e , não fosse a soldadesca e

o palacio do invejoso teria sido varejado pela multidão

indignada.

E a arvore cantava docemente e o seu canto vencia

o vozear da turba . Bem dissera o moço : « Se a semente

foi plantada a arvore cantará antes da minha morte. »


CONTOS ESCOLHIDOS 221

A verdade é como a semente da arvore que cantava :

tráiam-na , com os sophismas , abafem- na , releguem-na ,

da luz , que ella rebentará fulgurante , dando a victoria

á justiça e confundindo o traidor.


I
O AMBICIOSO
---
O ambicioso

De volta do cemiterio , onde , sem uma lagrima , dei

xára o corpo do pai , Felicio recolheu -se á casa deserta ,

e como havia luar , nem accendeu a candeia , para poupar

o azeite .

Sentado sob o alpendre , poz-se a olhar o arvoredo

frondoso , cuja folhagem reluzia á claridade , e , mais


longe , ondulando , o cannavial e o milho .

O velho aproveitára toda a terra lavradía , respei

tando apenas o pequeno bosque , em que se abrigava a

fonte , e onde , elle e os camaradas , iam recolher os

galhos seccos com que alimentavam o lume .


226 CONTOS ESCOLHIDOS

Seis homens robustos trabalhavam como jornaleiros ,

ajudando-o no aspero labor agricola - uns ao arado ,

outros na carpa, ou colhendo , ou plantando .

As mulheres cuidavam do serviço domestico , e ainda


raspavam a mandióca , debulhavam o milho , batiam of

feijão , retiravam o mel dos favos e á tarde , reuniam ,


as aves .
-
As proprias crianças eram aproveitadas umas
guiando o gado aos pastos , outras levando a comida dos

trabalhadores á roça ; e , como havia fartura , era um

encanto a vida no sitio que prosperava a olhos vistos .


Sabia-se que o velho tinha haveres ; nem elle fazia

mysterio disso ; antes affirmava com garbo , para esti

mular os homens ao trabalho : «O pouco que tenho

deu-m'o a terra, assim o ganhareis se trabalhardes com


perseverança . Eu não vos engano -tendes de mim of

que mereceis . O bem que fizerdes vos será contado e

pago . »
E assim era.

Felicio, porem , não se continha aos sabbados ; mal

sopitava a raiva quando o pai pagava a féria aos ca

maradas.
CONTOS ESCOLHIDOS 227

Aquelle dinheiro, passando a mãos alheias , doia - lhe,

como se fosse a sua propria carne tirada aos tassalhos ;

e , sempre que se recolhia ao leito , murmurava com


avareza :

-Hei de acabar com isto ! Para que tanta gente?

Um só homem basta , e esse serei eu !

Assim pensou , e assim fez .

No dia seguinte ao do enterro do velho , Felicio chamou

os camaradas , fez-lhes as contas, e despediu - os .

Quando se viu só , Felicio esfregou as mãos, contente ,


dizendo :

-Agora sim! Tudo quanto fizer será meu . Não

tenho mais quem coma o que planto , nem quem me leve


os lucros !

Os mesmos cães , que guardavam a roça , dando caça

aos animaes damninhos , foram enxotados á pedrada .


E o ambicioso ficou solitario , olhando a lavoura exube

rante que se desenvolvia ao sol .


15
228 CONTOS ESCOLHIDOS

Vieram, porem , as chuvas , e a terra entrou a pro

duzir doidamente . O matto apontou , cresceu , invadindo

as culturas , cobrindo os caminhos que desappareciam ;

e Felicio , levantando - se muito cedo , ainda com as es

trellas a luzirem no ceu, sahia , e lá se punha a capinar

com ancia .

Por não ouvir as vozes dos animaes que alegravam

o sitio , -um boi a mugir, uma ovelha a balar , aqui uma

gallinha cacarejando aos pintos , adiante a pata , com

a pequenina fróta pennugenta dos patinhos , - ficou

preoccupado .

Por onde andariam ! Talvez no pasto . Era melhor

assim não só poupavam-lhe o trabalho de os tratar ,

como ainda , alimentando - se com o que buscavam e

havia tanta herva e eram tantos os bichinhos ! -livra

vam-no de despezas .
E voltava á terra com desespero .

Para não perder tempo em fazer lume , almoçava

uma fruta , e continuava a trabalhar , casmurro .

Todo o seu esforço , porem , não conseguia conter a


invasão . As hervas más appareciam em toda a parte ;
CONTOS ESCOLHIDOS 229

e , apenas a enxada deixava um talhão , logo os rebentos


abrolhavam .

A's vezes sentava- se á borda das rampas alagado em

suor , os braços doloridos , e ficava para ali inerte , com


a alma cheia de desanimo , revoltado contra aquella ve

getação perniciosa que lhe compromettia a lavoura .

Logo, porem, excitado pela ambição , retornava á enxada


e proseguia no trabalho .

Em pouco tempo a linda , viçosa lavoura de outr'ora

desappareceu supplantada pelo hervaçal bravio ; e , onde

o milho lourejava com a sua estriga de ouro desnas

trada ao sol , cresceram arbustos agrestes e palhegal far

falhante , por entre os quaes as cobras venenosas

rastejavam chocalhando .

Os animaes , mal a noite baixava , sahiam das tócas ,

devorando e destruindo a plantação . Todas as ma

nhans , Felicio parava , pesaroso , diante das cóvas que

elles abriam á noite , e ainda achava restos de mandioca ,

batatas , raizes de aipim abandonadas á flor da terra .

Já começava a desesperar ; mas , sempre ambicioso ,


não se resolvia a recorrer aos jornaleiros .

Se chamasse alguns homens tudo voltaria ao antigo


230 CONTOS ESCOLHIDOS

viço ; mas teria de pagar-lhes . Não quiz , insistiu no

labor inutil que só o alquebrava , e , quando cahia pros

trado, arquejando, logo ouvia os bemtevis, que , das ar

vores , pareciam vaial-o e rir da sua pretenção ridicula .


Levantava- se enfurecido , indignado, blasphemando ,

attribuindo a sua desgraça aos invejosos que haviam

lançado maus olhos ao sitio .

Um dia sentiu na agua um saibo estranho e logo sus


peitou que o andavam envenenando.

Subiu ao bosque para examinar a fonte . Difficil

mente deu com ella , tão cheia estava de folhas e ramos

podres ; até cadaveres de animaes boiavam nas aguas

dantes tão limpidas , porque o velho , de quando em

quando, mandava camaradas limparem a fonte para

evitar que se formassem balseiros .

Então , lá de cima , lançando os olhos á planicie , viu

toda a grandeza da sua desgraça : —a roça era um

matto intenso , e já em torno da casa os espinheiros

cresciam e os joás davam os seus venenosos frutos de


ouro .

As lagrimas saltaram - lhe dos olhos ; e , comprehen

dendo a sua impotencia , deixou-se cahir em terra hu


CONTOS ESCOLHIDOS 231

milhado , certo de que , sósinho , jamais conseguiria pôr

cobro áquelle mal que era uma vingança da terra.


Lembrou - se , então , dos homens , os leaes trabalha

dores que haviam ajudado o velho a ganhar o dinheiro


que lá estava, em bôas moedas, no fundo da arca.
Ah! se elles ali estivessem ... as arvores estariam

cobertas de flores , as cannas estariam crescidas em

touceiras, os milhos ostentariam as gordas espigas , e o


gado reluziria nédio .
O gado ... Onde andariam os seus bois, as suas

ovelhas, as suas cabras , os seus cevados e bacorinhos e

as aves !? Fosse elle procural-os !

Com um arrancado suspiro desceu vagarosamente á

planicie .

A' noite, preoccupado e sem somno, poz - se a andar


pela casa deserta .

Sahindo ao alpendre pareceu - lhe ver o velho pai


sentado no banco , em que costumava ficar á noite ,
fumando o seu cachimbo , a olhar distrahidamente as
estrellas luminosas ,

Attentou na visão e reconheceu o defunto. Poz - se

a tremer, agarrado a um dos esteios, e ouviu o pai

que , em voz triste , lhe disse :


232 CONTOS ESCOLHIDOS

-E' a ambição que te vai levando á miseria , filho !

Quizeste, por avareza, fazer o impossivel e com ancia

de tudo aproveitar , tudo perdeste . Se não houvesses

despedido os auxiliares que aqui deixei , não estarias

agora a lamentar o prejuizo : onde ha matto haveria flor ,

a agua correria livremente e pura, as róças estariam

viçosas e sentirias a companhia do teu semelhante , e


ouvirias, no teu repouso, as vozes dos animaes . Fazendo
felizes serias venturoso . O muito querer é sempre pre

judicial. Quem dá trabalho enriquece sorrindo ; quem ,

do seu pão , dá uma migalha ao pobre, farta-se e faz


ventura. Que conseguiste com a ambição ?

Antes de lavrar terão os homens que desbastar ; e

assim vais pagar o teu peccado com as moedas do cofre

e ainda com a humilhação . Ficaste isolado , a urze da

terra sahiu para acompanhar-te . Se não quizeres que


o mal entre no teu coração, enche- o de bondade : a alma

virtuosa não aceita o peccado , é como a leira bem

plantada e cuidada , onde não cresce o espinhal . Nos


espiritos vazios , como nas terras sem cultura , nascem os

máus pensamentos como rebentam os cardos . Quizeste ,


só com os teus braços , fazer a tarefa de seis homens , e
CONTOS ESCOLHIDOS 233

nem a tua levaste a termo : porque, mal acabavas a

carpa, logo as hervas renasciam . Chama os que despe

diste, dá-lhes trabalho , e não penses que elles te furtam

o pão: accrescentam-no e abençoam-no . O egoista é


como o areal solitario, que , por não dar vida á planta ,

soffre todos os rigores do sol sem o resfresco dos arroios

e o gozo da mais pequenina sombra . O mundo é de

todos , e só se é verdadeiramente feliz , quando se é

bom . Chama os que partiram, recebe - os na tua casa ,


paga-lhes o trabalho que fizerem, e elles renovarão o

que a avareza destruiu, e tornarás a ver os frutos , a

ouvir os gados , e outras moedas irão juntar- se ás que


deixei na arca !

Felicio ficou um momento amparado ao esteio, mas

o silencio não foi mais interrompido : o velho desappa


recera .

O velho ! Teria sido elle ou a propria consciencia

do avarento que assim se manifestara ?! ... Mysterio ! ...

Na manhan seguinte começavam a cantar os passa


234 CONTOS ESCOLHIDOS

rinhos , quando Felicio desceu á villa para contractar

jornaleiros .

Hoje o sitio é o mais bello do lugar. A casa é nova,

e, em torno della, outras avultam ; e , entre as arvores

frondosas, é, da manhan á tarde, um alegre cantar de


lavradores .

E os milhos crescem, cresce o cannavial, o pomar é

todo fruto , e Felicio prospéra , contente , vendo á volta

da sua felicidade tanta gente feliz a bemdizel-o .


OS PAIS
I
Os pais (*)

-Manda - o entrar, disse o barão ao criado que lhe

annunciava o ferreiro.

O gabinete, que abria sobre o terraço , recebendo ,

por duas largas portas , o ar puro e a luz viva do


parque , era de gosto severo , com a sua mobilia

macissa de jacarandá esculpido : immensos armarios


atulhados de livros , cadeiras d'alto espaldar , com a

pregaria a luzir nos rebordos de couro lavrado , quadros

serios nas paredes sombrias e dois bustos, em bronze ,

de pensativos philosophos , sobre columnas negras .

( ) AGUA DE JUVENTA , edição de Lello & Irmão, Porto, 1905.


238 CONTOS ESCOLHIDOS

O barão , com o charuto no canto da boca , revolvia

distrahidamente uns papeis , acamados na secretária,

sob um pesado bloco de crystal , quando um homensinho


appareceu á porta , muito acanhado , a machucar o

chapeu d'encontro ao peito .

Moreno , a pelle gretada e côr de ferrugem con

trastava com os cabellos hispidos , muito rentes , dum

amarello queimado , como se o fogo da forja , diante da


qual elle passava os dias a malhar , desde as cinco da

manhan até as ultimas luzes da tarde , lh'os houvesse

tostado . As mãos rugosas , possantes , eram quasi negras .

Vestia aceiadamente : calças e casaco de brim ris

cado , camisa de chita , e o pescoço , com o relevo das

cordoveias turgidas e roxas , estava esganado pelo

collarinho , que uma gravata esfiapada arrochava como

um baraço .

-Entre , disse o barão .

O homem adiantou- se , curvado como ao peso de um

fardo , sem levantar os olhos . O titular puxou a porta ,

fechou-a á chave e, caminhando serenamente para a

secretária, offereceu uma cadeira :

-Sente -se .
CONTOS ESCOLHIDOS 239

O ferreiro hesitou um instante , mas , a um gesto im

perativo do barão , sentou-se com os joelhos muito

juntos , sempre a esmagar o chapeu .

-Então , sr . Bento , que se faz?

O homensinho torceu- se na cadeira e , sorrindo , com

a cara tisnada cheia de rugas , deu d'hombros . Houve um

silencio entre os dois : o barão folheava os papeis , o

ferreiro virava e revirava o chapeu nas mãos .

Fóra, no terraço , os canarios cantavam e um fresco

murmurio dagua tremia no silencio .


--Ora , vamos lá ao nosso caso , sr . Bento , disse o

barão , consultando o relogio ; são dez horas e hoje tenho


de estar cedo na cidade . Está então resolvido ?

O ferreiro poz - se a sacudir a cabeça , com um


risinho velhaco .

-Eh .... V. S. sabe .... cá por mim , eu já disse o

que é a gente não tem tempo para andar com justiças.


Assim como assim , o mal está feito .... ha de ser o que

Deus quizer . Foi um máu passo, foi , mas agora .... que

se lhe ha de fazer ? Era a unica esperança da gente,

não temos outra filha , e , V. S. sabe : ella , casada, com

um bom marido , sempre era um auxilio.


240 CONTOS ESCOLHIDOS

-E quemlhe diz que não ha de casar?

- Uhm .... essas coisas sabem - se , por mais que se

escondam . Não é lá pela mulher em si , que isso não lhe

tira a virtude, cá no meu parecer , mas a honra, V. S. sabe,


é, como quem diz - o rotulo . Sem isso .... é custoso

esticou o beiço meneando com a cabeça desolada

mente . Eu , por mim , não fazia grande questão , mas

a mulher .... V. S. sabe : um homem não é só e , em

casa, quem governa é a mulher : ella é quem põe e

dispõe . A filha atirou-se-lhe nos braços a chorar, con

tou - lhe a desgraça , e ella , que tem genio , fez um es

carceu dos demonios - quiz ir logo á justiça , aos jornaes ;


até falou em cá vir fazer um escandalo.

Custei a contel- a , e disse-lhe : Olha lá , não te ponhas

ahi a berrar ; para que hão de os outros saber ? Havemos

de arranjar tudo pela melhor .

O sr . barão é um homem de bem, vou ter com

elle e falando é que a gente se entende . V. S. rece

beu-me aqui assim , disse -me a coisa ao certo — que a

verdade é que v. s. tem tanta culpa nisso como eu - e

cá estou para a combinação , sem barulho , porque eu só

quero o que é justo .


CONTOS ESCOLHIDOS 241

A pequena é bonita , isso é ... e o moço que diabo ! ...

Eu tambem fui rapaz . A gente foge-lhe , mas o diabo

parece que se mette no meio ... Eu , por mim ...

O barão interrompeu :

-Mas vamos lá saber , sr . Bento : que resolveu a


sua senhora ?

- Ella ... a dizer a verdade , está na mesma : diz

que a pequena é menor e coisas, fala de leis que ouviu

nomear e então acha que v . s . devia dar um poucochinho

mais ... que a pequena , coitadita .... ! A gente com

dinheiro na mão póde arranjar qualquer coisa , nem é

preciso dizer o que houve , está bem visto ... mas o


dinheiro ... v. s . sabe .

--E então ? não lhe chegam os cinco contos ?

- Ella é que teima . Eu por mim, cá não tornava a


maçar v. 8 .. Estou aqui porque , emfim , sou o homem da

casa . Ella tem sua razão , isso tem . A gente com dinheiro

vê uma coisa , vê outra , faz sempre um negocio melhor .

Eu não quero um vintem para mim , estou velho, mas ,

para a casa e para o bocado , ainda o braço ha de dar...

o que vier será para ella . Quando era perfeita , emfim ...
sempre havia esperança , que ha por lá rapazes que a
242 CONTOS ESCOLHIDOS

querem , isso ha ... mas , v. s. sabe : são todos os

mesmos , rezam pela mesma cartilha : rondam , rondam ,

mas se a mulher não está como Deus a fez, atiram-na

p'r'ahi á tôa e vão - se !

Ella tem a carinha, que é bonita , isso é , mas v . s .

sabe - é costume , é lei do mundo . A mulher para casar

quer- se pura como um fato novo.

-Sim ... sim... mas resolvamos , sr . Bento . O senhor

tem a sua officina, eu tenho o meu escriptorio , não po

demos estar aqui a gastar palavras . Eu offereço um


pequeno dote á sua filha , não lhe estou propondo um ne

gocio . Sua senhora insiste na ameaça da denuncia, pois


denuncie : os juizes hão de fazer justiça a quem a

merecer .

Todas as provas são contra a Maria - estão ahi os

criados promptos a jurar que era ella quem provocava

meu filho . Ora diga- me : que ia ella fazer todas as noites

lá embaixo , aos aposentos do rapaz ? Elle tinha o seu

criado e a unica rapariga que entrava na sua sala de

estudo , no seu dormitorio , era a Maria .... para que ?

Demais , quem poderá affirmar que ella era ainda pura


quando o senhor a trouxe?
CONTOS ESCOLHIDOS 243

O ferreiro poz-se de pé e affirmou com segurança ,

estendendo a mão num gesto de juramento :

-Lá isso não .... tenha v . s. paciencia - eu ga


ranto !

-Oral o senhor ....

Ella não dava um passo fóra de casa sem uma

pessoa de confiança . V. s . pode tomar informações .


―――
- Pois sim , mas isso não vem ao caso .

-Não , mas a verdade deve-se dizer . Que ella veiu

para aqui pura isso .... Depois dum silencio o barão


continuou seccamente :

-Pois é isto , meu caro sr. Bento : mantenho o que

disse e nem mais um vintem . Se quer o dinheiro , elle

aqui está — abriu uma das gavetas da secretária e tirou

um pacote , desembrulhou - o mostrando as notas - se

não quer .... encolheu os hombros com indifferença e ,

lentamente , poz - se a refazer o maço , prendendo - o com

um elastico . Estou pelo quizer . Se prefere a justiça ,

vamos á justiça : sua mulher que denuncie o crime , o

meu advogado fará o que for conveniente e , no fim ve

remos quem tem razão . O rapaz está longe .


O ferreiro murmurou humildemente :
16
244 CONTOS ESCOLHIDOS

- E' , eu sei : a pequena leu num jornal que elle

embarcou para a Europa .... e chorou , a coitada ....


-Já vê o senhor.
-
Mas eu já disse a v. s. que, por mim, isto já
estava acabado . Assim como assim, não ha remedio
mesmo . A questão é a mulher. Eu se repetisse a v. s .

o que ella me diz .... sei lá ! A's vezes até parece maluca ,
palavra de honra ! Não sei quem foi que lhe metteu na
cabeça uma historia de casamento que é , desde a
manhansinha até à noite, a mesma cantilena : que eu

vá á policia , aos jornaes e conte tudo como se deu ,

porque, lá diz ella, um homem que perde uma moça é


obrigado, por lei , a casar com ella ....

-Tolice ! resmungou desdenhosamente o barão


sorrindo .

-Pois é o que eu digo . Porque eu sou pelo que é


justo , isso sou . Não tenho estudos , mas sei vêr as coisas .
Um moço como é o filho de v . s . , de boa casa, rico ,
quasi a formar- se , não é para casar com uma pobresinha ,

filha de um ferreiro , que mal sabe assignar o nome . Isso


não ! eu sou pelo que é justo .... Mas a mulher , v . s .
sabe , ellas quando teimam .... é pr'ali ! e ninguem as

tira do proposito . A coitada é mãi .


CONTOS ESCOLHIDOS 245

-E é por ser mãi que augmenta o preço .... ?

-E' o que ella diz . Eu por mim já ando enfarado .

Garanto a v. s . que não é por meu gosto que vivo


mettido nisto . Sou um homem de trabalho e quem me

tira os meus ferros tira- me de tudo .

O barão ia e vinha lentamente , mordicando o bigode

grisalho . De repente , parando diante ao ferreiro , disse :


- Homem, acabemos com isto . Dou mais duzentos

mil reis , serve ? O ferreiro , de cabeça baixa , retorcia as

abas do chapeu. Tenho que fazer , não posso estar aqui

a perder tempo.

-Pois , vá lá ! exclamou o Bento atirando o braço

num gesto pródigo . Vá lá ! estamos aqui os dois a perder

tempo e palavras . A mulher ha de cançar ... e que fale!

O que é justo é justo .

-Sabe escrever ? perguntou vivamente o barão .

-Eu , a dizer a verdade faço p'r'ahi uns garranchos ,

mas entendem- se . Sei p'r'o gasto . E bamboleava- se .

O barão estendeu um caderno de almasso sobre a pasta,

tomou uma caneta , molhou a penna e entregou-a ao


ferreiro .

O homem deixou o chapeu na cadeira , sentou - se á


246 CONTOS ESCOLHIDOS

secretária e , muito curvado , foi garatujando , letra a

letra , o que o barão lhe ditava : « Recebi do sr . barão

de Souzella a quantia de cinco contos e duzentos mil


reis .... >>

O barão hesitou um momento , a remorder o bigode ,

preoccupado ; por fim, resoluto , proseguiu : .... « pelos

serviços prestados por minha filha Maria em sua casa . »

Quando o ferreiro , com o rosto a luzir de suor , con

cluiu a phrase , respirou desabafadamente , como alli

viado . O barão tomou uma estampilha e , collando - a ,

impoz :
-Date e assigne .

Concluindo o penoso trabalho o ferreiro afastou- se da

secretária esbaforido . O barão passou os olhos pelo papel

e, tirando a carteira do bolso , puxou uma nota de du

zentos mil reis que reuniu ao pacote :


- Aqui tem, disse . E' bom contar.

Ora ! perdoe v . s ..... escusou-se o Bento .

-Não , senhor : conte . O homem , então, cedendo ,

desembrulhou vagarosamente o pacote , abriu as notas

e, salivando o grosso dedo encoscorado e encardido ,

foi contando , de vagar, com verdadeiro goso , os olhos


CONTOS ESCOLHIDOS 247

muito brilhantes e fitos nas grandes cedulas novas que

estrallejavam . Sorriu ao barão , agradecido , e , guardando


o maço, tomou o chapeu e inclinou-se com humildade

estendendo timidamente a mão aspera . Mas o barão ,

antes de abrir-lhe a porta , falou com muita gravidade :

- Meu caro sr . Bento , o papel que ali fica é um docu

mento, entende o senhor? O ferreiro aprumou-se for


malisado .
――- Ora essa ! Perdoe v. s . , mas eu sou um homem

-
honrado o que está feito , está feito . Nem precisava

o papel , bastava a minha palavra .


-Pois é isso.

—Então , muito obrigado a v. s .. E ás ordens .


А
Desculpe v. s. a maçada .... Eu se cá vim foi porque
a mulher .... v . s.a sabe ....

- Perfeitamente .... Adeus ! E aos recuões , ás

zumbaias , o ferreiro sumiu-se no corredor.

O barão respirou largamente e , de pé no meio do

gabinete, ficou um momento a pensar , carrancudo . Subi

tamente , ao explodir duma idéa , tirou o lenço do bolso

e sacudiu a pasta que reluzia sobre a secretária , depois

caminhou vagarosamente para o terraço .


248 CONTOS ESCOLHIDOS

O sol rebrilhava na folhagem, já as rosas pendiam

languidas . Debruçou - se á balaustrada e olhava os fundos

macissos de verdura , quando , á sombra da grande arau

caria , descobriu o ferreiro que , a sorrir , recontava va

garosamente as notas, levando , de instante a instante, o

grosso dêdo á boca.


VIUVAS
F
Viuvas

-Sinto que elle ainda não se foi de todo , Herminia :

a morte não é uma destruição , é um lento acabar , um


lento sumir . Vai- se o cadaver, mas .... O corpo que

morre é como um frasco de fina essencia que se quebra


deixando a casa , por muito , impregnada de aroma , até

que o tempo o vai desvanecendo , e fica somente a sau

dade , que é a memoria do coração .

A' hora em que elle costumava chegar, enca

minho-me instinctivamente para o gabinete , cólo o rosto

á persiana e fico á espera . Se ouço passos , volto - me ,

com o coração transido , certa de que vou vel - o sor


252 CONTOS ESCOLHIDOS

rindo , a estender - me os braços , como dantes . Nada ,

illusão . Torno ao meu posto e toda a melancolia do cre

pusculo condensa -se em minh'alma , enche-me de tristeza

e fico a chorar, a chorar, chamando-o baixinho , com

uma voz soluçante e cheia de beijos .

Se abro um movel , sempre encontro alguma coisa

que m'o recorda : uma carta , uma nota a lapis , ás vezes

cigarros . Em um dos seus casacos achei um lenço ainda

perfumado . Emquanto durou o perfume vivi com elle .

A's vezes acordo , a horas altas, sentindo - me afagada ;


sento-me no leito , fria , toda gelada , a tremer , e passo

o resto da noite em claro a pensar nelle , com saudade


e com mêdo .

Os moveis estalam , o soalho estremece , os crystaes

resoam , nevoas empannam os espelhos ; por vezes a

chamma da lamparina inclina-se como a um sopro ....

E' elle que anda em torno de mim, a espreitar - me


ciumento .

Uma noite alarmei a casa com os meus gritos , porque

o vi distinctamente : de pé , no meio do quarto , pallido ,

immovel , os olhos fitos em mim. Eu quizera esquecel - o ,


mas não é possivel , porque elle faz - se lembrar á toda a
CONTOS ESCOLHIDOS 253

hora. O corpo , esse nós sabemos que jaz sob a terra ,


mas a alma ?

-E acreditas na alma ?

-Sim, acredito .
- -E's muito nova . Tu o que sentes é a falta do

companheiro de dois annos felizes- ainda não te habi


tuaste á viuvez .

Dá-se comtigo um caso identico ao que sempre refere

o coronel Juvencio . Sabes que elle foi gravemente

ferido na revolta : esteve entre a vida e a morte e , para

salval - o , foi necessario que um cirurgião lhe amputasse


a perna direita . Deixando o leito disse - m'o elle

proprio sentia dôres na perna que perdera : eram alfi

netadas , dormencias e , até hoje , volta e meia , carrega

o sobr'olho , trinca o beiço , mastiga uma praga, porque


-
um terrivel callo , que elle tinha no pé direito que

Deus haja ! -lá lhe finca uma ferroada que o faz ir ás

nuvens. Tu estás assim. Ha uma grande e inquebran

tavel solidariedade entre os membros do corpo ; e a

saudade physica , feita de sensação , é , sem duvida muito

mais violenta do que a saudade sentimental , que a

Poesia apregoa dando- lhe por séde o coração .


254 CONTOS ESCOLHIDOS

Tu o que sentes é a falta do marido que te acariciava .

Não creias em almas .... Se me disseres que a alma

reside nos labios e manifesta-se em beijos , bandeio - me

com o espiritualismo , de outro modo , não : fico a in

transigénte, a inconversivel materialista que sou .

-Não acreditas, então , no amor desinteressado ,

feito apenas de sentimento ?


- -Não . Todo amor é interesseiro : o homem ama a

terra pelo que ella lhe dá e não pelo que ella é . E' o seu

trabalho , é o seu esforço , o lucro que elle ama . Cada flôr

que nasce lembra-lhe um minuto de fadiga - é o seu


amor que desabotôa , são as suas penas que frutificam .

O amor de mãi que é , na apparencia, o mais desin

teressado , é um puro egoismo , inconsciente , dirão ,


-
não sei egoismo sempre . Não é o filho , o adventicio ,

que ella acaricia e defende , é a sua propria natureza , a

dilatação do seu « eu » que ella garante. O ramo novo

que rebenta na arvore é arvore . O filho é a recordação


viva de um goso .

- E de um soffrimento .

-Não se ama por amor, ama- se por fatalidade . O

amor é uma funcção physiologica que o espirito reveste


CONTOS ESCOLHIDOS 255

de um sentimentalismo purameute decorativo . Os nossos


avós , nas cavernas, gosavam, devoravam .... nós inven

tamos o amor e o comer .... No fundo somos ainda os

mesmos troglodytas brutaes : sem o flirt, sem os menus


delicados encontramos o mesmo espasmo e a mesma

posta de carne sangrenta .


-Tens idéas extravagantes ....

- Verdadeiras , minha amiga . Vejo claro e falo sem

rebuço . Em sociedade , para não ir de encontro ao con


vencionalismo , componho conceitos subtis cheios de

moralidade , mas aqui , entre nós , digo o que penso e


como penso .
A mim succede o mesmo conheço bem este estado

em que te achas e soffri muito , garanto-te . O que dizes


da morte é verdadeiro : ha effectivamente duas mortes

- a primeira a do corpo , que é rapida ; a segunda a da


-
alma , quero dizer : a do habito- que é lenta : é como
o findar de um dia.

Vai - se o sol , desce no horizonte, mas o ceu fica ,

ainda algum tempo , illuminado , fulgem nuvens de fogo ,


pouco a pouco , porém, o violete vai invadindo o occaso

e esbate- se em côr de perola , esmaece e a sombra des

enrola-se por fim.


256 CONTOS ESCOLHIDOS

Estás no peior momento que é o do começo do


-
crepusculo é o instante dorido das evocações quando

o coração recapitula o dia que passou .

E' triste , não nego , mas que seria de nós se as horas

não fossem aladas ? Virá a noite que tudo escurece e

dormirás , não sem sonhos , mas com a consoladora cer


teza de rever o sol da nova madrugada .

E's viuva d'hontem .... eu já tres vezes fui ao cemi


terio levar corôas de saudades e accender cirios ao

morto . Começa agora a tua noite , eu já sinto o frescor ,

já entrevejo a claridade da manhan que espero . As


minhas côres são menos carregadas do que as tuas , os

meus olhos já se não abrumam com o véu funéreo e pre


paro -me para gosar o sol , o alegre sol da vida.

Ha muitas que não esperam o luzir da manhan : para

não tremerem de medo , isoladas na triste noite da

viuvez , buscam uma lampada discreta que , em casos

taes , é o amante . Não tomes as minhas palavras como

conselho , acho , porem, que te não deves entregar á

melancolia , que é devastadora.

E's nova e formosa, sem filhos e com fortuna , que

mais queres ? Cumpre a tua pena suavemente , mostra-te


CONTOS ESCOLHIDOS 257

á sociedade viuva, bem enlutada , bem commovida , mas

vai tratando de escolher o partido que te convem . Não

creias que se possa viver de saudades. As viuvas da

India conservam- se fieis porque suicidam- se, só por isso .

