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DEPOIS DO TERREMOTO
SUBSÍDIOS PARA A HISTÓRIA
DOS BAIRROS OCIDENTAIS DE LISBOA
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ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA

Q. DE MHTOS SEQUEIRH
DA ASSOCIAÇÃO DOS ARQUEÓLOGOS PORTUGUESES

Depois do Terremoto
SUBSÍDIOSPARA A HISTÓRIA
DOS BAIRROS OCIDENTAIS DE LISBOA

VOLUME IV

COIMBRA
Imprensa da Universidade
1933

V. V
PREFÁCIO

Este quarto volume da obra Depois do Terre-

moto, cujo primeiro saiu em igi6, só agora se

publica por ra:{ôes de ordem vária, das quais meneio-

narei apenas aquelas cuja responsabilidade me per-


tence eque derivaram da escasse:{ absoluta do tempo

que me é permitido utilizar nestes devaneios literá-

rio-arqueológicos.

De há ano e meio para cá que, dada ordem

para a impressão deste tomo, só muito recentemente


achei horas, livres e repousadas, para a refundição

de parte da matéria, para a adição de novas noti-

cias, colhidas durante este parêntesis, e, sobretudo,

para novas inculcas respeitantes a actividade fabril

do século xviii, sem as quais ficaria muito incompleto


o meu trabalho, visto que neste volume final se trata
desenvolvidamente do Real Colégio de Manufac-

turas ideado por Pombal.

A documentação contida nos muitos centenares


de massos e de livros da Junta da Administração
das Fábricas do Reino, deu-me larga contribuição

para o estudo crítico, artístico, técnico, e histórico

das oficinas fabris do bairro das Amoreiras^ princi-

palmente no que dt^ respeito à célebre Fábrica de

Loiça do Rato, a mais nomeada delas todas.

Sem a consulta desses milhares de documentos

nada se pode escrever sobre as nossas indústrias


setecentistas ; mais ainda, nada se pode avançar a

di{er sobre a nossa História Económica. O leitor

achará nestes centos de páginas, escritas sem preo-

cupações literárias, mais do que as essenciais para

VI
florir um pouco o árido terreno trilhado, muitas

coisas novas, muitas surpresas quanto à técnica dos

artífices do Rato, quanto à sua produção artística,

quanto à história movimentada 'de tentativas, de

êxitos e de falhas da nomeada fábrica pombalina.


O mesmo se pode di:(er, embora em menor escala,

quanto às suas irmãs, menos felizes e menos conhe-

cidas.

O resto do volume trata do Aqueduto das Aguas


Livres, da Casa da Agua, historiando a introdução
da água em Lisboa desde os tempos mais remotos,
e ainda dos sítios de São João dos Bemcasados, da

Cru^ das Almas, do Arco do Carvalhão e de Catn-


polide, com os seus palácios, os seus moradores e
as suas recordações. Um relato das antigas forti-

VII
ficaçÕes^ um lançar de olhos sobre o vale de Alcân-

tara^ uma evocação do último ataque dos migue-

listas a Lisboa, fecham o volume.

O leitor que ainda se letnbrar dos anteriores

volumes e não estiver arrependido de os ter lido^

vire a folha e comece por saber que, em i83S, foi

posta à venda a Fábrica do Rato cujas faianças lhe

ornam, talve^^ a mesa de jantar e a banca de tra-

balho.

VIII
CAPITULO I

Sumário: Chegamos defronte da Fábrica do Rato e diz-se onde


era a oficina. —
Toponímia da rua e seus moradores. A —
propósito de faianças cita-se a Cerâmica Portuguesa e evo-
ca-se a figura de José Queirós. —
A importância do seu tra-
balho e a — A moda das faianças.
sua rara intuição artística.
— Uma opinião de Acúrcio das Neves. — O autor pára e tenta
traçar o quadro retrospectivo da Cerâmica Nacional. — É cha-
mado depor o Foral de Lisboa de i5co.
a — Prova-se que se
não fabricava faiança no país, nessa data. — As «mállegas» de
Talavera, Sevilha e Valença. — Inventários reais. — O Regi-
mento dos Oleiros de 1572. — O que dizem João Brandão e
Cristóvão Roiz de Oliveira, no Tratado da Abastança e no
Sumário. —
Os Fornos do Moinho de Vento e as providên-
cias daCâmara contra a extracção de barro do Castelo, da
calçada do Combro e da Cotovia. — Os oleiros de Santa
Catarina, Jesus, São Bento e Janelas Verdes.— Faz-se uma
— Mencionam-se os locais onde se vendia a louça no
lista.

século — Documentos pintados de faianças quinhentistas.


XVI.
— O falso «canudo» de iSSg e a falsa «Escola Cerâmica dos
Freires de Palmela». — Um parecer que se não justifica quanto
às peças brazonadas. — Quando começou em Lisboa a fabri-
car-se faiança.— O oleiro que veio de Talavera. — Uma con-
fusão esclarecida. — O que se chamava «porcelana» no sé-
culo — O arco dos oleiros na recepção de Filipe em
xvf. II

1G19 e um romance de Rodrigues Lobo. — O comércio da


loiça oriental e um presente do Cardial-Rei ao Papa.

De páginas SgS a 402 do terceiro volume desta obra


falei no palácio Praia e Monforte e agora voltamos,
novamente — o leitor e eu —a ocuparmo-nos dele.
Na parte do edifício que volta ao norte para a cal-
çada da Fábrica da Louça e nos terrenos (hoje jardins
VOL. IV i
do palácio) que lhe ficavam nas trazeiras, até entestar
com a rua das Amoreiras (antiga dos Arcos das Aguas
Livres) esteve até i835, instalada a conhecida e nomeada
Fábrica da Loiça do Rato. O nome que até há pouco
teve a calçada servia-lhe de atestado, mas a quem peça
documento comprovativo aqui o dou no presente antjn-

cio:
Vai á praça no dia 21 de setembro de i835, pela
((

quantia de 5.6oo^ooo reis : o edifício em que se acha


estabelecida: confronta pelo i\ com a muralha da Casa
da Agua, S com a casa do Conde de Viana, nascente
com a calçada da fábrica da louça, poente com a rua
Direita do Arco das Agoas Lii^res; cof7ipõe-se de um
grande páteo de entrada, tendo no fim um tanque, que
recebe uma penna de agua do Aqueducto Geral das
Aguas Livres, armarem de venda, casas de deposito da
louça, casas das rodas com estufa, casa de pintura,
outra de moer vidro, tanques de apurar o barro, ca-
vallariças, palheiro, tojeira, quatro fornos de co^er
louça e um de fa\er o vidro, mais seis casas para de-
posito e guarda louça manufacturada, barro e resi-
dência do Administrador» (i).

A calçada da Fábrica da Louça foi serventia nas-


cida com a fábrica. Só em 1801 é que, pela primeira
vez, surge a designação de calçada da Loiça e, em
i8o5, a de 7^ua da Fábrica de Loiça. Até ai vejo
citar-se apenas o Sitio da Fábrica, juntamente com o

(i) Anúncio publicado no jornal A Revista, de 19 de Setembro


de i835. Foi-me indicado pelo meu amigo e distinto investigador
sr. António César Mena Júnior.
— — 3

de Mouserrate e o de Sobre a muralha. Nesse ano


contava cinco fogos.
Em i8i3 chamava-se-lhe rua da Calçada da Loiça.
Morava então aí a família Travassos Valdez. De
1826 a 1828 residiu igualmente na rua o Principal
D. António da Câmara; de 1829 a 1884 o conselheiro
José Joaquim Rodrigues de Bastos. Já então era co-
nhecida por esse nome.
D. Francisco de Melo Manuel da Câmara aqui mo-
rou tambe'm de 1870 a 187 1 e o conselheiro Augusto
César Cau da Costa em 1874(1).
Actualmente chama-se a esta serventia calçada
Bento da Rocha Cabral, em homenagem ao fundador do
«Instituto» que hoje ocupa um dos prédios da rua (2).

Esta Fábrica da Louça, que até nem já no nome da


rua figura, sugerindo ao público a evocação dessa ofi-

cina industrial do século xviii, foi uma das principais


senão a principal da Colónia Fabril das Amoreiras
criada pelo marquês de Pombal e cujos vantajosos re-
sultados já é supéríluo encarecer. Foi a primeira a esta-
belecer-se, e a que melhores e mais abundantes frutos
produziu.
As faianças do Rato figuram hoje nos museus e nas
colecções particulares, como peças do maior apreço,

(i) Róis dos Confessados da freguesia de São Matuede, anos


citados no texto.
(2) O Rento da Rocha
"Instituto de Investigação Scientífica
Cabraln fundado em 1922 por determinação testamentária
foi
deste benemérito, sendo encarregado da sua instalação, por idên-
tica determinação, o Dr. Matias Boleto Ferreira de Mira. Foi
reconhecido oficialmente por decreto de 11 de Agosto de 1922,
~ 4 —
mas durante muito tempo ninguém lhes ligava a menor
atenção.
Deve-se, incontestavelmente, a Joaquim de Vascon-
celos, no norte, e a José Queirós, no sul, a divulgação
desse gosto e desse culto artísticos. Os coleccionadores
de arte começaram a interessar-se e a multiplicar-se,
arranjou-se mercado para as «travessas» e para as
«terrinas», para as «figuras» e para os «golfinhos»',
para os «gomis» e para as «bacias de água às mãos».
A faiança da velha oficina pombalina não estava
identificada e nas grandes colecções a classificação
estave por fazer.
autor da Cerâmica Portuguesa inventariou mar-
cas, definiu tipos, estabeleceu balisas. Gomo obra de
iniciação é formidável.
^- Caiu em erros? Caiu. (.• Confundiu-se algumas
vezes ? — é certo.

1 Mas quem não cometeria essas faltas, examinando


separadamente milhares de peças sem possibilidade de
as cotejar uma hoje, outra amanhã, outra de aí a um
;

mês, em Viana, em Lisboa, em Coimbra, à custa de


um trabalho insano e disperso, fragmentário e isolado ?

Os erros eram fatais. Eu, que tive, com Alberto de


Sousa, de identificar e de classificar as faianças da co-
lecção Ameal —
oitocentas peças das mais variadas épo-
cas e origens, em que pude observar bem a vastidão e
a dificuldade do problema, vendo como era fácil esta-

belecer a falsidade de algumas, por comparação, e como


era difícil classificá-las, isoladamente, — avalio a dificul-

dade da empresa, de sciência certa. O célebre «ca-


nudo» datado de 1689 que enganou Queirós e que
enganaria outros que o vissem, era falso como Judas,
feito, como outros, por Pereira Cão.
A importância da Cerâmica Portuguesa creio que
ninguém a pôs ou porá em dúvida. José Queirós, cujo
espírito encantador evoco sempre com saudade, amigo
de verdade, português às direitas, figura pitoresca e

característica do seu tempo, foi o iniciador. Sem êle


não seriam possíveis os trabalhos de investigação e de
análise que hoje honram a nossa literatura neste ramo
da arqueologia artística, os livros de Quim Martins, do
Dr. Vergílio Correia, do Dr. Luís de Oliveira, de An-
tónio Augusto Gonçalves, e ainda agora, recentemente,
do Dr. Pedro Vitorino, livros que chegaram a conclusões
definitivas sobre a história da Cerâmica Nacional. Sem
o seu trabalho de organizador, de divulgador, de entu-
siasta propagandista, que motivou a exposição das
faianças da Torrinha, ali defronte de S. Julião, e a
Exposição do Carmo em 1914, não seriam possíveis as
fábricas de Campolide, a da rua de Santana, de Leo-
poldo Baptistini e outras que se estabeleceram à conta
da moda das faianças nacionais, por êle criada, e que
não consentia que numa sala de jantar, num salão,
num quarto ou num escritório, não figurasse um prato,
uma jarra, um tinteiro ou um gomil de faiança portu-
guesa.
No Porto a acção de Joaquim de Vasconcelos, cuja
lição serviu ao autor da Cerâmica, foi idêntica. José
Queirós linha uma rara intuição artística. Pegava numa
peça de loiça e dizia «E do Rato» ou: — «E de —
Viana». Se lhe preguntassem a razão do asserto, não a
saberia dizer. Sentia-a apenas. As coisas portuguesas
falavam-lhe, entendiam-se com êle.

Ouvi-o, uma vez, defronte de um «bacio de san-


gria», dizer muito naturalmente :

—É do Norte.
—O Queirós, retorqui-lhe eu, mas não vê a faixa
habitual do Rato.
— Já lhe disse que era do Norte.
— Mas . .
— Você porá os fiias que quiser, mas êlc é que é do
Norte.
E era.
Se fosse vivo, que alegria teria êle agora, vendo jus-
tificadas e documentadas a maioria das suas hipóteses,
dos seus projectos, e dos seus pressentimentos de artista
Queirós nem sequer visionou toda a importância da
obra que escreveu. Se cie soubesse o que eú hoje sei

da Fábrica do Rato, pasmaria de si mesmo. O ca-


rácter variado da produção, os sucessivos ensaios ali

feitos empastas e em vidrados, a identidade dos artistas


que lá trabalharam temporariamente e que estiveram
também noutras oficinas, produzindo idênticas peças com
marcas e origens diferentes, obrigando mais a investi-
gações de autoria do que às de fábrica, a te'cnica e a his-

tória do azulejo setecentista de Lisboa, os inventários


da fábrica ennumerando peças e preços, toda a história
artística, técnica e industrial da velha oficina pomba-
lina, se êle soubesse agora isto, que legítimo orgulho e
satisfação não sentiria, que mal tocara
êle num do-
cumento e mal roçara pela Torre do Tombo !

Ao tratar das faianças, neste meu largo passeio evo-


cador que me trouxe à calçada da Fábrica da Loiça,
mal me ficaria que não trouxesse até mim a figura de
José Queirós. Com ela me acompanho com a sua
;

amizade e com a sua recordação.

Aciírcio das Neves escreveu sobre


esta Fábrica do
Rato. O que lhe dedica no seu conhecido
capítulo
livro Noções Económicas Históricas e Administrativas
sobre a produção e Manufactura das Sedas em Por-
tuL^al, e particularmente sobre a Real Fabrica do Sn-
buvbio do Rato e suas atiexas, impresso em Lisboa em
1827, começa assim :

<LPar a fazermos alguma ideia da louça que antiga-


f?ieute se fabricava em Portugal^ veja-se a que ainda

hoje sai das nossas olarias, e de-se-lhe o desconto do


muito que ellas se tem aperfeiçoado, depois que temos
algumas fabricas desta manufactura de melhor quali-
dade, as quaes nunca entre nós passarão de medíocres;
e assim mesmo tem origem italiana» (i).
Pelo desacertado juízo sobre os produtos da época
que lhe permitia profetizar a sua futura imperfeição,
pode-se ajuizar sobre o restante desacerto das opiniões
artísticasdo laborioso escritor. As suas críticas me-
recem, por isso, pouca confiança. O mesmo se não pode

dizer quanto à parte económica e administrativa dos


estabelecimentos fabris de que trata o seu livro. Aí é
seguríssimo, e por isso, só nessa orientação lhe segui-
remos o escrito, que, aliás, é pouco desenvolvido.
Foi nos papéis da antiga Junta de Administração
das Fábricas do Reino (oitocentos volumes e maços,
acantoados no Arquivo Nacional) que colhi a maioria
das noticias que aqui dou ao leitor. Sem a sua con-
sulta, sem mergulhar em cheio dentro dos Inventários,
das Ordens, das Consultas, dos Requerimentos, dos
Livros de Contas e dos apontamentos avulsos, é impos-
sível escrever-se, seriamente, uma linha sobre a história
económica do século xviii e sobre as indústrias nacio-
nais, revigoradas umas e criadas outras, pelo esforço
de Pombal e dos seus, às vezes esquecidos, auxiliares.
Antes, porém, de entrarmos nessa narração artís-

tica, técnica e industrial, entendo convir esboçar, a traço


largo, indicando, sucintamente quanto possível, quais
as conclusões feitas até hoje e quais as hipóteses dignas

(1) Páginas aSg a 240.


—8-
de se manter, no tocante a esse ramo da actividade
artística portuguesa.
Perdoe-se a digressão.

Começou-se a fabricar faiança em Portugal na se-


gunda metade do século xvi. Anteriormente a esta data
os nossos oleiros apenas feituravam barros vermelhos,
lustrados ou vidrados, de vermelho, de verde, de branco
e ainda de amarelo, seguindo a escola árabe e modifi-
cando a pouco e pouco as formas tradicionais.
Já no «Floral de Lisboa», concedido pelo primeiro

soberano português, se prescreve que os moradores da


cidade hajam livremente tendas, fornos de pão e de
ólas(i).
A primeira data que aparece para estabelecer uma
balisa de estudo é o último ano do século xv. O «Fo-
ral de Lisboa» dado por D. Manuel em i5oo não deixa
dúvidas acerca do seguinte facto: — Nessa data não se
fabricava faiança no pais. A telha e o tejolo são tri-

butados nesse documento (verdadeira pauta alfandegá-


ria) com a di\ima pelo fabrico ou pela entrada por

(i) Isto de o/cí qucre dizer genericamente wisos de barro, em-


bora particularmente se refira a certas vasilhas, pequenas, de barro
vidrado, também conhecidas pelo nome de púcaros. Em caste^
lhano ola significa também um certo prato composto de carne de
vaca ou de carneiro, toucinho, grão e outros adubos. Corres-
ponde à nossa panela caseira: sopa e coijido. Na linguagem figu-
rada castelhana, o púcaro — puchero, como eles dizem — entra em
grande escala.
Cá de portas a-dentro apenas doufé dos dizeres populares

púcaro e de casa e pucarinho, em que esta vasilha


tirar nabos do
entra como símbolo de curiosidade habilidosa e da mais cstieita
intimidade.
Foz, e com o direito de sacada pela entrada ou saída
da cidade. A louça não vidrada, vinda de fora do reino
por terra, pagava portagem, assim como saindo dele.
Vinda por /oós pagava dízima, e a do reino, vidrada
ou não, pagava por entrada ou saída da capital três
por cento do valor jurado. No capítulo Málega c A:{u-
lejo, só se taxam as loiças deste género vindas de fora

do reino por terra ou por foós, com o dirimo adua-


neiro, sem se considerar o seu fabrico cá, prova evi-
dente de que êle se não fazia.
No seguinte capítulo epigrafado Louça diz precisa-
mente o foral
aEhos mandarem pêra suas
vizinhos de Lisboa, que
quintaãs fora da dita cidade, termo mallega de Va-
e

lença ou d'outra qualquer parte, ou azulejos, ou louça


da terra, ou tejollo para seu serviço, e uso de casa,
nom pagarão ho dito direito de sacada».
E
no anterior
«£' se ha dita mallega e azulejos aportarem, ou

entrarem em algu outro logar, e porto do Reyno, assi


do mar, quomo da terra, e hi se pagar seu direita, se
depois vierem a ha dita Cidade, posto que polia foós
venham nom se pagara aqui mais direito da entrada
etc.

Mallega para os portugueses do século xvi era loiça


vidrada branca.
A faiança, pois, não se fabricava em Portugal, em
i5oo. Vinha-nos de Espanha: — de Valença, de Tala-
vera, de Sevilha, e recebia-se e tinha-se como coisa de
grande luxo.
O
Tratado da Magestade, Grandeza e Abastança
da Cidade de Lisboa (Estatística de Lisboa de i552)
publicado em iq23 por Gomes de Brito e Vieira da
— IO

Silva, que o anotaram eruditamente, diz-nos que de


Sevilha, Talavera e outras terras de Castela, nos vi-
nham essas louças cujo comércio anual orçava por
I i.5oo cruzados.
Por outro lado nos Inventários das nossas princesas
figuram peças variadas dessas proveniências.
No inventário da infanta D. Beatriz, mãe de D. Ma-
nuel, enfileiram-se entre a loiça de botica; búrneas de
mallega^ bacios de mal lega de Valença, tau/ores de
Mallega, panellas de Valença^ craveiro de Valença^
potes de Mallega de Castela, altemias e almojias de
Vallença^ salsinhas e pratos de Mallega de Valença,
etc. juntamente com arredomas, almotoliasverdes, potes
de consenti, salsinhas de bordas, bacios de bordas e

chaõs, abados, alguidares que porventura seriam de


barro brunido, ou vidrado, nacional.
Aparecem mmhém, jarras de barro de RodliesQ),
potes de barro forrados de rergua, o que é uma sur-
presa, vasos com enxarope de avenca (dignificação ar-
queológica para o capilé lisboeta) e bacios de pisa, que
Quim Martins supôs serem oriundos de Pisa mas que
eram, de-certo, os comesinhos almofarizes de pisar (i).
A baixela de pau também figura no inventário —
gamelas, bandejas, escudelas, trinchos, bacias, salsi-

nhas, saleiros, castiçais e colheres — artefactos que,


em geral, vinham de Flandres, mas que também já cá
se fabricavam.

Os oleiros alfacinhas produziam, como em Coimbra


e noutras terras do país, loiça vermelha, loiça verde e

branca vidradas e ainda vermelha vidrada.

(i) Cerâmica Coimbrã no século XVI, por J. M. Teixeira de


Carvalho, pág. 120 e seguintes.
1 1

o
Regimento dos oleiros de i62(3, copiado do de
ib-j-z por Nunes de Leão ou de outro qualquer,
feito
alterado deste, feito no último quartel do século xvi,
assim o dá a entender (i). Os oleiros de louça ver-
fjielha fabricavam telhas de água, cântaros, potes,
quariões, atanores, panelas, asados, almotolias, púca-
ros, candieiros e outras peças miúdas os de loiça ;

vidrada verde, panelas, almotolias, tachos, infusas, pra-


tos, canos para telhados, frigideiras, servidores, mále-
gas e escudelas da feição de porcelana ; os de loiça
branca de Talaveira, almofias de boticário e grandes
de pé, galinheiros (pratos grandes), albarradas, redo-
mas, boiões e panelas de botica (2).
Por este documento se vê que, ao acabar o terceiro
quartel do século, já em Lisboa se fabricava loiça branca
de Talavera, isto é faiança, imitando as faianças que
de Castela nos vinham.
Assim se explica que, em i55i, Cristóvão Rodri-
gues de Oliveira mencione 206 oleiros no seu Sumário
das Xotícias de Lisboa, citando além desta verba 16
telheiros, 22 tejoleiros e 32 ladrilhadores, afora 47 de-
buxadores e 76 pintores ceramistas (!).

O
Tratado da Magestade, Grandeza e Abastança
de João Brandão, marca no ano seguinte, na cidade,
60 fornos de louça assitn de barro como de vidrado
rendendo em cada ano 10.000 cruzados. Noutro pronto
menciona 70 tendas e casas em que fa^em louça de
barro e mais 10 casas de louça vidrada, ocupando na
sua laboração ao todo 210 pessoas, número que se

(i) Regimento dos Oleiros de Lisboa, em 1616, copiado de

outro anterior, publicado de páginas 202 a 210 na obra supra, e já


publicado também pelo Dr. Vergílio Correia.
(2) Outro Regimento de Oleiros foi decretado em 31 de Ja-
neiro de 1797 —
Publicação avulsa.
— 12

aproxima do que é referido por Cristóvão Roiz de


Oliveira.
Outros documentos do século xvi referem-se à pro-
dução da cerâmica nacional. Em i584 o padre Duarte
de Sande, no seu caderno de viajante (i) diz, falando
do monte de S. Gens ... ejn cujas rai\es ha muitas
olarias que trabalha?!! com muita perfeição loiça de
barro, por ser o de Lisboa muito bom para tais obras.

Toda a cumeada de S. Roque até Campolide foi


também assento de oleiros e olarias. E vai ver-se o
meu asserto.
No onde assentam hoje os prédios do lado
local
oriental da rua de D.Pedro V, ficavam, no principio do
décimo-sétimo século, em correnteza, até São Pedro
de Alcântara, muitos fornos de louça.
E o que nos diz o desenho, já inserto no primeiro
volume deste trabalho, e contido num dos códices da
«Colecção Pombalina» intitulado: Roteiro da Agoa
Urre e agoa de Montemor e mais fontes junto a cilas,
feitopor Pêro NuJies Tinoco, architecto de Sua Ma-
gestade, dedicado ao ilustre Senado da Ca!nara por
João Nunes Tinoco, architecto de S.S. A. A., flho do
architeto Pedro Nunes Tinoco, que fe\ o dito roteiro.
Anno de i6ji.
A diligência para a introdução da água em Lisboa
fora feita cinquenta e três anos antes, em 25 de Se-
tembro de 1618 (2).

(1) Arquivo Pitoresco, vol. 6°, pág. 72.

(2) Manuscrito B-5-23 da Colecção Pombalina da Biblioteca


Nacional.
K-> --

No ponto onde hoje assenta o edifício da Facul-


dade de Sciências, quando os obreiros, aí por i586 e
1087, examinavam o terreno para a edificação projec-
tada do noviciado dos jesuítas, viram ser todo ele cor-
tado de minas feitas npara a extracção do barro pelos
oleiros do sitio»^ diz um manuscrito anónimo, que cal-
culo ter sido escrito entre os anos de 1G20 a 1622(1).
Ora tudo isto nos está a dizer que, paralelamente
ao funcionamento dos fornos das olarias na raiz do
monte de S. Gens, estavam também em laboração
bastas oficinas na banda ocidental da cidade, como se
propôs demonstrar José Queirós no seu trabalho Ola-
rias de Monte Sinaj.
Esse núcleo de produção cerâmica, espalhado em
derredor de Santos (por Jesus, São Bento e cercanias),
ressalta das abundantes indicações cidadãs do «Registo
Geral de Testamentos», colecção hoje adstrita ao Ar-
quivo da Torre do Tombo. A menção da residência
dos oleiros testadores e das testemunhas, quási sempre
oficiais do mesmo ofício, levam-nos realmente a admitir
a existência de dois centros de produção apartados um
do outro.
Correndo, para outro fim, os Róis dos Confessados
das freguesias de Santa Catarina e de Santos, depa-
raram-se-me, no decorrer do século xvii, numerosos
oleiros e pintores de azulejo residindo nessas paragens.
A Frontaria de S. Bento —
Santos-o- Velho a —
travessa do Benedito (hoje do Oleiro), os Poiais de
S. Bento, a rua das Madres e a dos Arciprestes foram
assento de duradoiras oficinas, algumas das quais per-
maneceram largos anos na mesma família, como a dos

(1) Historia da fundação, augmento e progresso da Casa de


provação da Companhia de Jesus —
Capíiulo 8." (Colecção do
Ministério do Reino —
Torre do Tombo).
- 14-
Barhosas na Frontaria de S. Bento^ meado o sé-
culo XVII, a dos Antunes nos Poiais e outras ainda (i).

A providência municipal (Postura de 1610) proibindo


a extracção do barro na calçada do Combro, atesta a
afluência desses artífices na região indicada. O mesmo
já se tinhadeterminado quanto à encosta do Castelo,
por alvará de 16 de Julho de de i563(2).
Numa escritura existente no Arquivo da Misericór-
dia de Lisboa, datada de 1726, mencionam-se animas
casas e quintal que servem de olarias Jnnto ao convento
do Mocambo». Tudo indicações seguras da existência
de um largo núcleo ceramista nesta banda da ci-

dade (3).
Para a lista dos oleiros lisboetas que tinham ofi-

cinas e fornos neste lado ocidental de Lisboa, junto aos


quási duzentos nomes que José Queirós coleccionou
nas Olarias de Monte Sinaj e aos muitos que o Dr. Ver-
gilio Correia publicou em igi8 na Atlântida e na «sepa-
rata» depois vinda a lume, os seguintes

— Tinoco, cuja mulher faleceu em 19 de Março de


1598;
— Pedro Alvares, cuja mullier faleceu em 8 de Julho
de 1579;
— Domingos Fernandes, às Janelas Verdes, falecido em
27 de Maio de i58i ;

— Gonçalo Domingos, oleiro, cuja mulher, Joana Mar-


ques, faleceu (século xvi)

( 1
) Róis dos Confessados de Santos e de Santa Catarina —
Róis do século xvii —
de iG56 a 1700.
(a) Elementos para a Historia do Municipio de Lisboa., tomo i,

pág. 569, e tomo ix, pág. 258.


(3) O Arquivo da Misericórdia de Lisboa na Exposição Olis-
siponense de igi4', pelo sr. Victor Ribeiro, pág. 5i.
— ID —
— Margarida Fernandes, oleira, às Janelas Verdes, fa-

lecida em 26 de Janeiro de iSgy;


— Simão Tinoco, às Janelas Verdes, cuja mulher, Inês
Roiz, faleceu em 3 de Janeiro de i6o3 ;

— Tinoco, outro ou o mesmo, cuja mulher faleceu em


12 de Março de 1699;
— Jorge Fernandes, oleiro, cuja sogra morreu na rua
Direita em 10 de Dezembro de 1609;
— O oleiro da rua Direita, cuja mulher, Maria dos Reis,
morreu em 22 de Dezembro de 1599;
— Pedro Partucho, oleiro na rua do Pé de Ferro, fa-

lecido em i5 de Janeiro de 1614;


— Simão Roiz, oleiro, cuja mulher, Antónia de Moura,
morreu em 21 de Janeiro de 1614;
— António João, oleiro, da rua do Olival, falecido em
i5 de Janeiro de 1617.

Todos estes óbitos estão registados nos livros de


Santos-o-Velho. em cujo âmbito havia também uma
"travessa do Oleiro».
Na freguesia das Mercês (Santa Catarina) encontrei
os seguintes

— João Garcia, em cuja casa morreu um Luís Meiri-


rinho, em 21 de Agosto de 1398;
'
— João Benedito, oleiro, sogro de outro, casado com
Antónia André, falecida em 12 de Setembro de
i63o;
— João da Rosa, oleiro de loiça branca em casa de
Mem Alvares, embargado o seu casamento com
Leonor Nunes por estar vivo o primeiro marido,
Jerónimo Mendes, sirgueiro, ausente no Brasil,
em 8 de Julho de 1601 ;

— João do Couto, oleiro na rua de São Bento, defronte


da Horta, falecido em 27 de Abril de 1646;
— lO —
— Mem Alvares, oleiro, em cuja casa houve um óbito
em
28 de Dezembro de 1397;
— Luís Alvares, ladrilhador aos Fiéis de Deus. Fale-
cimento de sua mulher Maria Álvares, em 3 de
Junho de 1394
—O Oleiro de São Bento. Morte de sua mulher. He-
lena da Cruz, em 3 de Fevereiro de 1648.

Nos óbitos desta freguesia, aparece o nome de um


pintor (de louça 7)João Barques, talvez castelhano, fa-

lecido em 1-5 de Setembro de 1G45.


Nos livros de óbitos da freguesia do Loreto, vi,

também, estes dois assentos

— João Roiz, morador na rua dos Calafates,


oleiro, fa-
lecido em 6 de Junho de 1623 ; e
— Manuel Fernandes, falecido em 2Ó de Abril
oleiro,
de i626, morador na rua do Teixeira.

A contribuição é pequena, mas aqui fica.

A loiça nacional e porventura a de Castela, ven-


dia-se no século xvi, por baixo da «varanda» de umas
casas no Terreiro do Paço, que encostavam, pela parte
de trás com a muralha da cidade e que ficavam entre
o Arco dos Pregos e o do Açougue (1).
Fazendo referências actuais direi ao leitor que tais
varandas assentavam entre a rua da Prata e a rua Au-
gusta, seguindo uma linha obliqua que, principiando no

(i) As Muralhas da Ribeira de Lisboa, pelo sr. Augusto Vieira


da Silva, pág. 34.
— 17 —
canto da arcada da rua da Prata, se metia, perto do
Arco, na espessura dos edifícios dos ministérios.
Quem passa hoje por aquele troço da arcada, junto
ao posto da Cruz Vermelha, vai exactamente cami-
nhando pelo local das velhas tendas de louças quinhen-
tistas.

As varandas eram sustentadas por esteios de pe-


dra. Em iSyS chamava-se-lhe : a \^aranda Nova da
Cidade. Para do lado
ela se subia por três escadas : a
ocidental, que tam.bém serventia das casas onde
foi

poisava a infanta D. Maria a do centro, que ia do


;

Terreiro do Paço sair-lhe ao meio e a do lado oriental,


;

que ficava junta ao açougue da carne (i).


A venda do vidro também era ali feita por perto,
nos alpendres de uma travessa que estava entre o beco
do Açougue e a muralha fernandina, isto é, pouco
mais ou menos, à entrada da rua nova da Princesa,
para dentro das casas do lado ocidental (2).
Ainda no século xvn, e até mesmo no século xviii,
tinham as loiceiras, junto i\s fressureiras, os seus ban-
cos no Terreiro do Paço, como se vê de diferentes
posturas municipais, insertas na muito citada obra de
Freire de Oliveira (3).
Outro local onde as loiças se mercadejavam era no
Rossio, na Feira das Martens (têrças-feiras), e dois
dias antes do Natal, Páscoa e Pentecostes, como se
conclui do já citado Regimento dos Oleiros de 1672,
publicado em 1616, no seu número 17.
Parece também que, apesar da proibição de lá se
vender noutro qualquer dia, para o final da centúria,

(i) vl5 Muralhas da Ribeira de Lisboa^ pág. 38.


(2) Idem, pág. 04 e seg.
(3) Elementos para a História do Município de Lisboa, tomo ix,

pág. 3.

VOL. IV 2
— 1» —
havia aí pouso permanente de vendedores de faiança
e barro, porque um assento de óbito dos livros de
Santa Catarina, referido a uma D. Maria de Brito, re-
gistado em 8 de Novembro de iSgõ, menciona como
testamenteiro, João de Andrade, morador no Rossio
antre os loiícciros.
Mais tarde, outro terreiro de venda foi o largo do
Carmo, onde se fêz durante muitos anos feira de va-
silhas de barro para os crentes irem buscar à capela
dos Terceiros a «água de Santo Alberto», que ali era
benzida todos os dias 7 de Agosto (i).

Talvez na «Varanda Nova da Cidade» ou na «Feira


do Rossio» se encontrassem, então, à venda essas ga-
lantes infusas e albarradas que figuram nalguns qua-
dros quinhentistas, línicos documentos da faiança por-
tuguesa do século XVI.

O «canudo» datado de iSSg que enganou tantos in-

vestigadores, levando-os a conclusões erradas, e', como


vimos, falso ; outras peças, como os pratos de borda
recortada, a uma cor ou policromos, com cabeças ala-
das de anjos, que o sr. Dr. Luís de Oliveira supõe do
se'culo XVI, são, marcadamente, seiscentistas, pela téc-
nica e pelo caracter ; os pratos, decorados com brazÕes,
e com legendas denominativas que o mesmo investiga-
dor atribui, sem fundamento, à «Escola dos Freires de
Palmela», são dos séculos xvii e até xviii, como daqui
a pouco provaremos.
O vaso que figura numa das tábuas do Triplico de

(i) Sumário de Vária História, por Ribeiro Guimarães, tomo


IV, pág. 240 e 241.
— 19 -
Coimbra, atribuído a um «Mestre do Paraíso» e datada
de i33i, é uma jarra com açucenas de tipo nacional,
decorada, policromamente, de filetes e arabescos, e
assente sobre um disco de barro vermelho como os que
ainda hoje se para mim, detestável, manjar
usam para o,
branco. A «albarrada» de um quadro do Museu de
Arte Antiga que figura a «Anunciação», de autor des-
conhecido, é decorada a uma só côr com as tábuas do
decálogo e, tem no colo, uma legenda religiosa.

Outros arabescos, denticulados, filetes, circunferên-


cias encadeadas, ornamentam-na. As asas são elegan-
tíssimas, aligeiradas por um ornato de folhagem que
se revira, passada a maior amplitude.
O mesmo caracter nacional, marca-a. O artista co-

piou evidentemente uma «albarrada» que estava vendo.


(íMas quando se começou, então, a fabricar faiança
em Lisboa ?

Quim Martins, no seu magnífico livro A Cerâmica


Coimbrã no século XVI, onde se reproduzem os dois
vasos a que fiz referência, crê, com fundadas razões,

que meada a centúria de quinhentos já se fazia loiça


branca de Málega em Lisboa e que foi da capital que
irradiou o fabrico para o resto do país.
Em Coimbra, até 1576, não se fabricava faiança;
de 1576 até o fim do século, não está provado que se
produzisse essa louça ; prova-se que ela se fazia nos
primeiros anos da centúria seguinte, levada a arte,
talvez, para lá pelo oleiro Amador Francisco, exami-
nado em Lisboa em i58i e depois ali estabelecido.
Este pormenor, e os dizeres do Regirnento, possi-
velmente de 1572, deixam legitimamente supor que
em 1570 já se fazia faiança na capital.
^ Donde viriam o ensinamento e os mestres?
E o que se vai apurar.
— 20 —

Manuel Severim de Faria, o erudito chantre da Sé


de Évora, escreveu em j625, pelo menos, o que se
segue, só publicado trinta anos depois:
(íPoucos anos ha que hum oleiro que veyo de Ta-
laveiva a Lisboa^ vendo a bondade d-o barro da terra^

começou a lavrar louça indrada branca^ não só como


a de Talaveira ; mas como a da China ; porquê na fer-
mesura, e perfeição podem competir as perçolanas de
Lisboa com as do Oriente; e imitando-o outros ofi-
ciais, cresceu a mercadoria de maneira, q não somente
está o Reino cheyo desta louça mas vai muita de car-
;

regação para fora da barraT> (i).


O que ate' aqui tinha sido confuso por discrepância
de datas, visto que já em 1619, quando da visita de
Felipe II a Lisboa, a indústria da faiança estava aqui
desenvolvida e os oleiros, orgulhosamente, tinham le-
vantado um arco triunfal cheio de legendas documen-
tais do seu incremento, e não se explicava esse período

escrito em i655, passa a ter explicação depois de Quim


Martins ter aclarado que o manuscrito das Noticias de
Portugal já estava concluído em 1625 e possivelmente
anos antes. Assim já se aceita aquele poucos anos ha
com que começa o período esclarecedor.
Houve, portanto, um oleiro que veio de Talavera
para Lisboa, na segunda metade do século xvi, e que
cá fêz escola.
Quem seria o artista ?

Antes de o irmos investigar, duas palavras ainda a

(i) Noticias de Portugal, por Manuel Severim de Faria — Dis-


curso i.", pág. 19 da edição de 1740, acrescentada por D. José
Barbosa.
— ai —
propósito do texto transcrito das Noticias de Por-
tugal.
CP

A designação de porcelana foi impropriamente em-


pregada por Severim de Faria ou será erradamente por
nós interpretada. Quando no século xvi se dizia por-
celana, reíeriam-se à forma e não à matéria. Porce-
lana significava, genericamente, uma vasilha em forma
de «taça». No Regimento dos Oleiros, de 1572, men-
cionam-sc escudelas da feição de porcelana, como
vimos.
Em documentos quinhentistas surgem «porcelanas
de vidro», «porcelanas de prata» e fcporcelanas de
oiro», prova evidente do que se afirma.
O que o tal oleiro de Talavera, ou vindo de Tala-
vcra, fabricava, era faiança. A primeira fábrica de por-
celanas que houve na Europa, foi a de Meissen, na
Saxónia, fundada em 1709.
Os portugueses prosapiaram de ser os seus intro-
dutores na velha Europa. Provam-no João de Barros,
Nunes do Leão, Frei Nicolau de Oliveira e outros, ci-
tados pelo sr. D. José Pessanha no seu exactíssimo e
excelente estudo sobre a porcelana em Portugal, onde
também se dá a primacia dos segredos do seu fabrico
a um fradinho, Frei Gaspar da Cruz, que escreveu o
Tratado em que se cotam muito por esteso as cousas
da China, cô suas particularidades, e assy de reyno
dor mui.
Veja-se e consulte-se esse trabalho que merece todo
o aplauso de artistas e de historiadores (i).

(1) ^ Porcelana em Portugal — Primeiras tentativas — No


Arquivo Histórico, 1.° vol., pág. 20 e segs.
22 —

Quando Felipe II de Castela e I de Portugal fez


a sua entrada em Lisboa, houve, cruel é dizê-lo, brilhan-

tíssimos festejos. Nos locais por onde havia de passar


o solene cortejo, ergueram-se vistosos arcos orna-
mentais. Cada ofício apresentava um desses monu-
mentos festivos, caprichando em torná-lo o mais lu-

xuoso que podia ser(i).


Os oleiros e louceiros fizeram belíssima figura. O
seu arco, situado em um estreito largo ao fundo da
Padaria, junto à Misericórdia, era adornado com as
figuras de Santa Justa e Santa Rufina e achava-se es-
maltado dos instrumentos próprios do mister, entre os
quais uma roda, sobre a qual a figura alegórica do topo
pousava a mão esquerda, ao passo que a direita sus-

tentava um vaso, por acabar, imitação de porcelana.


Aos pés dessa figura lia-se a seguinte quadra :

Aqui monarca excelso e soberano


Vos oferece a arte peregrina,
Fabricada no reino luzitano
O que antes nos vendeu tão caro a China.

E ainda esta

Para demonstração de mór grandeza


Na perfeição da terra que pisacs,
Até o barro humilde dá sinais
De quanto o quiz honrar a natureza !

(i) Viagem de El Rey D. Filipe II ao reyno de Portugal,

por João Baptista Lavanha, pág. 3o. Queirós supôs que o arco
se ornamentasse de peças cerâmicas. Nenhum documento auto-
riza a conjectura.
-- 2J —
Em um outro quadro via-se uma nau da índia des-
carregando caixas de porcelana chinesa, outros navios
carregando a nossa louça e outros ainda saindo, já car-
regados, a barra do Tejo.
Sob o quadro lia-se:

ET NOSTR^ PERERRANT

como quem diz : «Também as nossas naus as imi-


tam» (i).

O nosso bucólico Rodrigues Lobo, em um dos seus


insonsos romances dedicados à jornada do «Demónio
do Meio Dia», descreve a máquina ornamental dos olei-

ros e diz, entre outras variadíssimas quadras :

Al lado dei templo insigne


Guyo ministério y orden
Es honor de Portugal,
Y espanto de otras naciones. .

e também

Cuentan de naturaleza
Y arte infinitos primores
En los vasos de Lisboa
Que oy llevam por todo ei Orbe (2).

Quem dirá que tais versos são do autor da Pri-


i

mavera^ do Pastor Desenganado, do Peregrino e da


graciosíssima Côríe na Aldeia!

(i) Outro Regimento deste ofício tem a data de i5 de Junho


de 1669 (Livro 3.° das Cortes —
Regimento da Secretaria de Estado
dos Negócios do Reino).
(2) La Jornada dei rey D. Filipe II a Portugal — Romance
xxxiv, incluído na edição de todas as suas obras, datada de 1723.
— 24

o comércio das louças orientais era considerável


em Lisboa. A capital abarrotava de porcelanas chi-
nesas. Os nossos mercadores não só as vendiam na
rua Nova dos Ferros e as exportavam, embora não
em tão larga escala, como os olandeses, mas chegavam
a ir vendê-las a França, expondo-as aos parisienses na
feira de Saint Germain(i).
Ao poeta Scarron não escapou o nosso colorido
mostruário. Di-lo nos seus versos :

Menez moi chez les Portugais,


Nous y verrons à peu de frais
Les marchandises de la (.ihine

Nous y verrons de Tambre gris

Et la porcelaine fine
De cette contrée divine.

O cardial D. Henrique enviou ao papa Pio IV um


presente de porcelanas. Frei Bartolomeu dos Mártires,
vendo o Papa a comer em baixela de prata, tinha dito:

^Porque não come Vossa Santidade em porcela-
nas, que he um comer limpo e mui formoso ?
Ao que o Pontífice respondera :

— Dizei ao Cardial D. Henrique que as mande, e


eu comerei nelas.
E o presente foi enviado para Roma (2).

(1) Cerâmica Portuguesa, de José Queirós, pág. 27.

(2) Descrição de Portugal, por Duarte Nunes do Leão, cap. lx


— De Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga,
pág. 223.
^ 25 ™
D. Henrique, ao que parece, usava baixela de por-
celana da índia, como cá lhe chamavam denominan-
do-a pela procedência e não pela origem e fabrico. Na
índia não se fazia louça de porcelana.
Leio n'um apontamento manuscrito que tenho, redi-
gido há talvez oitenta anos, ter-se encontrado nos entu-
lhos de umas obras, feitas no paço de Sintra, um prato
da China da baixela do cardial-rei. Se é verdade, não
o posso afirmar.

Uma nota ainda :

Frei Nicolau de Oliveira, nas suas Grandezas de


Lisboa^ marca a existência, em Lisboa, em 1620, de
8 fornos de loiça vidrada, 28 de loiça de Veneza (!),

49 de tejolo e telha e i3 oleiros de azulejo, produto


este que também se fabricava nos Fornos de Ve-
neza (i).

O que se não explica são os números «47 debuxa-


dores» e «76 pintores» citados no Sumário de Roiz de
Oliveira em i55i, quando quando muito, es-
a faiança,
taria em mais que o Tratado de João
princípio, e tanto
Brandão, no ano seguinte, não fala sequer em pintores.

(1) Grandezas de Lisboa (Livro das), por Frei Nicolau de


Oliveira.
CAPITULO II

Sumário : Em
que se conjectura quem seria o oleiro que veio de
Talavera. — Uma
nota sobre Francisco de Matos. A in- —
fluência oriental na nossa faiança seiscentista, através da
Olanda. — O empório das porcelanas orientais e as cinquenta
fábricas de Delft. —
Gontraria-se a influência veneziana alvi-
trada por um investigador. —
Peças datadas. Os tipos da—
faiança portuguesa «Desenho miúdo», «Tecido Oriental» ou
:

«Estrela», «Aranhões», «Barôco», «Malmequer»), «Bagas»,


«Renda», «Arabescos» e «Esponjado». — Citam-se várias pe-
ças e apontam-se as suas características pelos elementos de-
corativos apresentados. — A influência das fábricas de Castela
e da Andaluzia. — As legendas e os brazões. — O que signifi-

cavam, conforme a sua localização n^s peças. — • A teoria do


coleccionador Dr. Luís de Oliveira. — As loiças das frascas
conventuais e as peças de botica. — Ligação entre a decora-
ção destas peças e o azulejo. — O que eram os malegueiros e
donde veio este nome. —
As peças atribuídas ao século xvi.
— Como Júpiter dando uma audiência no Olimpo destrói a
conjectura das obras cerâmicas dos Freires de Palmela, cuja
Escola não está provado ter existido.

O oleiro que veio de Talavera, conforme a refe-


rência de Severim de Faria, segundo crê Joaquim
foi,

Martins Teixeira de Carvalho e o diz na sua Cerâmica


Coimbrã, o pintor Francisco de Matos. Em i563 assina
êle na «Bacalhoa» um dos famosos painéis de decora-
ção mural dos jardins do encantador e arruinado pa-
lácio dos Albuquerques.
Supor esses painéis e as outras guarnições cerâ-
micas da «Bacalhoa», feitas em Portugal, é tão rema-
tada loucura como atribuir a artistas portugueses, edu-
— 28 —
cados cá, os azulejos de Sintra ou os da Sé Velha de
Coimbra.
Os azulejos da Bacalhoa são marcadamente de Ta-
lavera pela técnica e pelo ar, digamos assim, e ainda,
como muito bem observa Quim Martins, pelos erros
ortográficos das legendas. Os da Sé Velha de Coim-
bra são de Sevilha. Eslá provado pela encomenda
feita por Mestre Olivier de Gand em i5o3 (i), e de
Sevilha são também os do Paço de Sintra, os que cons-
tituem o brazão do bispo D. Jorge de Almeida que
hoje se admira no Museu Machado de Castro, e ainda
outros.
Era inadmissível pensar-se que esses trabalhos, que
revelam uma fase adiantadíssima da arte, se feiíuras-
sem cá, de repente, sem uma longa aprendizagem e
sem uma continuidade de escola.
A hipótese do autor estabelece-se da seguinte forma
Afonso de Albuquerque, filho, fêz parte do séquito
da Imperatriz Isabel, filha do Venturoso, em i526. O
séquito, ou êle só demorou-se em Sevilha de 3 de Março
a 6 de Maio desse ano. Encontraria lá o português
Francisco de Matos, ou melhor, o tal artista, que podia
bem não ser este, trá-lo-ia consigo, ter-se-iam experi-
mentado barros portugueses nas mãos do artífice, e de
tal estudo sairia o busto de Afonso de Albuqurque que

foi ponto de partida para outras obras. A decoração


cerâmica da «Bacalhoa» nascera de aí (2).
Fosse como fosse, o certo é que Francisco de Matos,

(i) Escritura de 3i de Outubro de i5o3, feita em Sevilha. Os


azulejadores foram Fernan Martinez Guijarro e seu filho Pedro
de Herrera. Os azulejos de labores (cuenca) foram vendidos por
20.000 maravidis (Apilejos Datados, por Vergílio Correia, Lisboa,
1922, pág. 7 e 8).
(3) Cerâmica Coimbrã, pág. 223 e 224.
— -29 —
castelhano, ou português que fora para Talavera ou
Sevilha trabalhar c aprender, comoé mais provável,
desenvolveu em uma grande actividade, criou
Portugal
discípulos que o honraram e, em breves anos, o azu-
lejo e a faiança tomavam o incremento que se sabe.
Em 1384 compÕem-se *^^ admiráveis azulejos de São
Roque, onde a largueza da composição, a justeza do
desenho e a harmonia do colorido denunciam um artista
na plena posse das suas faculdades de criador e de
executor.

l
Acaso se poderá identificar com este pintor de
azulejos, um Francisco de Matos que, em 20 de De-
zembro de 1575, casa na freguesia de Santa Catarina,
com Ana Esteves (i)?

Ao acabar o século xvi, já os nossos oleiros se acha-


vam senhores e conhecedores desta delicada arte, tra-
balhando com perfeição o azulejo e tentando achar a
forma e o justo sentido decorativo no fabrico e na pin-
tura da faiança de altar, de cozinha e de botica. Bri-
lhantes exemplares nos aparecem todavia em museus e
colecções em que se nota uma feição especialíssima da
sua intuição artística, bafejada, pouco depois do seu esta-
belecimento, por uma decisiva influência oriental, vinda,
quanto a mim, mais provavelmente por imermédio dos
ceramistas de Delft.

(2) Livro I de Casamentos da Freguesia de Santa Catarina.


Não creio que fosse este Matos o oleiro a que diz respeito
a hipótese de Quim Martins. De i526 à data dos azulejos de São
Roque vão 38 anos. Uma simples reflexão sobre estas datas põe
de parte a conjectura.
- 3o —
José Queirós contraria esta influência dcs olandeses,
mas verdade seja que documenta o seu critério apenas
quanto ao fabrico do azulejo, e nesse ponto acho-me
de acordo com o seu parecer. A influência de Delft
deu-se no azulejo, mais tarde. Na loiça de mesa, de
cozinha, de altar e de botica devia de ter sido inicial,

ou pelo menos paralela à influência das fábricas de


Sevilha, de Talavera e de «Puente dei Arzobispo».
Algumas peças datadas deixam-nos livremente su-
por que o tipo da louça de Castela e da Andaluzia
predominou na produção da faiança portuguesa e ante-
cedeu o período da influência de Delft.
Por outro lado, algumas peças imperfeitas na forma,
do tipo a que Queiroz chamou, e bem, desenho miúdo,
podem levar-nos a conjecturar que esta influência orien-
tal, vinda da Olanda, precedeu a primeira.
As duas objecções contraditórias que ficaram for-
muladas, conduzem-nos, pois, a uma solução que satis-

faria a dúvida das observações. E


que as duas influên-
cias se deram paralelamente, havendo, então, em Lisboa,
que foi o centro industrial cerâmico do século xvii (o
que se acha sobejamente provado) dois grupos de fa-
bricantes e de decoradores que produziam cada um o
seu género de faiança : uns imitando mais os caste-
lhanos de Talavera e da «Puente dei xVrzobispo», ou-
tros imitando melhor os ceramistas de Delft ou sofrendo
directamente a influência china.
A produção olandesa era formidável no meado do
século. Cerca de cinquenta fábricas trabalhavam em
Delft, ocupando oito a dez mil artífices. Desde o fim
do século XV que essa actividade se comprova em
peças marcadas e datadas.
Na segunda metade do século xvi as suas faianças
esmaltadas a verde e a azul sujo, decoradas, por in-
fluência oriental, de figuras chinas, curtas paisagens,
01 —
flores, borboletas, dragões, aliás interpretados à euro-
peia, e ainda de motivos heráldicos e assuntos mitoló-
gicos, invadiram os mercados da Europa, evidenciando,
aparte esse fundo de estilização china, segundo uns
um influxo italiano, segundo outros um ar alemão.
Os olandeses foram, no velho continente, os prin-
cipais dispersadores da porcelana chinesa, embora a
nós caiba a honra da sua introdução; mas as loiças
que vinham da índia, pouco saíam do nosso pais em
comparação com a acção comercial de Amsterdão,
que foi o verdadeiro entreposto da porcelana orien-
tal(i).

(i) O Dr. Luís de Oliveira reedita o parecer do Dr. Joaquim


de Vasconcelos de que foram os ceramistas de Delft que imi-
taram os portugueses, baseando-se para isso na informação de
Havart, que atribuía o começo do fabrico das grandes peças olan-
desas a ibgG. Este parecer do Dr. Joaquim de Vasconcelos vem
no prólogo do Catálogo da colecção Moreira Cabral.
O sr. Dr. Luís de Oliveira insiste pela filiação veneziana, a
que o levou naturalmente á designação de fornos venezianos, cuja
existência menciona em Lisboa Frei Nicolau de Oliveira, em 1620.
Os fornos chamavam-se assim por serem construídos pelo sistema
veneziano e não por que a loiça seguisse o estilo de Veneza
loiça de Veneza chamava-se à que era produzida nesses fornos.
Daí nasceu a teoria do ilustre ceramógrafo, que se cansa a
compendiar elementos documentadores das nossas relações co-
merciais, políticas e artísticas com a Itália.
O mesmo podia fazer quanto a Antuérpia e Amsterdão,
se
quanto a França e quanto a Castela, e cada uma dessas listas de
factos nada provaria, ou provaria tanto como a que se apresenta, o
que vem a dar na mesma.
Não está provada a vinda cá de nenhum mestre italiano, nem
que da ida dos nossos pensionistas a Itália resultasse uma influên-
cia decisiva nesse ramo da arte. Não creio que imitássemos as
majólicas italianas directamente, mas apenas por intermédio de
Espanha, onde, no princípio do século xvi, ceramistas italianos,
trabalharam, como Nicolau Francesco, em Sevilha. Essa influên-
— 32 —
As chincsices nas peças de Delft
perduraram pelo
adicionaram, à roda de ib5o,
se'culo XVII fora, e a elas se
os assuntos bíblicos a destronar as Vénus e os Cupidos
mitológicos. E então, também, que a pintura de placas
e de azulejos adquire ali o máximo esplendor, produ-
zindo-se quadros preciosos com paisagens e interiores
e os azulejos, cá tão conhecidos e imitados, a que cha-
mamos «de motivo isolado», a que daqui a pouco nos
referiremos mais de espaço.
No século XVIII a indústria estava já em decadên-
cia. Das 5o fábricas da centúria anterior, só havia 29
em 1764.
O nosso tipo de louça desenlio miúdo (o Dr. Luís de
Oliveira chamou-lhe desenho sintético, sem vantagem
e com menor expressão) é, quanto a mim, na decora-
ção, um
produto de influência dos barros de Mulheim,
de Tournay e de Delft, vidrados e esmaltados nesta
última cidade, nos dois últimos terços de seiscentos.
Duas peças apenas conheço datadas, ambas de 1660
uma, um prato, tendo no fundo a legenda DNES (de
Inês?) euma salva de gomil com frete rebordado ao
centro, em que Vénus se figura entre uma rica e pro-
fusa decoração oriental, a azul e côr de vinho, de figuras,
animais, plantas e flores, ambos da Colecção Ameal,
dispersada em 192 1.

cia veio-nos indirectamente. A finura das pastas, os motivos de-


corativos, os escudos, os brazões, os assuntos mitológicos e reli-
giosos, o costume de marcar as peças no reverso, são factos e
circunstâncias observados tanto nas faianças venezianas, como
nas olandesas.
Outro facto é citado pelo sr. Dr. Luís de Oliveira para do-
cumentar a antiguidade do comércio das loiças de Veneza. É
que na rua Nova dos Fenos, desde o tempo de D. Dinis que tal
comércio se fazia. Freire de Oliveira, citado por Sua Ex.% não diz
isso. Quando fala em tal loiça refere-se só ao século xvi.
— 33 -
Esta última peça acha-se hoje no Museu de Arte
Antiga, que guarda nas vitrinas uma grande bacia co-
berta, ornamentada (espécie de terrina), nos mesmos
tons, com scenas de interior, jogos de cartas e caçadas
um prato, perfeito de modelagem, esmalte e pintura,
do mesmo tipo, decorado com um brazão onde avultam
duas caldeiras enxequetadas; e uma bilha, com o mote
Real esmaltado num panejamento-bandeira, erguido
por uma figura nua. Tudo provém da mesma colec-
ção.
José Queirós atribui certo prato de um tipo apro-
ximado deste que se tem chamado Estrela ou Tecido
a

Oriental, ao século xvi; e uma talha, de tipo oriental


acentuado, ao princípio do século seguinte. Ignoro o
fundamento das atribuições.
A decoração destas peças — figuras chinas de cabaia
e sombrinha, motivos heráldicos, animais, tais como
coelhos, cães, leões, mochos, veados e gamos, flores e
plantas estilizadas, paisagens curtas e soltas, aves va-
riadas —
participa um pouco, também, dos elementos
ornamentais castelhanos, principalmente no que diz
respeito ao motivo decorativo do centro anversal, com
que se acrescenta o produto, sem, aliás, perder o seu
carácter oriental.
As vezes este tipo aparece associado com outros;
com a baroca na aba, ou com os rótulos interva-
faixa
lando as pontas prolongadas do tipo Estrela ou Tecido
Oriental e ainda com os Aranhões. Na colecção do
sr. dr. Luís de Oliveira há um
exemplar que
curioso
participa dos três tipos: Desenho miúdo, Tecido
Oriental ou Estrela, e Aranhões. Em peças de loiça
de botica, também aparece a faixa baroca associada
ao desenho miúdo, mas o mais vulgar é a decoração
das faixas, inferior e superior, ser de diamantes, de
ornato de folhagens ou de filetes verticais, que seme-
Voi.. IV 3
Iham canduras. A grega clássica também aparece al-

gumas vezes.
Legendas indicativas de propriedade, religiosas ou
simplesmente sentimentais, decoram nos a miúde, em
acartouches», tarjas e escudos : —
D. Cat.^ de Andrade,
Charitas, e Amor, por exemplo. Nuns pratos a le-
genda lê-se na aba, noutros no centro anversal.
A indicação da propriedade igualmente aparece no
reverso das peças: —
Marques, Leite, Albuquerque, Lo-
bato, Ribeiro, Teixeira, Vieira, Ataíde, Pigara, D.
Catarina dè Andrade, — como se vê nas colecções
Ameal e dr. Luís de Oliveira. Este investigador con-
sidera estas legendas como assinatura de ceramistas,
o que nos levava a consentir a hipótese de uma se-
nhora fabricante ou pintora de faianças, tal como So-
ror Jacinta da Madre de Deus, cujo nome religioso
aparece, também, no reverso de outro prato da pri-
meira destas colecções.
Tais legendas significavam apenas a propriedade,
que, noutros casos, se assinalava na frente da peça, por
este processo ou por meio de brazões, do que há nu-
merosos exemplares em peças de vários tipos.
O Luís de Oliveira vai mais longe ainda:
sr. dr.

considera a legenda António da Rocha (Anto da Ro-.


cha ou Ant." da Rocha) como assinatura de um oleiro.
Ora, esta legenda aparece num óvulo, sobre a aba,
formado entre um dos topos dos braços da Cruz, em
dois pratos de tipo mixto(i), tendo um, ao centro, uma
dama toucada de «Fontange» segurando na mão uma
arara que se vê também incluída nos outros três óvulos

(i) Estes dois pratos têm o ceníro anversal cercado de umg


faixa Três contas, Bagas ou Escamas — e a aba dividida pelos
braços de uma cruz, em óvulos, decorados alternadamente por
araras e por um tecido de escamas.
— 35 —
da aba. No outro, repete-se o elemento decorativo da
arara nos mesmos pontos. Nas abas de outros dois
pratos que existiam, como o primeiro dos supra-citados,
na colecção Ameal, vê-se a mesma legenda, um tendo
no fundo uma personagem também envolta num manto,
e outro, do tipo Bagas, Três contas ou Escamas, lendo

no centro anversal uma dama empunhando uma arara.


No meu entender este Rocha seria o encomendador,
o possuidor ou a pessoa à qual foram oferecidos os
pratos. Não é admissível que o oleiro ou pintor se
servisse da assinatura como elemento ornamental ou
dignificador da peça.
Daqui a pouco voltaremos a este assunto porque
vale a pena insistir nele.

As peças conhecidas hoje, além destes pratos, que


são, em grande número, uns ladeiros e outros covos, aos
quais os seiscentistas chamavam galinheiros, são bacias
cobertas, potes de duas, três e quatro asas, altemias,
talhas, boiÕes e canudos de botica, bilhas e asados, e
uma ou outra peça miúda.
A talha com a legenda Não quero nada do Amor,
ornamentada de Cupidos, íiores, plantas e animais, re-
produzida na Cerâmica Portuguesa, é um exemplar
precioso, assimcomo a bilha com o mote Real sobre
um panejamento empunhado por uma figura, que se
encontra no Museu de Arte Antiga, vinda do leilão
coimbrão de 1921.
O prato datado de 1660 a que já me referi, de frete
rebordado a salva, do mesmo ge'nero, adornada com
;

o brazão dos Barbosas e o prato com o brazão dos


.Pachecos a bacia coberta, de grandes dimensões, tudo
;
-36-
agora nas Janelas Verdes, são peças de grande valor
artístico e documental. Para enfileirar com estas deve
ser chamado a capitulo o prato, também reproduzido
por Queirós e que pertence ao sr. dr. Luís de Oli-
veira o qual estabelece a transição para o tipo Tecido
Oriental ou Estrela^ em que, ao centro, se vê uma figura
de mulher, trajada à moda do século xvii (princípio),
com um espelho na mão e a legenda VER.
Esse prato devia de fazer parte de uma série de
cinco, representando os Cinco Sentidos, imitação ou
adaptação de um modelo de Delft, de i65o, do cera-
mista Cornelis Zachstleven, infinitas vezes imitado de-
pois,embora mais grosseiramente (i).
Mais um argumento a favor da influência de Delft
na ornamentação da nossa faiança.
A decoração principal dos canudos e boiões de bo-
tica, deste tipo, são figuras, caçadas, animais, flores e
plantas, acompanhada das diversas faixas a que já se
fêz referência. As legendas em latim, postas diagonal-
mente nestas peças, são freqiientes, ornamenlando-se
diversamente com cordas de volutas (faixa baròca)^
com rendas (tipo Renda) ou atravessando-se directa-
mente sobre o Desenho miúdo, interrompcndo-o.

Do tipo Desenho miúdo é próximo parente o tipo


estrelado a que. o sr. dr. Luís de Oliveira chamou
Tecido Oriental, cujo efeito decorativo resulta das
uma estrela ou dos braços, de aspecto duplo,
hastes de

(
I ) Guide des Amateurs de Porcelaiues, por Augusto Demmin
pág. 843.
- 37 -
de uma cruz. Deste tipo, por amiúdamento das pontas
da estrela, deriva-se ainda outro tipo. a que chamei,
com Alberto Sousa, Malmequer na classificação da co-
lecção Ameal, e tanto num como noutro intervêm fre-
quentemente esses outros motivos ornamentais de ca-
ráter oriental a que Queirós chamou Aranhôes e o
sr. dr. Luís de Oliveira Símbolos chineses.

Todos estes elementos aparecem frequentemente


juntos em várias peças dos séculos xvii e xviii, sendo
os do tipo, derivado, Malmequer mais comuns desta
última centúria, ornamentados de Vénus e Cupidos, mais
frequentemente e quási sempre só a azul.
Todos eles são bafejados pela influência oriental
directa ou indirecta, por via olandesa. Muitos pratos
são cópias evidentes dos de Delft. Vendo as estampas
26 e 27 da obra do sr. dr. Luís de Oliveira (1), onde

se reproduzem pratos da China e de Delft desse tipo,


não nos fica a menor dúvida.
Um frontal de altar que o Dr. Joaquim de Vascon-
celos viu ainda numa capela da igreja do Carmo, no
Porto, apresentava os azulejos de que se compunha
decorados com desenhos de Tecido oriental e Ara-
nhões.
Esses azulejos eram de 1657. Outro frontal, apre-
sentando as mesmas características, existia na capela
de uma casa brazonada perto de Nine (2).
No Prado, fizeram-se pratos deste tipo, assim como
em Coimbra (3).

(1) Exposição retrospectiva de Cerâmica Regional em Viana


do Castelo, no ano de igi5 —
Breves Estudos, Porto, 1920.
(2) Op. cit., pág. io3.

(3) Op. cit., pág. 108 e 109.


— 38 —

O tipo Arauhões reriecte decisivamente a influência


oriental. Os variados símbolos da loiça chinesa inter-
pretados com evidentes obliterações pelos artistas por-
tugueses e que não curavam da exactidão
olandeses,
iconográfica senão do efeito decorativo, aparecem mais
comummente na aba dos pratos, umas vezes isolados,
outras associados, cortando-se aquela com as hastes
irradiadas da composição central.
A peça que aparece com data mais antiga é um
prato com um leão dentro de um escudo com elmo e

paquife. Traz a data de iõ5i. No centro anversal


dos pratos vêem-se cães, corujas, veados, coelhos, ga-
mos, mochos, galos, cegonhas, etc. brazões com di- ;

versas armas, avultando com maior frequência o leão,


talvez dos Silvas ou dos Castelobrancos (logo se dirá
porquê), a cruz de Malta, ocartoucbes», rótulos e le-

gendas, aves variadíssimas, flores estilizadas, figuras


chinas de cabaia e sombrinha, caras e bustos de mu-
lher, figuras de caçadores, torres, barcos, anjos alados,
etc. Um pássaro picando o coração, corações asse-
teados poisando em livros. Cupidos vendados, um ele-
fante com palanquim, uma scena de duelo com três
personagens, são motivos decorativos das peças deste
tipo.
Num prato da colecção Ameal, hoje nas Janelas
Verdes, decorado policromamente, figura-se o Sacrifício
de Abraão, com a legenda SA.RVAFRI CIO DEA |
|

BRAN. Outro prato que ali se encontra tem, no cen-


tro, um monograma estranho, em que há um A e por-

ventura um C que o inclui, formado de uma rabisca da


primeira letra, dentro de um escudo com paquife. Den-
tro de uma vitrina, uma caixa de tampa moldada — ou
-39-
pequena terrina — apresenta idêntica decoração de
Aranhões.

As peças esmaltadas a branco amarelado, sujo,


apenas com decoração central, chamemos-lhe assim,
destinavam-se, em geral, a loiça de mesa das Comuni-
dades.
Essa decoração, que era em geral a azul e côr
de vinho, constava do brazão das ordens (Carmelita,
Franciscana, Dominicana) ou de letreiros de proprie-
dade.
Tenho visto muitas peças deste género. Eram das
frascas conventuais. No Museu de Arte Antiga há
um prato tendo, na orla do centro anversal, o letreiro
Soror M." Angélica de S.'^ Rosa, e outro com o dizer
Refeitório Framengas, associado a um brazão de S. Do-
mingos.
Algumas peças, mais apuradas de feitura e mais
ricas deornamentação, aparecem assinaladas com no-
mes de religiosas, como um pratinho Desenho miúdo^
que tem inscrito, na orla, no anverso. Soror Cat.^ do
Sacramento, e um cangirão, que, dentro de uma «car-
pir
toúcheo a azul, mostra escrito: ANNA DO ÇACRA.
(Ana do Sacramento) (i).
Como já dissemos, estas legendas de propriedade
também aparecem no reverso. E o caso daquela So-
ror Jacinta da Madre de Deus, a que já me referi.

(t) Estas duas peças estão também no Museu de Arte An-


tiga.
— 40

As faianças espanholas, de que o poeta Guerra Jun-


queiro fêz uma grande colecção, passada depois à posse
do dr. Aires de Campos, inHuíram, como se apontou
já, na orientação artística dos wa//e^//eíros portugueses,
cujas peças a azul e côr de vinho fizeram pensar ao
autor dos Si??iples que elas definiam bem a sentimen-
talidade da raça, opinião de poeta, sem dúvida inte-
ressante, mas longe das razoes que, quanto a mim,
motivaram essas cores, tão dos nossos pratos, empre-
gadas apenas no sentido de procurar imitar os Delfts
orientalizados.
Já agora cabe aqui dizer que esta expressão ?uale-
gueiroSf derivada do fabrico de Málegas, deve buscar
remotamente a sua origem.
Nos séculos XIV e xv chamava-se mállcga a toda
a loiça vidrada e espelhante, de reflexos metálicos, fa-

bricada pelos alfareros de Málaga, centro cerâmico da


maior importância ao sul de Espanha, onde se fabrica-
ram preciosas peças hispano-mouriscas, entre elas aquele
famoso «vaso» de Alhambra que tantos encómios tem
merecido aos ceramógrafos.
A ideologia balouçando entre a forma Malga e
a origem Málaga deu à palavra um sentido duplo
de vaso ou escudela de loiça e de loiça vidrada, es-
tendendo-se depois aos seus fabricantes: os malc-
gueivos.
Como já se disse, a inliuência italiana fèz-se sentir
em Talavera e em Sevilha, pelos artífices italianos que
ali trabalharam. Cá chegou atenuada. A representa-
ção mais directa do fabrico do estilo de Castela e da
e
Andaluzia, está no nosso tipo Barôco, marcado pela
utilização da faixa de volutas nas bases e bocais dos
— 41 —
potes, boiões, canudos e talhas, e na aba dos pratos,
e pela imitação dos motivos ornamentais das faianças
de Talavera e de Ptiente dei Arzobispo.
As primeiras, geralmente decoradas a azul c a ama-
relo, têm como elementos decorativos essenciais ca- —
beças, bustos, animais, plantas, Hores, brazões e outros
ornatos heráldicos, «cartouches» e rótulos com le-

gendas.
Entre os animais predominam o leão, o veado, o
mocho, o coelho, e variadas aves. Véem-se ainda
Cupidos, dragões, caçadores, etc.
Nas de Puente dei Arzobispo predomina a com-
binação do azul, amarelo e côr de vinho, esta muita

vez fazendo os perfis e as outras o cheio, tal como se


repetiu cá, nos azulejos e nas peças de cozinha, mesa
e botica, observado, e muito bem, por José Queirós,
Vergilio Correia, Luís de Oliveira e outros.
Os motivos ornamentais pouco diferem dos de Ta-
lavera. Como pouco vulgares aponto o pavão, peixes,
uma cornucópia, um toiro acometendo um cão, as
armas dos Carmelitas, a cruz de Calatrava, etc.
As nossas peças do tipo baraço repetem o estilo
destas.
As cabeças e os bustos de mulher dir-se-iam co^
piados dos exemplares espanhóis, enroladas as feições
de tal jeito que lhes dão o aspecto de monstros ou
de fenómenos de feira.
Algumas peças datadas que aparecem, servem para
conjecturar o seu período de produção. Um vaso de
botica, decorado a azul, traz a data de 164 1, ornamen-
tando-se com o escudo das quinas ; um pote, também
a azul, vendo-se, no campo de um escudo, um busto de
mulher, a de i65i, posta num rótulo; a de 1681 assi-
nala um pote e uma modelados rudemente
garrafa, ;

ambas as peças ornamentadas com as armas das qui-


-4^ —
nas, a azul, sob o clássico esmalte branco-sujo da época ;

a de 1677 numa garrafa de bôjo, decorada a côr de vi-

nho (i).
Em pratos deste tipo aparecem, da mesma forma,
legendas de propriedade e brazões. Num prato Tecido
Oriental^ da variante que se apelidou Malmequer, apa-
rece a data de 1649. O prato decora-se com o escudo
brazonado dos Silvas ou Castelobrancos.

Outro tipo pode ainda marcar-se — o das Bagas, —


a que o sr. dr. Luís de Oliveira chama Três Coutas
ou Escamas. O carácter vem-lhe da ornaaientação da
aba ou da orla anvcrsal, formada de grupos de três
bagas, de efeito piramidal, colocados inversamente.
O que predomina nas suas decorações são cabeças
e bustos de mulher, aves e flores estilizadas em jeito
de penaclios, ao gosto castelhano. O resto são torres,
barcos, animais, corações asseteados, monogramas, etc.
Num da colecção Ameal vi um homem fumando
cachimbo. O ilustre coleccionador dr. Oliveira forma,
aparte deste, um outro tipo^ Flores e Penaclios, —
motivos estes que em geral andam associados às
Bagas ou aos restos degenerados do tipo Tecido
Oriental.
Estas peças são do século xviii e passaram ao azu-
lejo de composição e de motivo isolado. Do tipo Bagas
fabricou-se loiça em Coimbra.
Na colecção do sr. dr. Oliveira, há uma tijela e um

(1) As quntro primeiras peças vêm reproduzidas na Cerâ-


mica Portuguesa. A quinta estava na colecção Ameal.
-4-5-
cofre pequeno, que Sua Ex/ atribui, não sei com que
fundamento, ao século xvii.

O tipo Retida marca-se solidamente por um ornato


que semelha festões de renda, recortados, guarnecendo
as bases de vasos de vário tipo, os letreiros em diago-
nal dos canudos e boiões de botica, e as barras do
azulejo de composição.
Nos pratos não há novidade decorativa, salvo umas
chaves encruzadas que observei num da colecção Ameal,
um brazão de princesa com as armas de Portugal e
Aragão, o que Queirós reproduziu na Cerâmica, uma
ave enleada em ornatos —
composição galantíssima —
num pratinho que foi da colecção de J. C. Geraldes,
de Viana do Castelo, e quatro peças (uma jarrinha,
uma caixa de toucador e duas galhetas) na colecção do
sr. dr. Luís de Oliveira, afora outro prato com uma

representação do Arcanjo S. iMiguel; e outro, com a


legenda : Amaral.
Na igreja de Nossa Senhora de Brotas (distrito de
Évora) há dois frontais de altar em azulejo onde se
vêem rendas azuis deste tipo. Formam uma das sec-
ções das cercaduras. O sr.dr. Vergílio Correia, que esta
notícia nos dá, cita, a propósito, ter visto em Itália
pratos de orla rendada (i).

Azulejos e loiça de mesa e botica, devia tudo pro-


vir damesma oficina ou grupo de oficinas.
Comummente a decoração deste tipo seiscentista é
a azul e a cor de vinho.

(i) Aptlejos datados, pág. 36, Lisboa, 1922.


44 —

Posterior a csics tipos há ainda o tipo Esponjado.


Deve ser do século x.viii. Como motivos decorativos,
empregam-se nele árvores, plantas, Hores, figuras, ani-
mais e arabescos. Aos azulejos deste tipo feitos no
fim do se'culo xvui chamavam os artífices: de pedra —
torta.
Ainda o sr. dr. Luís de Oliveira pretende criar uma
nova classificação entre a faiança do século xvii. É o
tipo Arabescos ou Espirais, assim apelidado pelo ca-
rácter da ornamentação. Na sua colecção. Sua Ex.^
tem um belo prato brazonado (Mendonças ou Fogaças)
dentro de uma moldura octógona, um boião, de tipo
arcaico, com quatro medalhões no bojo entre vários
compartimentos poligonais, e outras peças.
Tal ornamentação é de carácter oriental, sem a menor
dúvida, como o coleccionador justificadamente avança
a dizer (i). O pratinho do iMuseu de Arte Antiga que
pertenceu a Soror Catarina do Sacramento, deve in-

cluír-se neste tipo.

Todas estas peças do século xvii repetiram-se pelo


século seguinte fora, dificultando excepcionalmente a
sua atribuição a um período. Os brazões, como mo-
tivos decorativos de maior efeito, copiaram-se desaba-
ladamente. Só na colecção Ameal havia oito com o
leão heráldico, em escudos adornados de paquife e
elmo.

(i) Dr. [aiís de Oliveira, op. cit., pág. !o3.


-45-.
Evidentemente não escaparam todos ao mesmo pos-
suidor, posta de parle a hipótese inadmissível de os bra-
zões representarem a autoria do modelador ou do pintor.
Nem mesmo nenhum desses pratos se pode atribuir ao
fabrico quinhentista dos Freires de Palmela, como se
lhes não podem Bacalhoa, que
atribuir os azulejos da
são de Talavera, os de Sintra, que são sevilhanos ou os
do palácio Fronteira, que são marcadamente do sé-
culo XVII e nada têm de comum com os anteriores,
nem na feitura nem no estilo.
Quando o sr. dr. Luís de Oliveira diz não ter en-
contrado entre os apelidos dos oleiros das listas de
Vergílio Correia e de José Queirós, os que aparecem
no reverso dos seus pratos e conclui que tais artistas
eram fidalgos da Escola de Palmela, devia antes con-
cluir que, se lais nomes lá não estavam, era porque não
existiram tais oleiros, e se tratava, simplesmente, dos
donos dos pratos.
As peças que o mesmo coleccionador apresenta no
seu trabalho feito por ocasião da Exposição de Viana
de 191 5, como sendo do século xvi, são da centúria
posterior.
No Museu de Arte Antiga expõem-se três dessas
peças — poisa-jóias,
de aba recortada e relevada com
cabeças de anjo aladas, como se vêem no fundo de
pratos do tipo Aranhôes. Duas são polícromas, como
a sua que tem a legenda VAS-COMSELOS, apre-
sentando uma, no centro anversal, um busto de mu-
lher, e outra uma figura de homem. A terceira e'

esmaltada a branco-amarelado tendo, ao centro, um


brazão, a tinta azul, mais rude do que as três peças
que o autor também possui e que compõem a estampa
N.° 3 do seu livro. Em Talavera fizeram-se peças se-
melhantes.
^46-

Os pratos brazonados represenlaram, possivelmente,


a posse e a encomenda, mas depois nem já isso signi-
ficavam : — fabricavam-se apenas com o sentido decora-
tivo, como hoje se fabricam peças de adorno com as
armas reais por ser bonito.
;

Nos séculos XVII e xviii, os que se tratavam à lei

da nobreza, fidalgos e burgueses ricos, serviam-se de


joiça da China^ ou de Chincheo e ainda de vasilhas de
estanho que lhes vinham da Flandres, da Alemanha
e de Castela.
As faianças, os pratos de AranhÕes, Barôcos, de
Desenho miúdo e os outros, estavam em cozinhas e cm
tabernas, nos refeitórios das freiras pobres, como os
canudos e boiÕes não serviam de jarras, como hoje, e
se acantoavam em boticas.
Agora é que as faianças nacionais entraram nas sa-
las e nas mesas ricas.

O seu lugar, então, era nas cozinhas e nas alfur-


jas de beber vinho.
Um documento simplíssimo, com o dobrado valor
de não ser directo, derruba num ápice as hipóteses e
a teoria do sr. dr. Luís de Oliveira, quanto aos pratos
armoriados da imaginada «Escola dos Freires de Pal-
mela».
E um manuscrito — literatura joco-séria — incluído
numa «Miscelânea» (Códice 2.865 da Biblioteca dos
Condes de Ameal) em que se figura uma Audiên- <i

cia q Jiipiter fe:{ no monte Olyjnpoi^. Depois de com-


parecerem vários artífices e de serem julgados pelas
queixas feitas contra cies, aparecem os oleiros acusados
de muitas familias ilustres de q elles lhes sevandijavão
as suas annas, pondo-lh'as na louça^ as quaes se 2'iam
--47 —
pelas tavernas e pedião liS'^ (licença) p.^ ío?7iarem iodos

os pratos por perdidos cm que visse as suas armas.


Júpiter lhe dice q não se afrontassem por q anies isto
lhe servia de credito por mostrar tJiais dominios das
suas casas.
CAPÍTULO III

Sumário: As composições cerâmicas do século xvi que aparecem


datadas —
A propósito do púcaro de Coimbra, da colecção
de Mestre Gonçalves, faz-se uma digressão sobre púcaros
— Citam-se vários trabalhos acerca de tal matéria Pú- —
caros de oiro, de prata, de vidro e de barro —
A mania de
beber água e a de comer púcaros —O vasto assunto dos azu-
lejos — Enumeram-se os tipos dos azulejos nacionais: Ró-
tulos e Pendurados, Diamantes ou Jóias, Caixilhos, Laçaria e
Rosas, Tapete, Folhagens, Jarras, Painéis^ Motivo isolado,
Caricatura e Grinaldas —
Citam-se alguns pintores e as suas
obras —
Azulejos datados —
Os variados assuntos tratados nos
azulejos de figura — Fabricam-se azulejos no Porto e no Juncal
— Registos, figuras recortadas, cruzes, alminhas e lápides de
foro — Fica estabelecida uma linha genealógica e cronológica
no azulejo — Os escultores barristas — Frei Pedro, escultor
barrista da escola de Alcobaça, em 1676 faz umas figuras para
um Senhor de Tábua — Interessante documentação — A «louça
grossa das Olarias» e a «louça fina de Lisboa» — Um parecer
do bispo do Grão-Pará — Toponímia cerâmica— Em que se
diz ao leitor onde era o «largo da Cruz do Azulejo».

Julgo que ficou exuberantemente provado no capí-


tulo anterior,que antes da segunda metade do séc. xvi
não se fabricou faiança em Lisboa, e, como Lisboa foi
o primeiro centro de produção do pais, que se não fa-
bricou faiança em Portugal. As mais antigas datas
observadas são i558, i563 e 1684, estas duas, respecti-
vamente, nos azulejos da Bacalhoa e de S. Roque, assi-
nados por Matos, e a primeira no famoso piácaro de
Coimbra da colecção de mestre Gonçalves, hoje no
Museu Machado de Castro.
VOL. IV 4
— 5o —
De 1592 é datada a composição de azulejos, poli-
croma, com o brazão de Alcácer do Sal, que se en-
contra numa fonte desta vila, e de idqS os azulejos de
jóias ou diamantes^ a azul e amarelo, da igreja lisboeta
dos Jesuítas. São estas as datas que o século xvi dá
para a cerâmica portuguesa.
Daqui é que há que partir para observações e con-

clusões.

O púcaro de Coimbra, de barro vermelho, fino,

delicadíssimo, é uma peça de excepção, ricamente de-


corada com medalhões, cariátides, máscaras, festões
embutidos, verdadeira jóia do Renascimento, de rara
beleza e de interesse documental extraordinário.
Acerca da utilização de tal peça e da sua origem de
fabrico tem-se aventado várias hipóteses.
Seria uma peça modelada sobre outra, de prata?
^*

^ Seria um pijcaro, de luxo, para beber?


Quim Martins estuda minuciosamente o assunto, na
sua Cerâmica Coimbrã no século XJ7. Os púcaros
foram um objecto de luxo. Havia-os de oiro, de prata^
de vidro e de barro.
No
inventário da Infanta D. Isabel, mulher de Car-
los V, aparecem dois púcaros de vidro com asas de
oiro e uma sobrecopa de oiro esmaltado que serve de
púcaro^ e na lista das jóias de uma das filhas de D. Ma-
nuel vem um pratel de prata de levar púcaro^ dou-
rado^ de dentro efora(i).
Não sei de que matéria seria o piácaro que serviu
à Rainha Santa Isabel para nele fazer o milagre de

(1) Cerâmica Coimbrã no século XVI, por J. M. Teixeira de


Carvalho, pág. 106.
— !)! —
mudar o vinho em água, nem o que D. Pedro de Melo
deixou cair, na «sala de comer» do paço de Alcáçova de
Lisboa, diante de D. João II, nem o púcaro por onde
em Alcácer-Quibir D. Rodrigo de Melo estava bebendo
quando o pelouro o matou, nem ainda aquele púcaro
onde a Rainha D. Catarina molhava os dedos quando
fiava. Aquele, do feitio de urna antiga, em que D. Se-
bastião bebeu defronte do Cardial Venturino, legado
do Papa, e que tinha um palmo de alto, era de barro
de Estremoz. Os outros seriam de prata ou de oiro,
talvez.
Na «Taxa dos Oleiros de Coimbra de i573» há
menção de três géneros de púcaros: Púcaros para be-
ber com seu alguidarinho para debaixo e testo, pú-
caros de coruchéu com pé e púcaro para beber, chão,
sem pé{\).
Os púcaros de barro honravam-se também com
irem contados na bagagem das princesas. No Inven-
tário da Infanta D. Beatriz contam-se 58 púcaros de
barro, sendo alguns apedrados (2).
Filipe II quando esteve em Portugal (i58i a 1682)
mandou encomendar em Estremoz púcaros de barro
para mandar às infantas (3).
Camões, falando em certa dama, dizia: chia como_
pucarinho novo com água; Gil Vicente Já citara enco-
miàsticamente esta vasilha, pondo na boca de Branca
Dias, no Auto da Feira

Eu queria ser pucarinha


pequenina para mel.

Rodrigues Lobo fala poèticameate, ao lado da talha


pedrada, num pucarinho de feição.

(i) Cerâmica Portuguesa, pág. 104.

(2) Idem, pág. I iG.

(3) Idem^ pág. 109.


— D2 —
Lope de Vega aponta os púcaros e os barros de la
Maia, numa come'dia anterior a 1600, e Duarte Nunes
do Leão, na sua Descripção de Portugal, faz o elogio
do púcaro com todas as redundâncias do estilo do
seu tempo, encomiando o seu aroma, o seu talho, a
eterna mocidade dos púcaros de Montemor que não
envelheciam, bastando que os roçassem, cheios de pe-
drinhas a esmaltá-los a frescura dos do Sardoal, onde
;

a água ressumava e por isso esfriava notiwelmente os ;

de Pombal, de que se fazia grande estima e, sobre-


;

tudo, os de -Estremoz, de barro tão coado e liso como


se fosse vidro, cheirosos e saborosos como nenhuns.
E acaba dizendo
«£ não lie de espantar fazerem os portugueses tanto
caso da Baxella de simples barro para beberem por-
que (como deles escreveu Strabão) sam naturalmente
bebedoures de agua, e por isso buscam vasos da terra
para que sempre lhes pareça que bebem na mesma fonte.
O Tratado da Grandeza, Majestade e Abastança
da cidade de Lisboa, de João Brandão, dá relevo a
esta predilecção dos bebedores computando, em i552,
em dois mil cruzados o valor do comércio dos púcaros
de Estremoz.
Compreende-se bem que Bellini, que Quevedo e
que Lope de Vega os cantassem, que em Roma esti-
vessem nos gabinetes dos Monsenhores e dos Cardiais,
e nos Museus, que para a índia se mandassem encai-

xotados e que Francisco Rodrigues Lobo escrevesse,


na Corte n Aldeia como em pragmática, <^que o beber
seja sem pressa e com tento, não levantando o púcaro
quando outrem o tenha na boca».
Este assunto de púcaros é vastíssimo. D. Carolina
Michaèlis de Vasconcelos exgotou-o no seu trabalho,
intitulado Algumas palavras a respeito de Púcaros de
Portugal, em que, honrosamente para mim, cita um
— 53 —
estudo meu, publicado na Atlântida, sob a forma de
diálogo clássico, que denominei Os Púcaros. E uma
entrevista imaginosa com um púcaro de cozinha.
Sobre a Bucarofagia, a ilustre filóloga e romanista
dá interessantíssimos pormenores. A mania de comer
pLicaros foi uma praga nos séculos xvii e xviii. Às
notícias inéditas que dei no meu referido trabalho,
tiradas da Fénix Renascida, dos Apotegmas, de Supico
de Morais, das Observações Doutrinais de Curvo Se-
medo e das Cartas do Cavalheiro de Oliveira, acres-
cento para a curiosidade dos leitores um Romance de
Tomás Pinto Brandão, no Pinto Renascido, «feito a
uma noiva que indo beber água se perturbou, de sorte
que lhe caiu o púcaro» (i).
Neste Romance cita-se o famoso Romão, o Romão
das Olarias que fazia uns púcaros de massa tão del-
gada «como a dos bolos que se dão nas diferentes festas
dos Santos fora da terra», como diz o Coronel Fran-
cisco Coelho de Figueiredo (^2).
As damas bebiam a água e comiam o púcaro a se-
guir. E o excesso foi a tanto que o «Regimento Novo
dos Oleiros», de 21 de Janeiro de 1797, proibia o fa-
brico dos púcaros de cambraia, e uma postura da câ-
mara, do mesmo ano, defendia que se fabricassem as
pastilhas de barro que se vendiam, depois, para os
substituir e manter o vício.

Os púcaros da Maia, tão nomeados pelos antigos


e cujo nome se tem querido fazer derivar de um oleiro

Maia que tinha a sua oficina à calçada de Agostinho


de Carvalho, devem antes filiar-se noutra origem.
Miguel Leitão de Andrade, na Miscelânea, refere-se

(i) Pinto Renascido, Empenado e Desempenado, pág. 498.


(2) Volume XIV do Theatro de Manuel de Figueiredo, Anota-
ções finais.
-54-
às Maias como sendo as «galantes da corte», nome que
lhes davam pelo excessivo ornato do trajo que sugeria
os excessos sumptuários das festas populares desse
nome.
Os púcaros das AJaias ter-se-iam transformado em
púcaros da Maia. É uma hipótese, que possivelmente
se poderá justificar. Os oleiros Maias que viveram no
se'culo XVIII é que não iam denominar os quinhentistas
barros cortesãos.

E veio tudo isto a propósito do famoso púcaro, da-


tado, da colecção de mestre Gonçalves, que se encon-
trou num sótão de Santa Cruz com restos de outros,
lampas de coruchéu, e vidros velhos partidos.
Em resumo Esta peça excepcional tem de se con-
:

siderar à margem dò nosso assunto, visto não se tratar


de faiança, mas sim de obra de barro vermelho cozido
e lustrado apenas, embora documente o alto grau de
aperfeiçoamento dos oleiros ou, pelo menos, de um
oleiro quinhentista.

O estudo do azulejo constitui, só de per si, um


campo vastíssimo de observação.
Portugal durante os se'culos xvii exviii inundou se
de azulejos. Conventos, igrejas e capelas, palácios,
nos interiores e nas fachadas, revestiram-se de faianças
brilhantes, de uma grande riqueza decorativa. De norte
a sul, rara é a povoação onde esse elemento de deco-
ração construtiva não intervém.
Os azulejadores do centro cerâmico lisboeta produ-
ziram quantidades espantosas desses revestimentos, al-
guns dos quais aparecem, no norte, assinados pelos
alfacinhas Nicolau de Freitas, António de Oliveira Ber-
— DD —
nardes, Bartolomeu Antunes, Policarpo de Oliveira
Bernnrdes e outros.
No sul, assinando o revestimento cerâmico da igreja
da Misericórdia de Olivença, aparece o de Manuel dos
Santos, que tinha a sua oficina, também, em Lisboa.
Gabriel dei Barco assina, igualmente, variadas compo-
sições em templos alentejanos.
Após um período de decadência, passados os pri-
meiros oitenta anos do século passado, o azulejo en-
trou a progredir, a desenvolver-se e a aperfeiçoar-se ;

e hoje, tornado moda outra vez, entrou de novo a fa-

bricar-se e a pintar-se em larga escala, utilizado não só


como simples revestimento de fachadas e de paredes
interiores, mas como elemento decorativo, adstrito ao,
chamado, estilo construtivo nacional.
Já muito se tem escrito sobre a história do azulejo
português. Depois de Queirós, que alinhou uma série
de datas, baseando-se em informações e conjecturas de
Gabriel Pereira, Joaquim de Vasconcelos e João Maria
Nepomoceno e ainda nas suas próprias observações, o
Dr. Vergilio Correia no seu trabalho Áiiilejos Datados
(duas edições), acertando algumas hipóteses, estabele-
cendo novas classificações e anotando datas e períodos
de feitura de numerosas guarnições cerâmicas, dilatou
os horizontes desse ramo da arqueologia artística e
pôde, com o seu espírito de investigador e o seu bom
critério, fixar ideias seguras.
Sabe-se já que os azulejos da Bacalhoa, os do Paço
de Sintra e os da Sé Velha de Coimbra são, uns de
Talavera e outros de Sevilha, e que de lá vieram, os
primeiros já influenciados pela arte dos artífices ita-

lianos da Renascença. Os de Vila Viçosa, atribuídos


a 1D70 e tantos, do Papa
serão italianos — presente
Pio V aos Duques, como conjectura José Queirós por
simples pressentimento —
serão de Talavera, como os
— 56 —
da Bacalhoa, ou ainda, possivelmente, portugueses (i).
Os motivos decorativos são máscaras, frutos, armas,
rótulos, «cartouches», figuras, elementos heráldicos, em
dois frisos.
Desse revestimento polícromo estão dois quadros
no Museu de Arte Antiga, que figuraram em 1867 na
Exposição de Paris, e que, à volta, o rei D. Luís ofe-
receu às Janelas Verdes.
Os azulejos da capela de Garcia de Rezende, no
Espinheiro (Évora), os da Matriz de Viana de Alvito,
os da igreja ^de S. João Baptista do Lumiar (verdes e
brancos, de caixilho), atribuídos, respectivamente, por
Gabriel Pereira, a i52o, i525 e i552, são posteriores a
estas datas.
A data dos do Lumiar está na pia baptismal, o que
não documenta o período da pintura. Azulejos de cai-
xilhos desse tipo, íizeram-se pelo século xvii fora.
De 1647 estão datados, por exemplo, os da capela
do Penedo em Sintra (2).
Parte dos revestimentos da igreja da Graça, de Lis-
boa, são de azulejos polícromos com elementos deco-
rativos «Renascença» do tipo a que Queirós chamou,
seguindo Joaquim de Vasconcelos, rótulos e pendu-
rados.
Este erudito investigador marca-lhes o período de
fabrico, de 1570 a i58o; mas Queirós prolonga-o até
iSgo.

l
Serão também de Talavera ?
Do fim do se'culo xvi são os azulejos do tipo jóias
ou diamantes^ da entrada, sob o coro, da igreja de São
Roque, de Lisboa, e os da sacristia da Casa Pia de

(i) Consegui vê-los recentemente (no dia 28 de Setembro de


igSo) e ficou-me a impressão de que o poderiam ser.
(2) Azulejos Datados, págs. 20 a 26, Lisboa, 1926.
-57-
Évora, os primeiros datados de 1596 e os segundos de
i599-
Estou em crer que os «ide ornato» datados de i584,
que decoram a capela de São Roque da primeira destas
casas religiosas e que Francisco de Matos assina, são
os mais antigos azulejos provadamente nacionais que
possuímos.
É dai que temos que começar a contar, a classi-
ficar e a metodizar o estudo.
Duas composições cerâmicas notáveis, reflectindo a
mesma influência italiana, vinda indirectamente por
Talavera, apareceram então a da Capela de Nossa
:

Senhora da Vida, que estava na destruída paroquial


de Santo André e que foi restaurada e trasladada para
a Biblioteca Nacional em i865, e a da Capela de Santo
Amaro, sobranceira a Alcântara, ambas polícromas, a
primeira atribuída a 1600 por Queirós e a segunda a
1610, pelo mesmo ceramógrafo.
Nos «Senhora da Vida» intervêm dia-
azulejos da
mantes, como São Roque, juntamente com pilas-
os de
tras arquitecturais ladeando nichos com figuras nos ;

de «Santo Amaro» pormenores agiológicos, pilastras,


cariátides, máscaras, figuras, anjos, aves e borboletas,
e ainda o motivo decorativo das pontas de diamante.
Por pressentimento, suponho nacionais estas duas
obras cerâmicas.
Quanto a mim, a «ponta de diamante» entra já ali

como assinatura portuguesa, pois julgo ser este elemento


o primeiro com que os nossos ceramistas caractizaram
os azulejos do seu fabrico e que define o primeiro tipo
a classificar. A capela do Convento do Carmo em Co-
lares, estudada pelo Dr. Vergílio Correia, forra-se em
1612 deste azulejo de diamantes (i).

(i) Ajulejos Datados, pág. 11 e 13.


— 58 —
Segue-se, eni ordem de antiguidade, o
tipo do enxa-
dresado a branco ou verde, a que o ilustre Di-
e azul,

rector do Museu Machado de Castro chamou, e bem,


de caixilho, que se féz, pelo menos, em toda a pri-
meira metade do século xvii.
Há-os datados de 1617, 1620, 162C), 1647 e abun-
dam no Alentejo e ao derredor de Lisboa Póvoa de —
Santo Adrião, F^anhões, Espírito Santo de Bucelas,
etc, etc.
O tipo a que José Queirós chamava de tapeie e que
o Dr. Vergítio Correia chama de laçaria e rosas, que
precedeu o úpo padrão, pela simplificação do desenho,
cingindo-se a cada azulejo o desenvolvimento do motivo
ornamental a azul e amarelo, fabricou-se durante todo
o século XVII.
Os mais antigos azulejos que aparecem datados são
os da capela da Pena (1619), e os mais modernos, de
1674, na Misericórdia de Torres Novas, o que não
quere dizer que se não fabricassem ainda posterior-
mente.
Esta denominação de laçaria e rosas é já antiga.
Vem mencionada num manuscrito — Tratado da Cidade
de Portalegre — feito em 1609, e publicado1919 em
pelo meu erudito amigo, António Torres de Car-
sr.

valho, em Elvas. Foi do seu conhecimento, denun-


ciado por Vergílio Correia, que este professor a ado-
ptou.
Os azulejos deste tipo resultam da combinação de
grupos de quatro folhas espalmadas, saídas de um qua-
drado e de um octógono concêntricos, passando um
anel branco pelas extremidades superiores das folhas,
onde elas levemente se envolvem, e por meio do qual
se faz a ligação com os outros grupos (i).

(1) Ajiilejos Datados, pág. i5.


-59-
Algumas vezes este tipo parece associado com o de
caixilho nas mesmas decorações cerâmicas, como acon-
tece na do Penedo (Sintra) c noutros templos.
O tipo padrão de tapete ou só tapete, fabricou-se
durante todo o século xvii,como o de laçaria e rosas,
associado com este ou com o de caixilho, às vezes,
como na Misericórdia de Torres Novas.
Variantes destes há o úpo folhagens que se admira
na igreja de Nossa Senhora de Brotas e na igreja do
Salvador, em Torres Novas. Em todos estes, mas
mais logicamente no tapete^ aparecem, nas paredes
dos templos, quadros embutidos com representações
humanas, geralmente scenas do agiológio e vasta figu-
ração bíblica.
Na capela do Penedo, já citada (1628), há sete qua-
dros com passos da vida de Santo António e scenas da
Paixão com intervenção do Santo na igreja de São ;

Quintino (Sobral de Monte Agraço) um quadro do bap-


tismo de Cristo, uma Nossa Senhora da Piedade e a
Adoração da Cruz na capela do Corpo Santo, da Ma-
;

triz de Vila do Conde (1G22) igualmente se utilizou o

mesmo processo decorativo ; e na matriz de Souzel,


fazendo o fundo aos dois altares laterais do arco triun-
fal, vêem-se também dois quadros embutidos represen-
tando, a azul e a amarelo, um Nossa Senhora do Ro-
sário e outro Santa Clara.
No meado do século xvii o azulejo nacional fortifica
o seu carácter que em breve vai definir-se, marcada-
mente, com as grandes composições iconográficas, a
azul.
Aparece então o tipo do azulejo de jarras: pilas-
tras coroadas de vasos enramados de flores, cercando
golfinhos e torcidos a formar uma moldura interna que
abrange albarradas floridas com asas de sereias aladas,
tudo a azul sobre fundo branco. Toda a composição é,
— 6o —
em geral, encaixilhada em cordas de flores, em volutas
ou nestas duas faixas decorativas, como na capela da
Senhora da Saiide de Montemor (i).
Das oficinas de Lisboa começaram então a sair,
no fim do segundo quartel do século, essas estupendas
guarnições de painéis figurando passos, quadros e sce-
nas religiosas e profanas que até aí apenas se viam em
pequenos painéis embutidos em tapete e em laçaria e
rosas ou fazendo parte de composições de estilo arqui-
tectónico, como elemento acessório.
A apareceram
primeira dessas composições que
datadas é a guarnição de uma
no palácio do Ca-
sala
Ihariz, em Azeitão, pertença dos senhores duques de
Palmela, solar construído ou totalmente restaurado no
segundo quartel de seiscentos.
Nos quatro painéis que lhe formam o silhar cerâ-
mico, vê-se, em
cada um, ao centro, uma oval com
figuração bélica cercada de um entresachado de atri-
butos guerreiros que constituem a maior superfície.
Na lâmina de uma bisarma ou alabarda, pintada no
painel que fica entre as janelas, está a data — 1645 —
O desenho é incorrecto e mole, e o azul frouxo e des-
vanecido.
Noutra sala do mesmo palácio a guarnição cerâ-
mica, representa uma batalha naval — a de Lepanto — ?

vendo no painel que fica entre as janelas, figurando


se
o brear de uma nau acostada, a data de 1672, num
dos caixotes que estão no cais. Nos quadros navais
vcem-se naus com bandeiras portuguesas, com cruzes
de Malta, com escudos indeterminados e com barras
horizontais.
Outras salas são revestidas com azulejos de assuntos

(1) Cerâmica Porluguesci^ de José Queirós, pág. 240, e Azu-


lejos Datados, do Dr. Vergílio Correia, pág. 17.
— 6i —
mitológicos, de caça grossa, de caça às abetardas, patos
bravos, ctc. A «de visitas» guarnece-se de alegorias
marítimas, como a Coroação de Neptuno, etc. ; a cha-
mada aSala Grande» com painéis de caça; a «de Jan-
tar» com azulejos de países; a «de Bilhar» com mito-
logias ; e a da Biblioteca, com um silhar figurando a
História de D. Quixote, oculto pelas estantes.
Alguns quartos, nesta ala do palácio, são também
decorados com silhares de azulejos, a azul e côr de vi-
nho, que me pareceram dos mais antigos de todos,
apresentando o carácter das primitivas faianças de mesa
e botica. Toda a decoração cerâmica deste solar é do

se'culo XVII. Os azulejos da capela estão datados de


1696 representam a vida de São Francisco. O de-
e

senho incorrecto e o azul duro. Todavia não são tão


e'

mal desenhados como os azulejos da igreja de Nossa


Senhora da Orada em Souzel, que devem ser da mesma
época ou anteriores (i).
De 1686 era a guarnição cerâmica da ermida de
Nossa Senhora do Monte, na quinta da Ramada em
Frielas, devida ao pintor ceramista António de Oliveira,
dispersada há anos, na ruína da capela, por sucessivos
roubos. Era de desenho seguro e correctíssimo e de
um lindo azul desmaiado.

A decoração cerâmica desta igreja é seccionada em três


(i)
partes. A primeira é um silhar de leões pintalgados, frutos e flo-
res em festões. A segunda é constituída por uma série de pai-
néis com a vida de Nossa Senhora, horrivelmente desenhados. O
menino Jesus, nas palhas, parece um bicho. A secção superior,
feita, seguramente por outro artista menos ruim, alude à batalha
dos Atoleiros e à fundação do templo pelo Condestável, vendo-se
em todos os quadros Nuno Alvares Pereira, e num deles, em que
se traja de guerreiro com elmo emplumado, numa tarja, a frase
Sus a ele, saíndo-lhe da boca, que a lenda diz ser a origem de
Sousel. Estes azulejos devem ser do meado do século xvii e têm
relações de parentesco com os da capela do palácio do Calhariz.
— 62 —
Dêsle mesmo artista eram os azulejos da igreja
dos Lóios de Lisboa, datados de 1711 e muitos outros,
Outro artista, espanhol, chamado Gabriel dei Barco,
exerceu cá, por esse tempo, a sua actividade. Há e
havia trabalhos dele, assinados ou seguramente atri-
buídos, porque o seu estilo é inconfundível, em Santa
Maria de Óbidos (1693), no palácio do Conde da Ponte,
ao Calvário (Lisboa) feitos em 1697, nos Lóios de Ar-
raiolos, em 1691 e 1700, em Santa Iria (1G98), em
São Tiago de Évora em 1699 ^ ainda na capela-mor
da igreja da Charneca, na igreja do Asilo da Rua For-
mosa e na Madre de Deus, de Lisboa.

Gabriel dei Barco tinha a sua oficina em Lisboa,


onde viveu e casou nada menos de três vezes (i).
Desenhava com grande incorrecção, mas pintava com
um grande sentido decorativo e o seu azul começa a
graduar-se.
Um certo ar oriental que se nota nas suas figuras
e acessórios reflecte já a influencia olandesa. Barco
compunha inteiramente livre da escola castelhana de
Talavera e consequentemente do influxo italiano que
lá perdurava.
O progresso das oficinas portuguesas vem deste
período de brilhante actividade. A António de Oli-
veira e a êle, outros sucederam, como os Bernardes,
os Freitas e os Antunes, das «Olarias» de Lisboa.
Portugal sôbrepunha-se à actividade espanhola. No
azulejo, Talavera e Sevilha começaram a decair.

(1) Nos registos paroquiais de Santos-o-Velho asscntam-se


os três casamentos de Gabriel dei Barco, que, como se vê, não
perdeu ocasião de se ligar com as portuguesas. Em 18 de Abril
de 1701, já viúvo, segunda vez, de Agostinha das Neves, casava
nessa igreja paroquial com JVlaria Tereza Baptista, filha de Vnm-
cisco Baptista e de Maria Smiões. A sua oficina era aqui em
Santos o-Velho, onde residia.
— 63 —
Os assunios bíblicos e mitológicos, os símbolos sa-
cros, as vidas dos Sanlos padroeiros e dos beatos e
fundadores (como o Frei António da Conceição— o
Beato António cm Xabregas, Frei Gonçalo de Lagos,
e D. Frei Aleixo de Meneses, no convento da Graça
de Torres Vedras e no de S. Bernardino de Peniche);
toda a história religiosa ; as fábulas (como em S. Vi-
cente as scenas de toiradas (Jardim da
de Lisboa) ;

Estrela Quinta das Areias, em Vila Franca, que


e
foram de um palácio de Povos) e as scenas de pica-
deiro, como na casa n." Sg da Rua de São Bento,
citada por Queirós os assuntos de lavoura, como na
;

referida quinta das Areias ; as scenas de interior, jogos,


cortesanias, danças, e quadros de mesa ; as caçadas e
pescarias ;combates navais, marinhas e motivos
os
náuticos, como no antigo palácio do pátio das Vacas,
hoje Museu Agrícola Colonial as scenas campestres de
;

jogos da bola, merendas, e outros divertimentos de jar-


dim; as naturezas-mortas (enchidos, peças de caça e de
capoeira) e as scenas culinárias da matança do porco
e dos trabalhos de Vatel, como no palácio da Mitra em
Santo Antão do Tojal, no do Correio-Mor em Loures,
numa cozinha à Cruz das Almas de que logo fala-
rei, e no convento de Refojos do Lima ; e as simples
paisagens com fundos de arquitectura a que então se"

chamava azulejos de países, como na Matriz de Alco-


chete e cm muitas salas de palácios, inundaram então
todo o país, produzidos nas oficinas de Lisboa.
Do líltimo quartel do se'cuIo xvií ao fim do terceiro
quartel do século seguinte — cem anos contados, —o
azulejo alfacinha campeia sem competência, indepen-
dente e cheio de carácter próprio.
Outros tipos de azulejo convém também citar. O
tipo,que podemos chamar de caricatura, fêz-se no sé-
culo XVII, pintado comummente a azul e côr de vinho.
— 64 —
no Beato António de Xabregas, hojé
Existiam
trasladado para a Quinta de São João na estrada de
Monsanto, propriedade do Dr. Álvaro Franco Teixeira,
e existem ainda no palácio do Pátio das Vacas e nos
jardins do Palácio Fronteira em São Domingos de
Bemfica.
Estas composições aproveitam, principalmente, os
animais em acções humanas. O
macaco, o gato, o cão
e o rato são em geral os preferidos. Nos de Xabregas,
hoje na quinta citada, vêem-se, entre outras scenas cari-
catas, como a de umas «tourinhas» de canastra, e um
quadro representando uma visita a um doente sangrado,
um gato que vai a enforcar acompanhado de ratos,
um macaco a experimentar uma cabeleira, etc. Nos
dos jardins do Palácio Fronteira há uma scena musical
em que uma se'rie de quadrumanos locam vários instru-
mentos, um rege a orquestra e outro se mostra de
palmatória em punho. Os do Museu Agrícola Colo-
nial são também de um pitoresco admirável.
Outro tipo é o de motivo isolado^ imitação do azu-
lejo olandês e do que se fabricava em Ruão, repli-
cando esse estilo. Umas vezes a azul, outras a cor de
vinho, a composição mostrava-se dentro de um filete
circular, decorando-se os ângulos com uma cravina ou
um ornato florido, como alguns que o autor possui e

que foram da colecção do Dr. João de Sousa Faria e


Melo, leiloada em 1920.
Os nossos adornavam se, aos cantos, de um ornato
trilobado, de uma pinta simples ou de uma cruz com
pintas intervaladas nos braços (Matriz de Alcochete —
17 15) e o assunto decorativo eram, em geral, aves,
coelhos, cães, caçadores, amuletas», embarcações com
dois latinos, flores estilizadas, etc, repetindo os moti-
vos empregados na faiança de cozinha, mesa e botica.
Aparecem também, raras vezes, figuras chinesas,
— 65 —
como reminiscência dos elementos decorativos do tipo
desenho fiiiúdo. A «Casa
do Paço», na Figueira da Foz,
duas salas do Palácio Murça, que depois foram cama-
ratas do Asilo de Santo António dos Capuchos, o asilo
das Velhas de Coimbra, na rua da Sofia, contêm nu-
merosos espécimes destes azulejos. Os da «Casa do
Paço» são olandeses os do asilo coimbrão são por-
;

tugueses e extraordinariamente interessantes, reprodu-


zindo muitos dos azulejos jogos populares, como o ma-
Iheirão, e outros, scenas de interior e exterior. Estão
assinados (i).