Ha alguma coisa mais forte do que o sentimento ,

acredita : é a vida que nos corre nas veias , que vibra

em todos os nossos nervos, que freme em relampagos


sensuaes á flor da carne . Reagir? lutar? tolice . O des

tino material da Especie é um unico , não queiramos

corrigir a obra divina : se nos perdemos pelo amor a

culpa é d'Aquelle que nos fez amorosas .

Estás no periodo triste, atravessa - o e , ao longo da

travessia , vai recordando o que gozaste durante a vida

do Alberto . E não repitas mais as palavras imprudentes

que sahem da tua superexcitação . A mim pódes dizel- as ,

porque eu tomo -as como as devo tomar , outras , porèm ,

que te invejam , rirão , mais tarde , da tua leviandade ,


accusando - te de hyprocrisia .

Ha mulheres que têm prazer em ser martyres . Ha

muitas, algumas conheço eu : são como freiras que fazem

voto de castidade , mas se queres que te diga : não troco

as minhas noites pelas de taes « virtudes » e affirmo-te que,


258 CONTOS ESCOLHIDOS

por mais que faça, eu que passo por estroina e não sei que

mais, nunca farei tanto com os amantes que me attribuem

como essas solitarias fazem com os seus pensamentos .

Ser casta não é fugir ao amor, é saber amar . Vem passar

uns dias commigo para conversarmos sobre os nossos

maridos ... que o meu tambem era um lindo homem ,


lembras-te ?

E, passando a mão pela cinta de Augusta , Herminia

attrahiu-a docemente obrigando -a a sentar- se-lhe no

collo . Ambas suspiravam e, d'olhos perdidos , ficaram um

momento caladas , na penumbra carmesi do boudoir silen

cioso, olhando vagamente, extasiadamente , a rever o


passado ... talvez a forçar as sombras do futuro .
ALVORADA
Į
Alvorada (*)

- Que horas são ?

- Quatro .
-
-Não é possivel . Estou ouvindo os passarinhos .

-São quatro. Sempre dormiste um pouco .

Não , não dormi . Não posso dormir , ou antes


-não quero dormir .

- Porque ?

-Emquanto a gente dorme as horas correm, apro

veitam-se do nosso somno para fugir . Eu ouvi todas as

horas da noite , todas. E como vibram no silencio da

casa ! Parece que sahem de um grande sino.

( ) DO JARDIM DAS OLIVEIRAS.


17
262 CONTOS ESCOLHIDOS

As horas da meia noite precipitam-se atropelladas .

São as ultimas vencidas que abalam , de roldão , deixando

o espaço livre ao novo tempo . Dão a impressão de um


grupo que se houvesse refugiado no vão obscuro de

uma caverna e que , descoberto pelos invasores , arran

casse, em tropel desabrido , escapando á morte , com

terror, aos gritos . Depois começa a ronda vagarosa

-uma hora, duas horas, tres , quatro . São quatro ?


-Sim , quatro .

- Não tarda a manhan . Não imaginas como estou

com medo . Parece que não chegarei a tempo de ver


o sol.

-Que sentes ?

-Nada . E' justamente por isto que estou com

medo . Até hontem , á tarde , eu tinha dores cortantes .

De repente tudo cessou . E' a grande calma . No mo

mento do crepusculo ha um largo silencio : as arvores

aquietam-se , as aguas derivam sem murmurio , calam- se

os animaes . Pouco a pouco vão desapparecendo do céu

os ultimos lampejos e uma grande , uma infinita melan

colia, feita de saudade , levanta- se de tudo . Não é assim ?


-Ha tardes tão alegres .
CONTOS ESCOLHIDOS 263

-Não ha . Todas as tardes são tristes .

-Quando se está triste .

-Que braços são aquelles ?


-E' uma sombra que treme com os vasquejos da

lamparina.
-
- Apaga a lamparina . Essa agonia da luz impres

siona-me . Eu estava a ver aquelle bracejar sinistro ha

muito tempo . E' a sombra do cabide ?


-E' .

-Parece um vulto que avança e recúa , ameaçador

e máu .

-Sentes febre ?

-Não . Porque perguntas ? Julgas que estou deli

rando ? Talvez esteja , porque continuo a ouvir os

passarinhos . Não é possivel que sejam apenas quatro


horas . Emfim ... E esse arrastar ... ? Que será que

andam a arrastar lá fóra ?

-E' o vento nas arvores .

O vento nas arvores ... Deita- te. Deves estar

cançada. Se eu sentir alguma coisa , chamo - te . Dei


ta- te .

-Não te preoccupes commigo .


264 CONTOS ESCOLHIDOS

-E' o vento nas arvores ...?

-E' .

--Os que morrem de repente são bem felizes .

- Porque ?

-Não pensam na morte . Não imaginas como tenho

soffrido ! Ha uma semana que soffro . Vejo-me morto ,


acompanho o meu proprio enterro ... Sinto -me encer.

rado no caixão , ouço o bater soturno da terra que os

coveiros atiram ás pasadas e o ar me vai faltando , é

uma agonia inenarravel, Heloisa . E tu ? que ha de ser


de ti ? Eu preoccupo- me muito mais com a tua vida

solitaria do que com a minha morte. Não pensas no teu


destino?

- Eu ? ... Se tenho a certeza de que não morres.

Isto é uma crise , ha de passar . Ainda havemos de ser

muito felizes , verás. Que estás sentindo ?


-
Apaga a lamparina . Essas sombras impressio
nam-me.

-Queres que accenda o gaz ?


-Não , uma vela . Uma vela, aqui perto .

-Estás sentindo alguma coisa ?


CONTOS ESCOLHIDOS 265

- Ancia ... Não será hora do remedio ?

-Não é ás cinco .

-A's cinco ... Cobre- me os pés .

-Não fales tanto .

-Nunca atravessaste uma floresta, á noite ; e é por

isto que me recommendas que não fale .

- Porque ?

-Porque ? Quando os sertanejos atravessam as flo

restas , cantam . E' um meio de acompanharem-se , de

illudirem o medo . Assim estou eu - preciso ouvir- me,

sentir- me acompanhado por minh'alma. Estou atraves

sando uma floresta assombrosa . Chegarei ao fim? não

creio . Foi o relogio que bateu ?


― - Quatro e meia.

- Ainda caminhei meia hora. Parece- me que , se

chegasse a ver o sol ... o sol me salvaria, mas ... quatro

e meia ... Os pés , agasalha-me os pés.


- Estão bem cobertos .

―――
- Não os sinto . Estás chorando ?

- Não .
-
Não chores . Vamos passar contentes os ultimos
266 CONTOS ESCOLHIDOS

instantes. Quero levar a impressão dos teus olhos lumi

nosos . E, coisa estranha - não acredito na morte . Pa

rece impossivel que eu morra . Desapparecer para


T
nunca mais ! ... Emfim ... Sempre vivi de esperan

ças, foi o meu erro e foi a minha grande força . Nunca

olhei para a terra, caminhei sempre de olhos levantados ,

fitos no céu, no longinquo, olhando o azul , as nuvens

douradas , as estrellas radiantes . Foi um erro . Ha tão

pouco ar aqui dentro ... Com que esforço respiro .

Sinto , de quando em quando , um vivo calor no peito

como se uma chamma se accendesse e morresse no

mesmo instante . Que será ?

—-Queres que mande chamar o medico ?

-Para que ? São quatro e meia , o sol não tarda .

Os medicos pedem tanto quando são chamados á noite...!

Cobram o somno interrompido . Esperemos que ama

nheça, é uma economia . Dá- me um pouco d'agua.


- Com assucar?

- E' indifferente . Sinto saibo de sangue .

――――― Não te levantes .


CONTOS ESCOLHIDOS 267

--
- E' um peso ... ! Parece que me estão compri

mindo , espremendo o peito para fazer saltar o coração .


- Queres escarrar ... ?

-Tenho medo . Ah ! Heloisa ...

-Não fales . Vê se pódes dormir um bocado . O lenço ?

é o lenço que procuras ? Está aqui .

-Não , para que has de ver ? E' um bocadinho de

sangue . Foi do esforço que fizeste . Queres mais um

travesseiro ? Ah ! minha Nossa Senhora ! Meu pobre

Luiz ... Eu bem queria mandar chamar um medico .

Queres levantar- te ? Espera . Encosta -te a meu braço .

Que sentes ? Minha Nossa Senhora ...! Mas , meu Deus !

Tanto sangue ! Vê se pódes conter- te .

Não te esforces assim. Tem coragem. Que hei de

fazer, meu Deus ! Luiz ...! Não te sentes melhor?

Meu pobre Luiz ...! A janella? Queres que abra a

janella ? mas ainda é noite e está muito frio . Luiz ! Que

sentes ? Sou eu , a tua Heloisa ! Mas não é possivel !

Luiz ! Todo este sangue ... Queres que mande chamar

o medico ? E' aqui perto ... Eu peço ao visinho , Luiz !


268 CONTOS ESCOLHIDOS

Mas, meu Deus ...! O pulso , o coração ... Não se

move ... Os olhos ... Luiz ! Como foi , meu Deus !

Luiz ! Luiz ! Luiz ! Que ha de ser mim, Virgem da

Conceição !

Uma corneta vibra á distancia acordando o

silencio com o toque da alvorada.


FERTILIDADE
1
Fertilidade

A João Luso.

Quando a carriola do Matheus apparecia na villa ,

com um rangido estridente de ferragens , as rodas

bambas, frouxas , oscillando nos eixos , ao tróte lerdo.

do burrico , era um alarido atordoante desde as pri

meiras casas , augmentando á medida que o desconjun

tado vehiculo entrava no povoado rodando , aos trancos ,

com estridor, nas angulosas viellas calçadas a pedre

gulho .

A criançada , por traz dos muros de taipa , escondida

entre os espinheiros das cercas , encarapitada nas ar

vores , vociferava injurias , apedrejando a carangueijola


272 CONTOS ESCOLHIDOS

acogulada de cestas de legumes , samburás de frutas,

cofos , balaios , caixotes d'ovos empalhados , capoeiras


d'aves que elle levava ao porto nos dias em que passava
a barca do pombeiro .

Era um homenzarrão possante, de largos hombros ,

braços musculosos cobertos de um vello , grosso como


cerda . Pouco se lhe via do rosto ossudo , cor de barro ,

porque a rija , eriçada barba era nelle tão densa como

herva em tapéra . As abas largas do chapeu derreavam


se-lhe sobre a fronte escantilhada , deixando apenas os

olhos livres , olhos redondos de abutre , pequeninos ,


ariscos , sempre espreitando desconfiados ; ainda mais

lhe accentuava o typo de rapace o grande nariz , afilado


e adunco como um bico d'aguia .

O cachimbo não lhe sahia da boca , ardendo , fume

gando entre a barba intonsa como um fogo em macéga.


Taciturno , mazorramente calado , sempre de cabeça

baixa , não deixava o chicote e rosnava , voltando - se

inopinado , com olhares que chammejavam, quando se


sentia seguido pelos garotos que não só o acossavam

com chufas e improperios, como o puxavam pelos an

drajos pôdres , fugindo , a rir, com tropheus de mo


lambos .
CONTOS ESCOLHIDOS 273

Trabalhadores suspendiam o serviço , sahiam á beira

dos caminhos , fazendo côro com a garotagem : « Co

rujão ! Eh ! Corujão ! » e atiravam-lhe cascas de frutas ,


torrões , pedaços de páu , immundicies .

Elle retinha o animal, relanceava o olhar em torno ,

tirando vagarosamente o caximbo da boca e , de pé na

boléa, ameaçava com o chicote , bradando torpissimas

obscenidades que provocavam estrondosas gargalhadas .

A vaia recrudescia : ajuntavam-se grupos , affluia gente

ás janellas , ás portas dos negocios e , de todos os lados ,

esfusiavam berros : « Corujão ! Come cobra ! »

Zuniam pedras , os mesmos cães investiam e , cer

cando o carro desconjuntado, acirravam-se contra o

burrico, que se conservava immovel , d'orelhas hirtas ,

como a ouvir , emquanto o dono esbravejava, com


acenos indecorosos e ameaças sanguinarias .

Se alguma pedra o alcançava , elle, espumando de

colera, precipitava - se a correr , brandindo o chicote .

A chusma dos perseguidores dispersava - se , mas a pri

meira pedra partia dos mattos , outra vinha d'além muro ,

ainda outra, era uma saraivada . Elle desviava- se aos

pinchos , por fim, desencravando calháus , atirava - os ao


274 CONTOS ESCOLHIDOS

acaso para as hortas , para as arvores, para as moutas do

campo, porque em toda a parte sentia inimigos . A's

vezes um grito lancinante vibrava: algum ferido . Ma

theus corria satisfeito, vingado , trepava ligeiro para a

boléa e zurzia o burrico que disparava sacolejando a

velha e escangalhada carriola.

Havia dias, porém, em que passava indifferente a

tudo - injuriavam - no, perseguiam-no , as pedras sil

vavam e elle lá ia, acurvado , fumando , sem voltar ,

sequer, a cabeça .

Vivia num reconcavo tristonho, na aba da serra ,

entre grotões . Era um terreno concavo, larga depressão

fechada por barrancas , onde as aguas das chuvas rebal

savam- se em alagadiços que logo se enchiam de sapos .

Com as levadas que se despenhavam da serra , em

torrentes, ficavam expostos lombos de pedras , lages

immensas , cabeços de rochas , como uma ossaria escal

vada que viesse á tona da sepultura.

A casa , levantada por elle mesmo , de barro , coberta

de sapê, dominava um planalto mostrando o esqueleto de

ripas e grandes frestas de onde cahira o adobe , por onde

passavam os ventos . Em torno , á sombra d'arvores,


CONTOS ESCOLHIDOS 275

havia o chiqueiro e uma cerca de paus a pique para os

bois e as cabras . A criação de pennas vivia solta tirando

as suas ninhadas no matto , dormindo empoleirada nas


arvores .

A cultura mirrada esturrava ao calor d'aquella furna

ou perdia- se nas inundações .

Havia sempre uma calamidade para affligil -o - o sol

ou as aguas , quando não eram os gafanhotos ou as la

gartas que , em uma noite , lhe inutilisavam o trabalho

penoso de mezes , reduzindo - o á miseria . No pomar , que

fazia sombra á choupana , tinha elle a sua renda mais

segura.
De Março em diante eram as laranjas que amadure

ciam , depois as jaboticabas , os cajús , os figos , as pinhas ,

os cambucás , os pecegos - era a fartura . Essa mesma ,


ás vezes , falhava .

A terra era ingrata - crosta escassa sobre rochas ,


sem força para produzir . Debalde elle a cobria de es

trume , aproveitando todo o estravo dos animaes ; de

balde a revolvia- era sempre magra , sempre fraca ,

dando uma planta pallida e rachitica .

O seu sonho era vender aquelle vageiro , comprar


18
276 CONTOS ESCOLHIDOS

uns alqueires na planicie perto da costa , em zona fertil

e sadia, livre d'aquellas pedras , livre d'aquellas aguas .

Teria o seu barco e elle , mesmo , enchendo - o até ás

bordas, abrindo a vela ao vento , deixaria o porto , á

noitinha , amanhecendo no mercado com a sua quitanda ,

vendendo-a bem e regressando contente , com o dinheiro

na bolsa de couro e novas sementes para rendosas


culturas .

Vivia só, porque a Luciana , mulher do Valentim ,

oleiro, que fôra condemnado por crime de morte e ficára

desamparada , aceitando a sua proposta de mancebia ,

ao fim de um anno deixou - o , contando horrores da vida

que levára naquelle antro « com o homem mais sujo que


conhecia ».

Sempre faminta , quasi nua , que nem uma camisa

tinha para pôr em cima do corpo , dormindo em palhas

de milho , sem um panno , ao menos , trabalhando na roça

desde a madrugada até a noitinha e ainda aturando im

pertinencias e brutalidades , porque o diabo até parecia

que contava as laranjas nas arvores e andava catando

cascas no caminho para berrar que o estavam roubando .

Ninguem o visitava . Carvoeiros , que passavam na


CONTOS ESCOLHIDOS 277

vizinhança da cabana, diziam : « Nunca se vê signal de

fumaça naquella tóca . Ali não se accende fogo . O co

rujão parece que vive de fruta, como os macacos.

Ninguem sabe o que elle faz do dinheiro que ganha.

Está guardando para o diabo » .

Os commentarios que se faziam sobre a vida solitaria

e mysteriosa do velho foram , pouco a pouco , tor

nando -se lendas . Matheus passou a ser olhado como um

ente fantastico , especie de homem demonio . As velhas

esconjuravam-no , batiam com as janellas , atiravam pu

nhados de sal ao fogo quando ouviam o rodar do seu

desmantelado vehiculo .

Os pequenos , nos quaes o terror ia - se infundindo ,

rareavam . Atrevidos nos primeiros tempos , foram - se

tornando timidos , fugindo , escondendo - se quando o

conhecido estrepito da carriola annunciava a passagem


de Matheus .

Todos os males que sobrevinham eram attribuidos


ao miseravel as grandes seccas ou as chuvaradas

alagadoras , as pestes das aves, as pragas das plantas .

« Isto foi coisa d'aquelle excommungado ! » rosnava o


278 CONTOS ESCOLHIDOS

lavrador percorrendo as terras exsiccadas, onde as cul

turas pendiam languidas, murchando .

Toda a gente estava convencida do prestigio funesto


do caboclo e da sua maldade .

Ao espalhar- se a noticia do desapparecimento do Mi

guelinho, malandrim perigoso , filho de uma pobre

mulher que vivia miseravelmente num rancho, á boca

da matta , catando hervas medicinaes , logo affirmou-se

que o pequeno fôra assassinado pelo bruxo . Houve

até quem garantisse que , certa noite , apezar dos tro

vões , ouvira gritos abafados na rua , justamente no

momento em que passava a carriola fugindo sob a


borrasca .

A mãi do pequeno andou de porta em porta cho

rando , referindo a sua desgraça , pedindo que a soccor

ressem, que a vingassem do malvado .

Appareceu uma denuncia e as autoridades resol

veram dar busca no antro do Corujão .

Quando a diligencia , com um delegado , soldados e


moços dos jornaes , atravessou a villa, foi um alvoroço.

geral . As roças ficaram desertas , toda a vida para

lysou - se . Intrusos offereceram-se para auxiliar a policia ,


CONTOS ESCOLHIDOS 279

a escola não funccionou porque toda a pequenada , va

rando afoitamente os mattos , lá foi em direcção á serra .

De janella a janella eram , a todo instante , excla


mações de allivio : « Até que emfim a Justiça vai pôr
cobro a tanta maldade . Já era tempo . Um diabo que

só servia para atrazar a vida da gente . Foi elle mesmo

que matou a pobre criança . » « Ora ! se foi ... » O pe

queno era detestado por ser vadio e obsceno , mas todos

o lamentavam , fazendo carga sobre Matheus , tornando-o


mais odioso .

<< Aquillo foi para fazer bruxaria . » « Ainda a senhora

diz ... Um homem assim é um perigo . Quem se livra da


faca de um assassino ? E hão de ver que não acham o

corpo . « Ora ... ainda mais elle ... Aquillo deu sumiço

ao pobresinho , enterrou - o em algum grotão . Vão lá

agora descobrir . » E , até á hora em que os homens

regressaram, a villa agitou-se em reboliço curioso como


uma colmeia assanhada.

A diligencia chegou cedo ao reconcavo . Matheus , no

terreiro, alisava o pello do burrico , falando - lhe com

meiguice, como a um igual , acariciando- o , rindo ao vel- o

espichar o beiço mostrando os dentes amarellos : « Tá


280 CONTOS ESCOLHIDOS

rindo, rapaz ... » E regougava folgazão . Em torno gru

nhiam as porcas fossando a terra , seguidas dos baco

rinhos . Cabritinhos pinoteavam e bandos de gallinhas

corriam ora a um canto , ora a outro , aos reclamos ca

carejados dos gallos que esgravatavam a terra .

De repente os cães puzeram- se a ladrar , magros

podengos gafados que viviam ganindo , com o pello ra

pado , a cahir de lepra . Matheus levantou a cabeça e ,


dando com os soldados e os homens que os precediam,

ficou immovel , olhando , a mão espalmada no lombo do

burrico . O delegado adiantou - se :


―――
Você é que é o dono disto ? o Matheus ... ? O ca

boclo não deu resposta , encarando - o espantado .

Tirou o chapeu e o cabello espoucou enorme , em

grenha hirsuta , cobrindo - lhe a cabeça como um tur


bante . O delegado insistiu : Então ? você é mudo ?

-Matheus sou eu mêmo , sim, senhor .

- Vamos cá a uma coisa ... E , mansamente , adian

tando- se , a tocar os animaes com o guarda chuva, disse :

Eu sou da policia . Não venho aqui por mal : quero apenas

que você me diga onde é que está mettido o Miguelinho.


CONTOS ESCOLHIDOS 281

O caboclo franziu o sobr'olho . O Miguelinho , filho da


Severa.

- Que Miguelinho ? Eu não conheço Miguelinho


nenhum . Aqui não vem ninguem .
-Nem á força ? perguntou o delegado com um
sorriso expressivo .
- A' força ! Como á força?

-Então o amigo Matheus pensa que essas coisas

ficam assim ? Houve quem visse o Miguelinho no seu

carro , amarrado de pès e mãos.

-No meu carro ! E avançando , fulo de raiva ,

desafiando com o olhar toda a turba que o mirava : Quem

foi que viu ? Quem foi ? diga . Houve um silencio , elle

deu d'hombros , resmungando : Tomára eu poder com

migo quanto mais andar por ahi apanhando ruindades .

Calou - se carrancudo , affrontando o grupo com um olhar

feroz . De repente, voltando- se para o delegado , disse

num assomo de ira : Se elle veiu commigo tá ahi , yos


mecê percure.

-E' o que vamos fazer A casa está aberta ?


-Vosmecê não tá vendo?
-
Então venha comnosco . E, a sorrir , ajuntou : Olhe
282 CONTOS ESCOLHIDOS

que somos visitas , tio Matheus. Você , pelos modos , parece

que não está muito satisfeito com a nossa presença . Ande ,

não seja assim espinhado ; venha mostrar- nos a sua casa .

Vagarosamente, resmungando, o velho adiantou - se


enveredando para a choupana . Do grupo que ficára
em baixo alguns homens avançaram e penetraram , se

guindo o delegado no miseravel casebre que tresandava


a fumaça e a môfo . Matheus abriu as janellas , escancarou

as portas e , ao sol que entrára realçando a pobreza sór


dida , alargou os braços num gesto franco .
-
– Vosmecê veja . Cate tudo . O que eu tenho tá hi .
E encostou-se á parede , sacudindo a perna bamba.
O interior estava de accordo com o habitante- chão

de terra, muros fendidos , esburacados ; a palha da co

berta esfiapada pendia em franjas por entre as ripas .

Uma velha mesa de pinho negra , encoscorada de immun


dicie , dois bancos com assento de palha , uma prateleira

suspensa por cordas onde havia canecas, pratos de folha.

A cama era um giráu estreito e raso , coberto de palhas


de milho , forrado com alguns saccos . A um canto um

pequeno bahú de couro . Na parede , um grande registro


do Senhor dos Passos tisnado de fumaça , a espingarda, o

polvarinho e velhas mudas de roupas remendadas .


CONTOS ESCOLHIDOS 283

Na cozinha, negra de fuligem , cheia de picuman ,

sobre tres pedras , no chão , estava uma panella de barro .


E era tudo .

Sentia- se a immundicie . Grandes aranhas trepavam

pelas vigas ; se alguem afastava uma pedra logo via a


vermina fervilhando ; minhocas colleiavam pelos cantos .

O ordenança do delegado abriu o bahú e poz - se a

sacudir andrajos, tiras de panno , um pedaço de lona


roida . Houve um alvoroço de baratas que fugiam assa

nhadas , esvoaçavam , enormes , cascudas.

Um embrulho de papel foi desfeito - havia de tudo :


sementes, favas seccas, um breve, velhas chaves enfer

rujadas. O delegado esquadrinhava, mettia a ponteira do

guarda-chuva nos cantos , esfuracando . Fóra era um


murmurio de vozes , um rumor farfalhante de 'passos

eram os da villa que andavam batendo os mattos , procu

rando vestigios do crime e saciando a curiosidade . Os


pequenos , mais ousados , com os saccos dos livros a tira

collo , desciam aos grotões , raspavam a terra e , como as

laranjeiras vergavam carregadas , alguns furtavam rindo,

quebrando propositadamente os galhos e mettiam -se nos


mattos chuchurreando .
284 CONTOS ESCOLHIDOS

Alguem lembrou - se de ver se havia alguma coisa

debaixo do giráu . Matheus, que até então se conservára

immovel , calado, indifferente , adiantou-se coçando a


cabeça , com o olhar assustado . Pela abertura da camisa

desabotoada via-se-lhe o peito guedelhudo , arfando .


Não se conteve , falou :
---
-Ahi em baixo ? Que é que póde cabê ahi em

baixo ? O delegado teve uma suspeita e , fitando os olhos

no caboclo , notou - lhe a perturbação . O desgraçado com

promettia -se . Tremulo , com a voz estrangulada , oppon

do -se ao exame , insistia , com um sorriso idiota : Mas

vosmecê tá teimando á tôa . Que é que póde cabê num

lugarinho assim ?

O delegado bradou ao ordenança :


-Arreda essa historia ! O caboclo ainda insistiu :

poz-se de cocoras, estendeu -se a fio no chão e , mettendo

o braço debaixo do giráu , entrou a raspar , falando sur


damente :

- -Que é que tem aqui ... ? Isso mêmo é teima de

vosmecê. Que é que póde cabê aqui ... ?

-Arréda ! Arréda ! bradou o delegado impaciente .

O soldado tomou, a mãos ambas, o giráu mordendo o


CONTOS ESCOLHIDOS 285

beiço , avançando uma perna , derreando o busto para dar

toda a sua força ao arranco e não conteve o riso quando ,

ao primeiro impulso, o leito cedeu , muito leve , esta

lando , como a desconjuntar - se . Arredou-o . O chão

porejava humidade ; bem ao meio havia um monte de

pannos em torno dos quaes rastejavam bichos molles . O

caboclo retorcia a barba ; ouvia-se-lhe a forte respiração

angustiosa .

-Tira tudo isto ! Ordenou o delegado . Já a noticia

chegára lá fóra e acudia gente para ver o cadaver,

alguns enojados , franzindo o rosto , com os lenços na

mão , presentindo o máu cheiro . Quando o soldado , com

escrupulo , poz-se a afastar os pannos com o sabre , o


silencio tornou - se absoluto . De repente appareceu uma

panella de barro , enterrada até as bordas , atopetada de

moedas de nickel . O delegado voltou - se , procurou o ca


-
boclo o desgraçado , de pé , os braços cruzados , chorava

remordendo a barba :

-
— E' o que é , tá hi ... é o meu suor. Vosmecê leva .

E' o que é... o meu trabalho , e meu suor . Revolveram ,

esvasiaram a panella - só acharam moedas. Tá hi ...


286 CONTOS ESCOLHIDOS

Fóra, depois de uma batida lenta não encontraram

indicio algum do crime .

Eram duas horas , o sol queimava , coruscando nas

pedras, quando o delegado deu por finda a pesquisa .


-Então você não sabe do Miguelinho ?
Não sei .

- Elle ha de apparecer, disseram em tom de ameaça .

Matheus ergueu-se na ponta dos pés procurando ver


quem falára e bradou :

-Ha de apparecê ... ha de mêmo. Se elle não

morreu ha de apparecê . Deus Nosso Senhor não dorme .

E quando elle apparecê eu quero vê a cara de vosmecês .

Então é só levantá falso ? vexá um homem que vive no


seu canto, que não faz mal a ninguem? Eu sei ... Isso

não foi por Miguelinho nenhum , isso foi só móde dar fé

da minha vida, ver o que eu tenho . Pois não é roubado .


Fosse todo o dinheiro honrado como este e não havia cri

minoso no mundo . Tudo que tá aqui eu ganhei com


estes - arregaçou as mangas da camisa e mostrou os ro

bustos braços cabelludos , empollados de cordoveias que

regorgitavam .
CONTOS ESCOLHIDOS 287

Riram e o delegado sahiu convencido da innocencia

do caboclo .

Na villa , quando se soube do resultado da diligencia ,


resmungou-se com incredulidade :

« Ora , qual ! aquillo é ladino como o diabo . Não vê

que elle havia de deixar o cadaver em casa . Enterrou - o


por ahi , nalgum buraco . »

Uma manhan , porém , espalhou- se a noticia do appa

recimento do Miguelinho . O pequeno fugira escondido na

barcaça da olaria e , depois de um mez de vida airada ,

na cidade , regressava , escaveirado , faminto , com a

roupa esfrangalhada e mais cheio de vicios do que fôra .

Pedira passagem no barco do pombeiro e lá estava , con

solando a velha mãi , a unica que se alegrou com a sua

vinda, porque para toda a gente foi uma dupla decepção :

era um vadio que voltava e era a prova da innocencia

do Corujão .

Houve um prazo de treguas , mas , pouco tempo de

pois , como era necessario renovar a maledicencia , attri

buiram a Matheus o naufragio de uma canôa e a morte

do pescador que a tripolava : « Praga daquelle diabo !


288 CONTOS ESCOLHIDOS

Nem se lembrou que o desgraçado tinha mulher e


filhos ...>

E, de novo , começaram a cahir maldições sobre o


solitario do reconcavo .
II

Depois que as vozes cessaram de todo nos mattos e

os cães , que haviam acompanhado a turba , ladrando ,

regressaram ao terreiro , Matheus , que não se arredára

da porta , o olhar perdido no ceu luminoso , pôz- se a

andar vagarosamente , pensando naquella visita , recapi


tulando- lhe os episodios .

Não acreditava nas palavras do delegado : « Procurar

Miguelinho ... Pois sim ! Os porcaria vinhéro aqui só

mode vê o que eu tenho . Miguelinho ... >

Os passos levaram - no ao pomar e quando viu os

galhos das larangeiras quebrados , a quantidade de cascas

pelo chão, uma figueira partida, repuxou as barbas fu


290 CONTOS ESCOLHIDOS

rioso e, voltando -se na direcção do caminho por onde se

fôra a diligencia, atirou os braços , os punhos rijamente

fechados , ameaçando , injuriando a canalha .

<< Ah ! gente ruim ! Gente damnada ! Tá hi o que elles


veiu fazê, um estrago destes » . E olhava , com lastima, os
galhos pendidos, as cascas das frutas . « Um homem

perde a cabeça , derruba um diabo com uma bala , é


máu ...

Os porcos grunhiam mastigando gulosamente os ba

gaços que encontravam e o caboclo , sem animo de pro


seguir, como se temesse encontrar tudo devastado , ficou

inerte , num descorçoamento infeliz, com a garganta

constrangida , a pensar na depredação de que fora


victima .

Por fim caminhou , metteu-se por entre as arvores ,

abaixando - se , afastando delicadamente os ramos carre

gados e , sempre que dava pela falta de um fruto , ex

plodia em injurias , praguejava , pedia a vingança dos

ceus . Lentamente , percorreu todo o pomar seguido dos

cães que se engalfinhavam , brincando , ás dentadas , ro


lando na herva .

Quiz ver os animaes . Subiu a uma pedra eriçada de


CONTOS ESCOLHIDOS 291

cardos e de piteiras em espadanas e , lançando os olhos


ao pasto , lá descobriu os velhos bois ruminando triste

mente , ao sol , as cabras remordendo as hervas mirradas

e , por toda a parte , correndo , ciscando , tufando o peito ,


a cauda aberta, chafurdando nos aguaçáes , as gallinhas ,

os perús , os patos , que engordavam livremente , catando

o que encontravam na terra, porque o caboclo não os


amilhava.

Viviam a vida bravia e solta de animaes selvagens ,

conheciam os marneis onde pullulavam os gordos bichos ,

as arvores pôdres , a terra fôfa dos formigueiros , os ninhos


de larvas cheios d'ovulos , e revolviam , espalhavam ,

cacarejando , grasnando .

Elle apenas seguia as aves para descobrir as pos

turas : achava os ovos em covas , recolhia- os como

apanhava os frutos , enchia a cesta deixando em cada

ninho o indez para que a ave não abandonasse o lugar.

Os cães sustentavam- se por milagre - elle mesmo ,

nas horas de bom humor , quando , sentado á porta , os via,

em torno , falava-lhes alegre : « Onde é qu'ocês busca di

comê, rapaziada ? Onde é? é caça , hein? Passa mió do

que eu ... Oia só que barriga ! » E os cães ajuntavam - se


19
292 CONTOS ESCOLHIDOS

lambendo-lhe as mãos , saltando- lhe ao collo, esfregando

se-lhe pelas pernas, a rebolcarem- se . Depois de certifi

car- se de que não havia desapparecido animal algum ,


desceu lentamente , casmurro , em direcção á cabana .
Sem comer desde a manhan , apenas com um gole de

chá que tomára ao levantar- se , distrahia-se com o ca

chimbo . Fumava sem pausa , pensando na maldade


daquella gente .

<< Um homem conta uma coisa destas e ninguem


acredita » . Entrou em casa , foi direito ao quarto . Quando

viu o giráu de pé , encostado á parede e as moedas relu

zindo na panella , sentiu um baque no coração e , dolhos

muito abertos , fitos no thesouro , os dedos espetados na

barba dura , poz - se a sacudir a cabeça, resmungando

surdamente :

« E' isso mêmo ... Foi mod'o dinheiro . Canaia ! Não

tendo mais qu'inventá veiu com essa historia de Migue

linho . Eu sei ...» E, parado , olhando , pensava num

possivel assalto á sua casa, tão fragil que toda tremia

quando os ventos passavam vergando as arvores , es

palhando as folhas . Qualquer criança , sem grande es

forço , abriria entrada naquelles muros que ameaçavam


CONTOS ESCOLHIDOS 293

ruina . Os esteios balançavam nas covas ; os umbraes es


tavam despegados .

Poz -se a andar pela casa examinando canto por

canto , experimentando os gonzos enferrujados das portas

e janellas , olhando o tecto aberto em frinchas , sacudindo

as divisões que bambeavam , soltando torrões de barro.

Era um instante para tudo aquillo vir abaixo .

Cruzou os braços e ficou pensando . Tinha a lazzarina ,

o machado , o facão . Arregaçou as mangas da camisa ,

mirou os braços fortes, estirou - os , curvou -os rijamente


fazendo saltar o biceps .

<< Emquanto eu tivé um ferro na mão aqui ninguem


bóta o pé . Canaia ! Miguelinho ... Agora é que eu sei

que Miguelinho é ... Mas não vai assim, isso não . >>

Ficou um momento pensando , a repuxar a barba , até

que se decidiu por uma idéa , e , prompto , sahiu ao

terreiro , poz - se a olhar em torno , descobrindo , por fim ,

uma velha enxada sobre um monte de lenha . Tomou- a ,

firmou- se-lhe ao cabo , vagando com o olhar em torno ,

indeciso , á procura de um lugar seguro para esconder o


seu thesouro .

<< Lá dentro de casa é que não . Elles já sabem, vão


294 CONTOS ESCOLHIDOS

direitinho no lugá. Ha de sê por aqui , bem fundo .


Fixou a vista no chiqueiro .

< Ali tá bom, ali perto . Quem vai atiná com o dinheiro

naquelle canto ? Quem ? Ali mêmo é que vai sê . » E en


caminhou-se para o ponto escolhido , encheu o cachimbo ,
accendeu - o e poz-se a cavar .

Os porcos, que dormiam esparrimados no lodo , de

onde subia um fortum azedo , roncaram sentindo o


homem . Elle cavava e poz-se a falar :

« Ocês, rapaziada , ocês é que vai guardá o dinheiro ,

tá uvindo ? ocês mêmo . Si elles vinhé aqui ocês da signá ,

que eu como um por um co'a minha lazzarina que não

néga fogo . Um por um, ó ! se como ! Oio que não perde

caxinguelê não vai perdê gente . » Raspou o suor da

fronte com o pollegar. « Não , que me custou muito a

ganhá . Não vai assim , isso não . Miguelinho ... ! » riu

sarcasticamente . « Tá hi Miguelinho ... » Cavava.

Quando a cova lhe pareceu bem funda foi á casa , es

vasiou a panella e, trazendo as moedas num panno ,


foi- as accumulando á beira do buraco olhando - as com

enlevo .

Enterrou a panella escorando - a bem ; depois , sen


CONTOS ESCOLHIDOS 295

tando- se, com as pernas estiradas , foi collocando , uma a

uma , as primeiras moedas no fundo , contando- as , fez

outra camada , mais outra e assim empilhou a sua ri


queza, sempre a contar, marcando as centenas á parte

com gravetos , pedrinhas , para não perder a somma .

O sol descambava, a serra ia tomando uns tons azu

lados , uma nevoa subtil pairava acima dos pantanos .

Os passarinhos chegavam, as cigarras chiavam no

arvoredo e elle ainda contava , devagar, entretido , alheio

a tudo , curvado sobre a panella .

As gallinhas rondavam a casa , voavam para os


ramos baixos , trepavam aos mais altos , escondiam - se

entre as folhas . As que tinham ninhadas cacarejavam


nos mattos , reunindo -as . Bois e cabras subiam lenta

mente, caminho do cercado e o burrico espojava- se no

terreiro, as quatro patas no ar, contente . E Matheus ,


sempre attento , continuava na faina .

Um conto duzentos e trinta e dois mil réis ... Sorriu .

E, quieto , sob a doçura melancolica da tarde , que refres

cava, poz- se a pensar no sitio desejado , lá embaixo , á

beira do mar , com um coqueiral vistoso que tinha fama .

O homem queria tres contos e quinhentos por aquelle


296 CONTOS ESCOLHIDOS

nadinha de terra , pouco mais de um alqueire . Arregalou

os olhos - mas aquillo era terra, e que descanço ! - tudo

chão liso, nada de subidas , agua nascente , pomar e horta

e barro se quizesse montar uma olaria . Não era aquelle

desproposito de montanhas , terra brava , só pedregulho

e areia e um sapesal que fazia medo.

Tres contos e quinhentos ... era dinheiro , mas valia ;


verdade, verdade.

Ficou banzando , curvado , as mãos espalmadas nos

joelhos . Por fim , sentindo a noite , estendeu o panno

sobre a panella e poz-se a puxar terra , cobrindo a cova.


Levantou-se . Doia- lhe a espinha , as pernas estavam

entorpecidas , os pés formigavam . Curvou - se , com as

mãos nos rins ; logo , porém , firmando-se , poz -se a socar

com o olho da enxada a terra balòfa , sapateou em cima

e , tomando um punhado de pedras , folhas seccas , es

palhou-as no lugar.

<< Agora sim. Quero vê ... Aqui nem fáro de ca

chorro . » Os cevados espiavam com os focinhos na cerca ,

roncando : « E ' isso mêmo . Ocês tá oiando? isso é dinheiro.

Ocês já sabe se vinhé alguem é dá signá ; eu, de casa ,

por uma greta , vou comendo um por um . Tá uvindo ?


CONTOS ESCOLHIDOS 297

Ocê, seu grandaião , ocê , que é o macóta do bando , toma

sentido ! » Quiz afagar o cevado , mas o animal recuou de

repellão , com um bufo , e foi esbarrar na cerca do lado

opposto olhando desconfiado. Os outros puzeram -se de

pé, juntaram -se a um canto , enormes, monstruosos es

correndo lama . Elle riu .

Escurecia . Assobiou aos cães . Vieram todos pelos

mattos em desabrida carreira , sacudindo as caudas ,

rastejando servis , magros , esfolados , e elle poz-se a falar :

« Oia lá , rapaziada . Ocês agora têm que tomá conta da

casa direito . Dêxa o somno p'ra de dia . Ôio no caminho !

Ôio no caminho ! tá uvindo ? Assim que elles botá o pé

aqui , dente nelles, seguro ! Péga firme , tá uvindo ? Bom .

Eu quero vê . »

Desceu , a cainçalha seguiu-o aos saltos . Já era

escuro quando entrou na cabana. Fóra , os sapos coaxa

vam desesperadamente com estridor metallico .

Fez lume , accendeu a candeia de azeite , deixou - a

em cima da mesa e foi arranjar o giráu , recollocando-o

no lugar, sempre a resmungar contra os canalhas.

<< Gente ruim ! » e rangeu com a lingua no ceu da boca .


298 CONTOS ESCOLHIDOS

< Eta ! canaia ... Vejam só o que elles havia d'inventá ...

Miguelinho . >>

Andou de um lado para outro , indeciso . Fechou a


porta do fundo escorando-a com uma tranca de madeira ,

fechou as janellas e sentou- se no limiar da entrada , fu


mando .

A noite negra abafava a paizagem. De instante a ins

tante um tremulo relampago mostrava o fundo ceu

carregado de nuvens, os campos quietos . Os vaga


lumes coruscavam estrellejando a terra , corujas passavam

em vôo surdo , raspando o silencio com o galrar sinistro .

Os grillos pareciam guizalhar nos mattos . Levantou os

olhos para o ceu : « A mode que o tempo qué mudá . »


Uma estrella luzia solitaria.

Só então Matheus sentiu fome . Levantou-se abriu a

gaveta da mesa , tirou um embrulho de farinha , um pe

daço de rapadura , voltou para a porta e poz - se a comer

distrahido , com o pensamento na fortuna .

<< Canáia ! Miguelinho .. Eu aqui me matando de

trabaio mod'os canáia passa a mão . Policia ! Que é que


policia tem que vê na casa dos outro ? Eu matei ? eu

roubei ? Então é assim ? Iche ! ruindade. » Atirava man


CONTOS ESCOLHIDOS 299

cheias de farinha á boca , trincava a rapadura e ficava


esmoendo .

Os cães cercavam- no e , de quando em quando , um

dos bois mugia surdamente no cercado .

Antes de fechar a porta ainda recommendou aos

cães a vigilancia da casa : « Bota attenção , rapaziada .

Sentiu gente, latiu logo ; o mais fica por minha conta .

Aquelle que guardá mió ganha um pedação de carne .

Tá uvindo ? um pedação grandão !

Riu , acenou um adeus aos animaes e fechou a porta ,

reforçando- a com uma viga. Poz- se a andar pela casa

enchendo o cachimbo , sem somno . « Oia que ha muita

peste neste mundo de Deus ! Contado ninguem acredita .

Um bando de gente arranjá uma mentira só mode vê o

dinheiro dum pobre . Ambição é o diabo ... »

Attento a todos os ruidos , voltava - se sobresaltado á

mais leve crepitação do sapé ; ouvia vozes surdas , passos .

O vento abalava a cabana , fazia um rumor continuo

nas arvores frondejantes . « Quá ! » Foi ao quarto , tomou

a espingarda , viu que estava carregada , com espoleta

nova . Experimentou o fio do machado , o gume do facão


300 CONTOS ESCOLHIDOS

e , encostando todas as armas no giráu , ao alcance da

mão , sentou - se .

<< Só se elles entrá p'los buraco ... mas eu amenhan


tapo tudo . Eu sou um só, mas não tenho medo . Que

venham ! Nosso Sinhô tá hi . Se fosse dinheiro mal ganho ,

mas meu suor , meu sangue , e bateu no peito com a mão

espalmada , olhando a propria sombra , como se con

versasse com ella . Meu sangue ! Isso não ... A gente

deve defendê o que é seu . Uai ! então não custa ganhá?


E ' com sól , é com chuva , é com saúde , é doente , trabai

ando de morrê . Então não custa ? Policia ! ... que foi que

eu fiz ? Miguelinho ... Tomára mêmo que essa corja

toda desappareça , mod'a gente tê socego . Uma va

diagem que não presta p'ra nada . Miguelinho ... E eu

sei quem é Miguelinho ? Nem ha Miguelinho nenhum ,

isso foi invenção dos canáia mode ví aqui . Tá lá fóra,

vão buscá que eu mostro . >»

Deitou-se , deixando a candeia accesa . Sentia fadiga ,

as palpebras pesavam-lhe , mas a preoccupação era mais

forte que o somno . Abria os olhos , sentava- se , as mãos


nos joelhos , piscando . « Gente mais ordinaria não ha ...»

Sentiu sêde . Levantou -se , tomou a candeia, foi á co


CONTOS ESCOLHIDOS 301

zinha, direito á lata de kerozene em que conservava a

agua. Bebeu e ficou parado , bocejando . Um vagalume

scintillava pelos cantos , poz-se a olhar esquecido . Voltou


ao quarto, a passos lentos , deitou-se.

Ia adormecendo quando um dos cães começou a

ladrar, os outros investiram ferozes . Elle sentiu um

subito vasio no coração . Poz-se rapidamente de pé ,

tomou a espingarda, o machado , o facão , passou á sala ,

soprou a candeia e , collando -se á parede , metteu o cano

da lazzarina em uma fresta e , de joelhos , tremulo ,

ouvindo o pulsar agitado do coração , esperou .

Os latidos cessaram. Um dos cães aproximou- se da

casa, Matheus chamou - o de vagarinho e açulou- o :


<< Busca ! Busca ! » O cão arremetteu , a matilha seguiu-o
ladrando á tréva , farejando o ar .

Mas tudo era deserto e silencio - só o vento uivava

longe , nas arvores da serra .


O caboclo ficou de tocaia immovel . Os cães esti

raram-se no terreiro , coçando - se , com surdos ganidos .

« Não é nada ... A rapaziada tá fina ... » Levantou- se ,

retirou a espingarda , voltou ao giráu . Mas as gambás

que corriam pelo sapé , os ratos que chiavam atropellan


302 CONTOS ESCOLHIDOS

do -se , o vôo das baratas punham - no alerta . Cerrava os

olhos , ia adormecendo, mas logo a idéa o despertava :

via sombras , sentia-as aproximarem-se . Sentava- se de


golpe : « Canáia ! »

Os gallos cantavam nas arvores , os passarinhos faziam


o preludio da manhan . Uma luz baça aclarava livida

mente a cabana ; a candeia , com a torcida em morrão ,

vasquejava , crepitando .

O caboclo, sem poder conciliar o somno , levantou- se ,


abriu a porta e sahiu ao terreiro .

Amanhecia , manhan triste , nublada - um ceu par


dacento , acolchoado de nuvens .

Os cães cercaram - no . Elle estirou os braços , bocejou


fatigado e , vagarosamente , foi ver o thesouro : o vento

levára as folhas , mas as pedras lá estavam .

Falou aos cevados : « Então , rapaziada ? não veiu

ninguem ?» ...

Sentia um vasio no estomago , a cabeça atordoada .

Apanhou umas folhas de laranjeira , foi á cozinha , fez

lume e , enchendo uma caneca dagua , pol - a ao fogo ,

mergulhou as folhas e sentou- se espichadamente no

chão , esperando a fervura para tomar o chá com que ,


todas as manhans , aquecia-se para o trabalho .
III

Uma idéa implantou- se no espirito de Matheus :

comprar o sitio de beira - mar . Todos os pensamentos ,

preoccupações , as proprias dôres eram avassalados pelo

projecto , que , a mais e mais , o dominava fazendo com

que toda a sua vida , todos os seus actos girassem

limitadamente em torno delle , em attracção absorvente .

Sempre que descia ao porto com a carriola , depois

de descarregar no barco do « pombeiro » , tocava o bur

rico a passo , ao longo da praia , só para olhar o coqueiral

que havia de ser seu . Ficava horas e horas sentado

nas pedras , olhando , conjecturando , o cachimbo sempre

a arder entre as barbas. As ondas subiam , rolavam es


304 CONTOS ESCOLHIDOS

pumando , insinuavam- se por entre as pedras e desciam

em limpida toalha , para , de novo , voltarem em alvoroço .

Tatuhy's fervilhavam , corriam, sumiam- se na areia .

Longe , no claro mar, ceruleo e rutilo , picado de

espumas, fugiam barcos veleiros , correndo com o favor

do vento : falúas carregadas de telhas , saveiros enormes

que deslisavam lentos , pesados , a reboque das lanchas .


Elle olhava tudo enlevado no seu sonho .

Via-se ali , dono daquella belleza, com um barco

amarrado ao portinho , entre os mangues , a casa ali

mesmo , á sombra do coqueiral , muito alva, coberta de

telhas , com flores em volta .

Tomaria dois ou tres homens para o serviço da roça ,

plantando de tudo , que a terra era nova e forte , fecun

dada continuamente pela brisa marinha que deixava nos

ramos , nas folhas, uma pulverisação de sal .

Tornou-se mais taciturno e mais avaro. Os andrajos

mal resistiam ao uso , esfiapavam-se , rasgavam -se ao

menor esforço . Magro , os olhos fundos , o nariz mais

agudo , a barba emmaranhada e sordida , derrubava as

grandes abas do chapeu sobre o rosto , como para escon


CONTOS ESCOLHIDOS 305

der a devastação da penuria . E amealhava moeda a


moeda .

Todo o dinheiro que recebia logo trocava em nickeis .

O pombeiro , attendendo ao seu pedido , mandava - lhe o

grosso do pagamento em moedas , que elle contava , re

contava , levando- as num sacco, enterrando - as em covas

que ia fazendo em torno da casa .

Os pequenos lavradores da redondeza , quando o viam

chegar á praia , só para o irritarem , propunham - lhe ex


travagancias uma comezaina na casa de pasto , uma

volta de cerveja no armazem do Brito , uma queda de

truque , a valer . Elle amarrava a cara, resmungando ,


e afastava-se sombrio.

Nada sabia da vida , nem indagava . Os outros com

mentavam os acontecimentos da cidade : assassinatos

barbaros, roubos avultados , catastrophes , ás vezes se

dições ; elle , sempre encorujado a um canto , seguia os


seus pensamentos , concentrava- se no seu sonho.

Privava- se de tudo para ajuntar a somma pedida

pelo proprietario das terras , antigo oleiro que fizera for


tuna e adquirira uma fazenda de criação no interior.

Um dia , achava - se sentado á borda de um velho


306 CONTOS ESCOLHIDOS

barco , fumando , quando ouviu alguem dizer que o sitio

de beira - mar estava apalavrado . Empinou vivamente o


busto , os olhos brilhantes e , procurando no grupo o

homem que falára , esteve para interrogal- o, mas quedou

receioso de que suspeitassem que pretendia o negocio e

ouviu , com o coração torturado :

<
« Que um homem da cidade procurára o dono do

sitio , fazendo -lhe uma proposta . E parecia que o outro

estava disposto a ceder, porque descera e lá andára ,

com o da cidade , pelas terras , vendo tudo , mostrando ,

gabando , desde a barreira até a beira dagua , nos es


teiros. »

Matheus não se poude conter e , humildemente , com

uma voz commovida , suffocada, perguntou : « E vos

mecê sabe se o negocio ficou fechado ? »

O homem que falára , um pescador , de rosto bronzeo

e cabellos brancos , encolheu os hombros :

-Sei lá . Elles andaram correndo tudo , agora se

chegaram a accordo , não sei . O sitio é bom , mas seu

Braga pede mundos e fundos por elle . Os outros con


cordaram . Matheus ficou pensativo , raspando o peito

com as unhas terrosas e , sem mais dizer , voltou ao seu


CONTOS ESCOLHIDOS 307

lugar , sentou - se embezerrado , a gesticular inconsciente .

Os outros riam, mostravam- no.

De repente levantou - se , foi buscar a carriola sob

o alpendre , subiu á boléa e tocou . Os homens ficaram

espantados com aquella partida brusca :

- Uai ! parece que o Corujão sahiu zangado .

- Zangado , porque ? ninguem boliu com elle . Que

vá ! Diabo do mofino . E' osso só . A roupa está que não

póde mais, até faz vergonha . Miseria assim tambem é


demais .

- Vai falando ... A panella de dinheiro tá lá de

baixo da cama . Aquillo é que é comidinha gostosa ...


Houve uma gargalhada .

Quando se viu no campo , Matheus , que atravessára

a villa de cabeça baixa , remoendo um odio surdo , es


tacou o burrico e desabafou :

-Oia que já é caiporismo ! Emquanto eu não lembrei

de comprá o diabo das terra, ninguem quiz . Foi ponto

eu pensá no negocio p'ra logo apparecê comprado . Diabo

de sorte ! O outro não qué o meu sitio de vórta, diz que

não vale nada , que fica num buraco . Não sei , mas eu

vou vivendo . Se elle quizesse , nem que fosse por


20
308 CONTOS ESCOLHIDOS

quinhentos mil réis eu dava e então fechava logo o

negocio.

Tocou vagarosamente pelo caminho deserto . O sol

batia de chapa , sol de Janeiro .


As hervas amollecidas derreavam- se , um cheiro

morno de campos seccos enchia o ar , a terra parecia re

coberta de areia : dunas alvejavam sarapintadas de

mattos . Longe eram lampejos daguas paradas , corregos

que fugiam com scintillações .

Raros passaros voavam e no recesso das moutas

insectos estrallejavam , cigarras pareciam chiar ao sol


abrazante . Lombos lascados de rochedos fulguravam .
- << Deus não qué » .

Na encruzilhada , a venda do Luiz Baveira , ponto

dos trabalhadores e dos mascates , estava , áquella hora

cálida , deserta . Sob o alpendre um grande cão dormia

ás moscas . Quando a carriola passou , una voz bradou

do fundo da casa :
-Eh ! tio Matheus ... Onde é que vai com este sól ?

Entre para descançar um pouquinho .


Elle reteve o anímal :
--- Vou tocando , seu Luiz . Tou c'um trabaio cume
CONTOS ESCOLHIDOS 309

çado e o tempo não tá da gente se fiá . Vosmecê não vê?

Se não vinhé uma chuvasinha , não sei que ha de sê de


nós : vai tudo embora queimado .
- -E' verdade . E parece que não temos agua tão

cedo .

-Tá com geito .

-Então já sabe quem assentou praça na cidade ?


- -Quem foi ?

- O Miguelinho .

O tá da busca lá em casa ? Assentou praça ? mió .

Agora é que elle vai vê o que é bom.

-Qual ! não dura muito . Mas dia , menos dia de


serta. Elle pensa que vida de soldado é só grande gala ,

pagodeira de musica , espadinha e namoro . Elle vai vêr.



-Oie , se tem que morrê que morra lá longe , senão

são capaz di dizê outra vez que eu matei elle , esses

canaia ! Mas eu já sei : aquillo foi coisa d'aqui mêmo ,

partiu d'aqui , que os home da cidade não podia adivinhá

que eu vivia no meu buraco . Foi coisa d'aqui mêmo ,

móde me fazê má . Mas Deus é grande ! Deus não


dorme.

-Isso é que é . Mas entre um instante , tio Matheus .


310 CONTOS ESCOLHIDOS

E o Luiz atravessou o balcão , sahiu á porta em mangas

de camisa, esfregando os braços . Era um homensinho

moreno e secco , picado de bexigas. Enormes bigodes

punham-lhe dois tufos acima da boca , dando - lhe ao rosto

o aspecto de um focinho ; os olhos encovados espiavam


por entre cerradas sobrancelhas densas .

-Não , seu Luiz ; vou tocando : é hora de serviço - a

terra tá chamando o braço . Póde sê que , á noitinha , se

Deus não mandá o contrario , eu dê um pulo até aqui.

-Pois appareça . Ha sempre gente para prosa.

- Nhá Raymunda bôa ? Os pequeno de saúde ?

-Tudo bem...

-Então até logo , seu Luiz .

-Até logo , tio Matheus.

E a carriola partiu . Matheus , sempre desconfiado , ao

entrar na trilha que levava ao reconcavo , voltou a cabeça


.

e resmungou :

-P'ra convidá tá prompto . Quem vê pensa que

elle vai offerecê alguma coisa , pois sim ! Ôio tá qui — e

bateu na bolsa . E' só ganancia . Trabaia ! Não é en

costado no balcão , botando agua na cachaça que eu ganho


CONTOS ESCOLHIDOS 311

a minha vida ; é no duro , cavando até rebentá . P'ra cá

vem de carrinho .

Antes de avistar a cabana ouviu os latidos dos cães :

« Ahi , rapaziada ! » Os animaes, reconhecendo-o , vieram ,


em bolo , recebel- o , ganindo , saltando . O burrico amiu

dou os passos satisfeito e o caboclo , lançando os olhos á

roça , onde as folhas seccas dos milhos farfalhavam , me

neou com a cabeça desanimado :


-
-Quá ! assim não vai . Tudo queimado ... Tam
bem é um sol mêmo de matá . Que planta é que póde

vivê assim? só cardo e pita.

O ceu azul reluzia e tudo em torno - arvores , arbus

tos , hervas - resentia-se da secca . A terra estava bran

cacenta , esturrada, em duros torrões e as formigas

desfilavam pelos caminhos carreando achegas .

A secca continuava . Corregos , que desciam sussur

rantes do coração da serra , foram desapparecendo sorvi

dos pelo sol . As hervas viçosas que lhes cobriam as

margens , feneceram , ficaram em talos e em gravetos eri

çados.

As folhas encoscoradas formavam os leitos resequi

dos das aguas estancadas .


312 CONTOS ESCOLHIDOS

O adusto milharal cinzento estrallejava e todas as

arvores, com a folhagem concava , enrolada, mostravam

os troncos escamados , como se os houvessem tostado


labaredas .

As pedras escalavradas, que appareciam como enor

mes cicatrizes , em differentes pontos da serra frondosa ,


concentravam o calor queimando toda a vegetação que

lhes crescia em torno .

A terra estalava , abria - se em fendas, atorroava- se ,

descoloria - se , exangue . Appareciam raizes retorcidas

e , por toda a parte , em veias negras , gordas formigas


mourejavam armazenando .

Ao amanhecer as aves enchiam os ares claros de

vozes : era uma festa alacre - chilros , pios , arrulhos e


reclamos , mas , com o sol , tudo concentrava - se , o silencio

impunha - se , pesado e funebre, só interrompido pelo

estalar dos ramos ou pelo pio enfadonho dos anuns ras


teiros .

O desanimo era geral, já se falava em preces , pro

messas, uma procissão com a Senhora da Lapa , atravéz

dos campos , para conjurar a calamidade que ia redu


zindo a deserto a zona amerceada .
CONTOS ESCOLHIDOS 313

Matheus, levantando - se ainda com o escuro , ficava

á porta da cabana olhando as estrellas luminosas, a repu

xar a barba. Subia ao pomar e , com enternecida pie


dade, como se falasse a filhas , dirigia-se ás arvores , las

timando - as , animando - as depois , acoroçoando -as para a

luta com o sol :



Coitadas ! Oia só como tá tudo . Nem que tivesse

ido no fogo . Até parece que tem ferida . Tem corage ,

gente . Chuva não tarda ahi e quando vinhé ocês toma


um fartão . Não desanima . Isso acaba. Não é ocês só

qui tá soffrendo , é tudo . Oia serra mãi , tá foveira que

nem parece a mesma. Sol não tem parente nem conhe

cido , vai queimando tudo. Tem corage ...


E acariciava os troncos asperos , afagava os ramos ,

desenroscava as folhas . A's vezes , só com o roçar por

elles , os galhos estalavam , partiam - se já seccos . Elle

apanhava- os, mirava- os , meneando com a cabeça , triste

mente apiedado .

As flores morriam em botão , os renovos mirravam.

<< Não escapa nada . E os bicho ? coitados ! » Procurava

os animaes que andavam entristecidos , entrezilhados .


Os bois recolhiam-se á sombra das arvores , magros ,
AN

314 CONTOS ESCOLHIDOS

somnolentos , ruminando dolhos semi-cerrados : as ca

bras mettiam- se nos grotões , saciando-se nos restos

dagua que minava gotta a gotta ; a cachorrada passava


os dias em torno da casa , atirada de ventre em terra,

arquejando , a babar esfalfada ; as aves só á tarde appa


reciam dazas frouxas , empoleirando - se nos ramos .

Uma nevoa, como fumo de rescaldo , subia dos campos

aquecidos e as cobras , que o calor assanhava , cruzavam-se


nos caminhos ou dormiam enrodilhadas, tão entorpecidas

que nem davam pelo caboclo que as matava dum golpe

d'enxada, partindo-as de meio a meio .

E' só essas porcaria que apparece . O calô bota

ellas p'ra fóra.

Que fazer ? lutar com o sol ? De que valia sahir

cedo, metter- se no matto com aquelle fogo em cima do


corpo , para ver tudo morrer de sêde ? O melhor era

esperar a chuva . Mas a chuva não vinha.

A's vezes atroavam vagos rumores de trovoada , ao

longe , nuvens rolavam lentas passando para o lado do


mar. Elle seguia-as com o olhar, falava-lhes, cha

mando - as :

- Uai ! antonce , rapariga ? Onde é qu'ocê vai ?


CONTOS ESCOLHIDOS 315

Fica aqui . Despeja nas planta toda essa agua qu'ocê


bebeu no mar. E ' aqui mêmo , pára ahi .

Mas as nuvens proseguiam, passavam arrebanhadas ,


como em arribação , para outros lugares mais favore

cidos e o azul reapparecia calmo , rutilo , reluzindo com

o sol , estrellado á noite ou com o branco luar que se

estendia serenamente pela serra e pelos campos.

Nem mesmo os sapos cantavam, pareciam haver


desertado em demanda daguas, mas os pyrilampos sur

giam em myriades , como larvas de fogo , a prole alada

do proprio sol que sahia da combustão , ardendo .

Mal escurecia, eram luzes pululando em todos os

cantos , em enxames vividos como fagulhas que subissem

de uma immensa fogueira. Sobre os campos quietos

pairavam as vivas centelhas, vinham da serra em chusma ,

rompiam dentre as arvores, pousavam, scintillando , no

sapê da cabana , entravam luci - luzindo , incrustavam-se

nas folhas , arrastavam- se pela terra ; ás vezes elle sen

tia- os no corpo , via - os nas mangas da camisa , nas pernas .

Besouros enormes passavam d'esfusio , iam dencontro ás

paredes ; mariposas , nuvens de mosquitos azoinavam

giro -girando ; cascudos farfalhavam nas folhas ; insectos


316 CONTOS ESCOLHIDOS

estranhos chegavam, punham-se a rondar a cabana e o

caboclo a enxotal-os desesperado , frenetico , bufando


densas baforadas de fumo contra os pernilongos que

zumbiam rodeando - o avidos , ou esmagando a patadas

as fulgentes taturanas que deslisavam como tições


accesos .