No «Senhor Roubado» em Odivelas (1744), apare-


cem também dêsies azulejos, a que alguns chamam de
figura avulsa (2).
Os motivos decorativos dos deste tipo fabricados na
Olanda são scenas religiosas, paisagens, cavaleiros
seiscentistas, marinhas com embarcações e moinhos
típicos, etc.
Nós, aproveitando a ideologia da decoração, azulejo
por azulejo, repetimos neles os motivos ornamentais das
nossas faianças, tais como a renda^ os ornatos das
peças chamadas de tecido oriental e a técnica dos
perfis a cor de vinho e dos cheios a azul e amarelo,
em frontais de altar, como o que se vê no Museu
de Arte Antiga, nos que foram do mosteiro da Espe-
rança, e em outros que citamos ao tratar desses tipos
decorativos.
Além destas composições largas, algumas de di-
mensões que exigem um grande fôlego concepcional e

(i) S. PEDRO I
PIN 1
TOR SOV| |
EV.
(2)Nas Francesinhas, mosteiro hoje demolido, havia muitos
azulejos deste tipo assinados por Garcia Ramires e datados de
1691. Garcia Ramires devia de ser espanhol, embora trabalhando
em Lisboa.
VoL, IV 5
— 6G -
uma execução apurada, os nossos azulejadores fabrica-
ram os lindos quadros de intenção patronal, evocativa
e religiosa, chamados habitualmente Registos, alguns

dos quais —
como as Adorações do Sanlissiino poli-
cromos, que se admiram em Évora e em Lisboa são —
de um ornamental muito de notar. Outros são
efeito
comemorativos, como o do Terremoto, no Monte de
São Gens, mas a maioria são de invocação religiosa,
representando a Virgem, santos e santas.

A figuração que mais predomina é a de São Marçal,


por ser advogado contra os fogos, a de Santo António
e a da Senhora da Penha de França. Fizeram-se du-
rante todo o século XVIII em grande abundância para
guarnecer fachadas, átrios e patamares, sendo lindos
os registos polícromos do fim desta centúria, tão fre-
qiientes nas escadas da Baixa, com as imagens dentro
de molduras ovais.
Figuras recortadas em azulejos, polícromas ou só a
azul, vêem-se tambe'm em vários pre'dios de Lisboa,
como nos patamares de um na rua de São Boaventura,
noutro na rua de São Bento, n." 14, na quinta de São
1

João, do Dr. Álvaro Franco Teixeira, já referida, que


eram de uma casa do largo do Pelourinho, no palácio
dos Guiões, na casa D. João V do sr. Jorge de Ávila
Graça, no Campo Grande; numa fonte em Azeitão,
e ainda no palácio dos Meios em Vila Franca de
Xira.
Cruzes, «alminhas», lápides de foros abundam tam-
bém pela capital, saídas das oficinas dos azulejadores
alfacinhas.
Três decorações cerâmicas notáveis, cerca de Lis-
boa, são as do Palácio Pombal em Oeiras, as do Paço
do Patriarca em Santo Antão do Tojal e as do palácio
Fronteira.
Estas, feitas no século xvii a maior parte, são de
-67 -
uma variedade extraordinária tanto nas paredes do
solar dos Mascarenhas como nos jardins : cenas de
batalhas, retratos, figurações simbólicas e alegorias,
caçadas e pescarias, cariátides e medalhões, ornatos
e decorações naturalistas, umas polícromas, outras só
a azul,formando um admirável conjunto. No palácio
de Santo Antão do Tojal, a escadaria e a cozinha são
ricamente ornamentadas. Aquela é de um surpreen-
dente pitoresco, e representa, acompanhando os ba-
laústres nos lanços e patamares, a azul e amarelo, uma
série deexemplares da fauna exótica.
O palácio de Oeiras é outro museu de azulejos, a
maioria dos quais, emmoldurados policromamente, fo-
ram feitos Ainda a celebrada Quinta dos
no Rato.
Azulejos, a casa dos Condes da Guarda em Cascais e
outras muitas residências se adornam de preciosos azu-
lejos, sem falar em conventos, igrejas e capelas. Em
volta da capital a sinfonia cerâmica dos revestimentos
ouve-se apoteòticamente.
O que é raro e' verem-se composições iconográficas
deste tomo, pintadas totalmente a um tom de vinho
quási rosado. São assim os quadros da «Ceia» e do
«Lava-pés», emmoldurados policromamente na capela-
-mor da Matriz de Alvor. O efeito é agradabilíssimo.
Bom é em
Lisboa se fabrica-
de notar que não só
ram azulejos ornamentais. No recente livro do sr. Pe-
dro Vitorino, Cerâmica Portuense, vem uma nota
adicional de grande importância, donde consta que em
Abril de i6o5, o oleiro de Vila Nova (Gaia), Bastião
Ribeiro, recebeu ^íipboo réis por 908 azulejos (talvez
frontais) que fez para o «Altar do Pátio», a 5 réis cada
um.
Isto parece provar que ao começar o século xvii
já se fabricavam azulejos no norte.
No convento de São Francisco de Alcobaça e na
— 68 —
igrejados Milagres (Leiria) vêem-se azulejos fabri-
cados no Juncal, respectivamente, em 1791 e 1795.
Depois da acção fabril do Rato o azulejo modifi-
cou-se e criou-se um novo chamarei de gri-
tipo a que
naldas. É em Fêz-se até findar o
geral polícromo.
primeiro terço do século xix. Muitas das construções
do final da décima oitava centúria (prédios da baixa)
têm-nos em rodapés altos e silhares. Na igreja da
Estrela há lindas variedades deste tipo, em que inter-
vém o gosto, para não dizer o estilo, Luiz XVI (i).

Quanto aos «escultores barristas», título de um dos


capítulos da Cei^vnica de José Queirós, pouco tenho
a acrescentar, mas esse pouco é interessante.
Queirós
fala nas escolas de Aveiro, Alcobaça, Mafra, nos cen-
tros produtores da imaginária popular de barro, e nas

(1) Em geral estas guarnições têm afinidades no desenho e


na «maneira» com as loiças atribuídas à «Bica do Çapato». São
os mesmos amarelos torrados, os mesmos ornatos de carácter ve-
getal que semelham algas, feitos a côr de vinho. Abundam neles
as molduras ovais coroadas pelo laço Luiz XVI abrigando figuras
a azul, aves, mascarões e cariátides. O salão da residência ati-
nente ao Teatro de S. Carlos na rua 16 de Outubro, e que a este
teatro pertence, assim como a escada e alguns outros gabinetes,
são guarnecidos de ;izulejos deste tipo, dos mais perfeitos que
lenho visto.
Os registos policiemos, onde o amarelo vivo sobressai, que se
encontram em muitas das escadas pombalinas, simples ou duplos,
decorando a parede sobre as vergas das portas dos patamares,
são, na grande maioria, igualmente deste tipo. São vulgares neles
as imagens dos Santo Antónios, São Marcais, Senhoras da Con-
ceição e da Penha de França, dentro de ovais engrinaldadas. A
maneira da composição, o estilo e a côr denunciam uma comum
autoria de artista ou de oficina.
- fxj -
figuras dos Presépios, algumas devidas às mãos artistas
de Machado de Castro, mas todos os documentos plás-
ticos citados referem-se ao século xviii, sendo os mais
antigos as estatuetas dos artistas de Aveiro que figu-
raram na Exposição realizada nesta cidade em iSgS.
A placa de barro relevado, atribuída, por palpite,
à pintora Josefa de Ayala (Josefa de Óbidos) e repre-
sentando uma sacra-família, é possivelmente do sé-
culo XVII, mas nada o prova seguramente. O estilo da
obra até parece contrariar a hipótese. No reverso tem,
na pasta : No Pinhal de Óbidos. Nem data nem assi-
natura. No anverso está prateada.
Do século xvu eram sem dúvida as esculturas, hoje
perdidas, de que
vou dar conhecimento ao leitor,
feitas em Alcobaça em 1676. Destinavam-se a D. An-
tónio Alvares da Cunha, Senhor de Tábua, que estava
então nas Caldas da Rainha, acompanhando nos ba-
nhos a Infanta D. Maria, filha de D. João IV, como
cortesão. Os documentos que dão a notícia são três
cartas escritas por Frei Jerónimo de Saldanha, frade
bernardo de Alcobaça, ao fidalgo de Tábua descen-
dente do irmão de Santo António (i).

A primeira carta diz que as feguras de V. 5." mJ*^


tempo ha estão feitas^ e dela se conclui que fora Frei
Jerónimo o encomendador dos barros, para D. António,
que fora um Frei Pedro que se encarregara da coze-
dura, e que o Saldanha tinha ido a Ceiça esquecendo-se
da ordem e o forno levava dois dias a cozer, tendo
cada uma das esculturas doze pedaços.
Pela segunda carta vê-se que D. António Alvares
da Cunha instava pelas figuras e que Frei Jerónimo se

(i) Códice manuscrito que foi vendido sob o n.° 2:583 no leilão

da Livraria do Conde de Ameal, pág. 263, 273 e 274 —


datado de
1G76, O códice pertencera ao arquivo da Casa dos Cunhas.
— 70 —
queixa de que não tem quem lhe vá buscar a lenha,
razão porque a cozedura se não fizera ainda.
A terceira missiva do frade acusa a recepção de
3;jí)000 réis com que darei calor a que se ponham as
figuras em para irem o mais breve e fala no frade
via
que as fez, que era o tal aFrei Pedro», dizendo que a
cozedura devia ser rápida por as feguras serem de
barro.
Evidentemente tratava-se de uma obra dos escul-
tores tonsurados de Alcobaça que fizeram as figuras
da Morte de São Bernardo, o sumptuoso Relicário do
topo da Sacristia e as estátuas da Sala dos Reis. Frei
Pedro seria um dos escultores dessa impressionante
scena da Capela de São Bernardo.
l
Que figuras seriam estas cuja demora tanto impa-
cientava o Senhor da Tábua? ^Imagens religiosas,
alegorias, divindades mitológicas?
j
Vão lá sabe-lo agora !

Ainda antes de entrarmos no estudo da Fábrica do


Rato, alguns breves parágrafos para fechar este ca-
pítulo.
De oficinas, em grande, anteriores à fundação pom-
balina, não há noticia segura. A fábrica do Gajão em
Santarém e a do Beato António em Lisboa aparecem-
nos sob um aspecto lendário. A pequena indústria,
como hoje se diz, disseminava-se pela capital, acumu-
lando se principalmente nas «olarias» à freguesia dos
Anjos e em Santos, a São Bento e às Janelas Verdes. A
sua produção, chamava se cá em Lisboa a louça grossa
das olarias, como se vê na verba que diz respeito à
louça, na conta das Festas de Inauguração da Estátua
— 71 —
Equestre em 1775(1). Para os lisboetas o que não
fosse loiça da China, da carreira da índia, era loiça
grossa.
Já na província o criteVio era outro, e aos produtos
mais apurados da capital chamava-se loiça fina de Lis-
boa. E assim que aparecem nomeados innte pratos.,
com seus bicos d roda., num inventário feito em Santa-
rém em 1700 por óbito de D. Ana Oliveira Leite, mu-
lher de Rodrigo Machado Carvalhal (2).
D. Frei João de São José Queirós, bispo do Grão
Pará, fazia a mesma depreciativa opinião das faianças
e barros do nosso fabrico.
Escrevendo ao Conde da Ponte dizia assim: «Do
que V. Ex.^ me diz do conde de Oeiras não há que
admirar, por ser admirável sempre aquele senhor; mas
que há-de ser se ele tem um coração onde cabem ter-
remotos, exércitos, reediíicaçÕes, conspirações alheias,
castigos, prisões, embaixadas, despachos e providên-
cias, eo que é mais sem embaraço da respiração. As-
sentemos que sendo todos de barro damasceno, pare-
cem poucos de outro mais fino. Tudo ê barro: mas
um de Exlremo:^ ou do Romão e outro de Saxonia^ (3).

Ainda o conteúdo do meu úhimo verbete.


Aparte variadas designações locais inspiradas nesta

(i) Gabinete Histórico, de Frei Cláudio da Conceição, vo-


lume XVII, pág. 253.
(2) Informação do meu amigo -e erudito investigador Fran-
cisco Nogueira de Brito.
(3) Memórias do Bispo do Grão Pará, Frei João de S. José
Queirós, publicadas por Camilo Castelo Branco, pág. 17.
— 72 -
indústria, como as olarias, a. rua do mesmo nome, o
pátio do Tejolo, o Forno do Tejolo, o Forno da Telha
e várias travessas e becos do Oleiro, espalhadas por
toda a cidade, umas ainda existentes, outras já desa-
parecidas, havia, antes de 1755 dois locais conhecidos
pelos nomes de rua da Crui do A:^ulejo e largo da
Cru\ do A\iilejo. O primeiro era o nome antigo (i7i5)
da actual rua dos Navegantes —
o primeiro que ela teve ;

o segundo referia-se a um estreito logradoiro ao fim da


calçada de Payo de Nabais, comunicando esta serventia
com a rua de Ana Mendes, que seguia para o norte, e
com a do Crucijixo que se dirigia para o sul.
O leitor ao encetar os primeiros passos descendo,
pelo lado oriental da rua Nova do Carmo, repare, atra-
vés da terceira ou quarta montra dos Armazéns do
Chiado, para o interior do estabelecimento. Era aí o
largo da Cru:{ do Azulejo.
CAPITULO IV

Sumário: Principia a fábrica do Rato a funcionar em 1767 — As


«condições» com
o Mestre Tomás Brunetto Quem era o —
Mestre —
Diz-se da sua escassa sabedoria e dos artífices com

quem se aperfeiçoou A «blague» do Contra-Mestre José Ve-
roli que era genro de Brunetto e copeiro de profissão Ci- —
ta-se o mestre Severino José da Silva —
Os desmandos de
Brunetto —
O regulamento da Fábrica A fábrica de Paulo—
Paulette, rouba oficiais ao Rato —
E proibida a importação de
loiça estrangeira —
Exceptua-se a loiça oriental e, mais tarde,
a inglesa —
São expulsos Brunetto e Vcroli «Condiçõesu —
com o novo Mestre Sebastião Inácio de Almeida, pintor —
Severino mestre da Roda e do Laboratório —
Obras e refor-
mas apressadas —
Abusos na venda da loiça Mestre Al- —
meida propõe-se ficar coma fábrica —
Novo contrato em 1777
— O Mestre modelador José Baptista de Almeida Várias —
providências para dar saída à loiça artística —O gosto, a
moda e o luxo —A opinião de Acúrcio das Neves e o amor
de Pombal pela fábrica — Os artistas pintores, modela-
dores e rodeiros que trabalharam no Rato de 1767 a 1779
— Uma lista valiosa —
Comprar loiça no Rato para agra-
dar a Pombal — Citam-se importantes encomendas e ven-
das — As baixelas brazonadas do Rato — As encomendas
para as Ciompanhias Privilegiadas e para os particulares ricos
— Citam-se algumas peças brazonadas que hoje se conhecem
— Os Inventários e as para leilões documentando toda
listas

a produção do Rato — Lista das peças fabricadas, nomes, va-


riantes e preços — Algumas considerações sobre a extensa
lista — Peças de nomes misteriosos —
Alguns leilões em 1770
e 1771 — Um
grande negócio de Veroli —
Citam-se algumas
peças de excepção —
Em que se diz a receita da «pasta»
e do «vidrado» do Rato, neste primeiro período.

Entremos agora no estudo da Fábrica do Rato. E


já nãoé sem tempo.
-74 —
As «condições» — como então se chamavam aos
contratos entre a Direcção da Fábrica das Sedas (fá-

brica mãe) e os mestres que para cá vinham introduzir


uma indústria ou modificar e aperfeiçoar qualquer fa-
brico, foram feitas em i de Agosto de 1767 com Tomás
Brunelto italiano, que já residia em Lisboa e que su-
ponho filho ou irmão de um Sansão Vitorino Brunetto

que nos anos de 1755-1750 era freguês de Santa Cata-


rina e morava na Orta do Bediot, a São Bento.
^ Teria Brunelto aprendido cá a sua arte? ^ Teria

sido artífice- da Fábrica de Santo Amaro que supo-


nho anterior do Rato, donde, para esta, viera tam-
á
bém o rodeiro Severino José da Silva que em tal ofi-
cina veio a ser mestre em 1789?
Não o posso assegurar. O que é certo é que o ita-
liano não era tão sabedor como a sua categoria de mes-
tre o podia deixar supor, e o que sabia tinha-o apren-
dido com o Severino, artífice perito e completo, que,
mais tarde, expulsou depois de ter aprendido dêlc o
que pôde.
Severino José da Silva voltou para Santo Amaro
em 17C9 ou 1770. Só em x"] ,1 é que o vejo outra vez
no Rato colaborando com o, então, Mestre Sebastião
Inácio de Almeida. Em 1792 era Severino Mestre da
Pintura, o que dá a entender que este nosso operário
acumulava com a perícia de enformador o mérito de
pintor.
Pelas informações da Direcção ao Conde de Oeiras
prestadas em
27 de Abril de 1770, conclui-se que Bru-
netto era, além de artista inferior a quem não perten-
ceriam as peças por ele assinadas, mas, sim ao Seve-
rino, um sujeito estomagado de génio, com filáucias de
sabedoria, e atrabiliário na direcção da sua oficina.
Despedia e admitia operários sem dizer nada à Direc-
ção, preparava o ambiente para a cultura da intriga,
— 73 —
não linha escrita devidamente montada e não cumpria,
sequer, o contrato no que respeitava á produção fabril
a que se obrigara (i).
Entre os operários que admitira estava José Veroli,
antepassado doi activíssimos livreiros que em Verol
transformaram o apelido originário, e admitira-o com
um bom contrato {iq^-ioo réis por mês) porque ele era
seu genro, casado com a sua filha Maria Felícia. Ve-
roli ignorava totalmente a arte da faiança, salvo no

que dizia respeito à louça de copa, visto que para en-


trar para Contra-Mestre deixara o lugar de copeiro do
Tenente General Manuel Gomes de Carvalho (2).
Tomás Bruneito, fizera, além disso, quantiosas des-
pesas na fábrica com o pretexto de ter descoberto o
segredo do vidrado, à conta do qual requereusm 1770
o pagamento da gratificação que se lhe estipulara de
cinqíienta moedas de oiro.
A Direcção não se comoveu. O célebre segredo
era, no seu entender, indrómina do Mestre porque não
havia operário que o não soubesse (3).
Do tempo de Brunetto consta, da documentação
que vou seguindo, um regulamento interno da oficina,
feito pela Direcção da Fábrica das Sedas e rubricado
por Pombal.
O mestre ficava obrigado a avisar a Contadoria sem-
pre que se abrisse o forno, para que as peças fossem
contadas e taxadas de preço, pondo-se de lado as de-

(i) Livro A de Consultas, pág. 87 v." e 88 — na Torre do


Tombo.
(2) Em 14 de Agosto de 1771 a direcção passou a Veroli um
atestado, a seu pedido, certificando que ele fora despedido de
Contra-Mestre da Fábrica, por imperícia e não por outro motivo,
visto tal emprego ser alheio à sua profissão (Livro A de Consul-
tas^ pág. 232).

(3) Citada Consulta, pág. 87 v.° a 8S do Livro A.


feituosas. No fim de cada semana havia de se entregar
a folhado pessoal com descriminação das ocupações
de cada operário; e, mensalmente, seria entregue uma
relação de todos os materiais, peso e quantidades, e
número de fornadas de loiça chacotada ou vidrada.
A loiça não se podia vender na fábrica pelo Mes-
tre, nem entregar, fiada mesmo, com a responsabilidade
deste. O
mestre não podia admitir ou despedir pes-
soal, nem aum.entar ou diminuir jornais, sem conheci-
mento da Direcção (i).
Brunett-o não devia ficar muito contente com este
regulamento que lhe coartava as liberdades. Devem-se,
naturalmente filiar nele os incidentes que motivaram a
sua expulsão da oficina acompanhado do genro.
Veroli foi estabelecer-se em Belas com outra oficina
cerâmica, mas dada a sua incapacidade industrial e

artística não foi de admirar o que sucedeu. Não se


lhe concederam as isenções e privilégios que preten-
dia (2) e acabou por abandonar a oficina, aproveitando
o resto do capital que lhe restava para montar uma
casa de Pasto no que, creio, se deu muito melhor.
Nem era de espantar dada a sua anterior ocupação de
copeiro de casas fidalgas.
Dois anos antes chegara de Itália outro artífice, de
nome Paulo Paulette, com um projecto de uma fábrica
de faianças que haveria — dizia ele — de exceder as
que vinham do estranjeiro. Pensou o Governo no
assunto e consentiu no que propunha Paulette por al-
vará de 28 de Junho de 1769 em que, todavia, se lhe
punham as condições de ter sempre em exercício qua-

Citada Consulta, pág. 108 e 108 v.°


(1)
Parecer de 20 de Outubro de 1779 e Resolução de i5 de
(2)
Janeiro de 1780, pág. 124 v.° do Livro 1 de Consultas, n.' 925, e
pág. 7 v.o do Livro g3[).
— 77

tro aprendizes portugueses, e de não admitir estran-

jeiros na fábrica, salvo seus irmãos se quisessem vir


para Portugal.
Em troca foram-lhe concedidos vários privilégios
como o da isenção de contribuições por espaço de dez
anos(i).
Por vê que o Governo não aceitava o regime
isto se

dos monopólios. A fábrica do Paulette originou várias


complicações por que o italiano desinquietava os operá-
rios do Brunetto, como o fez com os oleiros João Pi-
nheiro e João Gonçalves, dos melhores que havia no
Rato, oferecendo-lhes mais dinheiro. Brunetto recla-
mou, e a Direcção da Fábrica das Sedas propôs ao
Conde de Oeiras para se acrescentar ao contracto de
Paulette a proibição de se irem buscar artífices à ofi-

cina do Rato (2).

Com uma grande dificuldade lutavam entretanto as


fábricas, e essa era a da concorrência que lhe faziam
as loiças estranjeiras : a de Chincheo que abastecia as
mesas ordinárias, e a olandesa, espécie de faiança de
que se serviam os burgueses. As casas ricas usavam
as porcelanas chinesas, vindo também para o nosso
consumo bastante faiança de Ruão.
Em vista disto, em 5 de Setembro de 1770, repre-
sentou a Direcção da Fábrica, à Junta do Comércio,
solicitando propusesse a El-Rei a proibição da entrada

(1) Noções Históricas Económicas e Administrativas, por José


Acúrcio das Neves.
(2) Livro A de Consultas —
Proposta de 25 de Junho de 177c,
pág. 88 v.o e 86.
-78-
de loiça estranjeira excepto a da índia e China (i)^
quando conduzida em navios portugueses e a isenção
de direitos de saída da loiça nacional.
Oalvará de 7 de Novembro desse ano, veio, aten-
dendo a tais reclamações, dar maior consumo e expan-
são à nossa produção, recomendando, entretanto, que,
durante o prazo da proibição, se não aumentasse o
preço às nossas manufacturas.
Mais Dezembro de
tarde, por outro alvará de 10 de
1783, exceptuada
foi da proibição a loiça amarela in-
glesa por não poder concorrer com a nacional. Era
pelo menos esta a razão dada oficialmente.

Pela expulsão de Brunetto e de Veroli foram con-


tratados, para Mestre, Sebastião Inácio de Almeida e
para Contra-Mestre, o oficial-rodeiro Severino José da
Silva, ficando o primeiro nomeado, tambe'm. Mestre da
pintura, e o segundo do Laboratório e de toda a obra
da olaria. As «condições» de admissão têm a data de
14 de Agosto de 1771 (2).
Mestre Almeida que seguiu no fabrico as normas
do seu antecessor —
que não é de admirar pela colabo-
ração de Severino que era e foi chavão da oficina pro- —
cedeu a várias obras. Conseguiu da Direcção se lhe
cedesse um anel de água do chafariz do Rato e que os
galegos tivessem primacia no encher dos barris para
os gastos da fábrica (3), demoliu as antigas oficinas do
italiano que se achavam arruinadas, com tanta pressa

(i) Livro A de Consultas, pág. gS v.° a 94.


(2) Idem, pág. lyS a 174 v;°
(3) Parecer de 24 de Abril de 1772.
— 19-
que nem esperou pela visita, ordenada, do engenheiro
Reinaldo Manuel nem pela autorização da Direcção, e
fêz outros melhoramentos (i). Admitiu operários no-
vos, como o pintor João Berardi e seu filho António
Berardi, e ia tão depressa no seu empenho reformador
e rejuvenescedor que a Direcção teve de o mandar pa-
rar, ordenando que se despedissem os Berardis e o
Severino; este não sei porquê. O mestre rodeiro foi

para a Fábrica de Santo Amaro, que era de Henrique


Francisco de Andrade & Companhia (2).
Talvez isso fosse derivado de alguns abusos que
se praticavam e de que a Direcção tivera conhecimento.
No Rato vendia-se loiça às ocultas, sem ir ao armazém,
e o mestre adiantava dinheiro aos operários, etc. (3).

No mesmo ano (1773) vejo mais operários despe-


didos —
Miguel Gonçalves, Manuel Fialho, Caetano Pi-
nheiro, António José Tavares, João da Cruz, Manuel
José, Manuel de Sousa, Francisco Justamente e João
Lopes —
naturalmente por cumplicidade nos tais abu-
sos das vendas ocultas.
A
ordem da Direcção que os despede tem a data
de 1 5 e o edital de 29 de Dezembro do
de Setembro,
mesmo ano estabelece que no armazém só se venda
aos revendedores e na fábrica só a quem comprar de
120 peças para cima (4), regulando-se miudamente â
venda da loiça por grosso, na ideia de só se fabricar
a quantidade precisa para o consumo habitual (6).

(i) Representação da Direcção de 4 de Agosto ce 1772 e or-


dem de 9 de Setembro de 1772 —
Livro B, fl. 11.
(2) Resolução de Pombal de 10 de Setembro de 1772 — Li-
vro B, fl. TO.

(3) Citado Livro B, pág. 47--19 — Ordem da Direcção de 28


de Abril de 1773.
(4) Citado Livro B, pág. 86.

(5) Idem, pág. 92-93.


— 8o —
O administrador da Venda, Francisco da Rosa Ver-
sas, pediu a demissão, neste período. A Direcção in-

forma a Junta de que a pessoa competente para o lu-


gar era António Martins de Sousa, mas como tal
indivíduo era cunhado do Mestre Sebastião Inácio de
Almeida não o propunha, tanto mais que este já tinha
um irmão (José Baptista de Almeida) a fazer os mo-
delos na fábrica. Afinal nomeou-se o Sousa em lo de
Junho de 1774 (i).

Em Almeida fez uma larga petição


1775, o Mestre
ao Conselheiro Joaquim Inácio da Cruz Sobral, pro-
pondo se a tomar conia da Fábrica do Rato comprando
toda a loiça em ser (Soo. 000 peças) pelos preços de
venda, no valor de dezanove contos de réis. A Direc-
ção ouvida sobre a proposta informou favoravelmente
com a condição do Mestre tomar também conta da loiça
fabricada no tempo de Brunetto, que eram, em arma-
zém, 16.768 peças no valor de i.i 66^495 réis com o
abatimento correspondente ao pouco uso, mau gosto e
qualidade dela, visto o seu, preço ser mais elevado do
que o da produção do Almeida e atentas as deficiên-
cias no vidrado e o gosto dos feitios. A loiça do ita-

liano envelhecera depressa na opinião dos directores.


Sebastião Inácio de Almeida, oferecia à Direcção,
5ooí5f)00o réis por ano, do aluguer, durante os primeiros
cinco anos, obrigando-se a fazer as obras e os consertos
indispensáveis; solicitava os habituais privilégios; pe-
dia a liberdade de venda com usufruto de toda a fá-

brica, armazéns, lojas, etc. pedia o exclusivo da


;
ex-

(1) Citado Livro B, pág. 104 — Representação de i de Junho


de 1774.
— 81 —
tracção do barro dos terrenos do Colégio dos Nobres
que pagaria pelo preço habitual; e que os privilégios
a isenções passassem, durante o período de dez anos
sem nova mercê, a sua mulher e a seu irmão José
Baptista de Almeida.
A Direcção apreciou a proposta e informou-a bem,
excepto no que dizia respeito à isenção dos direitos
municipais sobre o tojo e outros materiais (5 réis por
cada 40 molhos), como lenha, sal e areia da Outra-
-Banda. Quanto à transmissão do privilégio, elogia José
Baptista de Almeida, a quem chama bom e honrado
ojicial, eminente na arte de fa\er modelos de bom
gôsio{\).
Emquanto se não estudava e resolvia esta proposta
davam-se providências várias para o desempate da loiça
que estava em armazém. A novidade da faiança do
Rato, feita sobre modelos novos e com decorações ou-
sadas para o meio rotineiro de então, fora recebida
com estranheza, e todo o patrocínio oíicial e não oficial
do primeiro ministro fora insuficiente para dar saída
à produção, estabelecer o gosto e desenvolver a moda
pela loiça do Rato.
Os ricos estavam afeitos às porcelanas que lhes
traziam as naus da carreira da índia; os pobres, afei-
çoados às velhas loiças fabricadas nos Anjos e nas Ja-
nelas Verdes. Os fidalgos, se compravam faianças no
armazém da Fábrica, era para serem agradáveis ao
Marquês de Pombal.
Havia em depósito muita loiça em 1776. Um edi-
tal de 21 de Fevereiro desse ano alterou uma dispo-
sição antiga, e já permitia que na própria Fábrica se
vendesse loiça por grosso e por miúdo (2) ; uma ordem

(i) Livro giy, pág. 173 a ijS v.°.

(2) Idem, pág. 148 e 149.


VOL. IV
— 82 —
da Direcção, de 22 de Novembro, manda ao mestre fa-
zer um projecto de redução de pessoal na repartição
da pintura, pela excessiva despesa que o «quadro» de
então acarretava à oficina (i); e outro edital da Di-
recção, de i3 de Março de 1776, manda organizar 60
lotes de loiça para um leilão a dinheiro de contado (2).
As finanças, como se vê, estavam depauperadas e a

loiça não se vendia.


As «condições!) de 19 de Dezembro de 1777 mar-
cam a aceitação da proposta de
Sebastião Inácio de
Almeida. A Junta de Administração das Fábricas

cometeu-lhe a gerência do estabelecimento fabril, por


conta própria e pelo prazo de dez anos, com os mes-
mos privilégios e isenções que tinha, obrigando-se a ter
sempre seis artífices instruídos e os oficiais e aprendi-
zes que fossem necessários. Ficava com o edifício gra-
tuito pelo prazo de cinco anos, recebendo toda a loiça
e materiais existentes, avaliados em 19.104^1996 réis,
com a condição de os pagar dentro de dez anos, bem
como os móveis, avaliados em 492.^840 réis, para os
entregar no mesmo estado ou pagá-los.
Aciírcio das Neves, que menciona este contrato, é de
uma secura injustificável quanto ao resto, calando factos
que de-certo conhecia e suprimindo informações pre-
ciosas. Quem o tiver lido somente, arrisca-se aos
maiores erros, pois lhe fica lícito e lógico supor que Bru-
netto era o Deus ex-maquina da oficina, ou que Veroli
fora pintor e o mais que se tem dito aqui.
Foi essa informação do grave autor das Noções His-
tóricas, Econojiiicas e Administrativas que enganou
José Queirós e outros investigadores.
Tomás Brunetto, emquanto foi mestre (1767-1771),

(i) Livro B gig, pág. 182.


(2) Idem, pág. 194.
— 83 —
algumas peças assinou, como Mestre e não como autor.
Eram as que mais perfeitas saíam dos fornos do Rato.
Os pintores e os modeladores não assinavam.
Com Sebastião Inácio de Almeida o mesmo decerto
se deu, só com a diferença de que este era realmente
«Mestre de pintura».
Deste período da oficina pombalina do Rato co-
nheço alguns artistas :

— Tomás Briineíto, Mestre da Fábrica de 1767 a 1771


— Sebastião Inácio de Almeida, Mestre da Fábrica e
da pintura, de 1771 a 1779;
— José Veroli, Contra-Mestre, de 1767 a 1771 ;

— Severino José da Silva, Mestre rodeiro, de 1767 a


1771. Neste ano, Mestre do Laboratório e da
Olaria. Em 1779, Mestre da Fábrica de Santo
Amaro. Em 1792, Mestre da pintura no Rato;
— José Baptista de Almeida, Mestre modelador, de
1771 a 1779;
— João (ou José) Pinheiro, oficial de roda, de 1767 a
1770. Neste ano foi para a fábrica de Paulo Pau-
lette ;

— João Gonçalves, oficial de roda, de 1767 a 1770.

Neste ano foi para a fábrica de Paulo Paulette-;


— João Berardi, Mestre de pintura, de 1767 a 1770.
Despedido neste ano.
— António Berardi, Mestre de pintura, de 1767 a 1770.
Despedido neste ano. Trabalhou antes e depois,
em pinturas, nas salas do palácio de Queluz (sa-
las «do Trono» e «da Música) (i);
— Manuel José do Nascimento, Mestre fabricante e
pintor de loiça, em 1779, pelo menos. Em 1783

(i) História do Palácio Nacional de Qiielu^, por António Cal-


deira Fires, vol. i, cap. xv, pág. 342 a 345.
- 84-
e 1784 trabalhava na fábrica de Queluz de Mr.
Robillion, que aí funcionou de 1782 a 1787. São
dêle alguns trabalhos na Sala do Trono e dos
Embaixadores, no interior do palácio (i). Os
o Livros da Junta da Administração das Fábricas»,

citam uma petição sua (2)


— Oficiais da roda: José Marques [em 1770); Cândido
José Coelho (de 1770 a 1778); Joaquim José (em
1769); JoaquimBaptista (em 1769); António
Briilein (em 1771 e 1772); Cristóvão José (em
1769); António de Figueiredo (em 1769);
— Aprendizes: Miguel Gonçalves (de 1767 a 1772);
Domingos dos Santos (em 1770) Domingos Pe- ;

reira (de 1770 a 1779) José António Ribeiro (em


;

1770); Matias José (de 1767 a 1770); Joaquim


Primogéneo (em 1779) Manuel dos Reis (1779);
;

António de Matos ',

— Oficiais Manuel Fialho, António José Tavares,


:

João da Cru'{, Manuel José, Manuel de Sousa,


Francisco Justamente e João Lopes, despedidos,
como se disse, em 1773 ;

— Criados ou trabalhadores José Simões, Bernardo


:

António e Carlos José de Paiva (3).

Como se vê pela resenha apresentada, trabalharam,


neste período da Fábrica, bons artistas rodeiros e mo-
deladores, como Severino José da Silva, José Baptista
de Almeida, João Gonçalves, João Pinheiro e outros,
e pintores como os Berardis, Manuel José do Nasci-

(i) História do Palácio Nacional ae Qiielu^, vol. i, cap. xv,


pág. 342 a 345.
(2) Livro B-gi-, pág. 3i3. Aviso para a Direcção, de i3 de
Janeiro de 1779.
(3) Róis dos Confessados da freguesia de São Mamede, anos
citados no texto.
— 85 —
mento, o Severino e os dois mestres Brunetto e Al-
meida.
A observação de José Queirós acerca da produção
do Rato nas duas gerências, chamemo-lhe assim, jus-
tifica-se plenamente. jSe eram os mesmos artistas,
quási
Depois de terminada a direcção de Sebastião Inácio
de Almeida, ocasionada pelo seu falecimento em 1779,
é que a orientação artística da fábrica mudou. Até aí

tinha-se perdido dinheiro lutando contra a rotina e


contra o luxo das porcelanas orientais ; passou depois
a ganhar-se.
Como ? Transigindo, passando a fazer loiça co-
mum, que era o que o povo e a burguesia compravam,
e leiloando a loiça artística empatada.
Por morte do Mestre, a oficina do Rato passou
para a aDirecção da Junta do Comércio», anexada à
Real Fábrica das Sedas» e assim esteve até acabar.
Aciírcio das Neves, citando os lucros que começa-
ram a aparecer, sente-se rejubilar. O que o interes-
sava, económica e administrativamente, era isso. Que
a fábrica produzisse pratos finamente pintados, escul-
turas de admirável esmalte e peças ornamentais pre-
ciosamente modeladas e coloridas, não lhe tocava lú

dentro.
Eram luxos supérfluos e gastos imiteis.
Sebastião José via o caso de mais alto. A produ-
ção artística é que o interessava, e, com a sua influên-
cia e a sua sugestão, emquanto pôde, fêz a propaganda
do Rato, obrigou a comprar faianças na nova oficina,
ao rei, à corte, às companhias comerciais, aos poten-
tados da finança. Fidalgo que quisesse agradar ao Ca-
beleira era ir encomendar um serviço brazonado ao
Rato burguês dinheiroso ou prelado nacionalista a
;

quem conviessem as boas graças do Marquês, não se


— 86 —
demorava em ir lá adquirir pratos, tijelas, bebedouros,
porta-ôlhas, bispotes e cuspideiras.
Do que se tem avançado a dizer, vão chegar as
provas.
*

Entre a variada documentação compulsada, achei


o registo das encomendas feitas e das baixelas vendidas,
neste período, assim como o inventário de todo o gé-
nero de loiça fabricada. Só isto! Imagine-se.
Apontemo-las cronologicamente :

— Baixela vendida a Cristiano PVederico de Veinel. Da


pintura das armas, 5í585o réis
— Baixela vendida ao Conde de Sampaio, 284 peças.
280 levaram o brazão. Custou a pintura 11-^^200
re'is e toda a baixela 3 1^^600 réis. Esta venda
foi em 6 de Setembro de 1770;
— Baixela fornecida por ordem do Desembargador Mi-
guel de Arriaga Brum
da Silveira, para o serviço
do Palácio das Necessidades. 242 peças. Cus-
taram 29^900 réis ;

— Para Francisco Xavier de Mendonça, Secretário de


Estado, i3 bispotes, 2 porta-ôlhas pintados com
figuras, muitos pratos redondos, compridos,
etc. (i);
— Para o mesmo, uma baixela. Tinha pratos redondos,
compridos, triangulares, quadrados, travessas, 8
terrinas inglesas, 2 cangalhas (galheteiros), 4 sa-
ladeiras, 2 terrinas à francesa, chícaras com pi-
res, etc. Preço da baixela, Sb^S^o réis (2);
— Para El-Rei, 62 vasos de duas qualidades;

(i) Livro 241-1.° — Das Vendas, pág. i.

(2) Idem, idem.


-87-
Outra baixela, com armas pintadas, de i32 peças,
não se mencionando para quem. A pintura das
armas custou 2í?)44o réis
Para Paulo de Carvalho e Mendonça, uma cesta
pequena, duas tijelas — imitação da índia — (a
i5o réis), uma bacia e jarro, uma manteigueira
em figura de peixe e outra em figura de melão
Para o Geral dos Crúzios, duas cuspideiras chatas
com cabo, um bebedouro lavrado para pássaros,
um bispote dos maiores com asa, uma cesta
grande, e uma tijela, imitação da índia;
Para Gaspar de Saldanha, três bispotes e uma bai-
xela composta de 56 peças, sendo o preço de cada
peça pintada 3o réis, num total de lííõSo réis;
Outras encomendas menores para os Condes das
Galveias (tijelas, imitação da índia), para o Bispo
de Leiria (cestos para garrafas), para o Desem-
bargador Manuel José da Gama (um repolho),
para o Marquês de Marialva (um repolho e uma
cabeça de porco), para a Condessa de Oeiras
(um melão em pé), para o Conselheiro Joaquim
Inácio da Cruz (uma cabeça de porco), para o
Provincial de São Domingos (duas galinhas), para
o Erário (várias peças), para o Conde de Sam-
paio (idem), para Gerard Devisme (vasos para
os seus jardins) e para os Condes de Vila Nova
(seis pirâmides para o seu jardim)
A. Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão^
em Maio e Junho de 1770, encomendou loiças
no valor de 741^55225 réis;
A Companhia de Pernambuco e Paraíba encomen-
dou, em 24 de Setembro de 1770, milhares de
pratos, no valor de 725a^i85 (i).

(i) Citado livro, folhas seguintes.


Alguma das peças hoje conhecidas, em poder dos
coleccionadores e pertença de museus, podem idenlifi-
car-se com algumas das que acabamos de ennumerar
englobadas nas encomendas e vendas feitas. As ter-
rinas, em forma de patos, da colecção do sr. Visconde
da Asseca, que foram da família Pombal, podem ter
e

pertencido baixela de Francisco Xavier de Mendonça,


à

se não foram de outra para o próprio marquês as ;

caixas ou porta-ôlhas em forma de galinha, as cabeças


de porco, os bebedouros lavrados para pássaros, os
vasos de jardins, tudo são peças ainda hoje conhe-
cidas.
As peças brazonadas é que se tornaram raras. Um
prato de faiança, brazonado, vi uma vez no antigo

bric-a-brac da rua de São José, pertencente ao fale-


cido Eleutério. Era, evidentemente, do Rato, pelo es-
malte e pela pintura. O
brazão estava no centro anver-
sal. Escudo cortado no primeiro meia águia, coroada,
:

de asas abertas; no segundo três faixas.


Outro prato do Rato, brazonado, possui o dr. Ál-
varo Teixeira, e um maior, do mesmo tipo, tem-no o
dr. Jacinto de Magalhães, do Porto. O do dr. Álvaro
Teixeira tem o, 36 de diâmetro, esmalte branco leve-
mente anilado, borda recortada e ondulada. O brazão,
a cor de vinho, está no centro anversal. E cortado,
tendo no primeiro, cinco bilhetes e, sobre o médio da
fila superior, uma águia de asas abertas no segundo, ;

um leão rompante. Como timbre, a águia sobre uma


das figuras do primeiro. As águias e o leão são a
cor de vinho, o campo do primeiro a amarelo, e os
bilhetes e o paquife, feito de dois ramos cruzados em
baixo pelas hastes, a azul.
-89-
Um destes brazões (qualquer dêles não e' portu-
guês) pode indicar que a peça pertencesse, porventura,
à baixela de Cristiano Frederico de Veinel, atrás ci-

tada.
Outras duas peças, brazonadas, do Rato, encontrei
em Vizeu uma no Museu Grão de Vasco e outra na co-
;

lecção particular do seu Director, o sr. Capitão Almeida


Moreira. São duas travessas oblongas, marcadas com as
conhecidas iniciais FR e TB, tendo ao centro as armas
dos Meios (ou Almeidas) e Figueiredos, em pala, so-
brepujadas de uma coroa de marquês. A cercadura é
de grinaldas, a azul, entrelaçando o filete da aba.
Desta baixela, que me disseram ser da casa dos
Condes de Santa Eulália(?), não encontrei qualquer apon-
tamento de encomenda ou de venda.
Chícaras e pires, que tantos fabricou a oficina do
Rato, não da existência de nenhum exemplar.
sei

Custa crer que desaparecessem todas, mas o que


é certo é que ninguém me dá fé de uma única peça,
mesmo Dos bispotes direi o
incompleta ou mutilada.
mesmo. Supunha José Queirós, com graça, que se
tinham quebrado todos de encontro às pedras das pias.
Era uma explicação, mas que não aproveita às chíca-
ras.

Pelos inventários, relações para lotes dos leilões e


outros documentos avulsos, respeitantes a este período
fabril — 1767 a 1779 — doze anos de produção artís-
tica, pode-se formular a seguinte lista de peças fabri-
cadas, a algumas das quais acrescentarei, como curio-
sidade, os preços

— Bandejas oitavadas
— 90 —
Tabolciros
Pratos, com mosteiro ao meio, redondos, quadra-
dos, triangulares, compridos, oitavados, covos,
de guardanapo, de roda, de cores ou pintados
de cores, de meia cozinha, de cozinha com asa,
recortados, grandes e pequenos, pratinhos
Porta-ôlhas, pintados,com figuras e simples;
Palanganas (alguidares) de lavar as mãos;
Terrinas, de relevados, à francesa, à inglesa, com
figura do cordeiro, de três lotes, furadas para
junca ;.

Sopeira redonda ;

Galinhas com cesta e sem cesta;


•Peças de sopeiras, chatas;
Saladeiras
Mostardeiras, com asa e coni colher;
CangirÕes de asa retorcida. Eram à moda de Ta-
lavera
Chícaras, com pires, sem pires, para chocolate, para
chá, comasa, e pegadas aos pires ;

Vasos redondos para doce ;

Tijelas, imitação da índia, com tampas, pintadas de


azul, pintadas de côr, de ração e de meia ração,
chatas de lavar o comer, para caldo, com bico ;

Cafeteiras
•Açucareiros, pegados ao prato;
Bules finos, para doentes, pintados de côr;

Canecas grandes e pequenas ;

Saleiros ;

Talher de galhetas ;

Cangalhas, sem galhetas, à inglesa ;

•Melões pequenos, em pé, e deitados;


Manteigueiras, em forma de boi, de coelho, de ca-
brito, de pata, de peixe, de melão;
Cabeças de porco (ou javali);
— 91 —
Repolhos com seu prato
Jogos de mesa
Mostardeira à francesa;
Cordeiros grandes
Compoteiras, com armas;
Bacias de cores, bacios para sangria, bacio e jarra

em feitio de conciía, bacia para banhos, de go-


mos, com caixa para lavar;
Almofias ;

Potes e quartas ;

Almotolias e medidores de azeite;


Panelas para botica;
Bilhas

Púcaros
•Talhas com torneira, pequenas, grandes;
Vasos e copos para banha;
-
Cortilhas (?)
Frigideiras, de cabo;
Placas (?);
Bidés com caixa, e comadres;

Fonte de água às mãos e jogos de agua às mãos,
fonte com tampa e chave
•Jogo para pássaros, bebedouros lavrados, de vários
preços, ninhos para pombas, comedoiro para pás--
saros
- Cuspideiras, chatas, com aba, com o feitio de bis-
potinhos ;

-Tanque para peixes com seu prato;


- Escrevaninhas de cores, e caixas de tinteiros;
-Bocetas e boiôes
-Jarras, jarrinhas, floreiras de três qualidades, peças
de mangas, manguinhas, jarrinhas para jogo de
chá, talher para flores, peças de borboletas, jar-
ras imitação da Saxónia, mangas pequenas, jar-

ras de gomos, e albarradas


— 92 —
— Verrinas para copos (?)
— Castiçais, com figuras, de relevados, de pé alto,
figuras de castiçal
— Bispotes, chatos, com aza, à imitação da índia;
— Poncheiras, com asa;
— Quartas para sangrias pintadas de cores ;

— Cestas pequenas e grandes ;

— Impada pequena (?)


— Canos para chamine's ;

— Perfumadores
— Baldes garrafas, em
p-ara forma de cesto
— Canoas (?)
— Vasos para jardim ;

— Figuras, para jardim, de corpos inteiros, de meios


corpos, de Apolici (Apoios), pintada de cores, de
lavradeira ;

— Meios corpos para jardins (plintos)


— Torão de duas figuras
(?) ;

— Meninos de dois tamanhos;


— Borboletas
— Cães, peixes, cachorros, gatos, leões, bois, coelhos,
patos e patas de dois tamanhos, cordeiros grandes
e pequenos, etc.

l
E extensa a lista, extensa e surpreendente de no-
vidades, não é verdade ?

Vale, pois, algumas considerações. i

Entre as numerosas peças citadas de que a Direc-


ção da Fábrica das Sedas se desejava ver
livre, fazendo

leilões e facilitando vendas, por não ver logo ali o lucro


diante dos olhos, ansiosa porque os fornos do Rato só
-93-
fabricassem loiça comum, pratos mais pratos, potes
e

e quartas, cuja venda eslava assegurada, algumas há

um tanto ou quanto duvidosas de saber-se o que fos-


sem, i As cãtioas e as verrinas, para copos ? i As car-
tilhas e as placas? ^ As impadas e o torão de duas
figuras ?

Procurei em Bluteau qualquer explicação e não en-


contrei.
Verrinas seriam uma espécie de «cangalhas» para
copos como hoje ainda usam os vendedores de água ?
Pelos preços marcados para venda, conclui-se do
tamanho de algumas das peças. Por exemplo, as «ba-
cias para banhos» custavam 4íí)8oo re'is. O mesmo
custava o tanque para peixes da marca maior; o da
marca mais pequena custava 3ííf)20o réis. A dois pintos
(960 réis) custavam as «cabeças de porco» e os «me-
ninos», maiores. Os mais pequenos tiravam-se por
seis tostões. As figuras de corpos inteiros os Apo- —
los, os Hércules, os Neptunos —
custavam i;37;8oo réis;
outras mais pequenas a goo e a 400 réis.
A misteriosa peça que nos inventários se chama
impada, era do preço de seis tostões. Uma «pata»
grande tinha o preço de 9G0 réis os «cordeiros» gran-
;

des, a 720 réis e os pequenos de 320 réis ; um castiçal


com figuras, 480 réis ;uma jarra imitando Saxe, 200
réis; as manteigueiras em forma de animais, Soo e 25o
réis ; um medidor de azeite, iCíôoo réis ; um «repolho»
com seu prato, i.j?4oo réis.
Das figuras de animais, os «gatos», por exemplo,
custavam dois tostões. Os «bidés», com caixa, eram
a Sítiooo réis.
No leilão que se realizou em
Maio de 1771, 24 de
foram, entre outras loiças, à praça, para cima de cin-
quenta destas peças figuradas. Só galos eram vinte.
Entre a loiça vendida havia uma figura represen-
— 94-
tando uma lavradeira, afora outras não especificadas.
Arrematou tudo o nosso conhecido José Veroli por
SooíiJjooo réis e foi ele quem fêz a venda, que lhe ren-
deu 682-':?'o55 réis.

A fábrica sabia melhor fazer loiça do que negócios,


ao contrário, exactamente, do antigo copeiro (i). Já
seis dias antes, Veroli tinha feito negócio semelhante
no leilão que antecedera este, comprando vinte e três
placas por 651)700 réis (2).

Em
1769 vendeu-se 2.i853!!)5oo réis de loiça, e, em
Março de 1771, em que os tempos já não eram os
mesmos, a loiça avariada e defeituosa que se vendeu,
produziu 29953^960 réis, a favor do mestre por conta de
quem foi vendida.

De muitas peças, hoje conhecidas, fabricadas no


Rato e assinadas, não há menção nos Inventários. Não
admira; eram peças de excepção, peças de oferecer.
Aquela delicada figurinha de faiança, marcada por
Brunetto, é das tais a que me refiro. Pertence ao
dr. Álvaro Teixeira. Representa um Polichinelo, sen-
tado num tronco, policromado a azul, verde, roxo e
côr de vinho. Tem treze centímetros de alto. O galo,
imponente, de excelente modelado, esmaltado a branco
anilado levemente, e também marcado por Brunetto,
que pertence ao meu amigo Atonso de Dornelas, está
nas mesmas condições.
Outras peças conheço de alto valor artístico, do-
cumentadoras da perfeição do fabrico do Rato neste

(1) Livro 241 das Vendas, pág. 107 v.° a 109.

(2) Idem^ idem.


— 9^ -
primeiro período, a que se pode aplicar idêntico cri-

tério.
Pelos bric-à-bracs aparecem, de quando em quando,
exemplares belos de faiança ratinha. No Cristiano, da
rua de São Bento, estiveram à venda, não há muito,
uma série de meios-corpos para Jardim, e
(plintos)
em 1927 vi lá, comprado no do Conde dos Oli-
leilão
vais, um busto, marcado por Brunetto (meia figura),
N.° VI de uma série, representando Sérvio Galba (nome
que se via em letras relevadas na frente da base; com
a cabeça coroada de folhagens.
José Queirós cita na sua Cerâmica outras peças
excepcionais, como o prato da colecção Asseca, o prato
relevado da colecção Arroio, as «terrinas» da colecção
da Academia das Sciências, uma das quais pode estar
incluída nos «Inventários» na designação de Terrinas
com figura do cordeiro. Todas estas peças são de sin-
gular mérito. Queirós, fazendo considerações sobre
os barros diversos utilizados no Rato, nota nesta ter-
rina enoutra semelhante, adquirida então pelo sr. Pinho
da Cunha, uma pasta mais avermelhada.
O é que o barro era da cerca
que eu posso afirmar
do Colégio dos Nobres (Faculdade de Sciências) e que
a areia vinha de Coina. Chumbo de capote, estanho
e sal, constituíam a pasta e o vidrado de toda a faiança

do Rato nesta época. Mais tardeque se utilizaram


é

outros barros e outras combinações, como


a seu tempo
veremos, a não ser que, excepcionalmente, se empre-
gasse barro dos Prazeres ou de Rana, mas de tal em-
prego não ficou nos papéis e livros de contas o mínimo
vestígio.
O que é possível, e até provável, é que a produção
do Rato se confunda por vezes —
nas peças não mar-
cadas pelos mestres —
com a da fábrica do Paulette
na travessa dos Ladrões, a de Santo Amaro ou a de
-96-
Robillion em
Queluz, contemporâneas da oficina de
Brunetto e Nas duas primeiras estiveram
de Almeida.
os melhores rodeiros e modeladores do Rato João :

Gonçalves, João Pinheiro e Severino José da Silva, que


também pintava ; na última estiveram Manuel José do
Nascimento e Berardi, dois dos mais hábeis pintores
que ali trabalharam.
Mais tarde o mesmo sucedeu com a Bica do Ça-
pato. Um excelente decorador e pintor trabalhou lon-
gos anos nas duas oficinas.
Nada, portanto, mais fácil do que aparecerem pe-
ças de pasta diferente modeladas igualmente ou seme-
lhantemente pintadas. No meio industrial de então,
pequeno como era, neste capítulo da cerâmica, as in-
vestigações têm de ser mais de autoria do que de ori-
gem.
CAPITULO V

Sumário : Relata-se a gerência do administrador Botelho de Al-


meida, de 1779 a i8iG — Quem era este sujeito — Lucros da
Fábrica de 1779 a 1812 — Um projecto de José Joaquim Ter-
rier —
Citam-se outras oficinas cerâmicas — Obras na Fábrica
do Rato —
Falta de lenha e de carvão em 1811 Artistas —
que trabalharam no Rato, neste período —
Oleiros e pintores.
— Os azulejos do Rato —
Citam-se algumas obras aqui feitas
— O seu «tipo» — As oficinas da Bica do Çapato e do Rato pro-
duzindo o mesmo azulejo —
Entra em scena o Dr. Joaquim
Rodrigues Milagres —
Quem era o Inventor da nova loiça —
Uma hipótese admissível — Introduz-se na Real Fábrica e
principiam os ensaios — Favor real que lhe era dispensado —
Primeiras questões com a Direcção e excessivas despesas
com o novo Invento —
Requere Milagres se lhe trespasse a
Fábrica —
O projecto dos irmãos Raposos, sobrinhos de Bar-
tolomeu da Costa —
Ideia de uma outra loiça fina Nada se —
resolve — Exames e avaliações à loiça do Dr. Milagres —
Lucros fictícios e prejuízo real —
Outro projecto do nego-
ciante Luís António da Costa —
Botelho de Almeida pede a
demissão de Administrador da Real Fábrica Nova discus- —
são sobre a loiça do Milagres —
O Procurador Fiscal e
o Guarda Livros, alheiam-se da questão e o Doutor irri-
ta-se e reclama para S. A. R. —
Uma carta insultuosa e amea-
çadora —
Morrem o Botelho e o Milagres —
Cessa a questão
— O segredo do «pó de pedra > que era faiança Diz-se a —
«receita» ao leitor.

De 1779 a 1816 administrou a Fábrica do Rato,


anexada à das Sedas, João Anastácio Botelho de Al-
meida.
Vejamos quem era este sujeito.

O novo administrador era filho de Adrião Botelho


VoL. IV 7
-98-
de Almeida, fidalgo da Casa Real e de sua mulher
D. Ana Joaquina da Silva, sobrinho de José Botelho
Moniz da senhor do morgado de Valverde em
Silva,
Óbidos, e do de Vale de Cavalos, cerca de Almeirim,
e neto de Luís Botelho de Sequeira, Familiar do Santo

Ofício e Fidalgo de Casa, senhor dos referidos mor-


gados e de sua mulher D. Isabel Maria Moniz da Silva
de Carvalhosa (i). Isto quanto à sua família, que mo-
rava então na próxima rua do Salitre, em casa própria.
Quanto às razoes que determinaram a sua escolha
para o lugar é que nada sei.
l
Seria porventura o Botelho de Almeida dado aos
estudos económicos e às questões industriais ? ^ Ou
seria nomeado por compadrioamizade de qualquer
e

magnate da Junta do Comércio ou da Direcção da Real


Fábrica das Sedas ?

João Anastácio, na opinião de Acúrcio das Neves


fêz uma boa administração. Este elogio na boca do
autor das Noções Económicas, Históricas e Admiiiis-
trativas significa que houve lucros e que se deixaram de
produzir peças artísticas, enveredando-se pelo fabrico
da loiça comum. Acúrcio traz a nota desses lucros que
foram os seguintes
Até 3i de Dezembro de 1792 —
2.983í5í;42i réis;

De I de Janeiro de 1793 a 3o de Junho de 1797 —


8.i8ií7)544 réis
Desta data a 3o de Junho de 1801 — 8.o79í5í'o22
réis;

(1) Informação do meu amigo e condiscípulo sr. Augusto


Botelho da Costa Veiga, coronel de artilharia e Director actual
da Biblioteca Nacional.
— 99

Desta a 3o de Dezembro de 1811 — 2.960^5468 réis;
E desta ao fim do ano de 1812 — i.427cr'664 réis.
Total: 19.632ÍM19 réis.
Depois de 1812, com o Dr. Milagres, veio o caos. O
sentencioso Acúrcio das Neves, lamentando os prejuí-
zos que sederam então, diz: «... e não entrarei nestes
motivos porque poderia ofender vivos e defuntos» (i).
Lá cauteloso era êle.

De 1780 poucas novidades se podem dar ao


a 1807,
leitor. A loiça tempo do Bruneto e do Al-
antiga do
meida ia-se vendendo conforme se podia e o que se
fabricava era a faiança comum e o azulejo.
O
levantamento da proibição da entrada para a loiça
amarela inglesa, em 1783, fêz mal à Fábrica. Houve
um momento de desânimo. Talvez, aproveitando-o, é
que José Joaquim Terrier, requereu em 1724 que se
lhe transmitisse a fábrica, expondo o seu plano e con-
dições. A Direcção discutiu o caso, fêz uma consulta
em 28 de Setembro, mas tudo veio a ficar em nada (2).
Por essa época já funcionavam no país outras ofi-

cinas cerâmicas. No Almanaque de 1789 vêm mencio-


nadas fábricas de loiça fina em Aveiro, em Coimbra,
na Carnota, no Juncal, na Panasqueira, no Porto, em
Rio Maior e em Viana.
Num apontamento manuscrito que possuo, e que nem
sei já como me veio parar às mãos, talvez dos primei-

ros trinta anos do século passado, citam-se a loiça in-


crustada da Amieira e a loiça negra do Crato, e há

(i) Já citada obra deAcúrcio das Neves.


(2) Livro 2° de Registos e Consultas, pág. 108 a 109 v.°
— 100 —
ainda referência aos azulejos que se fabricavam nas
Olarias, em Lisboa.
Nesta cidade funcionavam em 1790 as fábricas de
Paulette, na Travessa dos Ladrões a de Santo Amaro,
;

de Henrique Francisco de Andrade & C.*; a do Ro-


mão «dos Púcaros», às Olarias, na calçada de Agostinho
de Carvalho. A de Veróli, em Belas e a do Robillion
em Queluz, já tinham acabado. Depois, até i8i3, fun-
daram-se mais: a Fábrica da Calçada do Monte; a da
Travessa da Bela-Vista à Lapa a do Castelo Picão
;

a Re'al Fábrica da Bica do Çapato; a do Largo das


Olarias e a da Travessa do Pe de Ferro, respectiva-
;

mente em 1793, 1794, 1794, 1796, 1800 e i8i3.


Em 1782, continuando-se no empenho de animar
esta indijstria, foi concedida isenção dos direitos de
entrada para os géneros e drogas necessárias para a fa-
bricação de faianças, aos negociantes do Porto João da
Rocha João Bento da Rocha que tinham fundado a
e

fábrica a que a Carta Régia de 27 de Outubro de 1778


concedera os habituais privilégios (i).
O mesmo foi concedido por alvará de 7 de Feve-
reiro de 1787 a Alexandre Vandelli, para os géneros
que se destinavam à sua fábrica de pó de pedra, se-
melhante à de Inglaterra, produtora de cadinhos e va-
sos para laboratório. Os privilégios concedidos a esta
oficina eram só extensivos à Beira e ao Minho, obri-
gando-se o fabricante a tomar e a instruir aprendizes
e aos demais encargos habituais nas «Condições» im-
postas pela Junta do Comércio (2).

(i) Livro gij-B de Decretos e Avisos. Diploma de 14 de Ju-


nho de 1782, pág. 411 e 412.
(2) Livro gi8-C de Decretos e Avisos, 69 a 69 v.°
— 101 —

João Anastácio Botelho de Almeida, fêz várias re-


formas de ordem material no estabelecimento fabril do
Rato. Em 1798 mandou uma vis-
reparar, depois de
toria de técnicos, a casa da olaria que tinha uma pa-
rede arruinada (i) ; em 1804 promoveu, em nome da
Real Fábrica das Sedas, uma execução aos herdeiros
do capitalista José Luís de Brito (dono do actual palá-
cio Praia e Monforte) por dívidas à Fábrica da Seda,
execução que foi mandada extinguir por decreto de i5
de Agosto de i8o5, por ter sido a dívida perdoada a
requerimento da viúva, D. Helena Vitorina Antónia
Pinto de Morais Sarmento (2); e em i8ii e 1812, após
a vistoria do arquitetu Henrique Guilherme de Oliveira
e do Mestre das Águas-Livres, Teodoro dos Reis, con-
seguiu se fizessem novas obras na oficina (3). Os seus
bons serviços como Administrador, não como artista,
foram galardoados com uma ajuda de custo de i20'í!í)00o
réis por ano, por ordem da Direcção de 7 de Novembro
de 1800(4).

Em 1811 houve em Lisboa uma grande falta de le-

nha. Era difícil à Fábrica obtê-la para os fornos. Nos


mal desembarcava dos batéis que
cais desaparecia toda,
a traziam daOutra-banda. Foi necessário a Botelho de
Almeida alcançar ordem de embargo, com prisão para

(i) Livro g40 de Registo de Ordens da Direcção, pág. 20.

(2) Livro g4i idem, nág. 2 v." e 3.


(3) Idem — Ordem de 28 de Fevereiro de 1812, pág. 35 e 35 v."

(4) Livro g40 idem, pág. 43 v." e 44.


— 102 —
quem a quisesse tomar. Com o carvão foi preciso fa-

zer o mesmo, e era à força que se ia buscar ao cais


para acudir à loiça enfornada, sem combustível, para
se cozer (i).

Quanto a pessoal, neste período, apenas apurei o


seguinte
O mestre Manuel José do Nascimento, voltou da
Fábrica de Robillion para aqui. A ordem de 24 de Ou-
tubro de 1785 permite-lhe que tenha uma junta de bois,
para fazer carregos de barro e outros, por sua conta
e com lucro próprio (2).
Em 1792 foi nomeado Mestre Geral da pintura, o
nosso já conhecido Severino José da Silva (3). fa- O
brico do azulejo era dirigido por um operário hábil —
Francisco de Paula e Oliveira —
que desde 1774 estava
na oficina do Rato. Contra-mestre da olaria foi, em
1783, José Baptista de Almeida, irmão do falecido mes-
tre Sebastião de Almeida (4).
Os Róis dos Confessados deixam de mencionar a
população fabril do estabelecimento. O Botelho mo-
rava no Salitre, na casa familiar. Apenas aparecem
citados o Cândido José Coelho —talvez encarregado,
olheiro ou vigia — e um galego — tipo pitoresco pela

(i) Livro g4i de Registo de Ordens — Ordens de 12, 18 e 25


Janeiro e i3 de Fevereiro de 1811, 25 e 25 v.°

(2) Livro g3g idem, pág. Sy. Ao mestre Botelho de Almeida


também foi concedido pela mesma ordem ter duas juntas de bois

para moer o vidro.


(3) Livro g4o idem — Ordem de 5 de Outubro de 1792, pág. 17
e 17 v.°

(4) Livro g3q idem — Ordem de 28 de Julho de 17S3, pág. 2/


e 28.
io3 —
certa — a quem chamam o «João das Cores» e que, pos-
sivelmente, teria a seu cargo a mistura e lote das tintas.
João das Cores residiu ali desde 1780 a 1786. Em
1785 e 1780 também aparece o operário José António.

Das oficinas do Rato saíram muitos dos azulejos


que guarneceram as fachadas e os interiores da Lisboa
da reedificação. O palácio Pombal em Oeiras, o do
Conde da Ceia (anteriormente Rebelos) na rua da Es-
cola, o dos Alagoas, o dos Guiões, têm decorações
cerâmicas desta proveniência. Do Rato são também
os da igreja da Estrela, os da ermida de Nossa Se-
nhora da Consolação, em Agualva (i), os do pátio da
Academia de Belas Artes, os da ermida de Monser-
rate, os da Cruz das Almas e outros a que em breve
farei referência.
Francisco de Paula e Oliveira foi o pintor da maio-
ria deles. Da sua mão são, de certeza, uns azulejos de
Queluz encomendados pelo príncipe-regente em 1796,
os dos palácios dos condes de Óbidos, dos duques do
Cadaval, dos de Lafões, dos viscondes da Anadia, dos
marqueses de Borba, da ermida da Alfarrobeira, da
igreja de Santo António da Castanheira e muitos dos
que foram para o Rio de Janeiro. E êle mesmo quem
o diz, num documento copiado nos livros da Fábrica
das Sedas (2).

(i) Estes azulejos foram fabricados no Rato em 1787 e cus-


taram, por sinal, (Comunicação do falecido acadé-
i6yí}pS2j réis
mico Vítor Ribeiro â Assembleia Geral dos Arqueólogos Portu-
gueses, em 3o de Dezembro de igoS).
(2) Livro 929 de Representações e Consultas —
Informação de
Paula e Oliveira, datada de G de Novembro de 1818.
— 104 —
Em
1808(27 de Fevereiro) quando a Fábrica fechou,
por motivo das anormalidades derivadas da Invasão
Francesa, estava ele acabando os azulejos para a igreja
de S. Julião (sacristia). Todo o pessoal deixou a Fá-
brica excepto êle. Acabada a encomenda, Paula e Oli-
veira foi para a oficina do José Roiz de Magalhães, à
Bica do Çapato, onde continuou a pintar azulejos «de
brutesco» voltando para o Rato, em 1811, quando esta
Fábrica reabriu, passada a onda invasora.
Por mais este facto se vê quanto é difícil, sem o
auxílio documental, fazer atribuições de fabrico, pois o
Paula e Oliveira pintou azulejos para o Rato e para a
Bica do Çapato, os quais evidentemente, acusando a
mesma mão, devem ser semelhantes tendo, aliás, pro-
cedências A moldura polícroma enqua-
diferentes.
drando painéis de figuras a azul, é característica deste
fabrico que depois se modificou para o tipo Grinaldas
a verde, amarelo e azul que tanto abunda nos rodapés
e silhares das casas pombalinas.

Quando a Fábrica reabriu em 181 1, julgavam alguns


que ela iria, emfim, ressarcir-se dos prejuízos derivados
do largo período convulsionado que o país atravessara.
Puro engano. Haveria, talvez, boas vontades para
que tudo assim fosse, mas com o que ninguém contava
foi que caísse sobre ela a praga de um inventor, mal os
seus fornos se começaram de novo a aquecer e mal o
moinho do vidro entrou de trabalhar.
Joaquim Rodrigues Milagres —
inventor de uma nova
qualidade de louça —
título com que se condecorava o

sujeito, à guisa de indicação profissional, nos próprios


«Almanaques» do tempo, ]á na fábrica do Castelo Picão
— io5 —
tinha feito «infrutíferas experiências» quando surgiu na
do Rato, vestido com a couraça invulnerável de uma
protecção descabelada da corte e do próprio soberano,
que o levava a invocar a miúde a Real Presença e o
Real agrado, sempre que não sabia o que havia de di-
zer para justificar os seus desastres.
Vejamos se se consegue identificar o inventor.
Doutor se chamava ele a si mesmo, e devia de sê-lo.
Médico? Bacharel em leis? Não o sei. Naturali-
dade? Família? A estas duas preguntas aí vai uma
conjectura minha.
Suponho o dr. Joaquim Rodrigues Milagres (e não
Milagros) irmão do fundador (em 1770) da fábrica do
Juncal José Rodrigues da Silva e Sousa, nascido como
êsle, no lugar do Senhor dos Milagres, termo e con-
celho de Leiria, e filhos ambos de Joaquim da Silva e
netos de José' da Silva. O facto do nome e dos ape-
lidos, serem, aquele, o do pai e estes o da família e o
do lugar da naturalidade, assim como a bossa cerâmica
que seria adquirida por indução é que alicerçam a mi-
nha suspeita.
A fábrica do Juncal fechara também pelas invasões
francesas Joaquim Rodrigues ter-se-ia formado em
;

Coimbra e teria vindo depois para Lisboa dar largas às


fantasias de inventor. Ainda mais. O segredo do pó
de pedra que êle pretendia fabricar estava em Leiria;
eram os barros da região que se utilizavam no Juncal.
Logo o provaremos.

Foi no princípio de 181 1 que o Inventor se ins-


talou na do Rato, espanejando-se por toda a
oficina
Fábrica, requerendo obras, tudo achando pouco para «a
— io6 —
sua nova qualidade de loiça». ^ O pacato Botelho de Al-
meida andava apavorado com a revolução que se lhe
armara lá dentro. As amostras da primeira fornada
não satisfizeram. A Direcção torceu-lhe o nariz (i).
Milagres certificara-lhe que a fornada custava i85ííí)2oo

réis que valia 48o':í)00 réis. O dobro do que dava


e
a fornada habitual da Fábrica.
Os Directores, porém, desconfiados pelas amostras,
muitas das quais tinham defeitos, só queriam arriscar
uma opinião vendo o resultado de uma fornada e, por
isso, chamaram o Doutor a uma conferência em 1 1 de
Outubro desse ano, para terem conhecimento de onde
vinha o barro e proceder-se a uma cozedura por conta da
Fábrica. Milagres disse que só tinha o barro suficiente
para os ensaios e que demorava ainda mandá-lo vir.

A Direcção resolveu esperar. Não se convencia com


duas razões (2). Havia só uma coisa que a atrapalhava :

era a protecção da Casa Real que cobria o Inventor.


Por isso, sempre que as suas consultas eram para
as regiões superiores, torcia-se a falar 7ia excelente louça

fá verificada na Real Presença e dizia sem grande


convicção que, conforme informação do Doutor, as ter-
ras que entravam na composição da loiça, eram de
fora de Lisboa, de sítios remotos. Tudo isto vem na
informação prestada ao requerimento de Milagres pe-
dindo uma quantia diária para meios de transporte.
Já se vê, veio resolução favorável em data de i3 de
Fevereiro de 181 2, e a 19 dava-se o despacho com o
«cumpra-se» da ordem (3).
Em 22 de Abril a Direcção, representa pela quinta

(1) Livro g28 de Representações e Consultas, pág. Sg.


(2) Idem, pág. 62 a 62 v.° —
Consulta de 23 de Novembro de
1811.

(3) Idem, pág. 68 e 69 — Consulta de 7 de Fevereiro de 1812.


— 107 —
vez à Junta do Comércio. Não consegue que o Doutor
faça ensaios. Fizeram-se obras na Fábrica, deu-se-lhe
dinheiro, mas lá principiar o fabrico é que não se con-
seguia. Emquanto não baixasse a Resolução sobre
o seu requerimento pedindo recompensas adiantadas,
requerimento que não pôde, por isso, ser bem infor-
mado, declarava não querer trabalhar.
Os aflitos Directores dizem mesmo não po- : . . .

dendo a direcção deixar de sentir que se tenha tratado


coni tãopouca seriedade um negócio tão ejica\mente
recomendado por Vossa Alteia Real (i).

Milagres, talvez receando a atitude da Fábrica das


Sedas, fêz então uma fornada pequena sem dizer a nin-
guém de onde viera o barro nem o modo de prepa-
rá-lo. Tomaram-se nota das despesas, inventariou-se a
mandou-se avaliar por três negociantes, Filipe Nu-
loiça e
nes, JoséJoaquim da Rocha e Castro e Tomás Bessone
que lhe deviam marcar, também, preços de venda(2).
Por seu turno Botelho de Almeida apresentou uma
conta de todas as despesas feitas na Fábrica, com a
nova loiça, e outra de toda a existência da loiça an-
tiga (3). Nessa altura já se tinham gasto com o novo
invento i7.355;3í'45i além da mobília, utensílios etc.
ficando a Direcção autorizada a tirar esta soma do
Cofre das Aguas Livres, assim como todas as quantias

(i) Livro g28 de Representações e Consultas, pág. 72 e yS.


(2) Livro g4i-2° de Ordens — Ordem de 9 de Setembro,
pág. 38.
(3) Idem — Ordens de 9, 16 e 23 de Setembro de 1812, pág.
38 v.o e 39.
— io8 —
que, por tal motivo, ainda se tivessem de gastar (i).
Milagres reclamou da avaliação feita, a que não com-
parecera a-pesar-de convidado. Os peritos computaram
o valor da loiça, cuja fornada tinha custado i4o;jT'763
réis, em S2ítt>i6o réis. Em virtude de reclamação em
que se pedia a intervenção dos avaliadores da cidade,
estes vieram e avaliaram-na em ii9.íí>58o réis. Ainda
havia um prejuízo, que se não teve em linha de coma,
por se ignorarem as despesas do transporte do barro
e da sua extracção. A quebra era de i5^/o pelo me-
nos (2).

^ Julga o leitor que o Doutor encolheu as garras ?

Engana-se. [Quando seria legítimo supor que se


calaria, representa, de novo, superiormente, para que
o nomeassem Administrador da Real Fábrica dando-se-
-Ihe a oficina com todas as existências e a quarta parte do
lucro líquido, e ainda adiantando-se-lhe dois contos de
réis para a extracção, condução e preparação dos barros.
A
Direcção solicita, então, quási de mãos postas,
que se houver mais exames, avaliações, etc, se co-
metam à Junta do Comércio, por que ela não podia
informar sobre quem a tinha injuriado e agravado de
palavras. Pelo visto o Inventor estivera a ponto de
bater no Botelho de Almeida e pusera os Directores
pelas ruas da amargura.

Emquanto o Doutor Joaquim Rodrigues Milagres,


sem se importar com o Botelho nem com o Mestre de

Livro 92g-2.° de Representações e Consultas


(i) Represen-—
tação da 10 de Setembro de 1812, pá t. a 112. i i [

(2) Jdem, pág. 77 v." a 78 v." —


Representação de 14 de Ou-
tubro de i3i2.
— log —
oleiros João da Costa(i) ia preparando às ocultas os seus
barros e continuando a produzir a loiça inferior de que
se queixava a Direcção, outros inventores estudavam
lotações de barros com a mira de um dia fazerem
campo de experiências na «Real Fábrica do Rato».
No princípio de 1814 uma parçaria de te'cnicos apre-
sentou à Direcção da Fábrica das Sedas um projecto de
fabricação de loiça fina que podia concorrer com a
inglesa.
Os autores eram dois engenheiros, o Brigadeiro Ri-
cardo Luís António Raposo e o Sargento-mor de enge-
nheiros Francisco António Raposo, sobrinhos doTenente
general Bartolomeu da Costa cujos ensaios e experiên-
cias no fabrico da porcelana tinham sido notórios. Na
sua proposta, invocando o nome do tio e a aprendiza-
gem com êle feita e lamentando a falta de uma boa
loiça fina que concorresse com a estranjeira, principal-
mente com a inglesa de que se fazia uma larga impor-
tação, pediam o seguinte :

i.° Privilégio do fabrico, por catorze anos;

2° Exclusivo das barreiras de onde se tirava o


barro
3.° Que os aparelhos inventados para essa manu-
factura ficassem pertencendo a ela
4.° Isenção de direitos de carvão e outros materiais
e livre entrada e saída do reino da loiça fabricada;
5.° Habituais privilégios para os fabricantes;
6.^ Direito a recurso imediato para S. A. Real.
A
Direcção da Fábrica, sugestionada por José Acúr-
cio das Neves, informou excelentemente dispensando

(1) Livro g2g-2.° de Representações e Consultas Represen- —


tação de 5 de Agosto de i8i-|. João da Costa era habilíssimo ofi-
cial. Foi soldado da Guarda Real de Polícia durante a Invasão.
Readmitiu-se em 1814.
— lio —
ensaios e experiências, dada a categoria e os notórios
conhecimentos técnicos dos ^autores do projecto(i).
Ignoro os motivos por que não foi por diante o plano
dos Raposos, i Haveria resistência do Milagres, pondo
em bateria as suas influências cortezãs ?

O que que o Brigadeiro Ricardo Luís António


sei é

Raposo pouco depois adoecia e morria, e o irmão par-


tia para o Rio da Prata, numa comissão de serviço,

como diriamos hoje. A Real Fábrica, porém, não per-


deu com o novíssimo invento da tal loiça que imitava
a porcelana, como ao depois se apurou quando, recem-
chegado da América se entregou a superintendência da
oficina a Francisco António Raposo, em i825.

Sua Alteza Real tendo acordado em fins de 1814


do «engano ledo e cego» em que o pusera o Milagres,
mandou ordenar à Direcção que se fizesse uma conta
corrente das despesas e receitas da famosa loiça.
Ora a conta foi esta

DÉBITO
Materiais, moveis, manufacturas e uten-
sílios em I de Janeiro de i8i3 5.680^879
Despesas com os operários, lenhas, bar-
ros, etc 4.001Í55089
Chumbo e estanho em barra 472^^920
Ordenado do Administrador 320CÍ)0oo
Renda do edifício que se carrega 2oo;jí)000
Lucro 323íf)927

Total 10.998^^815

(i) Livro 929-2.° de Representações e Consultas, pág. 114 v.

a 116 v.o Consulta de 16 de F"evereiro de 1814.


— III —
CRÉDITO
Dinheiro das vendas 6. 107^55)443
Existência 4.89ií5í>372

Total 10.998^^81

O peor é que o lucro era fictício e só existia nos


livros. A existência não valia oque se mencionava.
Não havia «sonido» e a laboração estava muito dimi-
nuída (i).

Nesta altura apareceu um novo compère da peça que


o Milagres andava representando. Foi o negociante Luís
António da Costa que se propunha comprar, com ex-
clusivo, toda a loiça do iiopo invento, todo o suposto
«pó de pedra» fabricado no Rato, expondo-o ao público
em duas lojas dos baixos da Inquisição (Rossio) onde
então estavam uma taberna e um confeiteiro. Pedia
isenções várias de direitos e de contribuições, exigia
certificados de autenticidade das peças recebidas por
meio de um sistema de guias e recibos, comprome-
tia-se a só vender, devidamente marcadas, as peças
que estivessem perfeitas, e prometia abrir outras lojas
de venda. O pior é que, no Rato, o Doutor só fazia uma
fornada por mês, o que era escasso para tão vasto plano.
A Direcção desconfiou. O Costa veio com-um segundo
requerimento com vários esclarecimentos, e o Adminis-
trador informa que o armazém que tem chega e sobra.
A Real Resolução, datada do Rio de Janeiro de 24 de
Julho de 1816 declara que não havia que deferir. O
«cumpra-se», foi cá posto em 29 de Janeiro de 1817(2),
quando o Costa já, de-certo, não pensava em desalojar

(i ) Livro 929 de Representações e Consultas —


Representação
de 21 de Outubro de 1814, pág. 5 v.° a 6 v.**
(2) Idem, pág. 33 v.^ —
Consulta de 9 de Janeiro de 1816.
112 —
do Palácio do Rossio o vendedor de vinhos e o con-

feiteiro.

Em Juliio de 1816, o Administrador Botelho de Al-


meida sentindo-se velho, doente, cansado de trinta e

sete anos de serviço e, sobretudo, farto de aturar


o Doutor Milagres que lhe invadira a Fábrica e lhe
tirava, dia a dia, a autoridade, pediu a demissão do
seu cargo. Tinha amor à oficina. Engeitara o lugar
de Escrivão do Novo Imposto vago pela morte do seu
tio Vicente Luís Nobre, mas agora não podia mais.

Solicita à Direcção que se façam um inventário geral


e vendas em leilão.
Botelho de Almeida dizia com uma pontinha de vai-
dade que a fábrica antiga não devia de acabar. Quanto
às manufacturas do chamado «pó de pedra», tinham
os seus dias contados. Dois anos de experiências e

de prejuízos chegavam, e calcula estes em i2.322^bg/^


réis sobre um gasto de i5.22iíí;59i réis.

A Direcção estava de acordo com o administrador e,


em i3 de Agosto desse ano, baixou uma. portaria acei-
tando a demissão do Botelho e mandando fazer exames
e avaliações ã loiça do 710PO invento (i).

Quando que iam fazer-lhe


o dr. Milagres soube
avaliações à loiça, deu por paus e por pedras, quei-
xou-se à Direcção, reclamou e exigiu que a laboração
não parasse. O guarda-livros começou o balanço e, em-
quanto êle durava. Milagres requeria mais SooíJfeooo
réis para a continuação da sua manufactura. O guarda-

(i) Livro g2g de Representações e Consultas, pág. 72 a 74 v.»


— Consulta de 3i de Julho de 1816 e Livro i.° de Registo de De-
cretos e Avisos, pág. 1 19 v.°
— ii3 -
-livros, mandado informar, emudeceu. Furioso o Doutor
com mandou, em 21 de Novembro, a casa
as delongas,
do Barbosa de Amorim uma carta violenta
dr. José
dizendo que se lhe não mandassem logo o dinheiro, aban-
donaria a Fábrica. A Direcção airapalhou-se com a
ameaça por ser caso de interesse régio mandou de-
e

positar os 8ooíí>ooo réis no armazém da venda, solici-


tando à Junta do Comércio fizesse presentes a S. A. R.
estas delapidações na Real Fazenda (i).
Nessa altura o prejuízo apurado pelo guarda-livros
era de 5.2G2íí'495 réis, desde o primeiro de Agosto de
18 14 a 3o de Setembro de 1816, mesmo deduzindo-se
as obras e consertos no edifício que importaram em
2.236ííf68o réis. O
Procurador Fiscal mandou que a
avaliação fosse presente ao Milagres e se intimasse este.
Milagres respondeu Já ter dado conta, directamente, a
Sua Alteza Real e que o prejuízo não passava de
i.9oiíí)368 réis.
Ouvido de novo o guarda-livros e confrontadas as
duas contas, ficou apurado o prejuízo de 4.7i8ít>927
réis.

O Procurador Fiscal a quem a conta foi ao «visto»,


alvitrou a nomeação de um perito e declarou alhear-se
do assunto.
A Direcção ficou, de novo, perplexa. A não ser o
dr. José António de Sá, todos os outros Directores opi-
navam que se passasse a Fábrica a um particular. O
dr. Sá queria que se aperfeiçoasse a manufactura. Os
lucros viriam depois para indemnizar o Cofre dos su-
primentos feitos. O que era preciso, no seu entender,

(i) Livro 929 de Representações e Consultas Representa- —


ção de 22 de Novembro de 1816, pág. 89 a 91. Livro 20 de Or-
dens, n.° 941, pág. 5i v.° — Ordens de 3o de Agosto e 6 de Setem-
bro, mandando ao guarda-livros fazer o balanço.
VoL. IV 8
— 1 14 —
era um mestre hábil e inteligente. E tudo fòi para Sua
Alteza Real (i).

Em i3 de Agosto de 1816 faleceu o João Anastácio


Botelho de Almeida. Pouco mais de um ano lhe so-
breviveu o Inventor que tanto o arreliara. Joaquim
Rodrigues Milagres, em
8 de Dezembro de 1817, foi
dar ao Criador as contas que nunca dera á Direcção da
Real Fábrica das Sedas (2).

Saibamos agora o que era o seu famoso invento, o


seu misterioso pó de pedra.
Em primeiro lugar Milagres nunca fabricou pó
:

de pedra, o que ela manufacturou foi só faiança. José


Queirós bem o pressentiu.
O segredo da pasta cifrava-se no seguinte mistu- :

rava, em partes iguais, barros de Leiria e de argila


calcárea de Monsanto, e o vidro era formado por outra
mistura de seis arrobas de zarcão, sete de areia da
Quinta dos Arcos (outra-banda), rica em feldspato, e um
saco de sal.
A argila de Leiria tinha pouco óxido de ferro. Não
avermelhava, circunstância esta que foi aproveitada, no

(1) Livro g2g citado, pág. io6 v.° a iii Representação de 3


de Setembro de 1817.
(2) A viúva do dr. Milagres, D. Ana Doroteia de Campos, re-
quereu à Direcção a pensão de 400J6000 réis, o que lhe foi defe-
rido por aviso de 20 de Março de 1818 (Livro g20 de Decretos e
Avisos, pág. 27 a 27 v.°).
- ii5 -
vidrado, pelo Milagres. Para a vinda do barro de Lei-
ria, o Doutor tinha um chamado Joaquim
comissário lá,

José da Rosa Versas que lho mandava a i23 réis a


arroba, com comissão na compra (i).

Não sei de nenhuma peça que se possa com segu-


rança atribuir ao dr. Milagres. Houve todavia peças
marcadas como do projecto de Luís António da
se vê
Costa. Mas qual seria a marca ? Os inventários tam-
bém não nos elucidam sobre o género de peças fabri-
cadas.
Emfim, uma total ignorância, a-pesar-de tantas no-
ticias inéditas que neste capítulo se dão ao leitor.

(i) Livro g2g citado— Consulta de 23 de Abril de 1819,


pág. i3o a 149.
CAPITULO VI

Sumário : A infeliz administração de Vandelli —Luta entre a Teo-


ria e a Prática — Mestre e Administrador incompatibilizados
— Acusações, queixas e — intrigas A «gafe» dos três hemis-
férios — A Procuradoria Fiscal e a Direcção resolvem o pro-
blema, ficando tudo na mesma —
O negócio do azulejo; diz-se

qual era e como era Vários tipos de azulejo feitos na Fábrica
— Vinda dos barros de Leiria e venda de loiça para essa re-
gião —O projecto de Mateus Pereira Pacheco — Um adian-
tamento ao Mestre Paula e Oliveira —
Vandelli acusa-o de
novo —
Devassas e inquéritos sem resultado —
Dois projectos
dos negociantes de loiça Inácio Pereira Guimarães e Vicente
José —
O combustível empregado na Fábrica Ensaios com —
os barros de Cascais feitos por Salvador Luís e Silva Franco
— Vêm para a fábrica barros de Molelos — O dr. Tomé Roiz
Sobral e a sua acção na oficina : castigos, abusos do pessoal,
preços e leilões — Os Armazéns da Fábrica na rua do Arsenal
e na Rua Bela da Rainha — Perda de fornadas — E a Fábrica
avisada de que vai vender-se — Susta-se a ordem — Os en-
saios felizes de Salvador Luis — Renasce a questão Vandelli-
-Paula e Oliveira — Sai Vandelli da Administração — Recla-
mação sua — Mais dois pretendentes à Fábrica do Rato —
Superintendência do brigadeiro Francisco António Raposo, de
1823 a 1829 — Quesitos postos à Direcção da P'ábrica das
Sedas — Dividem-se os pareceres — Outro engenho de moer
vidro — Encomenda para a quinta Real do Rio de Janeiro e
o busto de D. João VI, feito por Salvader Luís — Intervêm
os mestres da Aula de Desenho — Abatimentos nas vendas
e leilões —A administração do brigadeiro Raposo — Outro
pretendente à oficina do Rato.

A administração que sucedeu à de Botelho de Al-


meida, foi ruinosa para a Fábrica. Durou seis anos,
sendo os primeiros quatro gastos, se pode dizer-se, em
— 11« —
lutas internas, intrigas e questiúnculas, reclamações e
queixas. Um duelo entre o Administrador e o Mestre
e uma pugna entre estes dois e a Direcção. A ordem
de 8 de Abril de 1818 nomeara Administrador Alexan-
dre António Vandelli(i) filho do ilustre botânico Do-
mingos Vandelli, pessoa dada aos estudos químicos e
industriais, sócio e guarda-mor da Academia, o qual,
em tempo, já requerera e tivera privilégio para a ma-
nufactura de certa loiça à imitação da inglesa. Parecia
assim ter-se achado pessoa competente para adminis-
trar e superintender na Fábrica, mas Vandelli era ape-
nas um teórico e a sua acção falhou absolutamente.
O leitor vai ver o que se passou.

O Mestre da fábrica era desde 10 de Novembro de


1817, o nosso já conhecido Francisco de Paula e Oli-
veira. Fora ele o sucessor do dr. Milagres com quem
trabalhara, estando há trinta e cinco anos, com al-
gumas interrupções, no Rato, como oleiro, e pintor de
louça e azulejos entrefinos e de grutesco. Era mesmo
dele o exclusivo do fabrico dos azulejos nesta oficina,
com o que, ao que parece, auferia bons proventos. A
sua grande prática de ceramista veio assim a defron-
tar-se com a enfatuada teoria do Vandelli e como tam-
bém tinha a sua pontinha de vaidade, o conflito estalou,
já vamos ver como.
Por morte do Botelho e do Milagres, a Direcção
ordenou se fizesse inventário e balanço de toda a
loiça existente. Arbitrou gratificações aos inventa-

(i) Livro de Ordens n.° g4i, pág, 59 v.°


- 119 —
riantes e mandou proceder a vários melhoramentos e
obras (i).

Um requerimento de um tal Mateus Pereira Pa-


checo que queria comprar, sob certas condições, toda
a loiça da fábrica, não teve andamento, a-pesar-de ter
insistido no pedido de a ficar dirigindo com privilégio
para o fabrico de loiça de um esmalte de ponto mais su-
bido (2). Era mais uma experiência que a Direcção
pôs de parte, como tantas outras.
O Paula e Oliveira pediu então para ser provido
no lugar de Mestre geral. A Direcção mandou infor-
mar o Administrador e a luta começou. Vandelli não
sofria a filáucia do Oliveira. E certo que êle dirigia
a manufactura do Milagres, mas lá o estar senhor do
segredo é prenda de que se não podia ufanar porque
todos na fábrica o sabiam. O que fêz, realmente, foi
alterar um tanto a receita, empregando, para o vidrado,
litargírio em vez de zarcão. O teórico Administrador
gasta abundantes períodos da sua informação sobre a
influência do fumo na cozedura e sobre a opacidade e
transparência do esmalte, e ainda sentenciando, como
mau, o vidrado da faiança do Rato que fendia por ser
muito grosso e por se desenformarem as peças antes
de resfriadas. Por tudo isto entendia Vandelli que
seria necessário fazer ensaios, mas para tal era preciso
um mestre obediente. Mestre geral e Administrador
eram entidades incompatíveis dentro da fábrica. Ou
um ou outro. E o Administrador termina este arrazoado
por se julgar inútil, visto que o Paula e Oliveira sabe
tudo . . . depois que lho di\em, acrescentava ironicamente.

(i) Livro de Ordens —


Ordens de 8 de Abril, 6 e i5 de Maio
de 1818 e 3o de Abril de 1819, pág. 60 a 64 v."
(2) Livro 920 de Decretos e Avisos —
Aviso de 23 de Dezem-
bro de 1817, pág. i35 a i35 v.°
"
— 120 —
A informação, porém, continua e é interessante ex
tratá-la. Lembra que em vez da areia de Coina, que é

composta de cinco partes de sílica e uma de alumina


pura, se aproveite a areia do Rio Seco, juntando-lhe
uma percentagem de alumina. Quanto às argilas (na
Fábrica, além da de Colégio dos Nobres, usada por
Brunetto e Sebastião de Almeida, parece que também
se usaram depois as de Rana e dos Prazeres) alvitra
que se experimentem os barros de Leiria e da Ericeira.
Acusa o Oliveira de desdenhar de tudo, e cita como
exemplo o ter-lhe mandado fazer ensaios da manufac-
tura da loiça acobreada, à maneira a inglesa, dando-lhe a
receita e ele não ter feito caso. A catilinária continua.
Paula e Oliveira é acusado de exorbitar em tudo
admitindo operários escusados, tanto assim que na Fá-
brica onde há três oleiros e três aprendizes, contavam-se
dezasseis trabalhadores. Tinha lá um oficial de avia-
mento de pintor, que era seu afilhado, e que recebia 240
réis quando qualquer aprendiz, ganhando metade, fazia
o mesmo. De quando em quando Vandelli diz barba-
ridades na ânsia de atacar o Mestre. Ao criticar a
existência de quatro pintores, declara que a pintura, a
não ser estampa, em vez de valorizarr a loiça diminuia-
-Ihe o valor ! !

Emfim, em seu parecer o Oliveira não ensinava


os oficiais, não fiscalizava, não trabalhava e era preju-
dicial à Fábrica (i).

A Direcção da Fábrica da Seda mandou ouvir sobre


o caso o Procurador Fiscal que opinou que o Oliveira
não devia ser provido, continuando a oficina sob a di-
recção do Administrador.
Vandelli rejubilou e recrudesceu nos ataques fazendo

(
I ) Livro 929 de Representações e Consultas — Parecer do
Administrador Alexandre António Vandelli.
— 121 —
a biografia do pintor. Já Botelho de Almeida o quisera
despedir, só se conseguindo manter por empenhos, e
o Milagres nunca o nomeara mestre a-pesar-dajs suas
diligências. No' fabrico do azulejo cometia abusos com
prejuízo da Fábrica. Chama-lhe «hum Pccus iiifiduin
bdlicosum petiilans decorticaus ! ! ! O sal comprava-o
a 100 réis o alqueire no Tendeiro ele, Administra-
;

dor, mandou-o comprar a 6o réis. Já se sabe que disse


logo que não prestava. O barro, quem lho fornecia era
um cunhado dele, a i6o réis, quando se podia obter a
I20 réis, diz gloriosamente Vandelli acabando por ins-
tar pela demissão do seu lugar (i).
De novo foi esta catilinária do Vandelli ao Conse-
lheiro Procurador Fiscal que aprovou o informe, achan-
do-lhe razão e opinando que se faça consulta, de tudo, à
Junta do Comércio.
O dr. José António de Sá, finalmente, confirmando
os seus anteriores pareceres, opina que se despeça o
Paula e Oliveira responsabilizando-o pelos seus crimes
sem fazer caso da sua antiguidade, ouvindo-o, porém,
previamente sendo cometido ao guarda-livros o in-
e

quérito, que se deve fazer com vista final ao Conse-


lho Fiscal. Este parecer é datado de 6 de Agosto
de i8i8. Em 23 de Setembro a Direcção despachou
que se ouvisse o Paula e Oliveira e deu ordens ver-
bais ao guarda-livros para informar se as cumpriu di-
zendo que os dois lugares, o de Mestre e o de Admi-
nistrador-delegado da Direcção só se podem manter
havendo entre eles harmonia (2).
Agora vai o leitor ver o reverso da medalha.

(i) Livro 929 de Representações e Consultas — Parecer do


Administrador Alexandre António Vandelli.
(2) Infortnação de 14 de Setembro de 1818 —
Despacho de aS
de Setembro de 1918 e Parecer do Conselheiro dr. José António
de Sá —
tudo no Livro g2g de Representações e Consultas.
— 122 —

O Mesire — sucessor do dr. Milagres e pintor de


azulejo — enfia então, em contrapartida, as suas acusa-
ções ao Adminislradcr. Atacaram seu o crédito, defen-
de-se.
Vandelli é de uma incúria inconcebível. Não sabe
administrar. Os seus conhecimentos são os que os ope-
rários da fábrica lhe ensinaram. Faz charlatanismo
com a sciência. Quando não sabe o que há-de dizer
vem com a química à balha. Os operários e traba-
lhadores não são forçados nas galés. As suas ideias
são sempre como aquela de abrir um buraco na abó-
bada do forno e outro na parte oposta à porta de carga,
a fim de se diminuir o gasto das lenhas. E um teórico
cheio de imaginações e de ideias figuradas. Vandelli
não quere mestre na Fábrica pela mesma razão por que
Milagres não o quis, para passar por sábio sem que
ninguém lho conteste. Oliveira faz a sua biografia e
alega os seus serviços encomiando a louça que produz,
que já não esboroa como a do Milagres, e que não é ava-
liada por êle mas pelo público pela aceitação que tem.
Enumera ainda as obras de azulejo que tem feito e não
dá mais respostas aos discursos teóricos do Adminis-
trador (que quere ser senhor absoluto da oficina) por-
que não tem tempo para desperdiçar (2).
Vandelli requereu se lhe desse vista da informação
do Oliveira. Foi-lhe deferido. Examinou-a e respon-
deu. E um novo ataque a que em parte o Mestre dera
o flanco alegando em seu favor que, para fazer azulejos

(i) Informação do Paula e Oliveira, datada de 6 de Novem-


bro de 1818, no mesmo Livto [)2g.
— 123 —
de brutesco era preciso saber desenho, história sagrada,
vidas de santos, botânica, fábulas e história natural e
animal dos três hemisférios ! Vandelli aproveita esta
dos três hemisférios e fulmina-lhe a ignorância. Depois
cita uma sua dívida à Fábrica de i82íf834 réis do ne-
gócio do azulejo, acusa-o de alterar preços e pede no-
vannente escusa do seu lugar, tanto mais que eslava
muito apoquentado com a perigosa moléstia da mãe.
Ganha, porém, novos alentos e investe, de novo, com
_o Mestre que não sabia química e que ainda faz pouco
do dr. Milagres que ao menos era homem de engenho
e estudioso. A louça que ele fabrica não se vende e
não presta, e os armazéns estão cheios. Acaba Van-
delli por propor que se abatam os preços para revenda,

que se obtenha um armaze'm Junto ao rio, no meio da


cidade, que se façam, também, abatimentos aos que
contratarem vendas com a Real Fábrica, e liberdade de
venda ambulante com atestado da Fábrica para não se
enganar o público com a inglesa (i).
O Conselheiro Procurador Fiscal, examinando de
novo o pleito, opinou que se aproveitassem a sciência
do Administrador e a prática do Oliveira, isto é que
tudo ficasse na mesma. A Direcção foi nas mesmas
águas, visto que Vandelli não tinha prática e que" o
mestre não era scientiíico. Acúrcio das Neves deu pa-
recer isolado. Entende que se admita o Oliveira no
lugar de Mestre (extinto desde lo de Setembro de 1796)
subordinado ao Administrador, mas que se acabe com
o negócio do azulejo, comprando-o fiado e vendendo-o
a dinheiro (2).

(i) Parecer da Direcção de 16 de Junho de 1818 e Despacho

de 27 de Janeiro de 1819 —
no Livro 929 de Representações e Con-
sultas.

(2) Consulta de 23 de Abril [de 1819, até pág. 149 do citado


Livro g2g.
124

Já por duas vezes se falou no negócio do azulejo e


vou dizer que negócio era esse. O
do Rato era
azulejo
de duas qualidades o ordinário e o grutesco. O mes-
:

tre pagava à fábrica o feitio a 800 re'is o milheiro, e


esta dava o barro, o vidro, as tintas, cozia-o duas ve-
zes, e pagava-lhe dois réis por cada azulejo. Pela pin-
tura do chamado pedra torta (esponjado) o Mestre
dava à Fábrica de faixa or-
três réis, quatro réis pelos
dinária, cinco réis pelo almofadado, sete réis pelo mo-
saico (padrão) e, pelo grutesco, vinte e cinco réis. Só
este, vendi-o o Oliveira a cinquenta e sessenta réis
Era um bom negócio para êle mas péssimo para a
Fábrica. Qualquer aprendiz trabalhava no de pedra
torta escusando-se o pagamento que se fazia. Ainda
por cima o Mestre, devia-os à Fábrica.
Era contra isto que não estava de acordo o Director
Acúrcio das Neves (i).

O barro para as faianças cujo fabrico era dirigido


por Paula e Oliveira, continuou, como no tempo do Mi-
lagres, a vir de Leiria, obtido ali pelo comissário Joa-
quim José da Rosa Versas, comerciante naquela cidade.
Em Maio de 1818 estavam lá para vir cerca de
quatrocentas arrobas, das 16.000 do contrato, que saíam
aqui a 128 réis cada. Ao Versas cabia uma comissão.

(i) Informação de Vandelli de 2 de Junho de 1818, no citado


Livro g2g.
— Í2D —
Auxiliava-0 na extracção dos barros o juiz de fora da
Figueira (i).

Vandelli lembrou à Direcção que se propusesse ao


comissário levar, para vender em Coimbra, Figueira e
Leiria alguma loiça da Fábrica, encontrando-se depois
a conta com
do barro ou cobrando ele a sua comis-
a
são nessa loiça a que daria o abatimento habitual de
50/0(2).
Foi aceito, pela Direcção, o alvitre.

Na Fábrica faltava o espaço para se armazenar


loiça. A faiança, o «pó de pedrai) e o refugo, tinha de
estar tudo separado principalmente no período dos ba-
lanços. Quando se propôs o de 1818 havia muita loiça
armazenada, mas afinal somente se arrolou, para venda,
a loiça antiga (3). A chamada de «pó de pedra», tam-
be'm abundava. Nesse mesmo ano Mateus Pereira Pa-
checo tornou a requerer a compra de toda essa exis-
tência a troco de ficar depois dirigindo a Fábrica com
o interesse que se convencionasse, a-fim-de produzir o
tal esmalte de ponto mais subido em que êle faiava.
O aviso da Secretaria do Reino de 22 de Dezembro
mandou informar Mateus Pereira Pacheco
a pretenção.
visitou a fábaica, mas limitou-se a ver e não falou,
salvo com o mestre Oliveira a quem perguntou quais
os barros que se empregavam e quais as misturas que
se faziam. Ofereceu-se para comprar logo loo^ooo

(i) Informação de Vandelli de 26 de Maio de 18 18 e de de 1

Junho de 1818.
(2) Idem —
Informação já citada e Representação de n de
Maio de 182 {Livro g3o, pág. 41).
1

(3) Informação do Administrador de 3 Junho de 18 18.


,— 126 —
réis de loiça e que do seu interesse se falaria depois.
O que ele queria era meter-se dentro da Fábrica e ar-
vorar-se em dr. Milagres.
A Direcção, sobre a informação do guarda-livros
que o acompanhou na visita, informou contra e a Re-
solução Real foi: — Não há que deferir (i).

Paula e Oliveira, serenado o temporal com o Van-


delli, tornou em 1819 a requerer a nomeação de Mestre
e, ao mesmo tempo, um adiantamento de iSo^ooo réis
por conta do seu ordenado. A dívida dele à fábrica
orçava, então, por 533íZí'878 réis de adiantamentos e
do negócio do azulejo. A Direcção dividiu-se nos pa-
receres mas afinal (êle tinha padrinho) deram-lhe o
adiantamento pedido para se descontar no vencimento
que se lhe viesse a estabelecer. Quanto à nomeação
de Mestre ficou para segundas leituras (2).
Em 1820 faz-se-lhe ainda novo suprimento de igual
quantia (3).

Vandelli, que estivera ausente da administração de-


pois da luta com o Oliveira, foi restituído ao lugar, por
aviso de 17 de Fevereiro de 1820(4). Imediatamente

(i) Livro gsg de Representações e Consultas — Consulta de


25 de Junho de 1819, pág. i55 a i56 v.°
(2) Jdem —
Consulta de 17 de Novembro de 1819, pág. 162 v."
a 16^.
(3) Livro (J20 de Decretos c Avisos — Aviso de 1 1 de Janeiro
de 1820.
(4) Idem — Aviso de 17 de Fevereiro de 1820.
— 127 ~
começou contra este o seu trabalho de sapa. Logo em
17 do mês seguinte fez uma queixa do Mestre à Junta
do Comércio, acusando-o de roubos e extravios o que
motivou uma devassa em que nada se provou. Mais
tarde arranjou-se a deniincia de dois operários fazen-
do-se-lhe idêntica acusação que, igualmente, se apurou
não ter fundamento. A atmosfera estava preparada.
Na manhã de quatro de Outubro, quando o Oliveira
ia para a Fábrica, os operários insubordinados não o

deixaram entrar. Vandelli, já se sabe, não apareceu.


No dia seguinte o Director Pereira Martim, Depu-
tado da Junta da Administração, foi à oficina, conse-
guiu serenar os ânimos e pôr lá outra vez o Oliveira.
O sossego era, porém, aparente. Daí a pouco todo
o pessoal requeria, por escrito, a expulsão do Mestre
acusando-o de ignorância, incompetência e falta de zelo.
A Direcção requereu a S. M. que o caso fosse exami-
nado Desembargador-Conservador dos Privile-
pelo
giados do Comércio (i). O apiso de 16 de Abril de
1826, resolveu o assunto despedindo o Paula e Oliveira,
e o de 7 de Maio de 1822 proibiu a Direcção de no-
mear outro sem a aprovação do Deputado em Cortes
Tomé Roiz Sobral (2) que estava nomeado Superinten-
dente ou Inspector da Fábrica, embora Vandelli per-
manecesse na administração.
Bem era precisa qualquer superintendência. A
Fábrica estava desorganizada, indisciplinada e numa
manifesta decadência industrial. Até 1820 dera um
prejuízo de 15.78055^000 réis; em 182 1 gastaram-se em

(1) Livro Q2g de Representações e Consultas —


Representação
de 6 de Outubro de 1820, pág. 199 a 199 v.° e Livro §20 de De-
cretos e Avisos — Aviso de 16 de Abril de 1921, pág. 33 v.°
(2) Livro g3o de Representações e Consultas., pág. 53 v.° a 53
— Consulta de 22 de Agosto de 1821.
_ 128 —
dezanove fornadas 6.o5oí&ooo réis, tendo estas apenas
valido pouco mais de metade As vendas
(S.SSõciíiôoi).
não passavam de 4.1605^811 réis. O cofre da Fábrica
das Sedas estava cansado de socorrê-la e a Direcção
cada vez mais se apegava à ideia de que o reme'dio
era vendê-la ou passá-la a um particular (i).

Parece que acudindo a este pensamento apareceram


então duas propostas-requerimentos o do fabricante :

portuense Inácio Pereira Guimarães e o do fabricante


lisboeta Vicente José.
O primeiro que viera de propósito a Lisboa para
aqui fundar outra fábrica, pede para que se lhe entre-
gue a do Rato nas mesmas condições em que a teve
Sebastião Inácio de Almeida por contrato de 19 de
Dezembro de 1777; o segundo requere igualmente para
ser mestre, documentando a sua longa prática de 40
anos. Esta tem a data de 21 de Janeiro de 1822 e o
outro de Agosto de 1821.
O
dr. Sobral e Vandelli, ouvidos sobre os dois re-
querimentos, informaram mal, avançando o primeiro a
dizer que a entrega da Fábrica ao Vicente José era o
primeiro passo para a ruína. No indeferimento da pe-
tição de Pereira Guimarães
que muito há a espe-
diz-se
rarda sciêuciã e das virtudes cívicas do Sobral, a
quem então se chamava o Chaptal português (2). O

(i) Livro g3o de Representações e Consultas, pág. 53 v." a 38


— Consulta de 22 de Agosto de 1821.
(2) Livro 3." n.° g3o —
Consulta de 3i de Agosto de 1821,
de 8 de Outubro de 1821 e de 21 de Janeiro de 1822, pág. 67 a
67 v.°, 59 v.° a 60 V." e 84 a 85 —
Livro gio de Decretos e Avisos
— Portaria de
'
3o de Outubro de 1821, pág. 52.
— 129 —
dr. Tomás Roiz Sobral era lente de química em Coim-
bra e veio para a Fábrica {Portaria de i3 de Março de
1821) na intenção de remodelar tudo quanto dissesse
respeito à parte scientífica do fabrico, estudando pre-
parações de barros e vidrados, etc. Alguma coisa fêz,
mas foi bem pouco para o que se esperava.
O combustível empregado nos fornos era mato, que
se cortava das coutadas nacionais, adicionado de carvão.
Sobral passou a usar lenha de fachina comio Vandelli
já tinha proposto, sem resultado, à Direcção (i). Para
o vidro inventou um engenho de moer que foi cons-
truído e montado na fábrica pelo mestre das Águas
Livres em Novembro de 1828, depois de várias tenta-
tivas inúteis, uma das quais foi a do mecânico António
Schiappa Pietra que orçou em i5oíí:ooo tal trabalho
e que, a-pesar-de ser hábil em maquinismos e de ter
montado alguns nas serralharias de Pernes e Alcobaça,
parece não se ter entendido com este. Outro engenheiro
que lá foi não obteve melhor resultado, nem também
Pedro Celestino Soares, brigadeiro, comandante inte-

rino de S. Julião da Barra, nomeado por Portaria de


i3 de Fevereiro de i823 para essa diligência (2). Em
resumo o engenho nunca chegou a funcionar.
Para aperfeiçoar a loiça mandou, em 1822, ao ope-
rário oleiro Salvador Luís, que fora moço e depois
avaliador da loiça do dr. Milagres, estudar misturas

(i) Livro 3."


ii.° g3o, pág. 84 a 85 —
pág. 47 a 47 v.» {Con-
de Junho de 1821 e 21 de Janeiro de 1822)- Livro 920
sultas de 22
de Decretos e Avisos —
Aviso de 26 de Junho de 1821, pág. 38 v.°
a 3g.
Livro gSo de Representações e Consultas
(2) Representações —
de II de Janeiro de 1823, pág. 127 e 129 v.**
e 3i Livro 920 de —
Decretos e Avisos —
Portaria de i3 de Fevereiro de 1823, pág. jS
\.° 676 —
Livro Q4i de Ordens —
Ordem de 5 de Novembro de 1

1823, pág. 83 v.° e ordem de 25 4e Fevereiro de ^823, pág. 92 y."