Era o seu mundo mysterioso , porque o outro , o que

se estendia da cerca para diante , era- lhe hostil . Tudo


-
que elle conhecia e estimava ali estava a terra , as

arvores, os animaes, os ventos , as estrellas , as nuvens .

E falava - lhes , com elles conversava , pedia - lhes

auxilio, dava- lhes conselhos - eram como amigos fieis

com os quaes vivia em intima relação .

O mesmo sol , que lhe matava a roça , era seu amigo ,

bom amigo . Quanta vez , no verão , ao clarear da ma

nhan, sahia á porta da cabana para conversar com elle :

-Ocê já vem , seu barba de fogo ? Ocê já vem

vindo mansinho móde fazê má á gente , seu damnado ?

Oia lá ! anda teu caminho , mas não começa com a tua

maldade , senão , senão ! Ocê hontem já queimou lá em

baixo um bandão de planta . Toma tento , seu barba de

fogo . A gente não tá aqui trabaiando móde ocê des


CONTOS ESCOLHIDOS 317

manchá o trabaio da gente , lagartão ! Ocê mêmo é

que é um lagartão ... »

Se era a lua , tinha meiguices amorosas , ternuras


de namorado : << Faceira que nem muié . Faz gosto .

Toda vestida de branco , oia só ... parece que vai casá .

Oia só o dengue ... Levanta o veu , rapariga . Ocê

não tem pena de arrastá o veu por essas lagða suja ?


Levanta o veu » .

E, extasiado , sob o encanto mysterioso do luar suave ,

dizia : « Quá . Noss Sinho é grande ! E' grande mêmo !

Fazê tudo isto assim direito , regulado que não ha meio

de falhá ... E' grande mêmo ... »

E chegava a esquecer a miseria , enlevado na ma

gnificencia da noite , contemplando os campos , a serra ,

os outeirinhos , lindamente vestidos do clarão diaphano .

Deitado , porém , pensando no sitio de beira - mar ,

suspirava rendido . Se já não contava com elle , com

aquella secca , então , fôra - se - lhe toda a esperança .

Deixára de accumular. O pouco que fazia , lá lhe ficava

na venda em farinha , azeite , em fumo , em pão , em

carne , bacalháu ; ás vezes mesmo , apertado pela fome ,

pagava- se um regabófe opiparo com vinho .


318 CONTOS ESCOLHIDOS

Nem uma moeda para o thesouro e o comprador , o

homem da cidade , já havia , com certeza , tomado conta

da terra, do coqueiral . << Que lhe faça bom proveito .

Ha de ganhá muito com ella » .


Dizia assim, mas suspirava sentido, não podendo

conformar -se com o caiporismo . E ficava a sonhar

com a producção do fertilissimo terreno que o mar, ali

pertinho , enriquecia e abençoava.

De repente , porém , a um golpe de vento, ouvindo

farfalhar o arvoredo , erguia- se , sentava - se no giráu :

<< A móde que tá chovendo ...» Ficava á escuta , sahia

ás apalpadellas pela escuridão , abria a porta , olhava :


Passavam torvelins de pó , folhas seccas rastejavam ,

mas o ceu puro , cheio de estrellas, mantinha-se infle

xivel .

« Quá chuva! Não vem mêmo . Noss'Sinho a móde

que tá dromindo . Não vem nada . Tá tudo limpo e


esse vento inda é pió porque leva as nuvens. E' elle

mêmo que enxóta ellas . Vai - te embora , atrazado .

Quem foi que chamou ocê aqui ? Vai -te embora.

E' só soprá de dia e de noite espaiando a chuva. Por


caria ! »
CONTOS ESCOLHIDOS 319

E o vento passava ás lufadas mornas. Sentava- se

no limiar, o queixo na mão , pensando . E , no silencio ,

a terra torrida crepitava , folhas , ramos faziam um


ruido secco na sombra , aromas erravam em effluvio
voluptuoso .

A natureza eterna zombava do sol , renascia á noite

na força de toda a sua virtude creadora .

Como amantes atrevidos que affrontassem todos os

perigos , zombassem de todos os rigores , as arvores , os

arbustos , as hervas , as finas, humildes relvas amavam ,

concebiam sob o halito de morte que as apertava num

circulo de fogo.

Elle ouvia o estrepito do arvoredo , o roçagar das

ramagens, o cicio da brisa , o lento mover das palmas ,


mas acreditava que eram os espiritos da noite , os

genios errantes que passavam de leve , invisiveis , mys

teriosos , correndo para os refugios de encanto , na matta

brava, hispida , impenetravel da serra .

D'olhos abertos, com o coração tranzido de medo

supersticioso , levantava-se devagarinho , como para não

denunciar - se aos espiritos nocturnos , fechava a porta

lá ia para o giráu , sempre a ouvir os ruidos vagos . Era


320 CONTOS ESCOLHIDOS

a vida, a fertilidade latente ; o mesmo Espirito que

pairou sobre as aguas vastas do diluvio , pairava sobre


o rescaldo da terra flagiciada , gerando , multiplicando ,
renovador e eterno .

Uma tarde, porém , depois de um dia incendido e sem

ar, um dia fulgurante em que tudo ficou em abatida ,


abochornada inercia , como se a fadiga houvesse, por

fim , consumido as energias, exgottado as ultimas espe

ranças da natureza sitiada pelas chammas , repentina

mente , affluindo de todos os pontos do ceu, grossas ,

pejadas nuvens accumularam - se .

O sol desappareceu, ficou o mormaço morrinhento .

As nuvens rolavam umas sobre as outras, cheias, incha

das , sotopondo - se , umas escuras como rôlos de fumo ,

outras alvas, deslumbrantes como espumas batidas

de sol.

Um vento passou , vergando os milhos seccos que

estrallejavam desprendendo largas folhas mortas ; as

arvores debateram- se em convulsões freneticas , desgre

nhadas, angustiadas ; levantavam- se columnas de poeira

turbando os ares , folhas esvoaçavam em turbilhão , como


aves tontas .
CONTOS ESCOLHIDOS 321

Relampagos successivos flammejavam no ceu enne


grecido , coriscos rabeavam .

Vinham vindo trovões de longe , em surdo , echoante

rolar ; mais perto estrondavam . Subito , um estalo

tragico atravessou o silencio . Matheus recuou persi

gnando - se . Logo grossas gottas dagua esparrima


ram -se no terreiro . Levantou - se um cheiro acre de

terra quente , mas a agua desappareceu sugada, como

se houvesse cahido numa chapa de fornalha .

Outro estrepito ribombou sonoramente na sinistra


calada . O caboclo olhava com o coração opprimido .

Enxotou os cães para longe com medo que attrahis

sem o raio . Um rumor de rufo chegava , já o horizonte

desapparecia, alguma coisa avançava sombria.

As arvores estortegaram-se , uma nuvem de pó foi

The ao rosto cegando - o , envolveu - o ; as janellas bate

ram com estrondo , o sapê do tecto levantou - se , toda a

cabana rangeu , oscillou abalada . Pingos enormes pe

lotaram na terra e logo o aguaceiro desabou numa des

carga violenta , abafando toda a paizagem , cercando - o

daguas naquelle tugurio fragil que ameaçava ruir , des

fazer- se em frangalhos com o vendaval impetuoso .


322 CONTOS ESCOLHIDOS

Recolheu - se e , de dentro , entre alegre e medroso ,

tremendo ao fragor das descargas electricas, sorrindo

ao ouvir o barulho dagua, sentindo no rosto o rócio da

chuvarada , olhava , sem ver, os campos, comprehen

dendo , porém , que era a fortuna que vinha , a semen

teira celestial que se espalhava pela esterilidade , para

rebentar em haste , em folha , em flor , em fruto .

E logo os corregos sumidos recomeçaram a rolar

barrentos , a serra despejou todos os seus veios e a

terra avida sorvia, a grandes tragos , a agua copiosa e

bemdita que , toda a tarde , escurecida em lugubre cre

pusculo , cahiu violenta e , durante a noite , abrandando ,

manteve-se em rega beneficiadora, fartando as arvores ,

abrevando os campos e resuscitando os germens abafa


dos sob as areias torridas.
IV

Indifferente á chuva fina que cahia , cedo Matheus

deixou a cabana encharcada , sahindo a visitar a terra ,

com ancia de ver as plantas refeitas pelas aguas gene

rosas.

Os cães , arrepiados , patinhavam na lama , sacu


diam-se estalando as orelhas , muito magros , com as

costellas ripando o corpo esguio .

As aves , escorridas , tiritavam agasalhadas sob as ar

vores nos socalcos , onde as aguas não empoçavam . Os

passarinhos , já saudosos do sól , iam e vinham , es

voaçando atravéz dos fios d'agua , arrufando as pennas

mal pousavam nos ramos e por todos os lados : das


21
324 CONTOS ESCOLHIDOS

barrancas cavadas em fundos regueiros , dos taludes

esborcinados , pelos trilhos do pomar, a agua escorria ,

amarellada e suja , alagando as terras planas, alastrando

em marneis escuros , acima dos quaes appareciam tufos

de arbustos e fluctuavam hervas e folhagens mortas .

A serra parecia renovada com a rega fertilisante . O

arvoredo tinha uma côr mais viva e lustrosa , abria uma

fronde mais larga ; as pedras luziam lavadas. O caboclo ,


arregaçando as calças , metteu-se no lameiro flaccido e

escorregadio , deu uma volta lenta em torno da casa ,

parando um instante junto ao chiqueiro de onde escorria

lento um grosso lodo negro e fétido .

Os cevados chapinhavam, chafurdavam satisfeitos ,

fossavam o lamaçal , mastigando gulosamente restos de


abobora pôdre .

O laranjal , em cima , tinha tremuras voluptuosas ao

vento , sacudindo um chuvisco crepitante .

O caboclo ficou parado , a olhar a terra sempre bran

cacenta e arenosa , terra anemica , exhausta , para a qual

não bastava a benção das nuvens . As chuvas abatiam-na

ainda mais , levavam-lhe o pouco de seiva , deixando -a


CONTOS ESCOLHIDOS 325

fraca , dessorada , com o pedregulho exposto , como em

magreza esqueletica .

Aqui , ali eram covas, grotas , sulcos, como ulceras

immensas que se abriam no corpo escalavrado e enfra

quecido . Sem sentir a chuva , que se lhe embebia nas


roupas esfarrapadas , o caboclo continuava a andar va

garosamente , examinando a roça , como se visitasse


enfermos .

Mas o desanimo estampava - se - lhe no rosto aco

breado. Com os dedos por entre a barba murmurava :

<< Isso não endireita mêmo . Vai vê que , lá embaixo ,

tá tudo vivo , aqui nem como coisa . Terra damnada !

Tambem só mêmo um sem cabeça como eu ficava com

um diabo d'estes e por um dinheirão » . Logo , porém ,

apiedado , enterneceu - se , a miseria doentia da terra

commoveu- o : « Coitada ! mettida aqui neste buraco ,

com uma serra damnada em cima , que é que ella ha de

fazê? E' esse diabo que fica com tudo » . E levantou o

olhar odiento para a serra viçosa , toda revestida de

novas folhagens , rebentando em brotos , reerguendo ar

bustos que a soalheira abatera , alegre , vigorosa , ple

thorica , cheia do sonoroso murmurio das aguas que


326 CONTOS ESCOLHIDOS

rolavam pelos seus portentosos flancos em torrentes ou

pelas pedras largas em limpidas toalhas. « Aqui só um

milagre de Noss Sinhô » .

Os bois, os seus velhos bois , tres animaes cançados ,

os restantes dos que elle jungia ao carro quando levava

lenha á villa , lá estavam deitados , ruminando , tristes sob

o chuvisco. O outro , um bicho robusto , o melhor , fôra ,

uma manhan , encontrado morto no campo , com o beiço


enorme, picado de cobra . Os companheiros pareciam , ás

vezes , lembrar- se delle - mugiam , escarvavam a terra .

Lá estavam com os corpos cheios de bernes e de carra

patos.

Matheus bradou por elles : « Eh ! rapaziada ... Eh !

véios ... Ocês tá na humidade por gosto? Oia doença » .

De repente , porém , voltando ao pomar, sorriu falando

ás laranjeiras , aos limoeiros , ás jaboticabeiras , aos pece

gueiros, a todas as arvores irrequietas que pareciam

mais vivas , sacudindo - se , como se quizessem deixar o

solo , sahir, caminhar pela terra gozando o frescor be


neficente e a fartura d'aguas :

<< Antonce , rapaziada ? eu não dizia que a chuva não


demorava? Agora ocês tá contente . Vamo vê se ocès
CONTOS ESCOLHIDOS 327

dá conta do recado . Eu quero vê, tempo tá hi . Bota a

florada p'ra fóra , deixa de molleza . Não é só sacudi os

ramo , dançá debaixo da chuva , que nem passarinho no

corgo , é preciso fazê pela vida . Ocês tem força ... Oia

eu,tou veio e vou indo , sempre na obrigação . Vamo vê» .

Desceu , recolheu - se á cabana tocando os cães que

se haviam refugiado na cozinha farejando os cantos , es

fomeados . « Sahe ! Que é que ocês tá caçando aqui ? Vai

já lá p'ra fóra » . Os animaes sahiram embolados e o ca

boclo fez o seu chá do costume , catou uns restos de

bolacha na gaveta . Depois de comer, accendeu o

cachimbo e , sentado em um dos bancos, as pernas es

tendidas , os pés cruzados , ficou banzando , a ouvir o fer

vilhar da chuva no sapé, os olhos perdidos na visão da


fertilidade .

Uma lembrança de mulher roçou-lhe vagamente o

espirito , communicou -se-lhe á carne , mas logo , como

um asceta que houvesse feito vóto de castidade e se

insurgisse contra as solicitações da natureza , provocadas

pelo demonio , teve um violento , despejado gesto de re


pulsa , como sacudindo de si uma immundicie :

Ah ! vai- te embora ! Muié , muié ... De que serve


328 CONTOS ESCOLHIDOS

muié? Oia a outra , Luciana , uma rapariga forte ... nem

p'ra buscá um bocado d'agua na fonte . Só queria comê

e ficá deitada, drumindo que nem priguiça . Muié ? de

que serve muié ? é só p'ra tirá a força do home . A gente

péga um diabo d'esses , pensa que traz p'ra casa uma

ajuda e é só despeza e falatorio , um inferno ! Quaqué

coisa faz doença - nem sol nem chuva, tudo faz má, mas

p'ra comê tá sempre prompta , do bom e do mió . Muié é

o trabaio que deixa lucro ».

Lembrou-se , porém , do corpo moreno de Luciana ,

da graça languida do seu andar e ficou , um momento ,

enervado , a sacudir os pés , repuxando as barbas .


<< Muié ... lá sim » e o pensamento fugiu - lhe para o

sitio de beira - mar como para amante ideal , o seu unico


e verdadeiro amor .

« Lá sim , aquillo é que vale a pena . O diabo do

home adivinhou ... Mas só se Deus não me ajudá ! Só se

Noss , Sinho não quizé . Eu ainda tenho esperança . Não

sei que é que me diz por dentro que eu ainda hei de sê

dono daquillo » .

Levantou-se , poz - se a andar ao longo da sala hu

mida, sempre a pensar no sitio, revendo- o com a sua


CONTOS ESCOLHIDOS 329

linha esbelta de coqueiros como uma columnada ao longo

da praia , o capoeirão fechado , a barreira sangrenta ao

fundo , já tocando a matta, a casa entre roseiras , com


uma verde , fresca latada de maracujás sempre enxa
meada de abelhas .

Quedou-se á porta , olhando . Estiava . Nuvens ralas

fugiam á flor da terra , envolvendo as copas das arvores,

rasgando-se nos ramos . Uma nesga de azul appareceu


ao longe , logo encobriu - se . Por entre as brumas brilhou

um pallido clarão de sol ; « A mode que o dia qué le


vantá » .

Foi a um canto , esgaravatou num vão de parede , e

tirou um rolinho de notas sordidas , desembrulhou - as ,

contou-as e metteu- as no bolso . Ainda ficou parado , co

çando a cabeça , mas decidiu - se : tomou o chapeu , um

cajado e sahiu fechando a porta e recommendando a


casa aos cães .

Sentia fome. Raramente o organismo reclamava ,

mas em taes momentos , o caboclo , que se conhecia , não

pensava em resistir á imposição e murmurava : « Hoje


é dia ! » Entregava - se passivamente e , quando começava

a gastar, elle que fazia questão de uma moeda de vintem,


330 CONTOS ESCOLHIDOS

ia até á prodigalidade , abarrotando - se , pagando com

usura as exigencias da fome velha .

Sentia formar- se , crescer o desejo impetuoso e cedia

submisso , resmungando . « Fome tá hi ... Hoje é dia... >>

Mas insurgia-se contra o que lhe parecia uma violencia ,

um roubo sem , todavia , reagir , sabendo- se fraco para

lutar contra a revolta do organismo que exigia o ali

mento com todo o poder do instincto .

Desceu vagarosamente o caminho ingreme , passou a

porteira fragil . Os cães quizeram seguil-o , adulando-o ;

repelliu-os , ameaçou - os com o cajado e foi- se sob a

chuva peneirada que orvalhava as folhas, espapando os

pés no lodo resvaladio , roçando pelas hervas molhadas .

Ia á venda do Luiz comer alguma coisa.

Quando avistou a cerca , depois o alpendre , ainda

hesitou , como arrependido , mas a fome espicaçou - o e ,

ao descobrir a fumaça que se desenrolava no ar em es

piras azuladas , mais se lhe irritou o desejo . Tirou as

notas do bolso , olhou -as com pena , despedindo - se


dellas , recontou - as , guardou - as de novo e seguiu sus

pirando :

« Eu já sei . Tudo isto fica lá . Aquillo é mais ladrão


CONTOS ESCOLHIDOS 331

que rato . Hoje é dia d'elles se vingá de mim. Mas não

faz má. Deus é grande. Tambem é naturá , o corpo per

cisa, tá fraco . A gente carece , de vez em quando , de

uma satisfação assim. Terra não tá hi , não teve o seu

chuveiro , não tá contente ? A gente tambem percisa .

Não é só trabaiá » . Deu d'hombros , conformado : « Ora !

mais tem Deus Noss Sinho pra dá do que o diabo pra

tirá. Seu Luizinho é damnado pra mettê a faca , mas a

comida é boa , isso é . Ninguem cozinha como nhá Ray

munda , nem lá embaixo . Muiésinha que vale ouro .

Aquillo sim ! ... »


Parou olhando o clarão enfermiço do sol que se es

tendia preguiçosamente pelo campo molhado : « Ocê já

vem vindo como quem não qué , lagartão ?! Vem mêmo ,


ocê sempre é mió do que essa porcaria de chuva . De

que serviu ? só p'ra trazê a saparia » . Deu d'hombros e

partiu direito á venda , que regorgitava de gente .

Sob o alpendre dois animaes de sella esperavam pa


cientemente. Cães enormes modorravam encolhidos ; de

quando em quando , porém , levantando impetuosamente

a cabeça , freneticos, abocavam moscas, estalando as

mandibulas .
332 CONTOS ESCOLHIDOS

Dentro chalravam , tiniam copos e Luiz , indo e vindo,

auxiliado por um dos filhos , pequenote escaveirado ,

d'olhos ramellosos , apalermado e molle , servia , sempre

a enxugar o balcão ou a sacudir o panno para dissipar o


fumo dos cachimbos e dos cigarros .

Havia gente como em feira - caboclos e negros , por

tugueses , italianos , sentados nas barricas , nas caixas ,

em saccos, encostados ao balcão ou de cócoras junto á

parede .

Os copos passavam de mão em mão . O dito mais tolo

provocava uma rinchavelhada estrondosa e como o José

Pitombo , conhecido por Avahy, estava nos seus dias de

prosa , a reunião não se dissolvia entretida com as narra

ções guerreiras do antigo voluntario , que fizera toda a

campanha do Paraguay conquistando medalhas e as di

visas de sargento . «Se soubesse ler e tivesse um pouco

de protecção , dizia, teria chegado a general . >>

Era um mulato esgalgado , cara sempre alegre , olhos

muito vivos , bigodes ralos , cabelleira em poupa .

Quando falava , desconjuntava- se em meneios , sacu

dindo gestos , representando as narrativas com largos ,


CONTOS ESCOLHIDOS 333

estabanados acenos , esgares comicos ou tragicos e vozes


imitativas .

Se referia uma batalha , dispunha o exercito , tocava

a corneta ou fazia estrugir a musica ; depois investia .


Era a cavallaria : pa - cá - tá , pa - cá - tá e , de pernas

abertas , aos saltinhos , galopava empunhando uma lança

imaginaria, brandindo a espada ou disparando o mos

quetão atravéz do silencio attento do auditorio .

Era depois a infantaria e lá ia em accelerado , ao

toque de carga, curvado , remordendo os beiços , a

bayoneta em riste . Era a artilharia e tufava as bochechas,

estourando disparos ribombantes . Tirava o lenço do


pescoço , desfraldava - o como bandeira e , em torno

delle , aos golpes que atirava , rolavam regimentos , su

miam-se esquadrões paraguayos e elle saltava por cima

dos cadaveres , a dar vivas , retumbando marchas e do

brados e terminava assumindo o aspecto grave e marcial

de Osorio ou de Caxias , e partindo á frente das tropas

victoriosas para o acampamento. Seguia -se, quasi sempre,

a exposição das cicatrizes : despia o casaco de brim e ,

arregaçando as mangas , mostrava os laivos nos braços ,

nas pernas ; ás vezes , mais arrebatado , puxava a camisa


334 CONTOS ESCOLHIDOS

e, inclinando -se , expunha , ao flanco , o signal dum lan

çaço e todos, depois de verem, de examinarem , admi


ravam-no : « Cabra estourado ! »

Pediam -lhe detalhes , lembravam - lhe episodios e elle

não se fazia rogado , lá ia , jogando gestos , estourando

descargas , esganiçando toques de clarins , a viver as

batalhas sanguinosas , com o tumulto arrojado das cargas ,


a violencia heroica das investidas .

Mas fazia-se todo languido quando , aos cochichos

maliciosos , para não ser ouvido pela familia do Luiz ,

contava aventuras mais gratas , com mulheres - que

mulheres e doidas pelos brasileiros ! Quantas tivera

nos braços ! umas achadas nos mattos , núas , tiritando de

frio , varadas de fome ; outras que atravessavam as

linhas de fogo e vinham pedir protecção e agasalho aos

chefes brasileiros , com os filhos enganchados á cinta .

E nas cidades e nos campos , depois das batalhas , as

que ficavam perdidas, cada bichona que fazia gosto , ás


vezes meninas .

-Ah! meus camaradas ... E , dolhos em alvo ,

fazia uma pirueta , cuspia para os lados e , para suffocar


CONTOS ESCOLHIDOS 335

a saudade daquelles faceis amores , atirava um nickel

ao balcão , pedindo mais um martello de vinho .

Assim ia aquecendo -se e , quando deixava a venda ,

ao cahir do sol , os companheiros ficavam preoccupados .

Não fosse elle rolar , com o cavallo , por algum barranco .

O animal era de muito fogo e Avahy, com qualquer coisa

ficava virado duma vez , não via perigo , jogava o animal


ás tontas , como louco ».

Cambaleando , a cuspilhar , fazendo , desfazendo o ci

garro , o chapeu derrubado para a nuca, Avahy montava

a cavallo e , bambo , as pernas frouxas, os olhos mortos ,

a lingua tropega , dizia , lembrando-se do grande chefe :

- Homem , Osorio ! aquillo é que era soldado . Pa

raguayo queria ver o diabo e não queria ver o gaucho

velho pela frente . Eh ! tambem uma carga de riogran


denses não era conversa . E , já delirando com a recor

dação épica dos encontros formidaveis, atirava o cavallo

para a estrada e punha- se a bradar, incitando esquadrões

imaginarios .
Os companheiros intervinham receiosos .

-Deixa disso , Avahy, deixa disso ... Esse cavallo

não é seguro. O mulato sorria , bambaleando - se na sella :


336 CONTOS ESCOLHIDOS

-Que ! ocês têm medo ... Gente poaia ! Então que

diria se ocês se vissem na embolada em que eu me vi .

Este punga é lá bicho p'ra me derrubá ? Eu espremo os

quartos delle nos joelhos que era uma vez . E retomava


a narração : Osorio , o gaucho velho , nem falava , era só

um geito de corpo e toca ! Firmava-se nos estribos , ati

rava o busto numa arrancada , largando as redeas com

um grito. O animal arremetia em disparada louca numa

nuvem de poeira , direito á barranca . Elle suspendia- o

no freio , mettia- o affoitamente pela rampa e , lá de cima ,

ainda bradava , acenando com o chapeu aos companheiros

que se ajuntavam na estrada , diante da venda : « Com

migo é assim ... Té amenhan » . E lá ia para o sitiosinho,

uma terra rica e bem plantada onde vivia feliz , com um


rancho de filhos , trabalhando vigorosamente durante a

semana para gozar o domingo , quasi sempre na venda ,

bebendo e contando façanhas .

Quando Matheus entrou , sempre vagaroso , taci

turno , o cachimbo a arder na barba , mal tocando no

chapeu , Avahy contava um dos seus feitos . Toda a

gente ficou surprehendida ao ver o caboclo , o proprio


voluntario cortou a sua narração .
CONTOS ESCOLHIDOS 337

Oh ! tio Matheus , por aqui ? Isto é milagre . Foi

a chuva que botou vosmecê fóra de casa ou é por ser

domingo de Noss Senhor ? Riram surdamente no grupo .

O caboclo resmungou e foi direito ao Luiz que lhe es

tendeu a mão . Disse - lhe que ia jantar . « A sua cozinha


ficára uma lagôa com a tempestade da vespera . »
- Entre , tio Matheus . Raymunda sempre ha de

arranjar alguma coisa . Isso de comida é com ella , é seu

negocio . Levantou a aba do balcão e o caboclo passou ,

seguindo , por entre as pipas acanteiradas , para o inte

rior da casa . Foi um espanto enorme entre os homens ,

quando souberam que elle ia jantar .


-- Quê ! o Corujão ? então não ha mais cobras no re

concavo ? E elle paga , esse agarrado ? Luiz affirmou

arregalando os olhos , e , por um momento , os feitos do

Avahy foram esquecidoso grupo concentrou- se junto

ao balcão para ouvir o vendeiro .

Vocês estão enganados . Tio Matheus é um bom

velho e muito pontual nos seus pagamentos . Homem

honrado está ali . Não tenho queixa delle . E' exquisito ,

parece meio tocado da bóla , mas não faz mal a ninguem .

Tem lá as suas manias, gosta de viver só , mas … .. ha


338 CONTOS ESCOLHIDOS

outros peiores e passam por gente de muito miolo . Isso

mesmo de dizerem que elle é agarrado ... não sei. Volta

e meia apparece por aqui , como hoje , manda preparar

uns pratos lá do seu gosto , come, bebe , paga e vai - se


embora .

-O quê! seu Luiz, pois vosmecê tem coragem de

dizer que o Corujão não é furreta ? Ora pelo amor de


Deus ! Pois então isso é roupa que um homem ponha em

cima do corpo ? Não é só porcaria , é até indecencia . Se

não tivesse, ainda bem, mas com uma panella cheia de

dinheiro debaixo da cama ... ! Era melhor andar nú .

Comida ... ah ! fome não é graça , fome póde mais do

que tudo . E quando elle não vem aqui ? Então vosmecê

não se lembra do que dizia a coitada da Luciana? E onde

é que elle compra ? não é aqui , não é na villa , só se


manda vir da cidade . Historia ! é um unhas de fome .

Eu sempre queria ver a comida que elle vai comer.


-E' facil . Ha outra mesa lá dentro , janta ahi e

verás .
- Isso é que ocê quer , ocê não tem nada de tolo .

Eu tenho a minha comidinha em casa , á minha espera.

Um dos filhos do Luiz chamou - o á parte sussurrando um


CONTOS ESCOLHIDOS 339

recado. O vendeiro abriu um dos armarios , tirou uma

lata, entregou-a ao pequeno e , sorrindo , voltou a aco


tovelar-se ao balcão , dizendo :
-Estão vendo ? sardinhas de Nantes , e das boas ,

para o velhote , e ovos , e lombo de porco . Vocês é que

dizem que elle é avarento. Fiem- se nelle. Sabe leval-a ,

isso é que é . Matheus , depois de haver combinado o seu

jantar, escolhendo os pratos , recommendando certa fa

rofia de linguiça, muito do seu agrado , tornou á venda ,

e , accendendo o cachimbo , sentou-se em uma caixa, re


puxando os grossos fios da barba , a ouvir as historias de

Avahy. O voluntario recomeçou exaltando a bravura


temeraria dos paraguayos .

Valentes até ali ! Quem disser o contrario mente

ou não esteve lá . Eu vi ! e repuxou as palpebras .


Quando os bichos se atiravam em cima de nós vinham

damnados , era preciso ser duro para escorar o tranco .

E cada bruto, ahn ! cada bruto que fazia medo : quasi

nús , com uma tanga na cintura , armados duns espadões


que cortavam que nem o diabo . Gente direita ! Mas

tambem os nossos não eram molles . Aquillo era fogo de

arrasar um mundo , o tiroteio pipocando vivo e a arti


22
340 CONTOS ESCOLHIDOS

lharia segurando : tome bala ! tome bala ! Se não fosse

assim ... nem eu sei . Gente cahia por ali fóra que era um

desproposito . Quando acabava a batalha, era sangue no


campo de fazer lodo , gente retorcida , gemendo , cavallos

estripados , um horror ! Guerra ! só quem viu como eu vi.

Elles perderam , mas tambem a terra ficou estrumada

duma vez. Aquillo , daqui a alguns annos , quando elles


começarem a semear, vai ser uma fortuna de botar fora .
- Uai ! porque ? perguntou um crioulo que ouvia

acocorado , dolhos muito abertos.


― Porque ? por causa
do sangue . Ocê quer melhor

estrume do que sangue ? O crioulo desatou a rir . Que é

que ocê está rindo seu bobo ? Ocê não sabe?

-Não , não sei . Avahy correu um olhar pelo audi


torio .

-Então ocê nunca ouviu dizer que o sangue dá

força ? Pois isto é velho : basta olhar um cemiterio . De

repente , arregaçando a manga do casaco , Avahy es

tendeu rijamente o braço mostrando as veias turgidas .

Que é isso que está aqui dentro ? é sangue , não é ? Todos

cravaram os olhos no braço bronzeado do voluntario .

Sangue que é? é vida . Sangue é tudo no corpo . Já ouvi


CONTOS ESCOLHIDOS 341

contar a historia de um homem que estava pra morrer

de fraqueza e comprou o sangue de outro . Um carvoeiro


confirmou :

- E' verdade . Tambem já ouvi contar isso . Avahy ,


sentindo-se amparado pelo testemunho do carvoeiro, re

jubilou :
―――――
- Então ? tá ouvindo, seu cara nagua .

-Mas conta, pediu o negro interessado .


- Os medicos abriram a veia do homem são e

abriram a veia do doente , fizeram passar o sangue de

uma para outra e o homem ficou bom.

E o outro ?

- O outro tinha sangue demais . Sentiu um bocadinho

nos primeiros tempos , mas com o dinheiro que ganhou ,

ora ! comeu do bom e ficou outra vez reforçado , capaz

de dar outro tanto de sangue . Um oleiro disse :

-No matadouro , lá embaixo , na cidade , todos os

dias , á hora da matança , ia um moço beber um copo de

sangue quente . Estava tysico . Dizem que sarou .

-Devia sarar, affirmou Avahy. Sangue não é graça

Ocê falou em sangue de boi ... E não se lembra daquella

companhia que annunciava estrume de sangue de boi?


342 CONTOS ESCOLHIDOS

era guano de sangue que se chamava. Seu Taveira , da

olaria , andou lidando co'a gente pra comprar. Era um

granitosinho vermelho . Ocê não se lembra , Estevão ?


Um portugues resmungou , risonho :
-Lembro-me. Eu mesmo comprei um bocado para

fazer experiencia .

-E depois ? Todos voltaram-se para o lado das pipas ,

de onde partira a voz , e viram Matheus de pé , puxando

as barbas . Fôra elle que lançára a pergunta . Avahy

sorriu gingando, bambaleando o corpo :

-Uê... depois não sei , tio Matheus . Todo o mundo


diz que não ha coisa melhor pra a terra. Se eu falo do
Paraguay é porque ouvi um official dizer, contando

uma grande batalha , parece que foi depois de Tuyuty ,


não me lembro bem. Todo o mundo falava , com pena do

mundo de gente que ia ficar na miseria , quando elle

disse : « Que miseria ! Que nada ! Com toda essa san

gueira ?! Isso é terra que vai valer ouro . Todo esse


sangue é vida ».

-E sangue de boi ?
Ainda deve ser melhor, tio Matheus, porque é

mais forte.
CONTOS ESCOLHIDOS 343

-Isso não é rodéla , Avahy ?

Como rodéla ? Vosmecè pergunte a quem sabe .

Nem precisa perguntar, é só olhar para um de nós .

Onde é que está a vida da gente ? é aqui ; e , estendendo


o braço, mostrou as veias tumidas .

-Isto é na gente e nos animá , Avahy. Deixa de


rodéla . Sangue da terra é os rios que corre . Vai contá
historia ond'ocê quizé ; a mim, não !
-Vosmecê não acredita. Eu só sinto não ter os jor

naes do tempo , com os annuncios, para mostrar a vos


mecê . Elles fizeram experiencia numas terras seccas ,
terras de sapé. Puzeram fogo , passaram o arado , espa

lharam o tal guano, semearam e foi uma riqueza . Vos

mecê pergunte a quem viu .


-E onde é que se vende isso ?

-Não sei . A companhia quebrou ... Todos riram do

tom em que o velho falou , incredulo . Mas um dos pe


quenos veiu chamal-o para jantar. Elle resmungou e ,

lentamente , deixando o chapeu sobre a caixa , desappa


receu no interior da casa. Avahy voltou-se indignado ,

fez um gesto e toda a companhia rompeu a gargalhada.


-
- Que é isto , gente ? Olha que elle desconfia , mur
murou Luiz.
344 CONTOS ESCOLHIDOS

---Que desconfie ! Eu minto? exclamou o voluntario

melindrado . Vá com a sua desconfiança para o diabo !

Quem sabe ?! E , como o ceu fosse , de novo , escurecendo ,

o mulato , com medo d'uma carga d'agua , pediu mais um

martello de vinho e despediu - se . « Bom , gente . Amenhan

é segunda-feira , dia de captivo » .

Montou a cavallo e partiu seguido dos cães , perden

do-se na volta do caminho , entre as altas barrancas . E ,

pouco a pouco , os homens foram sahindo. Ficou apenas

um velho negro a cachimbar no alpendre , tocando sur


damente a marimba tristonha.
V

Seguindo vagarosamente , atravéz da escuridão dos

humidos caminhos , atolando os pés em pôças , roçando

pelos frios ramos , sempre a ouvir o monotono, estridente.

ou lugubre coaxar dos sapos , que haviam reapparecido

com as aguas , Matheus recolhia á cabana pensando nas

palavras de Avahy .

O mulato falára convencido , confirmando com o tes

temunho do Estevão , homem serio .

Talvez fosse aquillo o segredo da fertilidade do seu

sitio que lhe escapára involuntariamente no impensado

chalrar. Sim , porque Fonte nova, uma terrinha de nada ,

era a melhor de todas as situações d'aquelles lados - uma


346 CONTOS ESCOLHIDOS

lavoura que fazia gosto : cafesal , roça de milho e de man

dioca, a horta sempre viçosa , um pomar que era uma

belleza e pastos que iam por ali fóra , sempre verdes , en

gordando o gado que ficava de fazer inveja - redondo ,


luzidio , o pello fino e lustroso que nem seda.

Aquillo era coisa do tal estrume . Que o sangue é


tudo , é verdade . A terra come , a terra bebe , é como um

animal e se o sangue na gente dá força e saude , na terra


deve ser o mesmo .

Corujas passavam surdamente , morcegos cruzavam

os ares negros com um ruflo d'azas rapido e as arvores ,

batidas pelo vento , retorciam-se com estardalhaço .

Um vulto ergueu - se no caminho , fugiu , desappareceu

no meio das hervas . Algum animal . Aquella gente não

cercava os pastos e era aquillo . Por isso andavam sempre

em questões por causa de roças estragadas.

Quando apanhou o rumo do sitio , tropeçando nas


pedras , escorregando nos sulcos cujas bordas molles es

boroavam -se-lhe sob os pés , logo voltou a furia contra a


terra miserrima :
- Porcaria ! é só pedra e barro. Nem p'ra caminhá

presta. E isso é que ha de dá .... Aqui é que eu hei de


levantá a cabeça. Tou arranjado .
CONTOS ESCOLHIDOS 347

Os cães ladraram ouvindo bater a porteira . Elle

passou e, sentindo os animaes, que desciam em tropel ,


rosnando , latindo , bradou :

Tá quieto ! Ocês não conhece a gente ? E foi-se de


vagar, curvado , abordoando- se ao porrete que afundava

na terra frouxa . Chegando a cabana fez lume ; tirou o


resto de dinheiro do bolso , contou-o e foi guardal- o na

frincha da parede . Encheu o cachimbo , sentou- se e ficou


pensando ,

< A gente percisa exp'rimentá de tudo . Isso de

sangue parece historia , mas a verdade é que Avahy vive


botando dinheiro fóra . Não ha sitio como o delle . Tem

gente , isso é ; os fio ajuda , a muié trabaia, mas quando a

terra é ruim não ha arado , não ha enxada , não ha fogo ,


não ha nada que sarve . Ali ha coisa , é mêmo essa his
toria do estrume . Só elle sabia , só elle tem aquella ri

queza . Lá embaixo mêmo , o Coqueirá, não vale a Fonte

nova, e o má tá ali pertinho , espaiando bondade . Que é

antonce? Avahy não é magico , nem Noss Sinho fez mi

lagre em casa d'elle . E' mêmo . Elle achou o estrume ,

espaiou na terra e tá hi . Isso mêmo d'elle dizê que a


companhia quebrou , que não sabe onde é que se vende o

sangue, já é esperteza d'elle , móde ninguem apruveitá.


348 CONTOS ESCOLHIDOS

Pois eu hei de sabê, isso hei -de ! Se não achá aqui ,

mando vê lá embaixo , vou eu mêmo , percuro e bóto isto

que nem um paraiso . E hão de vê ... ! Nem que seja só

por capricho . O diabo é esse bandão de pedra que


atrapaia tudo . Arado aqui não entra ; mas a terra de

cima, essa é bôa, péga bem, há de dá . Amenhan mêmo

vou cuidá de vê isso . Sangue de boi .

Fechou a casa, deitou- se deixando a candeia accesa .

O vento levantou-se ; a cabana rangia , desprendiam-se

torrões de barro das paredes , esfarelando -se no chão e a

chuva cahiu , jorrando grossa e forte , em bategas .

Cançado , d'olhos fechados , os braços por baixo da ca

beça , o caboclo ainda pensava nas palavras do voluntario

e, surdamente , como a sonhar, murmurou : Sangue


de boi...

Foi-se fazendo claro na sua visão como se um sce

nario luminoso se lhe desenrolasse no intimo . Eram as

suas terras agrestes , as suas terras , brancas , esturradas ,

empedradas , que appareciam, calvas , sem herva , tristes

e núas como o areal das praias . Só os cabeços das rochas


emergiam avultando na aridez alva.

Um sol forte queimava e elle seguia sem rumo ,


CONTOS ESCOLHIDOS 349

olhando a esterilidade , ao longo d'aquelle deserto silen

cioso , quando , de repente , viu uma das barrancas mo

ver-se, crescer, cavar-se dobrando- se , enrolando - se como

uma vaga e derrubar-se na terra sem ruido , tingindo - a


de vermelho , e alastrar cobrindo todo um lado .

Outra barranca avolumou- se em muralha, inclinou - se

concava e despejou -se de roldão , espraiando - se com a

mesma côr atravéz do pomar , encrespando se á volta dos


troncos e descendo em levada purpurea.

Os aguaçáes inchavam, subiam rubros , reluzindo e

transbordavam alagando a terra areenta da roça de milho .

Os animaes corriam espavoridos diante da inundação ;

elle proprio procurava refugio andando de um para outro

lado , tonto , sentindo - se ameaçado por aquella estranha

cheia e os seus pés apegavam-se á terra molle , embebida

de visgo purpurino .

Era sangue , um diluvio de sangue que por ali descia


avassalando a leira , sumindo as pedras , invadindo a ca

bana, enrubescendo os troncos que iam ficando como de


coral.

A custo , trepando de socalco em socalco conseguiu

abrigar-se no outeirinho e vio a violenta explosão das


350 CONTOS ESCOLHIDOS

sementeiras antigas. Todos os germens , que elle julgava

perdidos , rebentavam, vinham a flux com tanta força ,

crescendo , desenvolvendo- se tão rapidamente que elle


via o impeto das hastes , o desdobrar das folhas , o abotoar

das flores , o desabrochar das petalas, a formação do

fruto logo sazonado , logo amadurecido , vergando os

galhos, cobrindo o chão.

De todos os cantos do ceu chegavam aves vorazes ,

da serra desciam atropellados , famintos rebanhos que


logo se fartavam . Carros rodavam lentos , atulhados de

frutos ; filas de homens estendiam- se pelos caminhos , le

vando enormes cestos carregados , e as arvores cada vez


mais cheias . Elle sorria.

As proprias pedras vestiam-se de verdura fina e a


verdura floria.

Era o sangue fertilisante que fortalecia o terreno ,

tornando-o , de sáfaro , fecundo . Era o sangue que se es

palhava alagadoramente , espadanando , defluindo em en

xurrada, transformando a miseria em prosperidade ,

dando á charneca a exuberancia maravilhosa das terras

que os santos abençoavam e que, da noite para o dia ,


todas se cobriam de searas ferteis .
CONTOS ESCOLHIDOS 351

O caboclo rebolcava anciado . A abundancia parecia

suffocal- o , e vendo tão forte aquella terra , que sempre


The parecera inerte , entrou a receiar a fartura, temendo

a assoberbada riqueza , recuando diante do prodigioso


viço , de tanta raiz que resaltava em colleios , alastrava

em vergões , tanta folha que se abria , tanta ramagem

alargada , tanto tronco que engrossava, inchava , subia


aos arrancos, num crescer fantastico , fechando abobadas

frondosas, tão densas que, em baixo , tudo era sombra


abafada.

As altas hervagens envolveram-no . Fugia e, de


todas as partes , abrolhavam renovos , em todos os cantos

pullulavam plantas logo enfolhadas , logo frondentes .

Faltava-lhe o ar , e a vida vegetativa era tão intensa ,

tão desconforme , era tão desregrado o affluxo floral , a

germinação de tal maneira possante que a terra crepi


tava , estalava , rebentando á passagem dos brotos e
havia um murmurio perenne , feito só com o abrir dos

botões na estupenda florescencia daquella genese for


midavel.

O caboclo arquejava agoniado , debatia - se , lançando

os braços afflictamente , a apartar as verdes ondas da

fertilidade , a fugir da concepção grandiosa , apavorado .


352 CONTOS ESCOLHIDOS

E escorregava em flores , cambaleava na terra , lu

brica , encharcada de sangue , os olhos desmedidamente

abertos, correndo, a tropeçar em tóros , a embaraçar - se

em cipoaes, a prender-se em ramarias, sem ar, as


phyxiado .

Procurava uma aberta por onde se evadisse , uma

clareira onde achasse salvação , ar , luz , ceu ; tudo era

denso . As flores tomavam fórmas estranhas , os ramos

estendiam -se, alongavam-se , fechavam- se . Mais um mo


mento e seria victima da fecundidade .

Debateu -se e , desesperadamente, gritou , rouco, já

sem forças , opprimido , sentindo - se subjugado pela

monstruosidade . Os cães ladraram fóra, junto á cabana .

Despertou sobresaltado , sentou-se attonito , cançado ,

relanceando o olhar pelo interior , onde a luz da candeia

tremulava livida . Passou a mão pela fronte banhada em


suor :

-Eta ! sonho damnado ... Noss'Senhora ! Que

afficção ! E sorrindo alliviado : Tá no que deu a con

versa d'Avahy.

Levantou-se , foi beber agua e poz-se a passeiar pela

casa agitado , cheio ainda do maravilhoso horror, pen


CONTOS ESCOLHIDOS 353

sando na grandeza tragica d'aquella floresta de flores e

de frutos , nascida do sangue que rolava em caudaes .


Que coisa ! Sentou-se , accendeu o cachimbo e , pu
xando lentas fumaças , ficou a pensar.

Lá fora a noite ia chuvosa , atravessada de ventos .

A agua engrossava rolando , com fragor , pelos vallos , le

vando o melhor da terra , escalavrando-a, enfraque


cendo- a. Gotteiras estalidavam monotonamente no chão

negro da cabana e a agua luzia , escorria em veios que

passavam por baixo da porta fragil sempre a bater. A


manhan encontrou - o de pé , alquebrado .

Todo o dia , irresoluto , começando um serviço e


logo o deixando por outro ou distrahindo - se em aban

donada , esquecida inercia, Matheus pensou no sonho ,


ora com pavor, ora com deslumbramento . Sahia á

porta , lançava o olhar pela terra humida , lembrando-se


do que vira.

Os animaes , como se adivinhassem o bom tempo ,

alegravam - se . Effectivamente , para a tarde , nuvens


douradas empavezaram o ceu , os nimbos foram desap
parecendo , grandes trechos de azul , entre rasgões de

cumulus , annunciaram o esplendor e as cigarras can

taram como precursoras do sol .


254 CONTOS ESCOLHIDOS

A' noite as estrellas brilharam limpidas na sereni

dade do ceu , de todo varrido e puro ; um ar leve cir


culava. A agua do bicame , que as chuvas haviam

engrossado , cantava alegremente no rego que levava


á horta.

O caboclo sentia-se enfraquecido . Avizinhava - se

do giráu , ficava hesitante e retrocedia á sala, insomne ,

preoccupado . Não podia parar - uma irritada ancia

levava-o de um para outro logar.

Constrangido aperto esmagava - lhe o coração , sentia

entraves no peito , angustia, faltava - lhe o ar , a cabeça


estonteada enchia-se-lhe d'um continuado , soturno sus

surro, como se tivesse uma concha ao ouvido , echo

ando . Por vezes saltavam - lhe aos olhos discos de

fogo , anneis iriantes que subiam, rolavam, perdiam- se


nos fundos de treva . Fumava sem cessar. A lingua

ardia-lhe , um saibo acre enchia-lhe a boca secca e,

sob a pelle , que escaldava , o sangue latejava nas arte


rias turgidas .

Abriu largamente a porta , escancarou a janella — o


ar puro entrou em fresca lufada , varreu o interior dissol

vendo o fumo que abrumava o ambiente . Mariposas


CONTOS ESCOLHIDOS 355

penetraram rodeando a chamma da candeia e os cães ,

gosando a delicia da noite , sob a suave luz das es


trellas vivas, iam e vinham vagarosos .

Lentos , longos , profundos mugidos denunciaram os

velhos bois deitados nas hervas raras do curral . Ma

theus , sentado no limiar da cabana , immovel , pensava

no sonho Tinha , por vezes , instantaneamente , a im

pressão da grandeza que vira , o espectaculo mirifico

da arrebentação floral . Ouvia estalos crebros e logo

dirigia o olhar assombrado para o ponto de onde par

tiam, esperando ver a terra fender- se , abrir - se , lançar

do seio para o pleno ar os brótos . Mas o silencio vol

tava e o terreiro permanecia na sua miseria - liso , des

povoado , esteril .

Uma idéa assaltou - lhe o espirito , tão estranha que

elle levantou os olhos , assombrado , relanceou - os pela

sala como a procura do demonio funesto que a inspi

rará . Ficou tolhido , immobilisado no espanto . Baixou ,

de novo , a cabeça . A idéa tornou-se importuna , ron

dando - o - elle sentia- a em torno .

De repente , pondo - se de pé , metteu os dedos na


23
356 CONTOS ESCOLHIDOS

gaforinha e recomeçou a andar , sempre cabisbaixo ,


alheiado .

A idéa invadia-o , penetrava - o terebrantemente ,

ia- se-lhe afundando no cerebro , dilatava-se como se

lançasse raizes , assenhoreando- se de todo o pensa

mento , avassallando a consciencia. Ainda reagiu com

um arrancado suspiro . < Uai ! » Estacou attonito e , como

se a si mesmo temesse , poz - se a mirar-se : « Gente ,

que é que eu tenho? »

Sentia-se impellido por uma força mysteriosa . As

pernas tremiam- lhe , correu-lhe um frio arrepio pelo


corpo, eriçaram-se-lhe os cabellos , os olhos ficaram

enormes , estagnados, sem brilho .

Voltou - se : só via sombras que fluctuavam, vultos


fluidicos errando em lentas , ondeantes evoluções .

Um rictus deformou -lhe a face , distenderam - se - lhe

retesadamente os nervos num esforço intenso e, rilhando

os dentes, foi-se de cabeça alta , direito á porta . O ar

frio da noite fel- o cambalear. Parou , e quieto , firme ,

inflexivel ali esteve , d'olhos na treva , sem dar pelos

cães que se reuniam festejando - o .

Desceu ao terreiro , hirto , com estranhas crispações


CONTOS ESCOLHIDOS 357

que lhe contrahiam , repuxavam as faces, fremitos por

todo o corpo . Subito , tornando á cabana , foi direito á

cozinha, tomou um rolo de cordas , apanhou o machado


e regressou á noite negra . Os cães olhavam-no , aba

nando com as caudas . Seguiu ; os podengos acompanha

ram -no.

Foi- se, como um espectro , em rumo ao curral . Subiu

ligeiramente a ingreme , esbarrondada ladeira , mer

gulhou os pés nas humidas hervas macias da planura ,


entrou no cercado .

Um dos bois ruminava deitado á entrada . Lesto ,

desenrolando a corda , passou um laço em volta dos chi

fres do animal que se levantou , manso e docil , como se

fosse descer para o jugo e seguiu -o vagaroso , ainda

ruminando . Os cães voltaram silenciosos , ladeando o


caboclo.

No terreiro passou a corda pelo moirão , deu volta e

poz -se a puxar : o boi chegou ao grosso madeiro e , ao

empuxão da corda retesada , baixou a cabeça , tocando


o poste com o focinho.

Rapido , levantando o machado a mãos ambas , Ma

theus desfechou o golpe . Um mugido atroou dolori


358 CONTOS ESCOLHIDOS

damente o silencio e , com o desesperado arranco do

animal, a corda resvalou no moirão e elle poz - se a

saltar, sacudindo a cabeça , a mugir, lutando para livrar

se da prisão que o retinha. Os cães recuaram, a prin

cipio , mas, animando-se , acompanharam os movimentos

do moribundo , aos saltos , latindo . Um , mais ousado ,

investiu , atirou-se-lhe ás pernas, mordeu-o , outros arre


metteram raivosos . O animal sangrava a jorros , esva

hia-se , com o cogote aberto em talho fundo.

Outra machadada apanhou-lhe o flanco , outra foi- lhe

a cerviz, outra ao ventre . O misero baqueou , tombou

de flanco , escabujando no sangue . Dum talho cerce

Matheus cortou a corda , desenrolou-a do moirão e,

levando-a de rastos , correu , de novo , ao curral .

Outro boi foi laçado . Esse , porém, como se pre

sentisse a morte , relutou , firmando-se nas patas , mu

gindo . « Eh ! Cou ! Cou ! Vámo ! » incitava o caboclo

aos empuxões . Tirou-o , o animal partiu a correr e, na

rampa , quasi o levou arrastado . Matheus resistia aga

chado , resvalando . Rapido , para sustentar o bruto,

laçou a corda em volta dum tronco e, firmando um dos


CONTOS ESCOLHIDOS 359

pés , puxou attrahindo a victima que avançava de cabeça


baixa, com um soturno gemer.

Brandiu o machado . As folhas farfalharam e o ani

mal , apenas ferido de raspão, partiu d'arrancada , mas

virou de repente em sacalão , contido pela corda. O ca


boclo avançou e , pondo-se-lhe na frente, a todo o

poder dos braços , embebeu -lhe o machado entre os


chifres largos .

Um berro surdo , rouco, rolou sinistro e tonto ,

bambo, tropego o boi ainda volteou , ainda arrancou ,

mas, frouxo, tombou sobre os joelhos, tombou flaccido .

Matheus acercou-se-lhe do corpo , abriu - lhe a ilharga ,

fendeu-lhe o ventre , atirando golpes allucinados como

um lenhador que rachasse um tronco.

Sentia sob os pés a sangueira quente , ouvia o bufar

agoniado do moribundo e golpeava, e fendia encarniçado

contra aquella vida que resistia á brutalidade do ferro .

O ceu abria- se em luz , a madrugada limpida coloria

o horizonte ; a paizagem emergia da noite .

No terreiro , os cães resomnavam em torno do corpo

do boi tombado sobre a coalha de sangue , rondavam - no

procurando um ponto por onde começassem a devorar.


360 CONTOS ESCOLHIDOS

A fome acirrava - os , tornava- os ferozes ; a immensa

carniça excitava - os . Os mais avidos lambiam gulosa

mente coagulos .

As aves chegavam dos mattos e , sentindo o cheiro

do sangue , logo se encaminhavam para o terreiro , mas

os cães investiam com latidos freneticos , mostrando os

dentes , defendendo a presa.

Matheus entrou pelo curral e, á luz da manhan ,

ainda baça , ennevoada , descobriu o ultimo boi que

escarvava, farejava a terra, bufando , mugindo surda


mente.

Atirou-se sobre elle , machado erguido , mas o ani

mal escapou ao golpe e, a correr, passou ao campo ,

mergulhou no sapesal , desceu á barroca , perdeu - se nas


hervas altas .

O caboclo , esfalfado, coberto de sangue , poz - se a

bradar. Foi até á beira da grota , olhou , mas , sem

perda de tempo , retrocedeu .

A cabeça ardia-lhe como abrasada , os olhos salta

vam-lhe das orbitas - todo elle era purpura . Passou

pelo boi que matára no pomar, nem o viu ; desceu

ao terreiro . Os cães já haviam começado a devorar


CONTOS ESCOLHIDOS 361

e encarniçavam- se atolando - se na fartura. A' distan

cia, em circulo, aves esperavam, bicando a terra man

chada , esgaratavando , espalhando o sangue . De quando


em quando um dos cães arremettia e era uma deban
dada ruidosa.

Matheus sorria estranhamente . Sentou- se no limiar

da cabana , curvou-se e , com a cabeça entre os joelhos ,


ficou immovel , como adormecido .

Clareava com a alegria festiva do canto dos passa


rinhos.

De repente , levantando a cabeça e vendo as côres

da madrugada , o caboclo poz - se de pé, deslumbrado : 0

ceu estava todo em sangue . Era a inundação que vinha

de Deus fertilisar a terra, combater a esterilidade. Não

eram as negras nuvens d'agua, eram as proprias veias

celestiaes que rebentavam em hemorrhagia e vinham

vasar- se nos campos , nas grotas , nos vallos seccos ,

dando-lhes a maravilhosa fecundidade que dispensa a

cultura e só requer espaço para crear e reproduzir.


Olhou desvairado - tudo crescia explosivamente .

A baixada reverdecia florida , estendendo -se perdida

mente até ás linhas douradas , ensanguentadas do ceu .


362 CONTOS ESCOLHIDOS

As arvores cresciam tocando com as frondes robustas as

nuvens que transcorriam e , de todos os lados , subia a

vegetação luxuriante fechando-se em cerradissima abo

bada, escurecendo , abafando.

Era a grande matta , a selva exúbere que vinha


avançando .

Lembrou-se do sonho , quiz fugir , mas sentia - se aba


fado , os olhos não viam senão sombras, faltava-lhe o ar.

Sem forças, desequilibrado , tonto , vacillou , foi d'en

contro á parede, mas , num arrojo , espavorido , deitou a

correr, fugindo atravéz da allucinação , seguido dos cães


que ladravam.

Quando o Luiz , que estava ao alpendre , com dois

carreiros , viu- o passar esfalfado , roto , coberto de sangue ,


teve uma exclamação pasmada :

- Gente ! que é aquillo !? Tio Matheus todo ensan

guentado ... Os homens ficaram tolhidos , mas ani

mando-se , decidindo-se , deitaram a correr, alcançaram


o caboclo exhausto que tropeçava :
CONTOS ESCOLHIDOS 363

-Que é isto , tio Matheus ? Que foi que aconteceu

a vamcê? Que sangue é esse , tio Matheus ?


Elle cambaleou entre os braços dos homens , regou

gando , d'olhos semi-cerrados , a boca aberta, a arquejar.

Levaram-no para o alpendre, molle , pendido , langue .

Estenderam-no no comprido banco e elle , sem dar

acordo , arfava com uma respiração apressada. Exa

minaram- no. Cada qual fazia a conjectura mais tra

gica , mas, como não achassem ferimentos , não sabendo

explicar a origem daquelle sangue , só interrompiam o


silencio com exclamações .

Correndo a noticia , acudiu gente das proximidades

e , em torno do caboclo , pesadamente adormecido , resol

veram chegar ao sitio, ver o que houvera. E foram.

Logo em frente da cabana descobriram o primeiro

boi que as aves cercavam ás bicadas : gallinhas , patos,

perús , toda a criação do sitio.

O burrico olhava como se sentisse a morte do velho

companheiro, mas , dando pelos homens , trotou para os


mattos . Subiram - lá estava no pomar a outra victima.

Os homens olhavam - se , resmungavam, sem achar expli

cação para aquella matança inutil , quando um crioulo ,


364 CONTOS ESCOLHIDOS

saltando da barranca onde andára a examinar a terra,


disse :

-Ocês qué vê? Ocês qué vê que foi ? Todos cerca


ram -no. Ocês não se alembra da conversa de Avahy,

na venda , no domingo passado ? A historia do estrume

de sangue de boi ? Todos affirmaram. Pois foi isso .

-Home, querem vê que foi !?

-Foi isso ... sou capaz de jurá !

Foi mêmo. Ainda ficaram, um momento, olhando ,

com pena, o corpo do animal mutilado . Por fim , satis

feitos , desceram commentando a carnificina , uns indi

gnados, outros a rir .

-Véio damnado de ambicioso ! Nossa Senhora !

Luiz, que esperava, com curiosidade , a volta dos explo

radores, mal os viu , perguntou :

-Então, gente?

-Foi elle mêmo , Matou os boi.

-Os bois !?

Vamcê não se alembra da conversa de Avahy, no

domingo passado ? a historia do sangue de boi p'ra


estrumá a terra?
CONTOS ESCOLHIDOS 365

--Ah ! sim... Foi por isso ?


-
-Ora ! O véio ouviu e quiz logo ficá rico duma

hora p'ra outra. Entraram e , diante do caboclo , que

dormia profundamente , todos puzeram -se a rir, com

mentando a sua desmarcada ambição . Luiz , depois

de um pensativo silencio , disse :

-Gente, deixa o coitado . Isso é doença .

Quá doença . Isso o que é é ganancia . E o grupo

dissolveu-se , a rir. Ainda um mulato disse de longe

aos companheiros :

- Hoje é dia grande. Quem quizé carne fresca é

só i lá em cima e tirá .

-Véio damnado !

-Nossa Senhora !

-E o engraçado é que elle fez o estrago e ferrou


no somno direito .

-Uai ! e ocê acha pouco dois boi p'r'um home só?

Deu na fraqueza . Riram e espalharam- se , cada qual

por uma trilha , a seu rumo .

Luiz coçava a cabeça preoccupado , pensando em

despertar Matheus , receioso de que lhe morresse


366 CONTOS ESCOLHIDOS

em casa. Sacudiu-o , chamou-o , debalde; deu d'hom

bros e foi- se para o negocio . « Respirava , estava

vivo ... que acordasse quando quizesse ».

Longe, na estrada luminosa , resoava a bozina annun

ciando o peixe fresco e , estendido no banco , o caboclo

dormia immovel , a barba dura, empastada de sangue ,

coberto de moscas como uma carniça .


OS GATOS DO REVERENDO
Os gatos do reverendo (*)

Quero dizer-vos , repetindo o que me foi contado , a


razão por que o vigario de Santa - Monica , o reverendo

Dr. Balbino, tão meigo para todos os animaes , maltrata ,


com deshumanidade , os gatos inoffensivos .

Nem sempre foi assim.

O vigario, homem de grandes virtudes , um santo , na

opinião das ovelhas do viçoso aprisco , não tinha pre


occupações senão de piedade e brandura - trazia os

olhos sempre erguidos ou para o céu , nas horas de

oração , ou para a vinha que fazia uma sombra

( * ) Da " LANTERNA MAGICA", editor Domingos de Magalhães, 1898.


370 CONTOS ESCOLHIDOS

aprazivel á frente da varanda do presbyterio . Mas era


homem e tinha uma mania: os gatos .

Eram elles ás duzias pela casa, de todos os tamanhos ,

de todas as cores . Bichanos macrobios dormiam voluptu

osamente enroscados sobre as cadeiras ; gatas lubricas

passeiavam faceiras pelas áleas do jardim, miando recla

mos impudicos, e a petizada, em correrias trefegas , alvo

roçava a casa quebrando a louça , rasgando in-folios , che

gando , ás vezes , á profanação , como um pequenino mal


tez que certa manhan, foi encontrado a dormir entre as

paginas do Missal , justamente sobre o evangelho de S.


Lucas.

O reverendo não teve animo de espancar o bicho ,

tão gracioso estava que elle o comparou ao Cordeiro ,

comparação que lhe valeu um longo jejum e muitas


camandulas e terços .

Não o maltratou , comtudo , enxotou - o e nunca mais

deixou o Missal ao alcance dos gatinhos .

Essa mania não podia comprometter o venerando


pastor aos olhos de Deus, compromettia - o aos olhos dos

criados. Os cozinheiros não iam alem do primeiro dia no

presbyterio e , como o vigario preferia aos homens os


CONTOS ESCOLHIDOS 371

seus bichos , andava sempre em luta com a criadagem ,

sendo , muitas vezes , obrigado a bater o seu bife e a coar


o caldo .