VoL. IV 91
— i3o —
com os barros de Cascais» e chamou o bacharel Fran-
cisco Tomás
da Silva Franco para fazer outros en-
saios pelos quais lhe conseguiu uma gratificação de
72;Zí)ooo(i).
Nesse ano de 1822 também foi nomeado para aju-
dante da Administração, com o ordenado de 120^^000
anuais, Francisco António de Albuquerque Sobral, pos-
sivelmente parente do Superintendente, o que, como
sabemos, era pecha velha no Rato, desde o tempo de
Brunetio (2).
neste período, também quis fazer expe-
Vandelli,
riências com os barros de Molelos e mandou-os vir.
Tenho entre os meus papéis uma carta-ofício assi-
nada por Luís de Sequeira Oliva, sem data, dirigida a
não sei que entidade, para que esta se dignasse mandar
ao Jiiii de Fora de Tondella para que lhe remetta três
ou quatro arrobas de barro tal e qual os oleiros de
Mulellos fabricão os Bulles de chá que sai de hum barro
preto e lusidio e de aspecto metálico por fora.

A do Sobral, continuava.
crise, a-pesar-dos esforços
Os acusavam muita loiça defeituosa. Os
inventários
operários desleixavam-se e abusavam, utilizando as ca-
valgaduras da Fábrica em serviços particulares (3). O
Inspector teve de prover ás numerosas faltas ; castigou

(i) Livro 920 de Decretos e Avisos^ pág. 52 v." — Portaria áo


16 de Novembro de 1821.

(2) Livro g3o — Consulta Je 2S de Agosto de 1822, pág. 108


v.o a 109.
(3) Livro Q4i-2.° de Ordens — Ordens de 18 de Dezembro de
<8?2 e u de Fevereiro de i823, pág. 88 v.°, 89, 90 e 90 v.°
— i3i ~
os artífices, suspendendo o oficial da roda João Clí-
maco Ramos, que esteve fora do serviço três meses (i);
mandou apartar loiça para avaliação e inventário para
leilão e dar trabalho por empreitada ; autorizou estas
vendas pagando-se os lotes com títulos da dívida pú-
blica cédulas do Montepio (2); determinou o abati-
e
mento de 2 %
nas vendas feitas na fábrica e seus
armazéns até loííooo; ordenou várias obras; estabe-
leceu para a loiça preços iguais aos das fábricas par-
ticulares (3); organizou um aRegulamento Interno» para
a Direcção dos trabalhos fabris ; e aumentou salários
ao pessoal que o merecia, passando, assim, os pintores
José'Alexandre e Filipe Maria e os oleiros João da
Costa e José Maria a vencer, respectivamente, 52o,

340, i!tt)Ooo e 320 réis em vez de 480, 32o, 900 e 280


réis (4).
O do pessoal da Fábrica era, além do João
resto
Clímaco Ramos e do Salvador Luís (que era o avalia-
dor), o apartador Fernando António, o escriturário Fi-
lipe José dos Santos, o caixeiro Estêvão António, dois
forneiros e dois oficiais de aviamento.

(i) Livro g4i-2'' de Ordens, Ordem de 27 de Agosto de 1824,


pág. 116 e de 26 de Novembro, pág. 120.
(2) Jdem — Ordens de 7 de Fevereiro 14 de Março de 1823,
92 v.o— Livro g20 de Decretos e Avisos — Avisos de 12 de Agosto
e 3 de Outubro de 1823, pág. 92 e 97 — Livro g3g, pág. i56 —
v."

Consulta de 4 de Agosto de i823.


(3) Ordens de i5 de Janeiro, 18 de Maio e 11 de Julho de 1823,
pág. 59 v.", 60 v.°, 61, 62, 63, 63 v.", 64, 77 v.», 90 v." e 96 v.», do
Livro g4i — Livro g20 de Decretos e Avisos — Portaria de 7 de Ja-
neiro de 1823 pág. 74.
Livro g20 de Decretos e Avisos
(4) Portaria de— Agosto i

de 1822, pág. 64v.° e portaria de aS de Junho 1821, pág. 39 v." —


Ordem de 3 1 de Pçzembro de 1823, pág. 102 do Livro g4i d^ Or-
dens.
- l32 —

Vandelli e Sobral empenharam-se muito em conse-


guir que a Fábrica tivesse um armazém
no centro da
cidade para venda da loiça. Puseram, as vistas num da
rua de Arsenal 64 e noutro da rua Bela da Rainha, do
lado oriental, no quarteirão que virava para o Terreiro
do Paço, onde se vendiam os diários das Cortes (1824).
Também pensaram em qualquer loja na Ribeira Velha
ou na Ribeira Nova,
A Direcção da Fábrica das Sedas oficiou ao Inten-
dente Geral das Obras Públicas para facilitar a cedên-
cia. Em 1822 foi cedido o da rua do Arsenal e em 24
o da rua Bela da Rainha, que foi o que definitivamente
ficou para a venda da loiça (i).

A-pesar-do plano de economias, mandado fazer por


aviso de 24 de Maio de 1823(2), a crise crescia. A
perda das «fornadas» era freqiiente. A de 27 de Ja-
neiro desse ano até se desconfiou que fora propositada
e teve de se mandar averiguar das suas causas (3).
Em Abril tinha-se vendido quási toda a loiça e a
Comissão Directiva da Real Fábrica das Sedas arrumava
o assunto quando de siíbito aparece um aptso do Cor-

(i) Livro g20— Aviso da 6 ds Ahril de 1824 e portarias de


I e 26 de Agosto e 2 Outubro de 1822, pág. 64'%'.°, 67 v.", 68 v."
e I loj— Livro g3o de Representações e Consultas, pá^. 104 a 104
v.o, 106 v.", 1 10, 147 e ig5 v.° e 196.
(2) Idem, pág. 84 v.° —
Aviso de 24 de Maio.
(3) Livro g4i-2.'' de Ordens, pág. 79 e 9-.
— i3^ —
f€gédof do Crime do Bairro-Alto para que no dia 17
de Abril se achasse na Fábrica do Rato o Administra-
dor, a-fim-de se proceder ao arrolamento de tudo para
venda. Os da Comissão ficaram abismados (i) porque
não sabiam que a venda da Fábrica estava resolvida
por portaria de i5 de Abril.
Estabeleceu-se Todas as informações
o pânico.
passaram a ser boas. A
Comissão Directiva e Van-
delli esforçaram-se por demonstrar que a líltima for-
nada da de pó de pedra saíra perfeita pelo auxí-
loiça
lio de se não fa^ia n outro tempo
hum homem de quem
caso algum e enviaram amostras a Sua Alteza Real (2).
A Consulta de 6 de Agosto rejubila por se ter re-
solvido conservar de novo a Fábrica e diz que há me-
lhoria no fabrico, acrescentando estas palavras :
— por se
achar já este ramo de industria elevado já a um grande
auje{\ 1) (3).

Tudo isto era fictício e destinava-se a Justificar o


suprimento de quatro contos pelo Cofre do Real Erá-
rio que se solicitava e por que se instara em consulta
de 23 do mesmo mês, alegando a Comissão que o Co-
fre das Águas Livres Já dera 2.725^5)487 e que era ne-
cessário e urgente indemnizá-lo (4).

l
Como se dera o milagre de tal ramo de indústria
se ter elevado a um grande auge, e quem era o artí-
fice que conseguira tornar perfeita a última fornada ?
Este operário era o Salvador Luís, moço e avalia-

(i) Livro g3g de Representações e Consultas^ pág. i34 e pág.


124 a 125 — Consultas de 18 de Dezembro de 1822 e 16 de Abril
de 1S23 — Livro 920 de Decretos e Avisos, pág. 76 v..°^e 78.

(2) idem — Consulta de 9 de Maio de 1823, pág. i36 v.»

(3) Idem — Consulta de 6 de Agosto de 1S23, pág. 157 v.° e

Livro g20 de Decretos e Avisos, pág. 92.


(4) Idem

Consulta de 23 de Agosto de 1828, pág. iSg v." ,
— t34 —
dor do Milagres, perito e feliz na combinação dos bar-
ros, eque conseguira com os de Rana e de Cascais
fazer misturas com o de Leiria que resultaram exce-
lentes.
As amostras que a Comissão enviou a Sua Alteza
Real eram desta fxiistura, e em face delas resolveu-se
continuar com a manufactura, recomendando-se econo-
mia ao Administrador(i) e ficando Salvador Luís a di-
rigir o fabrico da loiça que chamavam de pó de pedra.

Nesta altura renasceu a questão Vandelli-Paula e


Oliveira. Em fins de 1828 este reclamou 'contra a si-

tuação em que se encontrava, expulso da Fábrica.


A Comissão mandou-se informar por afiso de 19
de Novembro tal reclamação, e, como demorasse esse

parecer, o antigo Mestre, em 3o de Janeiro de 1824


apresentassem as devassas feitas quando
solicitou se lhe
da sua expulsão, para se conhecerem os verdadeiros
culpados. Queixando-se de que desdeiôde Abril de 1821
se acha fora do seu lugar, reedita a história já conhe-
cida, a animadversão do Vandelli, e diz que os seus
denunciantes foram José António de Araújo, Manuel e
Francisco Dias Viana e que os cabeças de motim tinham
sido os caixeiros Filipe José dos Santos, Estêvão Antó-
nio e o apontador Fernando António. A Direcção in-
forma bem a pretenção, fala na dívida dos azulejos e
prescreve-lhe o salário de i!tt>ooo réis, visto nada se

(i) Livro g4i de Ordens, pág. 89 v.°, 90, 1 18 v.» —


Ordem de
24 de Dezembro de 1822 e 22 de Outubro de 1824 e Livro g20 de
Decretos e Avisos, pág. 80 — Portaria de i5 de Maio de 1823.
- i35 —
terprovado contra o requerente (i). Paula e Oliveira
acabou por ser reintegrado por ordem de 25 de Abril
de 1824(2).
Pouco depois, di portaria de 21 de Julho extingue o
lugar de Administrador (3). Vandelli reclamou, mas
nada conseguiu. O lugar de Inspector já também tinha
acabado por aWso de i3 de Abril (4).
Depois do aviso de 18 de Junho, a Contadoria en-
trou a fazer o apuramento de contas, tendo-se achado
ao Administrador um alcance de i.go8í!l)oi2 réis. Por
outro aviso de 29 de Julho mandou-se ouvir a Direcção
sobre as queixas de Vandelli (5). Já cinco meses antes
esta quisera que o Administrador a informasse miuda-
mente e mandara fazer um inventário geral com a sua
presença para que a responsabilidade fosse a quem de
justiça.
Vandelli exime se à prova. Deu-se o prazo de oito
dias e o Inventário fêz-se sem êle, que nem sequer o
assinou. O prejuízo apurado foi, então, de 28.890^^019
réis (6).
Com estes elementos é que a Direcção informou,
historiando outra vez a falência da sua técnica scien-
tífica, as perseguições ao Mestre e pondo em relevo o
carácter de molície, o feitio de denunciante, e a trapa-

(i) Livro g3g de Representações e Consultas, pág. 186 a i8g


V.»— Consulta de 3o de Janeiro de 1824 — Livro 920 de Decretos
e Avisos — Avisos de 19 de Novembro de 1823 e lo de Fevereiro
de 1824, pág. loi e 106 v.°
(2) Livro g4i de Ordens, pág. 107 v.°

(3) Idem, pág. iia v.°

(4) Livro 920 de Decretos e Avisos — Aviso de 1 3 de Abril,


pág. iio v.°
(5) Idem, pág. 11 5.

Livro g3g de Representações e Consultas


(6) — Consulta de
3o de Janeiro de 1824, pág. 229 v.° a 236.
— i36 —
cisse de Alexandre António Vandelli ! Daqui e' que re-
sultou a extinção do lugar (i).

Em i3 de Dezembr© ainda Vandelli requereu que o


eximissem de toda e qualquer responsabilidade. Não
foi atendido (2).

Em 1824 apareceram mais dois pretendentes à Fá-


brica do Rato. Em Maio foi um tal João António Pais
do Amaral que pretendia ser nomeado Inspector e em
Setembro, Carlos Maria Biffignandi, que queria ser Ad-
ministrador. A Direcção mandada informar por apiso
de 2 de Setembro, só em 17 de Outubro informou e
mal, lembrando que o pai do requerente Carlos Maria
Biffignandi, lhe dera que fazer e que este também não
era de recomendar. A Reai Resolução de 22 de No-
vembro indeferiu a pretenção(3).

No princípio de 1825, por apiso de 9 de Fevereiro,


foi mandada pronunciar-se a Direcção da Fábrica so-
bre os seguintes quesitos :

i.° (T Quanto pessoal deve manter-se na Fábrica e

quais os seus vencimentos ?

(1) Livro g2g de Representações e Consiillas Ordens de 20 —


de Fevereiro, 28 de Abril e 5 Miiio de 1824, no Livro g4i de Or-
dens, pág. 104 v.o, io5 V.», 108 v.° 109 V."
(2) Idem — Ordem
de i3 de Dezembro, pág, 104 v."
(3) Livro 929 de Representações e Consultas Consulta de —
3 de Novembro de 1824, pág. 236 a 237 v.°
-i37-
2.°
i
Onde se deve empregar acabando a manufac-
tura ?

3.° ^ Pode ainda conservar-se a oficina?


Havemos de concordar que as preguntas estavam
bastante mal feitas e pessimamente formuladas.
Os Directores dividiram-se em opiniões. Sales (Joa-
querie de Sales) era contra o acabar da Fábrica. Um
estabelecimento novo pede sacrifícios e a Fábrica fora
útil ao país, onde só se produzia a loiça grossa das ola-
rias eMocambo. Em i8i5 as despesas tinham-se equi-
librado com as receitas e o prejuízo que se calculou
até 1S14 foi exagerado. Em seu entender deve aper-
feiçoar-se a loiça e mandar vir de fora, de Inglaterra
talvez, um mestre hábil. É preciso substituir o actual
Mestre, fazerem-se quatro fornadas por mês, mandar
vir perito para os barros, reduzir jornais, avaliar bem
a loiça e administrar melhor ainda.
O dr. Francisco José Vieira revolta-se contra o seu
colega Sales, que sabia do caso há muito tempo e quere
aparentar ter parecer de improviso. Diz saber
feito o
que o Marquês de Palmela está tratando de aliviar a
Fábrica da Seda da oficina do Rato. O voto do Sales
era para dilatar a resolução e ele ter tempo de poder
dar conta dos serviços a seu cargo que andavam atra-
zados. E de parecer que a Fábrica acabe, a não ser,
diz êle, que Sua Majestade queira conserrá-la como
estabelecimento de caridade. Com o dr. Vieira assina-
ram este parecer os outros Directores Barbosa de Amo-
rim e Pereira Martim (i).

( i
) Livro 927 de Decretos e Avisos — Aviso de 9 de Fevereiro
de 1825, pág. II v.° e 17 v.*>
[38 ^

Neste ano foi nomeado Superintendente da Fábrica


o, então, brigadeiro Francisco António Raposo, um dos
autores do projecto de 1814, sobrinho do Tenente Ge-
neral Bartolomeu da Costa, que voltara do Rio da
Prata e a quem se entregaram os destinos dos fornos
de Brunetto (i).

Como se vê, foi o parecer do Director Jacquerie


de Sales o que prevaleceu. A Fábrica ainda havia de
durar mais dez anos.
Acúrcio das Neves, em 1826, regozijara-se pela en-
trega do estabelecimento ao Raposo, em cuja perícia e
saber confiava e atribui todos os desastres e prejuízos
às experiências de Milagres, de Vandelli e de Sobral,
mal à Fábrica.
cuja teoria e sciência não fizeram senão
E também seu parecer que no estran-
se contrate
jeiro um mestre hábil. Desta forma a loiça poderá
aperfeiçoar-se e dar lucro. Sales entendia que a Fá-
brica não podia pagar ao Raposo o que a este convi-
nha, e torce o nariz à continuação da oficina porque
o tempo é outro. Ele é que era de força. Amorim e
Rodrigues Ferreira opinaram que se passasse a Fá-
brica a um particular, deciarando-se fartos de experiên-
cias (2).
A-pesar-de tudo o brigadeiro Raposo continuou su-
perintendendo até 27 de Fevereiro de 1829. Nesta data
foi nomeado Administrador. Logo se dirá de sua
acção.

(1) Livro g42-3.° de Ordens, pág. ig v."


(2) Livro 929 de Representações e Consultas — Representação
de 22 de Novembro de 1826, pág. 91 a 92 v."
— 1^9 —

l
Lembra-se o leitor daquele engenho de moer o
vidro inventado pelo Sobral que nunca se conseguiu pôr
a andar ?

Pois neste ano de 1826 apareceu um qiiidam, João


Baptista de Andrade, que se propunha por 3ooíí)000
réis construir outro engenho idêntico para moer o vi-
dro e as tintas.
A Direcção, sempre desconfiada com os inventores,
chamou o Mestre das Águas Livres, que foi examinar
um moinho idêntico que funcionava na Fábrica da Rua
da Santíssima Trindade. Achou-o melhor que o do
Rato (pudera!), mas diz que não valia os Soo.jíooo réis,
e lembra que se modifique o do Rato para ser movido
pelo vento, como este, mas que não era preciso a in-
tervenção do suplicante (i).

Salvador Luís, o artista que achara a combinação


feliz das argilas de Leiria com as de Rana e Cascais,
inchara com a descoberta e ninguém o podia aturar.
Readmitido por aviso de 7 de Outubro, depois da
expulsão pela grossaria que fizera (2) em face do pare-
cer da Direcção, todo êle se pavoneava, alegando que

(i) Livro 929 de Representações e Consultas Consulta de —


6 de Maio de 1825, pág, 24 v.°a a 25 v.» —
Livro g2i de Decretos
e Avisos — Aviso de 16 de Março de 1825, pág. 8 v.°

(2) Idem — Consulta de de Julho de 1825,


i pág. Sg v." a
42 v."
i^ 140 —
tinham sido da sua autoria as peças enviadas em 1823
a D. João VI, para o Rio de Janeiro. Além destas pe-
ças eram também das suas mãos o busto de D. João VI
feito em
1824 para ser posto no Anfiteatro de Física
e Química da Casa da Moeda e que o aviso de 3i de
Agosto desse ano mandou entregar a Luís da Silva
Mousinho de Albuquerque, Procurador da Casa da
Moeda (i).

Em 1826 houve uma grande encomenda de estátuas,


grupos, vasos, etc, para adorno da Quinta Real e Im-
perial da Bela Vista no Rio de Janeiro. Foi esta em
Abril, e era Aragão Morato quem fazia a encomenda
por intermédio do negociante Ferreira Garcez e em
nome do Infante Regente.
A Direcção da Fábrica afadigou-se logo em que ela
se executasse com todo o preceito e lembrou que se
encarregassem os lentes de Desenho e Escultura de
dirigirem os trabalhos que seriam executados pelos seus
discípulos.
Assim se fez e, por aviso de 7 de Novembro, or-
denou-se ao Director da Aula, João José Ferreira de
Sousa, a direcção dos desenhos, muito embora o Jac-
querie de Sales já tivesse cometido essa superintendên-
cia, em Outubro, ao Professor Faustino José Rodri-
gues, conforme consta da Representação de 25 desse
mês (2).
Quem ainda executou estas peças na Fábrica foi o

(i) Livro g20 de Decretos e Avisos^ pág. 16 v.° e 118— avi-


1

sos de 3i de Agosto e t3 de Setembro e ordem de i5 de Setem-


bro de 1824..

(2) Livro 929 de Representações e Consultas — Representa'


ções de 6 de Setembro e de 25 de Outubro, pág. 85 a 85 v.° e 89
a 89 v.° e Livro 92/ de Decretos e Avisos — Avisos de 14 de Abril
e de 7 de Novembro, pág. 35 e 36 v."
— 141 —
Salvador Luís. Quando este estabelecimento acabou,
era êle Mestre da Roda.
O Paula e Oliveira é que não viu com bons olhos
a readmissão e a prosperidade do oleiro, e reclamou
contra ela, alegando, o que era falso, que êle fora ex-
pulso por um alcance nas contas. A Direcção não lhe
deu razão. Eram todos bons camaradas como se está
vendo (i).

Em 1825, 26 e 27 fizeram-se vários leilões, abaten-


do-se os preços. Os bules venderam-se a 25 réis e
doze chícaras a 3o réis. Em vez de dinheiro de con-
tado recebiam-se títulos de crédito (2). A Fábrica ia

de mal a pior. O armazém da Rua Bela da Rainha


fechou no meado de 1828 (3).
Quando em 1829 o brigadeiro Raposo foi nomeado
Administrador, mandou-se fazer um inventário geral e
um apartamento de loiça (4), mas essa administração
foi solde pouca dura. O Raposo, que era miguelista,
não se aguentou nem no balanço político nem no ba-
lanço da Fábrica, e em i833 saía deixando a oficina
do Rato em estado deplorável.

( i) Livro g2g de Representações e Consultas —


Consulta de 3o
de Maio de 1827, pág. 106 v." a 108 v.° e Livro 92/ de Decretos e
Avisos —Avisos de 29 de Dezembro de 1826 e de 19 de Abril de
1827, pág. 39 v." e 44.
(2)Livro g42-3.° de Ordens, pág. 48, i23, i23 v.°, 124 e 137 —
Ordens de 1825 e Livro 92/ de Decretos e Avisos, pág. 45 v.°
Portaria de 1 de Maio de 1827.
1

(3} Jdem — Portaria de 2 5 de Junho de 1828, pág. ôt v."


(4) Livro g42 de Ordens, pág. 19 v.^
— 142 —

Em 1826 ainda houvera outra tentativa de trespasse


da Fábrica. Requerera-a um tal António Mozer. A
informação mandada prestar por aviso de 9 de Março>
não animou a Junta a dar-lhe resolução favorável (i).

(i) Liivrõ (j2i de Decretos e Avisos, pág. 2G v.


CAPITULO VII

Sumário A administração do Brigadeiro Francisco António Ra-


:

poso —
Experiências infelizes —
A Fábrica do Rato em ruína
— Citam-se as suas instalações —
O novo Administrador Tei-
xeira Girão — Quem era este sujeito — As suas opiniões so-
bre a Fábrica — Uma aula de Química e outra de Desenho —
PropÕe-se um professor e um compêndio— A sua receita quanto
a um novo«^biscoito» — O estado precário da oficina — Obras e
despesas — Citam-se alguns artífices e empregados — O Mes-
tre de pintura Joaquim José Guimarães —
Sucede na Admi-
nistração Francisco António Chaves —Reduções de despesas
e de pessoal — Economias e mais economias —
Vai a Fá-
brica à praça em acaba o estabelecimento
i835 e Ci- —
tam-se algumas fábricas de loiça em Lisboa As desco- —
bertas de Bartolomeu da Costa, de Drouet e de Brocard —
José Manso Pereira faz experiências com a «Tabatinga» —
As peças atribuídas a Bartolomeu da Gosta O serviço de —
chá da Exposição de Cerâmica do Porto em 1882 A bai- —
xela da inauguração da estátua equestre —
Outra baixela de
porcelana, alegórica —
A loiça do «Ratinho» Acaba o ca- —
pítulo com uma transcrição da Cerâmica Portuguesa de
José Queirós.

A administração do Brigadeiro Raposo, apreciada


pelo seu sucessor, embora se lhe dê o desconto natural
devido a inimizade política entre os dois (Raposo era
miguelista e Girão um liberalão dos quatro costados)
não devia ter sido famosa. Francisco António Raposo,
a-pesar-de ter recebido no Terreiro do Trigo (Minis-
tério do Reino) do Leite de Barros, a quantia de réis
Sooíiííooo (Girão diz uns poucos de contos) para a ma-
nufactura do Rato nada fêi com esse dinheiro do qual
— 144 —
nunca deu contas a ninguém. A única obra que dei-
xou foi a Roda do Laboratório para a Casa do Torno
a-fim-de ocultar os alegados segredos de fabrico que
nunca existiram. Prometera ensaiar o fabrico da por-
celana e de loiça semelhante à inglesa que aprendera
com seu tio o Tenente General Bartolomeu da Costa
e só fez chícaras que Girão diz serem inferiores às da
fábrica dos Pinto Basto e uma faiança de que se des-
pegava o vidrado, estalava com a água quente e até
itiesmo com o ar frio de uma janela. Emquanto o Bri-
gadeiro esteve à frente da oficina nunca se fêz o apre-
goado pó de pedra, nem deixou ^coaduras. Os operá-
rios, mais antigos e sabedores, despediu-os.
Quando o Teixeira Girão recebeu dele a Fábrica,
fêz-se um inventário, após uma série de leilões onde
se vendeu tudo por baixos preços. O refugo foi todo
em padiolas para umas casas arruinadas, que perten-
ciam à Fábrica, na Travessa da Fábrica dos Pentes,
onde o Teixeira Girão ainda foi salvar algumas peças
de escasso valor. Nesse inventário, por exemplo, cinco
bois que deviam lá haver, foram substituídos por uma
barrica de potassa, uma porção de barro de Leiria e
dos Prazeres, o armário dos vidros e outras miudezas.
Nem as formas de gesso que a Fábrica tinha foram
encontradas. Umas foram dadas pela Direcção extinta,
outras partidas.
Tinas, caixas e utensílios tudo estava feito em ca-
cos. Dentro da oficina, por ruína do telhado, chovia
como na rua; a parede para a rua do Arco das Aguas
Livres ameaçava cair os soalhos estavam esburaca-
;

dos, e foi necessário fazer obras urgentes de reparo e


consolidação.
Segundo a Memória de Teixeira Girão (i) a Fá-

(i) Memória sobre o estado em que se acha a Fábrica da Loiça,


— 145 —
brica de Loiça do Rato, tinha casa para a lenha, abe-
goaria com palheiro, muitos e grandes fornos, casa do
tôrno e estufa, embora imperfeita, para as formas, tan-
que de coaduras, enxugadouro, casa da pintura, gabinete
para guardar peças delicadas, armazém para areia,
armazém de loiça, estendedouro, sala para aula e la-
boratório.
António Lobo de Barbosa Ferreira Teixeira Girão,
depois Visconde de Vilarinho de S. Romão, era escri-
tor versado em assuntos económicos, literários e artís-
ticos. Traduzira o Lutrin de Boileau e escrevera um
livro sobre a cultura das batatas, outro sobre culiná-
ria, um tratado sobre os fogões de sala, artigos sobre
viticultura e umas «Reflexões críticas e artísticas sobre
a edificação do novo teatro português denominado da
Glória» (antigo D. Maria II).
Era um espírito de aptidões complexas. A admi-
nistração da Fábrica da Loiça apanhara-o de surpresa.
Pouco lá se demorou, pois no final de i833 partia
a ocupar o seu novo e honroso emprego^ como êle
mesmo diz. O emprego era o de Prefeito de Trás-
-os-Montes.
As suas opiniões sobre a manufactura do Rato com-
pendiam-se em dois ofícios por êle dirigidos ao Minis-
tro do Reino Cândido José Xavier e que por cópia se
acham apensos a uma consulta da Direcção da Fábrica
das Sedas (1). O primeiro ofício, datado de 28 de
i833, vou extractá-lo.
Começa por confessar ter remorsos de algum dia
ter dito que se vendesse a Fábrica. Os princípios eco-

sita no Rato, e melhoramentos que vai tendo — Livro g32-5.° de


Representações e Consultas, pág. 3 a 1 5 v.° 1

(i) Livro g32-5.'' de Representações e Consultas, pág. 3 v.", 4


e u a i3,
VOL. IV 10
— 146 —
nómicos tinham-no enganado. Os fornos acesos não se
devem vender. Fala na falta e sugere que se
de água
remedeie não dando a particulares a do chafariz do
Rato. Em seu entender a Fábrica tem sido mal admi-
nistrada e dai é que vem a sua decadência, a falta de
barros, de loiças, de formas, e a ruína do edifício. Pre-
fere que se arraze, mas que não se alugue.
O segundo ofício, de 18 de Outubro, é em resposta
à consulia que lhe fizeram sobre o destino a dar à
oficina. Depois de citar os economistas e de trazer à

balha o preço das sedas no tempo da Imperatriz Teo-


dora, e a escolha por Júlio César, num opulento espó-
lio, apenas de um copo de porcelana transparente, cor

de flor de pessegueiro, condena a vinda ao país de mes-


tres estranjeiros que nada ensinam, como aconteceu com
o alemão Haas, que veio para a Cordoaria e com os Pie-
iras em Pernes, e entende que a Fábrica se conserve,
devendo criar-se um laboratório para análise dos bar-
ros dos arredores, das areias da Coina, do quartzo de
Sintra, do espato fusível da Serra da Estrela, das ar-
gilasde Leiria e de Loures, do manganês de Coimbra,
da pederneira do Cabo de S. Vicente para fabricar
escamas de cobre, das cinzas para a pintura e esmalte,
etc.
É igualmente preciso estabelecer uma aula de quí-
mica para os operários da Fábrica e rapazes da Casa
Pia.

no Rato uma boa sala que pode servir, assim
como há um bom local para laboratório. Lembra que
está em Lisboa um bom químico francês, que tem o la-
boratório junto do Jardim de Roberto Ynnes e se chama
Mr. Lavitte. Fala português e exerce a medicina.
Talvez se devesse aproveitar para professor dessa
aula ajustando-se por Goo^íjooo rçis. Pensa que êle
conseguirá tirar lucros.
— 147 —
Teixeira Girão acaba o ofício por se documentar
perante a Direcção, como tradutor da Química de

Payen, trabalho que fêz emquanto esteve emigrado


adicionando-lhe novos conhecimentos das químicas de
Thompson e Desmarets, e oferece-o a Sua Majestade
Imperial para uso dos alunos dessa aula, solicitando a
impressão do manuscrito e a litografia das estampas.
Os barros que se usavam no Rato diz êle na sua —
citada Memória —
eram o barro vermelho do Cole'gio
dos Nobres, o dos Prazeres, o de Rana (Cascais) e o
de Leiria. Ele propunha-se ensaiar um biscoito rijo
como o bronze que recebia o vidrado e resistia à água,
ao calor e ao frio.

A sua receita era : — partes iguais do barro do Co-


légio dos Nobres e dos Prazeres, a que se juntavam res-
tos decoadura de pederneira e depois barro de Leiria.
Dava uma loiça semelhante à inglesa (pó de pedra), finís-
sima. Teixeira Girão ainda em i833 construiu um
forno de ensaio que exigia menos calor, mas ignoro se
chegou a produzir algumas peças do seu invento. O
que fêz realmente foi um bom tejolo. Não era isso,
porém, o que se pretendia.
Os «teóricos» é que foram a desgraça da oficina
do Rato.

O da Fábrica consta da portaria


estado precário
de 3 de Setembro de i833 e das ordens de 20 e 23 de
Agosto de i832(i). O
armazém da Rua Bela da Rai-
nha fechara em Setembro de i83o para liquidar a conta
do caixeiro Francisco Luís Chaves que fora despedido

(1) Livro g42 3." de Ordens, pág. 75 v.° e Livro 922 de De-
cretos e Avisos pág. 5 v." e 6,
— 148 —
e que afinal veio a ser readmitido por ordem de 20 de
Agosto de i833(i). As despesas feitas, antes, em
obras indispensáveis, subiram a 2.667ítioo réis, sem
faiar nos tais Sooíí&ooo réis recebidos pelo Raposo no
Terreiro Público, a que se referira o Teixeira Girão (2).
O deficit desde i de Fevereiro de 1834 a 3i de
Outubro, foi de 596^5826 réis do mesmo ano.

Neste períodofoi nomeado Mestre Torneiro e dos

Vidrados Cozeduras, João Luís Salvador (3) e Cai-


e

xeiro de Venda, Manuel Argueles (4). Joaquim José


Guimarães, em i833, durante a administração de Tei-
xeira Girão, requereu para ser admitido como Mestre
e Administrador da Fábrica. Girão informou que ele
já ali fora pintor, que era já veltio
e, na ocasião, desne-

cessário (5). Foi isto em Setembro de i833. Em Dezem-


bro, porém, mudou de opinião e informou favoravel-
mente novo pedido de admissão (6), do que resultou
ele ser admitido (7). Mais tarde requereu para ser no-
meado Mestre do desenho e dos padrões de pintura (8).

(i) Livro g42 de Registo de Ordens —


Ordens de 22 de Se-
tembro de i83o e de 20 de Agosto de i833, pág. 38 v.°, 65 e 65 v."
(2) Livro g32 de Representações e Consultas — Oficio de de i

de Outubro de 1834, pág. by.


(3) Idem, pág. 61 v.* e 62.

(4)Livro g42 de Ordens —


Ordens de 17 de Outubro e 20 de
Novembro de i833, pág. 67 v.» e 68.
(3) Livro q32 citado, pág. 9.

(6) Jdem^ pág. 26 v.» e 27 Oficio de i3 de Novembro de


i833 e Livro 922 de Decretos e Avisos, pág. 3.

(7) Livro g22 de Decretos e Avisos, pág. 10 v," — Portaria de


8 de Fevereiro de i833.^
(8) Idem^ pág. 14.
-- 14^ —

Deixando Girão da oficina do Rato,


a administração
foi nomeado para lhe suceder Francisco António Cha-

ves, que veio a ser o último Administrador, gerindo a


Fábrica nos anos de i834' e i835. Logo ao princípio
da sua gerência teve de reduzir despesas e de dispen-
sar pessoal. Os salários foram reduzidos, mandaram-se
embora alguns aprendizes e tudo se restringiu ao mí-
nimo (i). O Mestre Guimarães, pintor a pincel e de
recorte, preparador das tintas e que centrava as peças
no tomilho, dando lições diárias na Fábrica (2), veio
também a ser dispensado. Para o substituir, dando
lições gratuitas, de desenho de paisagem, muito úteis
para o fabrico dos azulejos, foi admitido o professor
Francisco Vasques Martins, por empenho do Duque de
Bragança (3).
As economias eram evidentes. X portaria de i5 de
Novembro de 1834 pede as contas minuciosas da Fábrica
desde 1 de Agosto de i833 a 3o de Junho de 1834, espe-
cializando-se o valor dos objectos fabricados, mate'rias
primas, etc. (4). Já não havia, de há muito, armazém.
A venda da loiça fazia-se no vão de escada do armazém
da Fábrica das Sedas (5). Era o princípio do fim.

(i) Livro g42 de Ordens, pág. 70 e 70 v.° e Livro 922 de De-


cretos e Avisos^ pág. 45 a 45 v.° —
Portaria de 21 de Outubro de
1834.
(2)Idem, pág. 69 v.° —
Ordem de 14 de Fevereiro de 1834.
(3)Livro g32 de Representações e Consultas, pág. 38 v.° e 39
— Oficio de 17 de Março de 1834 e Livro 922 de Decretos e Avi-
sos — Portaria de 12 de Março de i834, pág. 23 e 23 v.°

(4) Livro 922 de Decretos e Avisos —


Portaria de i5 de No-
vembro, pág. 38 v." a 39.

(5) ide?n, pág. 20 e 20 v.° e Livro gS-j de Representações e


Consultas — Ofício de 24 de Fevereiro de 1S34, pág. 36 v." a 37.
— iSo —

Às propostas de arrendamento ou trespasse da Fá-


brica começam a aparecer.
Eni Abri! de >835 era a de Inácio António da Silva
Lisboa em Junho do mesmo ano, a de Manuel José
;

Coimbra. O convite íeiío no Diário do Governo co-


meçava a dar resultado (i).
A portaria de 4 de Setembro manda remeter à
Comissão o inventário geral do edifício, materiais,
loiça, máquinas, etc. (2). Pouco depois a Fábrica da
Loiça era vendida. Nas praças sucessivamente anun-
ciadas para 19 de Março, 16 de Abril e 21 de Setem-
bro, achou-se afinal um comprador.
Era uma vez a oficina de Brunetto, de Severino da
Silva, de Sebastião Inácio de Almeida, dos Berardis,
do Nascimento, do Paula e Oliveira, do Salvador Luís
e de tantos outros artistas (3).

Outras fábricas funcionavam em Lisboa e no resto


do país a esse tempo. José Queirós mencionaa uma
grande quantidade delas.

(1) Livro 922 de Decretos e Avisos^ pág. 47, 47 v.", 48 e 52 v."


— Portarias de 20 de Março, de 3 de Abril e de 19 de Junho de
i835.

(2) Idem, pág. 56 —


Portaria de 4 de Setembro.
(3) Pelos anúncios insertos na Gaveta de Lisboa e na Revista,
n.° 264 de 19 de Setembro de i835, vê-se que o arrematante ficaria
obrigado a conservar a Fábrica em laboração e a receber por in-
ventário as oficinas, utensílios, etc, ficando responsável por esses
valores e prestando para isso fiança idónea. Faltando-se a estes
compromissos seria a Fábrica arrematada de novo. Nada disto
aconteceu. A Fábrica não funcionou mais.
— ibl —
Citarei apenas aqui, para não reeditar o que na Ce-
râmica Portuguesa ficou dito, algumas notícias disper^
sas que guardo nos meus verbetes.
Os alvarás de 20 de Dezembro de 1778 e 10 de
Fevereiro de 1794 concederam isenção de direitos de
saída, à loiça de pó de pedra do Porto que fosse para
o Brasil.
O diploma de 20 de Julho de 1807 privilegiou a fá-
brica de loiça de pó de pedra do Cavaquinho (Porto).
O aviso de 8 de Janeiro de 1825, mandou informar
à Direcção da Fábrica das Sedas sobre o requerimento
de Leandro José da Fonseca para estabelecer uma fá-
brica de loiça fina(i).
Um anúncio do Periódico dos Pobres de 2 1 de No-
vembro de 1827 reclama uma fábrica de loiça fina de
José António Gonçalves, na Rua de S. Francisco de
Borja 65, onde se fabricavam moringues de Estremôs.
A Gaveta de i de Abril de i83o anuncia a venda
de fogareiros na fábrica de loiça da Travessa do Pé de
Ferro, n.° i5.
No Periódico dos Pobres, n.° ig, de 19 de Agosto
de i833 anuncia-se o arrendamento, com todos os uten-
sílios necessários, de uma fábrica de loiça fina, na cal-

çada do Monte.
Uma Gaveta de i836 reclama a «Companhia Fabril
de Louça», nas Janelas Verdes. Foi a que depois se
chamou «Fábrica Constância».
No Rol dos Confessados de S.Mamede, em i836,
cita-se uma Casa de Loiça, na rua Nova da Piedade.
O Diário do Governo, n.° 692, do primeiro semestre
de 1839, anuncia uma fábrica de loiça nas Trinas.

(i) Livro 92/ de Decretos e Avisos, pág 3 v.°


ÍÓ2 —

Antes de abandonar este assunto, algumas palavras,


ainda, sobre a porcelana, ensaiada por Bartolomeu da
Costa e pelo Dr. Manso Pereira, no fim do século xviii.
As primeiras experiências datam de 1793 e de-
vem-se a Bartolomeu da Costa, Tenente-General e no-
tável engenheiro do seu tempo, a quem também se
deve, segundo consta oficialmente, a fundição da está-
tua de D. José e a sua colocação no Terreiro do Paço
por meio de engenhos do seu invento.
Lendo-se atentamento os documentos publicados
pelo sr. D. José Pessanha, no Arquivo Hibtóvico{i) e
as considerações por eles suscitadas ao mesmo distin-
tíssimo crítico de arte, uma conclusão se tira, quanto
a mim, e essa é a extrema vaidade do Tenente-Gene-

ral Bartolomeu da Costa trabalhando obstinadamente


para que só o seu nome ficasse aureolado da fama que,
estou convencido, seria justiça dividir por mais alguém.
Os franceses João Drouet e Pedro Brocard, que tra-
balharam no Arsenal do Exército em 1764, na monta-
gem de engenhos de fundição, em que eram peritíssi-
mos, tendo vindo para Portugal, recomendados por
Martinho de Melo e Castro ao Marquês de Pombal,
como os mais hábeis e notáveis mecânicos, então co-
nhecidos no género, foram obrigados a deixar o nosso
país para não ofuscar a glória de Bartolomeu da Costa.
O Tenente-General dizia depois, em uma exposição
onde relacionava imodestamente os seus serviços, que
Drouet tinha fugido reconhecendo que os méritos dele

(1) Tomo I, ic^o"}). A Porcelana em Portugal — Primeiras Ten-


tativas.
— i63 —
éram maiores e adquirindo mais no que viu praciicai"
do que deixou (sic).

O próprio Machado de Castro correu o risco de ser


esquecido entre os cooperadores da factura da estátua
equestre, tanto Bartolomeu da Costa fêz salientar a sua
pessoa, amesquinhando os outros.
Uma publicação anónima do tempo, extractada pelo
sr. D. José Pessanha no seu interessantíssimo estudo,
dá a entender que o invento do maravilhoso engenho
para levar a estátua do lugar da fundição ao Terreiro do
Paço, fora obra de Drouet, aproveitada pelo engenheiro.
Dando de barato que esse escrito anónimo fosse de
algum despeitado a que tenha de dar-se o devido des-
conto, o certo que não repugna acreditar que tal fizesse
e'

quem, declarando-se abertamente, em documento fir-

mado pelo próprio punho, descobridor da porcelana,


não teve ao menos a consciência de mencionar o nome
do artífice francês, como seu auxiliar, quando é certo
ter sido Drouet o verdadeiro descobridor da argila re-
fractária com que êle fabricou as primeiras peças.
Disso não resta a mínima dúvida. Conta-o inciden-
talmente o sereníssimo Ratton, nas suas Recordações.
Andando em viagem pelas províncias, comissionado
pelo Governo para a descoberta de matéria prima, para
fabrico de tejolos destinados a um forno de reverbero,
encontrou-a efectivamente junto ao rio Vouga, perto de
Aveiro. Com essa argila é que Bartolomeu da Costa
fêz as suas primeiras experiências.
De que constaram elas, é o que vamos dizer em
breves palavras.
*

A principal das seis peças que lhe são atribuídas é


uma medalha em forma de edículo, representando numa
face o famigerado aparelho da sua duvidosa invenção
— i54 —
e na outra a indispensável inscrição comemorando a
descoberta a que se refere a medalha. gravador foi O
João de Figueiredo, como tambe'm se lê no exergo do
reverso.
Das outras, uma refere-se à descoberta da porce-
lana, com o seu nome, no reverso, e no an-
já se vê,
verso as armas reais outra apresenta no anverso a
;

estátua e no reverso uma inscrição comemorativa da


descoberta da porcelana e as outras são pequenas me-
;

dalhas ovais com os bustos de D. Maria I, D. José e


D. Maria I com D. Pedro 111, sendo as figuras brancas
sobre fundo azulado ou cor de pinhão, havendo actual-
mente variedades diferentes destas láltimas.
As três primeiras são mais raras ; a primeira prin-
cipalmente.
A descrição minuciosa delas fá-ia o sr.D. José Pes-
sanha no seu já citado estudo. Para lá remeto o leitor.

Alguns anos depois outras experiências idênticas se


fizeram no Brasil, sendo seu autor o Dr. Manso Pereira,
químico distinto e professor de Humanidades na Baia.
A argila com que obteve esses resultados, muito
vulgar no Brasil e chamada pelos indígenas íabatinga,
dizia êle, ser o verdadeiro kaolino. Constando na corte
o seu descobrimento, encomendou-se-lhe certa porção
da tal argila para aqui se fazerem experiências, como
consta de uma consulta da Junta do Comércio de 5 de
Setembro de 1793(1).

(1) Este Dr. Manso Pereira, além destas descobertas, também


inventara sabão de sebo e azeite de peixe, um novo vi-
um novo
nho extraído da cana de assúcar, uma aguardente de cana feita
-=- i55 -^

Dessas experiências de Manso Pereira, são docu^


mentos quatro medalhas, com os bustos de D. João VI,
D. Pedro 111 e D. Carlota Joaquina, que o sr. D. José'
Pessanha descreve também miudamente.
Tanto estas tentativas, como as que depois fêz o
Dr. Domingos Vandelli no laboratório químico da Uni-
versidade de Coimbra, não lograram utilizar-se em tra-
balhos de maior fôlego e ficaram na indústria como
simples curiosidades.
Só mais tarde, em 1834, é que um aprendiz da fá-

brica da Vista Alegre, L. Pereira Capote, descobria


em Vale Rico, concelho da Feira, o ambicionado kao-
liuo, na mesma região onde João Drouet já o tinha en-
contrado. Depois desta data é que a Vista-Alegre co-
meçou a produzir porcelana. Até aí só fabricara faian-
ça (i).

Ainda, sobre a mesma matéria


Umserviço de chá que figurou na exposição de Ce-
râmica do Porto, em 1882, foi Julgado pelo sr. Joaquim
de Vasconcelos, crítico de arte portuense, como produto
dos ensaios acima mencionados, pois tudo nele, desde
a matéria prima às cores, denunciam a obra de um
principiante (2).

por meio de cal viva e outra por meio do alcali da bananeira e do


mangue, e outras empresas demonstrativas de muito saberde e
muita força de vontade.
(i) Sete ex mplares de medalhas ainda se mencionam no
trabalho aludido do sr. D. José Pessanha, cuja origem não está
definida ainda, podendo atribuir- se a qualquer dos três ensaia-
dores.
(2) O serviço compunha-se de seis chícaras e pires, bule, lei-

teira, açucareiro, manteigueira e tijela, tendo todas elas a mesma


— i56 —
O sr. D. José Pessanha entende que tais peças são,
sem dúvida, resultado dos ensaios de Bartolomeu da
Costa, realizados, supõe o sr. D. José Pessanha, na
Fábrica do Rato. De tais ensaios não encontrei o mais
ligeiro vestígio documental.
Segundo uma informação dada pelo grande Silva
Túlio ao Visconde Júlio de Castilho, existiu em tempo
na posse do Senado da Câmara de Lisboa, uma riquís-
sima baixela, mandada fazer na China para servimos
banquetes dados, por ocasião da inauguração da está-
tua equestre, à magistratura, ao corpo diplomático e ao
alto comércio. Essa baixela desapareceu, mas quis a
Fortuna que alguns pratos e peças truncadas, em bela
mas grossa porcelana, existam por memória, em poder
de alguns curiosos. Um prato de doce, possui-o o sr.

Visconde de Castilho; no Museu de


outros, existem
Arte Antiga por oferta de Silva Túlio; muitos em mão
de vários particulares.
Toda a baixela deveria ter tido a mesma decora-
ção : cercadura verde e filetes de oiro na borda leve-
mente ondulada em gomos, e um festão de rosas e
folhas em seis apanhados na passagem da borda para
;

o coro, uma cadeia de elos pretos e doirados ; ao cen


tro, a estátua equestre toda doirada (i).

decoração a figura da Glória, coroada, em um carro triunfal, pu-


:

xado por dois pavões verdes. Na mão esquerda sustenta um me-


dalhão oval com dois bustos-reiratos, lendo-se na moldura, que
é côr de rosa, os nomes de D. Maria I e D. Pedro III. Com a mão
direita vai guiando os pavões e nela sustenta ao mesmo tempo
um sceptro de ouro. O carro é pintado a tinta da China com to-
ques de ouro e vôa no espaço sobre nuvens azuis.
A figura veste uma túnica amarela por debaixo de um manto
côr de rosa. Não creio que esta baixela seja ensaio de Bartolo-
meu da Costa.
(i) Arguivo Histórico, tomo i, igoS, pág. 287.
-i57-
Uma peça dessa baixela, talvez, ou de outra
(quem sabe?), apresenta o característico do monarca
estar vestido como um verdadeiro mandarim, com uma
fisionomia puramente chinesa, como diz o sr. Joaquim
de Vasconcelos (i).

Ao leitor ainda vou dar uma outra novidade velha.


Em poder de um clérigo de Mafra estavam, há al-
guns anos, seis pratos de porcelana, cuja descrição,
aproximadamente, é a seguinte :

Fundo branco; no centro, a azul, a coroa real la-


deada por duas figuras, como fazendo-lhe guarda de
honra, representando dois soldados vestidos com os
fardamentos do tempo do Conde de Lipe, casaca, tri-
córnio, etc, com a interessante particularidade de os
rostos serem, como o de El-Rei D. José, na peça acima
referida, puramente chineses, tal como os vemos nos
leques e nos charões. Na cercadura, a azul, um le-

treiro, em letra de pena, escrito por quem seguramente


conhecia o nosso alfabeto, não conhecendo entretanto
a língua. O letreiro, difícil de ler, pela má colocação
dos espaços, diz o seguinte :

«Sete barro he outro ounicórnio».


Tais palavras querem, fora de dúvida, refenr-se, à
transparência e à boa qualidade do barro.
Da decoração e do letreiro se conclui, sem grande
custo, que tal barro foi certamente enviado de cá, para
a China, no fim do século xviii, a-fim-de ouvir a opi-
nião dos artífices orientais, que, por gentil admiração
ou por indicação das autoridades portuguesas ou ainda

(i) Ao falecido Major Santos Ferreira, que foi bibliotecário

do Ministério da Guerra, é que devo esta notícia.


— i58 —
por conselho de qualquer emissário especial, escreve-
ram o dístico laudatório.
l
Terá ainda isto alguma ligação com as experiên-
cias de Bartolomeu da Costa, de Drouet, de Manso
Pereira, de Vandelli. de Sobral, de Raposo ou de Gi-
rão ?

Vejamos agora, o que é importantíssimo, o destino


dos aludidos pratos.
Por morte do padre, passaram para a sua gover-
nanta e desta para as mãos de uma senhora que, por
seu turno, os vendeu ao conhecido Libório. Este, pouco
depois, alienou-os. Um curioso antiquário, de apelido
Vilar, disse, a quem gentilmente me comunicou estas
noticias, haver um amador de louças que possuía uma
peça (não prato) com o mesmo letreiro e figuras. Nos
bric-a-bracs, aparecem, de quando em quando, pratos
desta baixela.

Prometi falar na fábrica do Ratinho. Vou cumprir


a promessa.
O Ratinho é o nome de uma aristocrática manufac-
tura de faiança, aninhada que esteve num canto dos
jardins do palácio Palmela para o lado do Poente. Foi
aí que, em 1872, o conhecido pintor António Luís de Je-

sus montou um forno de primitivo sistema, com vigias,


e, paralelamente, oficinas de roda, de torno e de ma-
teriais.

A ideia da fábrica fora sugerida à falecida Duquesa


de Palmela, espírito requintado de artista, lendo em
Agosto de 1872, na poética Sintra, a vida do ceramista
francês Bernardo Palissy. Com o auxílio de outra ar-
tista, também já falecida, a senhora Condessa de Ficalho,
deu-se princípio ao trabalho, mal regressadas da vilç^
— iBg —
giatura inspiradora e eis aí a pequeníssima fábrica a
funcionar. A senliora Duquesa modelava, a senhora
Condessa de Ficalho escolhia os motivos decorativos e
cobria-os. O mestre Jesus preparava os esmaltes e o
Miguel Gomes Correia, da olaria da rua da Imprensa,
fornecia o barro. Este era todo o pessoal do Ratinho.
Da sua produção fala, com conhecimento, de causa
sr. José Queirós no seu citadíssimo e magnifico livro.
Para evitar a deficiência de um extracto, transcrevo na
íntegra esse ponto de ^4 Cerâmica Portuguesa

Ape\ar da producção do Patinho não ter sido


grande, a relação podia ser superior á que vamos dar,
pois que uma das pessoas que nos podiam elucidar mais
uma pe:{, já não existe —
a senhora condessa de Ficalho
— e a senhora duquesa de Palmella não se lembra de
todas as peças que ofereceu. Em todo o caso o tnaior
numero deve estar no pai:{. Aquellas de que ha noticia
são: um busto da senhora condessa de Ficalho; o jarro
oferecido ao conde de Brandenburgo ; u?n cão; seis
pratos, dois dos quaes são de pé (queijeiras) e perten-
cem á senhora D. Maria de Mello Breyner (Ficalho)
e quatro á casa Palmella; e um jarro que pertence ao
sr. Francisco Wan-eller.
Exceptuados dois exemplares, dos quatro perten-
centes aos senhores duques de Palmella (uma urna para
agua e um cangirão) todos que notamos são marcados
com um pequeno rato e os monogramas das funda-
doras.
De todas as peças que conhecemos, teem a prima\ia
como modelação as polychromia e esmalte :

Jarro, de elevada asa, forma de pipa, tendo no


bojo por baixo do bico, uma mascara de satyro, com
sua expressão de hilariedade, causticante, perfeita-
mente modelada e Entre a mascara e a pega,
colorida.
dispostas com arte, folhas de hera, symbolo da persis-
— i6o —
teticia, que se prendem á superfície, decoradas cofji

gregas a toda a altura do vaso. Marcado na


filetes e
parte exterior do bico.
Travessa decorativa, forma octogonal, ornamenta-
ção em relevo e colorida : um cacho de uvas, que acom-
panha a borda pela parte inferior da composição, um
sardão, uma rã e um cacho de nesperas com suas fo-
lhas. Em volta, na aba, uma cercadura delicadamente
pintada a tinta amarella, quente, sobre fundo verde,
manchado e velho, que dá a i?npressão de um i^eludo
antigo, bordado a oiro, e tudo isto sob um esmalte
lácteo e brilhante.
Estes dois exemplares, que estão ao cuidado e esti-

mação do duque no seu gabinete de trabalho, teem


sr.

a nosso ver, não ?nenos valor, para a historia da Ce-


râmica Portuguesa, do que etn Erança osproductos de
Oiron, de que apenas se conhecem duas dúbias de pe-
ças — se tanto —
embora essas faianças datem do prin-
cipio do século XVI e as do Ratinho contem somente
trinta e quatro amios{\).

(i) Cerâmica Portuguesa, pág, o/è.


CAPITULO VIII

Sumário: Achamo-nos, o leitor e eu, no Jardim das Amoreiras


— Apontam-se as quintas em que se recortava aquele terreno
e os caminhos que as serviam —
A classe dos Fabricantes de
Sedas —
E projectado um bairro para ela Escolhe-se na vi- —
zinhança da Casa da Água —
O primitivo piano do engenheiro
Carlos Mardel —
Sua vastidão —
Retraimento da iniciativa
particular —
O «Real Colégio das Manufacturas» sonhado por
Pombal —
É ordenado o começo da obra Aforamento dos —
terrenos — As barracas provisórias de 1755 — Planta-se a
Praça, de amoreiras —A
amoreira do Marquês O abarra- —
camento dos Carmelitas Calçados Transfere-se para o —
Carmo a Imagem de Nossa Senhora em 1758 —
Origem de
alguns nomes das ruas bairristas— As travessas da Légua da
Póvoa, da Lebre, das Bruxas, de Francisco Xavier, do Alto
S.
de S. Francisco, — A Fábrica dos Pentes — Diz-se o
etc.
que se fabricava
lá citam-se os seus mestres — A «tarta-
e
ruga do Alentejo» — A Fábrica de Caixas de Cartão Vernizes e
— Dois incêndios — Trespassa-se a Fábrica dos Pentes e arre-
mata o fabrico o contrato do marfim, o Erário Régio — Reín-
e
vindicações operárias — Faz-se uma dos — Cir lista artífices
tam-se os pintores que trabalharam na Fábrica das Caixas, e

enumeram-se os seus artefactos As iniciativas de La Croix
—O atrazo da indústria nacional no século xvin — A Fábrica
de Cutelaria — Mencionam-se os Mestres e alguns artífices —
Faz-se uma dos artefactos que lá se produziram
lista A —
Oficina de Ferragem de Cirurgia —
Um mestre de fazer lan-
cetas —Mencionam-se várias outras fábricas semelhantes —

A Fábrica de Relójios O génio irrascível de Berthet Lista —
dos oficiais da oficina —
O progresso no tempo de Durand —
Os relojoeiros que lhe sucederam —
Um relójio feito para o
coleccionador Marquês de Marialva — Mencionam-se alguns
relójios e alguns relojoeiros — Oficinas em Lisboa, Santarém,
Maia e Barcelos, e na índia, Brasil e Moçambique —O carri-
lhão de Alcobaça.
VOL. IV 11
— 102 —
Nunca passo por esta ridente praçazinha ajardinada,
cercada de prédios de um só andar, frequentada quási
só dos bairristas que parece olharem desconfiados a
gente que se atreve a invadir o seu domínio, que me
não imagine num logradoiro provinciano. Se há jardim
que, em Lisboa, seja privativo de um bairro, é este
e de aí o seu carácter exclusivista e o seu ar de paca-
tez ao qual a pouca altura dos prédios, amesquinhados
ainda pela vasta mole da Casa da Água, lhe ajuda a
dar o aspecto que nos fere à primeira vista.
Todo êle, porém, e as casas e ruas que o cercam
eram quintas e terras de semeadura antes de 1755 e
antes mesmo
de 1759, ano em que o sagaz Conde de
Oeiras passeou por estas paragens o seu olhar prescru-
tador e inteligente. Daí, nasceu um plano grandioso.
Executado êle, nasceu, por seu turno, o bairro, que o
leitor vai percorrer.

Eram ali a quinta e casas de Manuel da Cunha Ta-


pares (i), a quinta do Vestimenteiro e as terras dos pa-
dres da Congregação do Oratório. Ficavam estes ter-
renos entalados entre a estrada de Entremuros e a das
Águas Livres, hoje rua das Amoreiras e rua de Silva
Carvalho (2). A primeira destas vias de comunicação,
não seguia toda a diretriz que depois teve. Acabava
ali por altura do alto de S. Francisco. Depois dobrava

(1) Não sei quem fosse este sujeito. Algumas indagações que
fiz nesse sentido, resultaram infrutíferas.
(2) Hoje já tem outro nome. É Rua de Artilharia N.° i. Se
ao menos todos os novos nomes fossem postos com critério como
este, seria menor a confusão que se tem estabelecido. O regimento
que a denominou é que já não é o n.° i, é o n.° 3.
— i63 —
para o sul, vindo sair no mesmo ponto onde agora sai,

no largo do Rato. Era ela que separava a quinta do


Tavares das terras dos Congregados.
O monumental plano de reconstrução da cidade a
que já, algures, tive de aludir, abria neste local uma
praça enorme, sobre o quadrado, limitada ao poente
pelo aqueduto, como melhor se pode ver na planta que
acompanha o primeiro volume desta obra.
Para cima das quintas do Tavares e do Vestimen-
tetro, ainda apartadas pelos dois citados caminhos, até
entestar com a antiga circunvalação, ficavam duas ou-
tras quintas : a de Francisco Luís de Lagitar, para o
lado dasAguas Livres q do Giiarda-mor, para o lado
di

de Entremuros. As casas do Laguar ficavam na es-


quina para a Cruz das Almas.

A classe dos Fabricantes de Sedas fora organizada


já nos Estatutos da Real Fábrica, formando uma espe'-

cie de Confraria, ou Monte de Piedade, em que se au-


xiliavam uns aos outros, mantendo entre si obrigações,
sob a protecção eficaz da Direcção da Fábrica que lhes
fornecia a crédito, pelos preços mínimos, todos os uten-
sílios da profissão. Teares, sedas, matizes
e desenhos
tudo fornecia o Estado, por mão
da Direcção, descon-
tando depois o seu custo no preço porque lhe eram
comprados os produtos do seu trabalho, caso fossem
dignos de aquisição. No caso contrário, ficaria o artí-
fice excluído do favor, apreêndendo-se o material que
fora fornecido. Cada Mestre era obrigado a ter um
certo número de aprendizes. O tempo de aprendizagem
era de cinco anos, durante os quais se não poderiam
ausentar de casa dos Mestres, nem por estes ser despe-
— 164 —
didos sem causa justificada. Os Mestres, incorporados
na Fábrica, podiam ter, em sua casa, de um a quatro
teares, conforme o seu saber e actividade. A Direc-
ção da Fábrica estava sujeita à Junta do Comércio,
e deste modo ligada à Companhiia do Grao-Pará e
Maranlião e à de Parahiba que proporcionavam a saída
e consumo dos produtos da Fábrica, de modo que,
desde o mais modesto aprendiz às mais altas categorias
da Junta e das Companhias, tudo se achava unido, por
um interesse mútuo, às prosperidades da nova indús-
tria (i).

Destas ideias criadoras de Pombal, foi natural se-


quência a construção de um bairro para os fabricantes,
longe do bulício da cidade.
Alguns desses artífices estavam sem teares. Urgia,
pois, a construção de casas adequadas ao seu mister.
O local escolhido foina vizinhança da Casa da Agua
e Arcos das Águas Livres, como vimos, e encarregou-se
o fecundo e notável Engenheiro Carlos Mardel, de gizar
o plano. Foi este concluído e assinado em 4 de Março
de lySg e logo em 14 saiu o decreto confirmando-o e
determinando a sua execução.
Conforme a letra desse documento, todo o Bairro
seria exclusivamente para os fabricantes, tendo priori-
dade na construção das noventa moradias projectadas,
os proprietários e foreiros do solo, avaliando-se o foro
pelo que rendia antes de 1755. O aluguel de cada uma
das casas não podia exceder a quantia de 48íí)00o réis
anuais e os fabricantes incorporados na Fábrica tinham

(i) Noções Históricas e Económicas, etc, por Acúrcio das


Neves, pág. 87 a 92.
- i65 —
preferência para ele. O senhorio apenas os podia des-
pedir no caso de falta de pagamento.
Por conta da Fábrica haviam de construír-se ses-
senta moradas de casas com localização determinada
nas ruas que faziam frente ao pórtico e arcos das Aguas
Livres.
Com referência ao plano de Mardel, diz o citado
documento
<iTomando-se por ora, somente {i\ o terreno que
confina pelo sulcom a rua que corta pela porta se-
temptrional da quinta de José Ribeiro {2); pelo nas-
cente com a rua que passa pela quinta dos padres da
Congregação para S. Sebastião da Pedreira; pelo
norte com outra rua que corta pela extremidade me-
ridional da quinta do Vestimenteiro, e delia pelo meio
das terras, e quinta de Manoel da Cunha lavares;
e pelo poente pela rua que vem de S. João dos Bem
Casados para o largo do Mosteiro do Rato; se com-
prehendem neste terreno, sete ruas que cortão do nas-
cente ao poente, com seis que cortam de norte a sul e
nellas 22 quadrados gravides de fnoradas cada hum, e
i5 pequenos de 8 moradas, que fa\em ao todo 4^2 ha-
bitações de 4 teares cada huma, edificadas na forma

(i) Estas palavras parecem indicar, ainda, a intenção de um


plano mais grandioso. Infelizmente nem este se chegou a executar
como veremos.
(2) Esta quinta de José Ribeiro (de Oliveira) escrivão da Te-
nência Geral da Artilharia e Familiar do Santo Ofício (Carta de
21 Agosto de 1737 —
Processo 42-670) ficava encravada nas terras
dos Congregados do Oratório. A casa da quinta tinha uma er-
mida, de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens, onde esteve
a paróquia de S. Mamede, desde 1756 a 1783. A rua em que fala
o decreto deve ser a serventia conhecida mais tarde pelo beco de
Santo António e que ia sair a Vale do Pereiro, em frente da tra-
vessa da Natária.
— i66 —
do plano, e por necessária consequência 1888 teares
grandes ou de maiiies, etc. (i).
Era extenssíma a área ocupada pelo projectado
bairro. Nem a quarta parte do terreno marcado no
decreto se chegou a povoar de casas, muito embora o
legislador nele desse a entender, bera claramente, a in-
tenção de o aumentar ainda.
Servindo-nos dos nomes actuais, ia desde a rua das

Águas Livres meio do Parque Eduardo VII, no sen-


a
tido poente-nascente. Parece que, mais tarde, em vir-
tude da falta da iniciativa particular que pouco fêz, se
resumiu o plano, projectando-se apenas a construção de
desasseis agrupamentos ou quarteirões, conforme se vê
de um Plano Geral da Cidade de Lisboa em ij85,
gravado por Francisco D. Milant, que me foi oferecido,
em 1908, pelo meu ilustre mestre, o Visconde Júlio de
Castilho.
Outra planta, copiada da Colecção das Plantas das
Freguesias de Lisboa, feitas pelo sargento-mor José
Monteiro de Carvalho (2) marca novo traçado ao bairro,
limitando-se talvez a representar os quarteirões já edi-
ficados no seu tempo apenas ; sete.
As primeiras moradas de casas, construídas foram
as sessenta,mencionadas no decreto, as quais custaram
a quantia de 71.184ÍIÍ601 réis e cujas obras terminaram
em 1769(3).

A ideia primitiva, como vimos, era que o bairro se


destinasse para os artífices da seda. Pouco depois, po-

(i) Decreto de 14 de Março de 1759.


(2) Existe essa colecção, no Arquivo da Torre do Tombo.
(3) Noções Históricas, Económicas, etc, pág. 94.
— 167 —
rém, o próprio Marquês chamava-lhe Real Colégio de
Manufacturas e tornava-se numa verdadeira escola-
-fabril, acolhendo no seu âmbito outras indústrias que
Pombal ia introduzindo no nosso país a título de expe-
riência. Os
aprendizes da tal Colónia Fabril, que tra-
balhavam por conta da Fábrica, principiaram, então,
vivendo numa verdadeira comunidade, com a sua cozi-
nha, o seu refeitório, me'dicos e cirurgiões, enfermaria,
etc, tudo pago pela Direcção.
O seu trabalho era dirigido pelos contramestres, que
davam à Fábrica-Mãe conta restricta do procedimento
e merecimentos dos educandos.
Algumas dessas novas indústrias que, a seu tempo,
enumeraremos, progrediram e deram magníficos frutos;
outras, por imperícia dos mestres, por falta de mercado
e por outras circunstâncias acabaram com perda para
o cofre comum. Logo veremos tudo isso.

Em 22 de Maio desse mesmo ano de lySg, foi ex-


pedido pelo Ministério do Reino o seguinte aviso com
a rubrica de el-rei:
«^Por decreto de 14 de março do corrente anno^ fui
servido ordenar ao Desembargador Pedro Gonsalves
Cordeiro Pereira, do meu conselho, que serve de re-
gedor, mandasse terraplenar a praça imediata aos
Arcos das Aguas Livres, no sitio do Rato e desimpe-
dir todo o ??iais terreno em que se hade edijicar o novo
bairro dos fabricantes de sedas, na forma da planta
do Tenente- Coronel Engenheiro Carlos Mardel : E
para que esta minha Real determinação, tenha logo o
seu devido cumprimento, sou outrosim servido que a
Junta do Comércio destes Reinos e seus dominios mande
— i68 —
fa\er a referida obra pela direcção do sobredito te-
nente-coronel Engenheiro^ pagando-a do cofre geral
dos 4^/ú, por empréstimo que hade ser satisfeito pela
primeira remessa do que vier de qualquer dos Portos
do Bra\il, a entregar à mesma Junta, por conta da
Real Fazenda. A sobredita Junta do Comércio o te-
nha entendido e faça executar» (i).

A obra não se fez, pois, demorar.

As freiras trinas do Rato, aproveitaram a ocasião


e pediram licença para aforar a orla da cerca que en-
testava com a actual rua das Amoreiras ... que dei^e

separar a dita casa do referido terreno na conformi-


dade da planta do ienente-coronel, como reza o do-
cumento de que me sirvo (2). Foi-lhe concedido o afo-
ramento com a condição dos enfiteutas dos novos pra-
zos edificarem na forma da lei, debaixo da mesma uni-
forme simetria do plano.

Pelo meio do actual largo, havia então numerosas


barracas, restos dos asilos provisórios de 1756. Muita
gente fugiu para este local e proximidades, mais pou-
pado pelo cataclismo do que a parte populosa da ca-
pital. Fizeram-se inúmeras barracas e ali ficaram por
muitos anos, quási até nossos dias. Em 1756, 25. 000

( 1
Livro 6 dos Avisos do Ministério do Reino, existente no
Arquivo da Torre do Tombo, fl. 98.
(2) Idem, idem, fl. 97 v.°.
— 1^9 —
dos habitantes de Lisboa viviam então na paróquia de
Santa Isabel.
Em ai^iso de 12 de Junho de 1758, foi ordenado aos
inspectores do Bairro-Alto, que não permitissem a cons-
trução de mais barracas nos terrenos, Já então, desti-
nados para o novo bairro e fora do alinhamento das
que já existiam (i).

Uma dessas barracas abrigou, durante algum tempo,


os Carmelitas Calçados, do mosteiro do Carmo. Em
seguida ao terremoto que lhe arruinou a igreja e a
casa conventual, fugiram para umas barracas ao Campo
Grande. Quanto tempo aí se demoraram, não sei.
Passaram depois para outras barracas aqui, junto
aos arcos das Águas Livres, e ao pé da ermida de
Monserrate, então ainda por acabar. Aí estiveram até

1758(2).
Dois avisos, expedidos pelo Ministério do Reino,
respectivamente para o Marquês Estribeiro-mor e para

o Marquês de Tancos, em 26 de Junho desse ano, no-


ticiam-nos a saída, solene e procissional, dos Carmeli-
tas, das Amoreiras para uma igreja provisória no mesmo
largo do Carmo (3).
Fêz-se a trasladação da Imagem de Nossa Senhora
do Carmo e conjuntamente a saída dos religiosos, em
2 do mês seguinte, perante numerosa assistência. Fêz
a guarda de honra, nas Águas Livres, uma companhia
de cavalos, no largo do Carmo outra, estacionando uma
terceira companhia em S. Roque.
Todas as ruas do percurso Rato, rua do Colégio —
(i) Livro 5°, idem^ fl. 227 v.°

(2) J. da Cunha Brandão


As Ruínas do Carmo, por M. Se- —
parata do Boletim da Real Associação dos Arquitectos Civis e Ar-
queólogos Portugueses.
(3) Livro 5.° dos Avisos do Ministério do Reino^ fl. 243 v.°
e 244.
— 170 —
dos Nobres, Moinho de Vento, S. Roque, Portas de
Santa Catarina, travessa das casas do Duque Regedor
e Carmo —
estiveram guarnecidas de tropa.
Chegada a Imagem ao Carmo, e instalada no tem-
plo provisório, cantou-se um solene Te-Deum, para o
que tinham acompanhado o préstito os músicos da
Santa Igreja Patriarcal, trombetas e timbaleiros(i).

Em 1762, na praça, na rua de Monserrate que nela


desembocava e na travessa do lado esquerdo da cal-
çada da Fábrica da Loiça, havia oitenta barracas, al-

gumas das quais só foram demolidas em 1848 e ainda


em 1862, como consta das actas das sessões da Câmara,
desses anos. Foi uma verdadeira epidemia que custou
a debelar.

Em 177 1 foi todo o largo dos Fabricantes, coerente-


mente, plantado de Amoreiras, semeando-se 33i pés,
cuja im.portância ascendeu a 725^^)247 réis. O Marquês
de Pombal quis assistir a essa plantação, dando-se-lhe
o prazer de semear a primeira árvore. Segundo a tra-
dição era a que estava entre o chafariz e a porta da
ermida fazendo encosto a um dos assentos de pedra e
digo era porque, em sessão da Câmara de 12 de Ja-
neiro de i863, o vereador Luís de Almeida e Albuquer-
que, foi autorizado a substituir por olmeiros e oliveiras,
as amoreiras do largo. Faço justiça ao venerando pe-

(i) Livro 5° dos Avisos do Ministério do Reino^ fl. 224.


— 171 —
dagogo já falecido. Luís de Almeida e Albuquerque
ignorava certamente que mãos tinham nobilitado uma
dessas árvores. \
De contrário, nem êle nem a Câmara
teriam cometido tamanha barbaridade !

Espanta-me entretanto essa determinação camarária.


({Que mal fariam as históricas amoreiras que até aí
tinham sido cuidadosamente zeladas a ponto de se pa-
gar a um guarda que as vigiasse ?
jAlto miste'rio que me não dado desvendar e' I

Lancemos os olhos sobre as ruas do novo bairro.


Alguns nomes ferem-nos logo os ouvidos e entra
comnosco uma comichão de curiosidade, i Que diacho
quererá dizer isto de Légua da Póvoa com que se en-
feita uma das travessas, a que vai de Entremuros à
parte superior do Jardim ?

É costume dizer-se, tratando de alguma grande ex-


tensão é do tamanho da légua da Póvoa. Pelos modos
:

a tal légua é maior do que as outras, mas a travessa


é tão pequena que se não pode explicar pelo dito po-
pular.
Aí fica o enigma, para os antiquários-charadistas.
O que eu posso dizer é que em i833 já ela tinha
esse nome e que daí para traz não a vi mencionada em
parte alguma (i).
A travessa das Bruxas^ nasceu também no mesmo
ano, em que vejo igualmente mencionar-se, perto dela (2)

(i) Livros do Lançamento da Décima, no Arquivo do Tribu-


nal de Contas — freguesia de Santa Isabel — ano de i833.

(2) Foi-lhe recentemente mudado o nome para Travessadas


Aguas Livres.
— 172 —
o páteo da Cova da Onça, um amontuado de barraca-
ria velha de que hoje não há vestígios (i).

l
Não sabe o leitor que Bruxas eram essas ? Pois
eu também não posso informá-lo. Com o mesmo nome
sei de mais duas serventias, uma a S. Vicente (a actual
travessa de S. Vicente) e outra à rua Formosa, perto
da Casa dos Padres da Divina Providência.
E esta que deve ser a travessa das Bruxas, mencio-
nada num documento inserto no Dicionário dos Arqui-
tectos e Engenheiros^ de Sousa Viterbo, como assento
de um quartel em 1809(2). Nesta, às Amoreiras, não
havia ainda, nessa data, o actual aquartelamento cuja
construção se fez muito mais tarde.
A travessa da Lebre também me deu que pensar,
mas afinal matei-a ;não a lebre mas a adivinha.
Em 1810, algumas das propriedades abarracadas
que aí havia, pertenciam a um tal Domingos Luís
Lebre. Chamava-se então a travessa das Laranjei-
ras (3).
Deu, portanto, o Lebre o seu nome à travessa. A
Câmara feminizou-a depois hoje é da Lebre.
;

(i) Vide volume i, pág. 144. Em 1860 e 1861 a travessa das


Bruxas esteve atravancada de entulhos provenintes de obras fei-
tas, então, no aqueduto, pela Companhia das Águas.

(2) Esta Travessa das Bruxas ligava o Bairro-Alto com a


rua Formosa e Cardais. Os teatinos, em 1741, requereram a sua
apropriação ao alargamento da igreja dos Caetanos, Era suja,
íngreme e mal frequentada. Uma casa de uma tal Maria Joa-
quina que os padres queriam também, era destinada a Jogo da
Bola e Cartas. Tinha muro de quintal com porta para a serven-
tia. A Resolução régia foi, em parte, a favor dos Caetanos {Ele-
mentos para a História do Município de Lisboa, tomo xiv, pág. 2
a 14.
(3) Livros do Lançamento e Superintendência da Décima —
Santa Isabel, 1810.
-.73-
As travessas da Fábrica das Sedas, uma às Amo-
reiras, outra ao Alto de S. Francisco (Edital de 5 de
Agosto de 1867) e a calçada da Fábrica da Louça,
estão a dizer de onde lhes veio o nome as de S. Fran- ;

cisco Xavier e do Alto de S. Francisco, imediatamente


se denunciam. Resta-nos a travessa da Fábrica dos
Pentes, e para satisfatoriamente lhe explicarmos o
nome remontemos outra vez ao século xvni e ao Real
Colégio de Manufacturas.

Em 20 de Outubro de 1764, foram celebradas as


condições com o mestre Gabriel de la Croix, para o
estabelecimento de uma fábrica de pentes de marfim,
caixas de papelão e verni^ que ele se propunha di-
rigir.
Por essas condições, ou mais propriamente por esse
contrato, foi-lhe estabelecido o ordenado de 6oo.:íí)ooo

réis, livres de todos os encargos, e além disso a metade


dos lucros que desse a Fábrica. Gabriel de la Croix,
era francês de origem.
Vinte anos durou a sua administração e diz-nos
Acúrcio das Neves que ela foi zelosa e justa, com
grande benefício para a indústria que dirigia e ainda
para outras.
Atendendo aos seus bons serviços, concedeu-se-lhe
uma pensão de 200íí)Ooo réis, por decreto de 8 de Ou-
tubro de 1768 e, dois anos depois, por alvará de 10 de
Dezembro foi-lhe transmitida a Fábrica com uso gra-
tuito, por dez anos, obrigando-se êle a reembolsar a
Direcção da Fábrica das Sedas de todas as despe-
sas que tinha feito, e a sujeitar-se à fiscalização da
mesma. Em troca ficava com o privilégio do fabrico
— 174 —
dos artefactos da sua oficina e do comércio da goma-
-copal (i).

A-pesar-da sua boa administração, o cofre da Fá-


brica-Mãe perdeu com esta oficina, até 1772, 10.900^5)899
réis.

Não foi mais feliz a filial de Tomar, que ali funcio-


nava sob a direcção de outro francês, Jorge Re3'nier e
que fabricava vernizes e caixas de papelão. A Fábrica
de Lisboa, tivera um desastre: ardera parcialmente na
noite de 19 para 20 de Julho de 1773, mas a de To-
mar, essa ficou inteiraniente destruída por outro sinis-
tro igual em 14 do mês seguinte (2).
Os dois incêndios causaram a La Croix um grande
prejuízo. Esta circunstância acumulada com a de ter
sido iludido no balanço, feito por ocasião da tomadia
da Fábrica, balanço que apresentou um lucro fictício
dando à existência um valor que não tinha, originou
um prejuízo às oficinas que dirigia, computado nas
contas feitas em 3o de Novembro de 1774, em réis
27.010^15832, sendo 16.601^416 réis à Fábrica de Cai-
xas e Vernizes, e 10. 409^5)416 réis â dos Pentes de
Marfim, quantias estas que ficava devendo à Real Fa-
zenda pelo seu exercício até 9 de Setembro desse ano.
A Direcção deu óptima informação à súplica feita
por La Croix ao Marquês de Pombal, confirmando as

(i) Noções Históricas, Económicas e Administrativas^ pág. 214


e 2i5 ; Livro A de Decretos e Avisos — Decreto de 8 de Outubro
de 1768, pág. Livro B, idem, pág. 143 a 146, 149, 164 a
i3 e 5o;
i65, 174, 189 a 190, 192, 199, 204, 2i5 a 216 e 384; Livro C, idem,

pág. 19 v.o, V.", 81, 81 v.° e 82.


20, 47, 57, 75, 79
(2) Pombal, que estava na Nazaré, logo que teve notícia do
incêndio, expediu ordem para se adoptarem providências para o
caso. Fêz-se um plano para a Fábrica dos Vernizes se montar se-
paradamente da das caixas de cartão {Representações Livro A, —
pág. 71, 78 e 79 —
Representação de 32 de Outubro de 1773).
— ijS —
avaliações erradas do inventário citadas por ele, apenas
ressalvando do seu parecer favorável as solicitações
que o Mestre fazia respeitantes às despesas feitas para
o descobrimento da composição dos vernizes e do la-

cre. Essa informação datada de 9 de Setembro (i).


é

Em 1777 de outra informação da Junta consta um


activo de 46.o52í!í)646 réis e um passivo de 48.46 ií5:)844
réis. O
maior prejuízo provinha da oficina das caixas
de papelão que era dispendiosíssima. Tinham pouca
saída por serem «género de capricho, de muita concor-
rência não de primeira necessidade», como alegava
e

La Croix. Este solicitou então que lhe aceitassem no-


vas condições, com prorrogação do privilégio por mais
dez anos, entrando neles os três que acabavam em
1780. A venda privativa de todo o marfim, a entrega
de seis partidas dele, de dois em dois meses, e o pa-
gamento do seu débito em prestações anuais, eram as
bases das novas condições que mencionavam também a
liberdade de êle graduar a produção das caixas e ver-
nizes, escolher o gosto da obra, e regular, sem imposi-
siçÕes, a admissão e o número dos aprendizes e ofi-
ciais.

A Junta informou bem. La Croix era-lhe simpá-


tico. O atestado que lhe passou a 12 de Julho de 1780,
presta homenagem à sua inteligência, zelo, bons servi-
ços e honrado procedimento (2).
Por este tempo Gabriel La Croix, retirou-se por
doença, para a sua pátria, trespassando (como hoje se
diz) a Fábrica dos Pentes a dois associados, António

(i) Livro gij B de Decretos e Avisos^ pág. 143 a 146 e 2i5


a 216.
(2) Livro g25 de Registo de Consultas — Informação de 12 de
Dezembro de 1777, pág. 3g a 40 v." e Livro B de Decretos e Avisos
— Atestado de 12 de Julho de 1780, pág. 334.
— 176 —
Martins Bastos e Marcos José de Matos, sob as mes-
mas condições e com autorização da Junta (i).

Estes novos concessionários começaram a adminis-


trar a oficina, mas não foram felizes, a pesar-de serem
pessoas probas e trabalhadoras na opinião da Junta.
Os oficiais da Fábrica não os deixaram descansar
com constantes reclamações. Queixaram-se deles, di-
zendo que a sua administração era o puro arbítrio,
tendo os salários diminuídos sem ser por falta de tra-
balho. Os 45 oficiais e i5 aprendizes que lá trabalha-
vam em perfeita escravidão (dizem eles) representavam
200 pessoas, que viviam na miséria. Os queixosos
apresentam contas e cálculos tendentes a provar o lu-
cro da oficina, dados esses que a Junta, informando,
não julgava exactos. As 1.804 arrobas de marfim que
se laboravam anualmente deviam de dar um lucro de
mais de seis contos e quinhentos, quantia que ela supôs
excessiva, não devendo estar certo o cálculo da labora-
ção visto que diminuirá com o aumento dos direitos na
entrada do marfim em Espanha. Foi isto em 1787,
opinando a Junta que, quando se remodelasse a Fá-
brica, se melhorassem as condições dos operários mas ;

as reclamações já vinham de 1781 (2).


Os artífices não desistiram. O benefício conseguido,
por decreto de 24 de Abril de 1784, da isenção de di-
reitos de saída para o marfim trabalhado se tornar ex-
tensivo ao «retrasse» (desperdícios) e para que as cha-

(1) Livro gi8-C de Decrelos e Avisos, pág. 20 e Sy. A auto-


rização para o trespasse, deu-se por despacho da Junta de 19 de
Março de 1780.
(2) Livro g26 de Registo de Consultas, pág. 5 a 5 v.° Con- —
sulta de 24 de Janeiro de 1781 e Livro g2~ de Registo de Con-
sultas, pág. 46 a 5o — Consulta de 22 de Novembro de 1787. Pá-
gina 55 a 56 v.">, idem — Consulta de 23 de Fevereiro de 1788,
— Í77 —
pas curtas e pudessem entrar nas Conquistas
defeituosas
pagando como marfim em bruto, melhorara as condi-
ções da oficina, mas essa luta constante entre os ope-
rários e administradores, estragava-lhe os efeitos (i).
Em Maio de 1787 os oficiais Joaquim António de
Seixas e Francisco José dos Santos, fizeram nova re-
clamação para o que se informação da Junta,
solicitou a
em avisos de 21 desse mês, 10 de Outubro e 1 1 de
Dezembro.
Parece, pela instância, que havia resistência no dar
do parecer, verdade seja que o último aviso era um
tanto descabido, visto que o decreto de 16 de Novem-
bro desse ano, declarava que o contrato da venda do
marfim, com a Fábrica dos Pentes, fora arrematado pelo
Erário Régio, tirando-se ao Bastos e ao Matos (2).
No ano seguinte, ainda aparece, extemporanea-
mente, outra instancia de consulta sobre requerimento
dos operários da oficina, ao que a Junta respondeu que
em face do decreto do ano anterior, tal assunto estava
fora da sua alçada (3). O que os penteeiros queriam
era constituír-se em corporação como os Mestres de
largo de lavor da Real Fábrica das Sedas. Era a rein-
vindicação operária do tempo.
As dívidas dos administradores ao tempo da arre-
matação pelo Erário, eram de 36.4475^911 (4).

(i) Livro g26 de Registo de Consultas, pág. 83 a 83 v.°— Con-


sulta de 7 de Janeiro de 17S4 e LivroC de Decretos e Avisos^ pág. 20»
(2) Livro C de Decretos e Avisos, pág. 75, 79 a 81 v." 86, e
Livro gig-i.° de Registo de Decretos.^ pág. 9 —
Aviso de 7 de Ja-
neiro de 1790.
(3) Livro 927 de Representações e Consultas — Consulta de
23 de Janeiro de 1788, pág. 55 a 56 v.»

(4) Livro grg-i." de Registo de Decretos, pág. 9.


VoL. IV 12
— i'^È

A Fábrica dos Pentes estava instalada nas casas,


então n.°^ 49 a 5o e depois nas n.°* 49 a 52 do Bairro
dos Fabricantes, naquela rua que, seguindo a direcção
Norte-Sul, vai desembocar ao meio da praça, e hoje no
nome a rememora.
Os Róis dos Confessados da Freguesia de Santa
Isabel que de vez em quando chamam Gabriel da Cru^
a La Croix, mencionam, em 1765, na oficina, os ofi-

ciais João Lalau, João Pomier, Filipe Lamite e Antó-


nio Rustier, e os aprendizes Manuel Roiz Pereira, José
da Silva, F^austino José, Bernardo António, José Rufo
e Domingos Roiz Pereira (que ainda lá estavam em

1767), Manuel Reis, e António dei Rio.


A mulher de La Croix, Antónia Daly,
figura no Rol
de 1767, com o oficial Rustier e os novos aprendizes
Manuel António, Joaquim José, Fulgêncio José e Mi-
guel Francisco que também se mencionam no ano se-
guintecom mais estes : Manuel de Jesus, Francisco
Tomás, Teodósio José, António José, Francisco José,
Joaquim Henriques, António da Costa, João Guilherme,
Benedito Sennin, José Joaquim, João Francisco e Fran-
cisco Ricardo.
Em 68, citam-se La Croix e 87 aprendizes inomi-
nados, e, em 70, o mesmo com 32. Em 71, os Róis
citam La Croix, sua mulher, Gabriel, filho menor, 3
criados, os oficiais José Rufo Manuel Roiz Pereira e
e
25 aprendizes; e em 72, 6 aprendizes e 46 operários
entre os quais dois estranjeiros, Sebastião Varonis e
Pedro Varonis.
— 179

Na oficina de La Croix, fabricavam-se os seguintes


artefactos
Pentes de marfim, de todas as sortes, e ainda de
tartaruga (i)
Bolas do dito para taco e bilhar;
Facas de cortar papel e tirar pós;
Colheres e garfos de marfim;
Chapas de marfim aparelhadas para pentes;
«Retrasse» e desperdícios de marfim;
Caixas de cartão de todas as qualidades;
Garrafas de vernizes de todas as sortes (2).
O marfim para os pentes vinha do Brasil e de An-
gola. Nos Livros da Junta da Administração das Fá-
bricas, existentes na Torre do Tombo, registam-se nu-
merosas ordens e avisos referentes a estas remessas.
Desde 27 de Novembro de 1771 ao fim de 1772 vie-
ram para a Fábrica 6.o5o pontas de marfim. Isto dá
a medida da actividade fabril da oficina do Bairro das
Amoreiras (3).
A produção da Fábrica devia de ter sido enorme.
Ale'm dos artefactos citados também nela se manu^
facturavam cabos de sinetes. Possuo um de evidente
fabrico nacional e que sem grande erro se poderá atri-
buir a esta oficina. Os pentes que anteriormente se

(i) Os juízes do ofício de penteeiros queixaram-se, em Abril

de 1777, à Junta do Comércio que La Croix fabricava pentes de


tartaruga que eram privilégio deles. Foram atendidos {Parecer
de 10 de Abril de 1777) ~ Livro gij-B de Decretos e Avisos, pág.
2i5 a 216.
(2) Livro A de Decretos e Avisos, pág. 100.
(3) Idem, pág. 114, 114 v.", ii5, n5 v.» 128 v.", etc. —
Avisos
de 20 de Junho, 2 de Dezembro e 12, i3 e 19 de Dezembro de 1771.
— iSo —
vendiam no pais, vinham de Itália, de Espanha e de
França, excepto os de corno que eram cá produzidos
rudemente. No alvará de 24 de Março de 1764, sobre
fardamentos, marcava-se entre outros acessórios para
os soldados, «um pente da matéria vulgarmente cha-
mada tartaruga do Alentejo)-) com ^s >< Vs ^^ palmo;
O eufemismo e' gracioso.
Em 1834, tinha uma fábrica de pentes, na rua Nova
do Almada, n.° 61, um tal João José' de Sousa que
anunciava na Gaveta n.° «um novo
18 daquele ano,
gosto de Pentes Constitucionais». Talvez fosse ante-
passado do famoso penteeiro do Pote das Almas, imor-
talizado por Ramalho Ortigão, nas Farpas.
Do fabrico antigo de pentes diz a Estatística de
i552, publicada com o título deTratado da Magestade,
Grandeia e Abastança, que havia na capital, então, seis
tendas onde se faziam pentes, ocupando doze pessoas.
Em Cristóvão Roiz de Oliveira lê-se: Carpinteiros que
fa\em pentes, oito.

A indijstria do Lacre,
tambe'm cá introduzida por
foi

La Croix. Em que
1781 erigia-se perto de Lisboa, ao
parece, outra oficina para este fabrico, tendo sido o
privilegiado o Capitão José Gomes da Cruz, que o re-
querera à Junta em Fevereiro desse ano(i).
Nos primeiros anos do século xix, Matias da Cunha
Ferreira tinha, no Rato, outra fábrica cujos produtos
se vendiam na loja do Batalha, ao Chiado, a 1^600 e
a 1ÍÍ&200 réis o arrátel (2).

(i) Livro 925-2." de Representações e Consultas Consulta ~


de 23 de Fevereiro de 1781, pág. 16 e Registo de Manifestos n.° g3g
— Real Resolução de 6 de Março de 1781.
(2) Volume III desta obra, pág. 389.
— i8i —
Em 1814, havia outra fábrica na rua dos Remédios,
ao Chafariz de Dentro (i).
Deve-se igualmente a La Croix a introdução do fa-

brico das bijuterias e a utilização dos «tornos ahos»


manuais. Até aí só se utilizavão os «tornos de pé» (2).
Para o fabrico das bijuterias, proposto por ele à
Direcção das Fábricas, vieram de fora um mestre la-

vrante e um ourives bijuteiro que trabalharam na fá-


brica das Caixas.
Conforme a sua proposta, esses mestres ensinaram
em seis anos, seis aprendizes, formando um novo esta-
belecimento de caixas do oiro em várias cores e de
prata para tabaco e relójios, cadeias para relójios, de-
dais para senhoras e outras galantarias pertencentes ao
ofício, que cá se não faziam. La Croix orçava a des-
pesa a fazer em 10.000 cruzados. Da produção desta
oficinanão consta nada nos muitos documentos que
consultei, o que me leva a crer que apenas foi esboçada
ou que não teve grande progresso, talvez pela excessiva
despesa que acarretava(3).
Como se vê por este relato, foi La Croix um espí-
rito cheio de iniciativa, um artífice trabalhador e infa-
tigável a quem os nossos inexperientes operários muito,
deveram. Pena é que não chegassem até nós outros
dados para a sua biografia (4).

(1) Anúncio na Gaveta de 25 de Agosto de 1814.


(2) Noções Históricas, Económicas e Administrativas, pág. 2 1
7.

(3) Livro A
de Representações e Consultas Representação —
da La Croix à Direcção de 10 de Setembro de 1773, pág. 80 a 8r.
(4) Sousa Viterbo, menciona, num artigo publicado no Diá-
rio de Noticias, que num dos Avisos do Ministério do Reino (co-
lecção da Torre do Tombo) aparece uma queixa feita por La
Croix contra um tal Francisco Patrício,
l82

La Croix que tomara, como vimos, a Fábrica de


Caixas de Carlão e Vernizes nas condições que cons-
tam da consulta de 12 de Dezembro de 1777, passou-a
em 1784 a José Francisco dei Cuôco, com autorização
dada pela Real Resolução de 28 de Abril desse ano,
sobre informação obtida da Junta em 22 do mesmo
mês(i).
Del Cuôco, que já trabalhava na oficina, era napo-
litano e estivera em Madrid trabalhando para o rei

Carlos III, como pintor de esmalte (2).

A Fábrica que estivera em decadência tinha feito

progressos. Só em 1783 produzira 604 caixas finas,


27.340 entrefinas e 839 bandejas pintadas e enverni-
zadas (3). Para as caixas e bandejas empregava-se a
«goma jatubá», ou goma-copal, que dei Cuôco conse-
guira dissolver e que a Junta da Administração das
Fábricas do Reino encomendava à Companhia do Grão
Pará e Maranhão (4).
Aparecem frequentemente, pelos bric-a-bracs e entre
as colecções particulares, artefactos desta oficina. As
Caixas eram em ou elípticas,
geral, redondas, ovaladas
pintadas frequentemente de azul sobre que apareciam

( 1
Livro Q28'2.° de Representações e Consultas, pág. 5, 5 v.°,

83, 91 v.° e 92 e Livro C de Decretos e Avisos, pág. 19 v." O con-


tratodo trespasse fêz-se no tabelião Escopezzi (escritura de i3
de Outubro de 1/84).
(2) Memórias de Cirilo Volkmar Machado. Artigo consagrado
ao pintor Joaquim Marques, falecido em Lisboa em 21 de Maio de
1822. Está sepultado em S. José.

(3) Livro g'2.6-2.° de Representações e Consultas, pág. 91 v.°

e 92.

(4) Livro gi6-A de Decretos e Avisos, pág. 70 v,°


— i83 —
paisagens e figuras. Bandejas axaroadas e pintadas,
encontram-se algumas lindas. Possuo uma que atri-
buo, com segurança, à oficina de dei Cuôco, oval, que
apresenta no fundo uma composição «O Triunfo de —
Aujitrite» — pintada por um verdadeiro artista. Dese-
nho seguro e coloração admirável. É um quadro. Ou-
tras decoram-se com paisagens e flores. Tenho visto
muitas que devem ser do espólio da antiga fábrica de
La Croix.
Trabalharam lá excelentes artistas. Um deles, se-
gundo o testemunho de Cirilo Volkmar Machado, foi o
nosso Joaquim Marques, amigo de Pillement, pintor
de seges e de bandejas, especialista, segundo este seu
biógrafo, em paisagens «de uma botânica imaginária» e

autor de alguns quadros que hoje têm cotação no mer-


cado (i). Suponho que será da mão dele a bandeja a
que fiz referência.
Volkmar Machado cita outros artistas que, como Joa-
quim Marques, foram aprendizes nas Amoreiras. Este
esteve lá a trabalhar quinze anos, sendo cinco como
aprendiz. Miguel Francisco dei Cuôco, filho do Mestre
foi um deles. Os outros foram um tal Florindo, João
Lopes, Sebastião Clemente Schiappa Pietra, Manuel
dos Santos Freitas, José Pereira e Luís António.
Manuel dos Santos Freitas era bom artista mas teve
um grave defeito : ser amigo dos franceses. Esteve
preso por isso, e acabou por ser degredado para Africa,
por fazer saúdes a Napoleão quando estava preso no
Limoeiro.
Luís António, era da família dos Chinas. Era neto

(i) No leilão Ameal, de 1924, em Coimbra venderam-se dois

quadros de scenas campesinas, deste autor, medindo um 0,37X0,60


e outro 0,63 X
0,87. Ambos estavam assinados, e este datado de
1794. Alcançaram elevados preços.
-i84-
do pintor de esmalte Alexandre Geraldes que o De-
zembargador Metelo de Sousa e Meneses trouxe con-
sigo quando veio da embaixada da China. Di-lo Vol-
kmar.
Na oficina de dei Cuôco, segundo o mesmo infor-
mador, esteve como mestre de desenho um tal Mr. Ge-
rarde, tendo também ali trabalhado um pintor, de nome
Carobene que era bom mas
que lá se demorou pouco(i).
As bandejas da Fábrica das Amoreiras eram de
ferro, cobre e madeira axaroada. Também lá se axa-
roavam móveis diversos (2).
Aparecem também, às vezes, nas lojas de antigui-
dades, caixas de sola, pintadas. São produtos de uma
fábrica que se erigtu em Lisboa em 1782(3).
Del Cuôco, em 1785, por alvará de 21 de Setem-
bro, teve prorrogação de privilégios por mais dez anos,
sobre consulta da Junta de 26 de Agosto que lhe foi

inteiramente favorável (4). Ignoro quando a oficina


acabou.

Foram numerosas as fábricas que no tempo de Pom-


bal e por iniciativa conjunta, dele, da Junta do Comér-
cio e da Direcção da Real Fábrica das Sedas, se cria-
ram e se anexaram a esta última instituição fabril, que
era, por assim dizer, a Fábrica-Mãe, centro dessa irra-

(1) Citadas Memórias de Cirilo Volkmar Machado.


(2) Livro gSi de Registo de Atestações — Alvará de 27 de Ju-
lho de 1778, pá. i3o.
(3) Idem — Alvará de 19 de Abril de 1782 criando a fábrica,
pág. 162.
(4) Livro (j3g de Registo de Manifestos, pág. 12; Livro gzj-S."
de Registo de Consultas, pág. 9 e Livro C de Decretos e Avisos,
;

pág. 47.
— i85 —
diação industrial. Algumas dessas novas fábricas ins-
talaram-se no bairro dos Fabricantes, outras, fora dele
e outras ainda fora de Lisboa. Estudá-las hemos se-
gundo esta ordem.
RatoHy seguro crítico da sua época, espírito lúcido
e recto cujas Recordações constituem um dos manuais
do investigador da época Pombalina, pÕe-nos ao facto,
em poucas palavras, do nosso atrazo industrial.
Os chapéus bragueses, os panos de Guimarães, as
ferragens grosseiras do Minho e as saragoças, consti-
tuíam a nossa produção. Tudo o mais vinha de fora (i).
Com a criação da Junta do Comércio e a fundação
do bairro dos Fabricantes deu-se o primeiro impulso a
esse ramo de actividade em que o próprio Ratton tam-
bém, e corajosamente, cooperou.

A primeira fábrica anexada foi a de Cutelaria que


principiou em
1764 por contrato celebrado com o mes-
tre francês Jacques Duioit e com sua mulher Isabel
Francisca Dutoit, em i de Junho desse ano. A êle
competia a direcção da oficina; a ela a venda dos pro-
dutos manufacturados, por conta da Direcção da Fá-
brica das Sedas, obrigando Dutoit a ensinar o ofício
aos aprendizes (2). O francês, porém, nunca satisfez
a esta condição. Para temperar o aço fechava-se em
um compartimento às escondidas e nada ensinava,
ameaçando retirar-se para a sua terra sempre que a
Direcção lhe falava no cumprimento das suas obriga-

(i) Recordações, § 35.

(2) A propriedade onde se instíilaram era a que então tinha o


n." 48 na Praça dos Fabricantes,
— i86 —
ções. Resolveu-se, pois, representar ao Marquês de
Pombal comunicando-lhe do Duloit, e assim
a teimosia
se fêz em lo de Maio de 1769, sendo imediatamente o
assunto resolvido pela prisão do fabricante, à ordem
do Conservador da Fábrica, Bento de Barros Lima.
No Tronco, amansaram-se-lhe as iras. Prometeu
ensinar os aprendizes e lá saiu sob fiança, a assumir
novamente a direcção da oficina. Dois anos depois
morreu e a sua viiáva foi para França, depois da Direc-
ção lhe conceder uma ajuda de custo para a viagem,
em atenção aos progressos da Fábrica (i).

Passou então a dirigir a Cutelaria António João


Baptista Charlier por novo contrato feito em i de Junho
de 1771, sendo-lhe mais tarde transmitida a propriedade
dela, com uso gratuito do edifício, em 17 de Outubro
de 1777. Charlier servia há dez anos, sendo cinco como
Mestre desde a morte de Dutoit. Os móveis, utensílios,
materiais e manufacturas, [obrigava-se Charlier a pa-
gá-los, em prestações, no prazo de dez anos, ficando a
dirigir, independentemente, a oficina que poderia mu-
dar para qualquer outro sítio, fazer obras, gozar as

casais gratuitas por um ano, admitir aprendizes, etc. O


inventário e a avaliação por peritos da existência fo-

ram concluídos em 4 de Outubro de 1777(2).


O facto deste estabelecimento ter dado de perda
cerca de catorze contos de réis (i3.7i8íi!í»i68 re'is) não
quere dizer que tal empresa fosse prejudicial; pelo
contrário. Deu oficiais habilíssimos que se espalharam
no reino e do que resultou o aperfeiçoamento da pró-

(i) Livro A de Registo dé Estatutos, pág. 67 a 68 v.° e 18 a 1

118 v.° — Decreto de 2 de Junho de 1769, ordem de soltura de 5


de Maio de 1769, aviso de 23 de Maio de 1769 e consulta de 17 de
Maio de 1771.
(2) Livro B de Decretos e Avisos, pág. 22S a 242.
— 187 —
pria cutelaria minhota. O Estado perdeu nessa oca
sião, mas com os lucros par-
veio a ganhar mais tarde
com o engrandecimento da indústria, o que
ticulares e
semelhantemente sucedeu com outras fábricas.
Foi contramestre da Fábrica, nomeado por ordem
da Direcção de 7 de Julho de 1769, Joaquim Nunes
Carnide, sendo Dutoit obrigado, à força, a ensínar-lhe
a têmpera do aço. Em 1781 o Mestre da oficina era
João Peixoto, aprovado por caria da Direcção de 3i de
Julho desse ano(i).
Do inventário feito por ocasião da entrega da Fá-
brica a Charlier, em 4 de Outubro de 1777, ficamos
sabendo que nesta oficina pombalina se fabricavam os
seguintes artefactos
Facas
Navalhas
Canivetes ;

Tesouras ;

Raspadeiras ;

Garfos
Instrumentos cirúrgicos.
As facas facturavam-se com os respectivos cabos
que eram de pau, chamado Sebastião da Arruda, de
lixa verde, de madre pérola, de ébano, de pau santo,
de prata, de prata com fios de madre pérola, de oiro
com As facas de mesa, algumas
entrecanas e botão.
tinham argola ou lavrada, de prata ou de latão.
lisa

Aparecem facas com cabo esmaltado, outras guar-


necidas de latão com os bicos escondidos, e ainda facas
do «toiletíe», facas «curvas», facas «de ofício», facas
«de cozinha» e facas «de cabeleireiro».
As navalhas eram «de barba», «de algibeira», «de
mola», «de enxertar», e «com sacarrolhas» o que, como

(i) Livro A de Registo de Estatutos, pág. i3i y.o


— i88 —
se vê, não é novidade moderna. Citam-se algumas com
fio de prata e uma «com fôIha de oiro e folha de aço, e
cabo de madrepérola», que devia ser objecto luxuoso
pois tem a avaliação de i6ííooo réis. Os cabos eram
de chifre, de tartaruga, de barba de baleia, de pau
«Sebastião d'Arruda)), de pau santo e de prata.
Canivetes, fabricavam-se «à francesa» e «à inglesa»,
com cabos de pau, de tartaruga, de marfim e de ágata.
As «tesouras» eram também «à francesa» e «à in-

glesa» ordinárias, para cabelo, lavradas, grandes, de


costura, de unhas, para cortar papel, para cortar seda
e Não faltava onde escolher.
para fábricas de panos.
De «raspadeiras» não se mencionam variedades.
Os «garfos» eram de aço e de prata, uns «à inglesa»
com cabo de tartaruga, outros com cabo de ébano, de
marfim, de tartaruga, e de prata com a argola do es-
tilo.

O fabrico dos «instrumentos cirúrgicos» era já con-


siderável, então. A oficina de Dutoit e de Gharlier
(creio ser isto uma absoluta novidade para os leitores)
produzia : Arvores de Trépano com quatorze peças,
Fórceps, Facas para a extracção da pedra (operação
da talha), «Litotons» ou «litotoens» com cabo de tar-
taruga, designação que deveria corresponder aos Lito-
tritores de agora, Tesouras, Saca-balas, Pinças para
polipios (sicj, «Fresquinos» (que não acerto com o que
Botões de crista (?), Pinças para o cabelo, «Spe-
fosse).
culum Oris» (será «Speculum Auris», para exame dos
ouvidos?). Ferros vários para partos, «Pé de Veado»
para os dentes (ferro de extracções ; taltez o pied de
Biche, francês), Levantadores, Facas semi-curvas, Es-
pátulas, Ferros de cauterizar. Tenazes, Serrotes (para
serragem de ossos), «Gorgeretes» (?), «Kataters» (al-
gálias de prata), Alçapremas (garrochins ?), Agulhas
de laquear, entre-costais e para o nariz, Postumeiros
- i89 -
(para abrir póstemas ?~), Tenta-canulas, Folhas de vistu-
rins (sicj lisas ou com botão e cabo de tartaruga, Cabos
e canudos de Trocates, com ou sem colheres, Goivas,
e Lancetas(i).
O inventário acusa uma grande quantidade de lan-
ceias (i.ooo). Este número só é excedido pelo das
navalhas de barba, que eram i.3oo.
Alguns dos instrumentos cirúrgicos, cuja relação é
interessante, até scientificamente, vendia-os a Fábrica
em estojos de lixa-verde, como por exemplo as lancetas
e as agulhas, e ainda as árvores de Trépano.
Acondicionam-se igualmente em estojos de lixa, os
tallieres, navalhas, tesouras, facas, etc. Alguns desses
estojos tinham charneiras e guarnições de prata. To-
dos nós conhecemos esse tipo de estojos forrados de
veludo agaloado de oiro, e ainda por aí aparecem com
frequência nas lojas de antiguidades. Para outros arte-
factos, como facas, navalhas, tesouras, usavam-se, tam-
bém, bainhas de lixa. Algumas destas aparecem no
inventário, mencionadas com charneiras e botões de
prata e oiro.
Outro artefacto fabricado na oficina das Amoreiras
eram «cabos de chaves inglesas», que, segundo creio,
eram ferros de extrair dentes.
Tal é o material que nos fornece o Inventário de 4
de Outubro de 1777(2).

(1) As observações feitas à lista dos instrumentos cirúrgicos,


derivam de esclarecimentos que me foram dados pelo meu ilustre
amigo e confrade Dr. Xavier da Costa.
(2) Livro gij-B de Decretos e Avisos^ pág. 228, 23o a 241, e
283 a 284.
igo

LijTe desVentes faites par Mv. e Madame Dittoit


No
des ourrages de coutelerie (n." 283-A da Colecção da
Junta da Adminislração das Fábricas do Reino) lê-se iin :

instrument en acier à deiix boutspor netoyer les dentes,


l
Seria esta peça a que o Inventário chama pc de
peado ? Se é assim ficou mal incluída na lista dos ins-
trumentos cirúrgicos.
No século XVI, cá em Portugal e Castela, limpa-
vam-se os dentes com penas de galinhas, como se vê
no noticioso Jorge Ferreira de Vasconcelos (Comédia
Ulissipo).
Fica assim prestada homenagem a esses antepas-
sados da nossa comezinha escova de dentes.
No mesmo livro escriturado em francês por Ma-
dame em
de Julho de 1777, por
Dutoit que o fecha i

morte de seu marido, para entrega da oficina a Char-


lier, aparecem ainda na descriminação das vendas iin —
pair de ci^eanx à la Potíipadour uny avec son agrafe
et son etuit de verí poly, iin Pelican en bois et en fer^

iin instrument à la Garanjot, e une trousse à la Garan-


jot composta de tesouras de incisão, pinças, agulhas,
estiletes, uma espátula, sonda canelada, sonda para
fístulas e sonda «a la poitrine». Suponho que Garan-
jot seja o nome de um cirurgião francês, que denomi-
nasse tais instrumentos no seu conjunto e isoladamente.
A trousse custava, por sinal, 19^^200 réis.
Os materiais que se usavam na Fábrica, eram o
ferro que vinha de Biscaia, o aço sueco, limas ingle-
sas, carvão de pedra, azeite, mós de pedra, tartaruga
etc. (i).

(i) Livro g36 da Colecção da Junta.


- igi -

As lanceias nunca se produzirana capazes no pri-


meiro período da oficina e vendiam-se caríssimas, a
ponto de os cirurgiões reclamarem ao Mestre Ghar-
lier, em 1772, e de este expor o caso superiormente,

com o parecer de que se lhe deviam diminuir os pre-


ços de 5o %, tanto mais que era o único produto que
não sofrera ainda qualquer abatimento (i). Em vista
da sua inferior qualidade, fizeram-se em 1778 novas
condições com um Mestre cutileiro, perito no fabrico,
chamado Raimundo António dos Santos.
Este sujeito era natural de Coimbra e estivera em
França aperfeiçoando-se em várias fábricas. Pelas con-
dições estabelecidas, obrigava-se a ensinar dois apren-
dizes e amandar vir de fora os oficiais que precisasse,
assim como as matérias primas, podendo instalar a
fábrica em Lisboa onde entendesse. Cedeu-se-lhe, por
empréstimo, 240^75000 réis e autorizou-se Charlier a ce-
der-lhe, igualmente, da sua oficina o que necessitasse (2).
Já em 1773 se mandara vir de Itália, a requisição
do Mestre da Fábrica de Ferragens de Cirurgia, por
ordem de el-rei e de Pombal, aço Efans, pau santo,

tartaruga e marfim (3).


Tenho notícia de mais as seguintes oficinas de cuti-
laria : —
a de Manuel Fernandes, erecta por alvará de
16 de Dezembro de 1778; outra de Charlier, que dei-
xara a Fábrica das Amoreiras, por alvará de 1 1 de
Fevereiro de 1779; a de António José Ferreira, por

( Livro g36 da Colecção da Junta.