Alguns , antes de tomarem as caçarolas, despediam- se,


vendo surgir o patrão entre os bichos que miavam , esfre

gando -se-lhe pelas pernas .

Um dia, porem , apresentou - se no presbyterio um

rapazola do campo e o vigario , mal o viu, sympathisou


com elle.

-Gostas de gatos , rapaz?

-De gatos ? como dos anjos do ceu ! Nem ha bicho

no mundo que se compare ao gato .

O maganão cantou - a bem, conquistando o vigario

que , logo , com um pchii pchii ! affavel, reuniu na sala

a sua bicharia.

O criado , enternecido , babando- se de goso, afagou

os , tomou - os ao collo e foi uma lida para que os deixasse .

Além do amor pelos gatos o rapazola entendia de tempe

ros como ninguem . As cabidelas que fazia ! os famosos de

vinha d'alhos , as succulentas sopas ! ... Fôra um achado


decididamente . E uma vida nova começou .

Na cozinha , porem , junto ao fogão , o rapazola encos


24
372 CONTOS ESCOLHIDOS

tara uma boa vara de marmeleiro. Os gatos , senhores da

casa , invadiam os dominios do cozinheiro , o proprio rapa

zola costumava attrahil - os , engodando-os com pedaços

de carne e , quando os via juntos , pronunciava bem alto :


- -«
« Em nome de Deus! » e assistia-lhes de marmeleiro

que era um gosto .

Os bichos , habituados aos carinhos do vigario , á pri

meira vergastada sahiam pelo pomar fóra , aos saltos .

E todos os dias , duas , tres vezes , a mesma scena:

Pchii ! pchii ! pchii ! um pedaço de carne e marme

leiro de rijo . Por fim já o rapazola não fazia uso da

vara ; bastava que dissesse : « Em nome de Deus ! » para


que os gatos tomassem rumo .

Quando os viu assim amestrados , o rapazola , com

pondo uma physionomia tragica , dirigiu-se ao vigario ,

que lia á sombra aprasivel da sua vinha :


-Sr . vigario !

O reverendo levantou os olhos e , vendo as feições

descompostas do rapaz , estremeceu :

-Que tens, homem? Que ha ?

-Ah ! seu vigario ! acabo de descobrir uma coisa


horrivel.
CONTOS ESCOLHIDOS 373

-Hein ?! Uma coisa horrivel ! Então que é ? dize ?

-Vossa reverendissima tem em casa uma legião de

diabos !

-Credo , rapaz ! Como ?! uma legião de diabos ?! Em


nome do Padre ... e o vigario persignou- se.

-Seus gatos. São diabos , reverendo ; diabos e dos


mais damnados .

-Diabos meus gatos ?!

-Juro-lhe , Sr. vigario . E se vossa reverendissima

quer a prova chame - os aqui, chame-os todos .


-Mas ...

-Chame-os , Sr. vigario . Eu escondo- me e vossa


reverendissima verá .

O vigario não se fez rogar e, a tremer, orando men

talmente , poz-se a chamar a bicharia - pchii ! pchii !

pchii ! Foram chegando , com miados tristes , todos os

bichanos , macro bios e petizes , e reuniram-se em torno

do padre que mastigava esconjuros.

-Estão todos , Sr. vigario ?


-Todos ...

Mesmo de onde estava o rapazola pronunciou : « Em

nome de Deus ! » . Foi uma debandada horrivel : em me


374 CONTOS ESCOLHIDOS

nos de um segundo toda a bicharia, galgando o muro da

horta, passára ao campo fugindo como lebres corridas .


O vigario, boqui - aberto , tremia.

-Então , Sr. vigario ? Então ? que lhe dizia eu ?

Desse dia em diante o rapazola não teve mais receio

de que lhe desapparecesse o assado , e o vigario , que


tinha a verdadeira mania dos gatos , tornou-se peior que

um cão (salvo seja). Em vendo um bichano enfurece-se e

vai assistindo de pedra ou de bengala e sempre com as

mesmas palavras :

-Já me illudiste uma vez , canalha , mas agora fia

mais fino .

E os gatos fogem do reverendo como o diabo da

cruz .

E ahi têm a razão porque o piedoso vigario de Santa

Monica, tão meigo para os animaes , maltrata e persegue


os gatos inoffensivos .

O caso está contado como o ouvi contar.


EXPULSA
www
OOOO

Expulsa (*)

- E' que ella não se dá bem com a senhora .

-Commigo ! Não se dá bem commigo ... Porque ?

Incompatibilidade . Os genios não combinam .

Mamai pensa de um modo , ella d'outro , d'ahi as

impertinencias , os maus humores . O melhor é aca

barmos , de uma vez, com isso . A senhora aqui não


tem descanço , nem eu.

- Então ella pensa de um modo e eu de outro ... ?

Quem lhe disse tal ? Eu não me atrevo a emittir

(' ) DO JARDIM DAS OLIVEIRAS. edição de Lello & Irmão, Porto, 1908,
378 CONTOS ESCOLHIDOS

opinião , sou o proprio silencio e , quando sinto que

alguma coisa póde provocar reparos do meu juizo ,

evito-a, nem levanto os olhos , para que nelles se não

leia o meu pensamento . Dar-se- á o caso de ser ella

adivinha? Se o fosse não procederia com tamanha

injustiça porque conheceria o segrede do meu coração .

Faze o que entenderes . Eu estou por tudo.


-
Eu tomo um aposento para a senhora em casa

de uma familia ... E' melhor . Afinal , que vida le

vamos nós ? com franqueza? Mas não chore . Porque


chora?
-―- Por nada .

-Mamãi deve comprehender que não é por minha

vontade que tal succede . Fiz o possivel para estabe


lecer a harmonia . Infelizmente ...

-Tens razão . Ella é tua mulher . Eu , que sou

aqui ? uma hospede importuna , uma intrusa .


- Isso não ! A senhora é minha mãi .

-Tua mãi ... Isso foi em outro tempo . Já não

és filho , és esposo . Mãi é uma palavra doce , pequenina

e facil . é a primeira flor dos labios, que tem encantos


na boca de uma criança . Depois que nascem os outros
CONTOS ESCOLHIDOS 379

vocabulos , essa insignificancia torna-se quasi ridicula .

A's vezes reapparece nas horas de soffrimento , como

um gemido . E' assim. Tua mulher tem razão . Uma

velha, cheia de rugas e de cabellos brancos , sempre a

falar do passado , deve entristecer , isso deve . Ella é

moça e pensa, talvez , que tenho ainda algum dominio

sobre o teu coração .

Como se engana . O beijo que de ti recebo é uma

esmola, e ella toma-o por um presente ; os afagos com

que, ás vezes , me acaricias , por piedade , são restos

da ternura que lhe dás , e nem isso ella consente que

desperdices commigo ; se os gastasses com um animal

ella não se zangaria . Eu comprehendo . Ella quer a

posse absoluta . Eu aqui recordo um puro amor que

ella ainda não conhece : o amor de mãi .

A praga que lhe rogo é uma benção :

Deus lhe dê um filho , só então ella saberá que

esse sentimento não tem parelha no coração : é uma

grande dor que se envolve em alegria, é um sorriso de

resignação , é um extase de martyrio . Os teus beijos ,

meu filho , dóem- me no coração como cravos , e fa


380 CONTOS ESCOLHIDOS

zem- me feliz . Não sei dizer que sinto , mas compre

hendo o ciume de tua mulher.

A mãi é uma arvore que produz para o lavrador .

Os filhos que morrem são como frutos que cahem e ,

desfeitos, tornam em seiva ao tronco de que sahiram .

Os teus irmãos mortos ... eu sinto - os em mim ,

Tu ... vai a teu destino . Eu fico no meu isola

mento d'arvore enraizada .

Tua mulher queixa-se de mim , não me supporta .

Que lhe fiz eu ? nada : sou tua mãi , eis o crime . Ella

julga- me capaz de influir em teu espirito ; bem sabes

que não intervenho de modo algum na tua vida parti

cular . Se ella te faz soffrer recolho - me , vou chorar

escondida sobre as tranças louras da tua infancia, sobre

o retrato que conservo do tempo em que eras meu filho ,

meu só. Hoje és d'ella.

Ando pela casa com receio de que meus passos

sejam ouvidos , sou tão silenciosa como a minha sombra .

A' mesa , não falo nem ouço . Se vos vejo unidos ,

retraio -me , desappareço , para que a minha velhice não

vos perturbe com a sua austeridade . Quando sahes ,


CONTOS ESCOLHIDOS 381

encerro- me no meu quarto e lá fico . Diz ella que ando

sempre a resmungar.

O resmungo dos velhos é uma ruminação , meu filho ,

são antigas palavras gastas que voltam á boca , conversa


com os mortos , recordações , confidencias da saudade .

Não são vozes de revolta .

-Nem ella pensa tal .

- Como não ! Eu bem sei . Fala de mim ás

criadas : que a espiono , que faço avarezas , que me

preoccupo com tudo.


E' uma injustiça . Tua mulher é uma criança , não

pode comprehender a alma de uma velha . Eu queria

que ella vivesse em plena ventura , porque sendo tua

esposa transmittiria a felicidade ao teu coração . Quando

a vejo amuada , soffro por ti - parece-me que vais

entrar em um espinhal . Se lhe falo , algumas vezes ,

aconselhando - a, é para amenisar- te a vida , prepa

rar-lhe o coração para que não te receba com dureza.


Afinal ... és meu filho .

Mas não chore , minha mãi .


-Irei para onde quizeres . A casa ficará sem velhi
ce, sem passado . E não penses que saio revoltada : a
382 CONTOS ESCOLHIDOS

minha benção ficará comtigo . E é melhor que saia já ,


antes que tambem te revoltes contra mim .

-Eu, minha mãi !

Sim , tu . A mulher infunde a sua vontade no


espirito do homem , propina - lhe o seu veneno . Ha

beijos , meu filho , que são mais perigosos que dentadas

de vibora. Saio antes que a tempestade chegue ao

teu coração , assim terei a certeza de que me não


maldizes .

- Mamãi é ingrata.

-Não sou . Ouve a tua consciencia e ella repetirá

as palavras que te digo , porque são verdadeiras . Que

sacrificio eu não faria por ti ? E' tão pouco o que

exiges de mim . Outra fosse ella e não consentiria

que me falasses , mandaria a ordem por um criado .

Ainda é muito boa. E's tu que me abres a porta;

assim , sahindo , ainda vejo -te e posso abraçar - te pe

dindo a Deus que ponha nesta casa , no lugar que

deixo , um dos seus anjos predilectos . Vou , é preciso

que vá, para que a tranquillidade e a alegria entrem no

lar que os meus cabellos brancos fazem tão triste . Não

vou agora porque é noite .


CONTOS ESCOLHIDOS 383

-Oh ! minha mãi , ninguem a expulsa . Esta casa

é sua . Proponho -lhe apenas um accordo.

-Sim, um accordo ... Nem choro mais , vês?


Não quero que fique nesta casa vestigio algum de mim ,

e as lagrimas , quando vêm do fundo do coração ,


queimam . Vai , vai deitar- te . Estamos entendidos .

Irei para um aposento em casa de uma familia ... onde

não haja crianças , entendes ? Não quero lembrar- me


do tempo em que fui mãi .
- Ainda o é.

Mãi ! Eu .. ! todos os meus filhos morreram ....

- E eu?

-Tu ... tu és marido . Vai , vai . Tua mulher já

deve estar anciosa e murmurando contra mim . Fi

caste tanto tempo commigo e era tão simples o que

tinhas a dizer - me , até podias dispensar as palavras

abrindo a porta e deixando - me no limiar . Mãi ... Que

é isso para um homem que tem esposa ? Os braços


maternos ampararam, os da mulher acariciam . Vai .

Ella está , com certeza , á tua espera para falar-te do

espectaculo . Vai . Amanhan , ou antes , hoje , logo

mais -porque a noite já começa a diluir- se em ma


384 CONTOS ESCOLHIDOS

drugada - partirei para o meu destino . A folha morta

deixa a arvore . Que horas serão ? quasi duas . Vai e

dize á tua mulher que estou prompta , que aceitei a

proposta , e só espero a luz do sol para despedir- me .


Quero que ella me olhe bem á hora da partida , para
ver que não saio resentida, mas sorrindo. Oh ! meu
filho ... meu filho ! Eu contava com este momento ,

esperava- o . Não cabem no mesmo lar dois amores , é

preciso que um seja sacrificado . Que seja o mais

velho ... eu digo apenas : o mais velho , que é o meu .

Vai , vai ! Deus te abençoe e a ella tambem.


-Está chorando , mamãi ?
-Chorando ? Não . Vai . Deus te abençôe .

Acompanha o filho , que se despede com um

beijo . Fechando a porta do quarto , caminha

alquebrada até junto da commoda , sobre a qual


uma lamparina brilha alumiando imagens , encla
vinha os dedos e, immovel , contempla a Dolorosa ,

e as lagrimas a quatro e quatro correm-lhe dos


olhos.
Gallos cantam ao longe.
A VAQUINHA BRANCA
A vaquinha branca

Por aquelles agros , fosse de verão , fosse de inverno ,

tivessem as arvores a sua verde opulencia ou forrasse- as

a neve ; cantassem de ramo a ramo calhandras e pin

tasilgos ou apenas enregelados pardaes piassem , lá ia ,

ao romper d'alva , caminho do monte , com a velha

sainha de saragoça e sóccos nos pequeninos pés , a pas


torinha Eudalia .

Orphan, fôra recolhida por má gente que , sem pena

da sua idade fragil , mandava- a ao monte , com o gado ,

dando -lhe uma miga de pão , e ai ! della se murmurava

queixa .
25
388 CONTOS ESCOLHIDOS

<< Faz frio ! ...»

<< Eh ! lorpa , bradavam- lhe , quem sabe se te ha

vemos de engordar á beira do lume , como uma prin

ceza ? Não estão lá fóra as arvores , que são tambem

creaturas de Deus ? Ou levas o gado ao monte ou

sahes duma vez desta casa , que aqui ninguem te viu

nascer » .

E a coitada partia.

No tempo das flores era até um goso aquelle andar

matinal por veigas virentes , ao som das aguas levadias

que pareciam brincar nos seixos . Ai ! della , porem ,

quando o vento entrava a esfusiar gelado , levantando ,

em remoinho, as folhas mortas .

Ainda assim cantava a pobresinha , e , com as faces

coradas , parecia haver agasalhado no corpo a primavera ,

sahindo-lhe a voz dos passarinhos nos cantos que des

feria , abrolhando as rosas vermelhas no rosto lindo ,

crescendo-lhe o trigo maduro nos cabellos d'ouro ,

correndo as aguas ligeiras em pranto dos seus olhos


claros.

Falando ás ovelhas magras lá ia , por atalhos fra


CONTOS ESCOLHIDOS 389

gueiros , tiritando , a descobrir restos d'hervas que ser

vissem de pasto ao seu rebanho .

Entre as ovelhas, por ser linda e mansa , andava

uma vaquinha branca, que era o desvelo da pastora .


Mirrasse todo o pascigo ficando o terreno desnudo como

arrasado por fogo , sempre para a vaquinha havia um


molho de feno .

Mal começava o outono melancolico , quando toda a

gente da aldeia ia ao monte apanhar accendalhas e


ramos para o lume , Eudalia , descendo pelas veredas

asperas , á hora do crepusculo , trazia feixes de feno e,

como lhe perguntassem se fazia fogo com tal palhada ,


respondia sorrindo :

― Tenha eu o catre bem fôfo e caia a neve que


cahir , sopre o vento que soprar, dormirei quentinha .

No rigor do inverno , se alguem entrasse no palheiro

em que dormia a pastora , acharia a vaquinha ruminando

sobre o feno e a pequenita aconchegada a ella e , até o


fim das neves , o leito de Eudalia alimentava o animal

que, com o calor do seu corpo branco , aquecia a sua

amiga . Assim as duas atravessavam o inverno — a va

quinha farta , Eudalia agasalhada .


390 CONTOS ESCOLHIDOS

A primavera entrára com o sol e as flores e toda a

alegria festival dos passarinhos . Os sinos soavam na

pureza do ar azul e toda a gente aldean , com os seus

trajos melhores , acudia á festa , enchendo o adro onde


se haviam installado , em tendas, bufarinheiros com sor

timentos que deslumbravam - saias de panno fino , cor

petes d'alamares, arrecadas e cordões d'ouro , rendas

e sapatinhos tão exiguos que parecia incrivel que fossem

feitos para ser calçados .

<< Talvez sejam para amendoas » , dizia a pastorinha.

Quanta seducção ! E os bufarinheiros apregoavam

os preços e cada arca que abriam deixava o povo verda


deiramente maravilhado.

Eudalia atravessára a feira com o seu rebanho e ,

ainda que os olhos a levassem para as tendas ricas , lá


foi tristonhamente a caminho do monte.

Uma manhan, remendando, com paciencia , a sainha

de saragoça e lembrando - se do que vira no adro , a

pastorinha suspirou :

Ai! de mim ! São tão felizes os que lá andam


.

embaixo ! Ainda que não comprem, sempre é um con


CONTOS ESCOLHIDOS 391

solo olhar aquellas lindas coisas que os bufarinheiros


trazem nos ceirões e malas . Pobre de mim ! nem

posso parar onde cantam para que não riam da minha

esfarrapada miseria os moços e as moças que pavonêam


tantas galas . Escondendo o rosto com as mãos rompeu
a misera em sentido pranto .

-Não te afflijas , disse - lhe uma voz ali perto . Le


vantando sobresaltadamente a cabeça , á procura da

pessoa que falára em tal ermo , onde não apparecia

viv'alma, viu Eulalia a vaquinha que deixára de pastar

e, immovel , fitava - a com os olhos cheios de bondade .

Bateu-lhe o coração e , pallida de medo , ia fugir quando

a vaquinha docemente tornou :

-Não te assustes . Amiga melhor não tens do que

eu , que te falo por graça de Deus . Muito tens soffrido ,

sendo digna de melhor sorte , porque és bôa e os teus

pensamentos são puros . E's nova e , ainda que formosa

como nenhuma, queres enfeitar - te . E' justo . Não

chores : aqui estou eu para valer - te. Toma o teu tarro ,

ordenha- me e verás o leite , sahido de corpo virgem ,

mudar-se em luzentes moedas de prata . Leva- as e

gasta-as como entenderes , e , sempre que tiveres neces


392 CONTOS ESCOLHIDOS

sidade de dinheiro , faze o que te disse e logo serás

servida com abundancia . Lembra - te , porém , do in

verno e do feno que me sustenta nesse tempo de este


rilidade . Dentro da maior ventura cumpre ter sempre

presentes os dias adversos .

A pastorinha não se decidia a mover-se e foi neces

sario que a vaquinha repetisse a ordem e até a impo

zesse para que ella tomasse o tarro e , acocorando - se ,

começasse a mungil- a .

Que leite claro e como rebrilhava á luz ! O tarro

pesava tanto que ella o depoz no chão e o leite sempre

a jorrar. Quando a espuma transbordou a vaquinha


disse :

-Despeja-o agora, toma as moedas, vai á feira e

compra o que quizeres . Faze-te bella e sê feliz . Não

te esqueças , porém , de mim. Aqui fico á tua espera .


Poderás ser rica como a mais rica se não te descuidares

do feno que me deve nutrir no inverno e , quanto mais

me fortaleceres , tanto maior será a somma que de mim

poderás tirar.

Timida, a principio , Eudalia levantou o tarro , que


CONTOS ESCOLHIDOS 393

pesava ; por fim despejou - o e centenas de moedas rola

ram tilintando .

Um thesouro ! Deus do céu ! Um thesouro ! En

cheu um sacco e rindo , cantando , desceu o monte a


correr. Foi direito á feira e , de tenda em tenda , com

prou de tudo , gastando até a ultima moeda.

E que linda ficou com uma saia bordada , corpete

de alamares , sapatinhos de velludo , arrecadas e cordão


d'ouro .

Os da aldeia pasmaram quando a viram atirar moe

das ás mancheias ao balcão dos bufarinheiros e a gente

que a havia agasalhado , a principio com arrogancia ,

com brandura depois, interrogou - a sobre a origem

daquella fortuna , mas como Eudalia guardasse o seu

segredo força lhe foi pagar as ovelhas e a vaquinha

branca , sendo despedida , por impura, da companhia dos

que se diziam seus unicos protectores .

Riu - se a pastora e , sem ouvir as vozes que lhe

lançavam de ingrata e perdida, metteu - se airosamente

nas danças e não houve moça mais requestada do que


ella , que até os orgulhosos filhos dos rendeiros foram

tiral - a para as quadrilhas .


394 CONTOS ESCOLHIDOS

Quando , noite alta , regressou á montanha , a vaqui

nha , que ruminava deitada sobre o feno fresco , per

guntou- lhe :

-Então , como te correu o dia ?


-Feliz ! Feliz ! Como te agradeço , minha vaquinha

branca, toda a alegria que experimentei. Diverti - me

como nunca e estou bella como as princezas dos contos .

Vi-me a um grande espelho , mais claro do que as

fontes , e achei os meus olhos encantadores . Como são

azues ! E esta saia ? e este capote ? e estes sapatinhos ?

e estas joias ? E, atirando os braços ao pescoço da

vaquinha branca, poz-se a beijal - a , contente .


Todas as manhans , cedinho , lá ia com o tarro á

têta da vaquinha branca e as moedas que tirava mal

The chegavam para os desperdicios .

Não perdia festas : viam- na em toda a parte .


Corriam versões diversas sobre a fortuna de Eu

dalia . Uns diziam que era pactuada com o demonio ,

outros que se perdera deshonestamente ; e ella folgava

alheia a tudo . Tinha a mina que lhe não faltava com

as moedas , que lhe importava o mais ?

E o estio ardeu esplendido , entrou o outono e co


CONTOS ESCOLHIDOS 395

meçaram a cahir as folhas amarellas . Quando Eudalia

descia para as festas encontrava gente nos mattos

recolhendo , á pressa , galhos e ramos seccos para a


provisão do inverno .
Veiu a neve, murcharam os campos .

Uma manhan de grande frio , como Eudalia passára

a noite pensando em uma capa que vira e em certa

propriedade que resolvera adquirir , farta , com vinha e


trigo , pascigo e aguas , onde a sua fortuna medraria em

milhões , saltou do leito de folhas , corada e formosa ,

e sahiu á procura da vaquinha branca .


Chamou- a, debalde ! Os caminhos estavam vidra

dos de neve reflectindo sinistramente o esqueleto das

arvores , não corria arroio , não cantava passaro - voz ,

só a triste do vento uivando pelos algáres . E a vaqui


nha branca ?

A pastora buscou - a em todo o bosque sem folhas

e , depois de longo e fatigante caminhar , deu com a

perdida que agonisava nas profundezas de um abysmo

pedregoso .

Precipitou-se chorando e , ao chegar junto da que

a fizera venturosa , tomando - lhe a cabeça nos braços ,


396 CONTOS ESCOLHIDOS

chamou-a sentidamente . Abriu a vaquinha os olhos

vasquejantes e , reconhecendo a pastora , disse-lhe :

-Imprevidente , esqueceste o meu feno . Apezar


das minhas constantes recommendações não te lem
braste do inverno . Elle ahi está , rigoroso e com a

miseria, e eu morro á mingua e commigo, por teu des

cuido , vai - se a tua fortuna . Se houvesses sido pru

dente terias hoje agasalho e fartura , serias rendeira ,


dona de terras e de seáras e eu viveria longos annos

enchendo o teu tarro de moedas . Os prazeres desvai

raram -te -tudo esqueceste nos bailes e nos folguedos

das feiras e agora, pobre e sem amigos, ficas no monte


solitaria sem pão , sem lar , com a lembrança apenas

dos prazeres que gozaste . Foste imprudente , Eudalia .

Disse e expirou . Pobre pastora !

Uma tarde, cançada de chorar e faminta , descia o

monte para esmolar um pão quando a neve a envolveu


sepultando -a em frio .
O TRIGO
O trigo ( *)

Por todo o vasto Eden espalhou-se, maravilhado e

risonho , o olhar do primeiro homem .

Viu as florestas frondosas, em cujas franças rendi

lhadas esgarçava - se o nevoeiro da manhan ; viu as cam

pinas alegres pelas quaes numerosos rebanhos apra

ziam-se ; viu os montes de encostas de velludo ; viu

os rios claros , largos , retorcidos em meandros , discor

rendo por entre margens de hervaçaes floridos e ace

noso arvoredo ; viu as fontes borbulhando em bosques


acceitosos .

( ) DO FABULARIO, edição de Lello & Irmão, Porto, 1907.


400 CONTOS ESCOLHIDOS

Animaes de varias especies cruzavam- se pelos cami

nhos -leões de juba altiva , elephantes monstruosos ,

antilopes e corças , leopardos e gazellas e aves de plu

magem branca ou de pennas variegadas junto a ribeiras

tranquillas, vogando em insulas de flores , pousadas em

ramos ou atravessando os ares , alegrando , com o seu

concerto , o silencio grandioso .

Os frutos offertavam- se nos galhos , as flôres desfa

ziam - se das petalas recamando a alfombra e esparzindo

o aroma pelos ares .

O homem , ainda incerto , ia e vinha , ora parando

á beira das aguas que o reflectiam , ora chegando á

ourela dos bosques , sahindo ás varzeas , mudo , em extase

contemplativo .

Deus , que de longe o assistia com o seu olhar ,

achava-o perfeito , airoso e forte , digno de ser o senhor


do mundo e de todas as creaturas .

O sol ardia estivo e , de toda a terra exuberante ,

exhalava - se um hausto calido , uma respiração abrasada

que amollecia e adormentava .

As folhagens encolhiam-se , murchando ; as flores

pendiam languidas nos caules ; os animaes refugiavam- se


CONTOS ESCOLHIDOS 401

nos bosques ou penetravam as furnas tenebrosas ; as

proprias aguas desciam lentas , com preguiça , sob a


irradiação caustica da luz que refulgia tremulamente

no azul diaphano .
Deus errou em passos lentos pelas silenciosas veredas

e toda a pedra que os seus pés tocavam fazia - se lumi

nosa , com rebrilhos faiscantes e cores admiraveis . Era

aqui um seixo que se ensanguentava em rubi , ali um

calhau esverdeando - se em esmeralda , outro tomava

um colorido flavo ou roxo e, mirificamente , iam-se todos

transformando e adquirindo côr , desde o tom lacteo da

opala até o esplendor ceruleo da amethysta , do lim

pido fulgir do diamante ao lampejo solar dos prazios


amarellos .

As areias faziam-se de ouro , rutilaudo , como haviam

ficado no leito do corrego em que o Senhor , depois de

haver plasmado o homem com o barro sanguineo , lavou


e refrescou as mãos beneficas .

Foi- se o Creador encaminhando a um campo que

ondulava e sussurrava á aragem e que era um trigal .

Nelle entrando , sem que as pombas e as calhandras

se assustassem, a frescura convidou - o ao repouso .


402 CONTOS ESCOLHIDOS

Deitou - se e os trigos fecharam - se suavemente for


mando um ninho aromal e sombrio onde o somno foi

agradavel .

Já as roxas nuvens annunciavam o crepusculo

quando , ao suave preludio dos rouxinóes , abriram - se

os olhos divinos . Deus , que gozára a delicia do somno ,

ergueu -se . Então , mansamente , uma voz meiga ele

vou- se no campo louro :

-Senhor, que vos não pareça de vaidoso a minha

requesta , não é por orgulho que vos falo , senão porque

me sinto por demais miserando na grandeza da vossa


creação . Fizestes a arvore sobranceira dando - lhe o

tronco , dando - lhe os ramos , vestindo-a de folhas , co


brindo-a de flores e ainda a carregais de frutos ; as suas

frondes altas topetam com as nuvens . Aos que não

déstes grandeza e força ornastes com a graça mimosa da

flôr ; só eu , pobre de mim ! fui esquecido por vós.

Quando vos vi chegar para mim tive vexame de rece

ber - vos , tão pobre sou , trigo misero !

Era o trigo que assim falava.

Parou o Senhor a escutal - o e, compadecido das suas

palavras , estendeu a mão abençoando -o :


CONTOS ESCOLHIDOS 403

-
Agasalhaste o meu somno com a pobreza, trigo
tenro e fragil, déste- me generoso abrigo e resguar

daste - me do sol . Não fique memoria na terra de uma


ingratidão d'Aquelle que mais a detesta e , para que

o exemplo sirva e aproveite, abençôo - te e amerceo - te

com a força e com a Graça .

Fraco , darás o alimento essencial ; misero , encerrarás


em ti o mysterio divino . Serás o pão e serás a hostia

e assim, com a tua fraqueza , supplantarás a arvore

mais vigorosa e com a tua humildade serás maior que


o sol.

No teu seio desabrocharão as papoulas e , dentro

em pouco , a flôr virá annunciar - te a espiga e a espiga

dará a farinha branca , que será força nos homens e


sacrario da minha essencia. Assim Deus , engrande

cendo - os , responde á esmola dos pequeninos .


Disse e contente, mais com o que fizera ao trigo do
que com a creação de todo o universo maravilhoso , ao

clarear da lua, quando os rouxinóes cantavam, remontou

ao ceu entre anjos que foram , em córos , pelos ares

claros , apregoando a sua omnipotencia e a sua mise


ricordia.

26
O INGLEZ
O Inglez

――- Antes a tivesse matado .

-Seria mais digno, mais humano. A morte , em

casos taes , é ainda estúo de amor . Othelo mata, não

expulsa .
- Mas Othelo é uma alma que sente , e Arouca é

alimaria que , em arranques , só conhece o coice .


Afundados nas ottomanas , macias como de carne,

os dois amigos digeriam docemente o jantar, fumando ,

chuchurreando goles de chartreuse e commentando o

leilão daquella tarde arrufada, ultimo escabujamento

do escandalo que alvoroçava o alto mundo elegante .


408 CONTOS ESCOLHIDOS

Rajadas de vento sacudiam as portas envidraçadas


tufando , em bojo , os reposteiros de seda . Estrillos de

chuva no ladrilho do pateo faziam a tristeza torpida do

silencio e , a instantes , rijo , desapoderado fragor de ar

vores crescia angustiosamente no jardim sombrio .

O gabinete , disposto á ingleza , confortavel e serio ,


tinha ao centro , vasta e trabalhada mesa de carvalho

esculpido , amplas poltronas , canapés de couro verde e ,

ao longo de uma das paredes , em dois lances , cuja

divisão era feita por um arco pleno , curvando- se sobre

a columna em que resplandecia o busto pensativo de

Shakspeare , em marmore , corria a bibliotheca de jaca

randá, avermelhada pela livraria, em cuja lombada


brilhava, como brazão heraldico , o mocho de Minerva

gravado a ouro .

O tapete de Smyrna era em arabescos e losangos


negros .

Um cheiro tépido de sandalo errava no ar levemente

ennevoado pelo fumo dos charutos.

-Não pódes imaginar a minha impressão quando ,

ao descer do carro , vi aquella casa escancarada , des

composta, offerecendo-se , com verdadeiro cynismo , aos


CONTOS ESCOLHIDOS 409

que passavam . Era bem a imagem da dissolução .