1

(2) Livro giy-B de Decretos e Avisos^ pág. 283 a 284 — Infor^


mação da Junta de 12 de Agosto de 1778.
(3) Livro g3g de Representações e Consultas^ pág. i.
— i92 —
alvará de i3 de Maio de 1782; a de Estácio Ribeiro
por alvará de 27 de Novembro do mesmo ano ; e a de
António Ribeiro, por alvará de 29 de Agôslo de 1786 (i).
Os Róis dos Confessados da Freguesia de Santa
Isabel^ citam alguns nomes dos artistas que trabalha-
ram na fábrica pombalina de Cutelaria, que se insta-
lara nas casas n.°^ 47 a 48 do Bairro dos Fabricantes.
O nome do primeiro mestre aparece sucessivamente
alterado. Ora Dutuoy ora Dutuit, ora Dutuá, ora
e'

Dutuil.
Em 1765 como aprendizes mencionam-se Estácio
Ribeiro que, como vimos, saiu para montar uma fá-
brica, António José de Oliveira, Joaquim José, Domin-
gos da Costa, António José' de Albuquerque, Joaquim
José Ferreira, Diogo Pinheiro e Raimundo António dos
Santos que veio a ser o mestre da Ferragem de Cirur-
gia. Em 1766 aparece mencionado o mestre e sua mu-
lher Isabel PVancisca, os aprendizes já citados e mais
José da Silva. Em 1767, os mesmos e mais os oficiais
António João Baptista Charlier, Honoré Lambert e
Hubert Joseph, além de José Lourenço, João Peixoto
(que foi mestre em 1781), Francisco Caetano, António
Roiz Iria e Tomé do Nascimento. Em 1770 além de
Dutoit, da mulher e de Charlier, só se mencionam i5
aprendizes. Em 1771, já falecido Dutoit, cita-se a viúva,
o Charlier, Estácio Ribeiro, Domingos da Costa, e 5
operários e 8 aprendizes sem designação especial ; e,
em 72, só 9 aprendizes, o Estácio e o Charlier (2).

(1) Livro (j5i de Atestações, de 10 de Novembro de lyjS ao


fim de 1786.
(2) Róis dos Confessados da Freguesia de Santa Isabel, anos
citados no texto.
— 193 —

Outra Fábrica, a de Relójios, estabeleceu-se, tam-


bém, no, então, prédio n.° 67 a 68 da Praça, em 1765.
O seu primeiro Mestre foi Cláudio Berthet, sujeito que
deu que fazer, pelo seu feitio estomagado, a toda a Di-
recção em peso. Viera de Espanha por motivos idên-
ticos aos que o levaram de cá —
as contínuas e irri-
tantes desordens que promovia. Como, porém, vinha
com fama de bom relojoeiro receberam-no de braços
abertos e firmaram com êle o Contrato de i3 de Março
de 1765, para dirigir a oficina.
Não saiu o negócio tão bom como parecia, porque Ber-
thet era só especialista tm pêndulas, isto é, em relójios
de parede ou de mesa. Os de algibeira, que eram pro-
duto de maior consumo e os que mais urgiam no nosso
mercado, não os fabricava, e os aprendizes, embora
fossem bastantes, não lucraram muito com as suas li-
ções.
Quis o acaso que Berthet adoecesse e se tornasse
necessária a admissão de um contramestre. O desgra-
çado Jacinto Manuel de Sousa que a Direcção nomeou
para esse cargo, não tardou muito que não apanhasse
uma bofetada do irrascível artífice, acompanhada de
tais epítetos que a sua situação ali dentro se tornou

insustentável. Berthet foi preso e esteve no Limoeiro


até 10 de Abril. A desordem fora em Fevereiro de
1770. Com estes sucessos ficou a Fábrica paralizada
perto de dois meses (1).

(i) Livro A de Estatutos e Decretos^ pág. 80 v.°, 81 e 8.

VoL. IV i3
- 194

Em Maio de 1770, trespassou-se a oficina a um pa-


trício de Cláudio Berihet, ciiamado António Durand
que se obrigou a pagar, em três prestações, no prazo
de oito anos, o valor de todo o conteúdo do estabele-
cimento fabril e a ensinar os aprendizes, sustentando-
-Ihe a Direcção os primeiros vinte e cinco por tempo
de quatro anos.
A-pesar-de tudo isto e do uso gratuito da Fábrica,
pelos mesmos oito anos, poucos resultados deu, sendo
o prejuízo de 25.3o6íf)424 re'is(i).

António Durand, em 1776, requereu a Pombal a


modificação das condições do seu contrato. A sua prin-
cipal alegação era que, ensinando Berthet aos apren-
dizes durante os três anos da sua direcção, apenas o
fabrico de relójios de parede e de mesa, a Junta tinha-
-Ihes passado cartas de oficiais de toda a obra, faltan-
do-lhes esse período para os dez que os habilitaria
para artífices de relójios de algibeira. Pedia à Junta
que lhe abonasse as comedorias aos aprendizes por
mais três anos e que não passasse «cartas» nessas con-
dições. Os membros da Junta não lhe acharam razão
por quanto isso redundava no prejuízo de ter-se de ali-
mentar os aprendizes por mais dos dez anos do con-
trato.
Durand, pretendia o novo privilégio com sobrevi-
vência no seu filho, pro"ibição de entrada no país dos
relójios estranjeiros, obrigatoriedade de exame aos re-
lojoeiros de loja aberta, mudança da sua oficina, dando-

(i) O contrato de trespasse fora prorrogado por oito anos,


por despacho de 14 de Dezembro de 1775.
— igS —
-se-lhe a importância do aluguel que para ela se cori-
seguisse e uma tença de 2oOvj^ooo réis. A Junta informa
bem excepto no que respeitava à proibição de entrada
dos relójios e ao exame alvitrado para os relojoei-
ros (i).

No ano seguinte Durand, solicitou a Pombal o em-


préstimo de dois contos de réis pela obrigação de dí-

vida que tinha por artefactos vendidos a Domingos


Jorge Ferreira e a Joaquim António Alberto, proprietá-

rios da nau «S. Francisco de Paula, Santa Eulália e


Almas» que se esperava em Agosto de 1776. pe- O
dido foi feito em Fevereiro. A Junta informou bem da
pessoa de Durand, do seu zelo, competência e bons
serviços, mas achou arriscado o empréstimo (2).
Mais tarde, em 1781, tornou a pedir a tença de
200í5f)000 réis, com sobrevivência para sua mulher e
para os seus três filhos a quem êle ensinara também
o fabrico de relójios. A informação foi boa, pore'm a
Junta, lembrava que o dinheiro não saísse dos seus co-
fres que já não chegavam para tantas despesas (3).
Quando Durand tomou a oficina, tinha havido ou-
tros pretendentes — os oficiais Joaquim José Pires e Ja-

cinto Manuel de Sousa, associados para esse efeito.


Ás condições que apresentaram, a Junta preferiu as
de Durand que importavam o dispêndio anual de réis
i.2422í)Ooo, ao passo que as deles levavam esse gasto
a 1.478CÍ1000 réis. Com a oficina, em tempo de Ber-
thet, a despesa fora de 3.363;3^200 réis anuais (4).

(i) Livro B de Decretos e Avisos —


Informação de 19 de Maio
de 1775 e de 28 de Fevereiro de 1776, pág. 87, i55 a iSg, 161, 192
a 193.
Idem, ibidem.
(2)
Livro g26 de Representações e Consultas, pág. 8 v.° e 9
(3)

Informação de 16 de Fevereiro de 17S1.
(4) Livro giõ-A de Decretos e Avisos, pág. 90 a 91 v."
— 196 —
Quando Durand tomou conta da Fábrica havia ali

grandes quantidades de relójios feitos e considerável


número de peças, pêndulas, molas, movimentos, etc.
Durand deu notável progresso ao fabrico, tendo ma-
nufacturado alguns relójios de «ideias novas» e aumen-
tando extraordinariamente as vendas (i).
Na oficina, no Bairro dos Fabricantes, os Róis de
Confessados, mencionam de 1766 a 1772, os seguintes
artífices

— Cláudio Berlhet, com seus filhos, e sua mulher Joana


Berthet, de 1766 a 1770. Em 1770 faleceu ele;
— António Durand, em 1771 e 1772, com sua mulher
Isabel Durand, suas filhas Catarina e Maria e
seus filhos Angelo e João. O terceiro filho não
aparece mencionado
— Henrique Ludovico, de 1766
oficial,
1769; a
— Bernardo Vicente Lavinha, idem oficial, ;

— Joaquim José Ferreira, idem; oficial,


— Anastácio José, idem;
oficial,
— João Caetano Martins, de 1767 oficial,
1770; a
— José Vital, oficial;
— Pedro Perada, oficial
— Tomás F^ilipe, oficial
— João Roiz, oficial
— Nicolau Ugote, de 1768 a 1771 ;
oficial,
— Joaquim Francisco Bigot, oficial, de 1768 a 1771 ;

— Francisco Guilhobert, oficial, de 1768 a 1771;


— Pedro Rozani, ou Bugóni, oficial, de 1768 a 1772;
— Bernardo José de Sousa, oficial, de 1768 a 1772;
— António Lopes, de oficial, 1768 a 1772;
— Francisco Miranda, oficial, de 1768 a 1772;

(i) Citada ÍM/ormjfão da Junta de 19 de Maio de 1775, pág. i55


a 159 do Livro B de Decretos e Avisos.
— 197

— Joaquim Pedro, de oficial, 1768 a 1772;
— Joaquim Manuel Roiz, oficial, de 1768 a 1772;
— José Ferreira Santiago, oficial, de 1768 a 1772;
— Luís José de Almeida, oficial, de 1768 a 1772;
— João Jácome Brunieri, oficial, em 1771(1).

Em 1772, além de Durand e da família, havia na


oficina 24 operários^e 4 aprendizes; em 1771, 25; e em
177, 24.
*

Nos papéis e livros da Junta, encontro notícia de


ter o Marquês de Marialva, grande coleccionador de
relójios, no dizer de Beckford, comprado a Berthet
um relójio de parede por ôgcs&ôoo réis. Nas contas
aparece esta verba entre as dívidas à Fábrica. A Di-
recção notificou-o ao Marquês que declarou ter pago
ao Mestre o relójio. Como este (1774) já tinha fale-
cido e o filho estava ausente, a Direcção resolveu que
essa quantia entrasse nos «ganhos e perdas» (2).
Em 1785, o capitão de uma nau, surta no Tejo,
comprou na Fábrica das Amoreiras, vários relójios fa-
bricados por António Durand, no valor de 1.670^5100
réis (3).

Muitos aprendizes e oficiais desta oficina Pomba-


lina, estabeleceram-se depois por conta própria, em
Portugal, na índia, no Brasil e até em Moçambique

( 1
Róis dos confessados da Freguesia de Santa Isabel, anos
citados no texto.
(2) Livro B de Decretos, etc. — Ordem de 26 de Janeiro de
1774, pág. i55 a iGi e 192 a 193.
(3) Livro <j23 de Registos de Avisos da Junta, pág. i3.
- 198 -
onde um dos do Mestre conseguiu montar uma
filhos

fábrica que lhemereceu uma tença de 2oo3í)00o réis (i).


O alvará de 21 de Junho de 1785 concedeu ficença
para José da Silva Mafra, erigir uma fábrica de peças
de relógios (2).
Um
Mr. Durand, que talvez fosse um outro filho de
António Durand, tinha em 1785 uma fábrica de relójios
na rua da Madalena (3).
Nos «bric-a-bracs» aparecem às vezes à venda reló-
jios portugueses. Lembro-me de um exemplar notá-
vel que esteve numa relojoaria da rua do Oiro, do
lado oriental, quási junto ao Rossio, que era fabrico da
oficina pombalina do bairro dos Fabricantes, o qual mar-
cava os dias, as luas, as estações, etc.
Num «bric-a-brac» do largo de S. Roque que já não
existe, esteve em 1918, um relójio de pesos, de caixa
grosseiramente acharoada, tendo gravados no mostra-
dor, ao alto: Manoel da Costa o fe:{aos Cap.°^ (Capu-
chos) em jy28. No mesmo estabelecimento, outro re-
lójio de mesa, tinha, também, gravado no mostrador
Dar Silencio.
nome
José Francisco Leite era outro fabricante cujo
em abreviatura num relójio de pesos que se ven-
se lia
deu num leilão da rua de Santo Antão 76, 2.°, em de i

Novembro de 1920.
Em Santarém também houve fabrico de relójios.
O da torre da igreja matriz de Alcanena lê-se,
relójio
gravado no mostrador amarelo: Ant.° Jo^é Fer.^ ^ fo^
em Santarém na era de ijg2{4).

(i) Real Resolução de 21 de Novembro de 1791.


(2) Livro gSi de Atestações, pág. 262.
(3) Gaveta de 2 de Agosto de 1785 — Anúncio.
(4) Azulejos Datados — 1/ série— pelo Dr. Vergílio Correia
pág. II.
— 199

Em Barcelos e na Maia houve igualmente fabrico
de pêndulas e oficinas de serralheiros de relójios de
caixa alta. Num, sob os ponteiros, lê-se a assinatura
de Lourenço Gomes Namaia. Este relójio está na
Câmara Municipal de Aveiro (i). Na «casa da Ponti-
nha», em Estarreja, da herança de Francisco Barbosa
Sotomaior, está outro assinado pelo mesmo Lourenço
Gomes na Maia.
Este fabricante era bisavô de um médico por-
tuense do mesmo apelido, professor no Porto em
1921(2)-
De António Francisco Silva é o relójio de mostra-
dor de cobre, que está na casa da Espinheira, conce-
lho de Vila do Conde, pertencente à mesma herança.
Está assinado com os dois primeiros nomes em abre-
viatura.
Vi outro relójio, num leilão na Póvoa de Varzim,
em 20 de Novembro de 192 que tinha
1, estilo inglês,
no mostrador, gravadas, dentro de uma oval, e entre-
laçadas, as letras J. A e P. e por baixo o n.° 3. Era
de evidente fabrico nacional.
Numa loja de relojoeiro da rua do Souto em Braga
vi, também, em 1917 um relógio de mesa em cujo mos-
trador se lia : Jo^é Franc.^ de fés em /Ir." (Araújo)
Barcellos no anno de 1774^
No relójio carrilhão de Alcobaça está a seguinte
marca Veyga Condeixa — que parece referir-se ao
nome do fabricante e ao local do fabrico.
Outros nomes haverá a colher. A lista é escassa,
mas foi o que pude achar nos meus verbetes.

(i) Informação do pintor sr. Alberto Sousa.


(2) Informação do sr. Conde de Azevedo.
CAPITULO IX

Sumário: Continua-se a matéria do capítulo antecedente Uma —


digressão a propósito de relójios —
De Frei João da Comenda
a Cláudio Berthet —
O príncipe D.Teodósio fabricante de
relójios —Citam-se vários relójios e relojoeiros —
Fábricas
de Serralheria em Lisboa e Pernes —
Os Schiappas-Pietras
— Progressos destas oficinas —
Diz-se o que lá se fabricava —

Encomendas importantes Um trono-jaula para el-rei D. José,
mandado fazer por Pombal — Fábrica de Limas em Alcân-
tara — Diz-se o que se fabricava nestas oficinas — A Fábrica
de Botões e a dj objectos de estanho de Guilianetti — Re-
clamações dos latoeiros —
As abotoaduras setecentistas — Bo-
tões de estanho, casquinha e prata —
Citam-se algumas ofi-
cinas metalúrgicas da época —
A Fábrica de Fundição de
Metais — Manufacturas propostas para a sua importação ser
proibida — Leiloa-se a Fábrica —
Uma tapeçaria encomen-
dada pelo Conselheiro Sobral —
Outra fábrica em Estremes
— Outra vez a Oficina de charões, vernizes e caixas Suas —
vicissitudes — —
A Aula de Estuque e Desenho Seus discípulos
e aprendizes —
Reclamação contra os estucadores, não habili-
tados —Uma lista de fábricas pombalinas privilegiadas Os —
documentos da «Junta da Administração das Fábricas» e a
História da Indústria Portuguesa.

Uma digressão a propósito :

O primeiro relojoeiro português de que existe me-


mória foi um fradinho de Leça da Palmeira, francis-
cano da província da Piedade que viveu nos fins do
se'culo XV. Chamava-se Frei João da Comenda. Fêz
nada menos do que trese relójios nove para os con-
:

ventos da sua província, dois para a ordem de S. Je-


— 202 —
rónimo (Espinheiro e Pêra Longa) e outro para um
convento cujo nome ignoro (i).
Camilo Castelo Branco no seu livro Capar em mi-
nas, refere a lenda do relójio de Leça. Duzentos anos
depois de falecer o frade, regulava ainda e pedia um
pater-nosier por alma do artífice.

Em tempo de D. João III há memória e notícia de


um João Gonçalves, exímio relojoeiro que construiu o
grande instrumento de sombras inventado por Pêro
Nunes. D. João de Castro menciona-o no seu Roteiro.
O Sumário das Noticias de Lisboa, de Cristóvão
Rodrigues de Oliveira, indica quatro serralheiros de
em Lisboa, no seu tempo (i55i).
relójios,
OTratado da Grandeza, Majestade e Abastança,
de João Brandão (i552) menciona quatro tendas de
fabrico de relójios e ao principiar o século seguinte
Frei Nicolau de Oliveira (2) acusa a existência, na ca-
pital, de três relojoeiros de sol e três de ferro.
Os fabricantes de relójios, quinhentistas, eram ao
mesmo tempo fabricantes de instrumentos náuticos.
Nos Róis das Despesas da Rainha D. Catarina figu-
ram relójios de areia, de marfim, de aço com caixa de
vidro, etc. O príncipe D. Teodósio, que era dado às
matemáticas, cntretinha-se a construir relójios. Um
dos que fabricou, quando dava horas representava um
aparato bélico. Tal relójio mereceu um epigrama
latino feito em Évora pelo Padre Manuel Luís, em
1680.
Estas notas que são tiradas da Vida do Principe
D. Teodósio e dos estudos de Sousa Viterbo, Arte e

(i) História Seráfica, de Frei Manuel da Esperança, tomo 11,

pág. 464 a 483.


(2) Livro das Grandezas de Lisboa, pág. iS3 da edição de
[804.
— 2o3 —
Indústrias Metálicas em Portugal
Arte e Artistas
e

em Portugal^ completam-se ainda transcrevendo os


nomes de vários serralheiros e torneiros de relójios,
alenaães, franceses e portugueses nos séculos xvi e xvii.
Na Cronografia de Manuel de Figueiredo, publi-
cada em i6o3, vem incluído um «Tratado de Relógios».
D. Francisco Manuel de Melo nos Apólogos Dialo-
togais põe os relójios das Chagas e de Belas a dialo-
gar no «Caldeireiro» onde estavam a concertar. Falam
que se fartam : —
do relójio da Sé que sofria mil enfer-
midades, de coisas e casos da corte, dos mentirosos
que vão ao Alto das Chagas, da cor das horas, etc,
chegando à conclusão de que era melhor ser relójio do
que cónego de S. Tomé, por que ao menos se podia
atirar com as horas à cara de cada um.
A propósito do relójio da Sé e da sua «madorna
mortal», como diz D. Francisco Manuel, acrescentarei
que em 1628 não tinha mostrador capaz, o que levou o
Deão e Cabido da Sé, a pedir ao Senado esse e outros
consertos. O Senado respondeu que isso era com o
serralheiro da cidade e com o cidadão que ganhava
23;3í>6oo réis por ano para cuidar dêle(i).

Nos princípios do século xvii, havia em Coimbra


um serralheiro de obra fina que trabalhava em relojoa-
ria e em
instrumentos matemáticos. Chamava-se este
António Nunes (2). Seu contemporâneo foi em
artista
Évora um Francisco Fernandes que fabricara o relójio
dos quartos da Sé, durante o episcopado de D. Ale-
xandre de Bragança. Frei Francisco de Jesus foi outro
frade relojoeiro, autor do relójio do convento do Bu-
çaco que o Governo em i836 mandou tirar de lá.

(1) Elementos para a História do Município de Lisboa, vol. iii,

pág- 280 e 281.


(2) Arte e Artistas em Portugal^ por Sousa Viterbo, pág. 37.
— 2o4 —
l
Onde parará hoje ?
João Spencer, era relojoeiro na rua Nova, em Lis-
boa, em 1745. Tinha a oficina instalada num café que
nessa data pertencia a Maria Spencer, sua parenta tal-

vez (i).

Acabou-se a digressão. Voltemos às fábricas.

Para o fabrico delicado dos teares de meias tor-


nou-se mister à Direcção da Fábrica das Sedas, con-
tratar um serralheiro hábil. Foi escolhido o genovês
Pedro Schiappa Pieira e esta foi a origem de uma fá-
brica de serralharia estabelecida por condições de 16
de Dezembro de 1765 e instalada na parte oriental do
próprio edifício da Fábrica, onde estivera a tinturaria (2).
A Serralharia esteve, em 1764, na casa n.° 5i da
Praça dos Fabricantes. Em 1765 morava lá Pedro
Schiappa Pietra, sua mulher Clara, seu irmão João
Baptista, e o oficial João Baptista Bocalandro.
Em 1766 já se não menciona a Fábrica, por a ter
absorvido a oficina de La Croix que ocupava os n.°49
e 5o da mesma Praça. Em 1771, vejo mencionados
Del Cuôco, os Pietras, e 17 oficiais e aprendizes (Rol
dos Confessados da Freguesia de S. Mamede).
Pedro Schiappa e seu irmão João Baptista que ele
chamara para cá, tomaram conta do estabelecimento,
de que ficaram sendo Mestres, obrigando-se a fabricar

(1) Anúncio na Gaveta de 24 de Junho de ly^S.


(2) A oficina de Schiappa Pietra esteve primeiro em i85 nas
casas do Bairro dos Fabricantes, que depois foram acres-
n.» 5i

centar a oficina dos Pentes de Marfim, de Gabriel da La Groix


[Róis dos Confessados da Freguesia de Santa Isabel).
20 5 —
nele a maior quantidade de ferragens e a ensinar um
certo número de aprendizes que a Direcção lhes indi-
caria e aos quais tinham de dar loo re'is diários du-
rante os seis anos de ensino(i).
Com referência à partilha dos lucros, vencimentos
dos Mestres e ingerência e fiscalização da Direcção, no
funcionamento da nova oficina, recalcitraram os Schiap-
pas recusando-se a assinar o contrato. Fêz-se, por isso,
outro que também não lhes agradou, a-pesar-de se lhes
conceder, a cada um, a pensão de 20oíf500o réis com
sobrevivência para suas mulheres.
Por fim lá se acomodaram, não sem novas recla-
mações àcêrca de dinheiro, do que resultou afinal um
grande prejuízo para os cofres da Fábrica-Mãe, visto
que os lucros foram todos para eles.
Como
na oficina se consumissem muitas limas, lem-
brou-se a atenta e vigilante Direcção de montar uma

Fábrica de Limas e assim se fez.


Veio da Irlanda um mestre, chamado Mateus Wal-
ker, vencendo 433;jí>ooo réis de ordenado e moradia
para sua família. A Fábrica estabeleceu-se em Alcân-
tara, na quinta do Loureiro, depois de estar algum
tempo anexa a de Serralharia. Como Walcker não en-
tendesse o português e não quisesse encarregar-se se-
não da fabricação de limas, foi nomeado em 1770, para
feitor da Fábrica de Alcântara, Pedro Schiappa, com
109^500 réis anuais que não mereceu, pois delegou
toda a vigilância no irlandês e só pensava em receber
o dinheiro.

(i) O decreto de 8 de Outubro de 17G8 concedeu 200^000


réis de tença, pelos bons serviços prestados na Fábrica, a João
Baptista e a Pedro Schiappa Pietra^ com sobrevivência a suas
respectivas mulheres Clara Schiappa Pietra e Gertrudes Clara do
Sacramento {Livro A de Registo dos Estatutos^ Alvarás e Decre-
tos, pág. i3).
— 2o6 —
A-pesar-da Direcção reconhecer esses defeitos em
Pedro Schiappa, tais empenhos ele moveu, que conse-
guiu fugir da tutela da Fábrica das Sedas, montando
em Pernes, em uma quinta dos jesuítas expulsos, outra
fábrica do mesmo género (i). Isto foi aí por 1772.
Seu irmão João Baptista ficou a dirigir a serralha-
ria de Lisboa, para fabrico de teares e obras congé-
neres, por sua própria conta, sujeitando-se à inspecção
da Direcção com os compromissos costumados. O con-
trato fora firmado em 22 de Maio e confirmado por
alvará de 10 de Junho de 1772(2).
A fábrica de Pernes progrediu mais do que esta e
as suas manufacturas chegaram a um elevado grau de
perfeição, para o que muito concorreram os sucessivos
empréstimos com que foi auxiliada. Por ocasião das
invasões francesas sofreu muito, ficando completamente
arrazada em i8io(3).
AJoão Baptista Schiappa Pietra, sucedeu na Ad-
ministração da Serralharia de Lisboa, um seu compa-
triota Luís Bachelay, cujos descendentes, até há pouco,

(1) O domínio directo da quinta ficou pertencendo à Real


Fábrica das Sedas e o domínio útil, com o fôro de 240í?>ooo réis
anuais e laudénio de vintena, a Pedro Schiappa Pietra que se obri-
gou, por contrato confirmado pelo alvará de iode Junho de 1772,
a dirigir o estabelecimento, sob a inspecção da Real Fábrica. O
fôro foi-lhe perdoado nos primeiros quatro anos e fêz-se-lhe ainda
o empréstimo de 4.000^000 réis a fazer dentro de dez anos.
Igualmente se lhe isentou de direitos o material para a Fá-
brica, pelomesmo prazo. Era assim que, no tempo de Pombal,
se fomentava e animava a indústria do país.
(2) Duas vezes foram prorrogadas as liberdades e isenções
concedidas a João Schiappa; a primeira, por mais cinco anos em
1779 e a segunda, pelo mesmo prazo, em 1785.
(3) Em 182 1 renovou-se o aforamento das casas desta Fá-
brica a favor de António Schiappa, filho do fundador, com redu •

ção do fôro primitivo.


— 'lo-] —
pela sua perícia e esforço, honraram a indústria na-
cional.
Dos aprendizes e oficiais de Schiappa e de Bachelay,
saíram bons artífices que se espalharam pelo país com-
pensando assim o Estado da perda inicial com as fá-
bricas primitivas (i).

Por um ^Inventário feito, e que está transcrito nos


Livros dos Registos da Junta de Administração das Fá-
bricas do Reino, e pelos Livros da Venda da Real Fá-
brica de Serralharia (2) ficamos sabendo que nesta ofi-

cina se fabricavam os seguintes artefactos


Ferragem de latão e ferro para móveis, fechaduras,
trincos, fechos, tranquetas,machas-fêmeas, parafusos,
molas, botões de latão para prender nos caixi-
e ferro

lhos das vidraças, aldrabas, roldanas, fogareiros de


ferro, perfumadores de latão e ferro, pás, tenazes, ver-
rumas, formões, plainas, e enchós, artefactos estes con-
siderados como obra grossa.
Como obra fina faziam-se :

Teares de meias, tornos, esquadros, níveis e com-


passos, porta-lápis, balanças romanas, prensas para
selos, tesouras para tosquiar panos, pentes de cardar
lã eengenhos de assar carne.
A
serralharia pombalina fornecia todos os produtos
do seu fabrico para as outras fábricas. A das Meias

(i) Houve também outra serralharia, no termo de Alcanede,


no dos «Olhos de Agua», comarca de Santarém, fundada em
sítio

1798 pelo negociante António Joaquim de Araújo Soares a qual


sofreu muito com as invasões francesas. Um irmão do fundador,
Francisco de Paula Araújo Soares, restaurou-a, depois, em 1816.

(2) Livro Q16-A de Decretos e Avisos, pág. i23 a 127 e Livro


277 de Vendas., n.°' i33 e 134.
— 2oH —
e das Sedas, a dos Botões e das Caixas, a dos Pentes,
a das Fitas, a dos Relójios, a da Fundição, a da Cute-
laria, etc, abasteceram-se aqui das ferragens de toda
a de que necessitavam para a sua montagem.
espe'cie
O Real Colégio dos Nobres, e muitos particulares,
como os Cruzes Sobrais, fizeram lá numerosas enco-
mendas.
Uma (ffábrica de ferro» que se montou em Angola,
abasteceu-se nela também. Foram para lá cinco mo
delos de diversas máquinas. Emj 1770 para o José Fran
cisco da Cruz Alagôa, fabricou uma bomba com des-
tino ao jardim da quinta de Carcavelos que importou,
por sinal em 885f)Ooo réis. A encomenda para o Co-
légio dos Nobres importou em 325í&540 réis, o que dá
ideia do seu volume. Para a Companhia do Grão Pará
e Maranhão também se manufacturou um moinho e ;

para o conselheiro Joaquim Inácio da Cruz Sobral,


alguns faróis. Por cima da porta da Fábrica, estava
também um farol que importara em loSííSgo réis.
A obra mais importante que aqui se fêz foi, sem dú-
vida, um trono para sua Magestade Fidilissima ! ! Ao
há de intrigar este trono feito de ferro e latão, em
leitor
chapa e em fio, no qual trabalharam, durante 48 dias,
27 operários, gastando-se na obra nada menos de réis
i.oi2ííí)q4o. Dirigiram-na os dois Pietras (Pedro Antó-
nio e João Baptista) que venceram o salário de líííiioo

réis diários. Foi isto em 1770. A explicação vou dá-la


agora. Este trono, não era propriamente um trono,
era uma Depois daquele conhecido atentado de
gaiola.
Vila Viçosa contra o rei D. José, o Marquês de Pom-
bal, pensou em perservar a fidelíssima pessoa do sobe-
rano, encerrando-o numa máquina gradeada. Se bem
o pensou, melhor o fêz, e encomendou aos Pietras a
feitura dessa gaiola disfarçada em trono régio, para que
se não podesse repetir a paulada do João de Sousa, que
— 'iog —
diziam ter sido o autor da agressão de Vila Viçosa,
dando, ao mesmo tempo, várias providências sobre a
admissão e escolha de pessoas ao beija-mão.
Esta farça do rei enjaulado é digna dos dois; do rei

e do ministro (i).

Dos Livros a que me tenho reportado consta a erec-


ção de mais as serralharias seguintes

— De António da Silva, em 3o de Agosto de 1780;


— De Nicolau Maria Palácio, em 21 de Janeiro de 1782;
— De Manuel de Bastos, em 2 de Abril de 1784, 20
de Maio de 1785 e 16 de Maio de 1786;
— De N... (obras de ferro, brocas, sovelas e fivelas),

em 18 de Agosto de 1784;
— De Caetano Francisco Veloso, em 27 de Julho de
1785;
— De Pedro Schiappa Pietra, em 26 de Abril de 1786; e
— De José Francisco Cabrita, em 12 de Maio de 1786.
Outras fábricas congéneres se erigiram também

— Bijuterias^ de José Joaquim Lobo, em 3o de Agosto


de 1780
— Charneií^as e Fivelas, de Isidoro José Ferreira, em
3i de Janeiro de 1783; de Luís Geraldes, em 4
de Junho de 1783 de Fernando José
; Louran, em
24 de Novembro de 1783 de António Ferreira
;

Lopes, em i5 de Novembro de 1784;


— Quinquilharias (fundição), de Matias Ribeiro, em ig

(i) Manuscrito que possuo intitulado: História Politica e

Económica do Reinado do Senhor Rei D. José. Foi da Colecção


Ameal.
VoL. IV 14
— :2iô —
de Fevereiro de 1781 ; de José Maria, em 21 de
Janeiro de 1782 ; em 4 de Feve-
de José Pedro,
Domingos José Soares, em 7
reiro de 1785;, de
de Novembro de 1785 e de Manuel Henriques,
em 17 de Julho de 1786:
Obras vasadas de metal, de latoeiro e toriieiro, de
Hipólito Gandolfi, em
29 de Julho de 1782, de
Veríssimo Francisco de Paula, em 23 de Julho
de 1783 de António Pereira da Silva, em 27 de
;

Outubro de 1783 de José Joaquim Silvestre, em


;

19 de Janeiro de 1784, de José Anastácio Pereira


de Melo, em 12 de Janeiro de 1785 de João Ma- ;

nuel de Novais (que também torneava marfim),


em i5 de Abril de 1785; do latoeiro Carlos Joa-
quim de Campos, na mesma data, e do torneiro
de instrumentos músicos e outras miudezas Antó-
nio José Haupt, cm i de Junho de 1785(1).

Outra fábrica que, no seu tempo, logrou ver os seus


produtos largamente procurados foi a de Botões a qual
teve como primeiro mestre a Pedro André Guilhobel,
ajustado por intermédio do relojoeiro Berthet.
Como em tudo em que se metia Berthet havia desa-
venças, Guilhobel foi preso antes de chegar cá, por
denúncia dos oficiais de que se acompanhava. Conse-
guindo fugir, cá veio ter em Setembro
de 1768, mas
já a fábrica se achava instalada na propriedade n.° 67
do Bairro dos Fabricantes, junto à dos Charões, da
parte dos Arciprestes, sob a direcção de um mestre

(1) Livro g5i-B de Atestações, desde 10 de Novembro de 1775


até o fim de 1786.
— 21Í —
italiano,Bartolomeu Orsini e de sua mulher Teresa
Orsini que apareceram em Portugal em busca de tra-
balho (i).

O nosso país era então procuradíssimo por todos


os artífices holandeses, franceses, Italianos e ingleses
que sabiam ao certo achar aqui bom acolhimento.
Dessa migração produtora e fecunda resultou a for-
mação deste grandioso bloco industrial que se melho-
res resultados não deu foi devido a dois grandes males:
à sistemática destruição da obra de Pombal, feita no
tempo de D. Maria I, e depois, as invasões francesas e
à longa guerra peninsular.
Mas voltemos à Fábrica de Botões.
Já,em 1760, João Francisco Lecor, antepassado do
Barão da Laguna Carlos Frederico Lecor, francês de
origem e português de nascimento, apresentara à Junta
de Comércio, moldes e amostras de botões de metal
muito semelhantes aos que nos vinham de fora, ro-
gando, ao mesmo tempo licença para fabricá-los inde-
pendentemente de outra passada pelo grémio dos La-
toeiros. Nesse mesmo género de trabalhos, um portu-
guês, João Correia, montou um estabelecimento de
fivelas, botões, molduras e mais obras de estanho, pouco
mais ou menos pelo mesmo tempo, e Jácome António
Gulianetti, italiano domiciliado em Lisboa, estabelecera
igualmente uma manufactura de candieiros de estanho
de que então se fazia grande uso.
Tanto Giulianetti como João Correia viram, porém,
dificultadas as suas empresas por impedimentos postos
pelos oficiais de picheleiro os quais, alegando não esta-
rem os novos fabricantes incorporados no seu grémio
lhe moveram processo. Chegaram até a prender o Cor-
reia e a quebrar-lhe todas as formas que encontraram

(i) Livro B de Decretos e Avisos^ pág. i25 a 126.


— úii —
na loja. Providenciou a Junta do Comércio, mandando
inquirir do que se fabricava nas oficinas dos reclaman-
tes. Viu a razão que assistia aos artífices presos e
apoiou-lhes as pretenções, em consulta de 19 de Janeiro
de 1761, ponderando ao Senado da Gamara que não
se incomodassem os fabricantes que tivessem licença
sua para manufacturar os candieiros estanho^ moldu-
ras, ponteiras, botões e mais quinquilharia de estanho.
Libertaram-se também de direitos internos as referidas
obras.
A-pesar-de tudo Giulianetii ainda foi perseguido e
condenado pelo Juizo da Almotaçaria em 8c!rooo réis
de multa, com apreensão de todo o material da oficina.
Desagravou-o a Real Resolução de 6 de Maio de 1761.
Seguidamente o decreto de 7 de Maio, mandou anular
a sentença, repreender o Almotacé e entregar tudo
quanto fora apreendido.
As reclamações dos picheleiros e l^toeiros continua-
ram, mas sem resultado. A cada um que surgia, cor-
respondia imediatamente uma resolução desfavorável,
o que os não impediu que reclamassem dez vezes até
o ano de 1825. Já era tenacidade (i)
j

'
Fêz-se o contrato com Bartolomeu Orsini, aprovado
pela Rtsolução Régia de 3o de Agosto de 17G6, ficando

(i) Um aviso régio de 3 de Agosto de 1785, manda consultar


sobre a petição dos Procuradores e Mestres fabricantes de botões
(pág. 45 do Livro C de Decretos e Avisos). A pág. 55 e 55 v.° do
mesmo livro vem o alvará dando-lhes prorogação por mais cinco
anos dos privilégios e isenções do anterior diploma {decreto de 17
de Outubro de 1785).
— 2l3 —
a fábrica anexa à das Sedas e ficando o italiano por
Mestre e Administrador dela, pelo espaço de dez anos.
Arbitrou-se-lhe o vencimento de mil réis diários e à
sua mulher seiscentos réis, e concedeu-se-lhe metade
dos lucros líquidos que ela tivesse.
Cada um dos aprendizes venceria 120 réis para
sustento, obrigando-se Orsini a ensiná-los, fabricando
toda a sorte de botões de metal que então se usavam
e se viessem a usar. Também igualmente se compro-
meteu a mandar vir de Itália seu filho, Manuel Orsini,
se o admitissem como oficial da Fábrica. Manuel Or-
sini veio efectivamente, e tornou-se muito hábil como
debuxador e dourador.
A Direcção foi obrigada a indemnizar Pedro André
Guilhobel pelos prejuizos sofridos com a vinda do Or-
sini, com a pensão de oitocentos réis diários.
Por morte do Orsini ficou a substituí-lo na Fábrica
que não ganhou com a troca, porque Guilhobel não
linha os méritos do seu antecessor. Em Dezembro de
1771 autorizaram-no a montar os cilindros para as cha-
pas dos botões, nas Casas do Tesouro da Casa de Bra-
gança, por não haver sítio melhor (1). Mais tarde foi
obrigado a retirar-se por despacho da Direcção de 8 de
Janeiro de 1773. Ele mesmo solicitou a licença para
ir para Itália, depois de três anos de administração im-
profícua (2).

(i) Livro A de Decretos e Avisos, pág. 14S.


(2) Em 1767 os Róis dos Confessados da Freguesia de S. Ma-
mede, marcam na propriedade onde estava esta ofi-
n.»' 53 a 54,
cina, os seguintes moradores Bartolomeu Orsini, Teresa Orsini,
:

e os aprendizes Manuel Fernandes, João Pedro, Filipe Neri, Ana-


cleto Elias, Angelo António, José António, Francisco Joaquim,
Januário José, Manuel José, Francisco de Paula e Joaquim José.
Em 1768 aparece o Orsini, Manuel Orsini (filho) e 16 aprendizes,
um dos quais se chamava Francisco Fusquilli. Em 1770, na Fá-
— 214 —
Ficou seu filho Francisco Agostinho a dirigi-la e
logo mostrou os seus méritos. Durante a sua direcção
foram notabilissimos os progressos da oficina, que por
alvará de 20 de Agosto de 1774, lhe foi trespassada
com as costumadas condições (i).
A-pesar-de tudo, deu de perda ao Estado io.75oíi?>359
réis, quantia que não foi, aliás, dispendida esterilmente.
É certo que a Fábrica acabou, mas como outras, dei-
xou raizes que brotaram mais tarde.
Desta Fábrica foi contra-mestre dos botões e Mestre
do cunho, Luís José de Almeida, nomeado em 5 de
Outubro de 1768 com 800 réis diários. Em 1771 foi
nomeado (despacho de 18 de Outubro) para Mestre dos
botões, Manuel Fernandes do Avelar(2). .

No Armazém de Venda havia, em 1772, 2.298 abo-


toaduras. O empate era considerável. Os operários
da oficina eram vinte. Não havia ainda aparelhos para
fabricar o que o consumo
exigia, sendo para isso pre-
ciso que se gastasse um conto por mês para manufac-
turar 720 abotoaduras prateadas ou doiradas. Torna-
va-se preciso, para a vida da indústria, uma produção
de 17.280 abotoaduras. A moda exigia constantemente
lavores novos. Este balanço e estas observações feitas
pela Direcção da Fábrica das Sedas foram presentes a
Pombal em 4 de Dezembro de 1772(3).
Cada abotoadura de prata, completa, custava 3ví)2oo
réis e de casquinha 800 réis (4).
Na Fábrica manufacturavam-se abotoaduras doi- :

brica estavam Pedro Andrino, Francisco Oberti, Manuel Orsini e


16 aprendizes, e em 1771, André Guilhobel, Francisco Agostinho,
seu filho, Manuel Orsini, i aprendiz e i3 operários,
(i) Livro B de Decretos e Avisos, pág. 129 a i35.

(2) Livro A idem.


(3) Livro B idem, pág. i5 a 17.

(4) Livro A idem, pág. i63 v,°


— 2ID —
radas de água, doiradas a folha, sôbredoiradas e la-

vradas, de prata lavrada para casaca e para vestia, de


metal (lavradas e lisas), prateadas lisas ou lavradas, de
latão lavrado ou liso, de estanho (para casaca e para

vestia), e de ouro fino, completas, as quais custavam


48íiy)Ooo réis(i).

Uma ordem da Direcção, que dá a entender qual-


quer demora nos fabricos, prescreve que as encomendas
para El-Rei, para o paço. Secretários de Estado ou da
Corte e Companhias Gerais do Comércio, sejam ime-
diatamente satisfeitas, avisando a Fábrica a Direcção.
Quem a assina é Jacquerie de Sales em lo de Março
de 1773 (2).
Em 1780 fundou, com as obrigações e os privilégios
habituais dados pela Junta, uma fábrica de marcas de
osso para botões de casquinha, um tal Casimiro da
Silva (3). A casquinha de prata fabricava-se, em 1787,
na oficina de António dos Santos, em Lisboa. Era
tambe'm privilegiada. Fora erecta em 8 de Outubro
de 1784(4).
De outras fábricas de botões, tenho conhecimento.
Enfileiro aqui os nomes dos fabricantes e as datas dos
alvarás que lhes privilegiaram as oficinas.

— Botões de casquinha : Pedro António Correia, em


18 de Agosto de 1780; João Pedro, na mesma
Pedro Pires dos Santos, José da Costa e
data ;

Manuel da Costa, todos em 20 de Novembro de

( 1
)
Livro 404 de Entrada e Saída de Manifestos da Real Fá-
brica dos Botões.
(2) Idem.
(3) Livro B idem, pág. 339, 344, 346, 35o —
Concessão de 25
de Setembro de 1780. A falta de botões no mercado era grande.
(4) Livro g2y-3.'' de Registo de Consultas, pág. 44 v.° e 45.
— 2l6 —
1780; António Multipliciano da Silva, em 3o de
Janeiro de 1781 Manuel dos Santos Carvalho,
;

em 19 de Janeiro de 1781; José Conrado, em 7


de Fevereiro de 1781 José Justino Henriques,
;

em 19 de Fevereiro de 1781 José de Sousa Go-


;

mes, em i5 de Junho de 1781 Manuel da Costa


;

Pinto e Francisco Joaquim da Cruz, em 26 de


Agosto de 1782; Lúcia Maria, viúva de José Al
vares, em 7 de Agosto de 1786; Henrique José
Álvares, em de Outubro de 1784;
1 1

— Botões bordados: António Currat, em de Setem- i

bro de 1783 (tinha também fábrica de lentejoi-


las) Domingos Fantoni Ansaldi, em 19 de Se-
;

tembro de 1783; José Pedro Duarte, em 6 de


Agosto de 1784 e Jácome Zille, em 6 de Abril
de 1785(1).

José Fernandes Chaves teve, no Porto, em 1781,


uma fábrica de botões de unha, à qual foram conce-
didos os privilégios habituais. A Fábrica era em Gol-
pelhares, tendo-lhe sido estabelecidos os preços para
os botões de casaca e de vestia, pretos ou policromos :

de 36o a 280 réis e de 38o a 280 réis em grossas par-


tidas. Em pequenas porções, variavam de 370 a 400
réis (2).
Paulo José da Rocha era o fabricante de botões
para a tropa. Fazia-os mais baratos do que nas outras
fábricas. Tinha ensinado muitos oficiais e aprendizes.
O mostruário que ele mandou à Junta deu origem a
uma boa informação para a concessão do privilégio, em

(i) Livro q5i de Atestados, desde 10 de Novembro de 177530


fim de 1786.
(2) Livro g26 de Representações e Consitltas — Real Resolu-
ção de 14 de Dezembro de 1781 —
pág. 3y a 3-j v." Livro B de De-
cretos e Avisos —
Alvará de <j de Outubro de 177G.
— 217 —
1781. Os botões eram de estanho, e ele era obrigado
a entregá-los no Arsenal Real do Exe'rcilo(i).
De outras indústrias metálicas há notícia por esta
época, como a de pratear latão fundido^ de Francisco
Leite Pereira, que se propunha instalá-la na Fundi-
ção (2) a de charneiras, de Luís Joaquim Sicard (3)
;

a de folhetas para cravação de pedras^ fundada por


Augusto Ludovice Thime que quis instalar-se no Bairro
dos Fabricantes (4) a de leiítejoilas, de Margarida Jo-
;

sefa Vitória (5)4 a de chumbo de niunição, de Rey-


nier (6) ; a de pór aço nos espelhos, de um tal Ghira(7);
a de ourives com embutidos de pedras finas e outras
peças de ornato, de José Luís da Silva (8) 3 a de bom-
bas e engenhos de bron\e e ferro, de Manuel António
da Costa (9) ; a de ligas de fio de oiro e prata e de len-
tejoilas de cores, do francês Razuret, e outras porven-
tura (10).

(i) Livro g-JÔ de Representações e Consultas — Informação de

2 de Março de 1781 — pág. iS, e Livro B de Decretos e Avisos —


Informação de 19 de Abril de 1776, pág. 19^.
O Tratado da Grandeza, Majestade e Abastança de Lisboa,
diz (pág. 218) Tem a cidade tre^emtas molheres que não tê outro
:

oficio senão fa^er botões e por elle guanhão muito dinheiro.


Cristóvam Roiz de Oliveira^ menciona, em i55i, cento e no-
venta e seis botoeiras.
(2) Livro g25-i.° idem —
Consulta de 8 de Março de 1776.
(3) idem, pág. 46- A Livro li de Decretos e Avisos, pág. 33 1 a

333 — Alvará de 7 de Junho de 1780.


(4) Idem, pág. 71 e 72 —
Consulta de i5 de Junho de 177S.
(5) Idem, pág. 127 —
Consulta de 20 de Novembro de 1779.
(6) Idem, pág. 90 a 90 v,», 1784
(7) Livro de Registo de ^Lmifestos, pág. i3, v.°, 1786.

(8) Idem.
(9) Livro B de Decretos e Avisos, pág. 394 — i78t.

(10) de Registo de Consultas, pág. 92


Livro i.° v.° a 93 — Con
$ulla de iS de Fevereiro de 1779.
— 2Ii

A Fábrica da Fundição de Metais, é outra da série


do Bairro das Amoreiras.
Celebraram-se as primeiras condições para ela em
I de Agosto de 1767, com o Mestre Júlio Gatti, man-
tuano. Foi contramestre seu filho André Gatti que,
mais tarde, despedido o pai, em 1777, ficou à frente
da oficina celebrando novas condições em i3 de Ou-
tubro desse ano(i). A sua montagem foi dispen-
diosíssima porque importou a construção de um edifício
especial provido de forno e utensílios próprios. Não
admira, por isso, que a perda fosse considerável: — mais
de dezasseis contos de réis. As obras foram, porém,
excelentes e a indústria veio a difundir-se por todo o
país.
Os sinos da Basílica da Estrela foram fabricados
aqui.
Gatti, mandou vir de Florença, para modelos, doze
candieiros de latão, de vários feitios, artefacto de grande
consumo no nosso pais (2). Daí resultou uma certa mo-
dificação nos clássicos tipos nacionais.

André Gatti, tomou conta da Fábrica e desenvol-


veu-a. A razão por que foi despedido o pai, ignoro-a.

(i) Livro B de Decretos e Avisos^ pág. 1S4, 190, 242 a 25i e


ordem da Direcção de 26 de Setembro de 1777 no Livro g3g de
Registo de Ordens, pág. 2.
(2) Livro A de Decretos e Avisos, pág. i52 v.* e i53,
— 219 —
Só sei que lhe penhoraram uns sinos que a Direcção
teve de vender (i).
Em 1779 foi solicitado por André Gatti a isenção
de direitos para as suas manufacturas. A Direcção da
Fábrica das Sedas não o atendeu (2). Já lhe compen-
sara o esforço a Junta do Comércio na sua consulta
de i3 de Julho de 1772 em que propunha a proibição
de vários artefactos que já com per-
cá se fabricavam
feição. A essa consulta estavam apensos quatro mapas
que constituíam uma prova consoladora das aptidões
dos nossos artífices e um notável elogio à obra do Mar-
quês do Pombal. Os géneros cuja importação devia
de ser proibida, faziam parte do mapa primeiro e eram
os seguintes :

Ferragens para papeleiras e para carruagens; bacias


de arame, acabadas ; castiçais ; campainhas ; púcaros ;

guarnições para chapéu de sol; verónicas e crucifixos;

escudetes de latão, machas-fêmeas, argolas e colheres;


garfos e cabos de faca ; castões de bengala, estribos e
fivelas perfumadores, candieiros, ferros de engomar,
;

dirandelas (sic) e lôda a obra de iatoeiro com excep-


ção de balanças.
A maioria destes objectos fabricava-se na oficina
de André Gatti.
Igualmente se deviam proibir : pratos de estanho,
bacias, ferros, bules, tinteiros, fivelas, botões, seringas,
garfos, cabos de faca, castiçais, talheres, tijelas, ga-
Ihetas, cruzes, torneiras, crucifixos e toda a demais
obra de picheleiro. Tesouras, canivetes, espevitadores,
navalhas, ferros de cirurgia, facas de mesa, alicates,

(i) Livro 923 de Registo de Consultas, pág. 99 a 99 — Con


sulta de 7 de Maio de 1779.
(2) Livro g8g de Registo de Manifestos, pág. 5 v." a 6 — Rçai
Resolução de 14 de Maio de 1779.
— 220 —
ferros para anatomia e mais obras de cuteleiro que se
fabricavam na oficina de Charlier, da qual já tratamos.
Todas as obras de serralheiro: fechaduras, estribos,
cabeções, ferragens para caixas e para portas, saca-
-rôlhas, chaves, machas-fêmeas, freios, esporas, berim-
baus e fuzis, de que tínhamos magníficos oficiais. E
ainda todas as obras de ferreiro, como machados, en-
xadas, foices e martelos.
No mapa segundo que continha os géneros sobre
cuja proibição de importação houvera discordância en-
tre os membros da Junta, elogiavam-se os nossos es-
pingardeiros, cujas oficinas de há muitoeram conhe-
cidas como de primeira ordem, sendo as armas objecto
de um grande consumo não só no pais como em Africa
e no Brasil.
Falamos acidentalmente, quando tratamos da Fá-
brica da Loiça, das obras executadas no Arsenal do
Exército em 1764, por João Drouet e Pedro Brocard,
artífices franceses degrande mérito falamos também
;

do tenente-general Bartolomeu da Costa. A estes três


nomes ligados à indústria da Fundição de Metais, há
a juntar ainda o do capitão Mateus António, mais vul-
garmente conhecido pelo Capitão das Bombas. Este
sujeito que nem sequer sabia ler, manufacturou obras
perfeitíssimas de fundição e de serralharia, na sua ofi-
cina na rua do Tesouro Velho. Aciárcio das Neves
chama-lhe um portento da indústria {i).

Segundo o Livro 4o3 da Entrada e Saída de Ma-


nufacturas da Real Fábrica dos Metais (1772), na ofi-

(1) Noções Históricas, Económicas e Adminislrativas, pàg.2bj


a 275.
— 221 —
oina de fundição das Amoreiras, fabricavam-se os se-
guintes artefactos

— Fivelas de cortinas, para caixilhos, de francalete, de


cabeçada, de testas de cavalo, de çapatos, para
arreios e meias fivelas
— Campainhas de porta e de relójios, castiçais de ban-
queta, castiçais de mesa, palmatórias, candieiros
de latão de 2, 3 e 4 luzes, tesouras de candieiro,
dirandelas grandes e pequenas, lisas e ordinárias,
guarda-tesouras e peças de relójios ;

— Artefactos para guarnição de arreios (pregos de pas-


sadores, rosetas grandes e pequenas, cantos e ma-
çanetas de seges, argolas lisas e lavradas, testas
de cavalo prateadas, caixilhos para vidros de se-
ges, pregos de ponta, passadores, e estribos ;

— Guarnições de cómodas e papeleiras (douradas, à


francesa, com figuras, e à inglesa), escudetes, fe-
chos de armário, carrancas, asas de papeleira,
asas com argolas e corpos de fechadura
— Colheres de latão, garfos, e cabos de faca de latão;
— Almofarizes de bronze, chaves e torneiras de bronze,
chombergas douradas para chaves e caldeiras de
estanho
— Sinos (quando foi do inventário havia na Fábrica
626), limas (434), grosas (108) e brocas (4).

Entre os materiais, apareceram no inventário, la-

tão, cobre, estanho, fio de ferro, goma-laca, formas e


várias ferramentas.
A forma grande para os sinos, que havia nesta ofi-
cina e que custou por sinal 416^5^140 réis, fora feita pelo
Mestre-pedreiro Bento Silvestre Fernandes.
Este inventário fêz-se em 4 de Outubro de 1777,
tendo o Gatti passado recibo em 17 do mesmo mês e
— 222 —
ano(i). Foi nesta altura que o Mestre requereu para
ficar com a Fábrica, por mais dez anos, com os habi-
tuais privilégios pagando a existência a prazo, man-
tendo por cinco anos os aprendizes e podendo mandar
vir de fora os seus oficiais (2).

Os Róis dos Confessados em 1771 dizem-nos que na


Fábrica da Fundição, eram moradores Júlio Gatti, Ma-
dalena Gatti, sua mulher, André Gatti e 7 aprendizes.
Em 1772, menciona-se só Júlio Gatti, os oficiais Cus-
tódio da Silva, José Inácio e António José dos Santos,
e 2 aprendizes.

A Fábrica de Fundição de Bronze e outros metais,


acabou em 1787, como se vê do seguinte anúncio da
Gaieta de Lisboa

Nos dias 12 e 14 de Setembro se hade arrematar


na praça das Amoreiras tudo o que pertence á fabrica
de fundição de bron{e e mais metais nesse género (3).

(i) Livro B de Decretos e Avisos, pág. 245 a 25i.


Idem, pág. 842 a 244.
(2) A informação é datada de i3 de
Outubro de 1777.
(3) Gaveta de 8 de Setembro de 1797 —
Suplemento.
No século XVI, há lembrança de duas Fundições de artilharia
junto às Portas da Cru^, mandadas fazer por D, Manuel, e de
outra a Cata-que-farás, onde depois foi o Forte de S. Paulo (Re-
molares) que quási chegou a nossos dias. Mais tarde (em tempo
de D. João III, talvez) mandou-se construir outra Fundição (às
F*errarias) ao oriente do Campo de Santa Clara, e ainda depois,
outras em Santa Engrácia, a de Cima e a de Baixo (Arsenal do
Exército, hoje) que foi chamada «Fundição dos Castelhanos, e
ardeu em 1726, tendo-a D. João V restaurado e melhorado. A
Fundição de Cima, chamava se «Fundição da Coroa de Portugal».
Mais miudamente se pode ver este assunto nas notas de Gomes de
— 223

Mais duas fábricas houve ainda no Bairro : — a das


Tapeçarias e a dos Charões.

Brito e Vieira da Silva ao Tratado, Grandeza e Abastança da Ci-


dade de Lisboa, a pág. 1G2 a 164.
A pág. i85, descrevem-se os Alma^ens das Armas onde se
fundia artilharia e fabricavam armas brancas, corpos de couraça,
sinos, munições, espingardas, lanças, etc.
Quanto a artífices que trabalhavam em metal, os dois do-
cumentos que há do século xvi, este e o Sumário das Noticias de
Lisboa, dão os seguintes números
No Tratado No Sumário
Adargueiros 8 i3
Anzoleiros 5o 20
Arcabuzeiros e espingardeiros 8 3

Fundidores de artilharia 5o -
Baínheiros e cutileiros i3o 5i
Espadeiros i3o -
Bate-fôlhas 20 14
Caldeireiros 40 43
Couraceiros 20 -
Ferreiros - 129
Freeiros 60 24
Fundidores 12 -
Lanceiros - 8
Picheleiros 120 42
Serralheiros 220 93

O Tratado cita ainda três tendas «onde se funde arame e fa-


zem almofarizes».
Sousa Viterbo, no seu precioso estudo sobre A armaria em
Portugal, catalogou muitos nomes de artífices, a maioria dos quais
trabalharam e exerceram a sua actividade em Lisboa, Barcarena,
Porto, Évora, Tavira e Santarém. Com os nomes
mencionavam-se
vários pormenores biográficos de baínheiros, couraceiros, armei-
ros, barbeiros de espadas, hasteeiros, besteiros, arcabuzeiros, es-
pingardeiros, alfagemes, viroteiros, bate-fôlhas, coronheiros, etc,
muitos dos quais eram biscainhos.
— 224 —
Dos quinze tapeceiros que havia em Lisboa em 1620
só restava a memória (i) e a Direcção da Fábrica das
Sedas entendeu dever contratar com João Gonçalves
— artífice nacional —
o estabelecimento de uma nova
oficina. Foram celebradas as costumadas condições em
I de Julho de 1771, mas a Fábrica, ao que parece, já
funcionava porque, em 10 de Maio, a Direcção da Fá-
brica das Sedas pedia à Junta do Comércio para for-
necer oitenta arráteis de lás de várias cores e, não
sendo possível, pelo menos vinte, para a oficina poder
iniciar a sua produção de tapeçarias à imitação das que
se faziam em França (2). As cláusulas foram as habi-
tuais : uso gratuito do edifício durante cinco anos, pa-
gamento do valor dos materiais em cinco prestações,
ensino obrigatório de aprendizes, etc. (3).

Em 1775 o Mestre requereu se lhe dessem metade


das lãs já pedidas, para manufacturar uma alcatifa
para Joaquim Inácio da Cruz Sobral. Isto em Abril.
Em Maio, pede mais linha grossa, e diz que «a alcatifa
do senhor Conselheiro» já passa de meio (4).
A ordeíJi da Junta do Comércio de 22 de Dezem-
bro de 1777 escusa João Gonçalves do exercício do seu
lugar pela pouca utilidade que resulta para a Real Fa-
zenda da continuação do seu emprego. Outra, de 27
de Janeiro de 1778 manda tirar da folha os oficiais

(1) Em i552, marca o Tratado da Grandeza, Magestade e


Abastança, a existência em
Lisboa de três casas de Tapeceiros,
ocupando seis homens, afora quatro onde se corregiam tapetes.
Cristóvam Rodrigues de Oliveira em i55i cita só quatro tece-
lões de tapetes.
(2) Livro A de Decretos e Avisos, pág. 118 — Documento da-
tado de 10 de Maio de 1771.
(3) Idem, pág. 254 a 256.

(4) Livro de Representações à Direcção — Documentos da-


tados de 26 Abril e 19 de Junho de 1775, pág. 41 e 43.
— 22? —
Justiniano Diniz e Domingos José, do dia 25 em diante.
Os aprendizes foram também suprimidos e na Tintu-
raria escusaram-se vários cargos (i).
A Fábrica, a-pesar-de algumas obras bem acabadas
no dizer de Acúrcio das Neves, acabou de inanição,
tendo sido transmitida ao Gonçalves por novas condi-
ções^ datadas de 28 de Janeiro de 1778. A perda foi

de 2.873í?'3oi réis.

Mais feliz do que esta oficina foi a de Tavira fun-


dada em 1776, por um francês, Pedro Leonardo Mer-
goux, associado com Teotónio Pedro Heitor. Em 1779
íêz-se-lhe um empréstimo de seis contos, dos quais os
dois associados solicitaram dois em Agosto. Sobre esse
pedido houve uma consulta da Direcção de 23 de Agosto
e o decreto de 20 de Janeiro de 1780(2).
Foi nesta Fábrica de Tavira que se manufacturaram
as tapeçarias de uma das capelas do Palácio Real de
Mafra. Mais tarde veio a cair também, tendo ainda
assim deixado alguns aprendizes em estado de produ-
zir como foram Pedro Tavares de Brito, Tapeceiro da
Real Casa de Bragança e almoxarife de Mafra, e José
da Esperança Freire, Fiel do Tesouro do Palácio das
Necessidades.
Posteriormente um tal Francisco Mailhol fundou,
em 1793, uma em Estremôs, mas
fábrica de alcatifas
pouco ou nenhum resultado deu.
Da nossa indústria de Tapeçaria vivem ainda como
relíquias, em poder de coleccionadores, alguns velhos,
mas preciosos, tapetes ou, melhor, bordados de Arraio-
los que antigamente se usavam para mantear arcas ou
revestir paredes.

(1) Livro g3g do Registo de Ordens, pág. 7.


(2) Livro i.° de Requerimentos e Consultas, pág. 116.
YOL. IV i5
— 226 —
Da Fábrica das Amoreiras não conheço nenhum.
l
Onde parará a alcatifa de Joaquim Inácio da Cruz
Sobral que o mestre João Gonçalves feiturou com tanto
desvelo?
Dos Livros de Registo das folhas dos oficiais e
aprendizes da Real Fábrica da Tapeçaria (n,° 908 da
colecção) consta que, em 1772, os aprendizes eram João
Pereira, Justino Diniz, Manuel Francisco, Caetano Al-
berto, João Pacheco, José Vítor, Luís Miguel e José
Cândido; em 1773, os mesmos mais Manuel Luís e
e Domingos José e menos José Vítor e João Pacheco.
João Pereira desaparece em Abril de [773 e os ou-
tros mantêem-se. Em 1777, vejo só dois aprendizes
(o Diniz e o Domingos José). Quem assina o ponto
dos aprendizes é o Mestre João Gonçalves. O Livro
acaba em Agosto desse ano.
A Fábrica da Tapeçaria ocupava a casa n.° 33 da
Praça dos Fabricantes.

A Fábrica de Charões teve também pouco êxito.


Esteve instalada junto da Fábrica dos Pentes, na tra-
vessa que hoje tem este nome, no bairro novo dos Fa-
bricantes. Como as outras acabou com perda, aliás,
pequena, pois não chegou a 7005^000 réis.
Foi seu primeiro mestre um alemão, chamado José
Ridler que em 1774 aparecera em Lisboa estimulado
pelo bom acolhimento que cá tinham os operários es-
tranjeiros. Dizia-se perito em dourar ferragens de
latão e acharoar madeira, cobre e barro, acabando por
solicitar um empréstimo para se estabelecer por sua
conta. Pensou a Direcção da Real Fábrica sobre o
caso e resolveu estabelecer a Fábrica por sua conta,
— 227 —
ficando Ridler a dirigi-la, o que se fez por contrato,
aprovado por despacho de i de Junho daquele ano.
A Direcção deu-lhe casas, mas como estas não ti-
nham sol nem quintal para o enxugo dos vernizes,
escolheu-se outro chão na quinta dos Arciprestes dos
padres das Necessidades que linha sido por eles afo-
e
rado a um sujeito que lá começara com uma obra que
estava embargada. Orçou-se a despesa em iSoí&ooo
réis de bemfeitorias, cedendo os padres o terreno logo
que se resolvesse o pleito (i).
Em 1777, o mestre Ridler foi despedido e intimado
a desembaraçar as casas em que habitava «por se re-
conhecer a pouca utilidade que resulta do seu prés-
timo», diz a ordem de 26 de Setembro desse ano, de
onde consta a escusa de Gatti e de Charlier a que já
fizemos referência (2).
Em 22 de Setembro de 1778, Ridler entregou à
Direcção todo o material desanimado com
e utensílios,

o desastre, e foi José Francisco dei Cuôco, o sucessor


de Gabriel de La Croix na administração da Fábrica
dos Pentes, quem levou o fabrico dos acharoados a uma
notável perfeição.
Depois, veio D. Maria I, veio o Marquês de Ponte
de Lima, veio tudo aquilo que o destino aprouve man-
dar, como escárneo, depois do Marquês de Pombal
e a Fábrica de Charões foi votada ao ostracismo, como
o foi a dos Pentes, a de Cutelaria, a de Tapeçarias, a
de Fundição e as restantes. Toda a obra grandiosa do
primeiro ministro de D. José, foi quási metida a ridí-
culo. O que preocupava o primeiro ministro de D. Ma-

(i) Livro B de Decretos e Avisos^ pág. i25 a 126. Documento


datado de 22 de Junho de 1774.
(2) Livro g3g de Registo de Ordens, pág. 2.
— 228 —
ria I era a obra do Erário Régio e as cores das fitas

das condecorações das ordens militares. ;


Isso sim 1

j
Isso é que era importante ! As reformas do Sebastião
José (como então se dizia achincalhando-lhe a nobreza)
cheiravam a progresso e ao democratismo das ideias
modernas, Fora com elas
j

Falta ainda falar na Aula de Estuque e Desenho que


funcionou nas Amoreiras sob a direcção do italiano João
Grossi, contratado pela Real Fábrica em 1764, com
o ordenado de 6ooí5í)OOo réis(i).Começou a trabalhar
em com os quinze discípulos
28 de Agosto desse ano
que marcava o contrato, mas pouco resultado deu,
a-pesar-de se ordenar, por alvará de 23 de Dezembro
de 1771, que nenhum artífice do género pudesse ser
encarregado de obras sem ter aprendido na Aula de
Estuque. A aula foi extinta por ordem da Junta de
Administração das Fábricas, de 6 de Outubro de 1777,
mas Grossi continuou a leccionar particularmente, em-
bora subvencionado, ainda, pela Junta.
Não foi por falta de zelo da Direcção que a Aula
acabou com o prejuízo de 5. 4963^475 (2). A ordem
1

de 21 de Novembro de 1770 manda dar a Grossi uma

(1) A Aula estava instalada nas casas n.*" 3i a 32 da Praça


dos Fabricantes. Em 1765 já o Rol menciona o João Grosy (sic).
Em 1766 mencionam-se, com ele, os aprendizes Francisco Solano,
António Pedro e João Paulo em 1767 o Grosy e a mulher D. Rosa
;

Bernardes, e os aprendizes do ano anterior, mais Afonso Gonçal-


ves; e em 1771 os mesmos de 1766.
(2) Noções Históricas e Económicas, e Administrativas, já ci-
tadas, pág. 212 a 21 3.
— 229 —
nota dos discípulos e aprendizes, outra de quantos aca-
baram o estudo e por que razão os que acabaram conti-
nuavam lá(i), mostrando interessar-se pelo seu pro-
gresso. Alguns discípulos da Aula conseguiram nome.
Francisco José da Costa, Manuel Francisco e Francisco
dos Santos, discípulos de Grossi, tiveram carta de Mes-
tres-estucadores habilitados, assim como Paulo Botelho
e Manuel José de Oliveira que com o italiano tinham
também trabalhado (2).
O alvará de 23 de Dezembro de 1771 que proíbe
aos pedreiros, carpinteiros e moldureiros, tomar conta

de obras de estuque sem ser examinados ou ensinados


na Inspecção da Real Fábrica das Sedas (3) não dava
o resultado desejado. Um aviso da Junta do Comércio
de 3 de Janeiro do ano seguinte, chama a atenção para
o alvará e propõe que nele se incluam os estucadores
de que se não fazia menção e que eram os principais
infractores (4). Em 1825, 1826 e 1828 as reclamações
continuaram. A consulta de 20 de Abril de 1826 lembra
que se multem os que trabalham de estucadores sem
estar aprovados (5); o aviso de 7 de Setembro do ano
seguinte volta a gritar o alerta a favor do cumprimento
do alvará de 177 (6) e ainda xiradi portaria de 9 de
í

Abril de 1828 ordena à Direcção que fiscalize êss£


cumprimento, lembrando-lhe que só estucadores podem
fazer obra de estuque (7).

(i) Livro A de Decretos e Avisos, pág. 100 v.°


(2) Livro B idem, pág Sy, 44, ó6, 6S e 72. Anos de 1773 e
1775.
(3) Gabinete Histórico^ de Frei Cláudio da Conceição, vol. vii

pág. 25 a 26.
(-l) Livro A de Decretos e Avisos, pág. 159 v." e 160.
(5) Livro ^21-3." de Decretos e Avisos, pág. i5 v.° e 20.
(ô) Idem, pág. 32 v.°
(7) Livro g2i-3.° de Decretos e Avisos, pág. 61.
— 23o —
Era bradar contra o vento. A verdadeira Aula fora
e era ainda a reedificação de Lisboa. Nesse trabalho
portentoso é que se criaram bons engenhos e hábeis
operários.

Outras fábricas, derivadas destas e originárias do


Real Colégio de Manufacturas, se estabeleceram por
todo o Portugal. A Fábrica de Chapéus, na vila de
Pombal, que muito deveu à iniciativa de Jácome Rat-
ton e onde trabalharam muitos artistas estranjeiros,
como os franceses Mr. Sauvage, Guilherme Fournol,
Alberto Jacquerie de Salles, Batista Alexís e Gabriel
Milliet; e a Fábrica de Fiação em Tomar fundada por
Noel Le Maiire, onde também entraram Edmundo Car-
los Binet, Timóteo Lecussan Verdier, Jácome Ratton
e F^elix Clamouse Paliart, foram as duas que mais se
desenvolveram e melhores frutos deram.
Ainda se devem citar outras outras :

— Fábrica de Panos em Portalegre, sobre a qual Pina


Manique lançou as vistas ;

— Fábrica de Estampar baetilhas em Azeitão


e tlanelas

erecta por Raimundo Pinto de Carvalho em 1788 ;

— Fábrica de Rendas lavradas no tear, erecta por Cris-


tóvão Razuret em 1783;
— Fábrica de Guarnições Adamascadas, erecta no Porto
em 1781 por Francisco de Oliveira Ribeiro;
— Fábrica de Lanifícios de Lordélo, erecta em 1781
por Domingos Martins Gonçalves e Francisco
Xavier de Arantes ;

— Fábrica de Estamparia de. Cristóvão Temply ;

— Fábrica de Minas de Ferro (sic), no Pôrlo, erecta


por Domingos Martins Gonçalves
— 23l -
Fábricas de Estamparia de tecidos de linho e algo-
dão, uma fundada por Jeremias Mahony e Bento
Lauretano em 1778, outra por Joaquim José da
da Silva, outra de chitas, por Silvestre Luís Dias,
na Orla Navia em 1781 e outra ainda por Cris-
tiano Marolf em Coina
Fábrica de Chapéus Finos, fundada em 1778- 1782
por Manuel José Ferreira Grelho ;

Fábrica de Cambraias e Luvaria, erecta por Joa-


quim Tacinário, em 1778-1782;
Fábrica de Agua-Forte, erecta por Manuel Negri,
em 1782 ;

Fábrica de Atanados e Marroquins, fundada em


1780;
Fábrica de Estampar Papéis, fundada por Manuel
Henriques, em 1781, e que depois foi de Manuel
Esteves, em 1788
Fábrica de Verdete, fundada em 1780;
Fábrica de Vidro, de Guilherme Stephens
Fábrica de Será, de João Baptista Fontana, em 1777 ;

Fábrica de Galões de Linho, fundada por António


José da Silva, em
1778;
Fábrica de Tinturaria, fundada por João António
em 1778;
Fábricas de Chapéus Finos, fundadas, uma por José
da Silva, outra por Nicolau Tog e outra por An-
tónio José Lobo, todas em 1778;
Fábrica de Lentejoilas e palhetas, na rua do Sali-
tre, fundada em 1778 por Cipriano Lopes de An-

drade ;

Fábrica de Estamparia na Orta Navia, de Bento José


Pacheco ;

Fábrica de Vinagres, em Braço de Prata, em 1787;


Fábrica de Papel em S. Paio, cerca de Guimarães, fun-
dada em 1787 por António Alvares Ribeiro Lima
— 232 —
— Fábrica de Frocos dos Carlos, de Leonardo Luís,
Inocêncio José e Francisco Luís, em 1776;
— Fábrica de Limas;
— Fábrica de Algodão, de Locatelli
— Fábrica de Festões, em Sacave'm, em 1779, de Gui-
lherme Mac-Cornich
— Fábrica de Estamparia de Alcobaça, Já
decadente
em 1779;
— Fábrica de Vidros, na Flor da Murta, em Lisboa
— Fábrica de Grude, de Francisco Pedroso de Melo,
eni 1780 ;

— Fábrica de Archotes, de José Castilho, em 1780;


-
— Laboratório Químico de Godfroy Siziler, em 1784;
— Fábrica de Cartas de Jogar, de Lourenço Solésio ;

— Fábrica de Cerveja, de Estêvam Larcher, 1784; em


— Fábrica de Cintas e Camurças fundada por António
Ferreira Cristóvão em 1782;
— Fábrica de Branquearia, em Torres Novas;
— Fábrica de Vidros, de Sebastião de Castro Lemos,
no Covo
— Fábrica de EstampariaTinturaria de Chitas, dos
e

Bellons, no Porto
— Fábrica de Festões Toalhas Adamascadas, no
e

Porto, em 1787 ;

— Fábrica de Pelicas, de Querele 1786-1787; (?),

— Fábrica de Sola, em Cela (Alcobaça) erecta por José


Tomás Uheco, em 1786;
— Fábrica de Papel em Sintra, erecta em 1791.
Estas e no anterior capítulo,
outras, citadas neste e
passam nos da Junta da Administração das Fá-
livros
bricas e da anterior Direcção da Fábrica das Sedas,
em requerimentos e consultas, avisos, decretos e or-
dens, quási sempre à roda do mesmo motivo : a solici-
tação de privilégios.
— 233 —
A história das Indústrias Portuguesas, a história
económica de Portugal está ainda por fazer. Um dos
seus tomos mais interessantes será o que estudar o pe-
ríodo pombalino, e ningue'm o poderá escrever sem
arcar com o trabalho da consulta dos mil e tantos mas-
sos e volumes desta colecção do Arquivo Nacional.
CAPITULO X

Sumário A capela de Nossa Senhora de Monserrate


: Sua fun- —
dação —
Gitam-se dois alvarás régios —
Faz-se a trasladação
para a nova ermida —
Algumas palavras sobre a Irmandade —
Sua constituição e compromissos —
Os fabricantes de largo
e de estreito —
Descreve-se o templo minuciosamente Os —
seus belos azulejos —
Obras antigas e festividades diversas —
A primitiva Feira — A Princesa da Beira e a criação dos bichos
de seda —O arraial e romaria dos Prazeres — Sua origem
—É transferido para Campo de Ourique e depois para as
Amoreiras —
Notícias sobre a romaria dos Prazeres A feira —
das Amoreiras —
Transcreve-se uma descrição de Júlio César
Machado — As barracas das figuras de sêra — Descreve-se
uma — Os teatros —A barraca dos Dallots — Algumas notas
sobre estes comediantes — Para onde passou a Feira — Modi-
fica-se o bairro — Uma vista de olhos pela antiga Colónia
Fabril —O registo de azulejos da rua das Amoreiras — Um
teatro bairrista — A toponímia da rua e dos pontos próximos.

Estamos outra vez na praça dos Fabricantes.


No vão do arco médio, dos nove que a limitam pelo
poente, fica a capela dos Fabricantes, dedicada a Nossa
Seniiora de Monserrate.
E a Seniiora de Monserrate uma das imagens mais
populares e queridas em toda a região Pirenaica.
Com a vinda de alguns fabricantes franceses, des-
sas paragens para a Real Fábrica das Sedas, alastrou-se
de entre eles para toda a comunidade dos artífices da
Colónia Fabril das Amoreiras esse culto e essa devo-
ção, que aliás jáeram antigas em Portugal.
Era da invocação de Nossa Senhora de Monserratç
— 236 —
o Colégio dos Órfãos, fundado pela Rainha D. Brites,
mãi de D. Diniz, «e também o foi o seu sucedâneo» Co-
légio dos Meninos Órfãos fundado pela Rainha D. Ca-
tarina, à Mouraria,em 1549(1). De Nossa Senhora de
Monserrate era a ermida do Palácio da Flor da Murta
na rua de S. Bento e uma das capelas da igreja de
S. Bento da Saúde. Ao Poço dos Negros havia, no
meado do século xviii, outra ermida de Monserrate.
Gil Vicente, no Triunfo do biverno, põe na boca
do piloto
acudi ali

Que a nau vai sossobrando. ..

O virgem de Monserrate
Livra-nos deste rebate
Pelo teu precioso manto.

Os artífices sericícolas, afervorados em tal ideia,

construíram no alto de S. Francisco uma simples bar-


raca de madeira, onde uma imagem da Senhora (tra-

zida talvez por algum operário das cercanias de S. Jean


de Luz) foi logo posta ao culto, nascendo ao mesmo
tempo a ideia de se impetrar licença para a edificação,
no largo dos Fabricantes, de um templo condigno.
Assim se pensou e assim se fêz. Autorizada a cons-
trução da ermida, puseram mãos à obra, e em 1768
estava esta concluída.
Requereram então os irmãos e devotos, para que
El Rei lhes fizesse mercê do chão onde a ermida estava
fundada, a-fim-de fazerem a trasladação da imagem e
de celebrar a missa dominical. El-Rei, por alvará de
17 de Junho de 1768, fêz-lhe a mercê pedida, dando-lhe
posse e inteiro domínio do chão, no vão do quinto arco
para o lado da estrada, das casas da sacristia e mais

(1) História dos Estabelecimentos Literários, Scientificos e


Artísticos, por José Silvestre Ribeiro, pág. 85.
— 287 —
dependências Seguidamente, a 11 de Agosto, bai-
(i).

xou outro alvayá régio declarando a ermida isenta,


para os efeitos do culto, da jurisdição do juízo eclesiás-
tico e independente de qualquer paróquia em cuja área
estivesse. Alcançada esta concessão valiosíssima, a
irmandade dos Fabricantes mandou benzer a ermida,
fêz-se a trasladação da arruinada barraca para o novo
templo em 14 desse mês, e a quinze festejou-se sole-
nemente a Assunção de Nossa Senhora (2), assistindo
El Rei D. José e a Rainha.

A irmandade era constituída, ao princípio, unica-


mente pelos fabricantes, chamados de largo. Em 1772,
pore'm, os artífices de estreito requereram também a
sua admissão apresentando seis condições de entrada,
das quais destaco as seguintes
Que houvesse na mesa seis mestres da sua especia-
lidade, sendo alternados os lugares de Juiz e de Pro-
curador pelos fabricantes de largo e de estreito;
Que se lhe cedesse a casa de Despacho para as suas
reuniões e eleições ; e
Que se lhe concedessem os mesmos privilégios que
aos artífices de largo.
Ficariam assim todos os colaboradores da Colónia
Fabril debaixo do patrocínio da Mãi de Deus, alcan-
çando o aumento do te?nporal das suas manufacturas
e do espiritual das suas almas (3).

(1) Impresso avulso que possuo, mandado imprimir em 1887


pela Irmandade.
(2) Impresso avulso, mandado distribuir pela Irmandade e de
que possuo um exemplar.
(3) Livro dos Termos de ij/2, no cartório da Ermida,
— 238 —
Foi discutido, entre os de largo^ o requerimento e
aceito com prazer, salvo no que dizia respeito ao lugar
de Juiz, que por andar em pessoas estranhas e de ca-
tegoria não podia ser partilhado entre as duas corpo-
rações.
Esse lugar desempenhado sempre efectivamente
foi

por sujeitos grados. Do princípio da Irmandade até


1776 exerceu-o Joaquim Inácio da Cruz Sobral; em
1777, Domingos de Gamboa e Liz de 1778 a 1779,
;

D. Duarte de Sousa Coutinho; em 1780, Luís José de


Brito; em 1781, Maurício José Cremer Wanzeller; de
1782 a 1797, o Dr. Francisco António Marques Giraldes
Cardoso de Andrade; de 1798 a 1819, o Desembarga-
dor João José de Faria Guião; e em 1826, seu irmão,

o Dr. Joaquim José Guião. Muitos deles eram bair-


ristas, nossos conhecidos (i).

Entre os Livros dos Termos da Irmandade acha-se


um em que se cita um ofício dirigido pela corporação a
Pombal, em 1773, no qual se roga não sejam aceitos
nas fábricas e oficinas os operários ou aprendizes que
não mostrem fazer parte da Irmandade. Este pedido
foi deferido, tendo o favorável despacho a data de 29
de Janeiro desse ano (2). O ser irmão de Nossa Se-
nhora de Monserrate era, pois, obrigatório para todos
os membros daquela colónia industrial.
O primeiro Compromisso da Irmandade tem a data
de 12 de Setembro de 17(33.
O facto de a ermida estar privilegiada e isenta, por
mercê régia, da jurisdição eclesiástica, deu lugar, pos-
teriormente, a variadas questiúnculas com as paróquias
vizinhas. A Real Capela era, para os priores de Santa

(i) Livro das eleições da mesa, no mesmo cartório.


(2) Livro dos Termos n." i, pág. 9 v.° idem.
— 239 '-

Isabel e S. Mamede, um sorvedoiro de prováveis re-


ceitas paroquiais e guerreavam-na por isso.

A conta dos festejos a Santo António realizados em


Monserrate em 182 1 pelos devotos dessa imagem (que
se venerava na capela de António Rodrigues Gil, em
S. Bento) houve mosquitos por cordas entre o Pároco
de Santa Isabel, que se julgava lesado nos seus inte-
resses, e a Irmandade, que se defendia com o Real Pri-
vilégio. Como esta questão, encontram-se vestígios de
muitas outras no Arquivo da Irmandade (i).

Exteriormente a ermida das Amoreiras nada tem


de notável. E de uma vulgar simplicidade frontaria ;

sobrepujada de frontão, porta única de entrada, e, sobre


ela, o janelão do coro. No frontão uma fresta em forma
de quadrifólio. Ao alto uma cruz singela.
Para a parte posterior, tem um corpo saliente, res-
saltando a três metros do chão e amparado em ca-
chorros, no lugar correspondente ao altar-mór. Aos
lados, dois corpos adjacentes, o da Sacristia e Casa
de Despacho à esquerda, e, à direita, umas casas abar-
racadas.
A meio do corpo saliente, está uma cruz de azulejos
do Rato, tendo na base a data de 1787. Do lado do sul
fica a torre sineira, com quatro ventanas, sobrepujada
de cruz.
A entrada para a Sacristia faz-se por uma porta,
num estreito edículo lateral, pelo lado do Jardim das
Amoreiras.

(1) Livro das Conferências, ano de 1821, fl. 17 e 18 v.", no


Arquivo da Ermida.
240 —

Vejamo-la, agora, interiormente. Tem cena origi-


nalidade.
O corpo da ermida é oitavado, separando-ouma
teia da capela-mór. Em toda a volta, um rodapé com
dois metros de alto, todo recortado, poisa sobre o ali-

sare marmoreado, em que o amarelo^predomina. Lindos


azulejos do período primário da Fábri:a do Rato, de
uma bela coloração azul e em puro estilo do século xviii.
Alternando com as pilastras vêem-se molduras ovais
interceptadas pelos ornatos da composição, em quatro
pontos. Dentro dessas molduras estão representadas
as seguintes alegorias
Entrando do lado direito : Uma escarpada rocha
no meio do oceano e sobre ela uma oliveira. No espaço,
voando, uma pomba com um ramo no bico.
Na fita ondulante, o seguinte dístico:

ÚNICA NAUFRÁGIO SUPEREST.

Do mesmo lado, sob a Tribuna Uma torre firmada :

num rochedo. Sobre esta, uma águia que olha para


outra r.ve, que se representa voando por terra. Fundo
de paisagem. Na fita :

VIS FORTIOR ARCtT.

E ainda: Paisagem: no primeiro plano, à esquerda,


uma rocha, da qual nasce uma vara em que se enleia
uma videira de cachos pendentes. No espaço, o sol, e
na fita

INTACTA PLACET.
— 241 —
Na capela-mor, do lado da Sacristia: Uma estrela
fulgurante de raios e entre elas o sol. Na fita:

NOLI ME TANGERE.

Do outro lado da capela-mor : Paisagem e casas


no primeiro plano. No espaço o sol e o Arco-íris. Na
fita:

SOLIS OPVS.

Sob o púlpito : Uma serpente enroscando-se num


tronco de árvore. A parte superior da composição e
o dístico da fita estão ocultos por um armário com
promessas de cera. Sendo o assunto igual ao que se
vê em um dos painéis da ermida da Cruz das Almas,
deve ler-se na fita

INIMICITIAS PONAM.

A entrada, do lado esquerdo: Sobre fundo de pa'í-

sagem, uma pirâmide. Na fita :

UMBRA PRQCVL.

Tal é a interessante decoração do rodapé de azu-


lejos.

As paredes e tecto da ermida são estucados. Neste,


composto de apainelados que convergem, em cúpula,
para o painel central, oitavado, onde está uma pin-
tura de Nossa Senhora de Monserrate, do pincel de
Pedro Alexandrino, vêem-se diferentes alegorias e or-
natos. Aquelas são, um espelho (espelho de justiça),
Voi.. IV i6
— 242 —
uma torre (lôrre de marfim)^ um anel (/dia misteriosa)^
uma da manhã), um poço (poço de sa-
estrela (estrela
bedoria), duas árvores, que não sei o que representem,
e uma outra alegoria que me não foi possível destrin-
çar o que fosse. Três dos apainelados são ocupados
pelos ornatos, em dois dos quais vi, num, o sol e,
em outro^ a lua.
No apainelado, cuja base assenta sobre o arco do
cruzeiro, estão pintadas as armas reais do tempo de
D. José I.

O tecto da capela-mor é estucado tambe'm, vendo-se


no fecho da abóbada um ornato em forma de quadri-
fólio, dentro do qual estão pintadas umas cabeças de

anjo voando em redor de um sol.


O tecto sobre o coro é igualmente a estuque, sem
pinturas. Este assenta sobre um arco tríplice.

O altar-mor, de Nossa Senhora de Monserrate, tem


a imagem da Senhora. Aos lados, duas portas ; sobre
elas um nicho e, superior a estes, duas frestas. Nos ni-

chos estão as imagens de Santa Bárbara e Santo An-


tónio.
A porta do lado do Evangelho dá para uma escada
de serventia do altar-mor. Fronteiras uma à outra
ficam as portas da sacristia e de arrecadação, de onde
há acesso, por uma escada de caracol, à torre sineira
e, por outra escada, à tribuna. Sobre as duas portas
rasgam-se janelas.
No corpo da ermida temos, do lado do Evangelho
o altar do Santíssimo, onde estão as imagens de S. José
e da Senhora do Monte do Carmo, depois um armário
com promessaij de cera e, seguidamente, o altar da Se-
nhora da Atalaia e do Mártir S. Sebastião.
— 243 —
Do lado da epístola, fronteiro ao do Santíssimo,
está o altar de Nossa Senhora das Dores, com uma
imagem de Cristo Crucificado e sob ele o Senhor Morto,
e o altar de Nossa Senhora da Conceição.
Deste lado fica, à altura da Casa de Despacho, uma
tribuna fronteira ao púlpito,
A entrada para o coro faz-se por uma escada de
caracol à esquerda do guarda-vento.
Na sacristia existem alguns péssimos quadros a
óleo, um António Preto (Santo António de
Santo
Noto)(i) e, uma maquineta, um lenço de al-
dentro de
godão estampado com a imagem de Nossa Senhora de
Monserrate, com o menino ao colo, sendo ambas as
figuras de cor preta. Esse lenço —
disseram-me foi —
trazido com a imagem pelos fabricantes franceses e
data da primitiva da capela.
Sobre a sacristia fica a Casa de Despacho, onde
há mais quatro quadros a óleo, sem valor algum. Numa
moldura oval vêem- se pintadas, também, as armas reais
da época pombalina.

(i) Santo António de Noto era uma das imagens levadas nos

andores da procissão anual do Terço de Jesus que os negros fa-


ziam em Lisboa. O ci'devant Duque de Chatelet, a págs. 187 a 188
do primeiro volume do seu Voyage eu Portugal declara ter wisto
essa procissão, que lhe pareceu um dos espectáculos mais curiosos
que tinha presenciado. Não figurava na procissão um único branco.
Notou ele que as mulheres, que em grande número assistiam
ao seu desfile, nas ruas e nas janelas, espirravam a miúde. Intri-
gou-o esta persistência de espirros e, preguntando a uma das
damas, explicou ela que o atchim era uma maneira de elas tro-
çarem dos pretos, por se dizer que nunca espirravam. É a pri-
meira vez que encontro explicação —
verdade que seja que bas-
tante extravagante —
a esta costumeira. Por isso a deixo aqui
consignada.
— -244

Nos Livros da Receita e Despesa da Infiandade


encontrei a nota da compra dos sinos. Tendo sido rou-
bados os primitivos, encomendaram dois novos à Fábrica
de Fundição de Júlio Gatti, em 1776, os quais custaram
cento e dezasseis mil Outro sino foi feito por
e tanto.

José' Amado em Apenas um deles, o maior,


1792(1).
é ligeiramente ornamentado cinta inferior lavrada e no
:

dorso três palmas. Os novos sinos foram inaugurados


em i3 de Julho de 1776(2).

No arquivo da ermida encontrei referências a obras


importantes no templo, em 1821 e em 1878. Em 1821
foi quási uma reedificação. Os segundos restauros obri-
garam ermida a estar fechada durante meses.
a
A irmandade tem hoje reduzidos rendimentos. As
casas anexas ao templo e outras que possuía, que
ainda em 1842 renderam 372í5f)Ooo réis, foram vendidas
há cerca de catorze anos.

(i) Livro de Receita e Despesa da Irmandade e Livro dos

Termos de iyj6, pág. 16, no Arquivo da Ermida.


(2) Aqui há anos, um fiscal do Caminho de Ferro, chamado
Ferreira, escondeu no manto da Senhora de Monserrate uma por-
ção de jóias que furtara num comboio a umas senhoras da nossa
primeira sociedade. Preso o criminoso e descuberto o roubo, veio
a provar-se que as jóias eram falsas. Por pouco o ladrão não fica

roubado.
— 245 —

Na ermida, além da festa principal, em dia da Se-


nhora de Agosto, em que a irmandade fazia imponentes
ceremónias religiosas, realizavam-se ainda outras festi-
vidades religiosas e cedia-se o templo aos festeiros
estranhos à casa.
Em 1776 fêz-se aqui uma solene procissão de preces
pelas melhoras de El-Rei. Foi em 28 de Novembro. E
já a 6 de Outubro se tinha festivamente celebrado a
colocação do Sacrário no altar do Santíssimo.
Quando foi do nascimento do Príncipe da Beira, em
1793, os fabricantes de sedas custearam uma solene
missa cantada e Te-Deum, orando, em acção de graças
pelo fausto acontecimento, o Dr. Frei José Maria de
Sant'Ana(i).
Santo António de Noto, hoje mutilado e desampa-
rado de devotos, tinha anualmente a sua festividade, e
aqui vinham também os devotos do Senhor Jesus dos
Aflitos, até 182 1. Neste ano, solicitada pelos mesmos
autorização da irmandade para aí celebrarem a festa
costumada, foi-lhes negada, em razão das turras havidas
com a paróquia de Santa Isabel. Nesse ano venera-'
va-se a imagem em um oratório da rua do Moinho de
Vento (2).
Nasfestas da Semana Santa de 1881 ainda a irman-
dade gastou cerca de 752f)Ooo réis.

(1)Gaveta de Lisboa de 14 de Junho de 1793.


(2)Livro das Conferências da Irmandade, ano de 1821, no
Cartório da Ermida.
— 246 —

Domingo do Espírito Santo, costumava haver festa


e arraial na praça das Amoreiras, o qual durava três
dias e quási todos os anos os devotos doSenhor Jesus
da Agonia vinham aqui festejar a sua imagem e feirar,
revertendo para a irmandade um terço dos rendimentos
gerais que se obtinham. Essa festa e feira realiza-
vam-se no dia da segunda oitava da Páscoa do Espirito
Santo(i).
Foi esta a primitiva feira das Amoreiras, a que se
reuniu mais tarde, engrandecendo-a, o arraiai e feira

dos Prazeres. A multidão que, mesmo antes da reunião


desta, ali afluía, era notável, chegando a ser proibida
em 1837 pelo dano que os festeiros e feirantes faziam
nas amoreiras do Largo, a pesar da tropa que policiava
o local (2) e dos guardas do município que zelavam es-
pecialmente as árvores e se achavam instalados, por
sinal, em uma casa à entrada dos arcos, de que a Câ-
mara pedira o usufruto ao seu proprietário Geraldo
Braamcamp, em 1842(3).
A entrada no Aqueduto das Águas e no Depósito
foi também proibida aos festeiros, emquanto durasse a

feira, no ano de 1837 (4).


Com referência às amoreiras do Largo, peço licença
para abrir um pequeno parêntesis (5).

(i) A Irmandade recebia parte desse rendimento com a cláu-


sula de cuidar e zelar pelas amoreiras do Largo.
(2) Em i8_i4 policiavam-na nove soldados e um cabo.
(3)Sinopse dos Principais Actos Administrativos da Câmara
Municipal, ano de 1842.
(4) Idem, idem, ano de iSBj.
(5) Em 1844 foram aqui plantadas mais 32 amoreiras (Si-
nopse).
-247 —

No Arquivo de Nossa Senhora de Monserrate en-


contrei dois curiosos documentos. Nada menos do que
duas cartas, datadas, respectivamente, de 5 de Junho
de i8o5 e de 3o de Abril de 1807, em que a Princesa
Nossa Senhora, estando em Mafra, rogava à Irmandade
lhe destinasse um quarteirão de amoreiras para os
seus moços de ordens irem lá, todas as manhas, colher
a folha para a criação de bichos que mantinha em Que-
luz. A primeira carta é assinada pelo Conde de Cava^
leiros e a segunda pelo Conde de Peniche (i).
As amoreiras pertenciam à Irmandade. Em 1810
estavam muito reduzidas, razão porque José António
de Sá, Director do Novo Estabelecimento de Fiação e
Torcido de Seda, se dirigiu ao Juiz da Irmandade inqui-
rindo do motivo de tal diminuição. O Juiz, que era o
Desembargador João José Guião, respondeu ao afec-
tado zelo dos Procuradores da Fábrica das Sedas, fa-

zendo-lhe notar que a Irmandade tinha o título de Real,


em termos ásperos e secos.

i
Que teria uma coisa com outra

Por anúncio de 23 de Abril de i85i foi transferida


para o largo das Amoreiras a feira e arraial dos Pra-
zeres, que, no ano anterior, por edital do. 21 de Março,
fora Já mudada, sem resultado, para Campo de Ouri-
que.

(i) A Irmandade também fabricava seda por sua conta. As


despesas com tal fabrico montaram, em 1775, a 131^940 réis.
— 248 —
Saibamos as origens desta romaria, uma das mais
pitorescas e movimentadas de Lisboa.
A lenda diz que, meado o século xvi, aparecera uma
imagem da Senhora sobre uma fonte, razão porque se
ficou a chamar ao local do aparecimento a aFonte
Santa». O Conde da Ilha do Príncipe, que tinha ali
uma casa e quinta, levou a imagem para o seu oratório,
mas ela, miraculosamente, voltou ao local onde apare-
cera e ali se lhe fêz uma capela.
A Senhora disse a uma menina que fosse noticiar
aos pais que lhe chamassem «dos Prazeres» e ali lhe
dessem culto. O Conde da Ilha deu o terreno para o
templo.
A imagem era de alabastro fino, lavrada, pintada e
doirada por diante,e, pelas costas, embranco(i).

Quando da peste de i5g8, escolheu-se a quinta


foi

dos Condes da Ilha para «Casa de Saúde».


Frei Luís de Sousa diz, referindo-se a essa calami-
dade :

« Tanto q se declarou foi primei?'o conselho deputai'


quinta grande e ca{as sobre a ribeira de Alcântara

sitio alto e lavado dos ventos^ para enfermaria dos


feridos»^ etc,

E diz mais : que de 25 de Outubro de iSyS a 8 de


Setembro do ano seguinte, entraram na Casa de Saúde
20.227 atacados, saindo sãos í3.86i. Os restantes mor-
reram (2).
Acabada a epidemia, a Câmara, que tomara por
arrendamento a quinta, em vista dos danos que so-
frera com a utilização, e da perda que houvera do seu
rendimento para o proprietário, convencionou com este

(i) Sumário de Vária História, de Ribeiro Guimarãis, lôm. iii,

pág. 147 a 148.


(2) História de S. Domingos, vol. i, pág. 488.
— 249 —
dar-lhe o juro anual de 2ooíff)ooo réis pela Folha da Fa-
zenda da cidade, aforando-lh'a a seguir pelo foro anual
de 6o;Ty?ooo réis com a natureza de fateusim perpe'tuo,
que só terminaria quando a quinta se tornasse neces-
sária para o mesmo fim. Por morte de Francisco Luís
Carneiro, sucessor do foreiro, obtiveram os seus her-
deiros permissão do Senado para a divisão da proprie-
dade (i). Uma dessas divisões, de que em i833 era
proprietário o Conde de Lumiares, descendente dos
Condes da Ilha (casas nobres arruinadas, cerca, ermida,
etc), é que serviu para nela se instalar o Cemitério
Ocidental, tendo o Governo adquirido o terreno sem
consentimento nem consulta da Câmara, que era a di-
recta senhoria.
Em i835 (Abril) quis a Câmara reivindicar o foro
e laudémio da quinta, terminando a questão em Outu-
bro pelo encargo que lhe foi feito, pelo Governo, da Ins-
pecção dos Cemitérios (2).
A planta do Cemite'rio dos Prazeres foi aprovada,
pela Câmara, em Novembro de i838. Em 1839 ^^^
aprovada a proposta para o arborizar e comprar alfaias
e objectos de culto a-fim-da ermida poder servir nos
actos fúnebres (3). A capela que lá vemos hoje foi

inaugurada em 6 de Novembro de 1869.


Junto à casa dos Condes da Ilha, havia barracaria
abundante, que nos séculos xvii e xviii era conhecida
por Pátio dos Prazeres (4). Em 1625 era um verda-
deiro recolhimento de vadios (5).

(i) Elementos para a História do Município de Lisboa^ vol. i,

pág. 497> vol. u, pág. 525.


(2) Arquivo Municipal e Sinopse dos Principais Actos Admi-
nistrativos, etc.

(3) Arquivo Municipal de Lisboa.


(4) Róis dos Confessados da Freguesia de Santos.
(5) Elementos para a História do Município de Lisboa, vol.ia,
pág. i83, 225 e 226.
— 25o —
Em 1673, no palácio, moraram os Condes, e com
eles mais 19 pessoas; em 1700, Manuel Pereira Cou-
tinho; em 1716, D. Guiomar da Silva; e, em 1768,
outra vez os Lumiares, D. Carlos Carneiro e a Condessa
D. Juliana Xavier (i).
Em 1S17, o palácio estava arruinado. Pertencia à
Condessa D. Maria do Resgate, e o administrador da
casa, Desembargador Giraldes Quelhas, anunciava-o
para arrendar juntamente com uma pedreira e a
quinta (2).

Por causa dessa mesma peste de iSgS, se não foi

de outra anterior, os moradores de Santos fizeram um


voto à Senhora dos Prazeres, de ir em romaria à sua
ermida, para que ela os livrasse de tamanho mal.
Em 1626 o anónimo autor da Descrição Métrica de
Lisboa informa-nos

Logo junto a dos Prazeres


cuja festa se celebra
o dia logo primeiro
(que é) depois da Pascoela,

E neste mesmo lugar


se vê de quem quer que chega
uma Casa de Saúde
o (ou) por melhor de Misérias (3).

A ermida velha ainda lá estava no princípio do sé-


culo passado, apresentando às devoções dos fiéis a ima-
gem da Senhora, que, segundo o Padre Carvalho da

(1) Róis dos Confessados da Freguesia de Santos.


(2) Gaveta de Lisboa de de Setembro de 18 19.
i

(3) Relação em que se trata e faj uma breve descrição, etc.


— 25l —
Costa, ao contrário do que afirma Ribeiro Guimarães,
era de roca e tinha dois palmos de altura (i). Ao prin-
cipiar o século xviii vivia ali um ermitão, sucessor de
outro (Frei Lucas da Ressurreição) religioso eremita de
Santo Agostinho, que ali morreu, sendo sepultado na
própria ermida.
A este templo deixou o cirurgião Amador Alvares,
por seu testamento, um cális que o contraste da cidade
dizia ter 6;2íooo réis de peso e de feitio. Foi entregue
à Câmara por Maria Teixeira e a Câmara mandou-o
entregar ao Tesoureiro da cidade, Agostinho Franco (2).
E é o que sei sobre a Quinta dos Prazeres (3).
Todos os domingos era o sítio da capela muito con-
corrido de devotos, cujo número crescia extraordina-
riamente no domingo e segunda-feira depois da oitava
da Páscoa (4). Lisboa celebrava no arraial a abertura
das sestas e celebrava-o ruidosamente. Dentro da larga
cerca da ermida assentava arraiais a romaria. Todas
as irmandades, clérigos e irmãos do Santíssimo da fre-
guesia de Santos aí iam em procissão, de cruzes alça-
das, cantar uma missa solene na devota ermida (5).
Quando se instalou o Cemitério dos Prazeres na
quinta dos Condes da Ilha, passou a festividade pagã

(1) Corografia Portuguesa^ edição de 1707, terceiro volume,


pág. 53 1 a 532.

(2) Elementos para a História do Mnnicipio de Lisboa, vol. 11,


pág. 426. Assento da Vereação de 29 de Outubro de 1618.
(3) Quanto à história do Cemitério Ocidental, alguma coisa
sei, mas não é esta a oportunidade de o referir. (Apenas deixo con-

signado aqui que, no primeiro lêrço do século xix, os cemitérios


que existiam na capital eram o das Mercês, o do Hospital^ o da
Graça ou dos Padecentes, o dos Soldados, a Campo de Ourique,
e o da Ajuda, no casal de Pedro Teixeira,

(4) Dicionário do Padre Luís Cardoso, vol. 20 Informação do


prior de Santa Isabel, Padre Felisberto Leitão de Carvalho.
(5) Corografia Portuguesa, já citada, pág. 53 a 532. 1
— 252

a fazer-se fora dos muros do campo sagrado. Isto,


como vimos, até i85i. Depois da mudança para as
Amoreiras, continuou o povo a ir ali, seguindo a tra-
dição e desprezando o edital da Câmara. Os folguedos
do arraial começaram, porém, a exceder os limites da
decência. Raro era o ano em que não havia excessos
graves, e os protestos contra a condescendência muni-
cipal principiaram a esboçar-se. Em iSyS, por exem-
plo,houve mosquitos por cordas no arraial. Interveio
a guarda de cavalaria. O povo resistiu e ouviram-se
morras aos soldados, o que deu em resultado prancha-
das abundantes, alguns feridos, muitos desmaios e de-
zassete prisões.
De ano para ano cresciam as desordens e os desa-
catos, até que, em 1893, a autoridade proibiu, de vez
e rigorosamente, a alegre romaria junto dos muros do
Cemitério, hoje substituída pela Quinta de Belas, onde
o Senhor da Serra serve de pretexto a três dias de fo-

lia pagã.

A feira das Amoreiras foi um dos mais populares


e do seu tempo. Nada
característicos divertimentos
que se parecesse com a Feira de Agosto e com o Par-
que Mayer. Muito pior e muito melhor do que elas.
Menos luxuosa mas mais alegre, mais portuguesa, mais
colorida.
Por entre as barracas dos quinquilheiros e das quei-
jadeiras, das quitandas que vendiam bilhas e morin-
gues, testos e pucarinhos de barro, dos pim-pam-puns
numerosos, passeavam imponentes os soldados da po-
lícia, de farda escura, calça branca engomada, com a

mão ameaçadora no punho do terçado de copos ama-


relos.
— 253 —
Eram muitas as barracas de comida onde a sardinha
chiava no azeite loiro e fervente, e imensas as locandas
que vendiam nozes, figos e castanhas do Maranhão.
Só mais tarde apareceram os teatros e as figuras
de sêra, os extraordinários fenómenos e outras rari-
dades que agora abundam.
Ouçamos o delicioso «humorista» JúlioCésar Ma-
chado descrevendo a feira num dos seus impagáveis
folhetins. E êle quem fala.

«Na formosa praça das Amoreiras, que tem a forma


de um quadrilongo, com um chafariz no meio, servido
por aromáticos galegos, estão assentadas as barracas
pela forma seguinte: Entra-se, e no prolongamento da
rua que dá acesso à praça estão colocadas as casas de
pasto, onde se serve o bom peixe frito, saladas, iscas,
mexilhão e outras iguarias de alta fragância. Isto é do
lado do poente.
«Por detrás, e do mesmo lado, estão as barracas
dos arlequins, figuras de cera, ratas-sábias, burro inte-
ligente, etc. e estridentes miásicas, tambores, pífanos
e realejos.

«Do lado do oriente, estão as quinquilharias, brin-


quedos de crianças, presentes para senhoras e outras
preciosidades retrospectivas e da indústria actual.
«No topo da praça (norte), as barracas das queija-
deiras com as apetitosas queijadas de Cintra, licores,
cervejas, neve, gelados onde se reúne o monde élégant,
barraca do Lima a plein chie. Os lados oriental e norte
pertencem bôa sociedade, o ocidente às classes po-
à
pulares e de estômago vasio».
Entre as figuras de cera, diz Luís de Araújo no seu
— 2^4 —
livro CoisasPortuguesas (impresso em 1872), havia os
quadros do Filho Pródigo, coisa verdadeiramente rara.
O primeiro quadro ou grupo representava, à es-
querda, o filho pródigo em pé, toilette de viagem, ves-
tindo galantemente à época, bolsa de viagem a tiracolo,
frack, etc, estendendo o braço para raceber de seu
pai uma carteira com notas de banco. O pai trajava
robe de chambre de seda, chinelas, camisa de cambraia.
Á direita estava o guarda-livros, escrevendo no livro-
-mestre. Ao fundo, uma senhora vestida pelo último
figurino, com cuia e merinaque . . .

Nosegundo grupo, estava o filho pródigo e mais


três com ele, cada um com sua dama, vestidas galan-
temente, sentados todos à roda de uma mesa cheia de
iguarias, flores, cristais, vinhos, etc.
No terceiro grupo, aparecia o filho pródigo vestido
de guardador de porcos no Alentejo, tendo o patrão ao
pé com um ar muito malcriado.
No filho aparecia já encanecido
quarto grupo, o ao ;

fundo via-se o velho ancião de robe de chambre^ ele


esfarrapado e o irmão mais velho, todo chie e com
jóias. E os homens gritavam à porta das barracas:
Agora vão ver os senhores o grande Napoleão,
i
j

a grande Imperatriz, o grande Padre Santo, o grande


Garibaldi, o grande namoro de D. Inês de Castro! !

Dos teatros da feira, foi o dos irmãos Dallots o mais


notável. Carlos Dallot morreu, não há muito (em 6
de Dezembro de 1916). José, o outro irmão, morrera
em Santarém em 1906(1).

(i) Carlos Dallot morreu na Travessa do Guarda-Jóias, à


Ajuda. O seu último teatro, em Lisboa, foi no pátio do Tejôlo.
Deixou viúva D. Maria da Graça Dallot, e órfãos quatro filhos.
— 255 —
j
Que vida a destes dois homens ! Saídos de Ver-
sailles para correr mundo, com uma troiipe de ginastas,
vieram parar a Portugal em mil oitocentos e quarenta
e dois ou três, começando a trabalhar no circo (antiga

praça) do Salitre, a dar saltos mortais, depois no Campo


de Sant'Ana e mais tarde no primeiro Circo Price. Em
1845 estavam no Circo Madrid. Com este partiram, em
totirnée^ para Espanha, de onde passaram a Inglaterra,
voltando novamente, depois, a Portugal que correram
de sul a norte, representando ora o João o Coria-Mar
e o Veterano da Liberdade ora o Ressonar sem Dor-
mir e outras comédias ingénuas, entremeadas com as
habilidades do célebre cavalo elástico a que êle cha-
mava O Mosca e com as graçolas e as truanices do
Joaquim Confeiteiro, o que foi, durante muito tempo,
o palhaço preferido do Teatro Infantil das Amoreiras,
Fazendo a «parada» do Teatro, gritava para o público :

— j
Emeus senhores, é
entrar, entrar ! j
Já está cá
a senhora Marquesa de Viana (i) !

(1) Assim mo garantiram. O sr. Conde de Mafra, meu ilustre


amigo, nas suas Memórias, encantadoras de lêr-se, e que, ainda
bem, foram publicadas, diz a págs. 77, referindo-se à Marquesa de
Viana, que conhecera pobre e alcachinada, acompanhada sempre
pela mulata Dorinda, que ela frequentava de verão a Feira de Be-
lém. Lembra-se de a (em Agosto de 1876) abancada
ter visto
com a mulata na barraca da Lima «das queijadas»
a beber água
nevada, e de ter ouvido o galeguito do botequim, ao som do piano
de manivela, chamar a mesma frase de chamariz: «j Entrem —
minhas senhoras Entrem que já cá está a senhora Marquesa de
1

Viana».
l
Ter-se-ia fixado o «reclamo» como agora se diz ?
O que trata os mortos e os vivos, com uma
ilustre professor
bondade de enternecer desculpando sempre as faltas, as fraquesas
e os ridículos, conta também, dentro do mesmo assunto, que a
elegante, adulada e riquíssima Marquesa vivia então em Pedrou-
ços com duas filhas solteiras, uma das quais costumava dizer que
— -256 —
De feira em feira, de barraca em barraca, foram
parar, há anos, ao Dafundo. Carlos Dallot constituíra
numerosa família, e ela foi depois a sua companhia
teatral. Actrizes e actores eram quási todos do seu
sangue. ;
As
representavam os grandes papéis
filhas
dramáticos, os netos e netas formavam a troupe in-
fantil !

j Pobre Dallot! Por onde pararão hoje, dispersas,


j

as tábuas da tua barraca das Amoreiras

Em i865 fêz-se a feira na Patriarcal Queimada e


em 1866 também. Depois passou novamente para as
Amoreiras. Em 1868 requereram os feirantes para
armar as barracas, não neste sítio, que era acanhado
para o desenvolvimento que a feira estava tomando e
porque não consentiam que se armassem fora do largo,
mas na praça de D. Luís, ao Aterro, ou no largo da
Patriarcal, onde já fora. A Câmara indeferiu-lhes a
petição (i).

Fêz-se a feira no sítio da Torrinha mais tarde, mas


como o local era solitário e arredio, passaram a Be-
lém, depois a Alcântara e depois outra vez à Torri-
nha.
i
Mas que diferença de então ! Se não fosse a Tor-
rinha, os barraqueiros não conheceriam o sítio.

no tempo do pai, fora uma vez tanta gente jantar â quinta em dia
de festa que tiveram de matar um boi, e, como não chegasse
ainda, de matar mais meio.
(i) Resolvido em sessão da Câmara de 27 de Maio de 1868.
— 257

De 1860 a i863 esteve este sítio atravessado de en-


tulhos, junto ao Reservatório, e à entrada da «Légua
da Póvoa» (i).

Em i863, como Já ficou dito, foram substituídas as


amoreiras por olmeiros e oliveiras mudou-se o cha-
;

fariz que estava no meio da praça; ajardinou-se esta.

Nos prédios bairristas levantaram-se andares ; fize-

ram-se palacetes modernos. Tudo mudou ;


!

Tanto é ainda assim o cunho pombalino e o ar fa-


bril da antiga Colónia das Amoreiras, que há-de custar

a tirar-lho.

Uma ligeira vista de olhos pelo bairro:


Alguns dos prédios dos antigos fabricantes ainda
têm a antiga numeração, a tinta azul num azulejo branco.
No prédio n.° 36, na face norte da praça, há um re-
gisto de azulejo, com decoração a azul, representando,
em uma moldura rectangular, um Santo António sobre
um fundo de paisagem onde se vê, à direita, uma ca-

pela. Em baixo, numa cartoiíche:

P. N. A. V. PELAS ALMAS.

Na travessa da Fábrica da Seda, 41-1.°, há uma


igreja do rito Darbisla, denominada Salão Evangélico.
Ali se reúnem os seus adeptos todos os domingos, às
onze horas, para celebrarem a Santa Ceia, havendo à

(i) Arquivo municipal, anos de 1860, pág. 209; ano de 186 1,


pág. 752; ano de i863, pág. iSog.
VOL. IV 17
— 258 —
tarde pregação do Evangelho que se repete às quartas
feiras à mesma hora.
Nesta mesma serventia, tornejando para a antiga
travessa da Légua da Póvoa, fica a Escola de Equi-
tação que foi do meu amigo D. José Manuel da Cunha
e Meneses, há pouco falecido, o qual a herdara de seu
pai, fidalgo da Casa Lumiares, do mesmo nome e ape-
lidos.

Neste arruamento há um bairro operário. Tem um


terreiro à frente, com muro para a travessa.
Das antigas fábricas resta uma oficina de tinturaria
na travessa da Fábrica dos Pentes.

Não quero deixar de mencionar um lindo registo de


azulejos, existente no prédio n."^ 44 a 46 da rua das
Amoreiras.
CompÕe-se de três painéis. Dois ladeando a janela
central do primeiro pavimento, e o terceiro, sob ela,

ligando-se pelos cantos aos primeiros. E interessantís-


sima a sua decoração : — molduras com ornatos amare-
los sobre fundo verde e a pintura central a azul.
Nos painéis de cima estão representadas, em um
a Epifania, com o dístico :

VIRGEM PURA E ESCLARECIDA


SOIS MÃE DO AVTOR DA VIDA.

E no outro a Fuga para o Egito, com o dístico

VIRGEM PURA E IMACVLADA


PELOS ANJOS SOIS GUIADA.
— 259 —
No painel inferior, dentro de uma cartoiíche e entre
as imagens de Santo António e S. Pedro, lê-se :

RVA
NOVA DO PAINEL
DE JESVS M.'* JOSÉ

Este letreiro seria talvez significativo da intenção


do proprietário, de que a rua ficasse com aquela de-
nominação. Isso mesmo se deu, com resultado, em
outras serventias. A travessa do Monte do Carmo foi
assim chamada em razão do registo que ainda hoje lá
está no palacete Sacavém.
Há anos, o proprietário da casa 'ou qualquer seu
mandatário permitiu que se colocasse sobre o registo
a chapa de uma Companhia de Seguros. Recentemente
foi emendada a tolice. O painel, que chegou a nomear
a rua, está de novo livre.

No n.° 38 da rua das Amoreiras morreu, em 7 de


Julho de 1919, o grande dramaturgo Marcelino Mes-
quita.

Houve aqui no sítio, em 1848, um teatro bairrista,


chamado «Recreio Familiar». Os n.°^ 6 e 7 da Re-
vista Teatral desse ano dão noticia de espectáculos,
num dos quais, a 28 de Outubro, se representaram
uma farça e o drama «O Sonho ou o flagelo do Re-
morso». A «Castanheira», célebre farça da época,
também ali subiu à scena. O ensaiador era o actor
do Condes, José António da Silva.
— 26o —

A actual rua das Amoreiras, que vai do Rato até o


Campolide moderno, artéria desigual, forma-se de vá-
rios troços que outrora tiveram diferentes designações.
Apurei as seguintes :

— Azinhaga do Rato para Campolide, em 1730;


— Rua do Rato para Campolide, em 1742 ;

— Rua do Chafari\ de Pau para o Rato, em 1756,


1760, 1764 a 1765, 1768 e 1772 a 1779;
— Rua do Rato para as Aguas-Livres, em 1761 a 1778 ;

— Rua do Rato para a Praça Nova, em 1762 ;

— Rua das Aguas-Livres, ao Rato, em 1769 a 1770,


abaixo ou acima do Carvalhão, em 1771 e 1783 ;

— Rua do Rato até S. João dos Bemcasados, em 1780


— Rua do Arco das Aguas-Livres, em 1797 a 1804;
— Rua do Arco das Águas- Livres e Bemcasados, em
i8o5.

Em 1809 separa-se a tua do Arco das Aguas-Li-


vres da dos Bemcasados.
Aparecem também a rua de Jesus Maria José (do
Arco até S. João) ou travessa, em 1766 a 1759, 1761
a 1764 e 1782.
Em 1760 também se nomeia rua do Chafari^ que
vai de S. João dos Bemcasados, e, em 1786, rua do

Rato até S. João.


Outros locais nomeiam-se separadamente

— A Cova da Onça, aparece de 1772 a 1786;


— Sobre a Muralha, de 1780 a 1796 e Telheiro dos
Pobres, em. 1769;
— Monserrate, de 1786 1796; a
— 201 —
— Aguas-Ltpres, em 1787;
— Barraca do Peixeiro, jimto à Muralha^ em 1804;
— Alto da Casa da Agua, em 8 1 1 1
;

— Alio, ou por Cima, da Muralha, de 1807 a 181 o;


— Pátio da Cova da Onça, em 1844 1845; e
— Junto às Aguas Livres, de 1783 a 1789;
— Junto à Fábrica da Louça, em 1797.
Tudo isto que era escassamente povoado (a rua do
Rato para Campolide tinha, em 1742, só sete fogos)
foi, com o terremoto, inundado de moradores.
Só a quinta do Tavares, que era então de José Xa-
vier Carneiro Zagalo, tinha, em 1869, oitenta e cinco
fogos. Num deles morava o proprietário com os seus
cinco filhos.
Em 1806 e 1807, na rua das Águas-Livres moravam
o Dr. Manuel José de Arriaga, Sebastião José de
Arriaga, a família Metzner, os guarda-damas António
e Francisco Pereira de Miranda
e o Laguar ; e, em
i832, Caetano Alberto Pereira de Azambuja e João
Torcato de Dornelas.
De 1787 1789, numa «abegoaria» junto aos Arcos,
moravam trese galegos. O Telheiro dos Pobres tinha
dez fogos.
Tudo isto era, pois, um aglomerado de barracas,
telheiros e cobertos. A seguir à cerca das Freiras do
Rato ficava a quinta, chamada do Fetal, que se for-
mara de parte dessa propriedade e que tornejava para
S. João dos Bemcasados no onde está hoje o pré-
sítio

dio de um só pavimento fronteiro ao palácio dos Ana-


dias(i).

(1) Róis dos Confessados da Freguesia de S, Mamede, anos


referidos no texto.
— 202 —
A casa mais antiga da rua era a que, subindo, re-
via à esquerda, logo depois do Arco. Ainda iiá pouco
tinha os batentes das janelas de abrir para fora, gi-
rando em gonzos de madeira. Hoje está já moderni-
zada.
CAPITULO XI

Sumário: De Entremuros à rua de Artilharia i —


Variadas desi-
gnações deste local —O «vasadouro» de lyo —
Um concerto
instrumental e vocal numa «casa de pasto» —
Outras quintas
— —
O Páteo do Geraldes Descreve-se a casa actual e o an-
tigo convento dos Oratorianos— A ermida, as imponentes cha-
minés, o palácio e suas dependências — Informação do Padre
Manuel Portal —
Volta-se ao Rato e à quinta de D. Elena —

A invasão dos foragidos da cidade em lySS Uma povoação
de barracas —
Luxo e miséria —Os que habitaram a quinta
de D. Elena —Procissões, penitências e preces —
O pavor
dos terremotos em ij55 e 1756 —O trágico-pitoresco do lo-
cal — As duas quintas dos Padres Queníais —
Os seus mora-
dores ilustres em 1756 —
Barracas opulentas —
Os oratórios
e o culto —Visitas e embaixadas ao Cardial Patriarca aqui
abarracado —
Instalam-se na quinta a Relação Patriarcal e o
Senado da ,Câmara —
E vendida a casa e quinta dos Pa-
dres Quentais —
Compra-as o Desembargador Bartolomeu
José Nunes Cardoso Geraldes de Andrade —
Diz-se quem era
o comprador e fala-se na sua família.

O sítio de Entremuros, nome derivado da próxima


quinta de Entremuros (cliamada depois «do Judeu» e,
mais modernamente «dos Oleados») contava, em 1763,
vime e dois fogos, e compunlia-se não só do arrua-
mento ainda mal delineado, senão das terras próximas,
como a referida quinta «do Judeu», a de Manuel da
Cunha Tavares que lhe ficava ao poente e a dos Pa-
dres Quentais, ou «dos Arciprestes» para o sul.
Em 1768 começou a chamar-se-lhe rua. Em 177
acumulam-se as designações de Arciprestes e Entre-
muros, aplicando-se esta somente ao troço norte da
— 264 —
serventia, e, sete anos depois, opera-se a junção, pas-
sando o arruamento a citar-se com o nome de rua dos
Arciprestes e FMtremiiros para, em 1796, passar a rua
direita dos Arciprestes, em 1806, a estrada de Entre-
muros de Campolide ou rua da Estrada Antiga (i) ou
ainda de Entremuros de Campolide e Arciprestes : de-
pois rua de Entremuros, mais recentemente i^ua de
Silva Carvalho, e, em 191 1, rua de Artilharia 1(2).
A fúria denominadora não ficará por aqui.

Em tempos mais afastados era este um dos sítios


escolhidos pelo Senado da Câmara para «vasadoiro
pijblico» ((no ca?ninho que vai da porta do carro da
:

quinta dos padres do Oratório de S. Filipe Nerj até


sair a Campolider), diziam os vereadores no assento de
18 de Novembro de 171 5 (3).

Ao tempo em que escreveu o Padre Carvalho da


Costa (17 10) haviauma quinta dos Arciprestes, com
uma capelinha (que era então de Salvador Luís) dentro
da área da paróquia dos Anjos, mas não devia ser
esta a propriedade a que o cle'rigo se refere. O nome

(i) Já assim também lhe chamavam em 1790, como se vê dos


Livros do Lançamento da Décima desse ano.
Resolução municipal, numa das sessões de Agosto de igi i.
(2)
Os nomes restantes citam-se no Róis dos Confessados da freguesia
de S. Mamede e de Santa Isabel.
(3) Elementos para a História do Municipio de Lisboa, t. ix,
pág. 116.
— 265 —
de Arciprestes derivou-se de dois ciprestes que ladia-
vam a porta de entrada na estrada de Entremuros (i).

Depois chamou-se dos Qiientais e hoje do Geraldes {2).


Em 1758 chamavam-lhe Quinta de Entremuros, nos
assentos paroquiais de S. Sebastião da Pedreira.

Um anúncio da Gazeia de Lisboa de 1787, dá-nos,


sobre este local uma divertida e substancial noticia.
Ei-la:
« Efn uma quinta em que ha pouco se estabeleceu
uma casa de pasto na rua dos Arciprestes^ onde cha-
mam as Amoreiras^ para cima das Aguas Lipres, ha-
verá d noite um grande concerto instrumental evocai.
Todos os passeios estarão iluminados e se acharão ali
vários refrescos e diferentes qualidades de Jiambres.
A primeira noite d'este divertimento, será amanhã, 4
do corrente (Agosto 1787), principiará ás 7 horas e
acabará ás 11 e continuará nos sábados e segundas-
feiras. Pessoas de capote ou com libré não serão
admitidas {3).
O suplemento da Gaveta de 4 de Agosto, noticia
ter sido adiada a festa, para quando se anunciasse no-
vamente.
Parece ter falhado a tentativa. Se chegou a dar
espectáculos, foram poucos. Ainda vinham longe os

(i) Descrição do Padre Manuel Portal intitulada História da


Ruína, etc, transcrita a pág. 720 e 721 da obra do falecido geó-
logo e investigador Francisco Luís Pereira de Sousa.
(2) Corografia do Padre António Carvalho da Costa, t. ni,

freguesia dos Anjos.


(3) Suplemento à Gas[eia de Lisboa de 3 de Agosto de 1787.
— 266 —
tempos da Floresta Egípcia e do Tivoli da Flor da
Murta.
Esta quinta devia ser a antiga propriedade de Ma-
nuel da Cunha Tavares que, em 1766, era coniiecida
pelo nome de Casal do Tarares, depois pelo de Casal
Novo e posteriormente pelo de Casal ou Quinta do
Mineiro. Nela moraram, sucessivamente, desde 1867
a 1876, os Condes de Penamacor, Eduard Warburgo,
Jorge Torlades 0'Neill e os Barões de Almeida (i).

Do lado direito da rua de Entremuros, ao fundo de


um caminho que se abre em frente da travessa da Fá-
brica dos Pentes, fica o Páteo do Geraldes. Dentro do
páteo —a fachada principal voltada ao poente —o pa-
lácio.
Entremos no terreiro. Eu digo ao leitor o que se
via há poucos anos ainda. A casa dos Geraldes, sacri-
ficada ao desenvolvimento urbano vai-se derruindo aos
poucos. As altas chamine's cónicas que eram tanto da
fisionomia do sitio, já lá foram ; o resto irá indo. Um
renque de nove janelas enfrenta a entrada a que se
chegava entrando pelo caminho a que me referi aberto
na meia-laranja decorada nos extremos, antigamente,
no do muro, por duas esferas de pedra que caíram
alto
com o terremoto. A janela do centro é de sacada, so-
bre o portão de cantaria e ao alto fica o brazão do Ge-
raldes que substituiu o dos Congregados do Oratório.
A direita fica a capela, com uma porta, janelão do coro
por cima, frontão estreito e arco de sineira, sendo o
páteo, fechado por este lado por um muro que vai do

(i) É a quinta cuja casa tem hoje o número ii5 de policia.


— 267 —
templo às cocheiras, as quais formam, a um dos lados
do porrão o corpo poente do páteo. A ermida era de
abóbada de estuque, e tinha as paredes azulejadas,
coro, dois altares de telha doirada no corpo um de
Santo António, à direita, e outro de Nossa Senhora à
esquerda. O altar-mor, também de talha, fora feito
pelo Padre José Pinto. Na pequena, havia,
sacristia,
encaixilhado, um painel de Nossa Senhora da Sole-
dade. A ermida servia há pouco tempo de arrecadação
de mobília. As imagens, alfaias e azulejos foram para
uma capela aldeã, dos seus proprietários, cerca da
Anadia. Esta informação deu-ma aqui há dez ou doze
anos, a caseira que ali residia há muito tempo.
Do lado norte do páteo era o lagar, depois estábulo
de vacas. Está tudo arruinado. No terreiro passseia-
vam, ainda há pouco, vacas e galinhas, e estacionavam
carruagens e carroças.
No páteo interior ou saguão, vê-se na parede fron-
teira à entrada, isoladona empena, um relógio de sol.
Sobre um alpendre de madeira, apainelado, a cair de
podre, vêem-se de novo as armas dos Geraldes. Ante-
riormente o brazão dos Congregados ficava na empena
fronteira ao corredor de acesso ao páteo entre ornatos
de estuques coloridos, sendo colorido também esse la-
vor heráldico.
Não conheci o palácio interiormente. O Padre Ma-
nuel Portal, transcrito pelo falecido engenheiro Pereira
de Sousa na sua monumental obra O Terremoto de
JjSS, a cuja descrição tenho ido roubando tudo o que
diz respeito a residência dos Oratorianos antes de ser
transformada em palácio fidalgo, faz um relato curioso
de todo o edifício. A escada de acesso ao primeiro
pavimento era azulejada assim como um corredor que
se lhe seguia. Lá dentro, no primeiro pavimento, ha-
via refeitório e ante-refeitório, barbearia, uma casa
— 268 —
chamada Casa Grande», de abóbada, que comunicava
a

com uma varanda de pedra para onde dava também o


refeitório que era guarnecido de azulejos. A varanda
tinha grades de ferro, firmados em pilares de mármore
da Arrábida, poiais e azulejos com a vida de S. Filipe
Néri. Numa das paredes via-se um revestimento cerâ-
mico completo e nele pintado uma imagem de Nossa
Senhora do Rosário. Jasmineiros envolviam as grades.
No pavimento de cima, servidos pela escada azule-
jada, com tecto de estuque, onde se via um painel de
S. Lourenço, eram os cubículos (vinte e dois) de pa-
redes e tectos engessados, pintados pelo tal Padre José

Pinto. A roda dos corredores estava a Via-Sacra, em


painéis mandados vir de Roma pelo referido clérigo.
Numa casa grande instalava-se o jogo do «truque do
taco» (bilhar), e noutra uma suficiente livraria. Acho
delicioso este suficiente.
O uma fenda na parede da parte
terremoto abriu
do páteo e caíram algumas pedras do cunhal que iam
matando o atafoneiro que estava a dar de beber às
bestas. Alguns cubículos ficaram arruinados. Os livros
caíram das estantes ao chão. A parede da «casa do
taco» aluiu também e ficou em risco de desabar. A
ermida como a sacristia, a casa grande e o Refeitório,
também sofreram danos consideráveis.
Eugénio dos Santos de Carvalho foi ver os estragos
no palácio e disse que era necessário apeá-lo quási todo,
embora se pudesse remediar com «linhas de ferro».
A-pesar-disso os Congregados do Oratório foi aqui que
se recolheram fugidos do convento do Santo Espírito
da Pedreira, abarracando-se no terreiro e na quinta.
O celeiro que ladeia o páteo pelo norte, está uma
ruína de há muito para cá. No cunhal que olha para
a Penitenciária via-se, há pouco ainda, o rombo feito
por uma granada na manhã de 4 de Outubro. Para o
— 269 —
lado do Parque Eduardo VII, onde se acastelavam as
barracas da Feira de Agosto e se vai esboçando
hoje
o Parque, ficava o largo terraço aque o Padre Manuel
Portal se referia, o Pombal, e as duas enormes chami-
nés que solenemente esperaram tanto tempo o camar-
telo municipal. Todo o palácio está condenado. A
cidade moderna esmagou-o, para passar.

A págs. 383 do terceiro volume escrevi a propósito


da moderna «Praça do Brasil» :

«Depois de 1755 desabou sobre o Rato uma ava-


lanche de foragidos».
Cabe-me agora aqui acrescentar mais algumas notas
elucidativas sobre essa invasão que alastrou por todo
este arrabalde.
Diz-nos o Padre Portal, abençoadamente loquás ;

que aqui se armou logo um mercado de ortaliças, fru-


tas e todos os demais comestíveis, abriram-se dois açou-
gues, lojas numerosas de todo o género de comércio,
mercadores, capelistas, ourives, tudo em tendas e bar-
racas improvisadas, estendendo-se pela rua da Fábrica
das Sedas fora, da cerca dos jesuítas até ao Noviciado
(como quem diz, do chafariz do Rato até à Faculdade
de Ciências) alastrando ainda até o campo da Cotovia
(praça do Rio de Janeiro). Era como que uma rua de
acampamento. Pela actual rua do Sol acima, o mesmo.
Chamavam-lhe, então, «estrada do Rato para a Boa-
-Morte».
Aí chegaram a haver barracas luxuosas. A do Mar-
quês do Louriçal era quási um palácio. Custara di- —
zia-se — trinta ou quarenta mil cruzados, A do «De-
sembargo do Paço», feita de tabique era toda pintada
— 270 —
com gi^ande acêo e perfeição, e a da «Mesa da Cons-
ciência» era \asia, fabricada com bela ideia e de muito
mellior cómodo do que tinha dantes. As lojas também
aqui não faltavam, em correnteza pela serventia acima.
Parecia até que havia rnais mercadores do que antes
do primeiro de Novembro.
A miséria dos primeiros dias sucedera, a pouco e
pouco, uma estranha e nova erupção de luxo. Er-
guiam-se barracas sumptuosas com panos de raz e te-
cidos caros, de mais de um pavimento e com adornos
exteriores ; os vestidos lustravam-se de galas e atavios;
estadeavam-se coches; as mulheres cobriam-se de sedas
e de jóias. Os mercadores, que só vendiam a dinheiro,
encheram-se e os novos direitos pagavam-se na Alfân-
dega como se a tremenda calamidade não tivesse asso-
lado a cidade. Os mendigos que por coisa alguma
terem foram os únicos que coisa alguma tinham per-
dido, infestavam todo este subiárbio com lamentações,
fazendo o seu estendal de misérias. Este espectáculo
e o das constantes procissões de penitência em seguida
aos, também, constantes abalos, é que perturbavam
esse ambiente de luxo desafiante. Foram imensos esses
cortejos de desagravo que seriam risíveis pela exibição
dos penitentes se não se representassem dentro de uma
atmosfera de tragédia, feita de espíritos apavorados
pelas profecias e pelo receio da ira divina. Os jejuns,
as confissões e as penitências, disciplinadas pelas pas-
torais do Cardial Patriarca D. José Manuel, tinham
entrado na agenda da população de Lisboa.
Vinte e cinco mil dos seus habitantes viviam então
na nova paróquia de Santa Isabel.
— 271 —

Um dos locais escolhidos pelos fugitivos das ruínas


fumegantes, fora, neste sítio, a quinta de D. Elena a
que já me referi. Ficava esta propriedade ao norte do
actual largo entre a antiga «calçada da Fábrica de
Louça» e o primeiro troço da rua de Alexandre Her-
culano, alargando para cima até entestar com a quinta
dos padres do Oratório, deixando para o poente a de
Manuel da Cunha Tavares e para o nascente a azi-

nhaga de Vale de Pereiro. O limite sul formava-lho o


Salitre ate' esta azinhaga. A esse tempo já pertencia,
como vimos, aos Oratorianos, e projectava-se cortá-la
por uma rua que fosse do Rato ter à entrada da quinta
dos do Oratório a que davam o nome de «quinta dos
Ciprestes» ou «dos Arciprestes» à conta de duas destas
árvores que ladeavam, fazendo sentinela, a referida en-
trada. A planta estava feita, El-Rei já dera a indis-
pensável licença e os Quentais pensavam no negócio
dos aforamentos. Com o terremoto e a invasão, todos
os projectos caíram por terra. Os espavoridos lisboe-
tas,invadindo-a, na ânsia da instalação provisória, der-
rubaram-lhe os muros de pedra solta que a cercavam
e vá de aproveitar para lume e construção as cepas e
o tronco das oliveiras.
A quinta era só plantada de vinha e olival. Em
vista disto os oratorianos resolveram arrancar tudo,
roçar o terreno, trocando o rendimento agrícola pelos
possíveis aluguéis e futuros aforamentos. Nos princí-
pios de 1756 subia a duzentos o niímero das barracas
de pano e tabique que infestavam a quinta, havendo

algumas de sobrado e lojas.


Os que ali se abrigavam eram gente miúda, em ge-
ral, avultando as barracas do beneficiado António da
— 272 —
Costa Couto, de João Viegas Machado e de José dos
Reis e Silva. Os religiosos franciscanos, a Ordem
Terceira e o Hospício da Terra Santa, tambe'm aqui se
albergaram. O alto de S. Francisco, ainda hoje no
nome de uma travessa do bairro das Amoreiras, reme-
mora essa estadia. Ê a «travessa de S. Francisco de
Sales» chamada anteriormente «dos Arciprestes».
Até Janeiro os oratorianos quantia alguma exigi-
giram aos povoadores da quinta depois começaram a ;

com obrigação de despejo


fazer contratos provisórios,
por ocasião dos aforamentos quando a nova rua se ras-
gasse.
Durante esse calamitoso período da vida lisboeta,
este espaçado arrabalde do Rato foi teatro de infinitos
espectáculos. Não bastava o movimento derivado da
deslocação para paragens de muitos Tribunais (a
tais
«Relação Patriarcal» estava na Fábrica das Sedas e o
«Senado da Câmara» esteve na quinta dos Qucntais);
não bastava a vinda para a barracaria do Vale de Pe-
reiro do regimento de Olivença, ainda havia quási dia-
riamente as procissões de penitência, missas, sermões
e outros actos religiosos. Na quinta de D. Elena fa-

zia-se uma via-sacra em derredor da propriedade, com


estações junto às cruzes que se arvoravam em várias
barracas, e nela ia sempre um religioso franciscano,
imitando Cristo com um pesado madeiro às costas.
Estas penitências eram espectáculo de todas as ho-
ras. Os
franciscanos aqui abarracados davam cons-
tantes exemplos de disciplinas e de mortificações.
As procissões não paravam de organizar-se. Em
Setembro de 1756 amiudaram-se com a vinda de novos
abalos. Em 21 desse mesmo mês saiu uma da igreja
do Rato. Já o Comissário dos Terceiros de S. Fran-
cisco, que ia descalço, com cadeias aos pés e amar-
rado com cordas, estava em Santa Isabel e ainda a
— 273 —
cauda do préstito, por S. Bento abaixo, estava no Poço
dos Negros. Prègaram-se quatro sermões em sítios
diferentes. Muitos dos penitentes iam com cadeias,
cordas e pesos aos ombros.
Em 24 saiu outra procissão dos franciscanos da
quinta de D. Elena. O Dr. Melgaço ia descalço, com
uma Outros levavam cru-
coroa de cordas na cabeça.
zes às costas e pesadas pedras. No dia 29 saiu do con-
vento do Rato novo préstito de penitência. O Comis-
sário dos Terceiros de S. Domingos, no meio do povo
que gritava e chorava ia, também, amarrado com cor-
das e grilhões, uma corda à cinta que um preto segu-
rava como se o levasse preso, e uma coroa de silvas
na cabeça. A rua de S. Bento alastrava de gente e os
sermões foram constantes.
A procissão de Nossa Senhora Mãi dos Homens,
na ermida de Vale do Pereiro, realizada em 10 de Ou-
tubro, formou-se e seguiu o seu termo debaixo de chuva
torrencial. A fé crescia com o pavor. Quando a i3 de
Outubro um furacão passou pela Ribeira de Alcântara,
o povo julgou que era o fim do mundo. Bastava o
grito de um desmaio, uma borborinha insignificante
para o pânico se estabelecer, como no dia 17 de Outu-
bro, sucedeu em S. Roque.
O abalo que se sentiu na noite de 25, foi uma tra-
gédia neste recanto da cidade, cheio de abarracados e
de apavorados.
A quinta de D. Elena (a que em 1787 se chamava de
D. André (i\ e de Dentro pelos oratorianos), a quinta
grande de fora, o casal do Pay Silva, ao norte desta
onde estava abarracado o regimento da Armada, eram

(i) Livro gzS de Avisos da Junta da Administração das Fá-


bricas do Reino e obras das Aguas-Livres —
Aviso de ig de Abril
de 1787.
VOL. IV 18
— 274 —
um mar de barracas, nova cidade improvisada que cus-
tou a ter fim.

Segundo a indicação do padre oratoriano Manuel


Portal a propriedade dividia-se em quinta de fora mais
^

vasta, formada de algumas colinas e vales, e a í/e den-


tro, mais plana, que uma tinha porta para o caminho de
Santa Marta e outra para o dos Ciprestes, que é actual
entrada do pátio do Geraldes. Muitos dos eclesiásti-
cos que estiveram primitivamente na de fora, passa-
ram para a de dentro que tinha água e era mais có-
moda.
O Cardial Patriarca, D. José Manuel, escapara ao
terremoto no palácio dos Nizas onde habitava. Sobre
a cama onde estava caiu parte de uma parede. Seis
criados morreram na derrocada da casa. Quando che-
gou a esta quinta, vinha numa cadeirinha, muito com-
balido do abalo que sofrera. Instalou-se numa barraca
qualquer. Só depois é que passou para a quinta de
dentro para uma barraca grande de madeira com um
oratório atinente. A barraca forrara-se de panos de
arras, como a dos condes de Aveiras e as das Mar-
quesas de Niza e de Tancos que aqui estiveram reco-
lhidas. Havia outras barracas para os criados do Pa-
triarca, capelães e para a Relação Patriarcal. Em bar-
racas de campanha estiveram sempre o Principal Faro
e o Conde de Aveiras, filho. A barraca de D. Tereza
de Meneses, também era armada de panos de arras e
tinha vidraças e havia nela copa, cozinha, quartos, etc.
Outras havia ainda na quinta de dentro, como a do
Padre Inácio Baleia que depois se mudou para a quinta
de D. Elena.
Na quinta de fora estiveram abarracadas as freiras
— 275 —
do Rato que depois se passaram para a de dentro^ ten-
do-se erguido uma barraca para as quarenta foragidas
e noutra edificação de madeira estavam os Quentais,
tendo erguido também um oratório, com o painel da
Senliora da Soledade que estava na sacristia do seu
convento, na banqueta um Cristo crucificado que ali
fora pôr uma noite a sr.* D. Tereza de Meneses, e as
imagens de Santo António, S. Filipe Néri, Nossa Se-
nhora da Assunção e Senhora Sant'Ana. Ali estive-
ram oito meses os oratorianos, passando então para o
convento indo instalar-se, de princípio, na adega, jul-
gada sítio mais seguro.
Neste oratório da quinta de dentro realizaram-se nu-
merosas cerimónias cultuais. As missas, preces, prá-
ticas, sermões, confissões, eram constantes. Uma vez
que estava pregando o célebre Padre Teodoro de Al-
meida, deu-se um abalo de terra. O Padre Alberto
dos Reis, o carmelita Frei Salvador, o Padre Inácio
Baleia, e outros, pregaram também várias vezes A
festa da Senhora das Dores fêz-se com grande luzi-

mento, armando-se o oratório de veludos e damascos


vermelhos franjados de oiro.
No oratório-barraca do Cardial Patriarca, para onde
o prelado tinhauma tribuna de vidraças, fêz-se a festa
de S. José, no seu dia. Estava armada de telas de
oiro e prata. OReverendo Padre Francisco Manuel,
irmão do Cardial, cantou missa. Vieram os miísicos
da capela do Paço de Santo Antão do Tojal cantaram
;

a Marquesa de Niza e D. Luísa de Meneses, e houve, à


tarde, um Té-Deum. No mesmo oratório rezavam-se,
o Terço e a Ladainha.
As freiras do Rato festejaram, na sua barraca, o
Patriarca trino S. João da Mata. A Marquesa de Tan-
cos, também nela festejou S. Sebastião, cuja imagem
se recobriu de jóias. Armou-se ricamente o oratório e
— 276 —
pregou o carmelita Frei Salvador, tendo assistido o Pa-
triarca e muitos fidalgos. As freiras do Rato, em 6 de
Setembro foram para o seu mosteiro, ainda arruinado,
conduzindo-se, a-pesar-de ser tão perto, nas carruagens
do Patriarca. Recolheram menos duas que faleceram
na barraca e foram a enterrar ao convento.
Também em Setembro de 1756, a Relação Patriar-
cal semudou para a rua da Atalaia, juntamente com a
«Câmara» que estava noutra barraca fora da quinta.
Nas barracas onde viviam, nasceu uma filha à Mar-
quesa de Niza que foi baptisada pelo Cardial D. José
Manuel no seu oratório, e faleceu em 25 de Outubro
uma filha do Conde de Aveiras, depositando o cadá-
ver, que foi a enterrar ao convento de Jesus, no ora-
tório dosCongregados.
A D.José Manuel, animava o local.
estadia aqui de
Era o Marquês de Baxi, embaixador de França, que
veio duas vezes, e de uma com a embaixatriz, cumpri-
mentar e tratar com o prelado; era o Conde de Oei-
ras, o grande Sebastião José, que a toda a parte ia

eram os embaixadores de Castela, conde de Aranda e


conde de Macedo e Taboada, o primeiro dos quais
morara no palácio dos Aveiros a S. Sebastião da Pe-
dreira que ardeu quando lá estava, e o segundo, numa
barraca junto à mesma casa incendiada e derruída, era
o sobrinho do Cardial Cursini que vinha trazer a um
prelado nosso, o barrete de cardial era o novo Car-
;

dial Saldanha e eram os novos mitrados que vinham


;

fazer a colação e receber a profissão da fé.


Um ar de festa, havia, pois, de quando em quando,
nestas paragens. Quando foi da elevação ao cardina-
lato do Principal Saldanha, puseram luminárias em
todas as barracas, três noites consecutivas.
O Cardial D. José Manuel, que tinha alugado na
Junqueira o palácio de Diogo de Mendonça Corte Real,
— 277 —
que fora Secretário de Estado, deixou a barraca da
quinta dos Quentais em 8 de Novembro de 1756.
A pouco e pouco o sítio foi-se abandonando. A po-
pulação aquietava-se. Hoje não resta desse exôdo, se
não a lembrança do indisciplinado bairro, agitado de
gritos medrosos, de ladainhas e orações, e de procis-
sões de penitência.
O convento dos Quentais, pouco depois dos aconte-
cimentos que referimos, mudou de dono e de nome.

À roda de 1775 foi o casarão e a quinta dos Arci-


prestes, vendidos pelos padres do Oratório. Tudo leva
a crer que o comprador fosse o Desembargador Barto-
lomeu José Nunes Cardoso Geraldes de Andrade.
Fêz-lhe obras importantes. Rasgou as janelas con-
ventuais, alindou as fachadas, retocou e concertou os
interiores. O brazão religioso da Ordem foi substi-

tuído pelo leão heráldico dos Geraldes, a ermida re-


conslruiu-se e, em 1779, já lá se achava residindo o
Desembargador e sua família, com trinta e seis criadps
e escravos (i).
Saibamos quem era o novo proprietário.

Os Geraldes eram gente limpa e fidalga que deu


magistrados à Rainha D. Maria I, sujeitos estes que

foram escolhidos, com outros, para rever o famoso pro-

(i) Nos anos de 1777 e 1778, morava toda a família Geraldes

na rua da Cruz dos Poiais (Rol dos Confessados).


cesso dos Távoras. Remontavam deste modo a sua
ascendência.
Fernando Afonso Geraldes, licenciado em leis, ca-
sara com Mécia Afonso e tivera a Bartolomeu Nunes
Cardoso. Este consorciou-se com Catarina Nunes Moa-
cha (filha de Gonçalo Vaz Nunes e de Catarina Afonso)
e foram pais de Fernando (ou Fernão) Afonso Geral-

des de Andrade, Desembargador da Casa da Suplica-


ção, Conselheiro da Fazenda, Cavaleiro de Cristo, Fi-
dalgo da Casa Real e Familiar do Santo Ofício (i).

Morou este Desembargador em Idanha-a-Nova e alú


casou com uma sua prima direita, D. Brites Maria de
Andrade e Couto, filha do Capitao-mor da Idanha Fran-
cisco Marques Geraldes e de sua mulher Francisca Nu-
nes Moacha. O Capitão-mor era filho de outro Fran-
cisco Marques Geraldes e de Maria Nunes, e neto de
Manuel Marques Geraldes e de Maria Nunes de An-
drade, descendente (dizem) dos Andrades Calvos, de
Monsanto.
De Fernando Afonso Alves de Andrade e de Brites
Maria de Andrade, nasceram, entre outros, quatro
filhos Francisco António Marques Geraldes que mor-
:

reu sendo deputado do Santo Ofício (2) deixando viúva


D. Francisca de Paula Ximenes Bartolomeu José Nu-
;

nes Cardoso Geraldes de Andrade, Desembargador da


Casa da Suplicação, Fidalgo da Casa Real e Familiar
do Santo Ofício (3) Fernando Afonso Geraldes de
;

Andrade, também Desembargador e José Francisco ;

Marques Geraldes que foi militar.

(i) Processo 4-69 — Carta de 6 de Maio de lyiS. Torre do


Tombo.
(2) /ie»z, 91-1556 de Franciscos.

(3) Idem, 5-94 de Bartolomeus — Carta de 3 de Outubro de


1754.
— 279 —

Bartolomeu Geraldes casou, em 1768(1) com D. Inês


de Vera Barba de Meneses, de Leiria, filha de Gonçalo
Barba Alardo e de D. Ana Joaquina Lourença de Car-
valho e Meneses, de Guimarães, da casa dos Senhores
de Abadines e Negrelos. Seu avô paterno era o dis-
tinto fidalgo leiriense Luís Barba Correia Alardo.
Do casamento do Desembargador com D. Inês de
Vera, nasceram vários filhos: Fernando Afonso, Gon-
çalo Afonso, Bartolomeu Jacinto, Francisco António e
Maria José. Os Róis dos Confessados apenas mencio-
nam estes.
Tais eram os proprietários da notável residência de
Entremuros, cuja história vamos continuar no capítulo
seguinte.

(i) Processo 5-94. — A habilitação da noiva para o casamento


tem a data de 21 de Junho de 1768.
( 2So a)
CAPITULO XII

Sumário: CompÕe-se a lista dos moradores do Palácio dos Ge-


raldes —
Uma reclamação da proprietária da quinta Conti- —
nua a história da casa —As reuniões de Miguel do Canto —
Mora no «Geraldes» o Marechal Duque de Saldanha— Os seus
serões —D. António da Costa, descreve o 19 de Maio Os —
últimos inquilinos — Notáveis moradores de Entremuros —
Os Palácios Balsemão — Costa e Silva e outros e a «Casa de
Saúde» — Mais gente notável — O leilão do Conde de Rhode
— O Quartel de Artilharia — O achado de um brazão — Pro-
mete-se estudar logo o assunto — A casa e quinta do Guarda-
-mor — O casal Monte-Almeida e as quintas que o formaram
— Os comícios da Torrinha a oFeira de Agosto» — A céle-
e
bre questão do Parque Eduardo VII — Esboça-se o seu início
e desiste-se de contá-la — As obras do Parque, o de Outu-
5

bro... e o resto — O «Sebastianismo» dos lisboetas — As


obras actuaip, os pavilhões, o lago e a «Estufa fria» — O ódio
à árvore.

O palácio nascido do cenóbio campesino dos Ora-


torianos, passou então, a pouco e pouco, a chamar-se
«do Geraldes».
Em 1780 encontro lá como hóspeda D. Ana Joa-
quina de Vilhena e lá permaneceu seis anos, e, em
1788 residia lá também, Luís Barba Alardo de Pina,
cunhado do Desembargador (i).
Falecido Bartolomeu Geraldes em 1789, a viúva
continuou a residir no palácio com a restante família,

(i) Róis dos Confessados da Freguesia de S. Mamede, anos


citados.
— 282 —
embora de i8o5 por diante estivesse instalada, apenas,
em parte do grande edifício.
Em iSio, diz o Livro da Décima^ estavam devolu-
tas as duas lojas e quatro andares cu quartos. Tinham
então os n.°^ 79 a 8i. A parte do palácio com os
n."^ 82 a 85 era a que habitava a viúva, com três cria-
dos e uma besta. Estava avaliada em 294^15060 re'is.
A casa pagava, ao todo, de foro i^i^o réis, a Má- i

ximo de Melo, ao Hospital de S. Lázaro e aos frades


Lóios (i). Da parle rústica da propriedade sei o se-
guinte :

EmJunho de 1799, D. Inês de Vera representou,


perante o Conselho da Fazenda do Colégio dos No-
bres, que estava sendo vítima de contínuas desordens
e incursões da soldadesca na sua quinta. Enchiam-lha
de entulhos, serviam-se da água do seu poço, e nao
contentes até a esbulhavam apossando-se de terrenos,
como fora em 1784 para continuarem o quartel do
Vale do Pereiro e em 1798 para alargamento do mesmo.
Pedia, pois, ao Colégio que, em compensação de tais
prejuízos, lhe cedesse o casal chamado Quinta Cor-
tada^ pelo facto de o ser pela estrada nova de Vale do
Pereiro. Foi-lhe deferida a pretenção por decreto de
25 do mesmo m.ês e ano (2).

Em parte do palácio esteve instalada de i8i3 a


18180 Colégio de Nossa Senhora da Conceição, de que

(i) Livro do Lançamento e Superintendência da Décima da


Freguesia de Santa Isabel, ano de i8io.
(2) Livro do Conselho da Fa3[enda do Colégio dos Nobres , na
Torre do Tombo.
— 283 -
era reitor o Padre Nicolau de Sousa Ferreira Tolen-
tino que em 1802 vejo nomeado Capelão do Regimento
de Cavalaria de Évora (i), e vice-reitor Francisco Pe-
reira Homem. Um
anúncio da Gaveta de 10 de Agosto
de 1804 elucida que este estabelecimento «dava educa-
ção cristã e civil, por um plano de economia, à moci-
dade portuguesa», sendo a mesada de i6íí)Ooo réis.
Mais tarde anunciou que era de 122/5800 réis. Neste
ano, ao que parece, estava instalada noutra casa da
mesma rua. Mudouse depois para S. Sebastião da
Pedreira, e em Dezembro de 1825 tornou a vir para
Eniremuros(2).
Em 181 5 tinha 3i alunos, tudo gente de boas famílias.
Entre eles vejo mencionados nos Róis dos Confes-
sados alguns que se notabilizaram, como João Carlos
de Oliveira Pimentel e Nuno José Severo de Mendonça.
D. António do Carmo Barba de Meneses e Bartolomeu
Geraldes, filhos-famílias que também ali estudaram.
Em 1817 realizou-se no Colégio uma festa à Ima-
culada Conceição, padroeira da casa. Foram prega-
dores, os padres João dos Santos F^erreira e António
do Espírito Santo (3). Em 1819, mudou-se o Colégio,
outra vez, para nova casa na mesma rua (4).

Até 1823 esteve parte da casa devoluta. Nesse ano


foi habitar o palácio D. José Sebastião de Saldanha e

(i) Gaveta de Lisboa de 16 de Abril de 1802.


(2) Idem^ de 26 de Junho de 1820, 10 de Setembro de i8to,
n." 3oo de 1825 e 3i de Julho de i8i3.
(3) Idem, de 21 de Agosto de 1817 —
Anúncio.
(4) Rol dos Confessados da Freguesia de Santa Isabel, anos
referidos.
— 284 —
Daun com sua mulher D. Leonor Manuel de Vilhena
e numerosa prole. Em i83i, já viúva D. Leonor, ha-
bitava-o com os seus onze filhos. De 1829 a i83i tam-
bém aí residiu D. António Manuel de Vilhena e, neste
último ano, a Condessa da Louza, D. Francisca.
Já em 1817, habitara parte do casarão, outro Vi-
lhena, D. Salvador Manuel, senhor de Pancas, que
pagava, por sinal, 45o;Sí>ooo réis de renda. A quinta
andava então arrendada a um tal Marçal José', pela
décima parte desta quantia (1).

Em 3 de Agosto de i83i, vem anunciada no Z)íano


do Governo a venda, em hasta pública, de toda a pro-
priedade, e, em i836, aparece este novo anúncio:
« Quem qiii^^er arrendar por um ou tnais annos toda
a casa nobre da quinta dos Arciprestes ou do Geraldes,
adiante da casa dos GirÔes ao Rato, compostas de ca-
sas altas e baixas, com óptimas acomodações, ermida,
bons paíeos, cocheiras, cavalariça, palheiro, grandes
co^^inhas, dois bons quintais e agua ao pé, fale com
Theotonio da Costa, na rua da Alegria» (2).

Arrendou a casa o Marquês de Penalva, mas tam-


bém pouco se demorou lá. Em 1841 vejo um novo
anúncio pedindo inquilino (3).

(i) Livros do Lançamento da Décima, anos de iSzS a 1834.


(2) Anúncio n.° 78, do Diário de 2 de Abril de i836. No Pe-

riódico dos Pobres de 8 de Abril de i835, anuncia-se também o


arrendamento deste palácio.
(3) Anúncio n.° 11, do Diário de 23 de Novembro de 1841.
2»D —

João José Vaz Preto Geraldes e sua mulher D. Joana


Carlota Geraldes de Bourbon, estiveram morando no
seu palácio, da Páscoa de 1844 ^ de 1845, voltando
outra vez a ser mencionados em 1848. Nesse inter-
regno de três anos foram os inquilinos, D. Isabel "da
Silva Ataíde, viúva do Fidalgo do Canto, com os seus
filhos Miguel e Miguel do Canto, falecida
Francisco.
sua mãe continuou a residir no palácio e
aí deu ani-

madas reuniões de palestra onde iam habitualmente


Garrett, Carlos Bento da Silva, José Estêvam e outros.
Estas agradabilíssimas cavaqueiras são lembradas com
saudade por Bulhão Pato, no primeiro volume das suas
Memórias. Miguel do Canto, diz o poeta, era um im-
pagável conversador.

De 1864 a 1871, o Conselheiro Joaquim José Mar-


ques Caldeira, morou aqui e, em 1867, °^ Condes de
Farrobo, o Conde de Tavarede e a Condessa de Prado

e Silva ocupavam todo o andar nobre. E um nunca


acabar de pessoas gradas a nobilitar o velho cenóbio
dos padres Quentais.

Em
1869 tinha o palácio um ilustríssimo inquilino,
nada menos do que o marechal duque de Saldanha, o
prestigioso militar e político, cuja estátua campeia agora
na praça do seu nome.
Foram cheios de vida, de cor e de animação para
a velha moradia suburbana, os dias em que aí residiu
-~ -286 -
o marechal. Aquelas paredes vetustas puderam então
ver todos os bélicos episódios da sua vida, e ouviram
alternadamente o tilintar guerreiro das espadas no 19
de Maio e no 5 de Dezembro de 1869, e o ranger per-
fumado das sedas das elegantes da época nos aristocrá-
ticos bailes e saraus de 6 de Janeiro, 3 e 24 de Feve-
reiro de 1870.
A pouco menos de
bisbilhotice retrospectiva, é ino-
cente. Espreitemos pois pela janela do passado.

A reunião de 24 de Fevereiro foi das mais faladas


no seu tempo. Que lhaneza de trato! Que genti-
J ;

leza a dos donos da casa O duque com os seus se-


!

tenta e nove anos nunca se sentava, atendia a todos,


falava gentilmente com as senhoras, afàvelmente com os
homens. A senhora duquesa, de setim branco, com
túnica de setim roxo franjada de oiro, fazia nobremente
as honras da casa. O corpo diplomático, a nobreza e
o exército, mais de seiscentas pessoas, onde estavam
representados todos os apelidos dos nobiliários do reino,
percorriam deslumbrados os salões.
Sobre o bufete, um magnífico aparelho de prata, bri-
lhava à luz suave das velas dos lustres. O serviço foi
ininterrupto e os sumptuosos vestuários das Condessas
de Farrobo, de Penamacor e de Tavarede, das Viscon-
dessas de Barcelinhos e de Balsemão, da Baronesa da
Regaleira e das senhoras D. Maria e D. Amélia Ribeiro
Neves, foram o assunto das conversas, nos centros
elegantes, durante os dias seguintes. De todas estas
senhoras apenas vivia, há pouco, creio eu, a senhora
Viscondessa de Balsemão. Que saudades !

O baile durou até de madrugada. Já clareava quando


— 287 —
as carruagens, apertadas no pátio, começaram rodando
para a cidade adormecida.

Ouçamos D. António da Costa, descrever, agora, o


episódio do 19 de Maio, ali naquele mesmo teatro de
elegâncias e de galanteria:
... «Batem as onze horas da noite de 18 em casa
do marechal no pateo do Geraldes a Entremuros. Da
duquesa se despedem as ultimas visitas que ali foram
passar o serão. Ficam ainda o sr. Visconde de Paço
de Lumiar e seu irmão António.
—«Onze horas Não vou dormir quási nada, dizia
I

o marechal (n'um corredor contíguo), a rir-se e a esfre-


gar as mãos.
«Onze e meia. Retiram aquelles dois cavalheiros
e os duques recolhem-se.
«Foi só deitar a cabeça no travesseiro e pegar no
sono mais tranquillo que pode ter um general depois
de ganha uma batalha, contava a duquesa no dia se-
guinte. Acordei-o á uma hora, como me recomendou
e estava dormindo com o mesmo socêgo. Acordando
e lembrando-se do motivo porque a duquesa o desper-
tara logo se vestiu.
«Aquela hora penetravam no Castelo de S. Jorge,
duzentos populares dirigidos pelo sr. major Estêvam
da Costa de Sousa Pimentel (hoje barão de Pomari-
nho) sob a inspiração do sr. conde de Peniche (mar-
quês de Angeja) apossavam-se do castelo e o batalhão
;

5 de caçadores conduzidos pelos capitães Monteiro e


Pina Vidal encaminhava-se para o palácio do duque.
Acabavam de chegar ali duzentos soldados de artilha-
ria 3, comandados pelo seu antigo capitão Lapa. Ve-
— 288 —
jamos o que se passava em casa do marechal e nas
imediações à mesma hora, O sr. Visconde de Pinheiro,
preparava-se com a tranquilidade com que estaria se
fosse para uma soirée auxiliado por suas simpáticas
filhas.
((Igualmente tranquilo se apresentava o grupo dos
ajudantes a quem o sangue frio do general se comuni-
cava sempre. Como acontece quási sempre quando se
procuram objectos em ocasião urgente, uma parte de-
les não aparecia, a-pesar-de ter o marechal por guarda
roupa, naquele momento a gentil condessa de Farrôbo
que sorria ao ver o pai lamentar-se também sorrindo,
de que a duquesa lhe desse uma chicara de chá com
tão pouco leite e por entre estas cenas parecia lem-
;

brar tudo menos que o marechal tinha à porta dois


corpos sublevados podendo ser surpreendido de ins-
tante a instante por uma divisão e que o pateo do Ge-
raldes estava situado entre duas estradas nos flancos e
fronteira a outra, o que em termo popular mas expres-
sivo, quer dizer encurralado. Disseram ao marechal
que ao menos fosse para o largo do Rato, emquanto
não chegasse o regimento que faltava. Riu-se e conti-
nuou a tomar o chá com leite.
«Quando chegou a infanteria 7, comandada pelo ca-
pitão Barros, o marechal marchou para a Ajuda.
que depois se passou é bem conhecido e dis-
«O
pensa-me o relatá-lo. A brigada que estacionava no
largo da Ajuda, reuniu-se-lhe (infanteria i, 2.° esqua-
drão de lanceiros e uma bataria de artilharia, embora
ocupasse aquele largo por ordem do ministério da
Guerra.
«Disparadas desgraçadamente as carabinas de
ai

artilharia á capitão Mendonça e Brito foram


ordem do
respondidas por um pelotão de caçadores 5, o que oca-
sionou a morte de um cabo e três soldados e feriu di-
( 288 a )

£ < .1"

-; O -O
- 289-
versos. A divisão junta na praça do Comércio ainda
chegou a marchar para Beiem, a despeito da resposta
concihadora de el-rei, ao telegrama enviado pelo mi-
nistro da guerra Lobo de Aviia. Voltou para traz a
meio do caminho por nova ordem de el-rei sabedor
do facto. Regressou da Ajuda o duque de Loulé de-
clarando ao ministe'rio que el-rei o exonerara e encar-
regara o duque de Saldanha de formar gabinete» (i).

Com a saída do marechal do páteo do Geraldes, o


palácio recaiu na mudez habitual das casas desertas.
Seguiram -se muitos e variados inquilinos, tantos que
a lista seria fastidiosa.
Pertence hoje o desamparado palácio à sr.* con-

dessa de Foz de Arouce que o herdou de seu pai o


sr.marquês da Graciosa, Fernando Afonso Geraldes
de Andrade Barba, neto do Desembargador Bartolo-
meu José Geraldes Cardoso de Andrade (2).
E continuemos.

Subindo do lado esquerdo fica-nos, primeiro,


a rua
à esquina da Travessa da Fábrica dos Pentes, um pré-
dio com os números de polícia 40 a 45, onde mal se

(i) História do Marechal Saldanha, Lisboa 1879, págs. 5 16 a


5i8.
(2) Por morte do Desembargador, houve na paroquial de
S. Mamede solenes exéquias por sua alma, em atenção aos mui-
tos benefícios que havia feito à igreja. O
Desembargador era juiz
perpétuo da Irmandade do Santíssimo Sacramento (Cartório de
igreja de S. Mamede).
VOL. IV ig
— 290 —
pode perceber a casa antiga que era, em 1766, resi-
dência de D. António do Carmo Barba de Meneses (i).
A família destes apelidos ainda em 1849 morava neste
arruamento. D. Antónia Barba de Meneses, viúva, é
citada nos Róis das Décimas desde 1818 até essa data.
A
esquina para a Légua da Póvoa, era nessas casas
nobres de João Baptista Veloso, onde morou desde 1764
a 1791, um D. António de Noronha (2). Seguem-se,
depois, entremeadas de casaria modesta, os palacetes
seguintes:

I.** O que tem os n."" loi a io3, e que possui um pa-


vilhão isolado do corpo principal. Foi habita-
ção, de 1860 e tantos a 1875, do Visconde do
Pinheiro (Ximenes de Azevedo) e, neste ano e

no seguinte, dos condes da Louza


2.° No que tem o n." 109, morou, em 1867 e 1868 a
viscondessa de Vila Nova de Souto de El-Rei
em 1870 e 1871, a família Melo Queirós; em
1872, José de Albuquerque d'Orey; depois D. An-
tónio Sanches de Chatillon e, em 1874,0. An-
;

tónia de Portugal da Silveira


3.° A propriedade com os n.°^ 121 a 128, à qual per-
tence o portão que dá ingresso à quinta de que
já falamos, e onde residiu o conde de Penama-
cor
4.° A casa dos viscondes de Balsemão, com os actuais
números i35 a 137. Foi residência, nos primei-
ros anos do século passado, da sr.* viscondessa
D. Catarina. Aqui faleceram os últimos viscon-
des Luís Pinto de Sousa Coutinho Guedes Bran-
dão Alvo Perestrelo e D. Henriqueta Teles da

(1) Livro do Lançamento da Décima, ano de 1766.


(2) Idem, ano de 1770.
— 291 —
Silva, da casa de Penalva, em vida dos quais se
deram aqui agradáveis reuniões. Em 1802 houve
nesta residência uma festa grande. 29 Foi em
de Maio. Os convidados tiveram o prazer de
ouvir a Catalani (i)
5.° A casa com os números i3g e 141. Nesta mora-
ram em 1875 os viscondes da Abrançalha;
6.*^ O grande prédio, com os n.°^ i-jb e 177, junto ao
portão do quartel de artilharia, que do con- foi

selheiro Joaquim da Costa e Silva e onde este


indivíduo residiu de 1806 a 1821. Anteriormente
linha aí morado o nfiinistro da Suécia (desde
1802) e antes deste ainda o infeliz ministro Lu-
cas de Seabra da Silva, nos anos de 1793 a
1797-

Num Diário do Governo, de i835, anuncia-se a


venda desta propriedade. Estava avaliada em 1 .540Í&000 1

réis e ia à praça para satisfação das dívidas com que o


Conselheiro Costa e Silva deixara onerada a sua viúva.
Quem agenciava a venda era um tal Roberto Lucas.
A praça realizou-se em 18 de Setembro desse ano.
Em 1842 surge novo anúncio no Diário que parece
referir-se a esta propriedade. Todavia não posso afir-
má-lo. Já em 1841 outros dois anúncios me desnor-
tearam marcando dia para a venda do referido prédio.
Decididamente só vendo os títulos da casa o que me —
não foi possível — se conseguiria fazer a identifica-
ção (2).
Em 1868 morava nela o ministro da Prússia. Creio
que só aí se demorou esse ano. Houve obras depois e,

(i) «Junor, embaixador em Lisboa», artigo de Tinop, na Ilus-


tração Portuguesa do Século.
(2) Anúncio n.° i5 do Diário n.° 88 de 1 5 de Abril de 1842.
— 292 —
em 1874 inaugurava-se a Casa de Saúde^ fundada pelo
médico militar Dr. Mira Franco e dirigida mais tarde
pelo ilustre clínico José António Serrano. Aí esteve
convalescente o grande Camilo e aí fui eu, algumas
vezes, visitar outro internado, meu tio João de Matos,
falecido tuberculoso em 1897(1).

Com a alteração dos números das portas é difícil


fazer hoje a identificação desses prédios, e acertá-los
com os aniíncios da Ga\eta e do Diário.

l
Que casas seriam umas, cuja venda se anuncia em
i836 e 1839, com dois andares, ermida, quintal ajardi-
nado, cocheiras e cavalariças (2) ?

O
conde de Rhode, Enviado Extraordinário e Mi-
nistro Plenipotenciário de Sua Majestade o Rei da Priis-
sia, morava, em 1796, neste arruamento.
A Gaieia de Lisboa de 12, 29 e 3i de Março
desse ano, anunciava a venda de vários objectos e a
última o leilão de todos os seus móveis e mais recheio
de casa, por motivo da sua retirada desta corte.
Tenho notícia de alguns notáveis moradores deste
arruamento, mas nada sei acerca das casas de que fo-
ram inquilinos.
Aqui os ponho devidamente relacionados :

— José de Oliveira Abreu e Lima, capitão de mar e


guerra, de 1764 a 1768;

(i) Nesta casa também residiu alguns anos o Conselheiro Ge-


neral Morais de Almeida, o pai Morais professor que foi de meia
Lisboa.
(2) Anúncios de 14 de Julho de iS36 e de 3 de Agosto de
1839.
- 293 —
— Luís Diogo Lobo de Ávila, de 1770 a 1772;
—O Tenente General D. Fernando da Gosta Ataíde
e Teive, no alto da rua, de 1792 a 1795 ;

— O bispo de Pinhel, de 1796 a 1797;


—O barão de Alverca, de 1796 a 1797;
—O notável político Diogo de Mendonça Gôrte-Real,
de 1797 a 1806
—O bispo da Guarda, de 1798 a i8i3 ;

— D. António Inácio da Silveira, de 1797 a 1806;


— D. Diogo da Câmara, em 1779;
— O Desembargador Manuel José de Arriaga, em 1809;
— Faustino José Lopes Nogueira de Figueiredo, sua
mulher D. Francisca Xavier de Sá, seus filhos
Bernardo (o marquês de Sá da Bandeira), Antó-
nio, Francisco, Aires, Estêvam, Maria Augusta e
Maria Efigénia, seu irmão o reverendo António
Joaquim Nogueira de Figueiredo, o reverendo
Jaime 0'Connor e Manuel e Eduardo Godinho
Cabral de Sá, hóspedes, de 181 1 a i8i3;
— Frederico, Barão de Menssol, em i8i3;
— A Marquesa de Alorna e Condessa de Oyenharsen,
em i83o.

Em 1770 residiram também em Entremuros as fa-


mílias Valucci Mauson e Portavales(i).

Passada a Casa de Saúde, segue-se o portão do


quartel de Campolide, e dentro do Terreiro, o edifício.
A sua construção data de i863, mas só se ultimou em

(i) Rol dos Confessados da Freguesia de S. Mamede, anos


referidos.
— 294 —
i868. Destinava-se ao 4." Regimento de Cavalaria. Ela-
borou-se a planta e escolhido o local pediu-se à Câmara
o alargamento da rua, para dar mais fácil passagem às
batarias. O local foi vistorisado e a Câmara oficiou ao
Ministério da Guerra declarando que as obras a fazer
para esse fim, deviam ser custeadas pelo Estado, re-
servando-se só para a Câmara o calcetamento da rua
e a construção do cano geral. O Ministério da Guerra
conformou-se, como consta do ofício de 14 de Julho do
mesmo ano, e a obra começou a fazer-se.
A obra da estrada em que a Câmara já pensara em
i863 é que ficou em projecto (i).

Em 1869, em sessão de 17 de Agosto, o vereador


Pinto Basto apresentou a resposta ao ofício, de 21 do
outro mês, do coronel de engenheiros, João Maria Feijó,
dirigido ao Ministério da Guerra e que por este tinha
sido enviado à Câmara.Esse documento ficou sobre
a mesa e o negócio não teve mais resolução, até 1879
em que outro vereador, Teófilo Ferreira, em sessão de
4 de Fevereiro propôs que se alargasse [a rua, expro-
príando-se parte da parada do quartel e uns terrenos
pertencentes ao sr. Margiochi. A Câmara resolveu que
se oficiasse ao Governo e em 10 desse mês foi a infor-
mar à Repartição Técnica. O que se passou não sei,

o caso c que nada se fêz.

Quando, em 1909, se procedia, na parada deste


quartel ao assentamento de uns alicerces para umas
novas edificações para as batarias, encontraram os tra-
balhadores, a um metro do solo, grande porção de pe-

(i) Arquivo Municipal de Lisboa, iS63, págs.1208, iS45e 1492,


— 295 —
dras, ao que parece, restos de um portal e de uma
coluna. Entre elas apareceu um escudo de armas, es-
culpido em mármore da Arrábida, com o brazão dos
Rebelos. Servia então de comandante do Regimento
o, então tenenie-coronel, Nobre da Veiga, que oficiou
imediatamente para a Associação dos Arqueólogos,
instalada no Museu do Carmo, oferecendo a pedra alu-
dida. Comissionado pela mesa da Assembleia Geral
fui ao quartel examinar o achado e proceder à sua con-

dução para o museu, em 3 de Junho, e lá se encontra


hoje, a meio da nave principal da ruína.
A pedra de armas tem as seguintes singularidades:
Na face posterior dentro de um enquadrado lê-se a se-
guinte inscrição

LOVADO SEIA
o santíssimo
SACRAMENTO
i632

No topo superior (plinto) ao centro de um remate


deteriorado vê-se, embebido na espessura da pedra, o
troço inicial de um fuste cilíndrico, que parece deveria
ser a haste de uma cruz que encimaria talvez, o escudo.
Por não se observarem em toda a volta da pedra sinais
de garras ou pegas de qualquer natureza, conjecturo
que esse brazão fazia parte de. um monumento-padrão,
ou campearia isolado sobre o portão cujos restos se
encontraram conjuntamente.
Morou, é certo, na rua de Entremuros, nos anos
de 1785 a 1786, um Manuel Rebelo Falhares, mas a
sua pouca permanência no local e em casa de aluguel
não me deixa admitir a possibilidade de tal moradia se
relacionar com o facto.
l
De onde viria o curioso brazão de armas ?
— 296 —
Logo ao tratarmos da Cruz das Almas, talvez o
problema se aclare um pouco.
Todo aquele terreno onde está o quartel e a parada
era antes do terremoto e foi-o ainda por muito tempo,
a quinta do Guarda-mór, cujas casas ainda hoje se
vêem, rompendo o muro, adiante do portão daquele
aquartelamento. Chamava-se assim em razão do seu
proprietário Lourenço Dias de Campos, cavaleiro da
ordem de S. Tiago, ter sido guarda-mór da Relação
do Rio de Janeiro.
Aí morava êle em 1783, ano em que servia de tes-
temunha na habilitação para o Santo Oficio do seu vizi-
nho o Desembargador Joaquim José de Abreu Guião (i).
Em 1765 trazi-as arrendadas por 2ooí!íooo réis a
D. Francisco de Melo e, em 1820, por 34o3í'ooo réis a
Gonçalo Barba Correia Alardo, sogro do Desembarga-
dor Geraldes, que ali morava com um cavalo, uma
besta e dois criados (2). Provavelmente iria para ai
residir por ficar perto da filha, porque a casa solarenga
dos Alardos, em Lisboa, era em Alcântara, naquele
largo onde se inicia a moderna rua Tenente Valadim.
Lá está no cunhal, o brazão com as armas dos seus
apelidos.

Num terreno que confina com o do quartel, há uma


edificação no gosto designado por cJialet, onde morou
em 1916 o ministro de Espanha em Lisboa. O go-
verno espanhol pensou até em adquiri-la, o que final-
mente não fêz, comprando posteriormente o palácio de
Palhavã.

(i) Processo 19:239 de Joaquins, na Torre do Tombo.


(2) Livro do Lançamedto da Decima —
Superintendência de
Santa Isabel^ anos de 1765 e de 1810.
— 297 —
Essa propriedade pertencia ao industrial José An-
tónio de Castro dono das cocheiras de carros fúnebres
que havia na rua de Santo Antão (hoje Eugénio dos
Santos) onde está agora o Teatro Politeama. Por he-
ranças sucessivas passou até que veio à posse do con-
selheiro Marçal Pacheco. Foi este antigo parlamentar
que mandou demolir o prédio antigo e edificou o mo-
derno.

Os terrenos hoje reunidos sob o nome de Casal


Monte-Almeida e cuja aquisição pela Câmara, para
construção do Parque Eduardo VII, tanta demanda tem
custado, eram ainda, ao começar o século xix um agre-
gado de quintas fidalgas umas, de rendimento e ou-
;

tras de regalo.
Entre a azinhaga da Torrinha e a rua de Entremu-
ros espalmavam-se as quintas do Geraldes e do Fora-
dor, as terras dos Congregados do Oratório e lá, ao
topo, limitada pela velha estrada da circunvalação, a
quinta dos Jesuítas de Campolide. Dela diz o infor-
mador do diligente Padre Luís Cardoso que vindo pela
estrada que liga o largo de S. Sebastião da Pedreira,
com Campolide: aha n''esta parte hunia boa quinta que

é dos padres de Companhia. Tem lagar de aceite e


moinhos de vento (o que prefa:{ 20 que ha n'este sitio)
afora muitas atenhas de tre^ rodas cada Ufna{i).
Logo veremos do seu destino.
Para lá da azinhaga até S. Sebastião da Pedreira,
entre a circunvalação e Vale do Pereiro, ficavam as

(i) Informação do prior desta freguesia, Urbano José de Meio


Pinto da Silva, para o Dicionário Manuscrito do Padre Luís Car-
doso, existente na Torre do Tombo.
- 298-
terras do Poceiro, as casas e quinta do Malheiro e as
quintas das Lagens, do Dr. José de Sousa Monteiro,
da Torrinha e de Manuel de Jesus e, entestando com
a rua de S. Sebastião, para lá ainda destes terrenos,
a quinta de João Galvão Castelo Branco e a cerca do
hospício dos Agostinhos Descalços: isto em 1755.
A quinta da Tor^rinha assim cliamada peio édiculo
oitavado que lá campeava, serviu há anos de local para

comícios e manifestações populares que depois a Ro-


tunda lhe usurpou. Em 19 de Maio de 1889 houve aí
uma dessas reuniões que acabou triste. Deram-se tu-
multos, ferimentos e prisões, sendo o comício dissol-
vido por ordem do comissário de polícia.
Depois parte da quinta e grande porção das terras
contíguas foram aproveitadas para assento das barracas
da Feira de Agosto que durante alguns anos reflectiu
pàlidamente o esplendor da notável «Feira Franca»
do Centenário da índia. Tudo coisas muito próximas
para historiar devidamente, mas que a seu tempo me-
recem largo comentário.

Possuo na minha pasta de trechos de jornais, nu-


merosos artigos de combate, de polémica, extractos de
sessões camarárias, uma infinidade de documentos, em-
fim, referentes à demanda que se degladiou entre o
Município e Carlos Eugénio de Almeida, dono daqueles
vastos tratos de terreno, onde se projectava a constru-
ção do parque Eduardo VII, outrora parque da Liber-
dade. A fúria denominadora é tão grande que ainda
as coisas estão em projecto e já se lhe muda o nome.

;
O que fará depois ! . . .

Lendo atentamente todos esses documentos muitos


— 299 —
deles apaixonados ; discursos violentos de vereadores,
tricas judiciais de advogados, requerimentos cheios de
sofismas, artigos recheados de alçapões Jurídicos, che-
guei à conclusão de que é, por ora, impossível histo-
riar devidamente os factos,
O Casal «Monte-Almeida» valia pouquíssimo aqui
há quarenta anos. O proprietário anterior, endivida-
ra-se com a Fazenda Nacional em contribuições conse-
cutivas e a propriedade foi à praça, ou por outra, o
seu rendimento, para pagamento das mesmas contri-
buições. Arrematou-o pela quantia de 5o.'J^ooo réis, o
sr. Eugénio de Almeida, durante o prazo de sessenta

e sete anos, vindo, mais tarde a adquiri-lo pelo preço


de doze contos de réis.

Conveio depois à Câmara expropriar parte do Ca-


sal para prolongamento da Avenida e, de acordo com
o seu proprietário, foram nomeados dois peritos, um
de cada parte, para a respectiva avaliação. Não con-
cordando com o valor da primeira vistoria José Maria
Eugénio recorreu para os tribunais. Foi decedida a
contenda a favor da Câmara, sendo tal sentença repe-
tida em consequência de nova impugnação do mesmo
senhor. Recebido depois o preço da avaliação, tomou
o município posse do Casal mas daqui por diante é
que a questão se embrulha de tal modo que não há
meio de destrinçá-la e explicá-la satisfatoriamente. O
proprietário tomou outra vez posse do Parque (em 1

de Agosto de 1904), a Câmara protestou, declarando


ilegal tal posse, e insurgiu se contra a exorbitante quan-
tia de seiscentos contos exigida pelo dono dos terrenos
que, por seu turno, alegou mil factos comprovativos da
legalidade da sentença que lhe conferiatal posse e para

se no seu pleno direito adquiriu todos os


fortificar e,

direitos dos numerosos rendeiros dos seus setenta e


cinco mil metros quadrados de terreno.
— 3oo —
O estado da questão nunca foi conhecido do grande
piíblico,embora a simplificasse grandemente a inter-
venção da Sociedade Propaganda de Portugal que
resolveu encetar negociações por sua conta, anciosa de
ver removida tanta dificuldade e de dotar finalmente a
cidade com um parque moderno (i).

Há cerca de quinze anos que, do lado da nova


avenida António Augusto de Aguiar, se iniciaram os
trabalhos de construção. Organizaram-se viveiros de
árvores e plantações diversas, mas o trabalho foi sem-
pre vagaroso.
Os terrenos sotopostos à Rotunda continuam incul-
tos e abandonados ; nos meses de Agosto e Setembro
animava-os a feira com a ingresia dos barraqueiros e
dos foliões, em 5 de Outubro de 1910, alvoroçou-o o
estrépito dos canhões, o rodar dos armões municiados
descendo de Entremuros à Torrinha, que já lá vai, os
gritos dos feridos, as imprecações dos combatentes e,
finalmente, o clangôr e o entusiasmo da vitória. Tudo
isso passou, tudo isso terá muito que contar ! E ou-
tras, e outras revoluções.
i Ideais diversos, vaidades, vinganças, sacrifícios!
As Monte-Almeida, que o sangue já
terras do Casal
tem manchado, que a desilusão já tem enegrecido,
mercê da sua situação na moderna cidade, darão en-
sanchas a um grosso volume de memórias... daqui a
uns cem anos.
Por hora e' cedo.

(i) O Henrique Monteiro de Mendonça, opulento africa-


sr.

nista, também
ali proprietário, ofereceu à Câmara, grande porção

de terrenos, para a construção do Parque, em troca apenas de al-


guns materiais da demolição de uma propriedade urbana. Por
preços mínimos também vendeu os seus terrenos o sr. Marques da
Graciosa, proprietário do palácio e quinta do Geraldes.
— 3oi —

Durante anos arrastou-se a questão do Parque, mesmo


depois de solucionada a primitiva questão. O problema
urbano estava de pé, e diziam uns que o Parque não
se fazia porque não havia compradores para os terre-
nos, e outros que os terrenos se não compravam por
que não se fazia o Parque. Neste lisonjeiro estado
chegou a questão até há pouco. O público, paciente
e resignado, entretinha-se a ler nos jornais de maior
tiragem artigos prenhes de ideias e de alvitres e a ir
aos domingos feriais, primaveris, para ali, com a sua
eterna fé sebástica, dizendo uns para os outros :

— Aqui que vai


é o palácio das Exposições.
ficar
— Olha, além, constroi-se um «Belvedere».
— Acolá ficam os lagos.
— Daquele lado, as estufas.
E contentavam-se com isto, assentando-se, depois,
a merendar em cima dos torrões incultos.

De há pouco tempo para cá, a Câmara, deitou os


olhos misericordiosos para o Parque in nomine.
Abriu-se um lago em ponto que não julgo de louvar,
construiu-se uma linda Estufa-fria, coberta, onde há
deslumbrantes exemplares botânicos e grutas idílicas,
demoliu-se parte do Geraldes, os arruamentos parados
avançaram, montaram-se —
o que foi de péssimo gosto
— os pavilhões que serviram na Exposição do Rio de
Janeiro, mas ainda não vi que se pensasse na arbo-
rização. Decididamente as vereações embirram com
as árvores. Na praça dos Restauradores, tiraram-nas,
— 3o2 —
para que o sol nos batesse bem em cheio e se podes-
sem examinar nitidamente as belezas arquitectónicas do
ex-Eden Teatro.
l
Porque será e de onde virá este ódio à árvore ?
Um Parque sem árvores, num país de verãos ar-
dentes, é como um chapéu de sol, fechado. Pode ser
muito bonito, mas não presta nada.
CAPITULO XIII

Sumário Elogio da água


: —
O que das águas de Lisboa disseram
Duarte Nunes do Lião, Luís Mendes e Marinho de Azevedo
— Propriedades milagrosas e medicinais da água do chafariz
de El-Rei —
As vozes e os rostos das mulheres de Lis-
boa — As supostas Termas e o Aqueduto'romano Noti- —
ciam-se as sucessivas descobertas do Reservatório da rua da
Prata —
O que há de verdade sobre a matéria As Con- —
servas daÁgua já aproveitadas pelos engenheiros pombalinos
— A Baixa no tempo da dominação romana As galerias do —
Rossio e do Arco do Marquês de Alegrete O nome pri- —
mitivo do chafariz de El-Rei —
Aumenta a população e falta
a água —
Os cercos de u85 e iSyS —
A sede dos sitiados —
D. João II e os chafarizes —O
poço do Rossio em tempo de
D. Manuel —
Os projectos para a condução da água do cha-
fariz de Andaluz —
Brigas junto às fontes públicas A pos- —
tura das Bicas em i55i — Gomo se abastecia de água a Lis-
boa quinhentista —
Relação de todos os poços e chafarizes
em i552, segundo o Tratado da Magestade, Grandeza e Abas-
tança da Cidade de Lisboa, escrito por João Brandão —
Fornecem-se ao leitor indicações topográficas de todos esses
mananciais de água.

nA ágoa (diz Duarte Nunes do Lião) he o elemento


mais poderoso de todos os outros, porque comparada
ao fogo, ella o apaga e extingue : comparada á terra,
ella he a que toma em si, e a deporá. Ao ar sobe, e o
domina e vai nelle a criar nuvees com que rega as ter-
ras, e obra as neves, pedra e geada, e ainda estaa mais
alta confonne aos que lhe dão assento no ceo Cr/stal-
linoi (i).

(i) Descrição do Reino de Portugal, edição de 1785, pag. 64.


— 3o4 —
Já Píndaro lhe chamara a inais excelente cousa de
todas as cousas, e Strabão, referindo-se particularmente
às águas da Luzitânia encareceu-as sobremodo, cele-
brando os portugueses desse tempo como famosos be-
bedores de água.
Duarte Nunes, fonte copiosíssima onde bebi estas
notícias, faz um largo elogio da bondade das nossas
águas e, depois de mencionar várias nascentes medici-
nais, refere-se às linfas de Alfama que borbotavam do
chão, com uma suave quentura,
e às do chafariz de
El-Rei de quem tempòr e salubridade pa-
diz : o qual
rece que causa algum pequeno vieiro de enxofre per
que aquenta temperadamente. E acrescenta E assi :

se vê quando se co^e que deixa na vasilha hum polme


entribranco e que se desfa^ em póo. Por esta bran-
dura^ e tepor que tem as mulheres curiosas de seus ca-
rões se lávão com ella, e as de fora mandão bus-
car (i).
Os nossos clássicos extasiam-se sempre que falam
nas águas deste chafariz. Luís Mendes de Vasconcelos
repete os elogios de DuarteNunes e a elas atribue não
só os bons carões das moças alfamistas senão as boas
vozes lisboetas que docemente ecoavam aos seus ou-
vidos clássicos (2).
Damião de Góis, na sua descrição latina de Lisboa
e Jorge Braunio, no Theatru?n Urbium, ajoelham-se
diante dele, e delas.
O capitão Luís Marinho de Azevedo, autor de uma
famosa monografia alfacinha, diz que, das muitas pro-
priedades de tais águas, ^diúa delias he persevar dos
catarros ; e serrações do peito que causão outras^ não

(i) Descrição do Reino de Portugal, já citada, pág. 69.

(2) Do sitio de Lisboa — Diálogos, por Luís Mendes de Vas-


concelos, págs. i5o a i5i. Edição de i8o3.
— 3o5 —
fazendo abalos aos forasteiros, qiie vindo a Lisboa a
bebem logov (i).
Foi fiado nesta creditosa informação que Calisto
Elói de Silos e Benevides de Barbuda, o impagável
herói de A Queda de um Anjo do grande Camilo, apa-
nhou aquela formidável cólica que o fez duvidar da
seriedade do seu clássico. Desejoso de amaciar a voz,
e desencatarroar-se para as lutas tribunícias, bebeu
dela à tripa-fôrra sem ter reparado que o seriíssimo
Marinho de Azevedo, explicara um pouco antes que
sendo suave no gosto, o não é nos efeitos, porque lhe
atribuem os médicos a destemperança do Jigado que
muitas pessoas padecem {2).
Nos Relójios Falantes, pÕe D. Francisco Manuel
de Melo na boca (ou na corda) do relójio da aldeia di-
rigindo-se ao das Chagas
iíPor isso tu cá vens, porque és mentiroso: di{ que.
a verdade na lingua dos que a não faliam, é como a
agua do chafariz de El-Ref que por correr por canos
de enxofre sempre fa\ mal ao figado)^i2>).
O mesmo autor estabelece, na Visita das Fontes,
o seguinte diálogo entre a FonteNova do Terreiro do
Paço Fonte Velha do Rossio:
e a
— F. N. O! Senhor tio? Sentai-vos para aqui
:

que muitas ve^es me lembra ouvir falar em vós, a meu


pai o Senhor Dom Chafari^ de El-Rei.
— F. V. Deus lhe perdoi que tantos anos serviu a
:

esta cidade com tão ruim galardão que já mais lhe


acudiram com um ladrilho velho. São pagas do mundo.
Das boas vozes causadas pela água citada, também

(i) Fundação, Antiguidades e Grandezas da niuy insigne Ci-

dade de Lisboa, pág. 1 1.1

(2) Descrição do Reino de Portugal, edição já citada, pág.110.

(3) Apólogos Dialogais, vol. i, pág. 46 (edição de 1900).


VoL. IV 20
— 3o6 —
faz eco Marinho de Azevedo. As magnificas vozes das
mulheres alfacinhas e dos cantores da Real Capela e
das religiosas dos mosteiros da cidade, atribue-as ele
ao maravilhoso chafariz (i), cuja água também dava
aos rostos das moças do seu bairro ((hiima ahntra en-
graçada e côr natural tam encarnada^ que não neces-
sita de unturas, nem confeiçoênSy com que ellas se en-
velhecem antes de tempoyy (2).

O que fôr hoje a Alfama e vir os hediondos


leitor
carões que por lá pululam, há-de desconfiar da inte-
gridade das faculdades mentais deste escritor, Pois j

no tempo dele viam-se, por lá, alvuras engraçadas


Muito mudam as coisas deste mundo
j
!

A bondade das águas de Lisboa, tão apregoada foi


que, no Tratado da conservação da saúde dos povos (edi-
ção de Paris de 17S6) arranja-se uma etimologia para
Lisboa, bastantemente extravagante. Diz o seu autor ;

que tal termo provém de Lix, que em latim quer di-


zer «água» (!) e de bona que significa «boa», vindo
assim o composto a querar dizer água boa!
jE até onde pode chegar a fantasia de um filólogo!

Basta agora de classicismos e vamos ao que mais


importa.
Datam do tempo da dominação romana as tentati-
vas de abastecer de água o burgo lisboeta. A fonte
da Agua Livre conhecida sem dúvida já nesse tempo

(i) Era esta talvez a razão da abundância de cantores de ofí-

cioque então havia em Lisboa. O Tratado da Majestade, Gran-


deza e Abastança de i552, dá notícia de i5o, nada menos.
(2) Fundação, Antiguidades e Grandezas, já citada, pág. m.
— 3o7 —
termas e às piscinas da acrópole romana
viria trazer às
a sonorosa Imfa fugitiva de que nos fala o poeta.
Construíram os enviados dos Ce'sares, os munícipes
romanos, os cônsules ou os Aitgustais (Caio Heio Pritmo,
talvez) um aqueduto para esse fim. No século xvii
ainda havia dele abundantes vestígios, autenticados pe-
los relatórios dos engenheiros e arquitectos lisboetas
no tempo dos Filipes. Leonardo Turriano viu-o e me-
diu os seus quarenta palmos no sítio de Palhavã. Os
Tinocos e os Frias referem-se a êle também. A exis-
tência de tal monumento não admite, pois, diávida.
Veremos logo, mais de espaço, essas referências.
Quando, aqui há sessenta anos, se quis reparar a
canalização da rua do ayxo do Marquês de Alegrete,
encontraram-se, às primeiras investidas das picaretas,
grossas abóbadas de tejôlo. Foi pena não ter algum
entendido feito o exame dos materiais dessa construção.
Arrombadas abóbadas viram-se galerias
as em di-
ferentes direcções e água por todos os lados.
^ Seria acaso um ramal do velho aqueduto? ;
Vão
lá prová-lo agora!
Carlos Ribeiro, o eminente geólogo, quando, em
i863, como membro da comissão nomeada para dar
o seu parecer, acerca do abastecimento da Capital,
procedia a estudos da sua especialidade, viu, perto da
Amadora, entre os sítios chamados da Gargantada e
do Almarjão, um aqueduto de construção evidente-
mente romana. Esse aqueduto parece ter sido edifi-
cado paralelamente ao actual, dois ou três metros mais
abaixo. Os lanços de parede e de canalização, que
ainda existiam então, eram feitos de argamassa e de
fragmentos de tejôlo de fábrica romana (i).

(i) Memória sobre o abastecimento de Lisboa com águas de


nascente e de rio, pág. 17.
— 3o8

As mas não estudadas, Termas da rua


discutidas,
da Prata, cujo conhecimento geral remonta ao ano de
1770, tem-se atribuído £0s tempos de Tibério e de Tra-
jano, não sei com que fundamento.
A sua história, pouco mais ou menos, é esta Em :

1770 ao fazer-se o alicerce para uma casa do comer-


ciante Manuel José Ribeiro, na rua da Prata, deu-se
com o depósito subterrâneo. Um tal Joaquim Ferreira
fêz dele um desenho e planta. No ano seguinte foram
descobertas as «Termas dos Cassios« a que Castilho faz
larga referência na Lisboa Antiga^ tendo D. Tomás
Caetano do Bem, escrito uma Memória na qual se fa-

zem alusões ao depósito da rua da Prata. Em 1780


Frei José do Sacramento, monge de Alcobaça, escre-
veu outra Memória acompanhada de um desenho sobre
a segunda descoberta feita em 1778 ao abrir-se o cano
geral da rua. Frei José, como bom sucessor de Frei
Bernardo de Brito, enramou de patranhas o seu parto
literário-arqueológico, e o depósito passou ao ouvido
público como Termas Romanas atribuídas ao tempo
de Tibério ou de Trajano.
Em i833 deram os alfacinhas pela terceira vez com
o vasto reservatório da rua da Prata, ou melhor, pela
quarta vez, como logo se dirá, pelo facto de se ter sui-
cidado, lançando-se a um poço existente numa das esca-
das da rua, um galego desiludido da vida. O suicídio
de um filho sempre um facto notável pela
da Galiza é

raridade, mas aquele deu que falar para mais de um


mês. E foi o caso que, tentando-se procurar o cadá-
ver, recorrendo-se ao esgotamento do poço por meio
de bombas, não houve meio de o secar. Pelo contrário
a água parece que crescia, e o único resultado obtido
— 3o9 —
em tais diligências foi o de espalhar-se naquele local
uma infinidade de mosquitos, a qual foi atribuída pelo
povo a castigo de Deus, por se ter tentado penetrar o
misteVio da morte de um galego. Desanimados com o
insucesso, mas aguilhoados pela curiosidade, um dos
pesquizadores, mais atrevido, resolveu-se a descer pela
boca do poço. jMal sucedida empresa! Daí a ins-
tantes o homem era puxado para cima mais morto do
que vivo. Ansiosamente interrogado pelos circunstan-
tes, apenas soube dizer que lá em baixo não se via

senão água. —
Aquilo
j
um mar subterrâneo
e' !

Pouco depois veio o cólera^ houve quem propa-


e
lasse que a mosquitaria represada no reservatório fora
a causa da epidemia.
. O acontecimento esqueceu.
Em 1859, fêz-se quinta descoberta. Francisco Mar-
tins de Andrade e José Valentim de Freitas —o bene-
ditino José'Valentim da Biblioteca Nacional fizeram —
um minucioso relatório acompanhado de desenhos que
está no masso Y-i-45 da Biblioteca. Um dos desenhos
é de um pedaço de mármore veado de azul outro ;

muito imperfeito, é do engenheiro Joaquim Júlio Pe-


reira de Carvalho, que lá desceu com José Valen-
tim, dessa vez. O teatino D. Tomás Caetano do Bem
supunha que as «Termas dos Cássios» e este reserva-
tório,eram a mesma obra romana e que o aqueduto
que as alimentava era a galeria que se rompia numa
das dependências do antigo castelo de S. Jorge.
Nesse mesmo ano (iSSg) o geómetra Francisco de
Almeida e Silva fêz uma planta das «Conservas da
Água» que ofereceu ao mestre Geral da Câmara Mu-
nicipalAntónio dos Santos, aproveitando elementos de
outra que já existia, ao tempo, na Repartição Técnica

das Obras Públicas, sinalandoos a azul. Nessa planta


vêem-se quatro secções do Reservatório, tiradas em
— 3io —
sentidos diversos, concluindo-se da observação do de-
senho que as «Conservas» não foram totalmente explo-
radas.
Aí por 1840 e tantos, quando a Câmara Municipal
pôs a concurso a empreitada da canalização dos esgo-
tos os operários do empreiteiro Mantas a quem cou-
bera aquela área, deram também com a suposta obra
romana. Houve a pasmaceira habitual. O empreiteiro
expôs à Câmara o sucedido e esta procedeu. Alargado
o buraco feito ocasionalmente pelos alviões dos traba-
lhadores, desceram lá a baixo alguns mais animosos e

propuseram-se a navegar numa canoa naquele estuário


subterrâneo. A viagem foi uma mera curiosidade. Não
se fizeram medições, não se examinou o material, nem
sequer se observou a direcção das galerias ali conver-
gentes.
Em 1906, por motivo dos habituais desarranjos na
canalização do Alviela, pôs-se outra vez à vista o «Re-
servatório» e, em 1909, se não estou em erro, o meu
amigo e ilustre escritor Rocha Martins, depois de
uma viajem por essas galerias escreveu sobre elas um
artigo muito curioso na antiga Ilustração Portuguesa,
Pena foi que se não fizesse acompanhar por alguns en-
tendidos que completassem com dados científicos as
suas observações meramente literárias.

Posto isto reíiita-se um pouco.


A construção de que se trata, a-pesar-de tantas des-
cobertas, fora conhecida já pelos engenheiros pombali-
nos da reedificação de Lisboa. Prova disso: o apro-
veitamento — não ocasional, mas nitidamente calculado
— do reservatório para alimentação dos numerosos po-
- 3ii —
.
ços abertos por essa ocasião, nas escadas, pátios e
saguões dos prédios então construídos.
As abóbadas das galerias devem até ser de cons-
trução pombalina, feita por ocasião dos entulhamentos
da cidade baixa. Se o não são —
e isso só se pode ave-
riguar pelo aparelho e pela construção deviam de —
ficar, anteriormente a 1755, quási ao nível do solo o

que não é de crer. Em qualquer das hipóteses a cons-


trução não foi primitivamente feita para o fim a que
hoje se destina.A orientação das nascentes que apa-
rentemente a abasteciam dão a entender isso mesmo.
Tais veios de água devem derivar das nascentes que
alimentaram muitos banhos, poços e bicas, que existiam
na cidade baixa antes do terremoto e que então tive-
ram os seus cursos desviados pela destruição dos mes-
mos. Os «banhos dos Judeus», na Gibitaria, os poços
da Foteia, os banhos do Morraz, a Fonte da Frol e
outros, estavam nestas condições e deviam ser alimen-
tados pelas «Conservas» da rua da Prata, dada a sua
vizinhança com o reservatório.
Os restos desta construção não têm o menor ca-
rácter de Termas. Aquele ponto da Baixa, no período
da dominação romana, eram terrenos alagadiços que
depois se enlodaram cobrindo-se de sedimentos arras-
tados pelas águas. Em 1220 o esteiro do Tejo adel-
gaçara-se e corria apenas pela Calcetaria e Crucifixo,
como um regueirão sobre que se arqueavam pontes de
madeira, uma no Rossio e outras duas até à Ribeira
a dos Pausdo Morra\. Para prova disto basta dizer
e a
que a igreja da Madalena já existia em 1 164, a de S. Ni-
colau foi mandada erigir de novo em 1280, em 1200 er-
guia-se já a de S. Julião e Santa Justa em 1173 (i).

(1) As Muralhas da Ribeira de Lisboa, pelo engenheiro e ilus-


tre arqueólogo, sr. Augusto Vieira da Silva.
— 3l2 —
Depois destas considerações custa crer na existência
de umas Termas Romanas na rua da Prata, à babugem
da água.

Sob o solo do Rossio escondem-se, igualmente, dois


enormes depósitos ou poços que vão ter a galerias
onde a água corre abundantemente, vinda do Norte,
isto é, dos lados de Valverde (Avenida da Liberdade)
e de Arroios. Essas galerias são, como as da rua do
Arco do Marquês de Alegrete, abobadadas, i Serão um
vestígio do aqueduto romano que da Agua Libera vi-
nha por Palhavã (onde o viu Turriano) até à acrópole
romana que descaia do Castelo para a Madalena? Os
açoriamentos, e também os sismos, tê-lo iam escondido
aos poucos. Os engenheiros pombalinos aproveitaram,
como vimos, esse lençol de água subterrâneo e fize-

ram-no poço comum dos prédios edificados então.


A lápide encontrada na escada do prédio n." 85 da
rua dos Retrozeiros, em que se lê a dedicatória a Es-
culápio de certa obra e a sua oferta ao Município pelos
Augustais Lúcio Fábio Dáphno e Marco Afrânio Eupo-
rião foi, quanto a mim, deslocada do seu antigo lugar
e colocada ali por ocasião da construção do prédio,
embora não seja impossível identificá-la com a obra
monumental a que me estou referindo.
A vasta mãi de água subterrânea, ao sopé do monte
urbano dos Césares, ponto de convergência de inú-
meras galerias abobadadas, está exigindo uma minu-
ciosa visita de indivíduos competentes que esclareçam
a sua verdadeira significação e atestem a sua origem e
aniigiiidade.
— 3i3

Da Água Livre, fonte antiquíssima, encontrei men-


ção num documento do século xiii — uma inquirição do
reinado de D. AfonsoIII, das muitas cujo conhecimento

se deve a João Pedro Ribeiro. Aí se lê que os frades


de S.Vicente possuíam entre outros bens, neste local,
uma com dois casais: et in Agua
granja — libera unam
grangiam cum duobos casalibus(i).
Seria essa talvez a fonte mai que abastecia pelo
aqueduto monumental, a colónia romana de Felecitas
Júlia.

Vieram depois os árabes mais tarde os cristãos.


;

O pequeno burgo acastelado, escassíssima porção da


área actual de Lisboa, abastecia-se das fontes certa-
mente construídas por êssesdominadores nas muitas
nascentes da moirisca Alfama (2).
Em 1220 reformado talvez, o chafariz
já existia,
chamado, ao tempo, da Praça ou de S. João da Praça
dos Canos o qual, segundo a opinião do Visconde
de Castilho era, nem mais nem menos do que o cha-

(i) Boletim n." 4 da Associação dos Arqueólogos Portugueses,


ano de 1901, pág. 34.
(2) Ao pé da Mãi da Água Velha, em Carenque, existe um
paredão, conhecido pelo Muro dos Mcuros, feito com notável so-
lidez, que certamente, na opinião autorizada de Carlos Ribeiro
{Memória eh., pág. 17), servir de represa às águas da ribeira, a
montante da qual se deveriam juntar grandes massas de água,
aproveitadas ou para abastecimento da cidade ou para fertilização
dos plainos de Bemfica e Porcalhota. Era obra evidentemente
moirisca.
— 3 14 —
fariy^ de El-Rei, apelidado, depois, assim, por alguns res-
tauros ou total reformação que nele fizesse El-Rei
D. Dinis (i).

Onde este rei punha a mão saía obra grande e logo


a alcunhavam de real.
Um pergaminho do Arquivo do Cabido de Lisboa
recentemente recolhido à Torre do Tombo, datado de
Coimbra de lo de Outubro de i3o8, refere-se a deter-
minados privilégios concedidos ao clero pelo rei-lavra-
dor, isentando-o de qualquer contribuição jt'í2ra a Fonte
que o dito Senhor mandara construir na cidade de
Lisboa.
^ Referir-se-á este documento à reformação do cha-
fariz de S. João da Praça dos Canos ?

Estou em crer que sim.

Mas a cidade crescia e a sua população extravasa


para fora da estreita cerca torrejada. Acantoavam-se
os moiros onde depois se chamou
Moiraria ; viviam
a
os Judeus, no outeiro fronteiro da Pedreira, que mais
tarde D. Dinis doaria ao genovês Manuel Pessanha. A
contingência de um cerco obrigando essa população
dispersa a recolher-se a dentro das muralhas traria
em resultado um grandíssimo perigo : — a sede !

Foi o que sucedeu em iSyS, reinando em Portugal


o infeliz D. Fernando. Sitiada Lisboa pelas hostes de
Castela, recolhidos à pressa, num angustioso abandono
de seus lares, os povos de extra-muros, entrou de faltar
a água. A seca foi tal que, diz Fernão Lopes, secavom
da augua o chafarii delRei, a-pesar-de ser uma fre-

{i) A Ribeira de Lisboa, pág. ibi.


— 3i5 —
jnosa fonte abastada de grande avondança daiigua que
continuamente corre (i).
A sede era o terror de todos os sitiados. Quando
em 1 185 Lisboa caiu nas mãos dos soldados de D. Afonso
Henriques e dos cruzados alemães e ingleses, foi a
sede um dos motivos dessa vitória* Erant cnimiamQ)
pene consuinpti foris gladio^ intus inedia panis et aquae
diz a História de S. Vicente, citada por Marinho de
Azevedo (2).

Serviu de ensinamento o cerco de iSy?. Arreceado


de futuras investidas castelhanas mandou D. Fernando
alargar a cinta das muralhas e, certamente, prover de
água em maior abundância o novo terreno anexado ao
burgo. O chafariz de El-Rei e o dos Cavalos^ ou de
Dentro mal chegavam para os habitantes que ficavam
dentro da cerca antiga (3).

(i) Crónica de El Rei D. Fernando, pág. 66, vol. 11, edição


de 189^
(2) Fundação, Antiguidade e Grandeza da mui insigne Ci-
dade de Lisboa —
Livro 4°, pág. 238.
(3) É também dessa época o chafariz dos Cíjvíj/o5 assim cha-
mado por causa de um bucéfalo de arame ou de bronze de onde
jorrava a água.
Em 13-/3 os castelhanos quiseram levá-los, mas os nossos
precaveram-se e tiraram-nos (Citada Crónica de D. Fernando,
vol. II, pág. 58.
Adesignação «dos Cavalos» para os chafarizes estendia-se
a. Em Évora, no século xiv, havia um chafari:^ dos
outras terras.
cavalos. Daqui infiro que o nome lhes vinha de se destinarem a
bebedouros de cavalos e não porque quaisquer cavalos, em pedra
ou arame, os ornamentassem. A água deste chafariz lisboeta en-
gordava as cavalgaduras, diz Marinho de Azevedo. A lenda dos
cavalos generalizou-se. É o delírio de justificar etimologias, por
figuração.
— 3i6 —
Fêz-se, pois, a obra ;
quando o castelhano veio,
outra vez, encontrou Lisboa defendida e parece que
abastecida de água por que nem Fernão Lopes nem
D. Fernando de Meneses (i) se referem mais do que
às fomes padecidas. Com respeito à falta de água,
nem uma palavra.

D, João II, em 1487, mandou fazer um encanamento


do chafariz de El-Rei até o mar para fornecimento de
água aos batéis da Ribeira (2). Parece que este mo-
narca se interessava verdadeiramente por tal assunto
e acho curioso vê-lo preocupado em saber qual o nas-
cimento da água do egrégio chafariz e contentíssimo
depois por ver que tinha acertado nas suas previ-
sões (3). O chafariz dos Cavalos também lhe mereceu
a régia atenção e saindo de Lisboa, para Almeirim, em

1494, deixou encarregado o procurador da cidade Pêro


Vaz de Castelo Branco de zelar por certas obras que
ordenara se fizessem. Queria El-Rei que a água se
repartisse por bicas onde só se deviam encher os cân-
taros das moças, deixando o tanque para serventia dos
açacais e proibindo que as bestas lá bebessem. Tudo
isto tinha em vista conservar a rua limpa para a pro-
cissão dos pescadores de Alfama (4).

(1) Vida e Acções de El-Rei D. João I, edição de 1677.


(2) Memórias sobre chafarizes, por Veloso de Andrade, pág.
io5 — Carta régiade 16 de Setembro de 1487.
Elementos para a História do Município de Lisboa^ por
(3)
E. Freire de Oliveira, vol. 11, pág. 420 —
Car/í7 de 2 de Maio de
1494.
(4) Esta procissão era uma festa pagã a S. Pêro Gonçalves
Telmo, tão pagã que o arcebispo de Lisboa, D. Fernando de Me-
-3i7-
A Gamara não concordou com tais determinações
e dilatou a obra, pondo inconvenientes. D. João II deu
o cavaco com a desobediência do Senado. O escriba
da carta régia para os Vereadores traduziu, nos se-
guintes termos, o descontentamento do rei: ... a não
ser que pós queiraes obras como é costume aos oficiaes
da cidade que embargavam as bemfciiorias que alguém
qui^^esse fa^er.
Não sei se a obra se fêz. F^l-Rei tinha deixado, nas
mãos de um tal Rui Lobo, ioo;jf500o réis para essa obra.
Pediu-lhos a Câmara, mas Rui Lobo respondeu que
escreveria a Sua Alteza e não os deu(i).

Tem-se que El-Rei D. Manuel diligenciou con-


dito
duzir a Lisboa a Água Livre. Nenhum documento au-
toriza tal afirmação. O que o monarca felicíssimo pro-
moveu ou patrocinou foi a condução da água para o
chafariz novo do Rocio e a obra do chafariz de Santos.

neses, a proibiu em i556. Os pescadores ficaram sentidíssimos e


como se desse o caso de se avariar no Tejo uma nau da índia,
capitaneada por um filho do arcebispo, logo propalaram ter sido
castigo divino. A festa começava na véspera por uma romaria
às hortas de Xabregas em que levavam o Santo, indo os pesca-
dores com com mui-
os melhores fatos, cheios de cadeias de oiro,
tos tangeres e bailes. passavam a tarde, comendo e bebendo
Ali
voltando depois à cidade todos armados de capelas e coroados
de coentros verdes.
Descreve esta festa, Diogo do Couto na Vida de D. Paulo de
Lima Pereira, págs. 8 a lo.

(!) Citados £^/ew2e»i/os,vol. II, pág. 421. — Assento da Câmara


de 28 de Maio de 1494.
— 3i8 —
Daí talvez a confusão, como o supõe com autoridade o
sr. Freire de Oliveira (i).

Data essa tentativa do ano de i5i3. O aumento


crescente da população começava a sentir-se nas cons-
tantes sedes que padecia. Beber água tornou-se quási
uma necessidade luxuosa.
Tornava-se pois mister socorrer a cidade com a
água dos arredores, e pôs-se a vista no chafariz subur-
bano de Andaluz ou de Andalu{es, como vejo escrito
na caria do soberano ao Senado em lò de Novembro
de i5i3.
Este chafariz foi feito no ano de 1374, conforme
dizia um padrão que lá existia ainda em 1840.
Luís Mendes de Vasconcelos também chama ao
sítio Andalu'{es{2) o que contraria um pouco a etimo-

logia que lhe forja Frei Lucas de Santa Catarina, con-


tinuador de Frei Luís de Sousa na História de S. Do-
mingos (3). Diz este que tal nome se lhe pôs por ser-
vir de passagem para o lugar de Nossa Senhora da
Ln^. Não deve ser assim; a grafia acima escrita, pÕe
de lado a engenhosa habilidade do domínico mas va- ;

mos ao que importa.


A iniciativa da obra deve-se, sem dúvida, ao Se-
nado. Foi ele que enviou a El-Rei os projectos da
obra — as ??iostras que êviaste^ diz D. Manuel na carta
referida.
O soberano ficou agradado da diligência municipal
e cometeu-lhe a escolha do projecto, manifestando ao
mesmo tempo o desejo que tinha de falar com o oficial

(i) Citada obra, vol. ir, pág. 420. É na carta régia de 2C de


Agosto de 1498 (vol. i, pág. 38 dos Elementos) que o monarca
1

diz à Câmara : E da obra do chafari^ de Samtos me pra^ muyto.


(2) Do sitio de Lisboa, pág. 228.
(3) Vol. V, Livro /.°, pág. 234. Edição de 1866.
— 3i9 —
que o fizera: fa\eo logo cá vir e traga a ?fiesma pin-
tura, escreve D. Manuel.
Está-se a ver o interesse e a curiosidade do rei.

Houve demora na execução da obra por que apa-


rece outra carta régia estranhando-a, tanto mais que
já havia dinheiro para ela. Hy
ha já dr.° p.'^ fsso —
comenta o soberano, mandando que João Fogaça (tal-
vez o autor do 'ç>vo]ç.z\.o) faaça poer maão na dita obra{\).

De D. João III, diz o sr. Freire de Oliveira, refe-


rindo-se à lacuna que o seu reinado fêz neste momen-
toso e grave assunto: ... (^entendia (o monarca) sem
duvida, de que o que o povo mais precisava, não era
agua, era fogo em que se purificasse e deu lhe as fo-
gueiras do Santo Oficio {2).
A água escasseava cada vez mais. Mau grado as
obras feitas em iSiy, no chafariz de El-Rei, por Lopo
de Albuquerque, proprietário das casas que lhe ficavam
sotopostas, e em i54i, por conta do Senado, depois
de compradas tais moradias aos herdeiros do fidalgo,
as suas seis bicas não chegavam ao consumo da ci-

dade (3).
Tanta era a afluência de negros e moiros, moços
e criados que as bulhas eram constantes.
Entendeu a Câmara, e bem, publicar uma postura

(1) Elementos para a História do Municipio de Lishoa. vol.. 11

pág. 417 a 418.


(2) Idem^ pág. 418.

(3) A Ribeira de Lisboa do Visconde de Castilho, pág. i63


e i6q.
— 32o —
para regular a serventia das bicas, e publicou-a em
i65i(2).
Assim ficaram ordenadas as bicas:

Na primeira, enchiam os pretos forros e cativos, mu-


latos e índios
Na segunda, os moiros das galés e, acabada a agoada,
os da primeira bica
Na terceira e quarta, os homens e moças brancas ;

Na quinta, as mulheres pretas


Na sexta, as mulheres e moças brancas.

Aos que infrigissem a postura cabia a multa de


2.'3Ç)00o réis e três dias de cadeia, sendo brancos, e sendo
de cor seriam logo açoitados com baraço e pregão em
derredor do chafariz.

O curiosíssimo Tratado da Majestade, Grandeza


e Abastança da Cidade de Lisboa, escrito em i562,
por João Brandão, dá-nos uma relação dos poços e cha-
farizes de Lisboa, nessa data. Eram eles os seguintes

i.° —O chafarii de El-Rei, chamado antigamente da


Praça ou de S. João da Praça dos Canos e
a que já nos referimos.

2.° — O poço das casas do Tesoireiro da Cidade que


ficava por detrás do chafariz de El-Rei e onde,
então, a água se vendia aos potes.

3.° O poço das casas do Conde de Linhares que

(i) i4 Ribeira de Lisboa, já citada.


— 321 —
ficava numa das lojas do palácio que depois
foido Conde de Coculim e hoje é o armazém
de ferro do sr. Sommer ík C.^ Dessa casa
ainda iioje existe um resto da fachada e um
cunhal armorejado com as armas dos Masca-
renhas fazendo esquina para o Arxo de Jesus
— uma das antigas portas da cerca moura.
Aí se vendia água muito fria e de excelente
qualidade.

O poço dos baixos das casas de Francisco Cor-


que o tombo de iSyS chama Fonte nora
reia, a
da Porta do Mar e que em 162 5, na «Dili-
gência que se fez aos muros e portas da cerca
da cidade» aparece com o nome de Chafari^
da Preguiça (i).

O poço das casas do Conde de Portalegre^ no


Haver do Peso à entrada da rua da Ferraria,
onde se vendia igualmente muito boa água.
Este poço parece ser o mesmo que se men-
ciona, em outro ponto, como na rua da Con-
feitaria (que era a antiga Ferraria) entre o
largo do Açougue e o Peloirinho Velho, da
banda do Sul. Só esta indicação não confere
porque o Haver do Peso ficava certo à en- e'

trada da rua (tornejando para o Peloirinho)


mas do lado do Norte. —Todas as casas da
Ferraria tinham poços nas lojas, informa o
documento a que me vou referindo.

(i) A cerca moura de Lisboa, por A. Vieira da Silva, pág. 33


e 34. Os peritos encarregados da «diligência-) de 1625, alvitraram
que se tapasse este chafariz {Elementos para a História do Mu-
nicípio de Lisboa, tomo iii, pág. 170).
Voi- IV 21
— 322 —
6.° — Quatro poços na rua Nora (dos Ferros). Não
os identitica o Tratado.

7." — O poço da Fótea, chamado anteriormente (1299)


Poça da Fotreya. Ficava pela parte norte
da rua nova dos Mercadores ou dos Fert^os,
num escasso largo que com ela comunicava
pela travessa da Fótea, a oriente da antiga
paróquia da Conceição a qual ficava fronteira
ao arco dos Barretes. Este poço e mais ou-
tros dois que ao construir-se a igreja referida
ficaram dentro dela — um deles num saguão
junto à sacristia — eram alimentados pelas ter-
mas romanas que também serviam para
(?)

prover os banhos dos Judeus da rua da Gibi-


taria a qual corria por detrás do largo do
poço da Fótea paralelamente à rua Nova(i).
Quando foi do terremoto, diz o pároco da
Conceição informando o padre Luís Cardo-
so (2), lançou este poço de si toda a água que
continha e alguns peixes, e os poços que esta-
vam dentro da igreja ficaram razos com a
terra pela elevação que esta tomou. Nisto
há-de haver um pouco de fantasia da parte
do prior, que era o padre Brás José Rebelo
Leite.
O poço da Fótea que tinha quinze passos
de largo de redondo, ficava onde hoje
e trinta

corre a rua de S. Julião, entre a rua da Prin-

(i) Dicionário Manuscrito^ já referido, tomo 11, freguesia da


Conceição,
(2) As Muralhas da Ribeira de Lisboa, já citados, págs. 154
a i55.
— 323 —
cesa e a rua da Prata, encostado à fachada
dos prédios do lado sul.

.° —O chafari\ da rua Nopa, chamado, depois do


século XVII, chafariy dos Cavalos, e que tam-
bém foi conhecido por chafari\ de Nossa Se-
nhora de Oliveira (em 1340) e por Fonte de
Santa Maria de Oliveira (1470). Os cavalos
de arame, que a lenda diz terem sido levados
pelos castelhanos depois do cerco de i373,
eram os que estavam no chafariz de Dentro ao
qual se refere Fernão Lopes e não a outro.
Chamou-se o chafariz, de Nossa Senhora
ou de Santa Maria de Oliveira por ficar por
baixo do adro deste templo cuja porta dava
para o adro de S. Julião com acesso pela rua
das Esteiras (i). Ficava, fazendo as referên-
rências actuais, este chafariz a meio da rua
S. Julião defronte da porta da actual ermida,
entre as ruas do Ouro e Augusta.
Esta água de pouca utilidade seria para os
lisboetas sequiosos. O Tratado informa que
ela servia para os fornos de cal e para as
obras de alvenaria que se faziam ao tempo.
Os viajantes venesianos Trom e Lippo-
mani quando pasmam diante da abundância
de água do chafariz dos Cavalos dizendo que
da boca dos cavalos corria tanta agoa que
formava corrente a modo de ribeiro {2)^ re-
ferem-se evidentemente ao chafariz da rua
Nova, pois ao outro já, desde i373, lhe 'falta-

vam os cavalos de arame. Tal informação

{i) As muralhas da Ribeira de Lisboa, pág. 66 a 70.


(2) O Panorama, vol. vii, pág. 82.
— 324 —
esclarece muito o caso, porquanto prova que
o artifício das bicas do chafariz de Dentro foi

repetido no da rua Nova, motivando lhe fosse


dada a velha denominação daquele.
Fica assim explicada a confusão, que mo-
tivou numerosas referências erróneas ao no
me dos dois chafarizes (i).