Desapparecera o pudor , o antigo recato que a velava

mysteriosamente , tornando- a desejada : As janellas


sempre fechadas , lembras -te ? Em baixo , envelhe

cendo quietamente , e calado , o rigido porteiro , hirto ,


empertigado na irreprehensivel libré côr de malva .

Os tapetes altos , abafando o rumor dos passos , a pe


numbra pudica em que se conservavam os aposentos ,

tudo , tudo desapparecera. A residencia aristocratica

aviltou- se , como para acompanhar, com dedicação de


escrava fiel , a sua dona , chafurdando no mesmo lameiro .
Octavio escarneceu .
- Ahi vens com os surtos .

- Surtos ? E' que não tens olhos para essas coisas


mesquinhas da vida . Repara. As casas , quando se

abrem para o leilão , despindo- se do ar honesto , expon

do - se despudoradamente , mettendo - se pelos olhos de

todo o mundo , sem reserva , dão uma triste impressão


de que se prostituem , como as mulheres de Babylonia

que , sentadas á beira do caminho , nas immediações do


templo de Mylitta, passivamente e louvando a deusa
impura , seguiam , em passo árdego , o desconhecido que
lhes atirava um óbulo .
410 CONTOS ESCOLHIDOS

O que lá fervilhava ! Homens sordidos que nunca

se atreveriam a pisar o patim daquella morada de luxo ,

mulheres em frangalhos, garotos descalços e arreman

gados , toda a escoria humana rolava , em enxurro ,

pelas salas, invadia os aposentos mais intimos , deixando

palmilhas de lama nos tapetes , sujas dedadas nas sedas ,

atafulhando -se nas poltronas , bambaleando se nas cadei

rinhas de laca , remexendo nos pequeninos Saxes ,

pasmando embasbacadamente para as faianças , rincha


velhando, ornejando diante de maravilhas d'arte.

O barbaro , meu amigo ... Elle ainda ahi está , á

espreita . As hordas passaram, mas deixando germens

que , de tempos a tempos , como os rebentos das florestas ,

inesperada , formidavelmente repontam . As invasões


succedem- se .

Atila chama -se agora KARL MARX , Rhadagasio dá

pelo nome de KROPOTKINE ; Lasalle é a reencarnação de


Alarico . A turba é outra - é a dos nihilistas , é a da

internacional , é a do proletariado . Dantes as levas sur


giam da herva da steppe ou transbordavam das flo

restas humidas : hoje a farandula , esfarrapada e faminta ,

espectral e sordida , vem da miseria lobrega , vem da


CONTOS ESCOLHIDOS 411

fadiga, do despeito , da ignorancia , ou dessa coisa que

os russos chamam otchaianiè , arrojando-se , a ranger os

dentes , contra o capital, contra a nobreza , contra a


Arte, contra a Sciencia. O Povo ! ... Que horror !
- - Deixa lá o Povo na sua angustia , homem .

Vamos ao nosso caso , mais simples e mais interessante .

Entraste no palacete ? Só por curiosidade ou para

adquirir coisas ?

Entrei, sei lá ! Lembras-te da harpa ? Que pena


eu tive vendo-a escorchada da capa côr de purpura

que se lhe amontoava aos pés como um manto real .

E a chusma rondava-a , picava-lhe as cordas . De


quando em quando o instrumento desferia um som

aspero , raivoso como se rosnasse aos brutos que o


profanavam . Lembras-te della ?

- Della e da harpista , daquelles lindos braços nús


que a cingiam aureolando- a de carne . Deliciosa

mulher! Mas fala ! Ainda chove?


- A cantaros .

- Tempo horrivel ! E então ? Muita gente ? Co


nhecidos ?

- De tudo , como nos bazares : Botafogo e a rua


412 CONTOS ESCOLHIDOS

da Carioca , os elegantes que iam gosar os ultimos vascos

do escandalo , ver o sitio do crime , recompor a scena

daquelle estupido flagrante e o belchior , indifferente ao


drama, avaliando , com olho avaro , os thesouros d'arte

ajuntados , em longos annos pacientes , por duas gera

ções de refinados que degeneram nesse cretino Arouca ,


alvar até na desaffronta . Na saleta azul ...

-Saleta azul !? a das estatuas , aquellas figuras

esbeltas que me deslumbravam ...


――――-Lá estavam.

-A Estrella d'alva e a outra .

Sirius

- Sim, Sirius. Primorosas ! E' pena que tenham

applicação tão réles .


-- Estão bem.

-Ora, estão bem ... sustentando lampadas elec

tricas , como postes vulgares . E o quarto ? o leito ?

-Em exposição , á luz aberta de não sei quantas

lampadas . E vil , filho , de enfurecer , era o commen


tario canalha daquella enxurrada humana que farejava ,

apalpava o soberbo movel , cuspinhando de nojo. Uma

gorda mulher atirou-se-lhe em cima com todo o peso


CONTOS ESCOLHIDOS 413

derramado da enxundia . Bamboou- se, gozou a flacida

volupia das molas e acabou arrevessando uma asque

rosa moralidade sobre o semvergonhismo da sirigaita .


Pobre Alice ! Aquella injuria doeu-me mais do que
tudo !
- Sentiste como o velho leão .

- Dizes bem: senti como o velho leão .

-E desmanchado ?

-O leito ? Qual ! Alisado , como a espera de cor

pos e , sobre elle , corando- o , uma colcha soberba de

seda .
-Côr de morango...

-Conheces ? Octavio meneou com a cabeça affir

mando . D'improviso , irritado :

-Mas que imbecil ! exclamou , atirando um murro

ao braço da poltrona . Que cabotino de escandalo !

Esteve um momento retrahido , de cenho carregado ,

mas serenando , cruzou a perna e disse em tom tran

quillo :

-Sempre compraste alguma coisa ... ? dize .


-Eu? Qual ! Abalei . A casa tresandava a suor

e a gentalha como uma taverna .


414 CONTOS ESCOLHIDOS

-E o leilão continúa ?
-- Talvez estejam, a esta hora , no quarto de dormir.

-Devias ficar com esse quarto , Alberto ?

-Eu ? Porque ? Tu é que o devias disputar a

ouro. Riram e , repoltreando - se com volupia , as mãos

cruzadas , rolando os pollegares , emmudeceram .

-Uma desgraça ! suspirou , por fim , Octavio , to

mando no cinzeiro o charuto . Queres a minha opi

nião ? Alice foi victima da boçalidade e da inercia

do marido . O Arouca ... e quedou pensativo .

-Que queres dizer ?


-
-Uma coisa simples . Tomou um gole de char
treuse e , quebrando a cinza do charuto á borda do

cinzeiro , disse com lentidão : Os maridos , meu caro

Alberto , são , em geral , como os habitantes de uma

linda cidade , que nascem, vivem e morrem sempre


fieis a um bairro , sem curiosidade do resto . Raros

são os que variam de caminho , seguindo sempre o da

marcha diaria : da casa para o emprego e vice - versa.

Os amantes são como os estrangeiros que chegam e

logo, apressadamente , com ancia de ver , procuram os

sitios pittorescos , os arrabaldes graciosos, os recantos


CONTOS ESCOLHIDOS 415

mais bellos . Vão á montanha , entram á floresta , per

correm os parques ; almoçam em frescos hoteis cam

pestres , sob latadas verdes , á beira d'agua, sobem a

escarpas , com risco de vida, por uma parasita ; per


seguem insectos e , chegando a uma aberta , entre

rochas , descortinando um trecho amplo da cidade lon


ginqua , branca , fulgurando á beira do mar dormente ,

alongam olhares de extase e rompem aos hurrahs ! em

expontanea, irreprimivel glorificação da belleza . Eu ,

sabes ? foi na Europa que comecei a interessar- me pela


Tijuca - e nasci à sombra da serra magnifica . Pois

só a visitei este anno porque , em Paris, certo inglez

que aqui esteve, descreveu-m'a com tal enthusiasmo

que , apenas retirei as malas da alfandega, corri á mon


tanha a gozar, a fartar- me de gozo .
mulheres
São assim os maridos . Vivem ao lado de
elegancia
bellas , cheias de encantos subtis , graça , , espi
pelo que
meiguice ... e ardor e só as conhecem
rito,
dever
vêem no bairro banalissimo do chamado « con
rsão
jugal » . São incapazes de uma excu
não á intelam
li
gencia , ao capricho , á fantasia ; isto é : procur
tue o
mulher o que justamente consti
na
«
delicioso
416 CONTOS ESCOLHIDOS

feminino » que é ... como direi ? os meandros da frivo


lidade . A natureza attrahe e entrega-se ao que a
-
explora o seu magnetismo mysterioso é uma sedu

cção . Ella dá - se toda , sem reserva , a quem lhe des


venda os segredos . Dá-se na agua da fonte e no ouro

das minas , na flor do ramo e nos thesouros dos rios ,

na voz do passaro , no frescor das sombras , em tudo !

Assim a mulher .

O Arouca, se alguem alludia á intelligencia vivaz

de Alice , encolhia , com desprezo , os hombros qua


drados.

Nunca pousou um beijo naquelles olhos violetas ;

nunca desprendeu , para admirar, sentir, alumiar- se ao

seu esplendor , aquelles fulgurantes cabellos louros , que

são a medida da altura airosa daquella deusa carnal .

Nunca procurou decifrar o enygma daquellas melan

cholias enervantes ; nunca percebeu que as mais lindas

mãos , que jamais remataram pulsos femininos , eram as

da sua mulher ; nunca desceu os olhos até a pequenina ,

mimosa galanteria daquelles pés . Limitava-se a pagar


The as contas , a offerecer- lhe o braço para acompa

nhal- a ao Lyrico ou aos salões , cumprindo um dever


CONTOS ESCOLHIDOS 417

de marido com o zelo , com a pontualidade com que

um amanuense faz jús á ambicionada promoção .


Alice era uma maravilha inédita , á espera de
alguem que a descobrisse .

E Leonel appareceu . A mulher exhibe sempre os


seus dotes e revolta- se despeitada se os não apreciam .

Ha toilettes que são o exaggero da nudez pelo


realce que dão ás linhas do corpo , accentuando-as ,
como o colorido anima e faz resaltar o desenho , e

usam-nas as mais reservadas affrontando , com vaidoso

aprumo , todos os olhares , garantidas pela convenção


universal da moda que impõe o amarello e ... o im

pudor.
Arouca não conhecia Alice . Em um instante de

amor Leonel , que era o estrangeiro, descobriu mais


encantos do que o bruto em quatro annos e meio de
vida commum .

Garanto-te que se lhe falares de certo signal , em

forma de lentilha , que a mulher tem na espadua , elle

ficará pasmado porque nunca o viu .

A pobresinha peccou por indiscrição da vaidade

-tinha encantos , queria que os vissem ; o marido era


indifferente , ella então ...
418 CONTOS ESCOLHIDOS

O Arouca não nos mettia á cara a sua hedionda

collecção de moedas ? -cobres antigos com garatujas

corroidas , ourama muito alisada , pratas sujas, até couro

e buzios , uma metallurgia immunda que nos deixava


os dedos azinhavrados e nalma um grande nojo pelo

dinheiro ?

A mulher tinha mais preciosa collecção e , porque

a mostrou , o idiota , numa rebentina tyranica , expulsou-a


de casa . O escandalo expiodiu , fez epoca e parecia

esquecido quando o leilão , annunciado em todos os

jornaes e cartazes affixados nos muros e nos andaimes ,


veiu , de novo , trazel- o á baila. Pulha ! Amanhan

andará por ahi rastreando o que o leiloeiro hoje dis

persa para remontar a casa que desmantelou .

Convence- te de que ainda havemos de tomar chá

entre as orchideas da galeria de crystal, ouvindo o

riso primaveril de Alice e os commentarios rasos de


Arouca .

-Isso é lá possivel, homem !? Depois do que

houve ...

-Se é possivel? Verás ! Ella partiu no Aragon ;


elle já tomou passagem no Clyde. Vai encontral- a em
CONTOS ESCOLHIDOS 419

Paris e, juntos , percorrerão lugares amaveis em lenta

viagem de ... segundas nupcias . Agora é que elle

vai aprecial- a , depois do escandalo que poz em evi


dencia a belleza , que o Leonel descobriu . Não foi
um inglez , em Paris , que me falou da maravilhosa

Tijuca ? Leonel foi o inglez do Arouca.


-Só o Leonel ? accentuou Alberto malicioso .

-O Leonel ... Voltou-se , de repente , para a

noite : Homem, parece que estiou ... Se fossemos

ao Pavilhão Mourisco ? Entreabriu a porta . Rija lufada

levantou impetuosamente o reposteiro, voaram papeis

da mesa e o grosso jorrar da chuva atroou .

-Noite d'agua !

-Chove horrendamente . Resignemo - nos . Ha ahi

champagne. Vamos tomar um punch e ler versos .

E , estirando - se no divan , com a almofada de seda

sobre o peito , Octavio suspirou :


- Deliciosa noite para ouvirmos uma melodia

d'harpa .

-Ou simplesmente a harpista . Seria, talvez , me


lhor.

-Não , para ouvir a harpista ... havia um de mais .


27
420 CONTOS ESCOLHIDOS

Riram e , estirando , com volupia , os braços , Octavio

suspirou : Deliciosa criatura ! Foi á campainha , fel - a


soar. De novo mergulhou no divan , em languido aban

dono e, como o criado apparecesse á porta , encom


mendou :

-Um punch de champagne. Olha ! ... e charutos .


AS RUINAS
As Ruinas (*)

-Saiamos daqui , disse o meu amigo , afastando - se

das ruinas que o pallido luar de inverno ainda tor


nava mais tristes.

-Receias alguma coisa ?


-Sim, receio . Estamos num cemiterio . Vamos
estacionar adiante .

-Seguimos , Caminhando lentamente , o meu amigo ,

que nos felizes tempos da Academia publicara lindos

versos lyricos , poz - se a falar e , ouvindo - o , eu lem

brava - me , com saudade , das fantasias , dos sonhos que

architectavamos á nevoa fria das noites paulistanas .

( ) Das SCENAS E PERFIS , edição H. Garnier, 1910.


424 CONTOS ESCOLHIDOS

A bôa idade ! Os nossos alegres e despreoccu

pados vinte annos?

Os bonds passavam cheios , e distrahidos , gozando a

temperatura suave da noite , fomos andando , de vagar ,

ao longo das velhas casas fendidas, olhando o muradal


immenso amortalhado na luz do luar.

-Essas casas , disse o meu amigo , estão impre


gnadas de germens perniciosos . Muitas ha de mais
de seculo , edificadas ainda no tempo em que viviamos

como uma dependencia submissa da metropole .


Quantos homens terão habitado á sombra dos seus
muros de pedra ! Quantas vezes terá a Morte atra

vessado aquelle limiar gasto e ennegrecido ! ... Quan

tas molestias horriveis , das que abrasam , das que tor


turam, das que deformam terão rematado vidas entre
as mudas paredes que a picareta vai derrubando ?

O hausto dos moribundos é uma exhalação lethal ,


peior que a da mancenilha . Cada epoca tem a sua

molestia .

O Tempo traz venturas e desgraças e , revolvendo

em massa , essas construcções do Passado , não esta

remos provocando males que jazem em verdadeira

lethargia ?

1
CONTOS ESCOLHIDOS 425

Não se exhuma o cadaver sem sentir o fétido da

putrefação e esse cheiro acre , de velho barro , de ma


deira poida vem da podridão das casas. E' o miasma

deleterio das ruinas .

Dirás que sou um cerebrino , não : parto de um

principio scientifico que hoje todos apregoam - o da

infecção .

Se o escarro do tuberculoso , seccando ao sol e

espalhando - se na poeira , póde contaminar uma mul

tidão , todas essas molestias do passado , que nessas

casas fizeram devastações crueis , endemias teimosas ,

proprias da terra , do ar , da agua , epidemias transito

rias que passavam em rajadas assoladoras , todas dei

xaram a sementeira horrenda que , como esse grão de

trigo que , depois de mil annos de prisão no sarcophago

da mumia , trazido ao sol , lançado á terra , rebentou e


deu pão , talvez se reproduza em calamidades .

A Morte quer o socego e defende - se com o que

exhala. Para não ser profanado , o cadaver tresanda

como certos animaes fracos , que se defendem dos seus

perseguidores secretando uma essencia fétida que des

norteia e desespéra .
426 CONTOS ESCOLHIDOS

Confesso-te que passo com medo nesses lugares em

que os pedreiros trabalham. Sempre que vejo um

ralo , uma boca de lobo, evito -os ; o mesmo faço com

as ruinas . Essa poeira que se levanta toldando os ares

aterra- me - é como uma nuvem sinistra de espiritos

perversos .
A cidade está invadida - ella vai a toda a parte :

pousa nas roupas , vôa nos ventos , apéga-se nos pés ,

entra-nos para os pulmões com o ar que respiramos e


é a Morte , é o pó do Evangelho , o Passado subtil que
reapparece , que reassume o seu lugar na vida , com

o odio do captivo que consegue evadir- se e logo medita


vingar-se de quem opprimiu .
Os hygienistas conservam- se calados . Nenhum ou
sou ainda levantar a voz para prevenir o povo - re

ceiam , talvez , provocar o panico . Fazem bem? Não

sei . Eu é que me não deixo ficar em taes sitios — fujo

delles , evito- os e , se pudesse , deixaria a cidade em

quanto durassem as demolições . Sou medroso , con

fesso . E' a minha fraqueza .

-Ora , meu amigo , tambem dizia-se que a cidade

estava abarrotada de ouro , que havia paredes que


eram verdadeiras minas , subterraneos mais ricos do
CONTOS ESCOLHIDOS 427

que os dos templos aztecas e , até hoje , não appareceu


ainda uma reles moeda .

-Sim, não appareceram moedas . Quem nos fala

das antigas fortunas ? a lenda , não é verdade ? mas da


morte tudo nos fala . Ella passou, como sempre passa ,

e o que me apavóra é a idéa possivel de eu , um dia ,

entrar no seu rastro , absorver a poeira do seu calcaneo


tábido . Não crês ?

-Não creio .

-Pois sim, fica-te com a duvida e deixa- me com

os receios ; mas vamos sahir daqui . Temos ali perto

um jardim, vamos para junto das arvores vivas , fuja


mos á solidão e á morte .

-E's o mesmo poeta d'outr'ora .


-Talvez .

- Pregavas o pessimismo , com Schoppenhauer e ,


como elle fugiu á peste ...

- Fujo eu ás ruinas . Talvez tenhas razão . A vida

é, realmente , detestavel ... Mas vamos sahir daqui .

E partimos .
B


A HONRA
A Honra

Senta- te á roca , toma o fuso , doba o linho e fia.

Attenta , porém , nas mãos - que nellas não haja um

atomo de pó . Vais tecer o panno immaculado que te


ha de vestir na vida .

Estende os fios no tear e urde- os . Já se vai desen

rolando a tela tenue , alveja e brilha e , sendo linho ,

parece luz . Tira- a, recorta-a , alisa-a , ajusta-a e cose -a

á medida do teu corpo . Será o teu trajo . Sahe com

elle e verás ante ti , prostrado reverentemente , todo

o mundo , maravilhado como á passagem de uma


deusa .
432 CONTOS ESCOLHIDOS

Chama -se a roca , consciencia ; o fuso , pureza ; o

linho , dever ; o fiar , trabalho ; o tear , amor ; o panno ,

virtude ; e o canto com que vais amenisando a tarefa ,

alegria . Agora a tunica , que tambem tem o seu nome ,


é Honra .

Não ha purpura de rei que se lhe compare ...


Mas é tão difficil trazêl - a ! Fina , qualquer espinho

rompe - a ; branca , qualquer nodoa mancha- a ; leve , qual

quer aura enruga- a ; longa , toda a poeira se lhe apega

e , justamente por ser branca , tudo nella apparece .

O que em trajo de outra côr passaria despercebido ,

nella logo resalta . Entretanto , se escolheres caminhos

limpos , sempre ao sol , o teu esplendor será o dum

astro e passarás num côro de louvores .

E' assim a honra , tão custosa de manter , a Honra ,

gloria do nome, herança melhor dos pais .

Tudo se repara e concerta , a Honra , uma vez pol

luida em lodo ou rota em espinhal, ficará, para o

sempre , mareada ou serzida e não será mais honra ,

porque , assim como não ha meia vida , tambem não

se comprehende parcella de honra : vive - se ou não

se vive , é - se honrado ou não .


CONTOS ESCOLHIDOS 433

As tentações do mundo assediam a honra como


as mariposas assalteiam a luz .

Se a honra tem fundamento no caracter não ha

risco de perder - se , mas se é apenas hypocrisia , basta


uma flor acenar- lhe da sebe ou do pantano para que

ella se metta ao espinhal ou á vasa e volte em far

rapos ou polluida .
A TORRE DE MARFIM
A Torre de Marfim ()

Que haveria de verdade naquelle pregão ruidoso

levado , em marcha sem folga , pelos palmares de

aldeias humildes , pelos alcandores e covancas de ser

ras asperas , por entre os marmores sumptuosos de

cidades ricas , com mais esplendor que a nova conso

ladora do apparecimento de um deus abundante e

benigno ou do nascimento de um principe , predesti

nado , por vaticinios , para força heroica e alegria paci


fica do povo ?

Que haveria de verdade naquelle pregão que cha

( ) Do vol. MELUSINA, edição de H. Garnier.


28
438 CONTOS ESCOLHIDOS

ramellas, gongs, sistros , frautas e atabales precediam

com tão festivo e retumbante estrondo , tangidos por

escravos que bailavam á frente de dromedarios cobertos

de seda e de altos elephantes enxairelados de purpura ,

rutilantes de couraças imbricadas de escamas de prata ,

as longas , recurvas defesas encastoadas em ouro , por


entre as quaes , molle , bambaleando , enrolava - se , des

enrolava-se a tromba sarapintada , como serpente mons

truosa debatendo - se entalada nas arestas dum fra

guedo ?

Quando o atròo cessava no aperto abafado e ondu

lante da multidão curiosa um arauto , veneravel d'annos

e d'aspecto , guindado á cabeça do mais robusto ele

phante , alargava os braços nas amplas e compridas

mangas da tunica , dilatadas como azas fulgidas que

se abrissem ao sol e , numa lenta e forte voz , pro


clamava :

<< Entre as rochas de crystal que faiscam ao sol e

fulgem diamantinas ao luar, no valle avelludado e

cheiroso do Mehil , os genios , trabalhando desde os dias

fulgurantes do grande rei Salomão , edificaram vaga


rosamente uma torre de marfim , tão alta que a sua
CONTOS ESCOLHIDOS 439

cuspide rebrilha na serenidade do azul radioso quando

a tempestade a circunda pelo meio com uma cinta

fuliginosa de negras, condensadas nuvens , afuzilando


em raios , estrondando em trovões.

As aguias chegam cançadas ao seu pináculo , de

onde a terra não é mais que uma alfombra macia em

que scintillam , em voltas finas, os rios mais largos .

Cem andares sobrepostos , cada qual de um mar

more estupendo e de riqueza maior em metaes e em


pedrarias , contêm todas as maravilhas da terra e das

aguas .

Cem são os jardins suspensos que os cercam em

plataformas, cujos parapeitos são de porphyro , jaspe ,

onix , coral, ouro , prata e outras pedras e outros me


taes desconhecidos dos homens .

Nelles são largas e odoriferas as sombras do arvo

redo , as flores não murcham , os frutos não apodrecem ,

a relva é sempre verde , as aves não cessam de cantar

nem os regatos de correr.

Cada um desses andares , mais vastos do que cida

delas, comporta numerosa escravatura , milhares entre

homens , mulheres e crianças .


440 CONTOS ESCOLHIDOS

Uns mourejam nos trabalhos rudes da terra , outros ,

no alinho dos aposentos; outros , nos fórnos e nas co

zinhas ; ainda outros são tangedores de concertos,

mimicos em bailados . E possantes vedetas , vestidas


de linho candido , com lanças que flammejam, nas gua

ritas dos cunháes , olhos fitos no ceu , annunciam a


marcha dos astros ou a passagem das aves que acer

tam o vôo pela primavera e pelo outono .


Os homens são os mais fortes e donosos , as mu

lheres são as mais bellas e senhoris da terra .

E todas as raças ali se representam, desde a que

afronta e desafia a neve com a pelle branca até a

que disputa ao onix a pretidão que reluz .

Conselhos de sabios , profundos conhecedores d'alma

humana, durante seculos , em cujas noites velaram sobre

os livros , arrolaram todos os desejos possiveis no cora

ção insaciavel do homem e a todos proveram , desde os


que o corpo incessantemente reclama até o mais subtil

que possa nascer no espirito mais caprichoso .

Os quatro lados da torre olham grandezas diversas :


o mar, a floresta , o monte , a cidade e todas estas

partes prestarão obediencia e homenagem humilde á


CONTOS ESCOLHIDOS 441

que for escolhida para habitar a torre, como senhora


e dona .

Será a rainha da cidade , a dominadora de floresta


e monte e na sua galéra de téca, tauxiada de ouro ,

com esmalte de gemmas , ao som rythmico de tres


ordens de remos longos e flexiveis , abrindo velas de
purpura, percorrerá , num desferir de musicas serenas ,

arrastando estragulos pela espuma , o mar ceruleo até


as ilhas remotas e apraziveis em que vivem os genios

e onde não ha calor que abrase nem frio que regele ,

mas sempre uma temperatura igual e suave que dá


viço ás rosas e não consente a velhice .

A torre espera a sua dona e , no dia em que appa

recer a mulher bem fadada que , por virtude , for digna


de a possuir , gosando a saúde , a mocidade e o amor
até a extincção do sol e da ultima estrella , as portas

de ouro abrir - se - ão por si mesmas e , de todos os an


dares , clangorosamente , partirão para os quatro pontos

do céu os sons vigorosos de centenares de tubas victo


riando a eleita de tamanha ventura ».

Calou - se. Romperam estrondosamente os instru

mentos : charamellas , gongs, sistros , frautas e atabales .


Os elephantes fremiam.
442 CONTOS ESCOLHIDOS

Recahindo o silencio o arauto continuou :

<< Para habitar , como senhora , a torre de marfim ,

não exige mais o principe dos genios da mulher que


a tal dadiva concorra senão que tenha atravessado as

horas curtas de um dia limpidamente , sem manchar


esse tempo com uma leve mentira .

Aquella que se apresentar satisfazendo a condição

imposta, essa receberá a chave de diamante que abre

todas as portas da torre de marfim. Ai ! porém daquella

que , depois de penetrar o vestibulo , submettida á prova

da verdade , deixar transparecer a mácula mais subtil

da mais ligeira mentira , seja embora tão innocente

como o sorriso que abre em rosto virgem o primeiro


sonho de amor .

Ail della ... Envelhecerá instantaneamente e ficará

na terra encarquilhada, engelhada e mais tremula que

um junco ao vento , com a alma sempre moça , ardendo

em desejos de mocidade dentro da carne gelada da

velhice , até que se extinga o sol , morra a ultima es

trella e na tréva calada pereçam em pó as ruinas da


torre » .

Era este o pregão . E andava o cortejo por cidades


CONTOS ESCOLHIDOS 443

e póvoas , montes e villarejos valles felizes e áridos

carrascaes, sempre cercado de turbas densas e prose

guindo melancholicamente com o elephante destinado

a transportar a dama virtuosa balançando no dorso ,

recoberto d'ouro e purpura , o alto e resplandecente

palanquim vasio .

No fundo de uma triste , esmarrida charnéca , onde

só havia , entre arrepiados coqueiros e hirtos , espal

mados cactos , uma cabana de adobe coberta de pal

mas seccas e nella um casal de velhinhos resguardando

a graça innocente de uma neta : Maura , noiva de

Adur , pastor de antilopes , uma manhan , ao primeiro

luzir do sol , soaram estrondosamente charamellas ,

gongs, sistros , frautas e atabales e logo o pregão atroou .

Os lagartos fugiram léstos para as taliscas , os gy

paetos abalaram com estrepitoso bater d'azas e as

palavras do arauto echoaram entre as rochas , sonóras ,

pausadas e promettedoras .

Ouvindo - as Adur precipitou -se da escalvada penha


e, a correr, chegou á porta da cabana . Os velhos
444 CONTOS ESCOLHIDOS

haviam sahido : o homem para a horta ingrata, a mu

lher para o corveiro , a ordenhar a cabra e á porta ,

encostada ao umbral, Maura olhava enlevadamente as


cores vivas d'aurora .
Vendo-o disse a moça , a sorrir :

-Amur, sol de minh'alma ... E foram estas as

primeiras palavras que pronunciou a filha do deserto


nessa manhan luminosa , e , como os velhinhos chegas

sem : elle com frutos na alcôfa , ella com o tarro de

leite , adiantou -se e beijou-os envolvendo-os nos seus

lindos e longos cabellos negros . E , entre os tres, disse

o pastor o que ouvira no valle agreste , repetindo as


palavras do arauto veneravel .

Os velhinhos sorriram enternecidos , d'olhos fitos em

Maura, sempre contemplativa . E disse o velho :


-Mas é com ella que se entende o recado e , se

é verdadeiro o pregão , della será a torre . Ainda que

a proposta fosse mais vasta alcançando toda a idade ,


Maura, em dezoito annos , só comnosco tem vivido e

falado e comtigo , que és seu noivo . Nunca mentiu

nem sabe que a mentira póde romper em uma alma


pura como em terra bem regada reponta a herva

amarga.
CONTOS ESCOLHIDOS 445

E os velhinhos e o pastor quizeram logo partir


levando Maura ao encontro do cortejo augusto.

Pensou a moça um momento, traçou a capa de

pelles , calçou as abarcas de cortiça e , já no limiar

da cabana , pondo os olhos em Adur , subitamente estre

meceu levando as mãos ambas ao peito num gesto

afflicto, como para conter o coração e vivas lagrimas


rebentaram - lhe dos olhos maravilhosos .

Pasmaram os velhos e o pastor por verem - na in


decisa :

-Porque hesitas , Maura?

-Em que pensas , filha ? Subitamente afastou dos

hombros o manto de pelles , descalçou as abarcas e

tornou á cabana . Seguiram - na o pastor e os velhos

e , vendo - a chorar , o primeiro falou :

-Porque choras ? Iremos comtigo , em tua com

panhia . Na torre celebraremos as nossas bodas e elles ,

regressando á mocidade , viverão comnosco até o fim


das éras .

Ella estremeceu num soluço mais forte e , refugindo


á caricia do noivo :
446 CONTOS ESCOLHIDOS

-O'! Adur ... tenho medo ...

- Medo !? Mas ainda que , alguma vez , o que não

creio , houvesses mentido , o pregão diz que será dona

da torre aquella que passar um dia , um só dia , sem

incorrer em tal falta . Sahiste do somno para olhar o

ceu e eu vim pelo primeiro raio de sol e foram para

mim as tuas primeiras palavras . E temes ?


-O'! Adur ... tenho medo . Fitaram- na o pastor
e os velhos . E Adur insistiu :

De que tens medo ?

-Da velhice , Adur. Do castigo tremendo .