9.° —A fonte Junto aos Paços da Ribeira. Não sei


se será possível ideniiíicar esta com a Fonte
da Frol (ou da Flor) que ficava e' certo Junto
de dependências do Paço e que ainda existia
em i685 pelo menos. Q
que admira, a ser
assim, é não vir mencionada na relação com
o seu bem-soante nome. A não ser ela, por
que razão não a incluiria o autor desse traba-
lho entre as outras, mencionando, aliás, ma-
nanciais de menor importância ?

A Fonte da Frol — que já tinha este nome


em 1498, ficava entre as antigas Casas de Ceuta
e o Arco dos Pregos. Nesse ano D. Manuel
determinou «para nobre^a^ honra e proveito
da [cidade e dos moradores dela» se dessem

(1) Junto ao chafariz dos Cavalos em duas das colunas-


esteios da rua Nova «como estátuas do agravo e do castigo» estavam
duas cabeças lavradas aludindo ao clérigo e à sua concubina que
D. Pedro-o-Cru, mandara enforcar. Noutra coluna estava uma
cabeça de mulher e um macaco de pedra, aludindo ao facto de
certo mouro ter-se desamarrado do cepo e ido até S. Domingos
buscar uma mulher com tão desenvolta lascívia que ela serviu de
corpo de delito. Estas lendas, contou-as em 1770 e tantos, ao
Bispo do Grão Para, um tal Agostinho Domingos que tinha mais
de oitenta anos e fora caixeiro na Rua Nova. O Bispo refcre-as
nas suas Memórias, publicadas por Camilo Castelo Branco, a
págs. 124 e 125.
— 325 —
de foro os chãos fora do muro da Ribeira
(Campo do Conselho) onde os seus anteces-
sores não tinham deixado fazer edificações,
para neles se construirem casas e lojas de
proporções marcadas. Como a fonte ficava
em meio dessas construções, foi igualmente
determinado que a edificação levantada nesse
local tivesse só o sobrado, ficando o pavimento
te'rreo aberto entre os esteios que o suporta-
vam e lhe davam serventia (i).

Quem entrar hoje na rua Augusta, dez pas-


sos dados depois de passar o arco, pelo leito
da rua, está, pouco mais ou menos, no sítio

da Fonte do Frol.

10.° —O poço junto aos Tanoeiros. Os «Tanoeiros»


eram o nome porque era conhecido o local
onde assenta hoje o largo do Peloirinho.

II." — O poço ao arco de Manuel Córte-Real. Este


arco ficava no fim da actual rua do Arsenal,
metido dentro dos prédios do último quartei-
rão do lado norte.

12." — O poço junto ao postigo que ia para os Márti-


res. Este postigo ficava no ponto onde hoje
termina a travessa do Cotovelo, ao Corpo
Santo.

i3.° — O poço do Conselho que ficava junto ao do pos-


tigo dos Mártires.

{\) As Muralhas da Ribeira de Lisboa, pelo sr. engenheiro


Augusto Vieira da Sfiva, págs. 32 a 33.
— 326 —
14-° — T7'és poços

a Cata-que-farás, passando a igreja
de Pedro Gonçalves Telmo. Estes poços
S.
— diz o Tratado —
tinham aparelho de lavar
roupa. Em 1755 a denominação de Cata-que-
-farás^ resumia-se a uma travessa que rodava
à volta da «Calçadinha da Paciência» no fundo
da actual rua das Elôres(i).

15." — O poço do Borratem. Este chegou até nossos


dias e dele se faz mais larga menção adiante;

16.*' — O poço do Rossio que no princípio do século xvii


se chamava do Milagre; e

17.° — O Poço do Chão de que o Tratado diz que


hé grande e de muita agoa, e pelas logeas
pegadas há muitos poços dagoa.

Além destes havia numerosos poços para baixo do


Cata-que-farás, onde todas as casas os tinham, o que
tambe'm acontecia no sítio das Fangas da Farinha (2).
Na rua do Morra\ (a Calcetaria de 1755) que é o
liltimo troço poente da nossa rua de S. Julião havia uns
banhos em 1449, os quais deviam ficar situados, na
opinião do sr. Vieira da Silva, na sua muito citada obra,
à entrada da rua do Oiro. Esses banhos desaparece-

(1) Em
Évora havia um «poço de cata-quc-fívás, e um sítio
assim chamado, em pleno século xiv. Creio que tal nome se de-
rivaria de alcunha, construída à maneira de outros apodos ebo-
renses como o de Bem-na-busca aplicado a um moiro. Não sei
porquê, pressinto, atrás desta designação local, um filho do Islam.
(2) Estatística de Lisboa de i552, pág. 44 v.» a 35 v.", impresso
agora cem o título de Tratado da Majestade, Grandeza e Abas-
tança da Cidade de Lisboa.
— 327 —
ram quando em 1004 se mandou alargar a rua dos For-
nos do Moy^ra'{{\). Esta rua rompia-se ao princípio,
do lado norte, do referido troço da actual rua de S. Ju-
lião e, obliquando e cortando em diagonal a rua do Cru-
cifixo, ia sair à do Almada ali por altura do «Ferin»,

onde se abria eniáo o beco do Crucifixo.


Em 1498, foi também demolida por ordem do rei
D. Manuel, uma fonte junto à muralha na porta do
Açougue da Ribeira., para construção de uns sobra-
dos sobre esteios de pedra destinados a talhos. Na
mesma ocasião foi mandada correger a Fonte da Frol
de que já se falou (2). A porta do Açougue ficava ao
princípio da rua da Princesa ; do lado do Terreiro do
Paço, já se vê.
De outro poço, nos dá também notícia o sr. Vieira
da Silva; era um que ficava entre a Correaria, e o beco
do Tintes, como quem diz no actual largo dos Tor-
neros.
Cristóvam Rodrigues de Oliveira enumera entre as
ruas da capital as do poço do Bor ratem e do poço do
Ceitil (Santa Justa) a do /'oco da Foteia (S. Julião), a
do Poço do Chão e o beco do Poço dos Namorados
(S. Nicolau). Por trás de S. Domingos, Tinoco, em
i65o, marca o Poço do Milagre., que era o do Rossio.
No convento da Trindade, havia um velho poço a
que se refere a pág. 358 do primeiro volume da Lis-
boa, o mestre Júlio de Castilho.
Na relação do Tratado da Majestade, Grandeia e
Abastança não se mencionam, também, o chafari\ de
Santos, construído ou reformado em 1498, o Poço do

{i) As Muralhas da Ribeira de Lisboa, pág. 186.


{2) Idan, págs. 39 a 40 e i36 a 157.
— 328 —
Chapu:^ que já em 1487 existia junto às portas de Santa
Catarina (i), e os chafarizes de Arroios e de Andalu^,
velhos mananciais alfacinhas.

(i) O Arquivo da Misericórdia de Lisboa, na Exposição Olis-


siponense de ir)i4, poi Vítor Ribeiro, pág. 55.
CAPITULO XIV

Sumário Um projecto quinhentista de condução de água


;

O
poeta narrador de 1626 —
Os chafarizes dos Cavalos e de El-
-Rei e a Bica do Çapato —Os vendedores ambulantes no sé-
culo XVI —Moiros, negros e galegos —
O projecto imaginoso
de Francisco de Olanda —
Analisa-se o desenho da Fonte dos
Elefantes — —
A sede em Lisboa em i5i6 Procissões rogati-
vas —Diligências para a condução da Água Livre no reinado
de D. Sebastião— Lançamento de imposições sobre a carne
e — A condução da água de Andaluz para o Rossio
o vinho
— Os preços da água em lõii — Propõe-se o Senado trazer
a Lisboa a Agua Livre — As ideias do primeiro Filipe a este
respeito — Exames e vistorias — O Roteiro da Água Livre
de Pêro Nunes Tinoco — Medições até o Moinho de Vento
— Outros exames — Curiosos desenhos de Tinoco — O por-
tal da quinta dos Apóstolos, o Noviciado da Cotovia e os
Fornos da Louça —
Prosseguem as diligências da Câmara —
Como o monarca intruso dificultava a obra, parecendo pa-
trociná-la — Visita de El-Rei à Água-Livre — Continua o
duelo entre a Câmara e o Soberano —O «papel» de Leonardo
Turriano —
Os quatro projectos do Aqueduto —
Onde se fala
no aqueduto romano e na fonte de Santo André Ordena—
El-Rei uma nova vistoria —
Continua o chafariz de El-Rei a
dessedentar a cidade.

Exactamente quando João Brandão estava relacio-


nando os poços e chafarizes de Lisboa, projectava o
Senado da Câmara trazer até as casas de Francisco
Correia, em que já falamos, por meio de canos, a água
do velho chafariz de El-Rei, e aí fazer dois chafarizes
honrados, como êle dizia, para aproveitamento dos so-
bejos que se desperdiçavam no Tejo.
O projecto parece que englobava a ideia de levar
— 33o —
a água até Cata-que-farás, fazendo-se, por isso, tenção
de proibir que as mulheres lavassem no tanque do cha-
fariz, como até aí faziam.
Este tanque foi depois mandado demolir por D, Ma-
nuel.
Tal obra só, porém, se veio a executar em 1640.
Dela resultou o chamado Chafari:^ da Praia{\).

De todos esses chafarizes e poços, se exceptuarmos


os, já nossos conhecidos, de El-Rei, dos Cavalos e dos
Paus, poucos ficariam dignos de nome. Uns eram tal

particulares, outros escassíssimos da água que em ge-


ral era péssima. A cidade sofria, ao mesmo tempo, a
sede e os vendilhões de água, e a-pesar-de todos os elo-
gios de Marinho de Azevedo, Mendes de Vasconcelos
e outros clássicos, não se conformava a ver, de lábios
sequiosos, os lindos carões das moças que se banha-
vam com a do chafariz de El-Rei, ou a gordura dos
cavalos que bebiam no chafariz de Dentro (2).
Aquele historiógrafo. poeta que descreveu em verso
as belezas da capital, em 1626, reza assim a propósito
dos chafarizes
Do dos Cavalos, diz :

Um chafariz mui fermoso


de águas mui claras e belas
adiante está, que sem falta

leva excesso às da Beira.

(j) Livro 1° do Provimento da Agua, fl. 42 a 45, no Arquivo


da Câmara Municipal de Lisboa.
(2; Marinho de Azevedo, no seu citado livro, dá curso à no-
ticia de que a água do chafariz de Dentro engordava os cavalos
que a bebiam (pág. 112).
— 33i —
É tão formosa, tão pu,ra,
e de tanta proeminência
que, por mais que ande no mar
corrupção nunca entra n'ella.

Da bica do Sapato, escreve

Logo a bica do Sapato


se segue n'uma horta fresca,
cujas cristalinas águas
competem c'o'a Pimenteira.

E do chafariz de El-Rei

Logo a mui pouca distância


grandemente nos recreia
um chafariz de El-Rei
com tantas bocas abertas ;

onde negros aguadeiros,


tantos negros, tantas negras,
galegos, cabras, ratinhos
a quarta de água sustenta (i).

Meado o século xvi, ainda a venda de água em Lis-


boa era feita por alguns dos moiros da Lisboa prè-ma-
rítima ; mas os vendilhões que predominavam e que
por fim os substituíram completamente, eram os ne-
gros e as negras, muito mais tarde depois substituídos,
por sua vez, pelos cidadãos de Tuy. Ao açacal suce-
deu o negro ao negro sucedeu o galego.
;

Na linguagem popular ficaram os conhecidos pro-

(i) Relação em que se trata e fa^ uma breve descrição dos


arredores mais chegados à cidade de Lisboa, 1626. Autor anónimo.
— 332 —
lóquios trabalhar como um moiro ou como um negro
e carregar como um gulego atestando a sucessiva in-
fluência e passagem destas três raças de trabalhadores
infatigáveis.
Pela cidade, galgando as suas tortuosas e mal cal-
çadas ruas, andavam mil negras vendendo a água ás
quartas, gritando o seu pregão característico: — Agua
.fria! Agua fria

Cinquenta mulheres brancas andavam também, mas


só na Ribeira, com a mesma mercancia, e vinte açacais
moiros e ainda cinco homens, conduzindo em carretas
as quartas, e potes, completavam o número dos vende-
dores ambulantes em i552(i).
Cristóvão Roíz de Oliveira menciona no seu Su-
mário das Noticias de Lisboa, escrevendo um ano an-
tes (em i55i), sessenta e cinco ribeirinhos que anda-

vam na venda da água.

Um dos concorrentes à execução do projecto da con-


dução da Água Livre para Lisboa foi — quem o diria!
— esse elegante artista chamado Francisco de Olanda.
O seu imaginoso projecto não seria talvez compreen-
dido, e chocaria pela estranheza. O Da Fá-
seu escrito
brica que falece a cidade de Lisboa^ feito em iSyi,
curioso sob muitos pontos de vista, ilustra-se com um
capitulo intitulado Wágua Lii^re a que correspondem
dois desenhos. Um e outros, vamos analisa-los pela
edição do Archivo Espanol de Arte f Arqueologia de

(i) Já citada Estatística manuscrita da Biblioteca Nacional,


agora impressa com o título Tratado da Magestade, Abastança e
Grandeza da Cidade de Lisboa.
— 333 —
1929, feita pelo Dr. Vergílio Correia, embora prepa-
rada por Alberto Correia, como se diz no frontespício
e se explica no prólogo. O original do singular traba-
lho do iluminador quinhentista, esteve na Livraria do
Conde do Redondo, onde o abade de Castro o viu(i)
e está hoje na Biblioteca da Ajuda, onde Alberto Cor-
reia o compulsou, copiou e fotografou (2).

Francisco de Olanda depois de, na linguagem pito-


resca da sua época, lamentar que Lisboa «oude todos
bebé agoa não te maisqhú estreito chafari\para tanta
gente, e outro para os cavalos», quando outras cidades,
como Roma, Cartago, Mérida, Segóvia têm aquedutos
de arcarias e grandes condutos de água ; depois de citar
o aqueduto da Agua de Prata, feito por ael-rev vosso
avô» (o escrito e' dirigido a D. Sebastião), aconselha o
soberano a imitá-lo, trazendo a Lisboa a Agua Livre.
E acrescenta «^ de duas légoas delia trouxerão os Ro-
mãos a ella, por condutos debaxo da terra sotterra-
nhos, furado inuytos montes e com muyto gasto e tra-
balho, não sendo Lisboa sua, afora outras agoas q
trouxerão a ella tambê muy de porposito como se quere
e ellesfa^ião as taes obras».
Francisco de Olanda conheceu e viu, pois, o aque-
duto romano e não só o aqueduto mas a obra de re-
presa e captação feita em Belas,
do como se vê ainda
seguinte período : lE
duas penedias asperis-
ali etre
simas de dois tnõtes fi:{eram híímuro larguissimo e forte,
q lhe represava a agoa de hfi vale e hua lagoa ou es-
tanque e q di{C que traiiaÕ por seu passatempo galé e

(i) Vida de Francisco de Olanda, pelo Abade de Castro.


(2) O Joaquim de Vasconcelos já pu-
ilustre investigador Dr.
blicara este trabalho no n.° 6 da Arqueologia Artística, mas sem
a reprodução dos desenhos que o ilustram. Freire de Oliveira
transcreveu-o a pág, 23 do volume x dos Elementos.
1
— 334 —
bateis, como se ve hoge e dia 7ia parede e sitio q era
possiveh.
No desenho vê-se realmente a represa, com o muro,
e a lagoa onde navega um batel. Este pormenor é que
deve ser filho da imaginação viva do iluminador. A
direita avista-se também um castelo, e à esquerda e ao
fundo as tais penedias ásperas.
Francisco de Olanda acaba o capitulo, dizendo : aE
ganhe l\ A. esta hôrra da fa\er a Lfs- este beneficio
boa (ou lha faça fa:{er) de restituir esta fôte de Agoa
Livre q assi se chama, a esta cidade q morre de sede,
e não lhe dão agua. Da qual obra eu fii a el Rey
vosso avó desegno q el Rej muito desejou fa^er antes
hil

de sua morte, e o infante dõ Lufs me dixe que dese-


java tra^ersse esta agoa á Ribeira para a tomare as
nãos da índia, siquer por hã dos elefantesi».
Por este documento entrevemos o infante D. Luís, o
conquistador de Túnis, interessado também na obra e
tentado pela imaginação ardente do artista. Trazer-se
a água ao Rossio e á Ribeira em fontes decoradas com
elefantes devia de encantar D. Sebastião.
A Lembrança da fonte dagoa livre traiida ao Ros-
sio, corresponde um desenho que ocupa a parte média
inferior de uma página. A fonte era constituída por
quatro elefantes em pé, à volta de uma pilastra lavrada,
que lançavam água, pelas trombas erguidas, em um
espelho da fonte, quadrado, de cantos arredondados e
salientes, bandado de pedraria lavrada. Sobre a pilas-
tra vê-se a figura de Lisboa, tendo na cabeça a coroa
mural e sobre esta uma urna que entorna água. Lis-
boa segura nos braços o casco de uma nau, e sobre os
seus ombros poisam dois corvos, um em cada, batendo
as asas sob a água que cai da urna.
A fonte para a Ribeira das Naus era mais simples
um espelho circular e, ao centro, sobre um pedestal,
~ 335 —
um elefante palanquim com um cor-
sustentando um
naca no dorso, e jorrando água pela tromba.
Em Paris, no tempo de Napoleão, projectou-se uma
ofonte do Elefante», no local da Bastilha, entre o Ar-
senal e o Canal de S. Martinho. Os fundamentos fo-
ram lançados em 1810. O elefante devia de ser de
bronze, transportando o palanquim às costas, e o pe-
destal de pedra. O seu modelo, feito de barro, existe
ainda (ij.

Francisco de Olanda escreveu em 1571 : a . . . esta


cidade q morre de sede-». Já em 1 5 16 se morria à mín-
gua de água, e em Março, ainda, fora ainda do período
da estiagem, faziam, em Lisboa, procissões rogativas
os alfacinhas sequiosos. D. Manuel, em uma carta di-
rigida ã Câmara a 24 desse mês, ordenava essas pro-
cissões «HcTS quaes muyto devotadamente se peça a
Nosso Senhor que queira dar agoa e niso se lembrar
do seu povoD (2).
*

Durante o curto reinado de D. Sebastião íizeram-se


algumas diligências para abastecer de água a capital
sequiosa.
Em Agosto de 1573 realizava-se a repetição de
uma vistoria à fonte da Água Livre, e em 3 de Março
de 1674 escrevia o monarca ao Senado da Câmara con-
sultando-a sobre a maneira de obter capitais para tão
larga empresa e inquirindo sobre a quantia que seria
provável gastar-se.

(1) Panorama, vol. v, págs. 401 a 402.


(2) Elementos para a História do Município de Lisboa, tomo 1

lág. 448 —
Carta Régia de 24 de Março de i5i6.
— 336 —
Nicolau de FVias (de uma família de engenheiros e
arquitectos notáveis) foi um dos que verificou a fonte
da Água Livre, por ordem do Senado, interessadíssimo
sempre em tão grande melhoramento. Achou um anel
de água <ido tamanho de um circulo cujo diâmetro era
a duodécima parte de um palmo de cinco em rarai>,
medida esta aprovada, nesse tempo, como certa e infa-
Uvel no dizer do próprio Nicolau de Frias. Tal certi-
dão iraz a data de i588 (23 de Junho) e serviu como
documento em um pleito entre os frades de S. Fran-
cisco e os de Santo Eloi, do Porto (i). Nada, porém,
se fez de positivo.
*

Era uso antiquíssimo o lançamento de impostos


para a feitura de obras de utilidade citadina. Já D. De-
nis o fizera para a construção de uma fonte em Lisboa,
que bem podia ser o chafariz depois chamado da Praça
e mais tarde de El-Rei, como o supõe o sr. Visconde
de Castilho (2). Fortificada nesse exemplo e noutros,
resolveu a Câmara lançar um real em cada arrátel de
carne e dois em cada canada de vinho, para a condu-
ção para a cidade da água do poço de João de Góis,
nascente de magnífica água situada em uma proprie-
dade riástica, à Bemposta. Foi isto em iSgy, já sob a
dominação felipinna(3).

(i) Elementos para a História do Município de Lisboa^ vol. 2.°

págs. 418 a 419.


(2) A Ribeira de Lisboa, pág. i63.
(3) Houve outro projecto de trazer a água ao Rossio vinda
do chafariz de Andaluz, nos primeiros anos do século, como se vê
das cartas régias, à Câmara, datadas de i5io e de i5i5 e de uma
em 3 de Setembro de 024 entre a Câmara e o De-
escritura feita
sembargador Fernão Martins e sua mulher Felipa Mendes, donos
da quinta onde estava o poço de que se abastecia aquele chafariz
(citados Elementos, vol. xvii, pág. 25o a 253 e vol. 11, pág. 417).
- 337 -
O dinheiro que sobejasse da imposição seria desti-
nado, consoante a letra do alvará de 4 de Novembro
de 1589, ao pagamento dos danos feitos nas terras por
onde passasse a água e a um depósito, à ordem do
presidente e oficiais da Câmara, para outras despesas
de utilidade pijblica(i).
Tomou a fonte, o Senado, para trazer
água ao a
Rossio, sem com o dono, tendo como
fazer ajuste prévio
fundamento a avaliação, feita em 28 de Outubro de
1590, a qual fora de um conto de réis. Trouxe-lhe essa
imprevidência graves demandas e litígios, movidos pe-
los herdeiros do primeiro dono, as quais só se resol-
veram por alvará de 2 de Maio de 1597, alvará que
obrigou os herdeiros a vender o foro ao Senado por
2o8íí!Ooo réis.
Findo o litígio, começou-se a obra, que andava po-
sitivamente enguiçada, pois o pedreiro que a dirigia
cometeu tais erros, que teve de se desmanchar tudo e
fazer-se de novo, à custa dele (2).
Mais ágoa de João de Góis foi mo-
tarde, ainda a
tivo de questões que vieram a derimir-se no Limoeiro.
Foi o caso que começando ela a correr fracamente no
chafariz e investigando-se a causa de tal diminuição, se
veio a apurar que António de Foios Pereira, sobrinho
do Secretário de Estado Mendo de Foios Pereira, que
morava defronte da igreja do Socorro, a distraía do seu
natural curso, para a aproveitar na rega de um jardim
que possuía.
Identicamente se descobriu que os cónegos Estêvão
e Francisco de Barros amanhavam uma horta com a
mesma água. Resultado os cónegos foram repreen-
:

(i)-Citados Elementos, tomo 2.°, pág. 63.


(2) Foi a isso obrigado por sentença de 9 de Março de 1606
do Juiz Conservador da Câmara, Dr. Jorge Pinto de Mesquita.
VoL. IV 22
— 338 —
didos e o sobrinho do Sccretiírio de Pastado para a en-
xovia (i).

Este chafariz foi demolido em 9 de Julho de 1786,


ficando a água que o abastecia a correr na rua de S. Vi-
cente. Em i836 mudou-se daqui para a Carreirinha do
Socorro, demoh"ndo-se o arco que lá havia, por onde
ia a água para o Rossio (2).

O ano de 1698 fornece-nos alguns dados para este


assunto. Senão, vejamos :

Escasseava também a água do chafariz de El-Rei,


distraída por diversos particulares, com quem a Câ-
mara teve de sustentar demandas e quesilentas questões.
Era um nunca acabar de razões pró e contra. Já em
1541 tinha havido um litígio com os herdeiros de Lopo
de Albuquerque. Desta vez o litigante era um certo
Luís de Carvalho, possuidor de umas casas, com poço,
pegadas ao chafariz.
Para contrabalançar esses roubos que lhe eram fei-
tos, tomou o Senado posse do poço das casas de um
Francisco de Sousa de Meneses e encanou-lhe a água
para o chafariz (3).
*

O preço da água era excessivo então, e tão explo-


rado estava sendo o povo pela ganância dos vendilhões

(1) 2 5 de Novembro de 1707.


Resolução de
Citados Elementos^ tomo 2.", págs. 83 a 84. No fim do
(2)
século XVI morava no Rossio, numas casas sobre o chafariz, mes-
tre André de Rezende, onde dava lições ao Infante D. Duarte [Ar-
quivo Histórico, pág. 827 - Vida do Mestre André de Resende).
(3) Estes Sousas Meneses eram antepassados dos Duques da
Terceira. A casa é aquela onde nasceu e morreu o Duque-Mare-
chal {A Ribeira de Lisboa, pág. 171).
- 339 -
que o Senado viu-se obrigado, em iGii, a publicar
uma postura reguladora de preços deste e de outros
géneros.
Com referência a água foram estas as determina-
ções :

«Um pote de agoa do chafariz de El-Rey, da me-


dida, da cidade, na freguezia da Sé, Magdalena, S. Ni-
colau, Rua Nova, S. João da Praça, valerá 6 réis;
«E sendo cargas de agoa, da maneira que se agora
costuma, nas mesmas freguezias, 16 réis, sendo do
chafariz de El Rey ou dos Cavalos de Alfama.
«Na freguesia de S. Martinho, S. Mamede, Santa
Justa, S. Christovam, Poço do Chão, Rocio, até á cal-
çada de Payo de Nabaes, valerá o pote de agoa pela
maneira sobredita, da marca da cidade e sendo nestes ;

limites valerá a cargade 4 quartas 20 reis, e sendo


fora dos muros valerá o dito pote de agoa i5 reis, e
sendo nestes limites valerá a carga de agoa de 4 quartas
20 reis» (i).
*

Durante o período da reunião das coroas de Portugal


e de Castela trabalhou afincadamente o Senado em pro-
ver a necessidade que a falta de água trazia à capital.
Foi homérico o seu trabalho e, se não logrou o êxito
que merecia, foi porque os Filipes, sob uma aparente
boa vontade e um falso interesse, apenas patrocinavam
os preparativos monetários com o fim ijnico de os dis-
trair na devida ocasião. O que os monarcas caste-
lhanos queriam era que se entesoirassem capitais para
a obra, fazendo ouvidos de mercador quando o Senado,
com habilidade despremiada, lhe exigia garantias para
a futura e exclusiva aplicação desse dinheiro.

(1) Citados Elementos, tomo x, pág. 222.


— 340 —
o leitor verá, na sequência das diligências que vou
enumerar, a verdade destas considerações.

Começam no mesmo ano de 1618 as providências


sobre o assunto.
A primeira de que tenho notícia é uma caria regia
de i3 de Fevereiro em que o soberano intruso declara
aceitar a pretenção do Município com referência à im-
posição do Real de Água. Kncontro nesse documento
uma cláusula curiosa, e ela, que teria primacia sobre
e'

a obra da água livre a obra a fazer no retábulo da


capela do Mártir S. Vicente isto e', depois de se re-
;

parar (ou estragar!) o retábulo, é que se trataria da


condução da água(i).
Por várias vezes, nesse mesmo ano, se vistorizou a
fonte de Garenque. Em 3 de Setembro, por exemplo,
foi lá o Presidente do Senado, João Furtado de Men-

donça, acompanhado por engenheiros arquitectos e ou-


tros indivíduos competentes. Depois de maduro e mi-
nucioso exame, resolveu a Vereação, no assento de 1

do mesmo mês, que se trouxesse a água provisoria-


mente, por canos de madeira, os quais já ficariam ser-
vindo de modelo para obra de pedra e cal, lançando-se
para este fim um real na carne e dois no vinho, como
já ficara determinado de antemão. Tornava-se mister
apressar a obra, ajuntar materiais e dinheiro e, como a
imposição não chegasse talvez para tudo, pediu-se per-
missão a El-Rei para a Câmara poder vender alguns
juros e para que se pudessem fazer sumariamente as

(i) Citados Elementos, tomo n, pág. 410.


— 341 —
avaliações dos terrenos a expropriar. Tudo isto se im-
petrou em consulta de 16 de Setembro (i).

O Viso-Rei Marquês de Alenquer foi tambe'm, por


duas vezes, visitar a fonte da Agua Livre (2).

A 25 de Setembro fêz-se novo exame. A êle foram


o Presidente da Câmara ; os Drs. João de Frias Sala-
zar e Gil Eanes da Silveira, vereadores; Pedro Borges,
Procurador da Câmara Pedro Alvares e Francisco da
;

Veiga, Procuradores dos Mesteres; João de Sousa Pe-


reira, vereador das obras da cidade, e Rodrigo Ho-
mem, escrivão das ditas obras.
Já então estavam abertos os cavoucos novos.
Além dos funcionários da Câmara estiveram tam-
be'm presentes : João Baptista Lavanha, cosmógrafo e
cronista-mór ; Leonardo Turriano, engenheiro-mór
Teodósio de Frias, Luís de Frias e Pêro Nunes Ti-
noco, arquitectos; Miguel Francisco e Manuel Coresma,
medidores ; José Francisco e Domingos Roiz, pedreiros
e carpinteiros; e Cristóvão Baltazar, latoeiro(3).

(i) As avaliações, conforme os desejos do Senado, deveriam


ser feitas por um um síndico da Câmara e um terceiro
louvado,
para desempate. Para a obra se fazer sem maiores dificuldades
pedia-se outrossim para se guardar e acatar o Regimento dos ca-
nos da prata, em Évora (vol. 2." da citada obra, págs. 421 a 423)-
(2) Elementos para a História do Município de
Lisboa, tomo 11,
pág. 423.
(3) Em 1G18, em Lisboa, foi impresso por Jorge Rodrigues,
um folheto intitulado: Declaração sobre a matéria da água para
esta cidade de Lisboa por servirSua Magestade a quem promete
outros maiores em serviço de Deus e seu, e do bem comum das
Republicas do Mundo. O autor era Baltazar de Sousa de Alber-
garia, e a obra era dedicada ao Vicc-Kei Marquês de Alenquer.
Inocêncio diz nunca ter visto qualquer exemplar.
— 042 —
Pêro Nunes Tinoco, o arquitecto, quem fêz o
F^oi

roteiro a medição de todo o projectado aqueduto,


e
concluindo-a em 2 de Outubro desse ano(i).
Desse roteiro que se conserva manuscrito na Biblio-
teca Nacional, extrairei algumas curiosíssimas notas (2).

Diz Tinoco, que em todo o percurso se não atraves-


savam fazendas, nem pomares, nem vinhas, nem ca-
sas. Toda a obra se fazia por terrenos lavradios até
os Moinhos de Vento, sítio que se destinava para a
Mãi de Agua e de onde se haviam de repartir as águas
para as fontes que se construíssem na cidade. Além
do mais, traria enorme vantagem o facto de se apro-
veitar a pedra que havia, solta e a monte, em todo o
caminho, não só para a obra como para os proprietá-
rios que nisso recebiam grande benefício tornando-lhes
aptos para cultura muitos dos terrenos obstruídos por
ela (3).
Depois de várias considerações sobre tal matéria,
segue-se, no manuscrito aludido, a medição do aque-
duto, compreendendo noventa e cinco medições par-

Pêro Nunes Tinoco morava então na rua do Carvalho ao


(i)

Bairro Alto. Ali faleceu, em 20 de Março de 161 8, sua mulher


Maria Ribeira (Livro dos Óbitos da Freguesia de Santa Catarina).
(2)Idem, pág. 64 e segts.
(3)Roteiro da Agua Livre e Agua de Montemor e mais fon-
tes junto a elas, por Pêro Nunes Tinoco, arquitecto de Sua Ma-
jestade, em 29 de Setembro de i6ig; —
e à margem, ao lado:
Dedicado ao ilustre Senado da Câmara por João Nunes Tinoco,
arquitecto de Sua Alteza, filho do arquitecto Pêro Nunes Tinoco
que fez o á\lo Roteiro — Ano de iG;i. Manuscrito B.-5-22 da Co-
leção l'ombalina. Parece manuscrito para a imprensa.
- 343 -
ciaisdeste a Agua Livre até á conserva da água, no
Moinho de Vento.
Interessa-nos especialmente a parte final do aponta-
mento, isto é, as últimas cinco medições que se refe-
rem à parte do aqueduto, que atravessava a cidade.

Vou transcrevê-las :

90.^ — ... E da dita estaca até o cunhal das casas que


ficam defronte de S. João dos Bemcasados,
aonde está uma cruz (sicj, tem de comprido
até a estaca que posta ao valado, ao pé
fica

de uma oliveira 1:043 palmos e tem de cor-


renteza 3 palmos e 7 dedos;

91.^ — ... edo cunhal das casas que tem a cruz, junto
a S. João dos Bemcasados, indo-se continuando
até o muro dos Padres da Companhia, donde
se divide em trez caminhos, um para o Moi-
nho de Vento, outro para a Anunciada, outro
para São Bento e Alcântara, tem de compri-
mento 2:770 palmos e em todo elle hade ir o
aqueduto somente no vale em baixo, etc.

92.^ —E deste logar donde se dividem os caminhos


ditos hade ir continuamente pelo vallado do
olival que fica da parte do sul junto á quinta
e cerca de Francisco Soares e hade ir conti-
nuando pela sua cerca até o canto das suas
casas, que tem de comprido até os marcos
fixes que foram postos na calçada, 1:341 pal-
mos ;

93.* —E do dito cunhal de Francisco Soares indo con-


tinuando o aqueduto pelo longo da estrada
pelo vallado de terra que fica defronte do edi-
— 344 —
ficio dos padres da Companhia, até o cunhal
da cerca deGil Eanes lem de comprimento
2:o3o pahnos e se lhe deu de correnteza do
muro dos padres da Companhia donde se di-
vide a estrada até o dito cunhal, 21 palmos;

94.* — E do dito cunhal indo como carro pelo meio


da rua até ás casas do Presado á coiceira da
sua porta, tem de comprido 698 palmos e tem
de correnteza a que o dito aqueduto traz até
o dito logar ;

9^.* —E das casas do Prezado até as casas onde se


hade fazer a conserva ou casa da agoa, con-
forme se mostra no perfil assinalado com a
lettra O, tem de comprido S70 palmos, a qual

terra a rodeia quatro ruas e fica livre para


todas as partes e não se mostra na planta (1).

No mesmo manuscrito encontram-se ainda notícias


e relações de outros trabalhos da mesma natureza.
Entre elas aponto as seguintes :

Observação da quantidade de água, feita na fonte da


agoa livre, por Theodosio de Parias, cm 4 de Agosto
de 1618 com assistência do Dr. João de Farias Sala-
zar, vereador do pelouro das obras. Esta diligen-
cia fez-se por instrução do Viso-Rei iVIarquês de Alen-
quer (2);

(i) Citado manuscrito da Coloção Pombalina da Biblioteca


Nacional — B.Ó-22, págs. 77 a ]<).

(2) Idem, pág. 109.


— 345 —
Diligência e desenho do caminho de condução da água
de FanhÕes até Lisboa, do lugar onde se deveria
encontrar com a da Agua Livre ;

Relação dos anéis de água encontrados nas diferentes


fontes observadas, para juntar à de Carenque ;

Orçamentos diversos

E, principalmente, um outro Roteiro em que avulta


como mais interessante uma se'rie de desenhos à pena,
devidos certamente a Tinoco, servindo de elucidação
à marcação das cotas de nível no percurso do aque-
duto. E datado de 1625.
Esses desenhos, feitos em meia dúzia de traços,
simples esboços imperfeitos, são contudo excelentes
como documentação local. A fachada principal do edi-
fício do Noviciado da Cotovia, a-pesar-da imperfeição
evidente do desenho, dá, confrontada com estampas
posteriores, uma garantia segura da fidelidade dos ou-
tros esboços.
Um deles, representando um portal a que o texto
se refere, vem a denunciar-nos a existência de tal aber-
tura ornamental no muro da quinta do Noviciado. No
texto, entremeado, chama-se-lhe quinta dos Apóstolos.
Esse portal ficava exactamente no sítio onde hoje
está o Chafariz do Rato, no ângulo dos jardins do Pa-
lácio Palmela (i).

No primeiro volume desta obra reproduzem-se os


dois desenhos.Os pontos de referência das medições
mesmos do primeiro roteiro: S. João dos
são quási os
Bemcasados, muro da quinta dos Apóstolos, casas e
quinta de André Soares (da Cotovia), cunhal de D. Gil

(1) Ignoro em que data foi demolido o portão monumental


da quinta dos Jesuítas. Ao principiar o século xviii já, porém, não

existia.
— 34*5 —
Eanes e casas de Gonçalo Vaz Coutinho, Junto a S. Pe-
dro de Alcântara.
Quási ao fim do caminho projectado, passado o
cunhal de Gil Eanes, isto é, na rua de D, Pedro V,
vê-se o barracão vasto dos fornos de louça, também já
reproduzido nesta obra.

D. Filipe II atendeu em parte às pretenções da Câ-


mara, mas como não queria o assunto resolvido rapi-
damente, mandou fazer averiguações mais claras acerca
da quantidade de água e da despesa a fazer com a obra,
conferindo-se os novos exames com os que já tinham
sido feitos ultimamente e com os que se fizeram em
tempo do Arquiduque Alberto, sendo Presidente da Câ-
mara D. Pedro de Almeida. Com referência ao pedido
da venda dos juros, consentiu nela e indicou para pro-
ceder às novas vistorias o seu muito afeiçoado Lava-
nha(i).
Propôs-se a Câmara a fazer o que El-Rei lhe orde-
nara lançando pregão para a venda da imposição do
real da carne e dos dois reais no vinho, quando o Viso-
-Rei Marquês de Alenquer se m.anifestou contra o pre-
gão.
A razão apresentada pelo Viso-Rei era a repugnância
com que o povo recebera o imposto. Embaraçada a
Câmara com mais esta demora, escreveu ao Marquês
pedindo-lhe que mais não tolhesse o assunto e escre-
vesse a El-Rei, para que o povo não tomasse por des-
cuido da sua parte a dilacção da obra (2).

(1) Elementos para a História do Município da Cidade de


Lisboa, tomo 11, ppg^. 424 a 42o.
(2) Idem, pág. 434.
— 347 —
A carta daCâmara, datada de 29 de Fevereiro de
1619, ficou sem resposta. Depois meteu-se de permeio
a viagem triunfal do monarca castelhano, e o povo, os
ministros e a própria Câmara não pensaram mais senão
nas festas a fazer á chegada do usurpador.
Em vez de medições e vistorias nas fontes, faziam-se
consuhas nos regimentos antigos das recepções festi-
vas e a cidade, embora morresse à sede de água, gas-
;

tava rios de dinheiro em arcos triunfais, iluminações,


bailes e colgaduras, bandeiras e insígnias
Sempre o mesmo, o nosso Ze Povinho! Miserável
mas ridente! Faminto, mas folião; e mais propenso
a estoirar de riso do que a rebentar de fome !

Durante a sua estada em Lisboa, foi D. Filipe ver


a fonte daAgua Livre no dia 17 de Setembro de 1619.
Devia essa deferência ao Senado, la para Sintra e
aproveitou apear-se a meio do caminho com o seu in-
separável Lavanha. Mostrou-lhe este a nascente, elu-
cidou-o quanto à quantidade da água e, por simples
formalismo oficial, fêz-se uma medição na presença de
El-Rei. Conta-o êle mesmo na sua conhecida descri-
ção da viagem régia.

Passados os festejos, e sobre eles boa porção de


tempo, entendeu a Câmara fazer novamente lembrada
a obra da condução da água. Serviu de pretexto o
Turriano ter ido mostrar a El-Rei,
facto do engenheiro
como seu, um projecto em que também tinham colo-
borado Lavanha e outros. Escreveu por isso a Câmara
— 348 —
prevenindo o soberano da manha de Turriano, em 23
de Julho de 1620(1), e logo, datada de 28, recebeu carta
de D. Felipe rogando-lhe tratasse de obter o dinheiro
indispensável para a construção do aqueduto. Este
ponto que interessava particularmente o soberano.
é
Exultou a Câmara, e escreveu Jubilosa para Madrid
noticiando quem ia, sem demora, tratar do assunto com
o Marquês de Alenquer.

Em 3 de Setembro reuniram-se os vereadores e de-


liberam que, para se levar a obra a efeito, conforme os
desejos de El-Rei, era necessário o seguinte

i." — Que se lhe desse jurisdição para avaliar as ex-


propriações sumariamente, pagando-se tudo
pelo seu justo valor, sem isenção de espécie
alguma para
as pessoas eclesiásticas ou ordens
mendicantes ;

2." — Que se não pudesse distrair para outros fins o


dinheiro da imposição, fazendo-se tudo con-
forme o regimento da água de Prata, em Évora ;

3.° — Que se pudessem vender juros, sobre as rendas


a pagar da mesma imposição, de 16 a 20 o mi-
lhar, e se pudesse tomar de empréstimo o di-
nheiro que fosse necessário na melhor oca-
sião (2).

Assentou a Câmara nisto e mandou-o dizer a El-


-Rei, acompanhando a carta de vários documentos ten-

(1) Citados Elementos, tomo 11, págs. 363 a 5G4.


(3) Idem, pág. 566 e 567,
— ^49 —
dentes a demonstrar quão grande perigo haveria em
dar-se começo ao aqueduto sem as provisões que so-
licitava (i).
Andavam avisadamente os vereadores, pondo-se a
salvo da ganância do monarca, que na primeira ocasião
mandaria distrair o dinheiro da imposição, e precaven-
do-se contra os litígios, reclamações e excomunhões,
dos desembargadores, eclesiásticos, frades, cavaleiros
de Malta e mais indivíduos privilegiados (2).
D. Felipe, que só especulava com a grande neces-
sidade de que sofria a capital, fez ouvidos de merca-
dor às solicitações do Senado, e, a 17 do mesmo mês,
mandou, pela segunda vez, lançar o pregão da obra,
sem mais explicações.
Não estiveram os vereadores pelos ajustes e bem o
fizeram sentir em outra carta dirigida a El-Reiem
24 (3).
Chegada o mês de Setembro, a 22, surge nova mis-
siva régia martelando na necessidade de haver dinheiro
junto para tão grande obra —
imporlava-se êle bem com
a obra ! —
e mandando fazer nova vistoria poi^ pessoas

inteligentes para ver se a água diminuía no verão (4).


Finalmente, a 6 de Outubro, aparece ainda outra
carta enviando conjuntamente um papel de Leonardo
Turriano, para a Câmara o ver e analisar, enviando-
-Ihe depois o seu parecer acerca do traçado escolhido,
dos três que o engenheiro apresentava. Fala também
na necessidade de se examinar certa nascente, perto
de Sintra, de que Turriano lhe falara. Acerca das pro-
visões pedidas, nem uma palavra (5).

(i) Citados Elementos^ tomo 11, págs. 568 a 570.


(2) Carta de 4 de Setembro de 1620.
(3) Citados Elementos^ tomo x, pág. 572.

(4) Idem, pág. 573.


(5) Idem^ pág. 574.
35o

O papel de Leonardo Turriano é muitíssimo inte-


ressante e merece ser transcrito. Eis o que diz o en-
genheiro (i)

«Senhor! Leonardo Turriano diz que para condu-


zir a Agoa Livre a esta cidade e a diferentes partes
delia juntamente com as mais que se lhe agregam, ha
quatro caminhos e pareceres, os quaes começam cerca
da estrada de Bemfica, como se ve na planta.
«O primeiro colorido de amarello, com as letras
DD, atravessa treze vales e cinco minas, com o com-
primento de quatro léguas e meia ; custará um milhão
e tirando-ihe os sobre-arcos do valle de Noudel e de
Alcântara, passando a agoa por repuxos, custará sete
centos mil cruzados.
«O segundo caminho e projecto, colorido de casta-
nho, com as letras BB, vai mais baixo do que o pri-
meiro passando só três vales, um grande
até Sete-Rios,
e pequenos vai por Palhavã, entrando na mina
dois ;

cem palmos abaixo de S. Sebastião da Pedreira, e


atravessando as terras de Campolide e Cotovia, acaba
na esquina de S. Roque á superfície da teira, á dis-
tancia de quatro léguas e três quartos : custará quatro-
centos mil cruzados.
«O terceiro caminho da estrada de Bemfica, colo-
rido de azul com as lettras CC, vai sempre continuando
pela superfície da dita estrada até Sete-Rios e de ali
se levanta sobre arcos de 3o palmos, na mesma es-
trada em Palhavã, até entrar na mina de S. Sebastião
da Pedreira, seguindo o caminho do segundo projecto,

(i) Este documento está escrito em castelhano. Dou-o ao


leitor traduzido para maior simplicidade de leitura.
— JDl —
até chegar a S. Roque, á distancia de quatro léguas
pouco mais custará cento e cincoenta mil cruzados
;

por cano pequeno e por cano grande outro tanto.


«Todos estes trez caminhos, por irem mui baixos,
não podem dar agoa senão até S. Roque e não a ou-
tra parte da cidade.
«O quarto e ultimo caminho é pelo aqiieducio antigo
dos romanos, o qual por vir mais alto dez palmos que
o da estrada, pode dar agoa a ambas as portas da ci-
dade, a S. Roque e sobre a porta de Sa)ito André, como
deu antigamente, pois terá quantidade bastante para
ellas(i).
«Este caminho não é tão bem recebido como o da
estrada, pois atravessa muitas quintas principaes e de
pessoas poderosas, podendo-se presumir que se apro-
veitarão desta agoa e que sempre haverá pleitos e pe-
sadellos por causa d'ella ; e para evitar este inconve-
niente parece que levantando dez palmos mais os arcos
de Palhavã, sobre os trinta (como ficou dito) se conse-

gue o mesmo fim ; comtudo para evitar despezas de


arcos e de tempo e algumas dificuldades que pode cau-
sar a estreiteza da mesma estrada em alguns pontos
parecem menores os inconvenientes do cano velho, por
ir alto sem mais nenhum arco que os da estrada ainda

que passe por fazendas alheias. D'estes últimos pare-


ceres por serem os melhores V. M. deve escolher o
que melhor parecer e juntamente qual dos dois canos,
se o pequeno, se o grande em que pode andar uma
pessoa por cima d'elle, pela muita diferença de des-
peza. Em Madrid em 26 de Setembro de 1620» (2).

(() O citado manuscrito B.-5-22 (onde se inclui o Roteiro da


Agua Livre) dá -nos informação de que Pêro Nunes Tinoco tam-
bém vira o Aqueduto e que até pensara em o aproveitar.
(2) Citados Elementos, tomo 11, pág. 574.
— 352 —
É de crer que o Senado não tomasse resolução al-

guma com referência aos projectos de Turriano (em


que Lavanha também coloborara) sem que lhe desse
satisfação aos seus instantes pedidos.
D. F^elipe ainda chegou a escrever outra carta (em
20 de Outubro) ordenando nova vistoria, mas agora
cabia a vez à Câmara de fazer ouvidos de mercador.
A cidade ainda tinha muito que padecer e voltava

as suas vistas compadecidas para o chafariz de El-Rei,


que se estafava em matar-lhe a sede desde o século xiii.

Abençoado chafariz!
CAPITULO XV

Sumário Condução da água de Cheias


:

Compra-a o Senado —
Litígio entre aCâmara e os herdeiros do vendedor Con- —
dução da água ao Terreiro do Paço — Preços da água no sé-
culo XVII — Desordens nos chafarizes — A fonte do Salgado —
É destraída a água das fontes públicas da Horta-Navia, Anjos
e Samaritana —Demandas enfadonhas —
A bica dos Olhos de
Água — Os banhos do cirurgião Guilherme e o Enviado de
Inglaterra — Apresenta um projecto para levar a água ao

Bairro Alto, um António de Miranda — Malogro da primeira


experiência — O projecto de Teófilo Dupineaul — Sua demo-
rada análise — O parecer do Síndico e dos Procuradores da Câ-
mara — Onde
se mostra por que tal projecto não foi avante
— Turva-se água do Chafariz de El-Rei
a —
Dcscobrem-se-lhe
duas novas nascentes —
Seca o chafariz do Rocio Um ve- —
dor de águas, Visiense, em Lisboa —
Entaipa-se a porta da
ermida da Água-Livre —
A fraude das quartas de barro —
Postura municipal —
Desavêemse os oleiros e os aguadeiros —
\0 projecto de António Júlio de La Pomarée —
A sede de Lis-
boa ! — Aproxima-se a obra — Repartem-se por Cláudio Gor-
gel e por D. João V os elogios devidos aos propugnadores e
iniciadores da obra das Águas Livres —
Opinião dos vereado-
res e procuradores acerca do tributo a lançar-se — Orçamen-
tos e cálculos.

Chegado o ano de i623, Pêro Nunes Tinoco e Teo-


dósio de Frias, respectivamente, arquitectos de El-Rei
e do Senado, foram com o medidor Manuel Quaresma,
com o mestre das obras da cidade Miguel de Oliveira
e com o latoeiro Cristóvan^ Paltasar, fazer as medi-
VOL. IV 33
— 354 —
ções de uma e horta do Dr. Pe-
nascente, junto às casas
dro Barbosa, no lugar de Cheias (i).

A-pesar-de fazerem a observação no tempo de maior


seca (em 26 de Julho) encontraram nove anéis de água
e probabilidades de aumento aié trese desde, o mo-
mento em que se fizesse uma ligeira obra que deixaram
mencionada na relaça'o manuscrita a que me cinjo. Em
sua opinião, era da máxima conveniência o aproveita-
mento da nascente, cuja água se poderia trazer ao Ter-
reiro do Paço sem prejuízo da obra da Agua Livre que
ficaria reservada ao abastecimento do Bairro Alto (2).
Oito anos depois, reflectindo maduramente em tal
matéria, resolveu a Câmara adquirir a nascente por-
quanto a falta de água se tornava cada vez mais sen-
sível. Com essa água se poderiam abastecer os projec-
tados chafarizes do Terreiro do Paço, Pelourinho Ve-
lho e S. Paulo deixando a água de Belas para desse-
dentar o Bairro-Alto de S. Roque, conforme a opinião
dos peritos (3).

Pertencia enfão a nascente a Diogo Soares, Secre-


tário do Conselho de Estado em Madrid, por lh'a ter
trazido, em dote, sua mulher D. Mariana de Sá, filha
do Dr. Pedro Barbosa. Diogo Soares era cunhado do
tristemente célebre Miguel de Vasconcelos, e daí pro-
vinha a sua maior importância e fazenda (4).
No assento da Vereação de 27 de Março de i633,
resolveu-se fazer a compra da água por 12.000 cruzados

(i) Este Pedro Barbosa fora Corregedor da Corte e Desem-


bargador da Casa da Suplicação.
(2) Citado manuscrito da Colecção Pombalina B-5-22, pá. 77
a 79 — Notícia incluída no Roteiro da Agua Livre.
(3) Assento da Vereação de 8 de Janeiro de i633. Citados
Eletnentos.

(4) Citados Elementos, tomo ui, pág. 55 1,


— 355 —
ou fossem 240íÇ)Ooo réis de Juro assentes no Real de
Água, com a condição de se dar passagem ao aque-
duto pela quinta e terras dos vendedores, sem outro
prémio., Por seu turno a Câmara reservaria 3.ooo cru-
zados anuais para a obra, sendo metade por conta da
Fazenda da cidade e outra metade pelo Real de Agua(i).
Parecia o negócio de mão cheia. O cónego Pedro
Barbosa de Sá, cunhado de Diogo Soares, assoprado
naturalmente por Miguel de Vasconcelos, não largava
o assunto que era do máximo interesse para o seu cons-
tituinte, e a transacção fêz-se em 14 de Abril, sendo teste-
munha da escritura, por parte do Senado, o Dr. Diogo
da Cunha.
A Cai'ta Régia de i5 de Junho de i633 aprovou e
confirmou a compra, dispensando ao mesmo tempo a
Câmara do pagamento da sisa de 2405Í000 réis (2).
Isso não a impediu de solicitar, mês e meio depois, a
3o de Agosto, permissão para vender juros até 12.000
cruzados, para pagamento integral a Diogo Soares. A
liquidação fêz-se pouco depois.
Quarenta anos mais tarde é que o Senado da Câ-
mara percebeu que tinha sido ludibriado em toda a
linha. A água não valia nem a décima parte do preço
que tinham dado por ela, e ainda por cima era impos-
sível levá-la aos pontos onde se tencionavam construir os
chafarizes de que já fiz menção. Descoberta a fraude,
deu-se o litígio entre a Câmara e os herdeiros de Diogo
Soares.
Em 1682 vejo uma consulta a El-Rei rogando-lhe
a resolução do pleito que se eternizava nos tribunais
por influências dos contrários, no dizer dos vereadores.
A Câmara julgava-se com direito a uma indemnização;

(i) Citados Elementos, pág. 553.


(2) Idem^ pág. 5yO.
— 356 —
alegavam os herdeiros de Diogo Soares que tudo s'e

tinha feito legalmente (i).

Resultado : A Câmara ficou sem o dinheiro e a ci-

dade continuou sem água.


João Baptista Domingues — biógrafo do infante D.Teo-
dósio —
atribui a este prin:ipe, na sua conhecida obra,
a intenção de trazer a Lisboa a água de Belas. E re-

mata a notícia, dizendo:


Queira Deus que^ como vemos quasi completo este
intento deste grande principe, vejamos satisfeitos, in-
teiramente os mais. Domingues escreveu já no sé-
culo XVIII quando a obra da Agua Livre estava a fa-
zer-se (2).

Voltemos um pouco atrás.


Em i636, reunidos os Vereadores, em 21 de Ja-
neiro, assentaram em fazer mealheiro dos sobejos do
Real de Água, para todas as obras que se relacionas-
sem com o abastecimento de água da cidade. O tesou-
reiro Agostinho Franco ficaria encarregado da arreca-
dação dessas sobras que eram preciosas (3), mas só
em i655 é que vejo nota de se terem utilizado. Sai-
bamos como.
Vinha de longe o enipenho de trazer a água ali ao
pé do Paço Real, no chamado Terreiro do Paço. Apa-
receu um dia um tal Bartolomeu de Sousa que se pro-
pôs realizar esse antigo desejo, e a Câmara prometeu-Ihe
5ooííí)00o réis de prémio e um ofício lucrativo se tal

(i) Chdi Aos Elementos, tomo vi.i, págs. 453-454 -^ Co«5m//íi


^
de II de Setembro de 1682.
(2) Idcm^ pág. 11 1.

(3) Idem^ tônip iv, pág. 172.


— 357 —
conseguisse. Não sei oomo nem quando a obra se fez,
mas o facto é que o assento da Vereação de 23 de Ja-
neiro de i655, consigna o cumprimento da promessa
o que dá a entender que ele conseguira pôr a água a
correr naquele local. Deram-lhe os 5oo.'33!5000 réis e o
ofício ficou para quando houvesse lugar (i).

Não foi a obra muito durável. Em 1672 por esta-


rem os canos todos rotos, parou a água de correr.
Teve a Câmara de mandar consertá-los à sua custa.
Participando a D. Pedro II a conclusão da obra, pe-
de-lhe que ordene o pagamento dessa despesa à Fa-
zenda da cidade, pelo cofre dos Soo. 000 cruzados do
clero que de há muito se não aplicavam a pontes e
fontes, que era o seu destino (2). Era esta fonte nova d.

do Terreiro do Paço que aparece no extraordinário


Diálogo das Fontes de D. Francisco Manuel de Melo.

Tantas canseiras, tantos trabalhos da Câmara para


em tão largo espaço de tempo conseguir apenas
afinal,
uma fonte a mais E triste 1 !

Em 1668, mandou-se publicar uma tabela de preços


para a água. Vendia-se caríssima. A consulta de 7 de
Agosto desse ano (em pleno verão) expõe a El-Rei as
causas que motivaram essa deliberação.
Publicadas as taxas, lavrou indignação nos arraiais
dos vendilhões. No chafariz de Santa Catarina (que
aparece nomeado aqui pela primeira vez) partiram-se
centenares de quartas de barro em sinal de protesto

(1) Citados Elementos, tomo v, pág. So/.


(2) Idem, tomo vi, pág. 446 e tomo vii, pág. SSg.
— 358 —
foram presos dois aguadeiros (Domingos Roiz e Bento
Gonçalves) e houve um charivari medonho.
Mandou-se devassar. Os presos foram açoitados e
condenados, e a revolta ficou por ali(i).

Em 1675, pediram ao Senado os religiosos da Pe-


nha de França para fazer uma fonte pública no adro
da igreja do seu convento. Foi a obra orçamentada e
julgada útil, dando para ela o Senado, como consta da
consulta de 23 de Agosto desse ano, a ajuda de 40íJ)000
réis.

Mais nenhum documento encontrei que autenticasse


a efectivação desta obra.

Em 1684 adquiriu a Câmara uma fonte que estava


nas casas de certo Diogo da Costa Salgado, por detrás
do chafariz de Dentro, a-fim-de fazer um chafariz da
parte de fora do postigo. A fome tinha oito anéis de
água, e o preço foi de 2o.'Ty-ooo réis de juro, a 20 o mi-
lhar, sobre as rendas da cidade (2). Se a obra se che-
gou a fazer não posso informar o leitor, pois nada en-
contro no inextimável repositório de documentos muni-
cipais a que me vou cingindo. O que encontro por
esta época, com lamentável frequência, são demandas
e litígios enfadonhos, entre a Câmara e particulares,

(i) Citados Elementos, tomo vii, pág. 5g-6o — Resolução Ré-


gia de 8 de Agosto de 16G8.
(2) Idem, tomo viii, pág. 524.
- 359 -
acerca da distracção de águas da cidade em proveito
das hortas e dos jardins de vários sujeitos.
Talvez não seja desarrazoado meter o bedelho nes-
sas questiúnculas. Vamos a isso !

Em 1660, António de Andrade de Gamboa, dono


da quinta da Horta Navia, à ribeira de Alcântara, ca-
nalizara, para uma horta, parte da água da fonte que
ali havia e que desde tempos imemoriais estava de

posse da Câmara. Bramaram contra a extorsão os


moradores do sítio. Mandou-se-lhe repor a água. O
Gamboa não obedeceu sacrificando ao bem-crescer das
couves o seu sossego pessoal. Exasperou-se a Câmara
e tirou-lhe a água à força (i).

Já em tempo de El-Rei D. Manuel se dera um facto


semelhante. O
povo de Santos e de Alcântara recla-
mou ferozmente e a água foi também defendida das
hortaliças sequiosas (2).
Em 167 1, um tal Domingos Monteiro distraiu, para
dois poços que tinha numa horta aos Anjos, a água da
fonte que ali se tinha descoberto, há pouco, por sinal
de grande eficácia para os achaques de pedra (3).
Seis anos mais tarde, um
mal intencionado, cons-
truiu um muro sobre o cano que vinha de Cheias, na
quinta que fora de António Cavide. Como tal pro-
priedade se achava sequestrada, a Câmara pediu pro-

(1) Citados Elementos, tomo vi, pág. 197— Consulta de i8


de Agosto de 1660.
(2) Idem, idem.
(3) Idem, tomo vii, pág. 3 e 4 — Consulta de 8 de Agosto de
1671. ,
— 36o —
vidências a El-Rei, na impossibilidade de obrigar o
dono, que não existia, a reparar o dano(i).
A água do aqueduto que passava pela horta do
Mouco, em Xabregas, era distraída também, em 1694,
por diferentes particulares, diminuindo notavelmente
na fonte da Samaritana para onde corria (2).
Para finalizar, temos, em 17 14, a formidanda ques-
tão da bica dos Olhos de Agua, na rua de Salvador
Correia de Sá (depois calçada de S. João Nepomoceno
e hoje rua Caetelo Branco Saraiva) cuja água vinha do
monte de Santa Catarina. E o caso foi este :

Morava, achegado ã fonte, um cirurgião inglês, de


nome Guilherme, que, por descobrir na linfa de Santa
Catarina propriedades medicinais ou por pretender fazer
fortuna com ou por ambas as coisas
elas o que é mais —
provável —
a canalizou para dentro da habitação, abas-
tecendo um grande tanque onde tomava e dava banhos(3).
Queixaram-se os moradores do sítio da diminuição
que padecia a água, primeiro a êle, que não fêz caso,
depois à Câmara. Esta interveio, notificou ao cirur-
gião que não impedisse a água, e, como êle não obede-
cesse, foram lá os alvenéis na intenção de escangalhar
aquilo tudo. Resistiu ainda o inglês não com razões

(i) Citados Elementos, tomo v.ii, págs. 207-208.


Idem, tomo ix, pág. 365. Esta fonte da Samaritana datava
(2)
de i5o8, época em que a Rainha D. Leonor mandou construir o
Paço de Xabiegas. A fonte ficava encostada ao Paço {Arquivo
Pitoresco, vol. v, pág. 3o3).
(3) O Aquilégio Medicinal refere a lenda de que a água desta
bica colhida antes de nascer o Sol, curava a inflamação dos olhos.
Um francês que então residia em Lisboa, vendia-a em frascos,
com lucro notável, tanta era a fama. Daqui o nome da bica. A
fonte ficava no antigo sítio das Portas do Pó. A calçada da Bica
Grande e da Bica Pequena, dão a entender que as fontes eram
duas. [Arquivo Pitoresco, vol. v, pág. 266.)
— 36i —
mas com toda a sorte de impropérios e de insultos, e
os alvenéis retiraram deixando em paz mestre Guilherme
porque o Enviado especial de Inglaterra ia lá tomar
banhos e dava-se bem com êies.
A Câmara teve de engulir em seco os palavrões do
cirurgião para bem da diplomacia, mas logo que S. Ex.*
deixou de mergulhar no tanque do cirurgião, mandou
dar cabo dele (i).

Ponto final.
*

António de Miranda (quem seria?) fêz, em i(

uma petição à Câmara oferecendo-se para levar ao


Bairro Alto, então o mais falto de água, a água das
fontes da cidade baixa sem se valer de rodas, noras ou
qualquer engenho que em poucos anos se quebre, gaste e
um desenho «de
desmanche., exc. Juntamente apresenta
perfil»do projectado aqueduto, sem que dele se dedu-
zisse a maneira fantasiosa como a água se elevava
para -ser distribuída (2).
Ouvidos os técnicos sobre tal matéria, puseram em
dúvida a eficácia do processo oculto de elevar o líquido,
e acharam que se tornava mister ouvir o seu autor.
Emitiram este parecer Mateus do Couto, Erancisco
Pimentel e o padre João Duarte (3).
Inquiriu-se do preço de uma experiência prévia, por
Resolução Régia de 14 de Julho desse ano, e António
de Miranda, pelo seu próprio punho, avaliou-a em
3ooítf)00o réis. Outra Resolução de 23 do mês seguinte,
ordena se faça a experiência aludida. O silêncio dos

(i) Elementos para a História do Município da Cidade de


Lisboa, tomo u, págs. 69-72.
(2) Idem, tomo x, pág. 36-37.
(3) Idem, idem, pág. 38. O parecer é datado de 8 de Julho.
— 362 —
documentos daqui por diante indica o malogro da ex-
periência (i).

Onze anos mais tarde foi apresentada à Câmara


uma nova proposta. Subscrevia-a um francês, Teófilo
Dupineaut que se intitulava fidalgo e não sei que mais.
Propunha-se Dupineaut trazer para a cidade, pon-
do os a correr nos chafarizes de S. Roque, Esperança,
S. Paulo, Terreiro do Paço e S. José, por canos de
repuxo, sem aquedutos nem arcos, nada menos de qua-
renta anéis de água (2).
A despesa de tal obra orçava por um milhão de
cruzados. Foi isto em 1699.
Não tinha a Câmara dinheiro para pagar cada anel
de água na cidade baixa e alta, respectivameute por
20.000 e 40.000 cruzados e Dupineaut viu-se obrigado
a modificar a sua proposta no ano seguinte, ficando
toda a despesa à sua custa, inclusivamente a da venda
da própria água em quartas e pipas, em casas parti-
culares. Os preços da venda seriam 10 e i5 réis con-
soante os bairros e distâncias e constituiriam para o
proponente um privilégio por tempo de dez anos, de-
pois dos quais deixaria vinte anéis de água nos alu-
didos cinco chafarizes que a Câmara construísse.

(i) António de Miranda, caso o seu invento desse resultado,


pedia 12^000 réis por mês emquanto vivesse e depois para sua
mulher, pagos pela Junta do Comércio, e ainda mais 3^ooo réis
para cada um dos seus filhos, pela féria da Ribaira das Naus e o
ofício, para ele, de Corrector do Número de Lisboa Consulta da
Câmara de i3 de Fevereiro de 168I Elementos, tomo x, pág. 39.
(2) Apostila de 14 de Agosto de 1699 —
Citada obra, tomo xi,
*

pág. 8 e segs.
— 363 —
Da proposta constavam ainda as seguintes cláusu-
las

i.'^ — Que dos chafarizes lhe ficariam pertencendo os


sobejos ;

2.^ — Que falecendo ele, passariam para seus herdeiros


todos os privilégios, direitos e obrigaçõeà ;

3.* — Que havendo necessidade de tomar algumas águas


particulares as tomaria de arrendamento pelos
preços porque estavam
4.* — Que, querendoo o Senado, se obrigaria também
a fazer a limpeza das ruas e a promover a
sua iluminação e a estabelecer serviços de po-
licia e de incêndios ; e
b.^ — Que não pagaria sisa de tudo o que comprasse
para a obra.

Foram mandados ouvir sobre o projecto, o Síndico


e os Procuradores da Câmara e dos Mesteres. O Sín-
dico achou tudo bem, e só declarou dever pôr-se de
reserva a quarta condição ou cláusula até que se visse
o resultado prático das restantes propostas.
O procurador Manuel Jorge, mostra-se desconfiado
da pobreza do francês e leva a sua desconfiança a ponto
de recear perigos políticos na execução da obra, por
causa do aqueduto ter princípio ao pé da Torre da
Pólvora e ele tencionar fazer minas nesse local.
A água que Dupineaut queria trazer à cidade era a
da quinta da Pimenteira.
Em 20 de Setembro dejyoo, fêz-se uma minuta de
contrato nos termos da proposta e foram novamente
ouvidas as mesmas entidades.
O parecer do Síndico foi idêntico, excepto no que
dizia respeito à tomadia das águas particulares. Fêz-se,
por isso, outra modificação.
- 364 —
Dupineaut no novo contrato, depois de declarar que
o bem público deve prevalecer ao bem particular, chega
a afirmar que emquanto se não tomarem as águas par-
ticulares nunca se conseguirá abastecer de água a ca-
pital. Receando o malogro do negócio agarrou-se à
última tábua e pediu ao Senado lhe arrendasse o Real
de Agua para poder, com tal rendimento, pagar as perdas
e danos das tomadias a que se visse obrigado.
Reflectiram os Vereadores, e o Síndico foi^convidado
a dar mais uma vez a sua opinião que resultou desfa-
vorável para o proponente. Em seu entender o pedido
era impossível de ser atendido sem uma expressa de-
terminação de El-Rei.
Voltou à carga Dupineaut alegando desejar apenas
o arrendamento por dez anos depois do qual a água
ficaria a correr em S. Roque, até a quantidade pre-
cisa, sem dispêndio algum do Senado. O preço que
dava pelo arrendamento era de vinte e dois contos de
réis por ano. Caso a água só corresse no Rato, com-
prometer-se-ia, mediante fiança, a pô-la em S. Roque.
O francês ia diminuindo a olhos vistos a grandeza
do projecto. Primeiro falava em quarenta anéis de água
em cinco chafarizes ; cingiu-se depois a vinte anéis em
S. Roque ; agora já admite a hipótese de a água só
correr no Rato.
O Senado andava desconfiado com Dupineaut e pa-
rece que linha razão (i).

Em 10 de Novembro em Consulta dessa data, assen-


taram os vereadores, no seguinte :

— Que desde o momento em que ele, Dupineaut, pu-


sesse a correr quatro anéis de água da Pimenteira em
S. Roque se lhe desse 3oo.ooo cruzados, conforme a
sua primeira proposta, não se lhe arrendando o Real

(i) Citados Elementos, tomo xi, págs. 8-26.


— 365 —
de Agua, que lhe renderia menos do que isso e ficando
êle sem direito algum à mesma água(i).
Os Procuradores também disseram da sua justiça.
Manuel Jorge era de opinião que se lhe concedesse
tudo porque estava convencido ser o maior desejo dele
livrar-se de fazer a obra. Miguel de Freitas Correia,
procurador de Dupineaut, veio logo em sua defesa,
num longo arrazoado, e depois de increpar o Senado
pelas desconfianças que manifestava, lembrava a El-Rei,
concedesse mais cinco anos de privilégio ao seu consti-'
tuinte paravenda da água ao povo da cidade.
Pelo despacho de 2 de Dezembro foi atendido este
pedido, com excepção da venda de água da Pimenteira
em que não se buliria senão depois de a fazer correr
em S. Roque.
Quem tinha razão era o procurador Manuel Jorge.
O que Dupineaut mais desejava, nestas alturas, era
Jivrar-se da camisa de onze varas que impensadamente
tinha vestido. K o projecto ficou em nada como o de
António de Miranda.

Desesperava a Câmara, e muito mais o povo, de ver


em Lisboa a já lendária Água Livre e o pior é que o
próprio chafariz de El-Rei já andava a fazer partidas
às guelas alfacinhas. Até êle, o fiel chafariz do Rei
\

Lavrador!
Em 1699, escasseava lá a água, e a que corria era
turva e suja. Fizeram-se pesquizas achou-se barro e
;

entulho a esmo e —
surpresa consoladora mais duas ! —
nascentes perdidas que logo se canalizaram. Não sei

(1) Citados Elementos^ tomo xi, págs, 4Õ-53.


- 366 —
se alguém disse que fora milagre a sujidade que de-
nunciara a abundância (i).

Em 1703 tornou a turvar-se a água. Foram lá à


procura de mais nascentes, mas desta vez só acharam
entulho.

O chafariz do Rossio quási que secou em Agosto


de 1707. Já vimos atrás como António de Foios Pe-
reira, pagou com o ser causa de tal seca. Fm
a prisão
1730 tornou à secar (2). O assento da Vereação de 27
de Junho de 1718, proibe que se lavem bestas e seges
nos chafarizes de Dentro e da Aguada, sob pena de pe-
sadas multas (3).

Chegado o ano de 1719, fêz-se nova visita à fonte de


Carenque e não sei que mais se fizesse do que mandar
tapar, de pedra e cal, a porta da ermida que lá havia,
por o templo estar imundo servindo para usos profanos
e indecentes. Esta ermida era consagrada ao Arcanjo
S. Gabriel (4).
Talvez a essa visita já vedor de
tivesse ido um
águas, que fora chamado de Viseu, onde para residia,
examinar todos os pontos dos arredores onde se sus-
peitasse da existência do precioso líquido (5) e quem

( i)- Elementos para a História do Município de Lisboa, tomo x,

pág. 181-184.
(2) Di-lo, num comentário cómico, o Folheto de ambas as
Lisboas, redigido por Fernando Tavares Mascarenhas de Távora.
(3)Citados Elementos, tomo xi, pág. 279.
(4)Idem, tomo xiv, pág. io8.
(3) Idem, tomo ix, pág. 348 —
Carta do Secretário de Estado
Bartolomeu de Sousa Mexia, à Câmara, em 19 de Julho de 1719.
— 367 —
sabe se não se lembrariam igualmente de convidar
para a tal diligência, a mulher de um negociante de
Baiona, que então residia em Lisboa, criatura cujos
olhos de lince não só viam a água a trinta e quarenta
braças de profundidade como divisavam claramente a
formação do «chilo» nos intestinos e a circulação do
sangue. Esta faculdade de extrema visão anulava-se
por ocasião das luas. D. João V, que diz a obra de
onde isto extraiu, se serviu algumas vezes dos seus
olhos, fêz-lhe mercê do tratamento de «Dona» e con-
cedeu o hábito de Cristo à pessoa com quem casasse (i).

A questão da capacidade das quartas de água, preo-


cupou também o Município lisbonense, em 1724. O
povo que bebia pouca e má água, era ainda por cima
roubado no tamanho das vasilhas que iam diminuindo
a olhos vistos. Os oleiros auxiliavam assim os agua-
deiros. Era mister providenciar e foi o que fêz a Câ-
mara, no assento de i de Agosto desse ano, determi-
nando que as quartas «cangalheiras» não tivessem menos
de um almude, devendo por isso ser marcadas na Câ-.
mara, sob pena de dez mil réis de multa e dez dias de
cadeia, pela primeira vez. Pela segunda vez multa do-
brada e pela terceira, privança do ofício (2).
Desavieram-se desde então os oleiros e os aguadei-
ros.
Em 1726, na Fonte Santa, vieram às mãos na tarde
de 20 de Setembro, esmurraram-se a valer, e tais dis-

(i) Description de la ville de Lisbonne, Paris, ijSo, pág. 49


a 54.

(3) Citados Elementos, tomo xii, pág- 35.


— 368 —
túrbios fizeram que daí por diante vigiaram sempre a
Fonte dois quadrilheiros (i).

Estava prestes a chegar o princípio da monumental


obra qne ainda hoje tanto nos beneficia.
Em 1728, outro projecto se esboça para a condução
da Agua Livre a Lisboa. Subscrevia-o António Júlio
de La Pomarée, francês de nação ; mas nada se fêz que
eu saiba (2).
Urgia mais do que nunca a vinda da água messiâ-
nica e abençoada. Lisboa para beber água tinha que
padecer fome. Uma quarta de água custava sesenta
réis e mais (3).
Como se conseguiu a realização de sonho doirado
de tantos anos, vai sabê-lo o leitor.

Cláudio Gorgel do Amaral e El-Rei D. João V fo-


ram alma da grandiosa obra das Águas Livres.
a
O sr. Eduardo Freire de Oliveira, no seu magnífico
estudo que tenho ido seguindo, subtrai o nome do
monarca magnânimo a este elogio, reunindo no dili-

gente procurador da cidade a larga cópia de merecidos


louvores. Não concordo.
D. João V
empenhou-se, de alma e coração, neste
soberbo empreendimento, embora movido por outros

(1) Citados Elementos, tomo x, pág. 86-87.

(2) Idem, idem, pág. 54.


1

(3) Ideni^ idem, pág. 228.


— 369-
sentimentos que não agitariam, talvez, Gorgel do Ama-
ral. Este pugnava pelo bem público, pela utilidade
manifesta do urgente melhoramento, sem nenhuma
ideia de vaidade a deslumbrá-lo. O quinto João, pelo
contrário, dedicara-se à obra porque era grande e pro-
metedora de lhe glorificar o régio nome. Sem a per-
tinácia de Gorgel nada se faria, mas sem o auxilio do
entusiasmado soberano também a obra não iria avante.
Tal glória, mesmo assim aquinhoada, dá ainda so-
bejos com que possam entretecer-se coroas a outros
auxiliares da obra.

Saibamos como germinou a ideia do Aqueduto.


Em 1728, Cláudio Gorgel propôs, perante o Senado
de Lisboa Ocidental, que se estudasse mais uma vez
tão inadiável assunto, e logo a seguir o decreto de 2 de
Dezembro desse ano manda, ao Senado, indique os
meios para se iniciarem e custearem os trabalhos.
Vai agora ver-se como El-Rei se interessava por
isto.

Passaram-se mais de dois meses sem que os verea-


dores dessem sinal de si. Estranhou D. João V a de-
mora. Em 23 de Janeiro do ano seguinte expede, pelo
Secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real,
uma nova carta ao vereador Jorge Freire de Andrade,
dando o prazo de quinze dias para a consulta dese-
jada. Houve ainda dilacção. Só a 3o de Março subiu
ao Paço esse documento em que mais uma vez se
aponta a necessidade urgente da condução da água(i).
;É concludente ou não, esta pressa do monarca?

( i) Elementos para a História do Município de Lisboa, tora o x,


pág. 221.
voL. IV 24
Creio bem que a demora seria motivada pela gra-
vidade da matéria, que se não poderia discutir e expor
de afogadilho, mas o desejo da sua rápida resolução
demonstra bem o interesse curioso de D. João V.

Foi acompanhada a consulta dos pareceres dos Ofi-


ciais da Câmara. Vamos ouvir as suas opiniões.
Gorgel do Amaral dizia que, para a obra, deveria
contribuir todo o país e lembra, como matéria tributá-
vel, o pão, o vinho, o bacalhau e o ferro Manuel Pes-
;

tana de Vasconcelos, opinava que todos deveriam con-


correr proporcionalmente às suas posses António Pe- ;

gado de Lima, entendia ser cedo ainda para discutir os


impostos a lançar sem se saber em quanto importava a
obra; Jerónimo da Costa de Almeida, julgava que o
melhor seria tributar o sal por se tornar menos opres-
sivo para o povo e dar suficiente rendimento, po-
dendo-se também, caso fosse preciso, tributar a ma-
deira das caixas de açiícar do Brasil, o azeite e o
ferro(i) António Pereira de Viveiros era de opinião que
;

se lançassem os impostos sobre o azeite, carne, vinho


e trigo, declarando discordar de Pestana de Vasconcelos
com referência à tributação proporcional (2) e Jorge ;

Freire de Andrade, não emitindo opinião sobre os im-


postos, limitava-se a declarar a obra muito necessária (3).

(i) Segundo uma nota deste vereador o sal poderia render

por ano 3õ.38i^6oo réis. Opina também acerca das taxas a impor
no vinho, azeite ou ferro, pondo fora da tributação o pão e a
carne por estarem já muito carregados.
(2) Dizia ele « Tanto custa a pagar muito o rico como pouco
:

o pobre».
(3) Os Procuradores dos Mesteres (que eram quatro), convi-
-371-

Por desvacho de 4 de Abril, mandou El-Rei fazer


nova consulta em que se especificassem os rendimentos
dos diferentes tributos propostos, e, efectivamente, com
data de 14 de Maio subiu à régia atenção o solicitado
documento (i).
Analisemo-lo, pois
Jorge Freire de Andrade, declara reconsiderar no
que primeiramente dissera, por ser difícil saber a quan-
tidade de ferro e bacalhau produzido no reino (sicj, e

propõe as seguintes taxas um tostão por moio de trigo,


:

meio tostão por moio de cevada, milho e centeio, três


réis em cada arrátel de arroz, manteiga e queijo, qua-
renta réis em cada alqueire de sal, o que tudo rende-
ria14.000 cruzados e 128CÍ&000 réis. Lembra também
que se acrescente a multa aos transgressores das pos-
turas do pão.
Manuel Pestana de Vasconcelos, permanece na
mesma ideia de que todos contribuíssem na medida
das suas posses, e propõe que os ricos pagassem 600
réis, os remediados 240 réis e os pobres 120 réis, o
que produziria, segundo um cálculo exarado num mapa
que apresenta, a quantia anual de 640.000 cruzados e
68íC)Ooo réis.
António Pegado de Lima, propõe imposições no vi-
nho e na carne, as quais em 17 12 tinham rendido 74

dados também a dizer da sua justiça, limitaram-se a fazer um


panegírico laudatório do monarca, declarando apenas que a obra
se deveria avaliar primeiro antes da discussão dos tributos, e que
acima das suas opiniões estava a resolução de El-Rei em que con-
fiavam cegamente.
(i) Citados Elementos, tomo x, pág. 242.
— :372 —
Contos, como melhor examinar nos papéis
se poderia
da Junta dos Três Estados que era a sua administra-
dora.
José' Soares de Azevedo, entendia que o tributo de-
veria ser só lançadoem Lisboa e, no que respeitava à
mercadoria a tributar, apontava o trigo que se vendia
no Terreiro. Um vintém em cada alqueire de trigo e
dez réis em cada um dos outros grãos, deveriam pro-
duzir 35.000 cruzados por ano, proíbindo-se a venda
1

fora do Terreiro. Este vereador alarga-se em várias


considerações tendentes a justificar a sua proposta e
propõe também um regulamento para a arrecadação
do tributo, acabando por lembrar que, tornando-se pre-
ciso maior rendimento, se podia recorrer à taxa de dois
réis em cada canada de vinho o que daria, por ano,
mais 36.000 cruzados.
Gorgel do Amaral, opina que lancem quatro réis
se
em cada arrátel de carne e seis réis em cada canada
de vinho. Isto produziria sessenta contos anuais que
lhe pareciam suficientes para a obra, finda a qual en-
tendia deveriam acabar os impostos. Para a conserva-
ção do Aqueduto propõe se imponham dois vinténs
em cada alqueire de sal, e lembra ainda o aproveita-
mento da nascente de Vale de Lobos para engrossar
a da Água Livre.
António Pereira de Viveiros, sem especificar taxas,
declara apenas que as imposições se devem fazer em
outros géneros que não sejam os comestíveis por estes
se acharem já muito sobrecarregados.
Os Procuradores dos Mesteres, depois de tecerem
a El-Rei um novo elogio, disseram que a cidade de
Lisboa deveria contribuir mais do que as outras terras
do reino, visto serem os alfacinhas os mais directamente
beneficiados, sendo certo também de que pagarão o
imposto com satisfação (!) ^or ser tal obra do Real
— 373 —
agrado do soberano. Parecia-lhes bem o que dissera
o vereador Pestana, acerca da tributação proporcional,
e acabam por declarar achar feio o nome de tributo.
Ponto final.

O despacho régio à consulta^ deixava ao arbítrio da


Câmara a escolha dos géneros e do imposto, e mandava
fazer a obra com brevidade (i).
Oque se passou depois, não sei o facto é que o ;

decreto de 6 de Setembro de 1729 aprovou finalmente


1

os seguintes impostos:

6 réis em cada canada de vinho


5 réis em cada arrátel de carne ;

10 réis em cada canada de azeite ;

60 réis em cada alqueire de sal ; e

5o réis em cada pano de palha.

Tudo isto, conforme os cálculos previamente feitos,

devia render trezentos mil cruzados anuais (2).

O decreto prescrevia ainda que a obra se não desse


por contrato, cláusula esta que foi logo infringida,
porque o imposto diminuiu sensivelmente de ano para
ano (3).
Em 1782 arrematado o imposto na carne e no
foi

vinho, e assim se procedeu sempre, vindo tal infracção


a ser legalizada por resolução de 3 de Dezembro de

(i) Tem a data de 20 de Julho de 1749 — Citada obra, tomo x,


pág. 280-282.
(2) Idem, idem.
(3) Em 1780 rendeu 35.409^000 réis; em 1731, 31.848Í&000
réis; e em 1732, 18.362^)5000 réis.
— 374 —
1735. O arrendatário em 1732 foi António Pires Mon-
ção, negociante abastado, e o preço da arrematação
foi de 8.i55í5!)000 réis(i).

Para a superintendência da obra foi nomeado, pelo


mesmo decreto^ o vereador Soares de Azevedo; para
Procurador dela, Gorgel do Amaral para Tesoureiro, ;

Manuel Soares de Carvalho e Silva, e para Escrivão


Francisco Ramos de Miranda (2).
O clero, mal acostumado com as isenções habi-
tuais que o privilegiavam desde tempos remotos, ten-
tou ainda eximir-se ao pagamento do tributo. Para
isso resolveu, como melhor meio, aterrar a Câmara, o
Soberano e o Povo com a interdição do reino.
Falhou a esperteza. D. João V se muito prezava o
clero, se muito venerava a Cúria, se muito amava as
ordens religiosas, prezava, venerava e amava muito mais
o princípio da sua autoridade. Deu disso abundantes
provas. O papão da interdição, em vez de o assustar,
exasperou-o, e mandou, pelo seu Secretário de Estado,
intimar imediatamente o Patriarca a cessar tais amea-
ças, sob pena de ser desterrado. E o clero pagou o
tributo (3).
Esta feição do carácter de D. João V salva muita
vez a sua memória das durezas da crítica.

Adiante.

(i) Elementos para a História do Município de Lisboa^ tomo x,


pág. 412.
(2) Idem, págs. 289-292.
(3) Idem^ pág. 370-374.
CAPITULO XVI

Sumário Sai o decreto mandando começar a obra


: —
Isenta-se a
Câmara do pagamento das sisas — Principiam os trabalhos
— Os protestos do clero e o princípio da autoridade régia —
Funda-se a primeira Sociedade de pedreiros construtores —
Várias irregularidades —O prior de São Nicolau dirigindo as
obras — Empréstimos — Pareceres técnicos acerca
e dívidas
da matéria dos canos — Abusos e reclamações — O projec-
tado Aqueduto Monumental de São Pedro de Alcântara e a
«Mãe de Agua» —
Expropriações neste local — Um
soneto ao
chafariz — O que era o Sequeiro de São Roque —Vicissitudes
passadas da actual Alameda — A história de uma grade e os
suicídios — Adiantam-se os trabalhos das Águas Livres —
Informações do Mercúrio Histórico de Lisboa —
Concorrência
do povo à Senhora de Santana e a Campolide —
Outras So-
ciedades de Pedreiros —
Questões várias —
Custo total da
obra — Verbas extravagantes incluídas na conta do Aqueduto
— Em que mãos esteve a administração da obra — Apon-
tam-se os técnicos que a dirigiram.

O alvará de 12 de Maio de lySi mandou princi-


piar a obra, e continha diversas disposições tendentes
a remover dificuldades e a obstar a empecilhos embar-
gosos. Muito embora as terras que o aqueduto atra-
vessasse fossem de pessoas privilegiadas, far-se-iam
nelas as obras que fossem necessárias, ficando todos os
proprietários obrigados a dar passagem às águas, fos-
sem embora clérigos, desembargadores, fidalgos, etc.
Todas as avaliações se faziam breve e sumariamente,
intervindo nelas o Síndico da Câmara, um louvado por
parte dos interessados e outro, no caso de discordância,
para desempate. Era isto exactamente o que a Câmara
— 376 —
pretendia e que nunca conseguiu, como vimos, em tempo
dos Felipes.
O regimento usado foi o da ágoa de prata da ci-

dade de Évora (i).

Para conveniência da obra, quis a Câmara adquirir


por compra a quinta da Fonte Santa. Como, porém,
a assustasse a sisa a pagar, requereu a El-Rei a dis-
pensa de tal pagamento em consulta de 8 de Outubro
de lySi. Em 14 de Janeiro do ano seguinte foi defe-
rido o seu pedido, tornando-se extensiva tal isenção a
todas as compras que, para o mesmo fim, se fizes-
sem (2).

Principiaram os trabalhos em 16 de Agosto de 1732.


Já então estava à testa das obras, por parte do Se-
nado, Caetano de Brito Figueiredo que substituirá o
vereador Soares de Azevedo por decreto de 7 de Agosto.
A frente da direcção dos trabalhos de construção estava
o arquitecto António Canevari.
Pouco lá se demorou. Ao fim de sete meses foi

despedido, e a razão disso fora não ter dado aos arcos


a altura necessária (3). Substituíram-no José' da Silva
Pais e Manuel da Maia e, depois. Custódio Vieira.

( i) Elementos para a História do Município de Lisboa, tomo x,


pág. 370-374.
(2) Idem, pág. 379-380 e 573. Uma portaria de i3 de Novem-
bro de 1734, expedida pelo Conselho da Fazenda, isentou a palha
do tributo que se lhe havia lançado a favor das Águas Livres,
por dificuldades na cobrança que, por vezes, era vexatória.
(3) Citados Elementos, tomo xiii, nota à pág. 170.
- 377 —
Foi este engenheiro quem nfiodificou o plano primi-
tivo aumentando o vão dos arcos na ribeira de Alcân-
tara. Na traça anteriormente estudada os vãos eram
de catorze palmos, tendo os acrescentamentos chegado
a mais de cem. Fundados nesta circunstância, os mes-
tres pedreiros da obra, solicitaram a alteração das escri-
turas, principalmente da de 7 de Maio de 1784 (em
que se consignava o não pagamento dos vãos como obra
feita) em virtude do grande dispêndio das cambotas

e dos simples (i).

A solução desta questão arrastou-se anos. Foi final-

mente desatendidaa pretensão dos mestres, no decreto

de 22 de Dezembro de 1746, a que adiante me refiro.

A generalidade do imposto lançado para a obra


acendeu os mais extraordinários protestos da parte do
clero. Habituado a não pagar coisa alguma, doeu-se
por se ver atingido. Num códice da Colecção Pomba-
lina da Biblioteca Nacional, está incluído um Parecer
Anónimo sobre tal Tributo, sumamente curioso, pelas
razões especiosas aduzidas. O protestante arrepela-se,
pasmado de se não ter pedido licença a Roma para se
tributar o clero como era costume em Portugal. Não
lhe bastando cingir-se ao direito consuetudinário, e
apontando, como escandaloso, o benefício concedido ao

(i) A primeira escritura teve a data de 1 1 de Julho de 173 1

a segunda, de 4 de Agosto de 1782; a terceira, de i de Agosto de


de 1733; a quarta, de 7 de Maio de 1734; e a quinta, de 7 de Ou-
tubro de 1736 em virtude do decreto de 21 de Agosto de 1736. O
segundo decreto para o estabelecimento do preço das avaliações
é de 28 de Setembro do mesmo ano.
— 378 —
Bairro-Alto que era o único que iria usufruir a regalia
de ter água, diz

iíSempre tive pj^ mim que a uíilidad.^ q resultava


da agoa vir ao bayrro alto não era comua por q este
bayrro a respJ° de toda a cid.^ e mJ° mais o seu termo,
era como hum dedo a respJ° de todo o corpo, e como
não pode, nem deve todo o corpo ser vexado e padecer
p.'^ que passe tJielhor hum dedo, iamhem não deve p.^ me-

lhor cómodo do ba/rro-alto, vexarse toda a cid.^ e seu


termo com hum tributo tão grave)^.

E mais adiante :

« Utilidade conma será, mas o— eclesiástico tem


despegas só elle para a utilidade do secular, como o
ornato das egrejas, pobreza, templos, etou

O imposto ofendia a imunidade eclesiástica. A-pe-


sar-de tudo, porém, o clero pagou-o.
O rei era D. João V que antes de ser escravo de
Roma, como se diz, era escravo da dignidade real(i).

O primeiro passo dado para a obra foi a organiza-


ção de uma Sociedade de vinte pedreiros para a qual
cada um contribuiu com quatrocentos mil réis.
Eis os seus nomes :

Domingos Martins da Silva Lobo, José da Costa


Negreiros, Manuel da Costa Negreiros, Alberto Cae-
tano, João de Sousa, Pedro da Silva, Domingos da

(i) Códice 641, pág. 26-27. O parecer está datado de 9 de


Dezembro de 1723.
— 379 —
Silva, Domingos Francisco, José Gomes, José da Costa
Travassos, Miguel Rodrigues da Silva, António Luiz,
José da Cunha, Francisco dos Santos, José da Silva,
João da Costa, António Baptista, António Gomes, João
da Silva e Inácio da Costa. Servia de Tesoureiro o
societário João da Costa e de escrivão deste Luiz An-
tónio. A entrada das quotas fêz-se em 8 de Setembro
de 1732.
Como o capital era pouco, foi entregue à Sociedade,
pelo Governo, quarenta mil cruzados provenientes da
cobrança do imposto, mas Já antes disso tinha a mesma
recebido outros socorros pecuniários como, por exem-
em 1732, por duas
plo, o de i3.i58íí)i94 réis (recebidos,
vezes, em 22 de Março
27 de Setembro), e de se
e
ter determinado, por decreto de 21 de Agosto de 1736,
se lhe pagasse toda a obra feita, recebendo no i.° de
cada mês quatro mil cruzados do novo cofre, quantia
esta que seria depois descontada nas medições seguin-
tes (i).

O primeiro mestre da Sociedade foi José da Costa


Negreiros.

O período inicial das obras, que eu marco até 1736,


não deu o resultado que se esperava. Contavam os
oficiais da Câmara, pelo menos Gorgel, que os traba-

lhos durassem seis anos. Julgando isso é que votara


o diligente procurador da cidade em tão pesado tributo.
Em vista das demoras havidas propôs êle, nesse
ano, que se tirassem da imposição, um real na carne
e outro no vinho para reverterem a favor da limpeza

(i) Memória sobre Cha/ari!(es, por José Sérgio Veloso de


Andrade, pág. 320-325.
— 38o —
da cidade, podendo-se, sem que a obra perigasse com
isso, tirar mais dois reais em cada género para do alívio
povo. O cofre tinha já recebido um milhão de cruzados
e apenas trezentos mil se tinham gasto. Com esse aba-
timento sempre haveria de produzir os oitenta mil cru-
zados anuais, que era o suficiente para se ir custeando
a obra.
As demoras provinham do seguinte
Os dois engenheiros, Pais e Manuel da Maia, esta-
vam quasi postos de parte. Dirigiam a obra in no-
mine. Quem verdadeiramente superintendia nela, era
— não se espante o leitor —o Padre João Antunes
Monteiro, prior de S. Nicolau, i
Um padre a dirigir
as obras, parece blague, i não e' verdade ? Pois era
assim mesmo, e o pior e' que o prior, além de não per-
ceber coisa alguma daquela regedoria, faltava com uma
inconsciência í( que só as suas virtudes desculpavamy) {i)
a todos os pontos da escritura.
Não se tinham feito as medições ; deviam-se salá-
rios, e, ainda por cima, subiam a cem mil cruzados os
empréstimos, por êle feitos, sem autorização de espécie
alguma (2).
Era preciso acudir à obra. ;
Aquilo estava num
caos

Entre as instruções pelas quais se tinha de gover-


nar a obra algumas havia que eram letra morta. Os
pagamentos deviam ser feitos no i.° de cada mês aos

(i) Gorgel do Amaral na sua informação, sobre o estado das


Obras, chama-lhe virtuoso : — ... «a-pesar-de ser pessoa virtuosa».
(2) Citados Elementos, tomo xiii, pág. 165-172 — Consulta da
Câmara de 7 de Fevereiro de 1736.
- ^8i -
empreiteiros, e as medições no fim dos meses, afora
outras de seis em seis meses, completamente indepen-
dentes das primeiras. Nada disso se praticava. A qua-
lidade de materiais cuja apreciação estava a cargo de
Custódio Vieira e de Rodrigo F^ranco e dos que por-
ventura fossem nomeados, era escolhida pelo prior ou
por outro qualquer de igual competência. Passava-se
isto em 1736(1).
Em
1737 foi Cláudio Gorgel nomeado Superinten-
dente das Obras, no impedimento de quem, então, ser-
via tal lugar, substituindo-o no lugar de Procurador o
Juiz do Crime da Ribeira, Manuel António de Jesus e
Castro (2). Bela nomeação foi essa
j

Chegado o ano de 1738, como o Senado não tivesse


pago as expropriações feitas, por dificuldades na sua
avaliação e ainda por outros motivos, apareceu o alvará
de 23 de Outubro, pasando esses encargos para a «Junta
das Obras» e ao mesmo tempo regulando a forma como
se haviam de comprar os terrenos e proceder às avalia-
ções de um modo rápido e justo. Ficou, pois, neste
ponto, revogado o outro alvará de 12 de Maio de
1731 (3).

Uma interessante Colecção de Memorias Histori-


ricas e Principais Instruções e Ordens de Sua Mages-

(i) Citados Elementos, pág, 219.


(2) Idem, idem.
(3) Colecção de Memorias Históricas^ citadas no texto, pág. i3
e segs.
— 382 —
tade para a construção do famoso Aqueduto das Aguas
Livres, existente na Biblioteca Nacional, insere o pare-
cer dos engenheiros, arquitectos e cirurgiões, acerca da
mate'ria de que haviam de ser feitos os canos de con-
dução 4a água. Opinaram que fossem de ferro fun-
dido os Drs. José Roiz de Abreu, João Machado de
Brito e Jorge da Mata Guião e os te'cnicos sargentos-
-mores José Sanches da Silva e Carlos Mardel. O
único que discordou de tal parecer foi o padre Manuel
de Campos, consultado não sei a que título, o qual
trata sempre o aqueduto, por aqueduto interino. Em
sua opinião, a matéria empregada devia ser o chumbo
e apontava, como argumento, os belos resultados obtidos
pela canalização de chumbo feita para o convento novo
dos Capuchinhos italianos. A favor dos canos de pedra
não votou ninguém (i).

De outras duas magnas questões nos faz referência


a mesma curiosa Colecção, e eu refiro-as ao leitor.
Foi a primeira motivada pela tentativa feita pelos
padres da Congregação do Oratório de Nossa Senhora
das Necessidades, de tomar duas telhas de água do
Aqueduto para o seu abastecimento. Ao espalhar-se
em Lisboa tal notícia, ateou-se pelo povo, e com razão,
um fogo de revolta.
l
Pois então o aqueduto tinha-lhe custado tanto sacri-
fício e iam agora os Congregados roubar-lhe a água ?
Não podia ser, e não foi.
Imediatamente subiram representações da Casa dos

(i)Citada Colecção de Memorias Históricas^ pag, 29-55 Có-


dice 4~6 da Biblioteca Nacional.
— 383-
Vinte e Quatro a todos quantos podiam interferir a
seu favor: a El-Rei, ao Senado e à Junta das Águas
Livres. Tal privilégio era inadmissível. Os padres se
quisessem água fossem buscá-la à Pimenteira ou à
quinta do Sargento-mór. O próprio D. João V se quis
água no paço e nas reais cozinhas comprara-a, à sua
custa, ao contratador do ramo da regatia, José Luiz da
Cruz, que lha vendeu (do poço que possuía às Cruzes
da Sé) por Soojfcooo réis(i).
Os Vinie e Quatro foram atendidos, e os padres das
Necessidades ficaram sem as duas telhas de água que
andavam cobiçando (2).

(i) Esta história da compra da água a José Luiz da Cruz tem


sua graça. As casas e o poço foram avaliados por ordem de El-
-Rei, e o valor arbitrado pelos peritos fora de 3oOví?ooo réis a que
El-Rei generosamente acrescentara mais Sooííooo réis, porque o
contratador tinha tudo empenhado. Fez António Canevari (o en-
genheiro italiano que iniciara as obras do aqueduto) a condução
destas águas para o Paço da Ribeira, encanando-as ali em oito sí-
tios diversos e pouco depois morre o vendedor das casas do poço.
Solicitou a sua viúva, a El-Rei, a permanência nas casas que
já lhe não pertenciam, e o monarca concedeu-lha. Falecida esta,
requereu uma filha sua que lhe deixassem continuar a habitar as
casas onde nascera e onde morrera sua mãe. Foi mandado infor-
mar o Procurador da Fazenda Rodrigo de Oliveira Zagalo, que se
mostrou indignado com tal requerimento, dizendo que as casas já
pertenciam a outros e que não devia nem podia haver contempla-
ção alguma com a requerente, visto que seu pai em vez de pagar,
com os 8oo«Sí>ooo réis que recebera, as suas dívidas, gastara-os im-
pensadamente, e que sua mãe já residira nas mesmas casas, de
cuja posse os verdadeiros proprietários estavam despojados. O
Dr. Zagalo termina assim a sua informação:
a Se hei-de di^er o que puramente entendo, como sou obrigado^
digo que não posso pôr termo à Real Grandeza de Sua Mages-
tade mas que há-de ser dando do que fôr seu e não do alheio, por-
que para isso não é necessário ser Rei».
i
Nobres e magníficas palavras! Foi isto em 1742.
(2) Citada Colecção de Memórias, Históricas, pág. 56-70,
384 —

A outra questão, a que se refere a aludida Colec-


ção, reclamação dos empreiteiros da
originara-se na
obra, sobre o pagamento de certas medições duvi-
dosas.
Diziam os mestres a El-Rei que, aos mil e trezentos

operários que trabalhavam no aqueduto, se deviam trinta


semanas de salários, por causa da Junta das Águas
Livres, lhes não querer pagar, por cheios, os vãos dos
arcos da Ribeira de Alcântara com o fundamento de
não por terem mais dos trinta palmos estipulados no
primitivo contrato, nem tão-pouco as cambotas, obras
estas em que se tinha gasto muito dinheiro e muito
tempo, e que não estavam delineadas no primitivo plano.
Foi ouvida a Junta, correram vários tempos, e final-

mente El-Rei, cingindo-se à letra do contrato, indeferiu


a reclamação por decreto de 22 de Dezembro de 1746(1).

Uma das primeiras deliberações da Junta de Ad-


ministração foi a construção de uma Mãe de Agua em
São Roque, no terreno superior ao sequeiro que, nesse
tempo, servia de vasadoiro de lixo e de imundícies (2).
Esse terreno que fora de Fernão Pais, cidadão do
Porto e fundador da ermida de Nossa Senhora da

(i) Citada Colecção de Memórias Históuicas. pág. 20-29.


(2) Em uma consulta da Câmara, realizada em i75i,vê-se
que esse vasadoiro foi, ou supôs-se ser, a causa de uma epidemia
que lavrou no bairro de São José e sítio do Condes, por esse
tempo (Citados Elementos, tomo xv, pág. 229).
( 38.1 a )
— 385 —
Glória, no século xvi, passou, por compra, para a posse
da Câmara em
Aí é que deveria fazer-se o re-
1732.
servatório para abastecimento dos Bairros Altos e um
chafariz junto a êle. A água iria por um aqueduto
colossal de arcarias (atravessando o vale de Valverde)
cujos pegões assentariam onde hoje corre a Avenida
da Liberdade. Para início dos trabalhos a fazer, com-
praram-se, entre outras propriedades, as seguintes

— Casas em São Pedro de Alcântara que eram da tes-


tamentária de Manuel Teixeira de Carvalho, por
ô.oooífcooo réis \

— Terreno para o chafariz, depósito e muralha, com-


prado a D. José de Portugal, por 4.000Í56000
réis (i).

De toda a obra projectada apenas se fez a muralha


para suporte do terreno onde deveria assentar a Mãe
de Agua, um
chafariz provisório que depois foi trans-
e
ferido para a próxima rua das Taipas e, posteriormente,
para o topo da calçada da Glória. Este, que ainda
existe, íicou só com duas bicas. O de São Pedro de
Alcântara, o antigo, tinha cinco (2).

A-propósito deste chafariz, inaugurado em 8 de


Setembro de 1704, conheço eu um soneto, celebran-
do-o, que principia assim

/ Es torre, és baluarte ou és penedo I

O soneto é péssimo e, à-parte este verso, nada mais


diz que nos elucide. Por isso o não transcrevo (3).
Metade dos sobejos deste chafariz foram concedidos

(1) Citados Elementos, tomo xin, pág. 458-459.

(2) Idem, idem.


(3) Manuscrito M-3-40 da Biblioteca Nacional,
VOL. IV 25
^ 38é —
ao Hospital Real dos Expostos, por Real Resolução de
4 de Janeiro de 1784, dada sobre parecer favorável da
Junta da Administração das Fábricas e Obras das Aguas
Livres (i).

Esta mesma Junta deu ordem, em 18 de Julho de


1786 para se prenderem os ribeirinhos que entulhasem
o terreno destinado ao novo chafariz (2).

O depósito de água em São Pedro de Alcântara


que a parte oriental da cidade esperava ansiosamente,
pois dali lhe havia de vir, pelo aqueduto projectado,
a desejada água, não havia meio de se principiar. O
povo reclamou. Na sua Represe?itação a El-Rei dizia
— referindo-se à multidão que corria ao Rato para
se abastecer — que não poucas ve\es por se levar a água
se derramava o sangue (ò).

O sequeiro inferior de São Roque, malograda a


obra, voltou a servir de vasadoiro. Para lá se deitavam
os cavalos mortos e todo o lixo do arrabalde.
A famosa arcaria do aqueduto atravessando o vale
de Valverde foi sonho que ainda se não desvaneceu,
embora hoje se fantasie com outro fim. Os visioná-
rios alfacinhas quebrado aquele encanto, há pouco, já

(i) Livro g3g de Registo de Manifestos, pág. 17 v.°

(2) Livro g40 de Registo de Ordens.


(3) Citada Colecção de Memorias Históricas, no Códice 4/6
da Colecção Pombalina (Biblioteca Nacional).
— 387 -
encontraram outro onde trabalham as suas ardentes
imaginações : —a ponte sobre o Tejo.
No quadro a óleo representando a cidade, existente
actualmente na Academia de Belas-Artes, vê-se indi-
cado, nas proximidades do Moinho de Vento, um aque-
duto em arcarias. Vimos que o seu autor devia conhe-
cer o sítio, i
Ter-se-ia efectivamente começado a cons-
truir o aqueduto ?

Que a sua menção no quadro fosse simples fantasia


do artista não o quero crer. Para a sua indicação cor-
responder a mera autenticação de algum projecto de
então, grita a cronologia, pois o pintor executou o qua-
dro muito antes desses trabalhos, em pleno século xvii.

Explique-se o caso de qualquer das formas ; o facto


é que a arcaria lá está, bem nítida, na tela que foi do
Noviciado da Cotovia.
Voltemos ao sequeiro.

Em princípios do século xix, fazia-se, ainda, no local


onde hoje é a Alameda, uma feira, ou arraial, organi-
zada pela Irmandade do Senhor Jesus, que já em 17 12
aí se celebrava. Chegado o ano de 182 1 vejo men-
cionada a sua proibição. O lucro era pouco, e o local
estava por tal forma atravancado de pedregulhos e ma-
deiramentos que mal se podia transitar por lá. Junto
da primitiva muralha trabalhavam uns cordoeiros (i)
O mau cheiro do local, resultante da decomposição das
cavalgaduras mortas que para ali se atiravam, afastava

(i) Informação do Corregedor do Bairro-Alto em 1821, ex-


tractada no belo livro de Tinop Lisboa de Outros Tempos^ vol. 11,

pág. 76-77.
— 38^ —
de todo a concorrência que se resumia à garotada bair-
rista, muito embora já em 1808 um tal José da Cunha
Lemos tivesse requerido, sem resultado, para cultivar
o terreno da muralha (i).

Dou aqui ao leitor um aspecto do local nos primei-


ros quinze anos do século xix, devido à infatigável pena
do gravador Luís Gonzaga Pereira o qual passou parte
da sua acidentada vida documentando em desenhos
vários aspectos da sua querida Lisboa (2). Neste de-
senho observa-se, à direita, a torre ou cúpula da Casa
da Água, distinguindo-se igualmente a igreja e o recolhi-
mento de São Pedro de Alcântara, e outras casas do
alinhamento, assim como a velha muralha e parte do
terreno do antigo sequeiro de São Roque. Na parte
inferior, do lado esquerdo, estão indicadas algumas
casas do Bairro da Glória.

A Real Fábrica da Seda, possuía aqui um terreno


junto à muralha do chafariz para as Taipas que, em
182 1, esteve arrendado a Manuel José Alvares da
Cunha por 14^400 réis anuais, e, depois, por este ter
sido despejado, a José Alves da Cunha. Em 1826 Ma-
nuel José Rodrigues da Costa Guimarães requeria o
seu arrendamento e, no ano seguinte, Estêvam Rodri-
gues de Oliveira, solicitava-o também para a sua fá-

(i) Aviso da Regência do Reino, do mesmo ano Idem, idem.


(2) Este desenho é dos cento e um contidos em um álbum
um
de Luiz Gonzaga Pereira, que pertenceu ao sr. J. J. Ascençao
Valdez e hoje está na valiosíssima colecção olissiponense do sr.
Augusto Vieira da Silva.
-389-
brica de Oleados (i), que Já fora do Alvares da Cunha
em 1816.
Em i83o tendo-se aquartelado perto do palácio Lu-
dovice a Guarda Real de Policia, os oficiais deste
corpo promoveram a arborização da Alameda (2) e o
local começou a civilizar-se. Chamava-se-lhe então a
«Horta do Corpo de Polícia» (3).
No Jardim de Baixo houve depois um Labirinto.
Tudo isso já lá vai. No sítio onde se perdiam os nos-
sos avós achamos hoje o lago, as estátuas e aquelas
palmeiras, em forma de vassouras, que são horríveis.
O parapeito de alvenaria que defendia a Alameda
foi depois substituído por um gradeamento de ferro,
por sinal, até que parte dele, veio do palácio da Inqui-
sição do Rossio. Estava a grade bem conservada e
aproveitaram-na. O resto fêz-se de novo (4).
O alfacinha que hoje se encosta ao gradearnento da
Alameda para ver o lago — que era o da quinta de Bem-
posta — ou monumento a Eduardo José
o feiíssimo
Coelho, mal suspeita sequer que lhe estão servindo de
apoio as grades do Tribunal do Santo-Ofício. As ou-
tras grades que correm sobre a muralha têm história,
também.

(
1
)
Livro g20 de Decretos e Avisos da Direcção da Real Fá-
brica da Seda, pág. 45 e Livro g2i-3.° de Decretos e Avisos —
Aviso de 14 de Fevereiro de 1821 portaria de ib de Agosto de
;

1821 ; aviso de 14 de Junho de 1826; e portaria de 22 de Novem-


bro de 1S27, pág. 29 v.% 34 V.» e 53 v.° Esse terreno foi depois
reivindicado pela Câmara em i836 {Sinopse dos Principais Actos
Administrativos da Câmara Municipal de Lisboa, i836, pág. 10).
(2) Citados Elementos, tomo xiit, pág. 461-462.
(3) Anuncia-se o seu aluguel, na Crónica Constitucional de
19 de Agosto de i833.
(4) Manuscrito Y-5-io da Biblioteca Nacional, intitulado Ano
Histórico e Noticioso, pág. 437.
— 390 —
Foram os fregueses de São José, quem, por mão do
vereador Aires de Sá, em i852, solicitaram à Câmara a
colocação de uma grade na muralha. Numa das ses-
sões de Junho a Câmara votou contra a ideia (i) i Que
tinham os paroquianos de São José' com isso, inquirir-
-se-á? Tinham. Eram frequentes os suicídios da mu-
ralha abaixo e os corpos iam cair na área da freguesia.
Noutra sessão de 23 de Julho de i856 voltou a ideia
da grade, de novo, a aparecer; na de 22 de Setembro
do mesmo ano, aprecia-se uma repj^esentação dos Admi-
nistradores dos Bairros, pedindo-a para defender os sui-
cidas dos seus propósitos; e na 7 de Julho de 1857,
Aires de Sá, torna a insistir por ela, e propõe até que

se feche ao público a Alameda (2). Nada porém se fêz,


a-pesar-da proposta de Vaz Rans feita na sessão de 12
de Janeiro de 1860.
Em 1861 renasceu a questão com um
ofício do Go-
vernador Civil, chamando do Município para
a atenção
o caso. Severo de Carvalho, vereador, propõe então
de novo a colocação da grade, numa sessão de 1 5 de
Julho. Os suicídios imprensa bramava
continuavam, e a

contra a imprevidência municipal. A vereação entendia


que a grade tirava avista e que não evitava os crimes;
e a-pesar-de nova proposta do vereador Frescata, em
26 de Agosto, continuou tudo como dantes (3).