-Mas se não mentiste ! Só ao meu amor falaste .

Que verdade mais pura podia sahir de tua alma ?

-Tenho medo ! Tenho medo , Adur .

-Do que disseste ? E ella , d'olhos immensamente

alargados , exclamou como em delirio :

-E' que não sei se é verdade e posso envelhecer

na torre . E , dizendo palavras taes , atirou - se para a


cabana deixando os velhos e o pastor attonitos .

Longe soaram estrondosamente charamellas, gongs,

sistros , frautas e atabales . E o cortejo partiu e ainda


percorre o mundo.
CONTOS ESCOLHIDOS 447

E a torre lá está entre as rochas de crystal , que

faiscam ao sol e fulgem diamantinas ao luar , no valle


avelludado e cheiroso de Mehil , topetando com as

nuvens altas , fechada no mysterio e sem dona.


ATTRACÇÃO DA TERRA
Attracção da terra (*)

No ilheu aspero, arido , dum amarello tábido , arru

gado em pomas e alcantis , eriçado em cristas forami

nosas, poido em furnas e socavas por onde arremettiam

d'impeto , aos estouros , grossos golfões de mar , a prumo ,


tesa , mastreando um pincaro , avultava , escalavrada , a

torre do pharol . Como uma ostra apegava- se-lhe ao

sopé a casa do pharoleiro .


Em torno e acima do escolho revoavam gaivotas .

Aqui , ali , em pontos salteados , eruptos agaves ouri

çavam espathas ; hervas bravias , hispidas irrompiam dos


lanhos .

( ' ) DO BANZO, edição de Lello & Irmão. Porto, 1912.


29
452 CONTOS ESCOLHIDOS

Crustaceos fervilhavam nas orilhas do penedio entre

algas cor de limo que boiavam esguedelhadas como


enormes arachnideos.

O oceano, infinito e tumido , rutilava deserto aflo

rado de espumas e os barcos , que surgiam nas extre

mas do horizonte , pareciam baixar do ceu em voo

sereno , singrando em doce deslise , no alor das nevoas ,

que fluiam ao sopro do vento brando .

Nos dias limpidos , sob o azul fúlgido , o ilheu sobre


nadava de ouro no faiscante rebrilho das aguas, com

uma orla de espuma férvida . Aves esvoaçavam em

bandos , investiam d'alto á vaga , remontavam batendo

as azas largas ou ficavam em repouso no balouço da

onda preando o peixe que esfusiava rápido . Com os

aguaceiros do inverno, no furor dos ventos , sob as


vergastas das chuvas, o ilheu retransia- se .

Os vagalhões assaltavam-no , subiam - lhe pelas en

costas ás grimpas , rebentando estrondosamente em

cachões d'espuma , despejavam- se catadupejantes pelas

rampas , alagando os desvãos , chegando em frouxos

lençóes á casa e , por toda a parte, o mar estrondava ,

o vento zunia , a chuva ruflava em bátegas e sentia- se


CONTOS ESCOLHIDOS 453

em torno , além do adensado nevoeiro , que isolava o

escolho , a madria tronando , reboos de trovões , uivos

do vento e , de longe em longe , uma gaivota, rompendo

a borrasca, pousava num ermo e ficava a tremer ,

arrufada , oscilando ao vendaval.

Habitavam o ilheu o pharoleiro , a mulher e a filha

e um ajudante , Bruno , antigo patrão de barco .

Os dois homens , unidos pela soledade , davam - se

como irmãos e , ainda que taciturnos , de poucas falas ,

passavam os dias juntos nas ribas concertando redes

ou afuroando o peixe nos madrigaes , se não jogando ,

sentados num escalão da rocha , quando não se met

tiam lá em cima , no lanternim , limpando , lubrificando

o apparelho , reparando estragos do vento no tempo


das aguas .

A mulher, cabocla franzina e secca , de pelle tanada

como a dos homens , mourejava da manhansinha á

noite e , emquanto a panella fervia , com appetitoso

cheiro de guisados praieiros : peixe e mariscos , de

longe em longe um pouco de carne secca , curvada na


454 CONTOS ESCOLHIDOS

tina que, ora um , ora outro homem enchia com agua

do algibe , lavava cantando módas da sua villa serta

neja , tão verde entre cheirosas balsas , fresca e mur

murante de corregos , numa intimidade feliz de palhoças

e ranchos , com laranjaes em flor e roças louras de

canna e milho . Acompanhava -lhe a voz guaiada o


marulho monotono das ondas em quebrança .

A alegria do degredo era a pequena Sara .

Nascida ali , ali criada , o seu mundo era o parcel.

Percorrendo- o de extremo a extremo , descalça , cabello

ao vento , indifferente ao impeto das ondas , sempre mo

lhada da cuspinhagem da ressaca , conhecia-lhe todos

os desvios , desde os pontos mais ingremes até a gróta

onde o mar gorgolejava , expluindo ás detonações , e os

labyrinthos e canaes profundos onde , sob uma nevoa

cerulea e lugubre, luziam balseiros d'agua , fuzilando em

lampejos argentinos ao fugitivo espadanar dos peixes .

Passava horas alarpadada nessas cryptas soturnas


escarranchada em arestas , agarrada ás aspas da rocha ,

gritando para ouvir o resôo do echo que se prolon

gava e retumbava em rolos de som pelas anfracturas


da lapa .
CONTOS ESCOLHIDOS 455

Conhecia os pendores , as escarpas lanhadas em

escaleiras , preferidas dos lagartos , ás vezes tão cheias

delles que , á distancia , com o remexer dos bichos , as

rochas pareciam arfar , mover- se , sacudir o dorso ao sol .

A mai prendia - a á casa dando - lhe serviços para

tel- a sempre junto a si , receiosa d'algum desastre

naquelles passos perigosos e , ao explodir resoante de

vaga mais estrondosa , se a não via perto , lançava - se

afflicta a procural- a , chamando- a aos gritos , correndo

pelo espinhaço do penedio , resvalando aos abysmos ,

debruçando- se das arribas até dar com ella onde esti

vesse .

Encontrava-a , umas vezes defendendo heroicamente

o ninho das gaivotas : de pé , num anfracto , apedrejando ,

a cascas de ostras , as gordas ratazanas que chiavam

fugindo de roldão , lambusadas no gluten dos ovos des

truidos . Ou então numa chan , ante um remanso lim

pido de mar , tão raso , liso e transparente que se lhe

via o fundo amarellento , a cevar peixes que se atro


pellavam engalfinhados , arremettendo ao lambisco .
456 CONTOS ESCOLHIDOS

O mar não tinha segredos para a pequena -pelo

bolhar ou crispar da superficie sabia se eram levas de

garoupas ou cardumes de sardinhas que passavam ,

roteava por um bolhar de espumas a marcha dos tuba

rões , distinguia ao longe as aguas - vivas .


Mas o seu prazer - e iam -se - lhe os olhos nelle

era seguir as cabriolas dos botos rolando ao largo em


rebolcos lentos .

Se avistava uma vela ou vulto de paquete emma

ranhado em cabos , atufado em fumo , singrando na

lisura lustrosa , cahia em scisma recordando as con

versas que ouvia em casa sobre a terra, a mysteriosa


terra, grande e rica , cheia de cidades fartas , ondulada

em montes encrespados de selvas , reluzindo em fios

de riachos , estendida em campos vastos e verdes como

o mar , coalhados de rebanhos tenros , com pastorinhos


mimosos e bem vestidos como os do chromos .

Sempre, porém, turbando a doce idealisação das

bellezas da terra fertil , pensava na morte . Não a

comprehendia senão como um esqueleto armado de

foice , rompendo das nuvens , direita aos homens , como

as gaivotas quando colhem o vôo e abatem na vaga


CONTOS ESCOLHIDOS 457

sobre o peixe arisco . E tremia , encolhia- se arrepiada ,


relanceando em torno os olhos cheios de medo .

Mas a serenidade do céu e do oceano tranquili

zavam- na e reentrava no doce sonho . Então pensava

em Deus , no Deus das orações , cuja imagem soffredora

lá estava , á parede , num quadro cercado de sempre


vivas . Deus , o creador de tudo , o Pai dos homens

que navegam e das estrellas que brilham , dos peixes

e das gaivotas , do sol e da lua , senhor do céu e do

mar ; Deus , que lá estava , entre luzes eternas , na igreja

sonora, á sua espera para baptisal-a , abençoal- a , tomal- a


a si sob a sua mão direita .

Então desejava a terra com ancia , sentia impetos

de arrojar-se ao mar , nadando , seguir os navios atravéz

do céu d'além , e entrar ás cidades ao som dos sinos ,

por entre soldados e jardins floridos , grandes bois ,

fontes borbulhantes e principes vestidos de seda , com

espadins de ouro e chapéus de plumas , como nas his


torias.

A's vezes chorava frenetica num grande odio ás

aguas e áquelle céu que lhe encobria a terra desejada .

Bruno , quando lhe falava da « capital » estendia os


458 CONTOS ESCOLHIDOS

braços para um ponto onde , á noite , as estrellas luziam

mais brilhantes , e dizia - lhe : « E ' ali ! » E ella ficava

olhando longamente , a fito , até que os olhos se lhe

enchiam de sombras . Mas não comprehendia e tomava

por brincadeira o que lhe affirmava o pai da immen

sidade do mundo , correndo um largo gesto que circu

lava o ambito do horisonte :

-Por toda a parte ha terra , praias altas , de areias

brancas, com coqueiraes em palmas, e lá p'ra dentro

cidades cheias de palacios, cheias de mercados , com

carruagens rodando , passaros , muita gente, musicas .

Não , a terra ficava, como dizia o Bruno , lá onde

luziam as estrellas mais claras , alta , num monte azul ,

com arvores cheias de passarinhos .

E quando chegava ao ilhéu o barco das provisões ,


Sara exultava feliz . Ia a correr e a rir, escorregando

nas lombas, saltando das cuspides até a cascalheira

da orla e , em alvoroço , pulava á prôa , ia pela ban

cada festejando , abraçando os tripolantes como para

sentir o cheiro que elles traziam da terra e , esqua

drinhando , rebuscando nos vãos do barco , como a

buscar alguma coisa de lá , examinava , recolhia tudo


CONTOS ESCOLHIDOS 459

folhas , pedaços de jornaes , cascas de frutas , seixos .

E emquanto os homens demoravam no ilheu não os

deixava com perguntas e , quando partiam, subia ao

lanternim do pharol e , lá de cima , dominando o mar ,

ficava-se a contemplal-os , acenando -lhes com um panno ,

até que a vela do barco , pequenina , confundia- se com

as espumas que cotonavam o oceano .

Uma tarde disse -lhe o pai, afagando -lhe os ca


bellos salitrados :

Quando fizeres dez annos , se Deus não mandar

o contrario , irás comnosco á terra baptisar - te .


-
Contanto que a morte não me veja, murmurou .
A mãi rompeu de repellão :
-Ah! tola ! Ocê pensa que a morte anda na terra

como a gente ? ...


-- Pois então ?!

- Boba !

-Ella não sabe, coitada ! desculpou o pai . E a

cabocla, supersticiosa , explicou :

-A Morte não se vê e está em toda parte, tanto

lá como aqui .

-Aqui , não .
460 CONTOS ESCOLHIDOS

-Graças a Deus ! bemdisse o pharoleiro . E a pe


quena, depois de considerar :

-Mas então só quando eu fizer dez annos ?


- Só .

-E ainda falta muito ?

-Dois . Tens oito . Sára encostou - se ao umbral

e , de cabeça baixa , ali ficou contida num pensamento .

O sol baixava enorme , dum fulgor metalico , rever

berando ao rez das aguas , que relumbravam , e o céu


aureo , estriado a traços flabellares , chovia gloriosa

mente uma poeira de ouro . Vagas rolavam pesadas

em ampolas coruscantes e todo o oceano reluzia picado

em scintillações .
O disco astral tocou a linha do horizonte com um

brilho fremente e o mar , sob o oceano ardido , inflam


mou-se rutilando .

Foi um deslumbramento rapido . Vagaroso , num

descer de pluma , o sol mergulhou . Houve um extase ;


ondas brincaram e a claridade foi- se , aos poucos , apa

gando . Aqui , ali um brilho ainda , uma scintillação

candente . Por fim , esmaecendo a luz , o mar reluziu

em lustro oleoso .
wwww
CONTOS ESCOLHIDOS 461

Levantou-se um vento fresco , abrolhavam nas aguas

frouxeis brancos , e , á luz meiga , aos bandos , vieram

vindo as gaivotas e barulhavam entrando ás furnas


ou , reunindo - se num alto , ficavam immoveis , ainda

gozando o anoitecer . Fez - se escuro silencio .

Subito , num jacto explosivo , o clarão do pharol


tremeluziu , largo e extenso , nas aguas .

Bruno lá estava na vigilia do primeiro quarto .

A familia recolheu-se á casa. A candeia aclarou o

interior aceiado .

O pharoleiro sentou - se junto á mesa , accendeu o


cachimbo e ficou - se a fumar , banzando . A cabocla

ia e vinha nos arranjos domesticos - guardando a louça ,

dobrando peças de roupa . Sara metteu-se a um canto

encolhida , o rosto na mão , a olhar a folhinha de pa

rede , pregada em chromo bucolico , onde um moinho

velejava alto , num colle , sobre um fundo risonho de

céus azues e campos louros . « Estavam ali os dias ,

pensava a pequena . Tantos ! Era dali que a mai

os tirava um a um , de manhansinha , ainda escuro e ,


462 CONTOS ESCOLHIDOS

mal o despegava , logo o sol rompia das aguas . E se

ella furtasse alguns ! um , pelo menos ! ... >>


Relanceou o olhar em volta - os pais estavam dis

trahidos . Levantou - se de vagarinho e, de leve , foi

destacando a folha , outra logo appareceu em baixo .

Instinctivamente inclinou a cabeça lançando os olhos

para a porta, a ver se havia claridade de sol . A escu

ridão persistia . Sorria , e , d'impeto, arrancando a folha ,


amarfanhou -a , metteu - a no seio e , disfarçadamente , pé

ante pé , caminhou direito á porta , sahiu e , curvada ,


cosendo-se com a parede , amiudou os passos , lançou- se ,

por fim , a correr .


Enveredou por entre as penhas , trepou á escarpa
caleada a luar e , por lombadas e arestas, que pareciam

de gesso, chegou á beira do mar prateado , onde as

espumas ferviam em brilhos . Tirou o papel do seio ,


lançou - o ás aguas . O vento apanhou - o no ar , revol
veu- o , levou -o . Sara não o viu cahir .

Olhava, mas a voz da cabocla veiu de longe , em


grita : « Sara ! » Voltou-se . A onda lenta preguiçava

na rampa, envolvendo - lhe os pés em humida caricia ,

« Sara !» Lindo , o luar palhetava as aguas. E a luz

do pharol , como ia longe !


CONTOS ESCOLHIDOS 463

Quem seria o pharoleiro lá em cima , na lua ? Ah !

se fosse o pai ... que bom ! Ali , sim , perto , pertinho

das estrellas ... Poderia ir duma a outra , correr na

estrada de S. Thiago , brincar por ali fóra . Que bom ! >»

Um lume riscou os ares , apagou-se no mar ; outro

passou ; além eram muitos voando. << Deus te guie ! »

balbuciou a pequena . E , longe, a voz afflicta : « Sara ! »

Fez - se de volta sem pressa , d'olhos no céu , com

a saíta espadanando ao vento e resvalava ao longo

duma fraga, apoiando - se ás anfractuosidades , quando

se sentiu agarrada , sacudida aos safanões pela mãi ,

que rugia por entre os dentes cerrados :

-Onde é que ocê foi , diabinho ! Ocê não toma

emenda? Eu já não disse que não te quero lá fóra,

de noite ? Já p'ra dentro ! Empurrou - a . A pequena

tropeçou na soleira e , desamparada , rolou de borco aos

pés do pharoleiro , chorando . O homem levantou - se

de golpe , estendendo o braço a defender a filha :

-Deixa ella , Maria ! A cabocla , enfurecida , ex

plodia ameaças , mostrando o tamanco que tirara do

pé . Deixa ella ! insistiu o homem levantando a cri


464 CONTOS ESCOLHIDOS

ança . E , sentando - se, acolheu - a , alisando - lhe os ca

bellos humidos , afagando - lhe o peito ripado sob a

camisa fria. « Olha só como ocê tá molhada ! Tua

mãi tem razão . Vai mudar essa roupa ». Mas a pe

quena agarrou- se-lhe mais ao pescoço , com medo.

-O mar á noite é perigoso , minha filha . Tua mãi

tem razão . Ocê não vê a gente aqui com o pharol

acceso ? p'ra quê ? p'ra que os navegantes vejam os

perigos do mar , á noite . Qu'é qu'ocê foi fazer lá em

baixo ? A pequena sussurrou :

- Fui botar o dia fóra.

Hein ? Como é ? Botar o dia fóra !? Que dia ?

- O dia dali , da folhinha .

- P'ra que ? Ella tartamudeou palavras inintelli

giveis . Elle insistiu :

- Como é ?

-P'r'o tempo passar mais depressa mod'eu ir lá

em terra. O pharoleiro não conteve o riso.

-Bôba ! A cabocla resmungava á beira do fogo

escaldando , aos sacolejos d'agua , o sacco de café ; e o

homem , muito meigo , mas dando á voz expressão ter


CONTOS ESCOLHIDOS 465

rifica, aconselhou : Isso não se faz , minha filha. O dia

ainda não acabou . A gente só tira o papel da folhinha

de manhan, com o sol novo . Ninguem toma a dian

teira do tempo , é peccado . Nosso Senhor castiga .

A'idéa de um castigo de Deus a pequena vibrou

num estremeção violento e , esgazeada , boquiaberta ,

num grande medo supersticioso , abraçou -se com o pai

afundando o rosto no peito robusto a que se achegara .

E chorava , pensando com arrependimento : « Se pu

desse apanhar a folha que lançara ás aguas , com o

dia ainda vivo ...? ! Se pudesse ! ... »

Recusou a ceia de café e bolacha e , deitando - se ,

não pôde conciliar o somno , torturada pelo remorso

daquelle peccado .

As ondas fragoravam no silencio e o estrondo esca

choante aterrava- a e commovia - a como se fosse o ago

niado gemer do dia a debater- se no mar.

Os pais recolheram-se. A lamparina ficou sobre a

mesa vasquejando num tremer de sombras.

Revolvendo-se na cama, insomne , com o coração

em estúos , o ouvido attento , escutava estarrecidamente


466 CONTOS ESCOLHIDOS

os rumores nocturnos . O crebro bater da porta ás


lufadas do vento fazia-a tremer ! ...

Cobriu a cabeça e , encolhida , com os joelhos no


queixo , immovel , poz - se a rezar. Por vezes , num uivo

de tortura , o vento enchia a noite de angustia. Mas

andaram na sala ; o pharoleiro pigarreou , tossiu . Houve

um tinir de louça . Abriu-se uma luz mais clara . En

tão , repellindo a coberta , Sara sentou-se e , em voz

surda , estrangulada , chamou o pai . O pharoleiro acu

diu, agasalhado em grosso casacão , um gorro de lan


enterrado até ás orelhas .

-Uai ! ocê tá acordada ?

-Que horas são ?

-E' quasi meia- noite .


- Ainda não é amanhan ?
-Ainda não.

-Está custando tanto ! ... E se não amanhecer

mais , meu pai ?


-Como se não amanhecer ? Ocê tá sonhando ?

- Papai não disse ? Por causa do dia que eu


botei fóra, ainda vivo?

-Ora ! Accendeu o cachimbo . Dorme , deixa de


CONTOS ESCOLHIDOS 467

medo . Fel- a deitar-se , cobriu- a . Nosso Senhor perdoa

por esta vez . Mas não faças mais , ouviste ? Dorme .

E, tomando a lanterna , foi - se vagarosamente para

revezar- se com o Bruno , lá em cima .

Sára , dantes irrequieta e afoita , destemerosa nas

abaladas pelo ilhéu , ás ribas e penhascaes , algares e


cafurnas retrahiu - se em temor desde essa noite . Mal

sahia ao remonte fronteiro á casa , de onde olhava o

mar azul ao sol ou dum verde sujo nos dias brumosos


quando as gaivotas revoavam mais assanhadas , ás vol

tas nos ares fuscos ou rastejando a espuma . Ali ficava


contemplativa , abstrahida em scismas de tristeza .

Emmagrecia a olhos vistos , sacudida por uma tosse


rouca que lhe recavava o peito .
A's vezes deitava - se numa molleza flacida , com a

cabeça a doer, a boca secca e acre , uma sensação de


calor em todo corpo , como se estivesse ao sol . Cho

rava sem causa , em crises repentinas e , com medo de


que a vissem, descia ás furnas , enlapava-se e , na solidão.

sombria, as lagrimas corriam-lhe dos olhos em silencio .

Dezembro estava a findar, radioso e quente . O mar


30
468 CONTOS ESCOLHIDOS

resplandecia dum azul forte , retinto , broslado de es


puma. O céu , sem uma nuvem, todo elle translucido

de fimbria a fimbria , com o sol em disco enorme e

coruscante , refulgurava. Madrugadas e crepusculos


eram maravilhas de serenidade e cor.

Na tarde de 31 , ao fim do jantar , o pharoleiro ,


que olhava os longes , falou da demora do barco das

provisões . E a cabocla , já preoccupada com o facto ,


resmungou :

<< Bem se importam elles com a gente . Estão em


terra , têm tudo ... Mez de festas , ora ! Os mais que
se arranjem » . Bruno não disse palavra , fumando .
No silencio a pequena falou timidamente :
-E a folhinha que está no fim ... já não tem para
amanhan .

-E' , disse o pharoleiro com indifferença . O anno

está acabado , graças a Deus !

-E o outro ? perguntou Sára de olhos muito


abertos .

-O outro ? O outro ha de vir .

-Se elles chegarem, ajuntou ella com melancolia

presaga . A' noite , antes de deitar - se , ainda ouviu a


mãi alludir ás festas do Natal em terra , recordar os
CONTOS ESCOLHIDOS 469

bailados pastoris , a visitação dos presepes , os ranchos

de Reis , toda a suave poesia do mez santo . E ali ,

ali o mar , o mar deserto , infinito , e o céu mudo .

Lá para as tantas , estridores despertaram - na - o quarto

atroava aos esbarros da porta . Pelas frinchas e abertas

entravam livores de relampago e a casa aquecia em

um abafamento asphyxiante .

Sentou - se na cama . Houve um estrépito de raio

e logo , com furioso estardalhaço , a chuva bateu nas

telhas estrondando em pedradas .

A cabocla saltou da cama espavorida, correu des

calça á mesa e , tomando a lamparina , foi collocal - a

na commoda , diante da imagem do Senhor dos Passos .

Outro estrépito estalou e toda a casa reluziu ao

clarão pallido . Golpes de vento abalavam as vidraças ,

pannos lufavam nas cordas agitando sombras tragicas ,

e as vagas estrugiam investindo ao ilhéu , ouvia- se- lhes

o embate violento e , em seguida , no desmanchar das

aguas , o ruido fervente das espumas que se esparri

mavam alagadoramente . Trovões detonavam, ribom

bavam rolando em repercussão profunda .


470 CONTOS ESCOLHIDOS

Os dois homens lá estavam em cima , no lanternim

da torre, illuminando o mar aspero .

E a chuva cahia torrencial , ás rajadas , com a furia

de trombas d'agua que rebentassem sobre a casa .


Sára , encolhida , rezava , não por si , mas pelos que

vinham da terra, pelos que deviam vir sobre as vagas ,

no largo barco das provisões , trazendo os dias do


anno novo . E se não viessem, se não chegassem a

tempo com a folhinha , como viria o sol ? Tremia ,

batia os dentes e lá fora, á borrasca furiosa , o mar

esbravejava . E se elles houvessem naufragado ? Que


seria do mundo sem o sol ? Nosso Senhor nos salve !

Nosso Senhor nos salve ! » .

A cabocla vestiu - se estabanadamente , embiocou- se

no chale , foi ao armario e , tomando alguma coisa ,

caminhou direita á porta com um bater sonoro de

tamancos . Teve um momento de hesitação medrosa ,

mas , resmungando , persignou-se e , decidida , deu volta

ao loquete , passou atravéz de uma lufada e , mettendo

a mão pela abertura por onde o vento esfusiava , fechou

a porta.

Sára tiritava , batia os dentes . Sentou - se na cama

1
CONTOS ESCOLHIDOS 471

retransida , retorcendo as mãos . Tentou levantar - se

para seguir a mãi ao pharol , ficar lá em cima , no meio

da gente , olhando o mar alumiado , descobrindo , talvez ,


o barco , mas tremia tanto e a noite estava tão es
cura ! ...

Desceu de vagarinho . Um trovão explodiu vio

lento , estatelando-a no meio do quarto . « Minha Nossa


Senhora ! » Correu ao canto onde se achava a folhinha ,

olhou- a de longe , com medo ; adiantou -se , apalpou- a ,

quiz levantar a folha do ultimo dia , que estava collada

ao papelão . Insistiu cautelosa , mas não evitou rasgar


um pedaço da margem, levantou -a , conseguiu des
tacal - a e o fundo appareceu , branco e vasio . Era
o fim .

E o sangue bateu - lhe no coração oppresso , cons

trangeu-se-lhe a garganta em um arroxo de estrangu


lamento . Quiz gritar, correr para a porta , fugir ...

Foi de encontro á cama, com a cabeça a zoar, os

olhos em fogo , flammejando ascuas .

O quarto alumiou -se em um instantaneo fulgor .

Um estampido fremiu , outro logo mais forte , como se


o céu houvesse rebentado .

Dirigia-se á porta , quando um ruido estranho reper


472 CONTOS ESCOLHIDOS

cutiu lá fóra . Clareou de novo , em luz funebre . Se

riam elles ? Deviam ser , com o sol . Os relampagos

abriam-se tão seguidos como luz tremula que o vento

agitasse como fazia á chamma escassa da lamparina .

Era o sol que vinha pelas aguas tempestuosas , subindo ,

descendo nas vagas roleiras .

Envolveu-se no cobertor , correu á porta , deu volta

ao loquete . O batente , escancarando - se com o impeto


da ventania , levou-a á parede . A lamparina apagou-se .

A chuva grossa escachoava , em bátegas , na sala .

A pequena ficou diante da treva , recebendo no corpo

as rispidas cordas d'agua e novo clarão , afuzilando o


negrume, offuscou-a .

De impeto , como se a impellissem , lançou - se de


ilhéu afóra , atravéz da tormenta.

Ao deflagrar dos relampagos o massiço emergia 1


tragico , reluzindo , como uma vaga immensa toda en
volta em espuma .

Sára não sentia a chuva - ia em frente , direita á

riba de onde lançara o dia ao mar .

Escorregava em resvaladios , tropeçava em cristas ,


mettia os pés em cascabulhagem e , encharcada, com

a roupa apegada ao corpo , corria .


CONTOS ESCOLHIDOS 473

O oceano estrondava e quando , aos lividos clarões ,


as aguas reluziam negras , viam-se-lhes alambores de

escarceus, altos , soberbos vagalhões emplumados de

espuma , e longe , no brilho sinistro , o marouço enca

pellava- se conflagrado , arremettendo ao ilhéu preci

pitoso , desordenado , sotopondo - se uns a outros , e ,


cavalgando - se , rebentavam na costa saxea tonitruosa
mente .

Sára estacou num alto, chorando . O ceu abria- se


de instante a instante em fulvas cicatrizes e tudo em

torno , nuvens e vagalhões , flammejava em livor . Tro

vões estalavam com estrondo de catastrophe , fitas de


fogo serpeavam. Era o fim do mundo ! « Virgem Mãi
do Céu ! »

E o sol ? que seria feito delle ? Pobre gente que

o trouxera ! E o ilhéu ? lá andava tambem em pedaços

no mar . Eram as espumas encapelladas que lhe pa


reciam crostas da ilha, boiando aos rebolões na bor
rasca . Não esperou mais . Na ancia desvairada de

ver lançou-se , em delirio , pelas lombadas do escolho .

Subia ás rampas , descia aos vallados . Súbito , num


relumbrar mais largo , teve um grito de triumpho . Lá

vinha o barco ! Lá vinha , com o sol . Vira-o bem ,


474 CONTOS ESCOLHIDOS

num flagrante . Lá vinha ! Eram os homens que tra

ziam o livro do Anno Novo , as folhas de luz , as folhas


de sol.

Escorregou pela encosta da escarpa , cahiu num


vão , entre penhas , onde o mar raivava engasgado .

Afundou na agua de chôfre e , antes que se pudesse

agarrar a alguma aresta, a vaga , que subia , recuando

em resorvo , arrastou-a.

Debatendo - se na profundeza , entalada entre bórdas

penhascosas , escabujava , sentindo correr sobre ella o

mar furioso . Ergueu -se tonta , desatinada , afflicta , arre

vessando golfões d'agua , com os cabellos empastados


no rosto.

Aterrada, em agonia, agarrou - se á pedra — outra


vaga arrancou a, embrulhou- a, levou-a aos rebolcos e

encontrões pelas bordas do rochedo , atirou -a á penha

e trouxe-a de reboleio , deixou - a varada numa chan

fradura . Ainda um clarão , ainda um ribombo . Ia

gritar, mas outra vaga passou , tomou- a , levou -a acima ,


trouxe-a de rasto e assim , durante a noite , o corpo

andou naquella redouça d'agua , acima e abaixo , no

vallo , ao rythmo dos vagalhões .


CONTOS ESCOLHIDOS 475

Pela madrugada abonançou , o vento cahiu , o mar,


ainda crespo e lúrido , arrufado de espumas , rolava

grosso . As nuvens corriam ao vento , o céu foi lim

pando- se em rasgões de azul e um sol triste appareceu ,


brilhou um instante , sumiu ; reappareceu , ainda o co
briram nimbus até que surgiu livre em campo azul

vivido, resplandecente , espalhando no ar e nas aguas e


pelo costão do ilhéu a claridade e o calor do novo dia.

Tres vultos iam e vinham por alcantis e algares

bradando desesperadamente . As gaivotas celebravam


em vôos barulhentos a volta do bom tempo . O mar

ia ficando azul , e no fundo do vallo ia e vinha na

mareta o corpo da pequenina que não vira o sol novo


e a terra verde além do mar, além do céu , além !

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1

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INDICE
INDICE

PAGS.

I Pombos viajantes . 9
C
2 O baptismo 15
3- Ritornello . 21
4 -Os velhos . 33
5 Lenda do rei avaro 151
6- O berço. 165
7 -A morte 171
8 Corações loucos . 189
9 -A gotta d'agua e as nuvens . 199
10 - A arvore que cantava 211
II- O ambicioso . 225
12 -Os pais . 237
13- Viuvas 251
14-Alvorada 261
15- Fertilidade . 271
16 - Os gatos do reverendo . 369
17-Expulsa. 377
18 A vaquinha branca. 387
19-0 trigo . • 399
20- O inglez 407
21 Ruinas . 423
22 -A honra 431
23 A torre de marfim 437
24 Attracção da terra
. 451

IMPRESSO NA TYPOGRAPHIA CATILINA


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U.C. BERKELEY LIBRARIES

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