Em i863 vejo anúncios pondo em arrematação a


feitura do gradeamento, em 23 de Abril e 4 de Maio (4)
em 1864 (já ela estava feita) o vereador César de Al-

(i) Sinopse dos Principais Actos Administrativos da Câmara


Municipal de Lisboa, ano de i852, pág. 33, 43 e iii.
(2) Annais do Municipio de Lisboa, i856-i857,pág. 5í<, G7 e 99.

(3) Arquivo Municipal de Lisboa, 1S61, pág. 497, 543, 618,


649-651, 706, 710 e 802.
(4) Idem, 1862, pág. 863 e 1107, e i863, pág. 1379, i388 e 1397.
— 391 —
meida propõe que se reconsidere sobre a resolução
tomada, Lopes dos Anjos, lembra que
e outro vereador,
seja colocada no Jardim da Praça das Flores. Apro-
va-se isto.
Em 17 de Abril deste ano dá-se, porém, um suicí-
dio que os jornais comentaram largamente e que hor-
rorizou a cidade, e é o mesmo Lopes dos Anjos quem
volta, na sessão de 2 de Maio, com a proposta da grade.
A entrada para o Jardim de Baixo foi vedada ao pú-
blico. Na sessão de 12 do mesmo mês foi afinal resol-
vido o assentamento da grade sobre um guarda-chapim
de cantaria, arbitrando-se 4boítpooo réis para o trabalho
que devia ser feito pelo pelouro das obras. Como so-
brassem 90 metros, foi este excesso mandado colocar
no Jardim da Praça das Flores. Em 16 de Outubro
de 1864 estava concluída a obra em São Pedro de Al-
cântara e reabria-se o jardim ao público. Tinham-se
gasto i.626íí)7oo réis.
A sentinela da Guarda Repubhcana que ali estava
O que é certo
para evitar os suicídios, retirou a seguir.
é que ninguém mais se atirou da muralha abaixo (i).
E a Praça das Flores ficou sem grade.
Em 1839 a Câmara estava acabando uma estátua
para ser aqui colocada, e em 1840 resolveu transportar
para este jardim a Casa de Regalo que estava no Jar-
dim do Regedor (2).
Em 1846 embargou-se um barracão que aqui se
estava a edificar (3).

(i) Arquivo Municipal de Lisboa, 1864, pág. 1773, 1788, 1795,


1828-1829, 1837, 1844, 1909, 2000, 20o3-2004 e 2019.
(2) Sinopse dos Principais Actos Administrativos, 1840, pág. 26,
e 1839, pág. 34.
(3) Idem, pág. 25.
— 392 —
Os velhos do Asilo da Mendicidade, alugavam as
cadeiras da Alameda, em i85i(i).
A entrada do público fazia-se por uma cancela do
lado do Norte e por outra do lado do Sul que só se
abria aos domingos, havendo um horário especial para
verão e inverno. O pessoal do Jardim e Alameda era
um fiel, um porteiro e um guarda. Isto em i85ò, ano
este em que também ali se pregaram seis bancos au-
mentados, depois, em 1862, porque na noite de 17 para
18 de Setembro deste ano arrancaram onze (2). Era
uma façanha comum dos notívagos avariados da Lisboa
desse tempo. Do Rossio arrancaram-nos por duas ve-
zes no ano seguinte.
Encostadas à muralha para o lado das Taipas, fica-
vam nessa e'poca umas barracas miseráveis, montes de
lixo e entulho. Esses terrenos pertenciam aos condes
de Lumiares. O vereador José Tedeschi, em 2 de Ja-
neiro de 1860, propôs a expropriação de tais barracas,
e na sessão de 9 de Fevereiro a remoção do entulho
para o lado da Glória e a compra dos terrenos ao conde.
Foi resolvida a expropriação em 8 de Março e au-
torizada para ela a verba de 970^6960 réis.
A escritura com o conde de Lumiares fêz-se em 14
de Junho de 1861, quando já na Alameda tocavam as
bandas regimentais pelas tardes encalmadas (3). Em
i863 a Câmara reconstruiu neste jardim uma estufa de
abrigo (4).
Em 1870 e tantos houve uma tentativa para animar

(
1
)
Sinopse dos Principais A ctos Administrativos, 1 85 1 , pág. 1

e 19.

(2) Anuais do Municipio de Lisboa, iSSS-iSSg, pág. 355, 386


e 507 e Arquivo Municipal, pág. 1140 de 1812.
(3) Arquivo Municipal, 1860, pág. 4, 12, 5o, 76 e 114 e 1861,
pág. 497, 545, 618, 649, 65i, 706, 710 e 802.
(4) Idem, 1S64, pág. 1717

Relaiório de 1862-1863.
- 393-
o local. As quintas-feiras tocava uma música no coreto
e a iluminação aumentava-se. O público, porém, não
concorreu de forma a tirar à Alameda o aspecto de um
arraial triste. A ideia falhara.
OJardim de Baixo ornamentou-se então com uma
cascata e com os bustos de Minerva, Ulisses, Ve'nus,
Afonso de Albuquerque, Vasco da Gama e Camões.
O Município misturou, assim, os Heróis com os Deuses.
Um artigo do Occidente de 1881, referindo-se à ilu-
minação do Passeio, chama-lhe delicadamente discreta.
Não se pode ser mais elegante nem mais eloquente.

Voltemos às Águas Livres. Em 1740 iam as obras


adiantadas. Trabalhavam nelas mais de quinhentos
operários.
O documento coevo de onde tiro esta notícia diz-

-nos também que muita gente da corte ia a divertir-se


naquele sitio (Campolide e Senhora de Santana) no
qual se acham Já algumas casas de pasto (i). E deviam
de fazer bom negócio.
Foi dessas «casas de pasto» que nasceu a Horta da
Rahicha e o costume dominical da salada e do peixe frito
sob os arcos do Aqueduto.
O
Mercúrio Histórico de Lisboa de 20 de Julho de
1743 — o jornal
manuscrito de Luiz Montez Matoso, de
que possuo um exemplar —
diz nas suas notícias de
Lisboa

((Ante-Iiontem cahiu de hum pegam das obras das


Aguas Livres da Ribr.'^ de Alcântara hum official de

(i) Citados Elementos, tomo xiv, pág. 33 1-346.


-- 394 —
pedre/ro que se fei em pedaços antes de chegar ao
chanij por encontrar huma pedra que subia para o fe-
cho de hum arcoy>.

O Mercúrio de i6 de Maio de 1744, noticia:

« Com
brevidade se fechará o arco grande da Ri-
bejra de Alcântara do Aqueduto das Agoas Livres e
passaria a ágoa a correr junto de Pavolide (sic) donde
a cidade se proverá já de mais pertoy>.

E o número de 26 de Setembro do mesmo ano:

(.íAsAgoas Livres podendo já correr em Campo-


lide empidirão as Religiosas Trinas do mesmo sitio q
junto da sua cerca se Ji\esse luun tanque sem que lhes
desse um aunei de ágoa p.^ a s." covinha, e por esta causa
a não teremos tam brev.'"'^ como se cuydava ta?7i perto
desta cidades).

Em 3 de Outubro de 1744, escreve-se

<íNão obstante o embargo que as Religiosas Trinas


punham se fabricou junto ao seu Mostevro de Campo-
lide hum grande tanque de madejra e amaiihan hade
começar a correr nelle a agoa livre que vam pelo aque-
ducto que até ali está acabado de que se proveram os
Bajrros desta Cidade mais ve\inhosn.

O de 17 de Outubro do mesmo ano, exara:

ííHe tam excessivo o gosto que o povo desta Corte


tem mostrado com a chegada da Agoa Liin-e a Cam-
polide que todos os dias concorrem a ve-la correr hum
inmuneravel concurso. No Domingo passado se ajjirma
que for ão aquelle sitio mais de ôífpooo pessoas>y.
— SgS —
Eis o que diz a imprensa da época.
A curiosidade na capital era justificada, tanto mais
que em i8 de Fevereiro desse ano se tinha desmoronado
toda a fachada do seu querido e fiel «chafariz de El-
Rei», tendo morrido na derrocada dezoito pessoas e
ficado feridas muitas mais. Era Entrudo e
terça-feira de
o desastre deu-se das sete para as oito horas da manhã.
A varanda das casas do marquês de Angeja e um
arco da cantaria das obras que o Senado ali estava a
fazer desabaram estrondosamente (i). Daí resultou uma
longa demanda entre o Senado e o Angeja e menos al-
guns centos de quartas de água para os sequiosos.
Foi à hora das Ave-Marias no chafariz provisório
das Amoreiras, em 3 de Outubro de 1744 que a água
correu pela primeira vez (2).
Em
1762 já se queixavam a El-Rei os moradores
de Lisboa da demora na conclusão da obra da Água
Livre, mostrando-lhe a sede que a cidade padecia. A
maior parte dos chafarizes estavam ainda apenas pro-
jectados ; o «Castelo da Água» de São Pedro de Alcân-
tara não se acabava, e os sequiosos bradavam (3),

A primeira «Sociedade dos vinte pedreiros» dissol-


veu-se em 1770, ficando credora à Junta de Adminis-
tração das Águas Livres de perto de cinquenta contos

(i) Mercúrio de Lisboa, de 29 de Fevereiro de 1744.


(2) Demonstração Histórica da Freguesia dos Mártires, por
Frei Apolinário da Conceição, pág. 177-178. Frei Apolinário chama
a este chafariz, jPor/a/iV (!).

(3) Sumario de Varia Historia, por Ribeiro Guimarães, t. iii,

pág. 187-188.
- 396 -
de réis, quantia esta que veio a liquidar-se, após o aviso
de 4 de Dezembro de 1775. Dos primitivos sócios a
maioria morrera. Uma escritura, feita em 1764, con-
solidara a situação dos herdeiros dos falecidos, estipu-
lando-se nela que, por morte de qualquer dos novos
sócios, as mulheres e filhos ficassem na Sociedade de-
vidamente interessados. Esta estipulação preconizada
pelo sócio Francisco Gomes da Silva, intriguista e ma-
licioso na opinião da «Junta», deu origem, alguns anos
decorridos, ao facto extravagante de se acharem dentro
do grupo societário, cle'rigos, religiosos e mulheres
que nada percebiam dos assuntos ali tratados. Quando
se fêz nova escritura repetiu-se a estipulação e a situa-
ção, que a Junta chamava monstruosa, continuou, a-pe-
sar-dos protestos dos sócios a valer contra os ociosos
e parasitas que os exploravam.
A sociedade organizada pela escritura de 18 de Se-
tembro de 1772, compusera-se de treze mestres pedrei-
ros: —
António Baptista Garro, Manuel Caetano Freire,
Manuel José da Silva, Bernardino da Costa Calheiros,
João de Abreu, Manuel Francisco, Francisco Alves
Lobo, Tomé Alvares, Manuel da Silva, José Gomes,
Pedro Gomes da Silva e Joaquim José dos Reis.
Todo o material de trabalho da Sociedade anterior
fora tomado por esta, por avaliação.
Em 1783 a Junta propôs a abolição da Sociedade
existente, fazendo-se nova conta, indemnizando os par-
ticulares que haviam feito contratos com ela, e re-
servando-se o direito de resolver quaisquer dúvidas
que aparecessem com base no que dispunha o decreto
de 14 de Dezembro de 1772(1). Nestes termos a abo-

(
I ) Livre g26 de Representações e Consultas^ da Colecção da
Junta de Administração das Fábricas do Reino, no Arquivo Na-
cional — Representação de 1 1 de Agosto de 1783, pág. 81-81 v.°
lição da Sociedade fêz-se pela Real Resolução de 1 3 de
Agosto de 1783, e feitas as contas viu-se ter havido
um saldo a seu favor de 80.692^^)893 réis, em vez das
irregularidades e dos descaminhos que o sócio Manuel
da Silva denunciara em 1780.
Este Manuel da Silva tinha sido Pagador das Obras
e queria entrar de novo na Sociedade com este cargo
então exercido pelo Joaquim José' dos Reis. A sua
queixa a Junta deu a pior informação, dizendo que as
acusações eram infundadas, que não havia alcances e
que tudo se devia atribuir ao seu feitio. Era um 07'-
giilhosoperturbador da tranquilidade social. A pró-
pria acusação aos padres, não tinha fundamento (i).
Fundou-se ainda uma terceira e última sociedade
por escritura de 16 de Janeiro de 1784, feita nas «notas«
do Tabelião Eusébio José Pereira de Carvalho e Aguiar.
Eram quatro os sócios (Joaquim José dos Reis, Tomé
Alvares, Luiz António da Silva Coelho e Bernardino
António da Silva) e durou até 1799, ano em que aca-
baram, de vez, todos os principais trabalhos do Aque-
duto (2).
Em 1786 os mestres empreiteiros, invocando a ca-
restia dos materiais e da mão de obra, requereram
para que o preço da braça de parede, paga a 4íí!4oo réis,

fosse elevado. A Junta achou justa a pretensão, depois


de ouvidos os técnicos, embora informe que os Mestres
nada disseram quando os materiais e a mão de obra

Livro g26 de Representações e Consultas


(i) —
Consulta de
7 de Maio de 1781, pág. 23.
(2) Memórias sobre Chafarijes^ de Veloso de Andrade, pág. 320-
325. A admissão destes sócios foi aprovada por Real Resolução
de 6 de Dezembro de 1783. Livro g3g de Manifestos, pág. 11 e
Livro gj8-C de Decretos e Avisos —
Aviso de i de Setembro de
1783, pág. 17-17 v."
-398-
estiveram mais baratos do que se tinha calculado para
a fixação do preço. O apíso de 12 de Dezembro de
1786 elevou para cinco mil re'is o preço da braça de
parede, aumentando-se também a quantia a pagar para
equivalente porção de abóbada de tejolo(i).

Para a construção do Aqueduto foram expropriados


muitos prédios urbanos e muitos terrenos. De entre
essas expropriações aponto, por nos interessarem mais
de perto, as seguintes

— Uma porção de terreno da quinta do conde de Ana-


dia (15.272 palmos quadrados) a São João dos
Bencasados
— Um olival no sítio do Rato, que era de João Antó-
nio de Paiva como testamenteiro de Manuel da
Silva
— Outra terra do mesmo, no mesmo local;
— Um terreno com 887 braças quadradas, no sítio das
Amoreiras, que era de José Xavier Carneiro Za-
galo e Melo, a-fim-de se construir nele a Casa da
Água ; e
— Uma porção de terra pertencente à cerca das freiras
do Rato (2).

(
1
)
Livro 926 de Representações e Consultas —
Consulta de
i5 de Setembro de 1786, pág. 22-23 e Livro g2'j, idem Consulta—
de 9 de Dezembro de 1786 e 16 de Abril de 1788, pág. 32-33 v.° e

63 v.°-64.3
(2) Livro gi8-C de Decretos e Avisos — Aviso de i de Setem-
bro de 1783.
— ^99 —
Estas e outras expropriações importaram em cerca
de noventa e dois contos de réis.

A da obra orçou por treze milhões


despesa total
de cruzados b.b6i.gSi^6oo réis). Deste dinheiro, po-
rém, sairam verbas com destinos diversos, como, por
exemplo, para a Fábrica das Sedas, para a Fábrica da
Louça, para o Senado da Câmara, para o Erário, para
a Intendência Geral da Policia e até para o próprio
Tesouro. Outras saídas de capital aparecem-nos do-
cumentando factos interessantes como o preço do cha-
fariz do Loreto que custou vinte e cinco contos de réis.
O Neptuno deste chafariz, devido ao cinzel de Ma-
chado de Castro, foi pago com a quantia de 2015^000
réis e a Anfitrite do das Janelas Verdes com 6ooí5í)000
réis.

Outras quantias, incluídas no custo do Aqueduto,


tiveram destinos um tanto ou quanto extravagantes.
jTrinta e tantos contos foram para fardamentos dos
cocheiros e criados da Casa Real 1

Na relação das medições pagas com referência ao


ano de 1768, aparece uma verba para a construção de
uma casa em Carnaxide para a mulher que dera de
mamar a um dos infantes, e na relação das despesas
de 1800 a i835, inclui-se outra, de perto de cinco con-
tos, dispendida nas obras da Patriarcal, com o fim de
se aproveitar uma nascente de água(i).
Tudo isto nos diz o palreiro Veloso de Andrade.

(i) Com essa nascente projectava-se fazer um chafariz na rua


de São Marçal. Afinal apenas se fez um poço o qual ainda existe
na terceira travessa que desemboca, a contar de cima, na rua da
Procissão. Só mais tarde é que se fez o reservatório que está no
largo.
40O —

Até 1738 foi o Senado quem superintendeu nas obras.


Em 23 de Outubro deste ano, foi criada a «Junta
de Administração» a que já nos temos referido. A ela
compelia também a arrecadação dos impostos.
Por ahará de 1 3 de Julho de 1777 foi abolida, como
se disse em seu lugar, a Direcção da Fábrica das Sedas.
Criou-se para substituí-la a «Junta de Administração
das Fábricas e Obras das Águas Livres». Durou tal
Junta até 1788, e, por decreto de 5 de Junho desse ano,
foi extinta e substituída por uma Direcção (i). O lugar
de Inspector das Águas Livres, criado depois, foi ex-

tinto por decreto de 27 de Julho de 1820(2).

Ainda duas palavras sobre os arquitectos que diri-


giam a obra.
Além de Canevari, José da Silva Pais, Manuel da
Maia e Custódio Vieira, superintenderam tecnicamente
nela os engenheiros Rodrigo Franco, Carlos Mardel,
Miguel Ângelo Blasco, Reinaldo Manuel dos Santos e
Francisco António Ferreira, Este foi nomeado em 1791
em substituição de Reinaldo Manuel que tinha fale-

cido (3).

Miguel Ângelo Blasco que foi também arquitecto do

(i) Memoria sobre Chafari:^es etc, pág. 33 1.

(2)Livro 920 de Avisos —


Aviso à Direcção da Fábrica das
Sedas, de i3 de Abril de 1824, pág. 82 v."-83.
(3) Livro \.° de Ordens, pág. 14 v."
— 401 —
Mosteiro da Batalha, substituiu Mardel, por decreto de
9 de Setembro de 1763 (i).

Rodrigo Franco que vejo mencionado como capitao-


-engeniieiro nuns documentos, aparece-me noutros tra-
tado como simples medidor de obras. Nesta qualidade
e neste cargo foi substituído, por decreto de 14 de xMaio
de 1764, pelo Inspector das Aguas Livres, Teotónio
Caetano da Gosta (2). No século xviii não estavam bem
definidas e nomeadas as várias categorias, neste género
de cargos. Mestres-pedreiros, arquitectos, medidores,
engenheiros, eram designações classificativas que se
substituíam comummente.
A João Pedro Ludovice, atribui Ratton o plano do
Aqueduto ou, pelo menos, de parte dele. E lapso de
memória do infatigável e curioso autor das Recorda-
ções. O risco da obra é devido aos lápis de Manuel da
Maia e de Custódio Vieira. Pagou-se, por êle, a quan-
tia de 796^^940 réis.

O projecto do primeiro seguiu-se desde a nascente


até o Monte das Três Cruzes. Daqui por diante o tra-

çado é de Custódio Vieira, pois não foi aceita a ideia,

de Manuel da Maia, de se furar o monte de Campo-


lide (3).

Em 182Ô, o arquitecto da cidade Malaquias Ferreira


Leal requereu o seu provimento no lugar de arqui-

(1) Livro V dos Avisos do Ministério do Reino, na colecção


existente no Arquivo Nacional.
(2) Livro V dos Avisos do Ministério do Reino. Rodrigo
Franco morava, então, no alto da rua da Rosa.
(3) Colecção de Memorias Históricas das Principais Instru-
ções e Ordens de Sua Magestade para a construção do Famoso
Aqueduto das Aguas Livres, pág. i3 e seg.
O Dr. Inácio Barbosa Machado escreveu, também, um Tra-
tado Histórico e Juridico do Aqueduto de Lisboa.
voL. IV a6
— 402 —
tecto das obras das Águas Livres (i). Ignoro se foi

provido.
Sousa Viterbo no seu valiosíssimo Diccionario de
Engenheiros e Arquitectos poucos dados biográficos
nos dá deste arquitecto.
E, por hoje, basta.

(i) Livro g2i-3.'* de Decretos e Avisos, pág. 5o v."


CAPITULO XVII

SuMÁRi j : Descrevem-se o Aqueduto e a «Casa da Água» nas Amo-


reiras — As antigas e modernas inscrições do Arco Grande
das Amoreiras — —
Conclui-se a Casa da Água Enumeram-se
— Notas sobre
as várias galerias abastecedoras dos chafarizes
as fontes do Bairro — A pedinchice dos «sobejos» — A «Junta»
tentando defender a água dos apetites particulares — O povo
pede que se distribua a água por novas fontes — Medições,
vistorias e estudos — Começa acentuar-se a
a de água
falta
— Providências municipais — Uma «partida» do Valverde
para acudir à seca do chafariz do Loreto — Várias edi-
leis,

tais, posturas e providências diversas sobre aguadeiros chafa-


rizes, preço da água, etc. —
A Câmara Municipal herda o le-
gado da Junta das Águas Livres —
Os últimos retoques no
Aqueduto — —
A estiagem de i833 O corte das Águas lavres
— Boatos terroristas —
Medidas adoptadas pelo Governo —

Novas estiagens em 1834, 1839 e 184O Continuação da falta
de água.

O Aqueduto das Águas Livres tem o comprimento


total de i8.6o5 metros, ou sejam cêrca de dezenove
quilómetros, desde a Casa da Agua, no Rato, ate' o
olivaldo Santíssimo, em Canecas. Juntando-lhe, po-
rém, todos os ramais, antigos e modernos, obtem-se
a extensão total de 48.036 metros aos quais, acrescen-
tando-se, ainda, as galerias de distribuição dentro da
cidade, prefaz o comprimento de 59.838 metros ou se-
jam perto de doze léguas.
Em toda a sua extensão possui cento trinta e sete
clarabóias, algumas de grandes dimensões, com portas
e frestas guarnecidas de rede para resguardo.
Os túneis têm o comprimento de 4.660 metros, e o
— 404 —
restante do Aqueduto é em parte construído à flor da
terra e assente sobre pontes de cantaria as quais con-
têm cento e nove arcos de diferentes alturas.
O Aqueduto que é alimentado por diferentes aque
dutos parciais, quási todos posteriores a êle (são vinte
e sete), parte da primeira clarabóia, situada a dois qui-
lómetros de Belas, comummente chamada a Mãe de
Agua Velha. E ai que nasce a fonte da Água Livre.
Posteriormente foram as águas conduzidas até o
olival do Santíssimo que assenta em uma encosta ao
poente de Canecas onde se juntam com as dos aque-
dutos de Paço da Bomba e Vale de Mouro. Entram
depois na clarabóia das Três Aguas e, reunindo-se em
seguida com as dos aquedutos das Carvalheiras, dos
Salgueiros e dos Frades Marianos, entram depois nas
Pontes Grandes sobre a margem direita da ribeira de
Carenque.
Vencida uma diferença de nível de dois metros e
meio, o Aqueduto é descoberto até entrar na Mãe de
Agua Nova, na margem oposta da Ribeira. Aqui se
juntam estas águas com as que vêm da Mãe de Agua
Velha, ao fundo do Salto-Grande. Depois o Aqueduto
segue recebendo diversas nascentes até avistar Caren-
que e, encontrando depois a Casa da Agua do Aque-
duto de Qiielu\^ desvia-se para o lado da Porcalhota^
encosta-se ao outeiro de São Bra^ (onde recebe as
águas do aqueduto deste nome), segue pela estrada até
a ermida de Santo António, saltando sobre a ribeira
Busca Fragoso e continua na mesma encosta até o
Calharií. Depois prolonga-se pela frente do convento
de São Domingos de Benfica até o monte das Três
Cruzes e à porta da Sar afina, e passa à ribeira de
Alcântara onde se encontra a parte da obra mais im-
portante.
A ribeira é atravessada, no comprimento de 941
— 40^ —
metros, sobre 35 arcos, um dos quais, chamado o Atxo
Grande, tem 62 metros de altura por SS^jy de aber-
tura. Os arcos extremos são de volta inteira e os 14
centrais em ogiva, sendo tudo encimado por uma espa-
çosa galeria adornada de torreões para arejamento.
Atravessada a ribeira segue o aqueduto pela estrada
da circunvalação^ passa sobre o arco do Carvalhão,
e, correndo ao longo de Campo de Ourique, depois de

passar por um subterrâneo na rua de São João dos


Bencasados, atravessa as Amoreiras sobre um belís-
simo arco ornamental, contorna o jardim pelo poente
e sul, e vem acabar na Casa da Agua.

A galeria do aqueduto tem 2"',88 de Alto, desde o


pavimento ao fecho da abóbada, havendo de cada lado
uma caleira de lagedo de o'",33 de fundo circular, e ao
meio um passeio com o'",66 de largura (i).

As monumental das Amo-


antigas inscrições do arco
reiras que foram mandadas picar pelo Marquês de
Pombal por aviso de 20 de Março de 1773, eram as
seguintes (2)

uSuperatis difficultatibus Pacatis Opinionum dissi-


duo Agua Liberae in Urbem Triwnphalis ingresso.
An. Dom. MDCCXXXXVIlh, o que traduzida diz:

«No ano de 1748 depois de vencidas as dificuldades

(1) Consulte-se para maior esclarecimento desta matéria o


minucioso Veloso de Andrade, na sua Memoria sobre Chafarizes.
(2) A pág. 76 e 77 do códice 4-j6 da Colecção Pombalina, da
Biblioteca Nacional, diz-se erradamente que estas inscrições fo-
ram picadas em 1783.
— 40^ —
e apaziguadas as discórdias de opinião, tiveram as Aguas
Livres o seu ingresso triunfal na cidade».

E, do lado do Rato

dAquas Liberas per dua saecula desideratos, regjiant


Joanne V, Pio, Foelice, Magnaniino, complanatis prae-
ruptis, divisque praeforatis, niidei'iginte annorum per-
tinaci labore, per circuitum novem niille passuum, ore
publico, et conimuni gáudio in Urbem invexit Senatus
Populus que Ulisbonensis. An. Dn. MDCCXXXXVIII»
ou seja :

«No ano de 1748, reinando o Piedoso, Feliz e Mag-


nânimo D. João V, o Senado e o Povo Lisbonense, à
custa do mesmo povo, e comum satisfação dele, intro-
duziu na cidade as Aguas Livres, desejadas pelo espaço
de dois 'séculos, e isto por meio de um trabalho, du-
rante vinte anos, era arrazar, desfazer e furar os ou-
teiros na redondeza de nove mil passos».

As que as substituíram em estilo menos simples e


mais grandíloquo, e que ainda lá estão, são:
Do lado do Rato

«Reinando D. João V o Maior dos Reis, o Bem


Publico de Portugal, foram introduzidos na cidade
por aquedutos solidissimos que ham-de durar eterna-
mente, e que formam um giro de nove mil passos,
águas saluberrimas, fa^endo-se esta obra com tolerável
despega publica, e sincero aplauso de todos. Anno de
17 4S da Era de ChristO)).

Do lado de São João dos Bencasados :

«£). João V, Rei de Portugal, Justo, Piedoso, Au-


— 40? —
gusto, Feli^ Pai da Pátria^ posta empai ^ Lusitânia
com valor robustecida com riqiie\as^ ou para
e gloria^
melhor di\er^ vencida a própria naiure\a^ fe\ condu-
zir a Lisboa aguas perenes no breve espaço de ig anos^
e com menor possivel dispêndio dos cabedaes públicos
o
concluiu-se a obra \immensa. O Senado e o Povo de
Lisboa^ em signal de gratidão, para com este óptimo
Priíicipe, consagraram este monumento. Anno de 1^48
da Era de Cliristo^K

Estas, sim, ficaram menos verdadeiras mas mais


monumentais. Nem o Óptimo faltou.

A Casa da Água às Amoreiras, vasta mole de pe-


dra, de cujo terraço se avista quási toda a cidade, é
de feitio quadrangular, com amplíssimas janelas em
roda e 5™, 14 de espessura de parede. Na parte infe-
rior tem uma vasta bacia ou tanque, com 28'",6 de com-
prido por 24°',4 de largo e 7 metros de alto com a
capacidade de 5.5oo metros cúbicos.
Em volta há um largo passeio, por três dos lados,
com uma varanda. No outro lado fica a cascata, por
onde a água se despenha saindo da boca de um golfi-
nho que ressalta da parede sob a figura de Neptuno.
A parte superior da edificação é coberta com uma
abóbada de tejolo, cerrada pelo terraço gradeado, de
que já falamos.
Este reservatório esteve por acabar ate' 1834. Em
1822 a Direcção das Águas Livres solicitou às Cortes
a sua conclusão, mas só dois anos depois se fez o or-
çamento. Por portaria de 26 de Julho desse ano che-
gou-se a mandar executar a obra, mas só em i3 de
Agosto de i833, sendo Ministro das Obras Públicas o
— 4o8 —
visconde de Vilarinho de São Romão se concluiu, final-
mente, a Casa da Agua na qual se gastaram, por sinal,
i3.732í!&095 réis (i).

Deste reservatório partem diferentes galerias que


abastecem alguns dos chafarizes da cidade; outras saem
do aqueduto antes que êle entre na Casa da Água. A
galeria do Loreto, que vai pelas praças do Brasil e do
Rio de Janeiro, São Pedro de Alcântara, Loreto e São
Carlos, e a Galeria da Esperança, que acompanha esta
no primeiro lanço, e vai depois atravessar a rua do
Arco e mais abaixo a de São Bento, em frente às Cortes,
pertencem às primeiras a galeria do Campo de San-
;

tana e a das Necessidades pertencem às segundas. A do


Campo de Santana sai do aqueduto àquem do Arco do
Carvalhão, dentro da quinta dos herdeiros da condessa
da Anadia, e vai alimentar, por si e pelos seus ramais, os
chafarizes do Campo de Santana, da Cruz doTaboado,
do Rêgo, o Hospital de S. José e duas fontes particula-
res. Antigamente dava água aos chafarizes do Campo de
Santana, do Campo Pequeno e Intendente, bica do Des-
terro, fontes das quintas do Seabra e da Bemposta. A
galeria das Necessidades sai do aqueduto, em frente do
reservatório de Campo de Ourique, em direcção à Boa-
-Morte, e tem quatro ramais, um para a Estrela, outro
para as Janelas Verdes e dois para o palácio das Ne-

(i) O
plano feito pela Administração da Real Fábrica das
Sedas Obras das Águas Livres, foi aprovado por portaria de 2
e
de Outubro de i833, estando as obras orçadas em i.o38^ooo réis.
As portarias de 24 de Dezembro de iS33, 28 de Agosto e
e de 2 de Setembro de 1834 é que determinaram a conclusão da
obra {Livro 920, pág. 64-64 v.° e Livro 922, pág. 8).
— 409 —
Cessidades. Hoje alimenta o chafariz das Janelas Verdes,
o das Necessidades, o lavadouro do chafariz das Terras,
o antigo Palácio Real e suas cavalariças, o quartel da
Cova da Moura, a Legação Inglesa e mais três casas
particulares.
A galena do Loreto dá água actualmente para o
chafariz da rua Formosa, para a Academia das Ciên-
cias e para doze particulares. A entrada da rua de
D. Pedro V há uma casa quadrada, chamada a Pia do
Penalva^ de onde parte uma galeria em degraus até o
antigo chafariz e clarabóia da Cotovia, e outra que,
em sentido oposto, leva água ao chafariz da rua For-
mosa. A partir de São Pedro de Alcântara até à Cal-
çada da Glória é o aqueduto muito alto e muito largo,
mas depois No largo da Trin-
estreita sensivelmente.
dade havia uma pia de onde partiam ramais para os
chafarizes do Carmo e da rua António Maria Cardoso.
Essa pia está hoje inutilizada, sendo o abastecimento
feito pelo encanamento geral.
A
galeria da Esperança, cuja obra mais impor-
tante é o Arco de São Bento, junto às Cortes, abastece
unicamente o chafariz daquele nome e o da rua do Arco,
afora uma casa particular.
Isto quanto às obras antigas, executadas durante- a
construção do Aqueduto Joanino, chamemos-lhe assim..
Quanto às obras modernas da Companhia, falaremos
depois (i).

Algumas notas sobre os chafarizes do bairro.


Chafari\ das Amoreiras. Foi o primeiro onde cor-
reu a água. Os sobejos iam para o tanque das lava-

(i) Memoria sobre as Aguas de Lisboa, por A. Pinto de Mi-


randa Montenegro, pág. 63 a 70.
'— 4^0 —
deiras na rua das Águas Livres, e daí para cerca das
Freiras do Rato, depois do Asilo de Nossa Senhora
da Conceição, e agora da Assistência Pública.
Chafa7H\ do Rato. Foi construído em 1794, sendo
os sobejos concedidos, por alvará de 26 de Agosto
desse ano, a Manuel Caetano de Sousa. Hoje perten-
cem à casa Palmela (i).

Chafarii da Rua do Arco. ¥o\ mandado fazer por


ordem de 12 de Junho de i8o5, pela Direcção das
Aguas Livres. Por Resolução de 14 de Agosto de 1807
e título de posse de 10 de Julho de 181 1 foram conce-
didos os sobejos, em partes iguais, a D. Genoveva dos
Anjos Alexandrina (avó materna de Alexandre Her-
culano) e a José Ramos da Fonseca. A primeira con-
cessão foi feita por motivo de expropriações de que
D. Genoveva não fora indemnizada (2).

Chafari\ da Cotovia. Este chafariz era antiga-


mente situado ao topo do Passeio Público, na Praça da
Alegria de Baixo. Foi em 1840 mudado para a Coto-
via de Cima.
Chafarii da Praça das Flores. Foi também man-
dado fazer pela Direcção das Aguas Livres. Fica em
um pequeno largo, ao fundo da rua de Monte Olivete.
Bica das Aíi:uas Livres. É a última no distrito do
bairro. Foi feita em 181 1 (3).

Chafari:{ da Cru^ das Almas. Foi feito por aviso


de 27 de Junho de 1823. A vistoria realizada para
escolha do terreno, em 23 de Março, foi o brigadeiro
Duarte José Fava, Intendente das Obras Públicas e os
arquitectos Joaquim Marques de Abreu e Manuel Cae-
tano da Silva Gaião, e ainda o mestre Manuel António.

(
i
) Memorias sobre Chafarizes, por Veloso de Andrade, pág.3.
(2) Idem, pág. 6 e 86.
(3) Idem, pág. 328-329.
— 411 -
O sítio escolhido foi Junto ao muro da quinta da con-
dessa da Anadia na estrada que vai da Cruz das Almas
para o Arco do Carvalhão (i).

Do chafari\ de São Pedro de Alcântara^ já atrás


falámos.

Além da casa Palmela e do antigo mosteiro das


Freiras do Rato, recebiam sobejos de águas, no bairro,
a ex-Escola Politécnica (antigo Colégio dos Nobres), a
Imprensa Nacional e a Casa da Praia e Monforte, pro-
prietária do velho edifício da Fábrica da Loiça. Os
sobejos que foram concedidos a D. Genoveva dos Anjos
Alexandrina, passaram ao conhecido íloricultor Frede-
rico Daupias, dono dos antigos terrenos juntos ao cha-
fariz da rua do Arco. Recentemente foram vendidos
pelos seus herdeiros.
Os sobejos dos chafarizes foram causa de muitos
protestos, de muitos favoritismos e de muitas calúnias.
Pombal foi vítima, também, de acusações à conta de
usufruir a água que sobejava dos chafarizes da rua For-
mosa e das Janelas Verdes, e ainda dos benefícios
ilegais que tivera numa sua quinta com a obra da Ri-
beira de Alcântara.
O célebre Coxo das Aguas Livres que teve, depois,
com o Marquês, uma demanda à conta do «Casal do
Calhau Ventoso», em 1780, propalava em Lisboa que
Pombal se apropriara dos sobejos para o seu palácio
familiar, ao tempo que certo ministro dizia a toda a
gente que o poderoso Cabeleira íizera um encanamento
subterrâneo do chafariz das Janelas Verdes para a outra

(i) Livro 920 da Colecção da Junta, pág. 82 v.°-83 — Aviso de


27 de Junho de 1823.
— 4i'i —
sua casa (o actual Museu de Arte Antiga) de que ele
entrara na posse —
o que era certíssimo sem dispen- —
der um real(i).
Pombal, numa carta parece que dirigida ao filho,
justifica-se dizendo que não existe tal encanamento de
contrabando, e que, quanto aos sobejos do chafariz da
Rua Formosa, que a mais ninguém serviam, lhe tinham
sido concedidos por diploma régio, a troco da cedência,
por êle feita, de duas casas com seus quintalôes para
o chafariz se construir, tão necessário que era àquele
bairro. Do Coxo das Aguas Liares a cujas imposturas
ninguém dava crédito, dizia ter hum terrível e acanhado
caracter (2).
A Junta das Aguas Livres, onde Pombal tinha um
grande amigo e servidor -o chefe das obras Estêvão
Pinto de Morais —
fêz o que pôde para que o caso não
fosse demasiado escandaloso. Os descaminhos denun-
ciados pelo Coxo tinham merecido uma devassa, ini-

ciada pelo desembargador Luiz Estanislau da Silva


Lobo e concluída pelo corregedor Manuel José da
Gama e Oliveira. A Junta, sendo ouvida, opinou que
tendo falecido a maioria dos empreiteiros da obra da
Rua Formosa e estando os que restavam empenhados
nas urgentes obras do aqueduto, seria prejudicial a
chamada destes à responsabilidade imediata dos delitos
que lhes implicaria a prisão. Se tal se fizesse contra os
empreiteiros da obra da Ribeira de Alcântara, para-
riam os trabalhos dos aquedutos parciais que se esta-
vam construindo. A obra da Ribeira custara i5.4o8í5í)044

(i) Num manuscrito que possuo Historia Politica e Eco-


nómica do reinado do Senhor Rei D. José 1 vem mui claramente —
referida a extravagante e rara compra deste palácio.
(2) Códice 6y8 da Colecção Pombalina da Biblioteca Nacio-
nal, pág. 162-164. A copiada carta está datada de 3o de Março
de 177 1. Há outras cópias nos códices 668 e 6g5.
— 4'3 —
réis ; o custo das outras ignorava-se totalmente. E a
Junta inquere :

— Como
i
se hão-de fazer sequestros aos benefi-
ciados pelos descaminhos se se ignoram os quantita-
tivos dos benefícios ?

A única solução seria a de medir as obras reali-


zadas.
Assente, após grande discussão em que os magis-
trados da Junta foram ouvidos sobre a competência
no julgamento da causa, dado que havia nela jurisdição
criminal, foi-lhe, finalmente, cometido o encargo, no-
meando-se relator o Dr. Manuel José da Gama e Oli-
veira. Como nessa altura o gigante já tivesse caído

(1779), os julgadores foram severos e o sequestro fêz-se


aos bens do Pombal. Aos dos outros beneficiados,
como era necessário iazer medições, e o caso não in
teressava à política do momento, não se chegaram a
efectivar. Pelo menos não encontrei vestígios de que
se tivessem feito (1).

A série de requerimentos pedindo os sobejos dos


chafarizes, enfileira-se de 1778 por diante. Os corpos
Aguas Livres eram
directivos que superintenderam nas
constantemente assediados daqueles «empenhos» que
Ratton considerava como um dos defeitos portugueses.
Ainda as fontes não estavam feitas, ainda elas se
projectavam, já apareciam vizinhos a solicitar os so-
bejos. Sucedeu isto com os dos chafarizes de Buenos
A&es e de São Sebastião da Pedreira. Os primeiros
foram solicitados por José Street de Arriaga Brum da

(1) Livro g25 de Representações e Consultas, pág. 93-94 v."-

Consultas de 22 de Fevereiro, 3 e 20 de Março de 1779.


— 414 —
Silveira, em 1788, e, em 1786, por D. Mariana Joa-
quina de Vilhena Coutinho, proprietária de umas casas
a São Francisco de Paula por cima do Olival. Foi
esta a beneficiada., quando a fonte se fêz em 1791 (no
local primitivo de que foi mudada em 1812), por alvará
de 22 de Março de 1786(1).
Os de São Sebastião da Pedreira, concederam-se,
por alvará de 4 de Junho de 1788, ao senhor de»
Murça, Manuel José' Guedes de Miranda (2). O risco
do chafariz de Buenos Aires fora feito por Reinaldo
Manuel em 1785(3).
Das sobras do chafariz do Loreto beneficiaram, em
partes iguais, Joaquim Pedro Quintela e António Ro-
drigues de Oliveira que, em 1782, andavam ali edifi-
cando prédios (4); das do Carmo^ Francisco Hígino
Dias Pereira e Anselmo José da Cruz, em 1783(5);
do das Janelas Verdes^ Maurício José Cremer Wan-
zeller que tinha um prédio junto dele e as freiras de
Santo Alberto, por alvarás de 23 de Dezembro de 1782
e 12 de Dezembro de 1783(6); do de São Pedro de

(1) Livro C de Decretos e Avisos, pág. 58-58 v." e 81 Livro ;

927 de Representações e Consultas —


Consulta de 22 de Fevereiro
de 1788; e Livro 926, pág. 56 v.°-57, idem —
Consulta de 3o de
de Julho 1783, pág. 72 v.°-73.
(2) Memoria sobre Chafari^^es, já citada.
Livro g23 de Registo de Avisos da Junta, pág. 1.
(3) 1

(4) Livro C de Decretos e Avisos, pág. 3o v.» e Livro 926 de


Representações e Consultas —
Consultas de i3 e 26 de Agosto e 2
de Outubro de 1782, pág. 5i v.° e 54 v."
(5) Livro C idem, pág. 4 v.° —
Alvarás de 12 de Agosto e
e 19 de Dezembro de 1783, pág. 4 v.", 10 v.®-ii e Livro g26,idem
;

— Consultas de i3 de Julho e 22 de Fevereiro de 1783, pág. 60 e


62 v.°

(6) Livro C, idem, pág. 10 v.° —


Alvará de 12 de Dezembro
de 1783 e Livro g26, idem —
Consulta de 8 de Agosto de 1783,
pág. 74-74 v.° e Livro B de Decretos e Avisos, pág. 434-435.
— 41^ —
Alcântara, que serviam para regas às árvores do Pas-
seio Público, o Hospital dos Expostos, da Misericórdia,
passando aquele arvoredo a ter de se contentar com
os sobejos do chafariz da Alegria, em 1784(1); do de
Benfica, o Desembargador Manuel Inácio de Moura,
por alvará de 19 de Julho de 1786(2); do das Ne-
cessidades, os conventos do Sacramento e do Livra-
mento(3); do das Amoreiras, as freiras do Rato (4);
etc, etc.
A Junta ao princípio ainda quis obstar a esta pe-
dinchice das ordens religiosas. Quando as Freiras do
Rato fizeram o pedido em 1780, ainda a legaram na
informação prestada que D. João V se quisera ter água
no Paço a comprara, e à implorativa das dominicanas
do Sacramento, ainda obtemperaram que se tinham
sede fossem de noite ao tanque do largo de Alcântara
que servia o Regimento de Cavalaria.
Nada conseguiu. Os conventos não cessaram de
pedir. Eram os Bernardos, em 1782, que solicitavam

(i) Livro g26, idem, pág. iii v." — Consulta de 20 de Dezem-


bro de 1784.
(2) Livro r)3g de Registo de Manifestos — Real Resolução de
19 de Dezembro de 1779; Livro C de Decretos e Avisos — Alvará
de 19 de Julho de 1786, pág. 61 v.''-62 ; Livro g.'5 de Representa-
ções e Consultas =
Consulta de 17 de Novembro 1779, pág. 1 16 v.°-
-117.
(3) Livro 925 de Representações e Consultas Consulta de —
7 de Agosto de 1778, pág. iii v.°-ii2 e Livro gaõ, idem Con- —
sulta de 2 de Dezembro de tanque do
1783, pág. 79-80 v.° O
largo de Alcântara, que recebia os sobejos do chafariz das Neces-
sidades foi concluído por ordem de 8 de Novembro de 1780 [Li-
vro g3g de Registo de Manifestos^ pág. 20 v.").
(4) Livro g25-I de Representações e Consultas, pág. (46-146
v." — Consulta de 1 de Maio de 1780. Em 1789 as freiras do
1

Rato queixavam-se de sede [Livro gig de Registo de Decretos,


pág. 9 v.").
— 4^^ —
um bocadinho do aqueduto da Esperança (i) ; eram os
Terceiros de São Francisco que tinham comprado uma
fonte e que queriam introduzir a água no aqueduto,
para a captar depois, como já tinham pedido e conse-
guido os Congregados do Oratório, e foram outras e
outros por aí fora (2).
Ainda em 1826 faziam semelhante rogo as freiras
da Encarnação. Custou a acabar-lhes com a lamúria.
Veloso de Andrade, menciona, na sua citadíssima
obra, os edifícios públicos que tiveram a mercê de so-
bejos e o benefício da dádiva de anéis de água. Um
dos beneficiados foi a Imprensa Régia a requerimento
do Administrador Aires da Costa, em 1811 (3).
Poucos faziam como o Gerard Devisme em São Do-
mingos de Benfica. Descobrira-se ali, junto quinta .1

deste francês, uma nascente em 1784. Devisme obteve


o consentimento para a canalizar e meter no aqueduto
à sua custa, ficando a usufruír-lhe os sobejos na inver-
nia, e mais tarde construiu o chafariz que lá está. Me-
recidamente foi-lhe dado um anel de água (4).

(i) Livro g26 de Representações e Consultas — Consulta de


6 de Maio de 1782, pág. 42-42 v.°
(2) Idem — Consultas de 26 e 3o de Janeiro de 1784, pág. 84
e 84 v." e Livro C de Decretos e Avisos — Alvará de 22 de Março
de 1784, pág. 17 v/ e 18.
(3) Livro giS de Representações e Consultas — Consulta de
27 de Março de 181 1, pág. 5i v.°-53 v.»
(4) Livro C de Decretos e Avisos, pág. 74-74 v.° Alvará de—
27 de Março de 1787 e Livro g2f) de Representações e Consultas
Consulta de 27 de Agosto de 1784 pág. io5-io6 e Livro 927, idem
— Consulta de 24 de Janeiro de 1785, pág. 4 v.°-5 e Livro g3q de
Registo de Manifestos, pág. 14 5 1 —
Reais Resoluções de 3i de
Agosto de 1784 e 21 de Abril de 1787.
— 41? —

A de fontes públicas, no último quartel do sé-


falta
culo xviii, deu margem a numerosas reclamações.
Correndo os livros da Junta vejo uma consulta de
3 de Abril de 1778, referida a uma representação do
Juiz do Povo reclamando a construção do chafariz do
Campo de Santana (i), cuja falta obrigava os morado-
res desse local a ir buscar o precioso líquido à fonte
de sete bicas do alto do Passeio Público; vejo os povos
de Carnide (1781), Loures ( 1791) e Carnaxide (1784) a
pedir água aflitivamente, como mais tarde a pediram
os de Sacavém (1822), Telheiras e Lumiar (1826) e
como ainda a pediam os moradores do bairro de São
Paulo (1821); vejo ordens e aj>isos para buscas, visto-
rias e medições, ao Casal do Peixoto, Campo de Ou-
rique (1782), à quinta do Colégio dos Nobres, pouco
depois, à quinta de D. Elena, hoje de D. André, ao
Rato (1787), a São João dos Bencasados, Campolide e
Cruz das Almas (i823) e ainda a efectivação de vários
estudos para a introdução de mais nascentes no aque-
duto, já em 1782 (2).
Em 1822 a Junta propunha o mirífico remédio de
se transportar, de noite, a água de uns chafarizes para
outros, para equilibrar a desproporção da concorrência
a cada um.
i
Imagine-se a que soluções conduzia a sede (3)

(i) Livro g25 de Representações e Consultas — Consulta de


3 de Abril de 1778.
mesma Colecção da Junta, pág. 24 v.°, 29 e
(2) Livro Q2I da
43 V.»; Livro gzo, idem, pág. 34-36 v.», 79 v."-8o v.° 109 v.°-iio;
Livro g20, idem, pág. 71 v."; Livro gaS, idem, pág. 4-5 ; e Livro
g3g, idem, pág. 3i3 v.°, 24 e 26v.°
(3) Livro g20, idem —
Portaria de 4 de Setembro de 1822,
pág. 68.
VOL. IV 27
4i8

A-pesar-da grandiosidade da obra a que o terre-


moto de 1755 fêz pouco estrago — apenas a destruição
de três torreões das galerias, e avarias, facilmente re-
paráveis, nalguns arcos (i) — a-pesar-de todos os sacri-
fícios feitos em levar a cabo esse monumento que me-
receu louvores dos próprios detractores sistemáticos das
coisas portuguesas (2), a cidade nunca chegou a saber
o que fosse abundância de água. Lisboa, com a en-
trada das águas do aqueduto ficou livre, é certo, da
penúria antiga, pois oitocentos e dez mil litros por
dia chegavam para as reduzidas exigências de então.
Possuir uma «pena» de água era um luxo árabe. Em
muitas casas havia poços, e todos se iam contentando.
Com o aumento progressivo da população tudo
mudou, e algumas dezenas de anos depois entrou a
água a escassear em quantidade e a crescer em preço.
Para obviar a isto, mandava a Câmara buscar bar-
caças de água à Fonte da Pipa, e cada barril de vinte
e cinco litros disputava-se a murro desenganado. Nos
chafarizes havia continuadas lutas, entre galegos e
criados particulares, à conta da primacia em encher os
barris nas bicas apenas gotejantes.
Trinta anéis de água era já pouquíssimo para a po-

(i) Foi Carlos Mardel quem dirigiu os consertos, tendo sido


os canos desentulhados desde a nascente até o Ralo. Maior dano
fêz ao Aqueduto o temporal que caiu sobre Lisboa em 28 de Ou-
tubro de 1758, tendo ficado os canos arrombados {Memoria so-
bre Chafarizes pág. 327).
,

(2) O autor anónimo da Voyage en Portugal (1796) depois


de dizer mal de tudo, faz honrosa excepção para o Aqueduto, di-
zendo 11 faut honneur aux regne de ce Prince et aux architectes
:

qui en dirigérent la consiruction. E ainda: 11 reunit la tnagnifi-


cence e la beauté à la hardiesse et à la solidité de 1'éxéciition.
— 419 —
pulação de Lisboa (i) e episódios picarescos entremea-
vam como aquele a que se refere o co-
esses combates,
ronel Coelho de Figueiredo, à conta da
Francisco
escassez da água livre que parecia presa. O coronel
lembrando com agradecimento a memória do Conde
de Linhares por êsie ter improvisado uma fonte no Pe-
lourinho, com dois buracos na parede e cinco lages no
chão, dá-nos a noção exacta da aflição sequiosa da
cidade onde até a Bica dos Olhos cegara diz êle de — —
gota serena. E a contar-nos o episódio do Valverde,
todo êle se consola ao recordá-lo.
O Valverde era um celebrão, popular em Lisboa.
Havia muito que o chafariz do Loreto não deitava uma
pinga. ^ De que se há-de êle lembrar? De organizar
um cortejo divertido. Arranja quatro galegos, conven-
ce-os a transportá-lo numa padiola e, lendo na mão um
archote aceso, arrebanha com a sua oratória quantos
aguadeiros topa no caminho e leva-os em procissão, de
onde os cidadãos de Tuy
barris às costas, até o Chiado,
os vasaram no tanque do Neptuno. A farsada foi ce-
lebrada com risos, palmas e ditos. Foi um aconteci-
mento em Lisboa (2).

Há numerosos editais, decretos, leis e providências


municipais, sobre aguadeiros, lutas de chafarizes, pre-
ços da água, etc. O Repertório das Leis Extrava-
gantes, codificou os diplomas de 1767, 1777, 1780, 1790,
1802, 1807 ^ 181 1. Dois editais de 11 e 19 de Julho

(i) O anel corresponde a oito penas que por seu turno corres-
pondem a 3.3o8 litros.

(2) Teatro de Manuel de Figueiredo, tomo 14.°, pág. 604 e 6i3.


— 420 —
de 1780 referem-se a queixas contra os vendedores, re-
gulando os preços do barril; o de i3 de Agosto de
1794 provê à disciplina da gente de barril, subordi-
nando-a aos capatazes e à Inspecção dos Incêndios, e
regulando também os preços o de ig de Janeiro de
;

1807 proíbe as lavagens nos chafarizes e tanques; o


de 18 de Março regula a capacidade das vasilhas de
venda, impondo multas aos infractores; e o de 17 de
Setembro de 1802 trata também dos preços e das con-
dições de venda.
De 14 de Outubro de 1809 e 10 do mesmo mês de
1817, há ainda dois outros editais que se referem a
água, mas não propriamente daquela de que tratamos.
São providências sobre o água vai que felizmente já
se foi.
A Câmara Municipal herdou da Junta das Águas
Livres a superintendência sobre o aqueduto, chafarizes,
etc, até a entregar às Companhias exploradoras do
abastecimento e venda de água.
Em 1843 proibiu-se a entrada, na Mãe de Agua do
Rato, para evitar que os visitantes sujassem a água ali

reservada. São muitas as providências municipais acerca


de tal matéria. A Sinopse (i835 a i852), os Anuais
(i856 a 1839) e o Archivo Municipal (de 1860 em
diante) estão cheias delas.

Os últimos retoques na obra iniciada por D. João V


e Gorgel do Amaral ficaram por dar até 1824. Um
decreto de 6 de Agosto deste ano é que a mandou
completar, alvitrando-se para o custeio dela, a quantia
de vime contos anuais paga pelo cofre do Terreiro.
Até Agosto de i833 tudo foi muito bem, mas desta
— 421 —
data em diante entrou o subsídio a escassear, e a obra
ficou denovo estacionária.
Em Maio de i834, ordenou D. Maria II que o Te-
souro Público e o cofre do Terreiro, contribuíssem com
um conto de réis por mês para a sua conclusão, mas
como os encargos do cofre do Terreiro fossem muitos,
atrasaram-se de novo os pagamentos e tornou-se im-
possível a continuação da obra. Por fim
Te- ficou o
souro Público com o encargo todo, por portaria do
Ministério do Reino de i8 de Agosto de i835(i).

No ano de i833 a estiagem foi aterradora. Ainda


por cima, a proximidade do desenlace das campanhas
liberais e o cerco da capital vieram complicar a situa-
ção. O boato do corte das Aguas Livres correra —
que o Governo as mandava cortar para obstar a que
as envenenassem (!), e o pavor entrou em
os realistas
Lisboa. Ordenou-se a mobilização de barcaças para
ir buscar água à Outra-Banda, e era nos cais que os

galegos iam encher os barris. Carros com pipas atra-


vessavam as ruas e franqueavam-se ao público os po-
ços particulares. As providências contra os abusos dos
aguadeiros, vigilância dos capatazes, qualidade e preço
da água, abundaram então.
A Crónica Constitucional daquele ano, transcreve
a miúde tais posturas e editais e, nos números de 7,

9, 10 e 12 de Setembro, publica listas dos poços exis-


tentes nos diferentes bairros. Os liberais andavam
aterrados e sequiosos.
O ano seguinte, de i834, foi igualmente escasso de

(i) Memoria sobre Chafarizes, já citada, pág. 33 1 e seg.


— 422 —
água. Em Setembro viu-se a Câmara obrigada a man-
dar colocar carros com pipas nos largos de Santos,
Patriarcal e Socorro, e barcos nos cais de Belém, de-
terminando que os aguadeiros só pudessem encher os
barris nos chafarizes de El-Rei, de Dentro, e da Praia.
A mesma escassez houve nos anos de iSSg e 1840.
A resolução do problema ainda vinha longe.
CAPITULO XVIII

Sumário : Ainda a falta de Agua — As ideas de Estêvão Cabral


em 1791 — O exército dos aguadeiros — Francisco Sodré apre-
senta, em 1823, o seu fantasioso projecto de abastecimento
de água em carros de bois — Segundo projecto do General
António Bacon — Terceiro projecto de Francisco Martins
em 1847 — Um dilúvio de propostas e de planos — Abrem-se
concursos para o abastecimento de água —
Várias leis e
providências — Quarto projecto de Duarte Cardoso de Sá,
— Cria-se em
i855 a Companhia das Águas Citam-se —
as dificuldades que teve de vencer —
Anulação do primeiro
contrato —
Faz-se segundo contrato em tXíiy Iniciam-se —
os trabalhos —
Traçado do canal do Alviela e orçamento
da obra —
Sua inauguração na cerca dos Barbadinhos

em 1880 A célebre questão da passagem dos Arcos das
Águas Livres —
Castilho defende a proibição Os suicídios —
e os lendários crimes de Diogo Alves —
Fecha-se a passagem
— Destino de algumas figuras de pedra dos chafarizes —

Apontamento final sobre a falta de água Comissões, estudos,
decretos e questões —
^Resolver-se-á o problema?

Ainda o mesmo assunto.


Já em 1791, Estêvão Cabral, na memória por ele
subscrita e incluída nas Memorias da Real Academia
das Sciencias, expondo a necessidade de se utilizar a
piscina da Casa da Água para repouso da que for con-
sumida em Lisboa a-fim-de a limpar das impurezas que
comummente a acompanhavam, faz sentir a escassez
de tão desejado líquido. Para
remediar alvitrava o
a
autor que se fizesse descer o pavimento do depósito
das Amoreiras ao nível dos aquedutos existentes e se
reservassem ali os sobejos do inverno. Nada disto se fêz.
— 424 —
Em 1802, à conta de várias queixas contra os agua-
deiros, saiu o edital de 17 de Setembro a que já se fez
referência, prescrevendo multas para aqueles que não
acudissem ao chamamento dos cidadãos, para os que
fossem achados a dormir sobre o barril, etc. Ficava-
-Ihes sendo defezo encher o barril fora do chafariz a
que estavam dados, obrigando-os a entrar na bicha,
visto que o privilégio de encher a qualquer hora só
pertencia aos capatazes —
que eram sempre galegos
velhos e experimentados. Os barris deviam andar
todos marcados para diferençar os que servissem a
água do Poço os quais só podiam ir às bicas depois de
muito bem lavados na presença do capataz, munido
sempre da vara respeitável que era insígnia do seu
cargo. No caso de haver fogo perto do mar, eram os
galegos obrigados a despir-se e a ir encher os barris,
metendo-se à água. Os barris marcados com AP (água
de poço) vendiam-se a quinze réis, e os que tinham
ACH (água do chafariz), a vinte réis. A elevação dos
preços e o despotismo dos aguadeiros, mal chegava o
verão, motivaram o rigoroso e curioso edital {i).

Em 1822 eram vinte e quatro os chafarizes, com


oitenta torneiras e vinte bicas. A água a-pesar-disso
faltava. Os galegos ocupados no mister de aguadei-
ros orçavam por 3. Soo. Os chafarizes com mais mo-
vimento eram, pela sua ordem: o de El-Rei, com 352
aguadeiros; o do Carmo, com 278; o do Loreto, com
252 ; o da Alegria, com 232 ; o de Dentro, com 229; o

(1) Impresso avulso, Lisboa, 1S02. O ei/Va/ está assinado por


Francisco de Mendonça Arrais e Melo.
— 42^ —
da Praia, com 212 ; o da rua Formosa, com 2o5 ; e os

do Campo de Santana e São Pedro de Alcântara, com


200(1).
Murphy, calcula em trinta mil o número dos galegos
residentes em Lisboa, dos cinquenta mil que diz haver
em Portugal. Outro autor vai mais além, e diz que
em Portugal haverá oitenta mil, dos quais quarenta
mil na capital (2).

Balby é menos exagerado. Orça em catorze mil os


cidadãos de Tuy que infestavam Lisboa em 1820. E
ainda este autor quem nos informa que o barril da
ordenança devia levar dezoito canadas muito embora
os aguadeiros os vendessem roubados, com quatro e
seis canadas a menos (3).

Chegados ao ano de 1823 vemos aparecer o pri-


meiro projecto de distribuição de água aos habitantes
da cidade, A comodidade, tornada hábito, ia-se mos-
trando insatisfeita, e a idea do transporte, da água aos
domicílios entrou a ocupar muita cabeça engenhosa.
Este primeiro projecto, subscreveu-o um tal Fran-
cisco Sodré, o qual se propunha a organizar uma com-
panhia para tal fim. Requereu a El-Rei a aprovação
do seu plano e, sendo este remetido ao Senado para
consulta, foi, depois de breve discussão, indeferido.
Causará, de-certo, espanto à primeira vista a indi-
ferença dos camaristas a um projecto de utilidade e que
demais a mais incluía, nas suas vantajosas propostas,

(i) Essai Statistique, de Balby, tomo 11, pág. 176-177.


{2) Voyage en Lisbone en ijg6.
(3) Essai Statistique, de Balby, já citado.
— 426 —
a de auxiliar a extinção dos incêndios por meio de
bombas e de outros engenhos mas ; já vamos ver como
o Senado andou avisadamente.
Os meios propostos para acalmar a ira das chamas
dão idea suficiente das razoes que motivaram o inde-
ferimento das pretensões do Sodré.
Pasmará o leitor quando eu lhe disser que o auxílio
i

rápido para a extinção dos fogos com que se pretendia


substituir o barril do aguadeiro, era o transporte das
bombas em carros de bois !

Em cada chafariz deveria haver, segundo o imagi-


noso plano, oito carros com pipas, guarnecidos por dois
homens, cada um com barris de vinte canadas, um carro
com uma bomba, outro com sacos de areia e ainda
outro com utensílios diversos, tudo puxado a bois.
Ora onze carros, puxado cada um a uma junta de
i

bois, dava, pelos vinte e quatro chafarizes então exis-


tentes, a espantosa totalidade de 284 carros e 568 ru-
minantes !
j
Era um deUrio de grandeza e de veloci-
dade !

Este projecto, a ser aceito, era a sentença de indi-


gência contra os 3.464 aguadeiros da capital.
Chegou ainda a ser ouvido, neste caso, o Inspector
dos Incêndios; mas, como não podia deixar de ser, opi-
nou que a pretensão de Sodré fosse indeferida.

Em 1845 apareceu novo projecto; mas desta vez


mais sério e reflectido. Foi seu autor o General Antó-
nio Bacon, como representante do engenheiro hidráu-
lico inglês F^rederico Braiihloaite (!). A companhia que
se propunham organizar tinha por fim não só o abas-
tecimento de água nos domicílios, como também a ins-
— 427 —
talação da iluminação a gás, aproveitando as escava-
ções que se haviam de fazer, a montagem do serviço
de incêndios, com material e pessoal adestrado e dis-
ciplinado para esse fim, e o encargo dos serviços da
limpeza das ruas e higiene da cidade.
Era uma reforma completa.
No seu projecto, Bacon, mostra-se inimigo irrecon-
ciliável dos galegos. Cobre-os de impropérios e expro-
ba-lhes as péssimas qualidades, lamentando que uma
cidade tenha as suas goelas à mercê dos cidadãos de Tuy.
Não há dúvida de que a colónia galaica abusava muita
vez das prolongadas estiagens para a organização dos
seus peciílios. Anos houve, como no de 1802, em que
foinecessário pôr um dique aos preços dos barris de
água que chegaram a atingir cifras respeitáveis mas ;

lá que eles ganhassem a sua vida à nossa custa, como


ainda hoje, não podia o General levar-lhes a mal. Ele
era também um estranjeiro que vinha para cá na idea
de ganhar e de enriquecer.
Voltemos, porém, ao projecto.
Bacon calculou logo as dificuldades com que teria
de defrontar-se o seu plano e, por isso, oferecia, como
garantia, um documento do engenheiro inglês Mr. Car-
loshay riquíssimo negociante de ferro, o primeiro' tal-

vez do Reino Unido. Este documento era um depósito


de cinquenta mil libras esterlinas que ele faria, nas
mãos do Governo, caso fosse aceito o projecto.
Consultada a Câmara, declarou esta não poder for-
mar o seu juízo sobre o assunto, sem que Bacon escla-
recesse melhor as suas pretensões com referência à
proporção em que seriam tributados os consumidores
e, ao mesmo tempo, deixava bem patente o seu ressen-
timento por se projectar usurpar os seus encargos com
respeito à higiene da cidade e limpeza das ruas. j
Es-
tranha sensibilidade
— 428 —
Para contentar e entreter o general, ainda se no-
meou uma comissão de cinco membros, em sessão de
22 de P^evereiro do ano seguinte, a-fim-de tratar com
êle as condições da proposta, mas, já se vê, ficou tudo
como dantes; Câmara com as velhas prerogativas da
a
sujidade das ruas, Bacon com o seu projecto e Mr. Car-
loshay com as suas cinquenta mil libras esterlinas.

O terceiro projecto apareceu dois anos depois, em


1847, subscrito por um tal Francisco Martins, a que o
conhecido engenheiro Pezerat fêz uma memória adicio-
nal em 24 de Julho desse ano. Não foi aceito.
Depois amiiidaram-se as propostas. De 1847 a 1849
foi um dilúvio de projectos e de planos, resolvendo o
Governo, atrapalhado com tão variadas iniciativas, abrir
concurso público que veio no Diário com data de 18
de Agosto de 1849. [Caso extraordinário! ficou de-
serto, mas as propostas continuaram com tal insistência
que foi nomeada uma comissão com o fim de aprecia-
das. Essa comissão deu o seu parecer em 28 de Ju-
nho de i85o, considerando como mais vantajosa a pro-
posta apresentada pela firma Frederico Braithloaite
& Filhos. Chegou a fazer-se um projecto de contrato.
Não por reclamações dos outros con-
se ultimou
correntes que se julgaram lesados.
Em i832, saiu o decreto de 22 de Dezembro abrindo
novo concurso para abastecimento da capital, mas a
imprensa fêz um barulho medonho contra algumas das
bases apresentadas e tudo ficou em nada. \
Sempre a
maldita política (i) 1

(i) Memoria sobre as Aguas de Lisboa, por A. Pinto de Mi-


randa Montenegro, pág. 48-33.
429

Finalmente a lei de 2? de Julho de i855 autorizou


o Governo a contratar o abastecimento de águas da
capital e a sua distribuição aos domicílios, sendo ouvida
a Câmara e a secção administrativa do Conselho de
Estado.
Em i3 de Agosto fêz-se um contrato provisório com
Duarte Meddlicot, Tomaz Runballque se obri-
e outros,

garam a fornecer, pelo preço máximo de dez réis,


5.922.000 canadas de água para chafarizes e usos do-
me'sticos, além da que fosse necessária para os gastos
do município (i).
Ao concurso realizado em 27 de Setembro do mesmo
ano, apareceram três propostas, as quais foram de
Duarte Cardoso de Sá, de Duarte Meddlicot e de uma
sociedade formada por Alberto Carlos de Cerqueira
Faria, João Pedro da Costa Coimbra e Jacinto da Silva
Falcão. O Governo aceitou esta líltima por lhe parecer
mais vantajosa. Aprovou-a o decreto de 28 de Janeiro
de i856(2). Depois surgiram dúvidas, os proponentes
tentaram fazer alterações ao seu plano, vindo o con-
trato somente a realizar-se dois anos depois, em 29de
Setembro de i858, sendo aprovado por decreto de 3o
do mesmo mês e ano.

Em Casa da Agua e arcos


1859 fizeram-se obras na
das Amoreiras as quais encheram de entulhos as ruas
próximas.

(i) Memoria sobre as Aguas de Lisboa^ pag. 71-72.


(2) Em i856, omajor de engenheiros José Carlos Conrado de
Ghelmicki foi encarregado pelo Governo de levantar a planta do
Aqueduto. .
43o —

Começaram logo os estudos acerca das águas a


aproveitar para a execução do seu plano.
Pezerat, que então era engenheiro da Câmara, fez
uma proposta de aproveitamento de diferentes águas
para o abastecimento da cidade, mas como ela exigia
duplas tubagens e não oferecia água certa nem sufi-

ciente, foi rejeitada.


Veio então, convidado pela Companhia, o distinto
engenheiro francês Mary, uma notabilidade indiscutí-
vel. Procedeu a diferentes estudos, com uma certa
pressa, e acabou por propor a construção de um aque-
duto aproveitando as nascentes da Mata, fundando-se
mais do que na sua ciência, nas medições feitas ante-
riormente pelo capitão Rola. Carlos Ribeiro, consul-
tado sobre o assunto, pronunciou-se abertamente contra
lai projecto e tal traçado no seu valioso relatório(i), mas
a empresa, subjugada pela fama de que Mary vinha
precedido, não fêz grande caso dos conselhos desse
autêntico sábio que foi Carlos Ribeiro, e mandou exe-
cutar o projecto do engenheiro francês.
As obras feitas foram as seguintes -^ Aqueduto da :

Maia e o seu ramal do Bronco, os sifões da Porca-


Ihola e da Penha de França os reservatórios do Pom-
;

bal, 'do Arco da Penha de França, da Patriarcal e


da Verónica, e a canalização dentro da cidade.
Os anos de í85o e i8õi foram de grande seca, fal-

tando muitos dias a água em Lisboa.


Todas estas obras, verificou-se^depois, não podiam
produzir nem metade da água (ii.Soo metros cúbicos

(i) Memoria sobre o abastecimento de Lisboa, com aguas de

Nascente e de Rio, etc, por Carlos Ribeiro.


— 43i —
diários) a que a empresa se tinha obrigado. Em vista
disto foi-liie exigido, por portaria de 20 de Dezembro
de 1862, que declarasse os recursos que possuía para,
no prazo de quatro anos, obter a quantidade de água
ajustada.
Em 27 de Janeiro do ano seguinte fêz a empresa
uma proposta para novas obras, e cm 3i de Julho pe-
diu mais seis meses para elaborar os respectivos pro-
jectos. Nada foi aceito, e o Governo comunicou à em-
presa que se no prazo referido não fossem presentes
os projectos e orçamentos daquelas obras, lhe imporia
a multa mensal de oito contos de réis, durante seis me-
ses, findos os quais lhe seria rescindido o contrato.
A empresa ainda renovou a proposta em 21 do
mesmo mês, pedindo uma prorrogação de prazo, mas
uma comissão, nomeada pelo Governo para a examinar,
declarou que tal proposta não podia ser aceita, pois a
Companhia nem mesmo podia contar com as águas do
aqueduto da Mata, que estavam embargadas judicial-
mente.
Como a estiagem se anunciavaameaçadora, saiu o
decreto de 8 de Agosto de i8ò3, mandando proceder
a expropriação de todas as águas e obras que a Com-
panhia havia levado a cabo, sendo a rescisão do con-
trato feita, por decreto de 28 de Junho, depois de com-
plicadas questões judiciais.
Assim acabou a primeira Companhia das Águas (i).

Em execução da portaria de 25 de Junho de 1864,


o engenheiro Nunes de Aguiar tomou posse de todas

(i) Citada Memoria das Aguas de Lisboa, por A. Pinto de


Miranda Montenegro, pág. 80-82.
— 4^2 —
essas águas, obras e materiais, a-fim-de as entregar ao
Município, consoante a letra do contrato, ficando o
mesmo engenheiro encarregado dos estudos, projectos
e orçamentos para abastecimento da cidade.
Posta de parte a Câmara para a administração da
herança da Companhia, hesitou o Governo em tomar
tal encargo ou em fazer novo contrato. A Câmara
optava pela primeira resolução, mas o Conselho de Mi-
nistros pusera-a de parte. Quando o Município resol-
veu aceitar tal administração depois de novo convite do
Governo apareceu a proposta de uma outra Compa-
nhia, à frente da qual estava o activo e inteligennte
Dr. Carlos Zeferino Pinto Coelho e, depois de nova
consulta, foi lavrado o contrato provisório de 27 de
Abril de 1867 com nova empresa, que só veio a cons-
a
tituír-se em 2 de Abril do ano seguinte, sendo-lhe, em
1 1 do mesmo mês, entregue pelo engenheiro Aguiar
tudo de que tomara posse em nome do Governo.

Durante a administração do Governo fizeram-se


algumas obras, a mais importante das quais foi a con-
clusão do aqueduto da Buraca. Dispenderam-se nelas
cerca de cento e vinte nove contos de réis, sendo perto
de quarenta e cinco empregados em reparar os innú-

meros defeitos das canalizações, mandadas fazer pela


primeira Companhia.

Formada a segunda empresa, apresentou esta à


aprovação do Governo o projecto já elaborado para o
levantamento das águas orientais. Tendo terminado a
( 432 a>
— 433 —
pendência com o Município, acerca do excedente destas
águas, e sendo aprovado o supradito projecto, começa-
ram logo os trabalhos construíndo-se o reservatório da
Praia e fazendo-se a condução das águas para o da
Verónica, que foi alargado. Em 1869 estava esta obra
concluída. Esclarecidos depois com o Governo alguns
pontos do contrato, mandou-se vir de França o hidro-
-geólogo francês Richard que, após diferentes pesquisas,
apresentou um projecto em i de Julho de 1869, àcêrca
do aproveitamento das águas altas e baixas que obser-
vara nas proximidades de Lisboa.
Em 23 de Abril já a Companhia tinha apresentado
ao Governo o projecto das obras do Alviela e pedido,
ao mesmo tempo, permissão para elaborar novos planos,
o que o Governo autorizou ^ov portaria de 10 de Agosto,
prorrogando o prazo dado por mais um ano.
Postos de parte dois planos apresentados por enge-
nheiros seus, a Companhia mandou elaborar em pro-
jecto o plano de Richard, vendo o bom resultado de
algumas sondagens feitas, e apresentou-o em 25 de
Abril de 1870.
Finalmente, ^ov portaria de 18 de Agosto do ano
seguinte, mandou o Governo começar a construção do'
canal do Alviela, sendo por outra portaria de 3 de Ou-
tubro resolvidauma reclamação da Companhia àcêrca
da secção que deveria ter o canal de abastecimento.
Iniciou-se a construção do canal em 28 de Dezem-
bro, na ilha do Grilo em Xabregas.
Não ficaram, pore'm, removidas e esclarecidas todas
as dúvidas e dificuldades. O
Governo mandou suspen-
der as obras dos encanamentos particulares, em 1873,
e a Companhia entendeu dever paralisar os seus traba-
lhos. Houve, em 1874, uma sensível baixa de águas
que obrigou a suspender-se parte do abastecimento da
cidade, e o Governo viu-se obrigado a impor uma multa,
voL. IV a8
— 434 —
à Companhia, de cinco comos de réis {portaria de i3
de Agosto de 1874) por cada mês de demora no cum-
primento das obrigações contraídas. Recorreu-se ao
Tribunal Arbitral, em Setembro desse ano, e sendo a
a Companhia absolvida da multa, continuaram os tra-
balhos do Alviela e reservatório dos Barbadinhos.
Ainda houve protestos e questões, mas a-pesar-disso
e das cheias de 1876 e 1877, concluíram-se as obras
em 1880(1).
Em 3 de Outubro desse ano foi inaugurada a entrada
em Lisboa das águas do Alviela, benzidas solenemente
pelo arcebispo de Lacedemónia. Depois da ceremónia
religiosa, El-Rei D. Luiz, perante a numerosa assistên-
cia que enchia o vasto recinto, galhardamente orna-
mentado, levantou a adufa do sifão )unto ao grande
reservatório da chegada e, pouco depois, começaram a
correr nos canos gerais as desejadas águas.
Das ceremónias do profuso banquete que
oficiais,

o bom Ferrari forneceu, dos vivas e dos foguetes e do


enorme entusiasmo dos assistentes, dão larga notícia os
jornais do tempo. A eles remeto o leitor.

Tratei, e muito superficialmente, apenas a parte his-


tórica Muito havia a dizer acerca da parte
do assunto.
mas essa não tem cabimento neste
técnica e descritiva,
livro onde, mesmo o que deixei escrito já representa
talvez uma larga divagação, mas não me despedirei
das Aguas Livres^ sem falar dos suicídios dos arcos
da ribeira de Alcântara ou dos pretensos crimes do

(i) Memoria sobre as Aguas de Lisboa, já citada, pág. io3-


.ii3."
— 435 —
famigerado e tristemente célebre Diogo Alves, como a
opinião do povo queria que fossem. Vamos ao caso.
Aí por 1839, começou a cidade a andar alvoroçada
com o frequente aparecimento de cadáveres sob os
arcos grandes da ribeira de Alcântara. Raro era o dia
em que isso não sucedia. A opinião geral era que se
tratava de suicídios, mas pouco depois tomou novo
curso, e a crença de que tais sucessos se não deveriam
atribuir a suicídios, mas sim a crimes sucessivos, entrou
a dominar o espírito da pacata Lisboa. O criminoso
apontava-se :
— era Diogo Alves.
O povo que facilmente aceita tudo o que o impres-
sione, sempre propenso a coroar de lendas trágicas os
acontecimentos inexplicáveis, tanto se arreigou a esta
idea que ainda hoje a vemos campear, embora nada
haja que a Justifique.
Da sentença de Diogo Alves nada consta com refe-

rência aos falados crimes dos Arcos das Aguas Livres.


Fosse como fosse, suicídios ou crimes, o facto é
que tais sucessos lograram levantar uma campanha
contra a livre passagem pela galeria superior dos Ar-
cos, com que se encurtava o caminho, dos çaloios de
Belas e de Queluz, para a cidade. A frente dessa
campanha esteve Castilho, o grande Castilho, nas co-
lunas da Revista Universal Lisbonense. Uma corpo-
ração oficial coadjuvou-o eficazmente. Foi a Junta de
Paróquia de São Sebastião da Pedreira.

Em Junho de iSSg, já tinham chegado a setenta e

e seis os suicídios nos Arcos. Nos primeiros dias desse


mês haviam-se verificado mais três desses trágicos
casos, e a benemérita Junta Paroquial representou à
— 4^6 —
Gamara, lembrando a colocação de um gradeamento
de ferro que vedasse a passagem às arremetidas dos
desesperados da vida. Mandou a Câmara fazer o orça-
mento, mas como a quantia de 13.217ÍÍ016 réis se jul-
foi a lembrança posta de parte, limi-
gasse excessiva,
tando-se a Câmara a pedir ao Governo Civil que ali

mandasse colocar um guarda para vigilância. Também


isto se não conseguiu.
Em 1844, finalmente, fechou-se a passagem com
cancelas de ferro. Até 1847 ^^^ ^^ mecheu mais no
assunto. Neste ano, Manuel Gomes de Miranda, como
Procurador dos habitantes de Bemfica e do Calhariz
protestou contra a vedação, pelo muito transtorno que
isso causava a essas povoações. A Câmara mandou
informar o vereador João Coelho de Abreu e este ca-
marista, numa judiciosa exposição, aconselhou a que a
passagem continuasse fechada. Foi isto em Janeiro de
1848.
Passados três anos sobre a proibição, acumularam-se
de forma as reclamações que a Câmara por edital
tal

de 17 de Setembro de i85i, determinou atender em


parte os reclamantes, abrindo a passagem, do nascer do
sol às Ave-Marias. A Junta Paroquial de São Sebas-
tião melindrou-se e requereu, de novo, o encerramento
da passagem que veio a realizar-se no ano seguinte, a
repetidas instâncias daquela corporação, e com o auxi-
lio do vereador Geraldes Barba. A sessão da Câmara
em que resolveu o definitivo encerramento da galeria
dos Arcos, foi a de 12 de Agosto de i852(i).
E acabou-se.

(
i
) Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa — Sinopses e
extractos das sessões da Camará, anos de i835-i852.
— 43?

Algumas notas ainda :

Em Novembro de 1846 foram concedidas à Câmara


seis figuras de pedra que estavam em depósito na Re-
partição das Aguas Livres. Parte delas ainda lá fica-

ram foram depois para o Jardim da «Casa da Água»


e
das Amoreiras. São, uma Verdade, dois Tritões, duas
Sereias e duas Carra7icas{\).
Talvez devessem pertencer à estupenda concepção
do chafariz projectado para o Campo de Santana em
1788 e que não chegou a levar-se a cabo. A esse monu-
mento pertenciam o Tc/o e o Douro que estiveram no
Passeio Público e hoje estão na Avenida da Liberdade,
outras quatro figuras que adornavam os lagos do Pas-
seio, os quatro golfinhos que ornam o chafariz de Be-
lém e as carrancas que serviram para o de Alcântara.
O Téjo e o Douro foram esculpidos por Alexandre
Gomes, assim como os Tritões e as Sereias, no fim
do século xviii e acabados cerca de 1844 pelo escultor
João Gregório Viegas (2).
Em 18S1 a Câmara cedeu a estátua do Neptuno
que estava no antigo chafariz do Loreto e se empres-
tara à Associação dos Arqueólogos, para ser colocada
no reservatório da Calçada dos Barbadinhos (3).
A Vcjius do chafariz das Janelas Verdes foi feita
pelo escultor António Machado (/j). A entrada do Pas-

(i) Arquivo, etc, ano de 1845.


(2) Elementos para a Historia do Município de Lisboa, tomo 11,

nota de pág. Si-Sg.


(3) Secção Há guarenta anos, do Diário de Noticias de 20 de
Agosto de 1921.
(4) Elementos, citada nota do tomo 11.
— 438 —
seio dos Arcos, está,horrorosamente mutilada, sem o
braço que devia empunhar a espada, a estátua de um
guerreiro romano que, na sinistra, sustenta um escudo
com as quinas. Aos pe's tem um troféu feito de um
tambor, bandeiras, espadas, etc. Deve ser a falada
estátua do cinzel de Alexandre Giusti a que Veloso de
Andrade se refere.
O guarda do Depósito das Águas da calçada da
Quintinha, aponta-a, enfaticamente, aos visitantes como
sendo a real Jigura do senhor pai do senhor D. José I.

j
Oh eruditismo dos cicerones

Nestes últimos anos lem-se sentido sensivelmente,


mal chega o verão, a falta de água. Se não fora o
reservatório da rua da Prata, ter-se-iam deixado de
regar, nalguns verãos, as ruas e os jardins.
Tendo em atenção caso tão importante, por jt^or/a-
o, então titular da pasta do
ria de 25 de Julho de igi3
Fomento, engenheiro António Maria da Silva, no-
sr.

meou uma comissão para proceder ao estudo de tão


momentoso assunto. Tal comissão, apresentou, a seu
tempo, um belo relatório, subscrito pelos srs. Ramos
da Costa, António Parreira, Rodrigues Simões, Antó-
nio Torres, Santos Lucas, Paulo Chofat e Artur Cohen.
Nesse documento propõem-se cinco soluções, tendo
a primeira quatro variantes e a segunda três.
As foram estas
referidas soluções :

Abastecimento com águas de nascente; 2.^ com


I.*

águas do Tejo 3.* com águas de drenagem


; 4.^ com ;

albufeiras e 5.° com águas artesianas.


;

Não cabe aqui o extracto das considerações feitas


pela comissão acerca de cada um dos projectos. Direi
— 4^9 —
apenas que tal relatório se conclui por propor, como
obra mais urgente, o aumento de secção do canal do
Alviela, deixando à escolha do Governo qualquer das
soluções apresentadas para remediar a escassez de água
das nascentes durante os meses de verão.
Essas obras de aumento da secção do Alviela esta-
vam então orçadas, pela Companhia das Aguas, em
duzentos e quarenta contos de réis ; hoje deverão custar
vinte a trinta vezes mais.
Esta momentosa questão em que se têm degladiado
tanta vez a Câmara Companhia das Águas, mere-
e a

ceu do actual Governo dois decretos (Novembro de


1932) em que se estabelecem as bases do abastecimento
de águas à cidade, e se prevêem as hipóteses de ser
feito novo contrato com a Companhia concessionária,
ser resgatada a concessão ou passar-se a outra enti-
dade o encargo de nos dar de beber e de nos lavar.
Ficará resolvido o problema ?
,;

E difícil responder.
O que há de absolutamente certo é que a água não
chega e ainda por cima é má.
Quanto ao mais é tudo duvidoso.
CAPITULO XIX

Sumário São João dos Bemcasados


: —
Refere-se a história da fun-
dação da ermida de Nossa Senhora da Boa Sentença —
promessa de um soldado de Alcácer-Quibir —
As nove invoca-
ções de Nossa Senhora —
Funda-se a ermida do Cabeço do
Alperche —
A imagem de São João Baptista Em que se —
procura a razão do nome de São João dos Bemcasados —
Pede-se auxílio a Diogo de Paiva de Andrade e aD. Francisco
Manuel de Melo —
O «assento» da Câmara de i385 contra a
barriguice de casados. —
A quem pertencia a capela no sé-
culo xvin —
Dois esboços topográficos —
É demolido o tem-
plozinho — —
A casa nobre dos Anadias Serve de hospeda-
gem ao infantinho D. Carlos —
Notas biográficas deste prín-
cipe —
Frequentes visitas régias a São João dos Bemcasados
— Invocam-se as figuras do «César polvilheiro» e da «Mulher
do cavalo branco» —
Passa a casa ao Secretário de Estado
Aires de Sá e Melo —
Reside lá D. Joana Perpétua de Bra-
gança —
Notas biográficas desta fidalga —
O seu sumptuoso
e festejado casamento — As Marquês de Cascais
dívidas do
— Arde o palacete de São João dos Bemcasados em 1780 —
Hospeda-se D. Joana Perpétua no convento do Rato — Morre
em 1785 —A sua notável correspondência com D. João Carlos
de Bragança — Precioso repositório de notícias do tempo —
Outros hóspedes reais em São João dos Bemcasados Algu- —

mas palavras sobre os Anadias Alojam-se no palacete um
general francês em em 1811 —
1808 e os generais ingleses
Obras em 1S21 e — Outros moradores — A moderna
i83o
capela da casa Anadia — Enumeram-se os seus quadros e
imagens.

Estamos diante de São João dos Bemcasados.


Aqui há cinquenta anos ainda era sítio arredio e
campesino e, há pouco mais do dobro, aconselhava se
como excelente paragem para os anémicos, uma ver-
~ 442 —
dadeira estação de cura pelo ar lavado e puro, como
hoje se aconselham Belas ou Canecas. Prová-lo-emos
a seu tempo.
A primeira vez que vejo mencionado graficamente
este local é ao começar do décimo sétimo século.
Anteriormente a 1618 não encontrei vestígios de
tal designação que, em meu entender, deve remontar
de mais longe, pelo menos do terceiro quartel do sé-
culo anterior. E vou tentar demonstrá-lo.

Entre os soldados do luzido mas escasso exército


com que D. Sebastião se propunha a lançar as bases
de um sonhado império africano, contava-se um ar-
tífice lisboeta, de nome António Simões, oficial de

doirador, que trocara, em serviço do seu aventuroso


monarca, o pincel doirado com que lustrava imagens e
altares pelo arcabuz pesado dos peÕes da jornada de
Alcácer.
Sucedeu-lhe o que a centenas de soldados aconte-
ceu também. No meio do desbarato total, cercado
de nuvens de moiros, cego pelo fumo e pela cólera,
mil vezes defrontando a morte, o artífice alfacinha viu-se
perdido e tão perto do fim que, acordando-lhe no cora-
ção a ideia de Nossa Senhora, prometeu, entre o es-
trugir da arcabuzada, fazer-lhenada menos do que nove
imagens com diferentes invocações. Original e com-
]

plicada promessa António Simões, livre de tão grande


!

aperto e escapo do cativeiro, mal chegou à sua amada


Lisboa começou a cumprir a promessa, iniciando a fei-
tura das imagens o que nos dá a entender que o artí-
fice, além de doirador era também «imaginário» ou

santeiro como hoje se diz.


-443 -
A imagem que saiu das suas mãos devotas
oitava
foi Nossa Senhora da Penha de França, invoca-
a de
ção castelhana que lhe foi sugerida pelo famoso pa-
dre-mestre Inácio Martins, o mestre Inácio da Car-
tilha.

Desejou António Simões construir para esta. Senhora


uma ermida especial, afervorado em amor súbito por
ela, e entrou a procurar sitio apropriado para a sua
construção, pondo-a entrementes, ao culto dos fiéis, na
ermida da Vitória, Juntamente com uma outra imagem
de São João Baptista.
Enjeitado, ignoro porquê, o sítio de Vale de Ca-
valinhos e acertando o Simões de ver o pitoresco local
do cabeço do Alperche que era de um Afonso de Tor-
res de Magalhães, tanto lhe agradou o alto, a cavaleiro
da cidade, que logo entrou em tratos com o proprie-
tário que estava por sinal sofrendo nessa ocasião de
uma impertinente dor de cólica.
l
Mas o que terá isto com São João dos Bemcasados ?
preguntará certamente o leitor. Já vamos ver como
tudo se liga estreitamente.
Deixou o Simões a imagem do São João Baptista
em casa de Afonso de Torres, como penhor (diz o
cronista desta história) e foi com ele ver de perto e
com atenção o do Alperche. Aconteceu — estas
sítio

coisas aconteciam sempre quando eram precisas que —


D. Constança de Aguiar, mãe do fidalgo se apegou à
imagem da Nossa Senhora da nova invocação para que
lhe curasse o filho, Já desiludido de melhorias. Afonso
de Torres afervorou-se em pedidos com sua mãe e ce-
deu o terreno, de que era proprietário, para a constru-
ção do templo em troca da sua cólica.
A ermida construíu-se e o fidalgo guareceu.
Foi lançada a primeira pedra do templozinho, em
têrça-feira , dia de Nossa Senhora da Encarnação de
— 444 —
1 597 (O? assistindo à ceremónia o padre Inácio, o Simões
e Afonso de Torres, sendo a Senhora trasladada da
ermida da Vitória na tarde de lo de Maio do ano se-
guinte.
Construíuse a ermida e depois a igreja que a subs-
tituiucom esmolas dos fiéis, doando-a mais tarde An-
tónio Simões, aos eremitas da Graça. E lioje o con-
vento de Nossa Senhora da Penha de França (2).
l
E a imagem de São João Baptista ?

Viu-se o doirador e santeiro bastante embaraçado


em templos que lhe
para colocar as suas oito imagens
fossem apropriados. Ao concluir a nona que deno-
minara de Nossa Senhora da Boa Sentença deliberou
construir-lhe, como à anterior, casa própria e escolher
para tal fim um sítio arredio, saiidável e magnifica-
mente situado em pleno arrabalde de Campolide. De
quem era isso então, não o pude apurar, e apenas sei
que em maior antiguidade passava ali perto a linha
que limitava a vetusta e vasta freguesia dos Mártires,
cuja marcação fora feita, em 1476, por Gomes de Paiva
e Luiz Anes, vigários, para esse fim comissionados pelo
Cardial D. Jorge da Costa (3).

(i) Corografia Portuguesa, pelo Padre António Carvalho da


Costa, pág. 420-421 do terceiro volume, e Santuário Mariano, 1.
1,

pág. 144-157.
(2) Na pedra fundamental da ermida encontravam-se escritas
as palavras Jesus, Maria que mais de uma vez têm apa-
e Avante,
recido gravadas em Vide sobre este assunto o
diversos locais.
que diz o autor da Lisboa Antiga, pág. 28-29 do terceiro volume
do Bairro Alto.
(3) Demonstração Histórica, por Frei Apolinário da Concei-
ção, pág. 175 e segs. —
Edição de 1750.
— 445 —
Fêz-se a ermida em i58i, antes que tivesse casa
«Nossa Senhora da Penha» e para lá foi a imagem
acompanhada pela de São João Baptista que servira
de penhor em casa de Afonso de Torres e estivera
com aquela na ermida da Vitória. Ora aqui começa
a embrulhada.
^ Seria a imagem de São João, uma das nove fabri-
cadas por António Simões? Se assim é não cumprira
êle integralmente a promessa feita nos campos de Al-
cácer.

l
imagem da devoção do
Seria ela alguma antiga
doirador Parece-me mais provável esta hipótese. Que
?

era dele não deve haver dúvida, pois se assim não fora
a não utilizara como penhor. Fosse como fosse, o certo
é que o nome de São João prevaleceu ao da Senhora
da Boa Sentença e a ermida, construída para ela ficou-se
chamando de São João —
de São João dos Bemcasados
— a não ser que tal nome já existisse no local do tem-
plozinho de António Simões.

l
Mas dos Bemcasados, 'porquê ? Eis, outro pro-
blema.

Em 1626 o, mil vezes citado, autor da Descripção


métrica de Lisboa, escreve referindo-se à ermida

São João dos Bemcasados


Esta hermida se frequenta
de poucos por que é de poucos
Devendo ser todos delia

o que dá a entender ainda o pouco povoado que era


o local e a distância a que ficava da cidade, não per-
mitindo o concurso de povo que ela merecia.
Assaltou-me, ao obter estas notícias, uma curiosi-
— 446 —
dade enorme de explicar esta invocação da imagem de
São João. São João dos Bemcasados
j i
Pois não é!

tão interessante esta denominação ?

Lancei-me logo em inculcas.


No Casamento Perfeito de Diogo de Paiva de An-
drade (sobrinho) não me admirei de cousa alguma en-
contrar sobre o assunto. Diogo de Paiva, aferrado a
sentenças latinas e a escritores gregos, quando cita
algum exemplo ou faz uma referência é sempre com as
vistas nos filósofos de outras eras e pondo em foco as
Cornélias, os Odoaldos e os Temistocles, quando não
traz à balha, Vénus, Saturno, Juno e toda a mitologia
em peso. O que muito me espantou foi D. Francisco
Manuel que era um galante, um mundano, que detes-
tava toda essa máquina de erudição, como êle próprio

o dizia (i), e escrevia com frequentes alusões a factos,


costumeiras e coisas do seu tempo, ter emmudecido em
tal matéria. A sua deliciosa e pitoresca Carta de Guia
de Casados, nem ao de leve, deixa suspeitar a existên-
cia desse patrono dos matrimónios felizes, habitando
uma ermidinha às abas da cidade.
Bem se podia o povo de Lisboa apegar a tão ca-
seiro santo.
Desde tempos antigos que os mal casados abunda-
vam na capital. Houve tempos de tanto desaforo que
se tornou mister estatuírem-se penas para tão maus
procedimentos.
O assento da Câmara, cujas resoluções foramconfir-
madas por carta do mestre de Aviz, dada em Santarém

(i) Carta de Guia de Casados —Edição de 1827,


— 447 —
em 3 de Novembro de i385, arbitrou graves multas
contra a barriguice de casados pecado t?iui proviço e

i?iuiusado em esta cidade^ diziam os munícipes (i).


Na igreja de São Francisco do Porto, havia uma
irmandade de «São Francisco dos Bemcasados» que
figurava antigamente em todas as procissões de quarta-
-feira de cinzas. Em Elvas existiu também uma capela
de «Santa Maria dos Bemcasados» (2).

Há, decerto, neste apodo invocativo uma qualquer


justificação e entre as três invocações uma relação es-
treita. Qual é ela, é que eu ignoro. O Espelho de
Casados do Dr. João de Barros, permaneceu tão mudo
às minhas interrogações, como a Carta de Guia e o
Casamento Perfeito^ e como o Regimento de Casados,
folheto publicado em 1773. O São João dos Bemca-
sados continua impenetrável.
Carvalho da Costa, na sua Corografia, chama a este
ponto arrabaldino «... o logar de S. João dos Bem-
:

casados onde está hua ermida de S. João Baptista com


N. SenJiora da Bòa Sentença, image?n milagrosa cuja
igreja he sujeita a Malíay){3).
Parece, por esta forma de dizer, que não foi o tem-
plo que baptizou o local, mas que, exactamente, se d.eu
o contrário.

(i) As penalidades eram estas: Para homem casado que


tivesse barregã, a multa de cinquenta libras, à primeira vez; à
segunda, cem e à terceira, privança na administração de
libras,
todos os bens. Para a mulher, vinte e oito libras de multa, pela
primeira infracção, e, pela segunda, degredada com pregão na ci-
dade e termo {Memorias para a Vida de ElRey D. João I, por
José Soares da Silva —
Documento Sy, tomo iv, pág. 359-371.
(2) Notas Historico-Militares da guerra velha até á Invasão
Francesa, publicadas por A. Tomaz Pires, pág. gg Colecção do —
«Correio Elvense» e Teatro das antiguidades de Elvas, por Aires
Varela, pág. 73-74 — Edição do mesmo jornal.

(3) Volume iir, pág. 42g.


-448-

Tanto a quinta de São João como as propriedades


que lhe eram contíguas pagavam o dizimo à paróquia
dos Mártires desde tempos remotos (i).
Em 1762 já a maior porção da quinta tinha outros
senhorios e o resto fraccionara-se em quintalões e lo-

gradoiros de novas edificações locais.A volta de 1884


foi aermida de São João, demolida, utilizando-se o
seu entulho nos alicerces de novas casas. A razão da
demolição foi, naturalmente, o facto dela estar impe-
çando a rua do seu nome, saindo fora do moderno ali-
nhamento (2), podendo também ser para alargamento
do palácio contíguo.
Do destino das duas imagens de António Simões,
nada sei.

Não logrei topar com descrição do templozinho,


fosse ela qual fosse. Ao laborioso Gonzaga Pereira
não sobrou o tempo para, em 1840, fixar pelo seu lápis
fiel, as ermidas e capelinhas da cidade, de sorte que

nem o seu aspecto exterior me é permitido esboçar


aqui.
O sítio exacto onde a ermida ficava é que chegou
ao meu conhecimento por informação do erudito e in-
cansável investigador que foi o general Brito Rebelo,
corroborada pela indicação fornecida pela planta de
1807, do engenheiro Fava.

(1) Demonstração Histórica do Templo de Nossa Senhora


dos Mártires, por Frei Apolinário da Conceição, pág. ij5 e segs.
(2) Esta ermida, diz o Padre Luiz Cardoso, pertencia à ordem
de Malta. Algumas diligências que Hz na Torre do Tombo, para
apurar, nessa fonte, alguma indicação, resultaram infrutíferas.
A fachada da ermida ficava voltada ao nascente.
— 449

Ficava ao princípio da actual rua de São João dos
Bemcasados, indo das Amoreiras, ressaltando do alinha-
mento da fachada da casa nobre dos Anadias.
A indicação topográfica das plantas pombalinas é
bastante confusa, dando idea de haver no local um beco
sem saída, todo cheio de recantos, ao fundo esquerdo
do qual parece assentar o templo.
Essas casas nobres dos Anadias que hoje tornejam
para a rua das Amoreiras, ostentando a meio do fron-
tão do corpo central o brazão dos Sás(i), têm larga e
nobilíssima história. Vou contá-la.

Tudo isso era muito diferente do que é hoje.


A capela suburbana pertencia no primeiro quartel
do se'culo XVIII às casas e quinta do mesmo nome de
São João, que eram dos herdeiros de um Gonçalo
de Almeida, cavaleiro de Malta, senhor da Casa da
Cavalaria em São Pedro do Sul, irmão de Manuel An-
tónio de Almeida, um dos valentes batalhadores da
Nau Pilar no Cabo Matapan(2).
Neto de Gonçalo de Almeida, foi Manuel de Sousa
de Almeida, governador e alcaide-mór de Alfaiates na

guerra da Restauração, que, enviuvando de D. Brites


Pereira, casou segunda vez com D. Violante Engrácia
de Sá, filha de Aires de Sá e Melo e de sua mulher

(i) Campo enxequetado de prata e azul de seis peças em


faixa, meio um peloirinho de prata. Timbre
tendo a Um :

búfalo de sua côr enxequetado de prata com uma argola nas


ventas.
(2) Summario de Varia Historia, por Ribeiro Guimarães, t. i,

pág. 17 (Manuscrito do capitão Lourenço Ribeiro Soares).


voL. IV 29
— 4^0 —
Isabel de Melo, senhora da Casa da Anadia, da qual
teve geração (i).

Desta ligação é que de-certo reverteu para a Casa


Anadia o palacete de São João dos Bemcasados.

Oulro palácio próximo, no portal de São João dos


Bemcasados, pertencia ao começar esse século a D. Jaime
de Melo, terceiro Duque de Cadaval, quinto Marquês
de Ferreira, sexto Conde de Tentúgal, do Conselho de
Estado e da Guerra, Estribeiro-mór dos reis D. Pedro II
e João V, e muitas coisas mais. Naturalmente não
serviriam de moradia à nobre família que possuía além
do seu palácio do Rossio, a vasta e luxuosa residência
de Pedroiços, onde passava o verão e onde dava des-
lumbrantes festas com fidalga frequência.
Por morte do Duque D. Jaime, em 29 de Maio de
1749, íicou tal casa a seu filho D. Nuno Alvares Pereira
de Melo havido em D. Maria Antónia Josefa de Leão
Pelegrin (filha de Francisco Leão Pelegrin e de sua
mulher D. Maria Antónia de Sotomaior) na constância
do seu primeiro matrimónio com D. Luísa, viúva de
seu irmão D. Luís Ambrósio de Melo, e filha de El-
-Rei D. Pedro II. Foi um dos dezoito filhos ilegítimos
que o Duque teve.
D. Nuno nascera em i5 de Fevereiro de 1720. Foi
Doutor em Teologia, Deputado da Santa Inquisição e
da Mesa da Consciência e Ordens, Cavaleiro Professo
na Ordem de Cristo, Familiar do Santo Ofício, e do

(i) Nobiliários manuscritos de Rangel de Macedo, Manso de


Lima e outros, na Biblioteca Nacional.
— 4^1 —
Conselho de Sua Magestade(i). j
Ou não fosse êle
filho de quem era !

O palacete de São João dos Bemcasados andaria


talvez arrendado ou seria temporária residência, pela
poética solidão do local, de alguma das senhoras a quem
D. Jaime honrava com o seu afecto. Tudo simples con-
jecturas.
De 1757 a 1764 aqui morou D. Nuno (2). E de pre-
ver que já anteriormente lá residisse, visto que em 1756
fundou a ermida da Cruz das Almas, pegada a este
palacete.

De 1730 a 1732, teve o solar dos Anadias um no-


tável inquilino o Infantinho D. Carlos, filho do quinto
:

João e da Rainha D. Maria Ana de Áustria.

O Infante era uma criaturinha de'bi[, olheirenta e


triste. Sofria horrorosamente de asma e por esta razão,
durante a sua curta apagada vida, andou sempre de
e
um lado para outro, a conselho dos médicos da Real
Câmara, a-fim-de ver se a mudança de ares lograva
aliviá-lo de tal sofrimento. Ora estava em Lisboa, ora
nas Caldas da Rainha, ora em Cascais a tomar banhos,
residindo nesta vila em casa do Marquês que lhe era
muito afeiçoado, ao que parece, assim como sua esposa,

(i) Habilitações para familiares do Santo Oficio — Processo


2-35 de Nunes.
(2) Livros da Superintendência da Decima de Santa Isabel,
anos citados, e Róis dos Confessados desta freguesia.
— 4^2 —
D. Joana Perpétua de Bragança, irmã do Duque de
Lafões, D. Pedro.
Em Lisboa, que eu saiba, teve três residências: no
Palácio Real, na quinta do Malheiro, a que depois me
referirei, e aqui no palacete de São João dos Bemca-
sados.
Diz a Gaveta de Lisboa de 28 de Setembro de 1730:

Sexta-feira da semana passada, foi a Rainha Nossa


Senhora, com a prince:{a, o senhor infante D. Pedro e a
Senhora Infanta D. Francisca, ao sitio de S. João dos
Bemcasados, onde se achava o principe Nosso Senhor,
e 77ietendo-se o Senhor infante D. Carlos em uma sege

de campo, com a Rainha Nossa Senhora ; e montando


as ?nais pessoas reaes foram ver a quinta dos Padrões
da Companhia de Jesus, no sitio de Campolide.

A Gaieía de 16 de Fevereiro do ano seguinte in-

forma também :

Na segunda feira, foi a Rainha Nossa Senhora com


a Senhora Princeia ao Com'ento das Religiosas Tri-
nas de Nossa Setihora dos Remédios de Campolide e
de ali a S. João dos Bemcasados visitar o infante
D. Carlos.

Assim falava o Carnet Mondain do século xviii.


Certamente estas visitas se teriam repetido mais
vezes. O solitário local, dominando uma boa porção
da cidade, lavado de puríssimos ares, devia de ser, a
miúde, frequentado pelos coches e cavaleiros das reais
comitivas.
D. Maria Ana de Áustria vinha buscar o infante a
passear à Tapada ou visitá-lo simplesmente. De quando
em quando entraria a Rainha, que tão mal casada era,
-4^^ -
na ermida vizinha a fazer oração a «São João» ou a
«Nossa Senhora da Boa Sentença». D. João V viria
menos vezes. Preferia o caminho do Arco do Cego à
estrada de Campolide.
De 1782 em diante nada encontro que justifique a
estada aqui do Infantinho. Em Setembro desse ano
estava em Cascais (i). Depois entrou a piorar e mor-
ria no Paço da Ribeira em 3o de Março de lySõ com
vinte anos incompletos, pois nascera em Junho de 1716,
sendo baptizado solenemente a 7 desse mês na Real
Capela (2).
D. António Caetano de Sousa, na Historia Genea-
lógica da Casa Real (3)^ diz-nos a propósito do Infan-
tinho que escrevia com muita curiosidado e aceio.
:

No tocante a outras prendas, informa-nos de que


tocava viola com muita dextre\a. O seu precário es-
tado de saúde não lhe permitira maior ilustração.
Tenho uma especial simpatia por esta figurinha da
corte que os achaques trouxeram em bolandas. Não
sei bem dizer porquê. O Infantinho sofreu muito; so-
freu sempre. Devia de ser uma boa alma. Não há nada
como o sofrimento para inspirar boas acções e purificar
os espíritos.
Sempre que passo por São João dos Bemcasados
recordo-me do hóspede dos Lafões e julgo ouvir atra-
vés do ruído que sobe da rua, o plangente gemer da
sua viola.

(i) Gaveta de Lisboa de 9 de Setembro de 1732.


(2) Idem de i3 de Junho de 1716. Na quarta-feira seguinte
foi a Rainha a São Roque oferecer o recémnascido ao glorioso
São Francisco Xavier. A Gaveta de Lisboa de 7 de Abril de 1736
diz que foi sepultado em São Vicente.

(3) Tomo VIII, pág. 480 v.° e 481.


— 4H —

De
1742 a 1745 residiram neste solar arrabaldino
o Conde de Unhão, D. José Xavier, a Marquesa D. Ma-
ria José Francisca Xavier Baltasar da Gama, seus filhos
D. Bárbara, D. Vasco, D. José, e D. Eugenia, D. Bar-
bara de Figueiredo, nove familiares, dezassete criados,
oito escravos e o padre capelão Manuel Esteves Teles.

Outra figura que eu invoco ao passar por estes sí-


tios é a do César, polvilheiro, envolto num manto que
lhe cobria o hábito de burel de penitente, com um enorme
barrete debaixo do braço, «tão limpo como balança de
confeiteiro», e uma vara de pau santo, polido, na mão.
Vagueava de olhos baixos e sem dar razão a qualquer
elogio por que era vadio acabado. Deixava que o to-

massem por santo. Mal anoitecia desatava a tocar o


sino desta ermida ou de outras, amotinava o mulherio,
aterrava as crianças. O César que tinha sido polvi-
Iheiro, tratante de cavalos e cavaleiro de toiros a par
do aFava Seca», do «Almeirãozinho», do «Corcunda»
ou do «Gaieta» andara fugido não sei porque malefí-
cios e aparecera então, aí por 1777, arvorado em mila-
greiro e penitente. Um dia foram lhe à mão e acaba-
ram-lhe com a imposturice.
São João dos Bemcasados teve de perder esta figura
bairrista (i).

( i) Teatro de Manuel de Figueiredo, tomo xiv, notas, pág. 366


a 368.
— 455 —

A «mulher do cavalo branco» foi outra visão deste


pedaço do velho Campolide. Ai pelo tempo dos fran-
ceses andava ela galopando de noite, pelos subúrbios
menos povoados da capital, vestida toda de branco,
montada num cavalo branco e seguida por dois preti-
nhos também vestidos de branco. Os filhos de Agar,
à guisa de pagens, empunhavam archotes acesos, nas
noites escuras, j
Era uma visão fantástica! O povo
aterrava-se e fugia, os boatos mais inverosímeis cor-
riam tanto como Novion, Lannes e Ju-
ela, e a polícia,

not,chegaram a preocupar-se com a alma do outro


mundo que andava a cavalo.
Uma vez o Marquesinho de Fronteira, que isto conta
nas suas Memórias (vol. i.", pág. 828 a 329), ia de
carruagem com as tias, pelo Arco do Carvalhão, quando
o fantasma surgiu. O cocheiro, mal a avistou, meteu
a carruagem a toda a brida para a ribeira de Alcân-
tara e gritou para dentro, aterrado
— ;A mulher do cavalo branco!
A imaginosa criatura que assim se entretinha, era
D. Margarida da Cunha, irmã da Marquesa de Alorna.
Soube-se depois. A polícia acabou por prendé-la e
Junot encerrou-a num convento. Quando o Fronteira
a foi encontrar mais tarde, na grade de Cheias, acom-
panhando a irmã viúva do Marquês que morrera, depois
da retirada da Rússia, em Hoenigsbergs, de saudade^
de frio e de fome, não lhe encontrou vestígios das ex-
centricidades que a tinham notabilizado.
^4^6 —

A casa de São João dos Bemcasados passou, depois,


naturalmente por herança, a outra figura primacial do
seu tempo, a Aires de Sá e Melo, Secretário de Estado
do tempo de Pombal, possuidor de numerosos empre-
gos e de não menos abundantes honrarias, o qual é
era sobrinho-neto de D. Violante Engrácia de Sá, mu-
lher do alcaide-mór de Alfaiates, Manuel de Sousa de
Almeida (pág. 449, in Jine). Em 1766 já a casa era
dele, estando avaliada para o efeito da décima, em
7003í)000 réis de rendimento anual, juntamente com os
terrenos que lhe pertenciam (i).

De 1765 até 1785, esteve habitando a casa D. Joana


Perpétua de Bragança, irmã do Duque de Lafões D. Pe-
dro Henriques de Bragança Sousa Tavares Mascare-
nhas da Silva e neta, como êle, do Infante D. Miguel,
filho legitimado de El-Rei D. Pedro II e da francesa

Ana Armanda Duverger(2).


Com ela morou, de 1771 a 1778 pelo menos, sua
sobrinha D.Ana Rita Quitéria. Nessa época D. Joana
Perpétua tinha, entre a basta criadagem, um moço de
cozinha, chamado José do Telhado. Em 1782 mora-
vam ali também, D. Francisco de Sousa e Silva Me-
neses e uma filha, o armeiro-mor D. José Francisco da
Costa e o Duque de Lafões. Este, em 1779 e em 1783
também lá é dado como residente.

(
1
)
Livro da Superintendência da Decima de Santa Isabel,
do ano de 1766.

(2) Róis dos Confessades da Fraguesia de Santa Isabel.


— 4^7

D. Joana Perpétua, nascera em 1 1 de Novembro


de lyiS numa segunda-feira (i), e fora baptisada com
singular pompa a 25 de Dezembro seguinte, pelo Car-
dial da Cunha, no palácio de seu pai, servindo de pa-
drinho El-Rei e assistindo toda a corte (2). João V pre-
senteou a afilhada por ocasião da crisma, em 1719, com
um fio de pérolas de três pingentes, avaliado em trinta
mil cruzados. Prenda verdadeiramente real (3).
Em 20 de Setembro de 1738, casou, no palácio dos
Marqueses de Arronches, ao Carmo, com D. Luiz José
de Castro Noronha Ataíde e Sousa, quarto Marquês de
Cascais e décimo Conde de Monsanto. O casamento
foi motivo de festas esplendorosas que não resisto à

tentação de descrever por alto.


Foi madrinha a mãe do noivo e padrinhos seus tios,
o Marquês de Marialva e o Conde da Ponte. Fizeram
de «braceiros», da noiva, o Duque de Lafões, e da
madrinha, Nuno da Silva Teles. Caudatários, foram
o, depoisDuque, D. João Carlos de Bragança e
D. Pedro de Noronha, senhor de Vila Verde. Recebeu
os noivos, o pároco do Sacramento, na presença de
toda a corte, que os acompanhou depois, em carrua-
gens de gala, até o palácio do Couto de São Mateus,
em cuja igreja se achava exposto o Santíssimo. Can-
taram-se as vésperas de São Mateus, padroeiro e pro-
tector da casa dos Marqueses e depois, no palácio, numa
sala, de-certo lindamente ornamentada, serviu-se um
lutich, como hoje diríamos, ou um púcaro de água, como

(i) Gaveta de Lisboa de 16 de Novembro de iji5.


(i) Idem de 27 do mesmo mês e ano.
(3) Idem de 4 de Maio de 17 19.
- 4^8 —
era então. Houve doces, frutas, bebidas delicadas,
água gelada e muita animação.
No dia seguinte realizou-se um extraordinário ban-
quete para cavalheiros e senhoras, diz a Gaveta, com
três mesas diferentes, j
Cada mesa tinha três cobertas
de cozinha, com uma totalidade de quinhentos e vinte
pratos ! Isto sem contar com as delicadezas da copa.
Como se tão estupenda comezaina não bastasse,
houve ainda uma quarta coberta só de doces, frutas e
geleias nevadas.
O leitor fará ideia desta monstruosidade se eu lhe
disser que para refrescar tais mimos de doçaria se gas-
taram quarenta arrobas de gelo. j Uma barbaridade (
i
)

Passemos adiante.
El-Rei, talvez como brinde de noivado, concedeu
a D. Joana Perpétua as honras de duquesa, por carta
régia da mesma data do casamento, indo a agraciada
recebê-las ao paço em 26 do mesmo mês. Mais tarde
teve também o tratamento de sobrinha (2).

Em 14 de Março de 1745, faleceu, na quinta da


Aremanha, onde então residia, o Marquês de Cascais,
cheio de moléstias e de dívidas. Recolheu a viúva à
corte, e logo a 27 do mesmo mês, com uma rapidez

(i) Gaveta de Lisboa de 25 de Setembro de i738, pág. 468.


Numa das Academias Literárias da época debateu-se o seguinte
problema: ^A qual dos dois monarcas pertencia maior glória
neste casamento, se a D. Pedro II por ser progenitor da noiva, se
a D. João V por ser a causa dele ? Defendeu a primeira parte Al-
berto José de Passos, e a segunda Frei João de S. Tomás — Códice
127 da Colecção Pombalina da Biblioteca Nacional, pág. 76-84.
(2) Gabinete Histórico, vol. vii, pág. 146 e segs.
— 4^9 —
que bem demonstra a fúria dos credores, principiou o
leilão de todo o recheio do seu palácio do Couto de
São Mateus. Carruagens, bestas, mobílias e alfaias
tudofoi apregoado (i).

Falava-se em que ia então residir para o palácio o


infante D. Manuel, mas aos credores agradou-lhes cer-
tamente mais a notícia de que certo negociante oferecia
por êle seis mil cruzados de renda. Só um deles, que
era D. João de La Cueva, era credor de setenta mil
cruzados (2).
Onde residiu então D. Joana de Bragança, não sei.
Em 1769 morava no palacete de São João dos Bemca-
sados com um estado de vinte criados. A parte rústica
andava arrendada a um tal António Carvalho Ribeiri-
nho e a renda do palácio era de 528ííooo réis anuais (3).

Em um interessantíssimo documento, consultado


pelo falecido escritor Alberto Pimentel, no copioso ar-
quivo da casa do Marquês de Valada, subscrito por
D. Joana Perpétua e da sua própria letra, acha-se o
seguinte período referente a uns papéis da testamentá-
ria do Duque, seu irmão, e que diziam respeito à exis-
tência de uma filha natural do mesmo

«Estes dois papeis achei em uma gaveta de um es-


critório que estava na quinta da Torrebella e muitos

(i) Mercúrio de Lisboa de 27 de Março de 1745, pág. 328.

(2) Idetíi, pág. 332 v."


(3) Livros da Superintendência da Decima de São Sebastião
da Pedreira^ ano respectivo —
Em 1780 a renda baixara a 400^000
réis.
ánnos os conservei juntos em uma papeleira que na
ocasião do incêndio desta casa de S. João dos Bemca-
sados^ deitaram da janella abaixo e se fez em pedaços
espaliiando-se os muitos papeis que nella estavam e
como foi em noite tenebrosa perderam-se alguns e entre
elles o segundo papel que era em meia folha escrito»,
etc.(i).

Houve pois um incêndio no palacete de Aires de


Sá e incêndio violento, acrescido com a circunstância de
se ter ateado em uma chegando a aii-
noite tenebrosa
rar-se os móveis pela janela abaixo, como se vê do
documento transcrito. Vamos a vêr se se apura a data
do sinistro.
O documento acima está assinado por D. Joana
Perpétua em data de i de Junho de 1783, na casa de
São João dos Bemcasados (2). Temos já, pois, uma
referência, e importante, visto que a casa estando já
nesse tempo em estado de habitar-se, depois do vio-
lento fogo, marca para dois ou três anos atrás, pelo
menos, a data do acontecimento. Havia mister de fa-
zer obras e tudo isso levava tempo.
Ora, no cartório do convento do Rato, que existia
na Delegacia do Tesouro do distrito de Lisboa (3), estava
um documento do qual se concluía ter ido para lá reco-
lhida em 28 de Agosto de 1780, D.Joana Perpétua (4).
Julgo não ser desconsertado ligar os dois factos e a
ser assim o incêndio tinha-se dado nesse mês e ano,

(i) As amantes de D.João V, por Alberto Pimentel, pág. 214.


(2) Idem, pág. 219.
(3) Todos os cartórios conventuais que estavam nesta re-
partição do Estado, foram totalmente destruídos pelo incêndio
das Encomendais Postais, ocorrido em 2 de Maio de 1919.
(4) Citado Cartório — Caixa n.° 10.
— 4^1 —
obrigando a viúva do Marquês de Cascais a recolher-se
ao vizinho mosteiro. Nada mais natural nem mais pos-
sível.
Em 20 de Agosto de 1785, falecia D. Joana no pa-
lacete de São João dos Bemcasados sendo sepultada no
dia seguinte no convento de Santa Catarina de Ribamar.
A corte tomou luto dois meses e houve sincero pezar.
Era uma senhora bastante culta e uma figura saliente
do seu tempo.
A sua correspondência com seu irmão D. João Car-
los, segundo Duque de Lafões, exilado na Áustria, feita

em forma de diário, e' uma colecção de altíssimo valor;


dizem.
Relata miiidamente todos os sucessos notáveis da
corte de El-Rei D. José durante anos seguidos. Tentei
manuseá-la e lê-la, mas os esforços que fiz nesse sentido
resultaram infrutíferos (1).

j
Que fonte copiosíssima de notícias não estará ali

represada

Durante a estadia aqui de D. Joana Perpétua, ou-


tros dois hóspedes da real família se vieram curar aos
ares lavados de São João dos Bemcasados. Quem o
diz é a fidalga numa das cartas preciosas
inquilma
escritas a seu irmão, quem mo disse foi o ilustre
e

professor e meu erudito amigo D. Tomaz de Melo

(i) Esta colecção de documentos acha-se em poder da família


do sr. D, Caetano de Bragança, no Palácio do Grilo. Em Março
de 1917, no jornal O Dia, transcrevem-se excertos de duas cartas
de D. Joana Perpétua a seu irmão D. João Carlos, cedidas àquele
diário pelo sr. D. Caetano. Não interessam a São João dos Bem-
casados.
— 4*52 —
Breyner, Conde de Mafra, a quem D. Caetano de Bra-
gança a mostrou. Os «reais meninos», expressão da
carta, vieram tratar-se da tosse convulsa. D. Joana
Perpétua noticia as melhoras dos príncipes e refere o
quadro encantador de uma merenda na quinta que
muito os divertira, principalmente —
é de prever por- —
que ela mandara vir os «pretos da Rabicha» que can-
taram modinhas à viola e dansaram o lundum.
Deviam de ser, talvez, os doentinhos, os filhos de
D. Maria I: — o príncipe D. José, D. João, depois
D. João VI e a infanta D. Mariana Vitória.
Numa carta do Duque para a irmã dá-se uma
curiosa notícia também. D. Pedro, escrevendo de
Viena de Áustria, conta que num sarau, em sua casa,
se apresentara um menino-prodígio, tocando piano. E
diz-lhe o nome. Era Mozart.

Aires de Sá e Melo, o proprietário da casa cujo


destino vamos apurar, antigo Embaixador em Madrid
e Ministro Plenipotenciário em Nápoles, Conselheiro
da Fazenda e Secretário de Estado da Guerra e dos
Negócios Estranjeiros, Fidalgo da Casa de Sua Mages-
tade. Cavaleiro do Hábito de Cristo e Familiar do Santo
Ofício, morreu em lo de Maio de 1784, sucedendo-lhe
na casa seu filho, João Rodrigues de Sá e Melo que
foi o primeiro Visconde e primeiro Conde do Anadia,

vila de que era donatário. Houvera-o do seu casa-


mento com D. Maria Antónia de Sá Pereira, filha de
Manuel de Sá Pereira, senhor de Mangualde e de nu-
merosos morgados.
João Rodrigues de Sá habitou o palacete de São
João dos Bemcasados em 1790, por exemplo, tendo
— 463 —
estado a casa devoluta em 1786, 1787 e 1788(1). Ca-
sou o primeiro titular da Anadia com D. Maria Antó-
nia de Carvalho Cortez de Vasconcelos da qual não
houve geração, passando o título, por isso, para seu
tio materno José António de Sá Pereira, primeiro vis-

conde de Alverca, e deste para sua filha, D. Maria


Luiza de Sá Pereira, casada com seu tio Manuel de
Sá Pais do Amaral de Almeida Quifel Barberini, os
quais foram segundos Viscondes de Alverca e terceiros
Condes da Anadia. O quarto Conde, filho destes,
foi José Maria de Sá Pereira do Amaral Almeida Qui-

Barberini, o popular, boémio e fidalgo Conde da Ana-


dia, falecido na flor da vida depois de uma irrequieta
mocidade, deixando três filhos Manuel, o quinto Conde,
;

que tinha casado com D. Maria da Graça de Barros


Lima, falecido em Lisboa em 22 de Outubro de 1902,
deixando quatro filhos, um dos quais, o mais velho, é o
actual sexto Conde, José Maria de Sá Pais do Amaral
José, Visconde de Alverca, pai do actual quinto Vis-
conde de Alverca e de uma senhora D. Filipa; e Carlos,
primeiro Visconde e primeiro Conde de Alferrarede,
também já falecido em 4 de Agosto de 1909, na casa
de São João dos Bemcasados, deixando viúva a sr.^ Con-
dessa D. Maria da Luz de Barros Lima, e uma filha
D. Maria da Assunção, actual Condessa de Calhariz.
Tais foram os donos da antiga residência dos se-
nhores da Casa da Cavalaria de São Pedro do Sul.
O Palácio pertence hoje à sr.* Condessa de Alfer-
rarede, que nele reside no segundo pavimento da parte
que torneja para a rua das Amoreiras.

(i) Livro da Decima — Superintendência de Santa Isabel —


anos respectivos.
464 —

o palácio de São João dos Bemcasados foi habi-


tado pelos Anadias desde 1789 a 1793. 1794 passa Em
a residir lá a Condessa de Vimieiro (D. Teresa Josefa
de Melo Breyner) e aí se demora ate' 1797. Em parte
da casa, moraram também os Seabras. Vejo mencio-
nado como morador Lucas de Seabra da Silva em vá-
rios anos desde 1796 a 1809, e seu irmão José Maria
de Seabra e família, de 1818 a 1824. Os Anadias vol-
taram a residir em São João dos Bemcasados de 1802
a 1804. De 1798 a 1819 residiu em parte da casa o
Ministro Napolitano, por sinal que logo no primeiro ano
do Marquês de Oyra,
se realizou ali o leilão das alfaias
embaixador espanhol que fora na nossa corte (i).
Cumulativamente outros inquilinos teve: o Marechal
de Campo José António Mangas, em i8o3; Avril, ge-
neral francês de infantaria, em 1808(2); o Visconde de
Alverca proprietário, então, do palácio, em 1812 a Con- ;

dessa da Anadia, viúva, e Matias José Dias Azedo, de


1814 a 1817 em 1818 o Conde de Wansen e suíis filhas
;

Frederica e Henriqueta; ainda em 1819 as duas Con-


dessas da Anadia (3); e em 181 1, no primeiro andar,

(1) Gajeta de Lisboa de 1798. A Gaveta de 20 de Janeiro de


1797, anunciava a venda de carruagens, móveis, cristais e louças

do Ministro Napolitano, nesta rua. i


Seria outra a casa e teria ele
mudado depois para o Palácio ?
i
Seria a residência do antigo
ministro ?

(2) Calendrier de Lisbonne pour 1808 — Almanaque da época.


(3) Na tradição familiar dos Anadia.s v r-e o quadro bucólico-
-cortezão destas duas fidalgas, passando horas às janelas do pa-
lácio,conversando com quem passava no caminho arrabaldino,
sempre decoradas com os hábitos da Malta. Quando era o Nún-
cio quem cruzava o subúrbio, prolongava-se o colóquio. Guar-
— 465 —
uns generais ingleses e Pedro Inácio de Gouveia, ofi-

cialmaior da Secretaria da Intendência da Polícia, que


também trazia a quinta de renda, e no segundo pavi-
mento o Tesoureiro das Tropas, Matias José de An-
drade e o Coronel Caetano António de Almeida (i).
Como se vê o palácio estava dividido em quatro
moradias.
Em 1821 andavam obras na casa em que então re-
sidia a terceira Condessa, obras que se repetiram em
i83o(2).
Em 1822 residia lá Pedro Alexandrino Cavroé ; de
1825 a i83o, o Conde Manuel de Sá Pais do Amaral
e o Bailio Bernardo Pais do Amaral; de i83o a i83i
o Conselheiro Diogo Vieira Tovar e José Maria de Sea-
bra ; de i83o a 1834, o Desembargador José Pedro de
Quintela ; de i833 a 1834, a Condessa da Louzá, viúva
em 1842, o Visconde de Molelos em 1848, a Viscon-
;

dessa de Magé e Lourenço Correia Manuel de Aboim


que ainda ai vejo dado como morador em i853 e
1854 (3).
Por várias vezes apareceram nas Gavetas aniáncios
de arrendamento do palácio e de leilões lá realizados,
como o da Gaveta de 3i de Março de 1801, que anun-
cia um, dos trastes de um cavalheiro inglês que lá re-
sidia.

O Periódico dos Pobres de ig de Setembro de


1834 noticia arrendar-se parte da quinta, assim como

dou-se, assim, a memória da Condessa D. Maria Joana {Informa-


ção gedtilissima da sr.^ Condessa de Alferrarede e do sr. Conde
de Mafra).
(
I ) Livros da Decima — Superintendência de Santa Isabel —
Ano de 18 1. 1

(2) Idem —
Anos de i82i-i83o.
(3) Róis dos Confessados da Freguesia de Santa Isabel —
anos referidos.
voL. IV 3o
— 466 —
outro anúncio da Crónica Constitucional {nJ^ 20) áç 17
de Agosto do ano anterior. Já a Gaveta de 8 de Feve-
reiro de i8i5 anunciava também o arrendamento do
palácio.
Um dos inquilinos do antigo solar arrabaldino de
Lisboa é o sr. Conde de Mafra, o douto professor
D. Tomaz de Meio Breyner, meu ilustre e erudito
amigo (i).

Na parte da casa, à esquerda do portão principal,


onde antigamente eram a Biblioteca e o Teatro, a que
adiante me referirei, residem hoje os srs. Condes de
Calhariz, filha e genro da ilustre proprietária.

A capela moderna, feita com restos da antiga, está


hoje nesta parte da casa com entrada pelo átrio que a
serve e sem aspecto exterior.
Iluminam-na duas janelas que dão para o poente.
O altar-mór de madeira marmoreada a verde e doi-
rado, tem um retábulo (fim do século xviii) represen-
tando um casamento místico onde figuram os esposos
trocando os anéis esponsalícios, o celebrante de casula
e um acólito com a salva das alianças.
É Aos lados, em mísulas, um São
frouxa pintura.
Pedro de Alcântara, de mármore, e uma Senhora do
Monte do Carmo, de madeira, estofada.
Nas paredes laterais, sob dois quadros, pinturas
em tela, representando um, São Jerónimo, e outro uma
Virgem, estão dois nichos quadrangulares, cheios de
relíquias trazidas de Itália pelos Anadias diplomatas.
No da esquerda vê-se um crucificado; no da direita,
uma Senhora das Dores.
No coro está uma tela emoldurada, do retábulo,
— 467 —
talvez, de um altar da antiga capela, representando São
João Baptista condenando Herodes por estar mal ca-
sado. Uma imagem de São João Baptista está também
no altar-mór, mas é do fim do século xviii, como o re-
tábulo. Das velhas imagens de António Simões, não
há o menor vestígio.
CAPITULO XX

Sumário : Um artigo de Bulhão Pato, sobre a «Casa Anadia» —


Preciosidades que continham
lá se —
Quadros de Vieira Por-
— A baixela de prata as jóias — As festas
tuense e de Sequeira e
em casa do — Os habituais convivas — Apre-
Conde de Anadia
ciação que Bulhão Pato fez do popular Conde de Anadia —
Um raro exemplar de faiança — O ,teatrinho do Palácio — O
Palácio Real de Campo de Ourique — A rua de São João dos
Bemcasados — A Joaninha Italiana —
A rua do Portal de
São João —
A questão dos Polvoristas A Fábrica da rua —
Formosa —
São intimados a sair de lá os Polvoristas —
Marca-se-lhe local para a Fábrica em São João dos Bem-
casados —
Resistem e conseguem vencer o Senado da Câ-
mara —
Duas terríveis explosões de pólvora em 1576 e 1745
— Casos extraordinários que então se deram A Torre —
da Pólvora e as casas da Pólvora — A casa dos Laguares — O
Arco do Carvalhão — Diz-se quem era este Carvalhão — Ghe-
ga-se à Cru:; das Almas — Onde era, e o que era a Cruz de
São João dos Bemcasados —
O portão n.° 221 da rua das Amo-
reiras — Estabelece-se uma hipótese aceitável —O brazão'
dos Rebelos e o portal sobre que êle assentava De quem —
eram as casas que tinham a cruz —
A ermida da Cruz das
Almas — Diz-se quem foi o fundador — Descrevese o inte-
rior — Um lindo rodapé de azulejos do Rato — Descrevem-se
as alegorias da composição — Um Batalhão Nacional aquar-
telado neste sítio —O Instituto Branco Rodrigues —A casa
de Junot l

Bulhão Pato, no n.° 46 da revista literária Os Se-


rões, publicou um delicioso e evocador artigo subordi-
nado ao titulo A Casa Anadia. Ningue'm dirá que o
escrevia um octogenário. ]
Que frescura de frase !
\
Que
— 470 —
colorido de linguagem !
j
Dir-se-ia o estilara a pena ro-

manesca de um rapaz de vinte anos !

Por esse artigo, preciosíssimo, algumas notícias se


colhem do que foi esse lar fidalgo do qual escreve o
poeta
— Passei ontem por Li. j Porias, janelas^ indo fe-
chado! /O que aquilo foi!
Tinha razão. Pato caçara, na quinta, galinholas, sa-
boreara os alperches sumarentos do pomar, provara os
vinhos da cave e gostara a mesa e a conversa dos Ana-
dias. Era, realmente, para ter saudades.

Na casa Anadia havia notáveis obras de arte. O


avô de José Anadia era um artista. No seu palacete,
entre muitas pinturas nacionais e estranjeiras que o en-
cantaram, tanto como o encantara o dono da casa, linha
visto o austero Raczynski, dois quadros de Vieira Por-
tuense : Vénus e o Amor e A Condessa de Atouguia
armando os filhos cavaleiros. Do grande Sequeira
também lá existiam pinturas.
O quadro Martim de Freitas, considerado obra
mediocre por Raczynski, ainda lá está na escada prin-
cipal, no segundo patamar. O «retrato de senhora»,
levou outro rumo.
Vénus e o Amor, fazendo frente a outra tela (talvez
Vénus e Marte) também de Vieira Portuense, encon-
tram-se no mesmo patamar. Raczynski não se refere
a este quando trata das obras de arte da casa da Con-
dessa da Anadia.
Numa das salas da senhora Condessa de Alferra-
rede conserva-se ainda o quadro olandês (pintura em
tábua) a que o mesmo crítico se referiu. O quadro «a
— 471

Condessa de Atouguia armando os filhos cavaleiros,
ficou para outro ramo da família.
Em obras de prata, possuia a Condessa D. Maria
Luiza dois vasos que, na opinião do mesmo severo cri-
tico, eram notáveis espécimes das obras de ourivesaria

de «Cinquecenlo», e uma soberba peça batida pelas


extraordinárias mãos de Cellini que foi vendida em
Londres, para partiliias por morte do Conde D. José,
pela bonita quantia de vinte contos. Consta que depois
o comprador a revendeu por mais do dobro.
Depois das jóias da coroa não havia em Portugal
outras que se avantajassem às desta casa. Dois bri-
lhantes de uns brincos antigos que tinham sido da irmã
do Conde, D. Maria das Dores, foram vendidos por
dois contos de réis.
No palácio de São João dos Bemcasados não se de-
ram festas de estrondo, bailes ruidosos como os do
Viana, do Carvalhal, do Penafiel ou do Farrobo. As
festas que ali se deram revestiram sempre um carácter
íntimo, magníficos jantares, pequenas reuniões de con-
versa que eram adoráveis.
Dou a palavra a Bulhão Pato

«Os jantares sempre primorosos, nos dias festivos


tornavam-se banquetes, onde o mais ilustre discípulo
do Mata tinha rasgos de Napoleão nas baterias de co-
zinha.
«iQue mesa! Os centros antigos do mais fino la-
vor ; soberbos candelabros, cristais de Boémia e Ve-
neza, loiças em que os padrões do oriente se mediam
com os exemplares relativamente modernos das fabri-
cas da Europa.
«O velho mordomo em pé, atraz da cadeira do
conde, imóvel, dirigia com os olhos os criados. E no
meio de tal grandeza e rigor no serviço, uma inlimi-
— 472 —
dade familiar, um á vontade que dispunha deliciosa
mente o animo de todos os convivas. Nada de hirto e
convencional.
«Vinhos francezes de primeira ordem.
«Da velha cave saia o Douro e Madeira, como ra-

ros provam hoje : Corgo, Sercial, Pallido, Terran,


Treas, Verdelho, Malvasia das propriedades do conde
de Carvalhal.

«Aos jantares e serões frequentes vinham os irmãos


da condessa, que eram numerosos, e uma irmã, D. Car-
lota, casada ao tempo com D. Simão Anadia e, por
morte deste, em segundas núpcias, com o marquez de
Oldoini, ministro de Itália em Portugal ; também,
como a irmã, gentilissima senhora.
«O mais velho dos irmãos, marquez de Fronteira e
de Alorna, bello homem na estatura e no porte, mu-
sico de talento e um mestre ao piano. Que trechos
soberbos dos grandes autores nos deu n'aquelles deli-

ciosos serões !

«Os Íntimos eram Simão Aranha e Luiz Aranha


com sua mulher, D. Isabel da Gamara, irmã mais nova
do conde de Carvalhal, a minha querida Isabel, criança
que trouxe ao coUo e senhora exemplar de virtude
como esposa e mãe, cujo perfil grego revelava os dotes
da sua alma de eleição.
«Deixou uma filha em tudo exemplar condigno de
tal mãe.

«D. Manuel de Almeida (Lapa), General Bezerra,


José Palha, José de Avellar, Domingos Martins Peres
e eu, compunham o circulo limitado d'aquellas encan-
tadoras reuniões.
«Quasi todos esses cairam, há muito, na terra do
esquecimento.
«Aqui está porque passando homem pela casa Ana-
— 473 —
dia, pintada agora de côr de rosa flamante se me afi-

gurou triste e negra . . . como a tumba» !

Da avó de José Anadia, dizia o solitário do Monte


de Caparica : «... estou a vê-la na sua berlinda de
esmalte amarello, puchada a duas muares de Alter do
Chão. Vivera nas primeiras cidades da Europa, e largo
tempo em Roma. Muito inteligente, devotada ás letras
e ás artes, primorosa no trato e, como a marquesa de
Alorna, de sangue peninsular e vivo».

Dela disse também Raczynski

«E impossivel ter maior bondade. Não conheço . .

ninguém que a não estime e diga bem d'ella».


Com referência à fidalga boémia em que viveu o-
popular Conde de Anadia, são interessantes as refe
rências de Bulhão Pato

«Arranjaram-lhe reputação — falsa e empeçonhada


da malidicencia com que se baba a inveja macilenta e
mordaz. Diziam, por menospreso, que frequentava o
Retiro dos Pacatos, o Papagaio, o Perna de Pau e o
Colete Encarnado. Frequentava, tinha esse bom gosto,
como o tem agora quanto ahi ha de mais escolhido na
inteligência e na educação — que lá vai para comer o

peixe frito ao ar livre, perfumada de pimpi-


a alface
nella, criada nos alfôbres mimosos e regados pela nora
gemente, beber o copo tirado do pichei espumante e
sem confeição, gostar a açorda de coentros e de espi-
nafres, improvisada á ultima hora por um assador de
boa mão para adubar apetitosos bocados ; tudo isso
— 474 —
nos espairecidos e graciosos retiros das hortas de Lis-
boa.
«Acudam-lhe, emquanto é tempo, que vão desapa-
recer os deliciosos retiros : basta ser coisa nacional para
darem cabo delia.
«Conde da Anadia, estivesse onde estivesse, na feira
de Agualva ou na de Sacavém, falando cigano com o
seu compadre Botas, era sempre um gentil-homem.

E mais adiante

«O conde de Anadia era alto, elegante, rosto de


colorido ardente, beiços vermelhos, olhos cor de avelã,
portuguezes e de viva scintilação.
«Inteligente, e, comquanto lhe faltasse cultura lite-
rária possuia gosto nativo. Em tudo o denunciava : na
simplicidade do trajo, na escolha de uma jóia antiga,
no anel, na corrente, nos sinetes do soberbo relógio,
nos seus trens governados por António Simão, um dos
aurigas mais afamados de Lisboa».

Tal era o conde apreciado pelo cintilante espirito


justiceiro do poeta da Torre de Caparica.

Mais duas notas ainda.


No belo livro de José Queiroz, A Cerâmica Por-
tuguesa^ cita-se um esplêndido exemplar de faiança —
bastante raro — datado de 1741, que existia numa das
salas deste palácio (i).
Houve aqui em tempos (princípios do século xix)

(i) Cit. obra., pág. 3o. Está hoje no Palácio de Mangualde.


— 47^ —
um teatrinho particular dos poucos que nesta data exis-
tiam em Lisboa. Mencionam-no Balby(i) e Perestrelo
da Câmara (2). Ficava, como já disse, na parte oci-

dental do Palácio.
Deixando a moradia, por tantos títulos notável e
recordando o infantinho D. Carlos, D. Joana de Bra-
gança e esta linhagem ilustre dos Anadias, digo como
Bulhão Pato, olhando a fachada agora pintada de ama-
relo :

j
O que aquilo foi

Quando, depois do terremoto, se procurou logar para


a edificação do projectado Palácio Real, foi este sítio
o preferido, pelo menos por Manuel da Maia e Carlos
Mardel. O decreto de 2 de Julho de 1769 diz, preci-
samente, quanto à demarcação (de que por muito tempo
se conservaram os «marcos») do terreno escolhido, que
este ia, pela banda do nascente desde o mosteir^o do
Rato até São Bento da Saúde; pelo sul desde o prin-
cipio da calçada de S. Bento caminhando por ela acima
até o largo do Senhor Jesus da Boa-Morte pelo poente, ;

desde o dito largo do Senhor Jesus da Boa-Morte,


caminhando pela rua que dele sai, até ao arma\em
onde se enxuga a pólvora ; e pelo norte, desde os Ar-
cos das Aguas Livres e sitio onde estão os Arcos que
cortafn a estrada que vai pelo Arco do Carvalhão para
a quintado Sargento-Môr, até ao dito largo de S. João
dos Bemcasados. O decreto mandava também abrir
ruas e arruá-las para que se pudessem edificar casas.

(i) Essai Statistique dii Royaume du Portugal, Paris 1822.


(2j Descripção de Lisboa em i83g, por Paulo Perestrelo da
Câmara,
— 476 -
Outro documento, do mesmo ano, diz o seguinte

a Tenho resoluto que o palácio da minha residência


seja edificado na elevação de Terreno superior ao
Tejo e a cidade de Lisboa que fa\ entre o largo de
S. João dos Bemcasados e o caminho que vai do Se-
nhor Jesus da Boa-Morte para o Rato : de?narcando-se
no rufno do norte pelo largo, da mesma quinta de
S. João dos Bemcasados até os Arcos das Aguas-IJ-
vres, na parte em que por eles desce a estrada que vai
para a quinta do Sargento-Mór e se temiina na Ri-
beira de Alcântara : no do poente pela mestna ribeira
descendo do ponto onde se termina a sobredita estrada
té ao fim da quinta do Loureiro : no do sul, pela es-
trada e Rua que se descobrir em linha recta da sobre-
dita ribeira para N. S.^ dos Pra^^eres, ficando ao Jiorte
dela as terras de Bartolomeu Domingues, e quinta cha-
mada do Bahuto até á outra rua nova que também
manda demarcar para sair por linha recta ao dito
Aqueduto das Aguas Livre, : e no rumo do nascente
pela ultima rua acima indicada. O Dr. Majiuel José da
Gania e Oliveira, de\embargador da casa da Suplica-
ção proceda, com os engenheiros Elias Sebastião Pope
e Carlos Mardel a avaliação das propriedades parti-

culares para indemnizar em dinheiro de contado ou


em padrões de juro á escolha» {i).

As demarcações estão feitas com clareza que dis-


pensa maiores referências topográficas modernas. O
terreno demarcado era vastíssimo, certamente para tra-
çado e plantação de jardins, parque, tapada, etc.
O risco para o palácio foi feito pelo arquitecto João

(i) A avaliação fèz-se. Volume i do l-iepertorio das Leis Ex-


travagantes, pág 83
— 477

Antinori em casa de quem, em Roma, Cirilo Volckmar
Machado o viu.
Este Antinori foi casado com uma portuguesa e vi-
veu algum tempo em Lisboa, tendo sido empregado na
Casa do Risco como ajudante de Eugénio dos Santos.
Era contrário ao Marquês de Pombal, razão porque
foi obrigado a fugir de Portugal. Para o palácio houve
outro risco feito por Mardel(i). Este ou o do italiano
esteve muito tempo na Sala do Risco. Di-lo Ratton
nas suas Recordações.
E é o que sei sobre o projectado palácio.

A rua de São João dos Bemcasados que vinha da


rua «dos Pousos» (depois de Campo de Ourique) até
a dasAguas Livres», devia de ter sido aberta depois de
1755 pondo em comunicação os dois bairros. A planta
levantada em lySõ, a que tenho feito constantes refe-
rências, mostra naquele ponto um pátio ou beco sem
saída, para serventia da ermida e do palácio. Vejo,
ainda hoje, junto ao embasamento das dependências da
casa dos Anadias, que seguem o alinhamento da rua,
vestígios de degraus.
Noutra planta da freguesia de Santa Isabel, elabo-
rada pelo sargento-mor José Monteiro de Carvalho (2)
já aparece a rua delineada e aberta, assim como em
outra, que possuo, datada de 1785(3).

(i) Diccionario de Engenheiros e Architectos, por Sousa Vi-


terbo, i.° vol, pág. 42.

(2) Plantas existentes na Torre do Tombo de que possuo


cópia.
(3) Oferecida pelo saudoso Visconde de Castilho, em 1908.
- 478 -
O local, em 1742, tinha apenas cinco fogos. O ter-

remoto trouxe-lhe maior população. Em 1756 já os


fogos são quarenta e seis, quando no ano anterior eram
onze. No final do século (1796) mencionam-se nos
Róis, cinquenta e um.
Os Litros da Decima de 1762, que são os primeiros
da riquíssima colecção do Arquivo do Tribunal de
Contas, dão-nos noticias de algumas moradias dignas
de menção nesta recente artéria.
Do lado da casa dos Condes e para lá da ermida,
tinham a sua residência o Desembargador Jansen Mol-
ler e o Principal Moura, em 1764 e anos seguintes (i).
OsRóis dos Confessados também são palreiros.
Com o seu auxilio vou dar aqui a nota de alguns
moradores notáveis. Já alguém, com espírito, chamou
a esta minha obra arqueologia do ijiqiiilinato. Pa- \

ciência Já agora tem de ser (2).


1

De 1770 a 1778, as famílias do Arcebispo de La-


cedemónia e do Principal Moura.
De 1786 a 1788 o Desembargador Francisco Xavier
da Silva e Moura.
De 1749 a 1762, a família Andrade Corvo, é dada
aqui como residente; Monsenhor Pestana, de 1753 a
1762; João Baptista Maigre, de 1780 a 1801 ; e José
da Cunha Tavares, de 1780 a 1787.
De 1784 a 1791 José Xavier Carneiro Zagalo e Melo
e sua mulher D. Teresa Maria Ana de Lacerda e fa-
mília. Noutro pomo diz-se que a residência desta gente
era ao Portal de São João, do lado direito subindo.

(1) Livros da Decima — Superintendência de Santa Isabel—'


Anos respectivos.
(2) Foi o de Araújo num seu artigo
meu camarada Norberto
no Diário de Lisboa quando do apareci-
apreciativo, publicado
mento do segundo volume desta obra.
-479 —
Já em 1745 residia aqui a família Zagalo. A Ga-
:{eía de i5 de Novembro desse ano, noticia ter falecido
na quinta dos Bemcasados, de uma dilatada doença, em
16 do mês anterior, D. Luiza de Oliveira e Quinhones
mulher do Desembargador Rodrigo de Oliveira Zagalo,
Fidalgo da Casa, Cavaleiro de Cristo, e Procurador da
Fazenda Real.
Vejo ainda dados aqui como moradores, as famílias
Metzner e Cosmelli, em 181 1 de 181 1 a 1824, o co-
;

ronel, depois brigadeiro, Cristóvam da Costa Ataíde


e Teive e em 1820 e Desembargador José Pedro
;

Quintela e a família Carpinetti. Esta vivia aqui já há


tempo.
Fronteira à casa dos Anadias, abriu em i83o, a sua
afamada loja de bebidas a «Joaninha Italiana», conhe-
cida hospedeira lisboeta (i).

Em mudou-se de Buenos Aires para aqui o


1806,
Cole'gio da Imaculada Conceição», onde se ensinavam
além dos estudos comuns, dansa, esgrima, música e
picaria (2).
Em 1804 tinha aqui a oficina do Armazém de Ma-
teriais da Fábrica da Seda, onde vinham a beneficiar
os tecidos da Fábrica, o Mestre Manuel da Silva (3).
Em i852 houve, aqui, também, uma Fábrica de
Tinturaria (4).

(i) Diário do Governo de 12 de Maio de i83o.


(2) Gaveta de Lisboa de i de Fevereiro de 1806.
(3) Livro 3j4 de Entrada e Sahida de Materiaes, da «Co-
lecção da Junta da Administração das Fábricas do Reino»^ na
Torre do Tombo.
(4) Sinopse da Camará Municipal de Lisboa —
i852, pág.i 18.
-48o —

Um Roteiro dos Correios dos primeiros anos do


século XIX, cita a travessa cio Padrão a São João dos
Bemcasados.
Ignoro que «Padrão» e que «travessa» sejam estes.
Em 1740 já existia um caminho de São João dos
Bemcasados, por sinal que, a 10 de Junho desse ano,
uns malandrins assaltaram de madrugada uma padeira
que vinha para a cidade, e depois de lhe roubarem
tudo — o pão que trazia, o dinheiro, a besta que ela
conduzia, e o ceirão —
deram-lhe com um pau na ca-
beça deixando-a como morta (i).
Ora esse caminho, não estando ao que parece ainda
aberta a actual rua, devia de ser o troço actual da rua das
Amoreiras desde o palácio Anadia à Crií:{ das Almas,
que depois foi também chamado no cartapácio da De-
cima, Rua do Portal de São João dos Bemcasados e
mais tarde rma do Portal das Aguas lÀvres.
Por ela vamos seguir agora (2).

Em i653 o Senado da Câmara andou preocupado


com uma grave questão, a extinção dos armazéns e
fábricas de pólvora dentro da cidade, e muito principal-
mente cerca dos sítios mais habitados.

(i) Anno Noticioso e Histórico — Manuscrito y-5-io da Bi-


blioteca Nacional.
(2) O edital de 3 de Fevereiro de 1874, chamou Rua das Amo-
Arcos das Águas Livres
reiras à rua dos e à rua Direita de São
João dos Bemcasados.
— 48i —
Os polvoristas Lucrécia Antunes, João Mateus e
Simão Mateus deram-lhe água pela barba. A sua fá-
brica e armazém ficavam na rua Formosa, em pleno
Bairro Alto. ali ou em
Indistintamente fabricavam-na
Penha-Longa Barcarena de onde a traziam a-fim-de
e

a vender a particulares, não a arrecadando na «Torre


da Pólvora» como a lei preceituava (i).
Em ano foram intimados, pelo
i3 de Fevereiro desse
Senado, a não fabricar pólvora nas suas casas da rua
Formosa, arbitrando-se-lhes graves penas no caso de de-
sobediência (2) mas como eles reclamassem, invocando
;

os prejuízos que tal lei lhe causava, foi ordenado


que o Tesoureiro do Senado lhes desse (a cada um)
2oíií>ooo réis de indemnização (3).

O sítio marcado pelo Senado para estabelecimento


dos polvoristas, fora este de São João dos Bemcasados.
A consulta de 3 de Março do mesmo ano de i653
declara ser esta a melhor parte que para este mister é
necessário. Para tal fim, fora escolhido, um ca\al de-
fronte de S. João dos Bemcasados que foi de Rodrigo
Esteves já defunto Q cujo rendimento era recebido pelo

(i) Elementos para a Historia do Município de Lisboa, por


E. Freire de Oliveira, tomo v, pág. 398-404.
A Torre da Pólvora (diz Damião de Góis na Chronica de
D. Manuel^ parte iv, cap. 85) foi mandada fazer por este monarca
e ficava ao pé do Cais do Carvão onde havia o postigo do mesmo
nome, segundo Cristóvão Roiz de Oliveira. O poeta da Descrtp-
ção Métrica de Lisboa, em 1626, diz :

Aqui está a Torre da Pólvora


que tem por titulo e empreza
este lugar é terrível
por umas latinas letras.

(2) Elementos para a Historia do Municipio de Lisboa, citado


tomo e páginas.

(3) Idem, idem.


VOL. IV 3i
- 4^2 —
Hospital Real, por dívidas. Reunia iodas as condições
precisas. Estava fora do povoado e tinha muito sol
para se enxugar a pólvora.
Outro casal, onde vivia, ao tempo, um lavrador
chamado Pombo, também a Câmara o indicara para
o
o mesmo fim. Tinha sido do Cónego Dr. António Ta-
vares de Távora e os seus rendimentos estavam se-
questrados para a Fazenda Real. O sítio era excelente
e ficava afastado de comunicações urbanas. Tinha um
grande poço de água, e sol não lhe faltava.
Tudor isto era assim,' mas os polvoristas estavam
teimosos e não saíam da rua Formosa, a-pesar-de inti-
mados pelo escrivão da Câmara, Francisco Lopes Ri-
beiro.
Foram-lhe apreendidas as suas ferramentas, certo
dia. Parecia pois que o Senado conseguira impor de-
finitivamente a sua autoridade, mas o decreto de 2 de
Abril mandou-os de novo recolher às suas casas, res-
tituindo-se-lhe, ainda por cima, tudo quanto lhe fora
tomado (i).
Manuel Mateus, Lucrécia Antunes e Simão Mateus,
morreram na rua Formosa, contentes, naturalmente,
da pirraça feita à Câmara, respectivamente em 8 de
Janeiro de 1641, 27 de Julho de 1754 e i3 de Janeiro
de 1676 (2).
Em Julho de i636 ardeu a oficina de Manuel Ma-
teus que a mudou para outro local, e João Mateus ins-

talou-se em Barcarena com um moinho e uma oficina,

(i) Citados Elementos — Consulta de 2 de Abril de 1659,


tomo V, pág. 424. Os no ano seguinte, andaram com
polvoristas,
pouca sorte. Foi-lhes penhorada a quinta de Penha Longa por
causa de um alcance feito por António da Maia, na Tesouraria da
freguesia da Madalena.
(2) Livro dos Óbitos da Freguesia das Mercês Anos respec- —
tivos.
— 483 —
na quinta que o Senado lhe deu por adminrstração
assim como Sebastião Mateus, com três moinhos, Si-
mão Mateus com um, além de oficinas em Penha
Longa. Manuel tinha três moinhos também no mesmo
local. Em lugar, porém, de levarem a pólvora à Torre
para refinar, refinavam-na em suas casas, pelo que a
Câmara propôs a El-Rei se lhe marcasse a pena de
quinhentos cruzados e o perdimento da mercadoria de
que eles faziam estanque, em sua consulta de 12 de
Agosto de i655 (1).
Na véspera de São João, desse ano, um foguete pe-
gou fogo na rua Formosa à oficina dos Mateus, deu-se
uma explosão e o sítio foi alarmado. A capela dos Pa-
dres Teatinos abriu. fendas, as casas de D. Pedro de
Almeida, na calçada do Combro, arruinaram-se em
parte e houve prejuízos também nas ruas Formosa e
dos Poiais de São Bento.
Os moradores do local reclamaram. A Câmara, em
face da resistência insolente de João Mateus, o mais
bravo dos polvoristas, reclama por seu turno. Nada,
pprém, conseguiu. O Casal do Pombo, ficou deserto
e João Mateus não foi para Junto de seus irmãos em
Barcarena (2).

A cidade continuava, pois, a estar em perigo immi-


nente de alguma explosão terrível como a de 1576 em
que explodiram cerca 44.000 quilogramas de pólvora,
nas Terracenas de Santos, matando e ferindo muita
gente, demolindo prédios, danificando as ruas próximas
e apavorando a cidade. Essa explosão foi em dia de

(i) Citados Elementos, tomo vii, pág, xLvii-t


(2) Jdem^ pág. 47 a 5o.
Santa Luzia, em Dezembro desse ano(i). A de 1745
não foi menor. Deu-se no Boqueirão da Ribeira, na
casa da Venda da Pólvora, junto ao Tribunal das Sete
Casas. Deu-se um estrondo formidável. Foi no dia 20
de Fevereiro.
As portas da Sé rebentaram, e houve vinte e oito
mortos e oitenta e seis feridos, tendo-se destruído e
avariado cinquenta e seis prédios (2).

Tanto neste como no primeiro cataclismo deram-se


factos extraordinários. Quando foi da explosão de iSyõ,
houve madeiramentos que caíram no rio muito distantes
da margem. Na Anunciada deslocaram-se as grades
de ferro do coro das freiras, e dizem ter-se ouvido em
Santarém o medonho estampido (3). No de 1743 foi
cair um cadáver dentro de um navio inglês que estava
ao largo (?), acharam-se em Xabregas duas cabeças de
homem, e um ferido foi projectado com a cama onde
estava deitado, até às «Portas do Mar», endoidecendo
com a comoção sofrida. D. João V deu várias provi-
dências depois do sinistro, mandando tocar o sino, cha-
mado «a Garrida» e dizer muitas missas (4).
A de 9 de Julho de 1764, proibiu de novo a venda
lei

de pólvora em casas particulares (5), tendo-se publicado


em 1802 e 1810 outras leis sobre polvoristas (6).

(i) No Livro dos Óbitos de Saníos-o- Velho, que serviu em


«Aos dezoito de Dezembro de 1576,
1576, lê-se o seguinte registo:
faleceo Aerberto Jacome framengo e mercador na rua do
guarda mor foy no dia de Santa Lujia no Terremoto da pólvora».
(2) Gaveta de Lisboa de 23 de Fevereiro de 1745 e Gabinete
Histórico, vol. IX, pág. 36o-36i.
(3) A
Ribeira de Lisboa, de Júlio de Castilho, pág. 610-612 e
Memorias de El- Rei D. Sebastião, tomo iv, pág. 83 e segs.
(4) Manuscrito 8-9-2 da Biblioteca Nacional.
(3) Gabmete Histórico, vol. xii, pág 355.
(6) Reportório das Leis Extravagantes, vol. i, pág. 429, e vo-
lume II, pág. 166.
— 485 —

A Câmara andou sempre em sobressalto com estes


artífices. A
«Torre da Pólvora» que segundo Damião
de Góis fora mandada fazer por D. xManuel junto ao
postigo do Carvão^ na parte debaixo da rua das Portas
da Cruz, estava no século xvii, já afogada em casas
que em redor se tinham construído.
Da parte de cima ficava uma atafona, e as instala-
ções não ofereciam segurança, salvo a torre propria-
mente dita.
A Câmara propôs que se levantasse à roda um muro
alto, se proibisse que na vizinhança se deitasse fogo
de que os polvoristas fossem coagidos a mu-
artificio e

dar as suas oficinas para sítios não povoados (i).


Já em 1610 a Câmara pensara em mudar a «Casa
da Pólvora» para Alcântara, junto aos Fornos da Cal,
mas tal mudança só se fez em 1670(2), ao que parece,
embora haja referências, anteriormente, a uma Torre
Pólvora, junto ao baluarte de Alcântara.
Em 1728 sobre as ruínas da Torre da Pólvora ou
achegada a elas, edificou o holandês António Cremer
(edificador também de uma linda e original casa nos
campos de Azeitão — quinta de Nossa Senhora da Con-
ceição) uma nova fábrica de pólvora que veio a no-
mear um arruamento do bairro. Parte do material
veio da Holanda. O edifício cobria-se de telha preta,
holandesa, e, por muitos anos, na estrada, estiveram
cinco mós de pedra, afora outras quatro, arrumadas à
parede da oficina, todas com mais de dez palmos de

(1) Citados Elementos, tomo v, pág. 353-35 '>.


(2) Idem, tomo 11, pág. 263 — Decretos de 28 de Maio de 1670
e 18 de Junho do mesmo ano.
-486 —
diâmetro, causando engulhos ao Coronel Figueiredo
que menciona o empecilho para o trânsito, imprecando,
a propósito, tôJas as obstruções das ruas da capital.
Cremer montou, depois, uma sucursal em Barcarena
que veio a ser a oticina principal desta indiistria e que

ainda hoje existe (i). A. da Ribeira de Alcântara, cujo


funcionamento esteve interrompido pelo cismo de 1735,
foi dirigida pelo Tenente General Bartolomeu da Costa

(1782) e depois (1790) pelo Brigadeiro Raposo. Foi


Bartolomeu da Costa quem, no dizer do Coronel Fran-
cisco Coelho de F"igueiredo, aboliu a pólvora bombar-
deira e deu grande incremento a esta fabricação. O
mesmo memorialista cita a devoção dos polvoristas
pelo templo da Madre de Deus, onde iam todos os sá-
bados, da rua de São Bento onde então moravam, en-
cerrados em seges das quais a mais apontada em cavalo
arrogante e asseio da «caixa» era a do polvorista Luiz
de Roboredo. A romaria semanal era ao meio dia.
Quando davam as doze badaladas, preguntava-se, no
arredor da Madre de Deus :

— ^Já passou o Polvorista?


Ao Brigadeiro Raposo, já nosso conhecido como in-

ventor de louça, sucederam outros directores. Em i833


foi proposta a extinção da casa da Pólvora em Alcân-
tara, mas a ideia não foi por diante e continuou a fun-
cionar, acabando em nossos dias (2).

(1) António Cremer foi Comissário Geral do Almoxarifado


e Pagador das Tropas holandesas ao serviço de Portugal. Fez
vários melhoramentos na Fabrica, como o da instalação de qua-
tro moinhos de galgas, importados de Namur.
(2) Dos fundos da Fábrica de Barcarena saíram os dinheiros
necessários para a construção do dique, telheiros e barracões que,
no primeiro quartel do século passado, se fizeram no Arsenal de
Marinha.
-487 -
Recentemente foi condenada à morte pela picareta,
para a abertura de um novo arruamento.
E voltemos ao ponto interrompido.
A outra torre, na Lapa da Moura^ começou a er-
guer-se em 1671 e parece que estava conciuida em 1693,
fazendo-se todavia a mudança em 1698.
A Torre da Pólvora, das Portas da Cruz, ficou a
chamar-se a Velha. Em 1Õ78 deitaram-se abaixo as
paredes do pátio que a cercavam para resguardo(i).
Em 1701, houve ideia de se fazer em São Paulo,
ao sopé do Monte de Santa Catarina, uma Casa da
Pólvoj^a. A Câmara alviírou-a, e a obra chegou a fa-
zer-se. Dizia o Senado que estava fora dos riscos da
guerra, i E dos outros ? Não percebo muito bem como
isso fosse (2). Verdade seja que lá estão hoje as ofi-
cinas da Companhia do Gaz, a-pesar também de não
se entender cabalmente.

Sigamos agora pela ma do Portal de São JoãOy


hoje «das Amoreiras. O palácio Anadia, estrangula-a
durante alguns metros (3). Depois abre-se a nova arté-
ria ladeada por prédios banais, à esquerda do alinha-
mento da rua, e à direita, encolhidos em jardins defen-
didos por quesilentas grades de ferro. Algumas edi-
ficações vistosas.
Do lado poente esteve durante muitos anos o «Es-

(i) Citados Elementos, tomo viii, pág. 3o5.


(2) Idem, tomo x, pág. 94-96.

(3) O relatório do sr. António Emídio Abrantes, engenheiro


da Câmara, de que foi dado conhecimento público em Julho de
1982, consigna a necessidade urgente do alargamento deste cor-
redor, demolindo-se parte do palácio Anadia.
— 488 —
tabelecimento Hortícola» de Marcolino Teixeira Mar-
ques. Agora um Campo de jogos desportivos, atrai ai

ao domingo, milhares de pessoas.

No topo dela, tornejando para a estrada de Cam-


polide, fica uma casa pintada de côr de rosa que alber-
gou, durante anos, uma escola oficial do sexo feminino.
Era a n." i3, se não estou em erro. E das casas mais
antigas do sítio. Pertencia, já em 1742, a um Fran-
cisco Luiz Velho de Laguar e linha larga quinta ati-

nente, como o indica a planta de lySõ. Passou de-


pois ao Dr. José Amaro da Cunha Laguar, então cor-
regedor do Crime da Rua Nova (de lyõS a 1759) o
qual era sobrinho do corregedor que foi do Porto, Pe-
dro Velho de Laguar (i). Este também aqui morou de
1742 a 1748.
De 1809 a 1819, pelo menos, morou nelas D. Josefa
Peregrina Roncon de Laguar (talvez filha do Correge-
dor da Rua Nova) que além dessa possuía, no sítio,
mais propriedades (2). Depois a casa veio parar as
mãos de um tal Castro, conhecido pelo «Castro dos trens
do Lagoia(3), rival do famoso segeiro «Assembleia».
A esquerda, neste entroncamento, desce para a ri-

(1) Anos de 1817 a 1818 dos Livros da Decitna — Superin-


tendência de Santa Isabel.
(2) Informação do sr. António César Mena Júnior.
(3) Memorial de Ministros —
Manuscrito da Biblioteca Nacio-
Por decreto de i6 de Outubro de 1676 foi
nal G-3-45, pág. 3i2.
nomeado Superintendente da Décima das freguesias de Bemfica,
Oeiras, Barcarena e Carnaxide. Foi um dos magistrados encar-
regados do processo dos Távoras [Gabinete Histórico, vol. xiv,

pág. 6).
^ 489 -
beira de Alcântara, a antiga estrada do Sargento-mor,
chamada depois, do arco do Carvalhão.
O sargento-mor era o nosso conhecido Domingos
do Amaral Valente, e a estrada tomava de-certo esse
nome por ir ter direita, sob a encosta dos Prazeres, à
sua quinta, na ribeira, que ficava aquém de \'ila Pouca.
Tudo isso se percebe muito bem na planta de José
Monteiro de Carvalho.
Com nome sonoro — «Arco do Carvalhão»
este —
meiia-se medo às crianças. Era uma espécie de «pa-
pão» no meado do século xviii. Di-lo o Coronel Fran-
cisco Coelho de Figueiredo (i).
O Carvalhão que deu nome ao arco do aqueduto e
à estrada (hoje rua) que sob êle passa, é Sebastião José
de Carvalho e Melo, grosso proprietário deste local.
Eram dele não só as terras que ficavam encravadas
entre a estrada de Campolide e a continuação da rua
das Amoreiras até à circunvalação, como também as
que da rua do Arco descaíam para o vale de Alcân-
tara e as que dele ficavam para àquem.
Ignoro se ainda, como antigamente, as casas da
estrada e da rua das Amoreiras pagam foro à casa
Pombal. No cunhal da que, para ambas, faz frente, à
esquina, defronte da casa dos Laguares, está encravada,
uma pedra em que Foreiras a Sebastião José de
se lê :

Carvalho e Mello. Anno de 1J42.


Na parte do Cunhal que vira para a rua das Amo-
reiras existe um lindo relójio de Sol, numa pedra de-
licadamente ornamentada (2).

(i) O Teatro, de Manuel de Figueiredo, vol. xix, pág. 354.


(2)Essas casas tinham sido de D. Mariana Emília Cambiasse.
Passaram à posse do falecido capitalista Manuel Maria de Antas
Barbosa. Pertencem desde 1920, por compra, ao sr. Francisco
Frick, representante e herdeiro dos Fricks, grandes proprietários
deste antigo subúrbio.
— 490 —

Chegamos à Cru:{ das Almas, i


Que cruz seria
esia ?

Nojá citado Roteiro da Agua Livre e Agua de


Moyitemór e mais Fontes junto a ela, etc, feito em
1618 por Pêro Nunes Tinoco e redigido, mais tarde,
por seu filho João Nunes Tinoco, estudando-se o tra-
jecto da água e as diferença de nível a vencer, fala-se
por mais de uma vez na cruz de São João dos Bemca-
sados: as casas que têm a Cru^ e ainda:
. . . .Junto . .

à Crui de São João dos Bemcasados, etc.


Ora a Cru^ das Almas deve ser uma reminiscência
desse monumento desaparecido, i Esta cruz seria acaso
um velho cruzeiro ?

Do dizer do manuscrito conclui-se que a cruz per-


tencia a umas casas, i
Que casas seriam ?

Nos pilares do portão n.° 170 da rua das Amoreiras


vêem-se gravadas na pedra, em um, uma águia, ou
coisa que o valha, recolhida numa oval, e em outro uma
cruz tendo na base à data de 162Ó dentro de idêntica
oval.

l
Seria esta a Cruz ?

Vem-me agora à memória o antigo padrão desco-


berto na parada do quartel de artilharia (ao topo dela)
que entesta, como e' sabido, com a estrada de Campo-
lide, no ponto fronteiro ao sítio hoje chamado 6'n/{

das Almas. Esse padrão, que hoje está no Carmo,


como já se disse atrás, é constituído por uma pedra
de Armas (dos Rebêlos, sem a mínima dúvida) na qual
há vestígios, na espessura do plinto, do troço inicial
de um fuste cilíndrico que bem poderia ser resto de
uma cruz. Quando foi descoberto encontraram-se, jun-
tamente, troços de cantaria de um portal, sobre o qual
^491 —
o escudo estaria colocado, visto que no reverso se en*
contra, dentro de uma moldura, a seguinte inscrição;

LOUVADO SEJA O SANTÍSSIMO SACRAMENTO


ANO DE 1626

Temos pois, salvo melhor opinião, um portal so-


brepujado de uma pedra de armas coroada por uma
cruz, i
Ora não está tudo isto a explicar o nome da
rua do Portal do São João Acresce ainda que a data
?

da inscrição do escudo confere com a da cruz gravada


no pilar, já referido 1Õ26. :

As casas que tinham a^icruz, deveriam ser estas a


que aludo.
Parece-me haver em tudo isto uma estreita ligação.
A consulta dos títulos das propriedades vizinhas faci-
litariamuito a solução deste problema.
l
Que Rebêlos seriam estes, que fizeram erguer um
portal com as suas armas, sobrepujadas de cruz, à en-
trada de São João dos Bemcasados ?

l
Como iria parar o portal (talvez destruído em 1756)
para o outro lado da rua, no topo da quinta do Guarda-
-mór ?

Tudo perguntas a que, por ora, não sei responder.


As casas, a que pertence o portão de pilares orna-
mentados, foram como a vizinha ermida da Cruz das
Almas, da viúva do capitalista Manuel Maria d'Antas
Barbosa (1). Pertenciam ainda há pouco ao sr. Fran-
cisco Frick. Têm os números 164 a 170, da rua das
Amoreiras.

(i) Falecido no Estoril em aS de Janeiro de 1909. O féretro


esteve depositado nesta ermida.
492 —

Já no meado do século xviii os livros paroquiais de


São Sebastião da Pedreira falam na quinta do Rebelo
(1750 a 1757), no Páteo do Rebelo (i753) e na Tra-
vessa do Rebelo {ijbg). Anteriormente a estas datas,
vejo apenas citado o Casal de São João dos Bemca-
sados na posse de José' Rebelo Falhares (pai e filho).
Gomo se vê, esta designação ia até à «Cruz das
Almas» e «Arco do Carvalhão», antes que estes nomes
a substituíssem meado o século.
Como o «Padrão» tinha a data de 1626, há que pro-
curar predomínio aqui dos Rebelos nessa data, ou an-
teriormente.
Ora os Rebêlús Palhares foi gente que veio para
Lisboa no fim do primeiro terço do século xvii e que
aqui proliferou abundantemente, com grande número
de casamentos entre primos, o que me deu água pela
barba para lhes fazer o quadro genealógico, tanto mais
que os seus nomes próprios se repetem aflitivamente.
Gabriel Ferreira Rebelo e seu irmão, ao que pa-
rece Sebastião Ferreira Rebelo, eram ambos merca-
dores, o primeiro de retroz, e o segundo não sei de
quê. A loja do Gabriel era à Madalena, mas o beirão
Lamego) tinha uma quinta
(era de Ferreirim, bispado de
em São Sebastião da Pedreira, freguesia onde morreu
em 5 de Outubro de 1673, assim como sua mulher
D. Ana Barbosa de Palhares, em i5 de Julho de 1669 (i).
Gabriel Ferreira Rebelo foi Familiar do Santo Ofí-
cio por carta de de Janeiro de 1644, por onde se
12
concluiu que nesse ano já morava em Lisboa. A mu-

(1) Livro dos Óbitos da Freguesia de S. Sebastião da Pe-


dreira.
— 493 —
lher nascera cá. O sogro, Baltasar Barbosa de Palha
res, viera de Sanfins de onde era natural, e cá casara,
em São Paulo, com Ana Verde, filha de Aymão Verde
e de Catarina Aymáo, ele da Alia Alemanha e ela de
Anveres, mercadores pela certa (i).
l
Teria sido o mercador de retroz o edificador da
casa, com Se o foi, edi-
o portal brazonado ao alto?
ficou-a de-certo muito novo, a não ser que em 1675
tivesse mais de oitenta anos, o que possível. e'

Herdou a «casa do Portal» e o casal, seu filho José


Rebelo Falhares que casou com Brígida Maria Re-
belo. Deste passou para o neto, também José Rebelo
Falhares que nasceu nela, e residia no Bairro-Alto
quando foi feito Familiar do Santo Ofício, em i5 de
Junho de i665(2). Em 1691 era ele o dono da pro-
priedade.
Para quem passou depois é que eu ignoro.
Em São Sebastião da Pedreira havia outra quinta
que foi, no século xviii, dos Rebêlos Palhares, mas essa
fora cabeça de um morgado instituído por António da
Rocha Cardoso, morgado de que fora herdeira sua so-
brinha Maria da Rocha, casada com o Desembargador
Feliciano Dourado. Destes foi filha e herdeira D. Ana
Lourenço Justiniana Dourado que veio a casar com um
viúvo, Francisco Rebelo, Escrivão da Fazenda da Câ-
mara e Provedor da Junta do Comércio que era neto
materno de Sebastião Ferreira Rebelo, irmão do Ga-
briel, mercador de retroz (3). Destes nasceram vários,

(i) Habilitação para Familiar do Santo Oficio de Gabriel


Ferreira Rebelo — Carta
de 12 de Janeiro de 1644.
(2) Idem de José Rebelo Palhares —
Processo 8-1 53 —
Carta
de i5 de Junho de 1695.
(3) Nobiliários de Manso de Lima e Rangel de Macedo, na
Biblioteca Nacional, e títulos do Palácio que foi dos Barros Gar-
— 494 —
entre eles José Félix Rebelo, marido de D. Antónia
Inácia Rebelo Falhares (outra parenta), pai de Belchior
Félix Rebelo. Este casou com uma rica herdeira, Ma-
riaEngrácia Soares, de origem brasileira, e teve larga
descendência. Uma das suas seis filhas, Maria da
Conceição Rebelo veio a casar, no fim do século xviii,

com outro parente, João Rafael Veloso Rebelo Pallia-


ré-s (2), herdeiro de outra quinta próxima, cerca da «do
Bahuto» que já vejo apontada nos Róis de Santos 0-
]^elho em 1671, como quinta do Veloso. Dela era pro-
prietário no fim desse século, Xavier da Costa Ve-
loso (2).
João Rafael, era neto do nosso conhecido Vasco
Lourenço Veloso, administrador d.i Fábrica das Sedas
em lySo, filho de uma D. Maria Joaquina de Falhares,
e bisneto, possivelmente, do Xavier da Costa Ve-
loso (3).
Eis o que pude apurar quanto aos Rebêlos, cujo
brazão apareceu na parada do antigo quartel de Arti-
lharia e que lá está no Museu do Carmo (4).

dosos na rua Direita da Calçada do Gombro, junto às Convertidas


e esquinando para a travessa das Chagas, que me foram cedidos
pelo meu amigo sr. Júlio Pires. Esta casa foi de Maria Engrácia
Soares, mulher de Belchior Félix Rebelo e pertencera anterior-
mente aos Condes de Sandomil.
(i) Citados «Títulos» da casa dos Barros Cardosos.
(2) Xavier da Costa Veloso, morava aqui, em 1742, com sua
mulher D. Grácia Correia, seu filho Estêvão Xavier e três criados
[Róis dos Confessados da Freguesia de Santa Isabel).
(3) Róis dos Conf''ssados da Freguesia de Santos o-Velhoe
Livro 2." de Decretos e Avisos da Direcção da Fabrica das Sedas,
na Torre do Tombo.
Xavier da Costa Veloso, aparece-me num registo da chan-
celaria de D. João V {Livro 122, fl. 78) a fazer um contrato com
a \^idigueira em 10 de Abril de 1734
Câmara da
(4) Em
1773-1774 viviam no Palácio dos Rebêlos, da travessa
da Queimada, Francisco António Rebelo Pulhares e uma sua filha,
— 495 —
O sítio da Cru:{ das Almas aparece-nos pela pri-
meira vez citado em 1719, no registo de óbito de uma
Inez, filha de Manuel de Sequeira e de Catarina Maria,
feito na freguesia de São José. Noutros, em 1730 e
1732, surge-me a designação ao Canto das Almas. A
não ser que a referência seja a outro local à Cruz —
de Santa Marta, talvez —
temos que assentar que esta
denominação topográfica, só se fixou muito mais tarde,
tanto mais que a «cruz do Padrão» não pertencia à pa-
róquia de São José. O que é certo, também, é que em
1731, o bispo de Lamego D. Nuno Alvares Pereira de
Melo, faleceu à oCruz das Almas» em 8 de Março
deste ano, e jáque os Cadavais tinham aqui
se sabe
foi um Cadaval
casa e propriedades rústicas (i) e que
o fundador da ermida de que já vamos falar.
A primeira vez que o local aparece firmado nos
Róis dos Confessados de São Mamede é em 1812. Os
Róis de São Sebastião da Pedreira perderam-se. Em
1789 vejo uma citação isolada ao sítio, indicando-se a
moradia, onde ainda estava cinco anos depois, do bispo
de Pinhel e dos Reverendos Francisco Lopes Tavares
e Sebastião José Saraiva (2).
Fronteira à ermida, esquinando para a rua do Por-
tal, hoje das Amoreiras fica, como atrás disse, a casa
dos Laguares. O Dr. José Amaro da Cunha Laguar
era o senhorio útil, em 1807, dos terrenos do Arco do
Carvalhão foreiros a Geraldo Wenceslau Braamcamp
de Almeida Castelo-Branco(3).

José Félix Rebelo e sua mulher, Belchior Félix Rebelo e Maria


Catarina Palhares.
(i) Gabinete Histórico, de Frei Cláudio da Conceição, vol. ix,

pág. 39.
Róis dos Confessados da Freguesia de S. Mamede.
(2)
Arquivo da Misericórdia, por Vítor Ribeiro, pág. 12.
(3) Es-
critura de arrendamento de 5 de Novembro de 1807.
— 49^ —
A cruz que deu nome ao local era, evidentemente,
a do Portal que sobrepujava o brasão dos Rebêlos.

A ermida, que ainda tem culto, foi fundada em 1756

pelo Inquisidor D. Nuno Alvares Pereira de Melo, filho


do terceiro Duque de Cadaval, como já ficou dito no
capítulo anterior. Foi dedicada a Santo António e a
Nossa Senhora da Conceição. O Padre Luís Cardoso,
no seu dicionário manuscrito, colocaa, fortalecendo a
opinião acima expressa, ao portal de São João dos
Bemcasados.
E de simples arquitectura : frontaria em bico, por-
tão e janelão de coro, gradeado.
Sobre a porta está uma inscrição que diz: Dedicada
á Imaculada Conceição Mana Santissima, em carac-
teres romanos.
Interiormente tem mais alguma coisa que ver, e prin-
cipalmente o rodapé, lindíssimo, de azulejos do Rato,
a três cores, verde, amarelo e azul, repetindo quatro
das alegorias que se vêem nos da capela de Nossa Se-
nhora de Monserrate.
Dentro de uma moldura oval, sustentada por dois
anjos do topo da qual pendem duas grinaldas seguras
em que ladeiam apainelados (dois de cada lado
pilastras
do corpo da ermida e outros dois ladeando o altar na
capela-mór) é que estão as composições alegóricas,
todas a tinta azul. As grinaldas, pilastras e apainelados
misturam as três cores.
O tecto da capela é estucado a cores. Ao meio tem,
sob uma coroa real, duas letras (M e A) enlaçadas em
monograma, tudo doirado. Em roda, diferentes alego-
rias ao sacrifício da missa.
(
4Ç,G « )

A capela da Cruz das Almas e o prédio do cunhal


^497 —
A capela-mór é separada do corpo da ermida por
uma leia de madeira. No uma imagem de
altar está
Cristo crucificado, sofrível escultura em marfim, entre
uma Santa Tere:{a e um São Domingos. Ao fundo
um retábulo mau de Nossa Senhora da Conceição.
Sobre a pedra de ara está uma cabeça de Cristo,
coroada de espinhos, dentro de uma maquineta.
A ermida tem um coro, um púlpito e uma sacristia
pequena. Pertence também ao sr. Francisco Frick e

é seu capelão o Padre Joaquim Marques Sequeira. E


está dito tudo.

A casa 164 a 170 da rua das Amoreiras, exterior-


mente desfigurada, devia, anteriormente, ligar-se com
a da esquina e com a ermida. Por amabilidade do
sr. Francisco Frick visitei-a em 7 de Julho deste ano

(igSo). Além dos jardins, talhados à antiga, com ter-

raços, bancos azulejados, etc, tem, maiscomo vestígio


notável de outro tempo, a cozinha toda revestida de
azulejos-padrão do século xviii com a particularidade
de se figurarem, sobre a pintura geral, em três panos
da parede, ao alto, a cor de vinho, várias peças de
caça e de capoeira, tais como galinhas, coelhos, patos,
cabritos, e ainda pernas e cabeças de porco. E a pri-
meira vez que observo tal técnica. Nas cozinhas dos
palácios de Santo Antão do Tojal e do Correio-Mór
em Loures vêem-se essas figurações mas sobre fundo
branco e não sobre o padrão de coces, como aqui. No
quarto pano da parede, há, mas aqui embutido, um
quadro a azul, representando uma cozinha setecentista,
vendo-se vários utensílios de cozinha, pratos com co-
mida, etc.

Um cozinheiro, trajado caracteristicamente com o


VOL. IV 33
— 498 —
clássico barrete da época, compõe um prato onde fumega
não sei que iguaria, e uma «preta» escama vários pei-
xes. Ao alto pendem enchidos e résteas de cebolas.
Este painel tem o seu maior interesse no facto de
representar tipos nacionais e não as eternas cenas de
caçadas e de corte.

Defronte desta casa ^- resto do Casal dos Rebêlos


— fica o palacete onde há dezena e meio de anos está
instalada a «Casa de Saúde das Amoreiras» do Dr. Go-
mes de Amorim recentemente falecido. A rua segue
depois, ladeada de boas moradias, até o declive da
calçada dos Mestres. Estes «Mestres» eram os das
Aguas Livres.
*

Na Cruz das Almas (li algures e agora não me re-

cordo onde) esteve aquartelado em i833, o 3.° batalhão


da Guarda Nacional.

Seguindo de Campolide» temos,


a antiga «estrada
Cegos Branco Rodrigues, be-
à esquerda, o Instituto de
nemérita instituição, modelar no seu género, agora a
cargo da Misericórdia de Lisboa e depois, à direita, ;

tornejando para a Circunvalação, um grande casarão


pintado de vermelho com quatro ou cinco andares. De
há muito que ouvia chamar a essa casa, a Casa de Ju-
not. Consultei até sobre o assunto o sr. Pinto de Car-
valho (Tinop), profundo conhecedor da época das inva-
sões francesas e de tudo quanto se relacione com a
estada em Portugal do famigerado general napoleónico,
— 499 —
e disse-me Sua Ex.'* ter já ouvido fazer-se idêntica re-
ferência, cuja autenticidade nunca pudera apurar.
A-final decifrou-se o enigma. Junot nunca aí resi-

diu e a lenda formou-se da adulteração do nome do


primitivo proprietário do edifício, o francês Joaquim
Pedro Genioux, com casa de negócio na calçada de
São Francisco, como se vê dos Livros do Lançamento
da Decima de 1828 e de uma lápide de pedra que lá
está aposta no prédio. O Rol dos Confessados con-
firma o caso, chamando àquela propriedade, indife-
rentemente, Casa do Jiinò^ do Ginô^ ou do Jenú, no
alto de Campolide, à esquina de Entremuros, desde
1822 a i832. Em 1822 diz mesmo: Casa de Joaquim
Pedro Jenu.
Está pois desfeita a lenda.
F^oi aqui, neste casarão do Genioux, frequentador
dos bailes do Marechal Lannes, segundo a segura afir-

mação do sr. Pinto de Carvalho (Tinop) que Saldanha


em 1839(1).
teve o seu quartel-general
Em Campolide também morava o General Pam-
plona, Conde de Subserra, em 1828. Foi na sua casa
deste bairro que se deu a memorável festa e o célebre
baile, num barracão armado na quinta atinente, a que
assistiram o Marquês de Chaves e todos os heróis da
época (2).
Na rua Direita de Campolide, em Setembro de 33,
no n.° 29, esteve instalado um hospital de sangue, di-
rigido pelo deputado António Teixeira Salgueiro (3).

(i) Memorias do Marquês de Fronteira, vol. iii, pág. 11 e 23.


(2) Idem, vol. i, pág. 3oi e 362.
(3) Crónica Constitucional de 5 de Setembro de i833.
CAPITULO XXI

Sumário : O antigo caminho da Circunvalação e a travessa de São


Francisco Xavier — Como era o local ao tempo do terremoto
— A quinta do Noviciado da Cotovia —
Sua história —
Cria-
ção da Penitenciária — Referem-se os engenheiros que dirigi-

ram a obra— Sua conclusão Algumas considerações acerca
desse regime penal —
O desenvolvimento da cidade perante
— Um quartel moderno — Prossegue-se o pas-
a Penitenciária
seio pela — A quinta dos Duques de Aveiro,
Circunvalação
depois do Seabra — Um incêndio no Palácio — Como se for-
maram as terras do Seabra — A casa quinta do Malheiro —
e

Hospeda-se o Infante D. Carlos — Quem eram estes Ma-


lheiros —Dá-se notícia do palacete — O que resta dele —A


estrada de Campolide — As propriedades antigas e o moderno
bairro — O Asilo de São Patrício — A casa e quinta da Torre
de Estêvão Pinto de Morais Sarmento — Algumas notícias
sobre a sua família — Como parar às mãos do poeta João
foi

de Lemos — Compra-a o Padre Radmaker para instalação do


Colégio de Campolide — Notícias biográficas deste clérigo^
Uma anedota do Marquês de Penalva — Como se fundou o
Colégio de Campolide — Obras, aumentos e desenvolvi-
mento da instituição — Expulsão dos padres — O destino do
edifício — O moderno bairro de Campolide.

Da antiga estrada da circunvalação, já pouco res-


tará daqui a dois ou três anos. Dia a dia demolem-se
os muros que a ladeavam, fazem-se novos alinhamentos
e surgem espaçosas avenidas, como por exemplo, a do
Marquês de Ft^onteira, que se espalma entre Entre-
muros e Palhavã, e a do Duque de Afila entre este
local e o Arco do Cego.
E um nunca acabar de apoteoses ao ressurgimento
urbano.
— 5o2 —
Empunhando o gancho do gandaeiro, veremos se
alguma coisa notável se nos depara entre os entulhos
das demolições.

O troço da estrada que vai, da de Campolide, para


cima da Cruz das Almas, até São Sebastião da Pe-
dreira, chamava-se, começado ainda o século xix, a tra-
vessa de São Francisco Xavier. Assim aparece no-
meada na planta do engenheiro Duarte José Fava,
levantada no ano de 1807.
Tal travessa delineada e executada no terceiro quar-
teldo século xviii, afastava-se bastante do traçado do
antigo caminho ali existente antes de 1765. Em 1884
vejo chamar-se-lhe rua, nos Róis dos Confessados.
A primitiva estrada, muito sinuosa, partindo aliás
do mesmo ponto, deixava à esquerda a quinta e casas
dos Jesuítas (de que Já falamos) e seguia depois, fican-
do-lhe à direita uma faixa de terreno pertencente aos
Congregados do Oratório. Descia seguidamente, mis-
turando-se com um caminho que subia para Campolide,
em continuação da azinhaga da Torrinha, caminho este
que era murado e que seguia, entre a quinta de Gas-
par José dos Reis, à esquerda, e a. de Estêvão Pinto,
à direita. Isto em 1760 e tantos.
Depois, retomando a sua independência, seguia para,
o termo, ficando-lhe, à esquerda, as casas e muros da
quinta do Poceiro (à qual se seguia a do Rabeqiiinha)
e, seguidamente, a quinta e palácio dos Duques de
Aveiro e a propriedade de Manuel Gomes de Ca?npos, e,

à direita, as terras do Poceiro (fronteiras à quinta do


mesmo nome) e a quinta e casas nobres do Malheiros,
indo terminar defronte da igreja de São Sebastião.
A travessa de São Francisco Xavier, cortou a
- 5o3 —
direito até cerca do palácio dos Duques, desde Entre-
muros, atravessando, por isso, a quinta dos Jesuítas, a
azinhaga da Torrinha e as terras do Poceiro. A pro-
priedade dos Padres da Companhia ficou-lhe, pois, à
direita. Vejamos do seu destino.

Proscritos, por Pombal, os regulares da Compa-


nhia de Jesus, passou a quinta a ser administrada pelo
Juízo da Inconfidência, que a alugou a diferentes : — ao
Desembargador Domingos Lobato Quintteiro, em 1762 ;

ao opulento proprietário Gaspar José dos Reis, em


1766, etc.(i). Depois de 1770 passou a propriedade
à posse da «Junta de Administração do Colégio dos
Nobres», a cujo património pertencia por doação Pom-
balina,começando a ser explorada por conta dos do-
nos. O seu rendimento era importante, pois o moi-
nho e as muitas azenhas de três rodas cada uma, que
possuía, produziam grande quantidade de farinhas que
era fornecida às numerosas padeiras da freguesia de
São Sebastião da Pedreira (2).
Ao começar o século xix, o Colégio dos Nobres
alienou-a, vendendo-a a José de Seabra da Silva, mi-
nistro, embaixador, político, e financeiro do tempo de

(i) Livros do Lançamento e Arruamento da Decima Anos—


de 1765 a 1766 —
Superintendência de São Sebastião da Pedreira
(Arquivo do Tribunal de Contas).
(2) Diz o Padre Luís Cardoso, no seu Dicionário Manuscrito,
vol. II, pág. 932 :

«... um moinho
e muitas azenhas de trez rodas cada uma
em que se fazem as muitas farinhas para as padeiras cozerem pão
porque o mais trato tem que muita parte das mulheres desta fre-
guezia he amassarem pão para irem vender fora desta freguesia».
— 5o4 —
Pombal e de D. Maria I, tão notável pela sua desgraça
como pela sua Fortuna. Em i8o5 já a quinta estava
absorvida pelo famoso Seabra e englobada no seu do-
mínio(i).
Chegado o ano de 184 1, sem até aí nada haver digno
de menção, aparece no Diário anunciada a venda da
propriedade constante de terras de semeadura, olival,
horta, pomar, dois poços, etc, mencionando-se a sua
serventia pela azinhaga da Torrinha (2). Ignoro se se
alugou ou não. Em iSyS estava ainda disponível e o
Governo expropriou parte dela (a que ficava para além
da travessa) a-fim-de ali construir uma Cadeia Geral e
Penitenciária, tendo também utilizado, por compra,
terrenos do Colégio de Campolide.
Tal foi o estravagante destino da linda quinta de
recreio dos noviços da Companhia. No local onde me-
ditaram o pintor Domingos da Cunha e os irmãos Lou-
renço Lombardo, António de Azevedo e tantos outros,
na residência alegre e hospitaleira do Viso-Rei Fernão
Teles de Meneses, ergue-se, hoje, essa terrível Peni-
tenciária. A clausura facultativa sucedeu a clausura
obrigatória, j Fatal destino das coisas !

Foi em 1867, no ministério presidido por Joaquim


António de Aguiar e por proposta do, então, Ministro
da Justiça, Barjona de Freitas que foi promulgada a
lei de I de Julho abolindo a pena de morte e as penas

perpétuas, e substituindo-as pela prisão celular, com

(i) Citados Livros da Decima.


(2) Diários do Governo n.*" 9Õ e i8ó de 24 de Abril e 9 de
Agosto de 1841.
— 5o5 —
separação de preso a preso, e pelo degredo como pena
complementar.
Para tal lei ser executada foi o Governo autorizado
a mandar construir uma Cadeia-Penitenciária, no dis-
trito de Lisboa, por decreto de 24 de Abril de 1873.
Escolhidas as terras do Seabra, entre o reservatório
do Pombal e a estrada da Circunvalação, pôs-se mão
na projectada obra, fazendo-se as necessárias expro-
priações em 4 de Novembro de 1873.
Apresentaram-se estudaram-se três planos ; o pri-
e

meiro do engenheiro Joaquim Júlio Pereira de Carva-


lho, moldado no plano da cadeia de Ma^as^ em Paris
o segundo do engenheiro Luiz Vítor Lecoq, inspirado
no da prisão de Pettonville projectada pelo engenheiro
inglês J. Jebb, e o terceiro de Ricardo Júlio Ferraz,
elaborado, depois da viagem deste engenheiro à Bél-
gica e à Inglaterra, no outono desse ano. Foi este o
que se executou, inspirado no das prisões de Birmin-
gham e de Leeds, embora o segundo também tivesse
sido aprovado pela Junta Consultiva das Obras Pú-
blicas. Como, porém, o engenheiro Lecoq deixasse
a direcção dos trabalhos e lhe sucedesse Ricardo
Júlio Ferraz, veio a executar-se o plano deste enge-
nheiro.
Vov portaria de 10 de Julho de 1874, passaram as
obras da Penitenciária a constituir uma direcção espe-
cial ficando à frente dela este funcionário, mas sendo,
em 1877, exonerado a seu pedido foi substituído pro-
visoriamente pelo engenheiro Eça, passando as obras
para a Direcção Geral do Ministério. Ao engenheiro
Eça sucedeu outro, de nome Garção, que novamente
ficou encarregado da superintendência dos trabalhos
desligados outra vez da Direcção Geral.
A este seguiu-se Jaime Larcher em 1878 e depois o
chefe de secção Joaquim Pedro Xavier da Silva, aca-
— 6o6 —
bando as obras por ficar definitivamente sob a tutela
da Direcção Geral do respectivo Ministério.

O edifício é vastíssimo e compõe-se da prisão pro-


priamente dita, edifício da Administração, habitações
de empregados, hospital, capela, cozinha e gasómetros.
As habitações formam um edifício isolado, cuja fron-
taria constitui a fachada principal da Penitenciária. O
corpo central e a prisão constituem um
forma edifício de
estrelada cujo centro é ocupado por uma rotunda, onde
é a capela, e donde partem as seis alas destinadas ao
serviço da prisão.
O corpo central dá ingresso à Rotunda e constitui
uma sétima ala cujo eixo é perpendicular à fachada
principal.
Lavanderias, casas de banho, serviços clínicos e
hospitalares, de administração e de detenção provisó-
ria, acumulam-se no corpo central. Os subterrâneos
da rotunda e da parte das seis alas são destinados ao
serviço doméstico. Tanto no topo das alas como entre
elas estão distribuídos os passeios dos presos, dispostos
em forma de leque. Uma
muralha de oito metros de
altura fecha o havendo exteriormente outra
recinto,
com quatro metros, formando as duas um caminho de
ronda.
Descrever minuciosamente o edifício seria fastidioso
e ocuparia algumas páginas sem mais interesse, tanto
mais que tal descrição se acha bastante vulgarizada.
Por isso, passo adiante.
— 5o7 —

Uma das condições a que obedeceu a escolha deste


local para edificação da Penitenciária, foi a de ficar
arredado da cidade, longe dos arruamentos, fora, enfim,
do tumultuar da vida urbana. Com o andar dos "tem-
pos veio, pore'm, a cidade até ela, e a Casa do Silêncio

acha-se agora ameçada no seu isolamento, e arriscada,


daqui a alguns anos, a ficar encravada em pleno burgo
moderno.
Na sua frente, todo esse vasto trato de terreno, vai
desaparecer em breve. A rua Castilho, prolongando-se,
irá terminar numa meia laranja em frente daquele trá-
gico portão, onde bem se podia escrever o letreiro que
Dante fantasiou sobre a porta do Inferno. Pelos oli-

vais e terrasde semeadura avançam os alveneis e os


cavouqueiros ; as árvores caem abatidas perante a inva-
são ; as colinas verdejantes demolem-se e enchem-se os
graciosos vales com os entulhos das demolições e, em
vez de searas, ir-se-ão, em breve, semear alicerces de
cantaria bruta.
A Penitenciária assiste indiferente, ouriçada de ven-
tiladores, coroada de torreões, recortada de ameias, a
este caminhar impávido da cidade porque, a-pesar-do
seu aspecto ridículo de castelo de papelão onde, a todo
o momento, esperamos ver passar uma fila de cordei-
rinho e de pastores, postos em movimento por oculta
manivela, há-de servir fatalmente de barreira formidá-
vel ao desenvolvimento urbano. Os edificadores des-
falecerão perante tal vizinhança, mil vezes mais triste
e opressora do que a de um cemitério onde repousam
os mortos.
Muito se tem escrito sobre esse regime penal, so-
bre as desvantagens do enclausuramento impiedoso a
— õo8 —
que ali Eu sou aberta-
são sujeitos os delinquentes.
mente contrário regime que longe de corrigir e
a tal
de regenerar, deprime, enlouquece, tuberculiza e mata.
Antes mil vezes a Forca,
Entra ali um homem, sai de lá um frangalho mo-
ral, vitima do isolamento da inacção e da continência.
A cidade que teve força de arrasar o Passeio Pú-
blico, com o ridículo da horta dos Tripas^
que arrostou
que conseguiu vencer as mil peias judiciais da quesi-
lenta questão do Casal Monf Almeida, deve encora-
jar-se a meter ombros a uma benemeVita empresa
demolir a Penitenciária de Campolide.
Ao topo do futuro Parque, onde deveria assentar um
palácio de festas e de exposições, não pode nem deve
ficar aquele monstro.

A seguir à Penitenciária fica agora o quartel de Me-


tralhadoras n." I da guarnição de Lisboa. Aestrate'gia
das revoluções faz deste ponto de Lisboa um ninho de
aquartelamentos.
Nestes terrenos projectou-se em 1917 a construção
de um edifício onde se instalassem a Escola de Belas
Artes, o Museu de Arte Contemporânea e o Conselho
de Arte e Arqueologia, pessimamente abrigados no
velho casarão de São Francisco. A Biblioteca alargaria
então as suas instalações. Ficou tudo em projecto.
O
que não sofre dúvida que a vida oficial e co-
e'

mercial da cidade se vai deslocando para o norte.


Nesta hora em que escrevo vem na Imprensa a no-

tícia de ler sido comprado o palacete Serôdio., na Ro-


tunda, para, nos seus terrenos, se construir um Palace-
-Hotel.
— 5o9 —
A seguir é o palacete do sr. Henrique de Mendonça.
A porta entre o seu jardim e a Penitenciária, que ser-
via os terrenos da família Amaral, na brecha
foi feita

abefta no muro por Paiva Couceiro no dia 4 deOutu-


bro de 1910, para assestar uma das suas peças contra
a Rotunda.

Passada a quinta e terras do Poceiro (que foram


mais tarde do Principal Deão Azevedo, depois dos seus
herdeiros e mais tarde de um tal Carlos Joaquim,
vindo finalmente parar às mãos do Seabra) avultava à
esquerda, o palácio, com seus belos Jardins e magnifica
quinta que fora do Duque de Aveiro. Extinta a casa
ducal, depois da misteriosa tentativa de 1759, passou
a propriedade para um tal António Vaz Coimbra e
depois (em 1767) para José de Seabra da Silva, irmão
de Lucas de Seabra da Silva, duas figuras ce'lebres da
época (i).

de Seabra parece ter tido a ideia de formar


José'

à roda do seu grandioso palácio um dos mais extensos


domínios de que havia memória às abas de Lisboa o
qual sob onome de Terras do Seabra, chegou quási
intacto a nossos dias (2).
Em1770 vê-mo-lo adquirir uma propriedade cons-
tituída por bens de capela, a qual era administrada

(i) Citados Livros da Decima — Diferentes anos (Arquivo do


Tribunal de Contas).
(2) O Almeida Silvano, no seu livro O Grande Marque^
Dr.
de Pombal, a pág. 248, que foi Sebastião José quem arran-
diz,

jou (?) a José de Seabra a mercê da casa e quinta de Entremuros


e por último o seu vantajoso casamento com a herdeira dos Cou-

tinhos de Coimbra.
— 5io —
pelos religiosos do convento da Estrela e que pegava
com a quinta do Noviciado; em 1786 compra a quinta
da Rabequinha e, ao começar o século xix, ei-lo já de
posse da propriedade dos jesuítas, e da'quinta e casas de
Carlos Joaquim (antiga quinta do Poceiró) que tinham
sido dos herdeiros do Principal Azevedo, como já ficou
apontado(i).
José de Seabra tinha todas estas propriedades por
sua conta e habitava no palácio Aveiro. Apenas no
segundo semestre de 1779 vejo alugar-se a velha mo-
radia ducal ao Marquês de Niza que, por sinal, pagava
de renda 25oíí)00o réis (2). Em i8o5 José de Seabra
habitava-a e com êle quadro criados, quatro parelhas
e quatro cavalos de sela. Em 182 1, estava ausente em
França, e em 1882 devoluto, pois o visconde residia
então ná sua casa de Entremuros. Em i833, diz o Li-
vro da Decitiia, ocupavam-no «as tropas» (3).
José de Seabra casara com uma senhora fidalga,
D. Ana Tavares da Horta
Felícia Coutinho de Sousa
Amado e Cerveira, e desse casamento nascera o pri-
meiro Visconde da Baía, Manuel Maria da Piedade.
Do casamento deste com D. Ana Isabel de Salda-
nha Oliveira e Daun, quarta filha dos Condes de Rio
Maior, veio ao mundo o segundo visconde João Maria
da Piedade. José de Seabra falecera em i3 de Março
de i8i3 com oitenta e um anos de idade (4).
Meado o século xix, o vasto domínio dos Seabras
desmembrou-se, vindo entretanto a maior parte dele
parar às mãos do falecido capitalista José Maria Eu-

(i) Citados Livros da Decima — Anos respectivos.


(2) Ident — Ano de 1779
(3) Idem — Anos de i8o5, 1821, iSSa e i833.

(4) Resenha dos Titulares, por Sanches de Baena e Silveira


Pinto, vol I.
— 5ii —
génio de Almeida. Passou então a chamar-se o Casal
Mont' Almeida. O resto, já o sabe o leitor.

Esta casa e quinta dos Aveiros serviu, por várias


vezes, no século xvii, de alojamento a notáveis perso-
nagens. Vejamos.
Em 22 de Janeiro de 1668 chegou a Lisboa o Conde
de Sandwich, Vice-Almirante de Inglaterra, vindo de
Madrid a assentar as pazes com que o povo tanto im-
portunava El-Rei(i). Para aqui veio aposentar-se com
luzido cortejo à frente do qual não faltava o rapazio
que alternava vivas e pa^es.

A audiência régia realizou-se a 24, e a 23 foi ao con-


vento da Esperança beijar a mão à Rainha.
A 23 de Novembro desse mesmo ano chegou o em-
baixador de Castela. Desembarcou no cais de S. Paulo
e veio também no palácio Aveiro. Aqui es-
alojar-se
Rainha para fazer a en-
teve, esperando pelo parto da
trada solene, mas como esse acontecimento se demo-
rasse até 6 de Janeiro seguinte, só em 12 de Fevereiro
realizou a entrada e a audiência (2).
Este palácio dos Aveiros ficou bastante arruinado
com o terremoto. O Conde de Aranda, Embaixador
de Espanha na nossa corte que viera substituir, em
1756, o de Peralada, seu antecessor, vítima do desastre
na casa dos Meneses, à Cruz de Pau (palácio de A

(i) O
povo costumava, nas ruas, sempre que via El-Rei ou o
Infante, prorromper em gritos pedindo a paz. Di-lo o autor mis-
terioso das Monstruosidades do Tempo e da Fortuna.
(2) Monstruosidades do Tempo e da Fortuna, pág. 5i, 66 e 71.
— 5l2 —
Luta ao Calhariz), viu-se coagido a construir, na quinta,
uma barraca para habitar. Dias depois, como se a
ruína não bastasse, pegou fogo no solar arrabaldino dos
Duques.
Um dos quartos que escapara ao incêndio passou
depois a ser ocupado por uns criados do Embaixador
e certo dia, a-pesar-de, aparentemente, não mostrar pe-
rigo, desmoronou-se, e os servos foram salvos a custo
com o desabamento. O Conde de
ficando mal feridos
Aranda, nada contente com isto tudo e custando-lhe a
respirar o ambiente de pavor que ainda envolvia Lis-
boa, mal se desampenhou da sua principal missão, que
era dar os pêsames a El-Rei e oferecer os auxílios do
seu soberano, partiu para Castela. Veio substituí-lo,
outro grande de Espanha, o Conde de Macedo e Ta-
boada que se instalou numa barraca nesta mesma quinta,
enquanto outra, de maiores acomodações, se ia cons-
truindo(i).

Em seguida à propriedade dos Duques, ficavam as


de Manuel Gomes Campos — umas casas nobres e
de
dez casas abarracadas com vasto terreno atinente. Isto
do lado esquerdo da travessa de São Francisco Xavier.
Do lado direito assentava o palácio dos Leites Pa-
checos Malheiros, circundado por terras de semeadura,
hortas, olivais, pomar, etc.
Dou a palavra ao Padre Urbano José de Melo Pinto

(i) O Terremoto do i.° de Novembro de ij55 em Portugal e


um estudo demográfico^ por Francisco Luij Pereira de Sousa, vo-
lume III — Lisboa, i(j28, pág. 727, transcrição do curioso manus-
crito do Padre Manuel Portal.
(5I2 1)

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— Si3 —
da Silva, prior de São Sebastião da Pedreira e infor-

mador de seu colega Luiz Cardoso, em 1708 :

«Neste fnesmo sitio da parte da mão esquerda está


uma grandiosa quinta que he de Jerónimo Leite de
Vasconcelos Pacheco Malheiro com um notável portal
por onde se entra em um grande corredor que pai pa-
rar em um grande pateo, adonde tem casas nobres,
com uma vistosa varanday>^ etc.(i).

Jerónimo Pacheco Malheiro, dono do palacete, era


filho de António Leite Pacheco Malheiro e de D.^ Vio-

lante Engrácia de Sá, possuidores de vinte e quatro mil


cruzados de renda, ela de Leça do Bailio e ele de Lis-
boa, e donos também de outro palácio a Santo An-
tónio da Sé (largo do Malheiro) que António Leite
comprara em 171 1 à Condessa da Feira (2). Seu avô
fora Diogo Leite Pacheco de Macedo, fidalgo de Santa-
rém, e sua avó D. Ana Maria de Melo, tudo sangue
limpo. Casara Jerónimo Malheiro com D. JVIaria Te-
resa Josefa de Portugal, filha de João Sanches de Baena
e de D.' Violante Antónia de Portugal, neta materna

de Diniz de Melo e Castro, Conde das Galveias (3).

O abastado casal não chegou a residir nesta quinta


arrabaldina, onde ai por 1734 a 1736, tinha havido um
hóspede ilustre, nada menos do que o asmático infan-
tinho D. Carlos, a que já largamente me referi num

(i) Dicionário Manuscrito, Já citado, vol. ii--Tôrre do Tombo.


(2) Elementos para a Historiado Municipio de Lisboa, vol. vii,
pág. 119.
(3) Habilitações para familiares do Santo Oficio —
24-6776
m-1.929 de Aniónios; 7-118 de Jerónimos; e 5-i3i de Diogos
(Torre do Tombo).
VOL. IV 33
- 5i4 -
dos capítulos passados. Ignoro a época exacta da es-
tada aqui do débil Infante.
Por esse tempo, diz o meu informador, era nume-
meroso o concurso de gente grada a este local e não
raro se viam os coches reais no amplo páteo do Ma-
lheiro (i).Aí por 1758 residiu no palácio o conhecido
Principal Lázaro Leitão Aranha, e, em 1765, Luiz José
Leite Pacheco Malheiro, filho de Jerónimo Pacheco
Malheiro. A casa pertencia então ao seu irmão Antó-
nio Manuel que era o primogénito e herdeiro, e que foi,

como seu pai e avós, familiar do Santo Ofício (2).


António Manuel viveu nesta casa por várias vezes
mas não seguidamente, tendo falecido entre os anos de
1806 a iSio. Em 1769 morou aqui o capitão de ca-
valos João de Sousa Meneses (3).
Nos anos de 1785 a 1788, esteve, por exemplo, ar-
rendado o palacete ao Contador do Erário Sebastião
Francisco Betâmio, por 55oírooo réis. Nos anos de
1779 e 1790 esteve devoluto. A quinta esteve também
arrendada a diferentes. Em i8o5 lavrava-a um tal An-
tónio José Alves, ao tempo que o senhorio habitava as
casas nobres com cinco criados e uma parelha, e em
1812 alugava-a António de Oliveira (4).
Em 1812, habitavam-nas os herdeiros de António
Manuel Pacheco Malheiro.
Em 1834, a casa e quinta, eram de Francisco Teles
de Melo e de sua mulher D. Mariana Guilhermina de

(i) Dicionário do Padre Luiz Cardoso, já citado,


(a) Livros da Decima — Superintendência de São Sebastião
da Pedreira — Anos citados.
(3) Livro dos Óbitos da Freguesia de São Sebastião da Pe-
dreira — Óbito de sua mulher D.Josefa Evangelista da Silva e
Macedo, em 28 de Junho de 1769.
(4) Citados Livros da Decima
— Anos citados.
— 5i5 -
Almeida Malheiros. Trazia-as de renda José Ferreira
Lage(i).
As casas estavam então arruinadíssimas, assim como
as dependências entre as quais vejo mencionar-se um
mirante, em 1820, ocupado por um açougue.
Da parte nobre da residência estavam de pé os
portais. O resto desmoronado, tornando-a
tinha-se
inhabitável (2). Assim se conservou ao abandono de
então para cá, e assim se conserva ainda. Aqui há
quinze anos, pouco mais ou menos, fui ao velho pátio
ver dois brazões de armas reais que me tinham denun-
ciado ali existir, a-fim-de os adquirir para o Museu do
Carmo, caso tivessem algum valor. Não o tinham, a
não ser como recordação histórica, por terem sido dos
antigos armazéns reais do Jardim do Tabaco. Ocupava
então os restos do palacete Malheiros um carpinteiro
de carros. Aquilo nem já era sombra do que fora.
Com os trabalhos de plantação do futuro Parque,
em cujo âmbito se inclui, perto da nova Avenida António
Augusto de Aguiar, vai, em breve, ser arrazada aquela
ruinaria. Voltei lá outra vez, por isso, a 23 de Feve-
reiro de 1922 e pude, graças à minha falta de jeito,

tirar dois péssimos desenhos do desmantelado palacete,


mais tão fiéis quanto possível. Aqui os dou ao leitor.

Voltemos agora novamente ao ponto de partida.


Seguindo pela estrada de Campolide, que se ini-
ciava na Ct'u\ das Almas, ficava à direita um terreno

(i) Periódico dos Pobres de 20 de Novembro de 1834.


(2) Citados Livros da Decima — Anos 1820 e i832.
— 5i6 —
de forma triangular |que era, ao tempo do terremoto,
de um tal Francisco da Costa e que pegava com as
propriedades do Gaspar José dos Reis. Do
já referido
lado oposto, ficavam terras de semeadura, conhecidas
pelas terras do Zambiijo, depois as propriedades de
Francisco Fernandes, onde hoje assenta o moderno
bairro de Campolide e a seguir as tendas do Vintétn.
Em perto de cento e sessenta anos, dezenas de vezes
mudaram de proprietários aqueles troços de terreno.
Onde acabam as terras do Zambujo inicia se hoje
a rua do General Taborda, restando apenas, embora
restauradas e disfarçadas em prédio moderno, as casas
de Francisco Fernandes, frente à bica de Campo-
em
lido (i). As ruas Vítor Bastos, Soares dos Reis, D. Car-
los Mascarenhas, Marquês de Fronteira e outras, corta-

ram, até ás fortificações, a rústica encosta que descai


violentamente sobre o vale de Alcântara.

Seguindo ainda a estrada, passado o último arrua-


mento do bairro novo, ergue-se, à esquerda, o grande
edifício que foi das Irmãiinhas dos Pobres^ sob a in-

vocação de São Patrício. Estas Irmã\inhas eram as


do velho casarão de São Patrício, que fora palácio do
Viso-Rei D. Garcia de Noronha, ali a S. Mamede-o-
-Velho. Fôra-lhe cedido em 1884 com obrigação de ali
manterem o culto. A nova construção de Campolide
fêz-se de esmolas, angariadas de porta em porta pelas

Esta bica recebia a água de uma mina do monte de Es-


(1)
têvão Pinto (Colégio de Campolide). Agora recebe-a do Alto da
Atalaia (Veloso de Andrade —
Memoria sobre Chafari^es^ eíc,
pág. 3o).
-5i7-
religiosas. Nâo houve dinheiro para fazê-la melhor;
o essencial era haver casa para as três centenas de ve-
lhos que lá se acolhiam, feia, sim, mas útil e agasa-
lhada.
Em Março de todos os anos patenteava-se ao
19 de
Nunca lá fui. Na cerca havia uma
pijblico o edifício.
estátua de São José acolhida numa moita de rosas.
Digo havia porque não sei se a demoliram, o que e' o
mais provável.
Não conheci a capela do Asilo-Colégio de São Pa-
trício, profanada em
de Maio de 1912, por ocasião
6
de uma sessão comemorativa do aniversário da laiciza-
ção deste Instituto de Caridade, mas dizem-me que nada
tinha de notável.
As irmã^inhas abandonaram o edifício em 18 de
Janeiro de 1911. Existiam então ali i52 homens e i33

mulheres.
Aqui há anos, certo jornalista foi visitar o Asilo e
pensou que seria interessante ouvir os velhos acerca
das vicissitudes passadas daquela instituição. Encetou
por isso conversa com uma das asiladas e a certa altura
inquiriu :

^E a respeito de liberdade?

Há liberdade de mais, meu senhor
j
Olhe que !
\

istoda muita liberdade também faz mal 1

E abaixando a voz, rematou



Que isto de eles saírem a passear quando as
i

mulheres saem, olhe que é perigoso!


O que a gente pensa aos oitenta anos. Santo Deus
;
!

(i) Citados Livros da Decima — Ano de 1766.


— 5il

Continuando pela estrada, fica-nos, à direita, o portão


nobre do Casal de Campolide onde se conservam ainda
uns fornos de cal que já lá existiam em 1766 e que
pertenciam então ao Dr. Francisco Eusébio Joaquim
Bele'm(i). Depois surge-nos à direita uma calçada em-
pinada. Era a travessa de Estêvão Pinto.
Subindo-a, e deixando à direita um portão com um
nicho vazio, talvez da casa do Dr. Belém, segue-se uma
casa antiga, tornejando para um beco sem saída, restos
do tal caminho em continuação da azinhaga da Torri-
nha e depois, virando à direita, eis-nos no extinto Co-
;

légio de Campolide. A calçada continua em direcção


do Alto da Atalaia.
Aqui era a quinta da Torre., propriedade em lyôS
de Estêvão Pinto de Morais Sarmento, criado parti-
cular de El-Rei D. José' e seu guarda-jóias. Foi êle
quem deu o nome à travessa.
As eram nobres e tinham pegada uma capela
casas
da invocação de Nossa Senhora da Penha, com sua
torre de sinos onde, por esse tempo, se faziam notáveis
festividades, muito concorridas pelos moradores das
cercanias (i). A festa anual do Santo Nome de Maria
era a 10 de Setembro (2).
Estêvão Pinto, que em 1766 era Secretário do De-
sembargo do Paço e Oficial Maior da Secretaria de
Estado e da Rainha, vivia aí nesse ano (3). Casara

(i) Dicionário do Padre Luiz Cardoso — Freguesia de São


Sebastião da Pedreira.
(2) Diário Eclesiástico para 181 5.
(3) Livros da Decima, já mencionados.
— 5i9 —
com D. Teresa Mongiardino(i). Por sua morte pas-
sou a casa a seu filho mais velho Pedro Caetano Pinto
de Morais Sarmento que foi Escrivão dos Registos das
Mercês. Desta família pouco pude apurar.
Um irmão deste Pedro Caetano, chamado João
Gualberio, era bacharel e fora Escrivão da Mesa do

Sal antes de passar à América como ouvidor do Sa-


bará.
Quis a desgraça que ele perecesse no naufrágio
ocorrido na viagem, deixando órfão Estêvão Pinto de
Morais Sarmento, soldado do regimento de Peniche e
empenhados os réditos do edifício de que era proprie-
tário. Recolheu-se o órfão a casa de seu Pedro
tio

Caetano. Como em lygS fosse mandado para fora do


reino o regimento a que pertencia, requereu Estêvão
Pinto a El-Rei pedindo-lhe fosse entregue o rendimento
do oficio. El-Rei atendeu-o(2).
Em i832 este Estêvão Pinto residia em Campolide
em umas casas do Dr. Inácio Francisco Silveira da
Mota (3).

(i) Esta senhora fez dívidas no valor de dezassete mil cru-


zados, hipotecando a sua quinta, o que levou o filho a pedir à
Direcção da Fábrica das Sedas, onde servira o avô materno, para
a dívida ser paga pelo Cofre do Novo Imposto (Livro g28-2.° de
Representações e Consultas, pág. yS v.°).
Conforme um anúncio na Gajeta de 3 de Junho de 1S12, os
bens de D Teresa Mongiardino foram penhorados neste ano
requerimento da Irmandade do Santíssimo da freguesia da Encar-
nação. De outro anúncio no Diário do Governo de i835, ve-se
que outro Estêvão Pinto, neto deste, deixou uma filha, D. Maria
Isabel, eum filho, David Pinto de Morais Sarmento, o qual rece-
beu a parte da herança que competia à irmã, por desistência
desta.

(2) Processo do Desembargo do Paço (Estremadura) 16S8- —


-14 da colecção existente na Torre do Tombo.
(3) Citados Livros da Decima —
Ano de iS32. Estêvão Pinto
— 520 —
Em i832, morava na quinta da Torre o Marquês
de Pombal, pagando de renda 3ooíí)0oo réis; e em i833
já a propriedade pertencia a um tal Nicolau de Abreu
Castelo Branco (i).

No Diário do Govêriio de 6 de Junho de 1837, apa-


rece o seguinte anúncio, com o n.° i3:

aQuem comprar as casas e quinta da Ton^e,


quiser
na Travessa de Estevam Pinto, achará com quem tra-
tar na Travessa da condessa do Rio «.° /».

Os demais proprietários que teve a propriedade,


não sei. Em i858 era dono dela o poeta João de Le-
mos, tão notável, no seu tempo, pelos versos que com-
punha como pelas suas ideias miguelistas, expostas e
coordenadas em numerosos folhetos de combate e ar-
tigos publicados na imprensa.
Foi a êle que o benemérito e conhecido Padre Car-
los Radmaker, comprou nesse ano esta quinta e casas
nobres para ali fundar o Colégio de Campolide.

l
Quem não conheceu em Lisboa o Padre Radma-
ker ?

Era um erudito, um fluente e elegante orador sa-


grado, um conversador interessantíssimo, muito aceito
e querido em todos os salões elegantes e piedosos da

de Morais Sarmento, foi moço da Real Câmara em 17126 depois

Guarda-Jóias de El-Rei D. João V. Foi êle quem encomendou


para França a célebre Baixela Germain (Inspecção ao Imposto de
Licenças, pág. 88).
(i) Citados Livros da Decima — Ano de i833.
— 521 —
E agora me lembro de uma anedota a propósito
capital.
do assunto. Contou-a a meu pai, muita vez, o velho
Marquês de Penalva cujos ditos de espírito chegaram
a ter voga.
Marquês estava então adoentado e abatido. Uma
O
vez seguia por SãoRoque e eis senão quando encontra
Radmaker. Penalva, católico fervoroso, fez menção
de ajoelhar beijando a mão do virtuoso clérigo que ao
vê-lo assim desmudado lhe disse, depois de alguns mo-
mentos de conversa
— V. Ex.* está abatido, sr. Marquês. ;
Permita
V. Ex." que eu lhe lembre a necessidade de se ir dis-

pondo para dar Deus


as suas contas a
— Estou doente, estou, disse o Marquês entre cho-
cado e surprêzo.
Ficou um instante pensativo e despediu-se.

Quando Radmaker se ia já a afastar, tornou-lhe o


velho fidalgo
— Faz-me um favor Padre Radmaker
l
?

— Pois não, retorquiu imediatamente o interpelado.


— O meu bom amigo onde nasceu
'l
. . . ?

— Em Lisboa, respondeu, admiradíssimo da pre-


gunta, Radmaker.
— j
Ah 1Ainda bem
; ! Agora vou mais aliviado. .

i
Ninguém é profeta na sua terra ! . .

E seguiu, sorridente.
O Padre Radmaker era efectivamente lisboeta. Seu
pai, Conselheiro José Basílio Radmaker, Ministro
o
Plenipotenciário junto do Governo Sardo em 1828, re-
sidira por muito tempo em Lisboa. Radmaker, depois
de estudar até os dezoito anos em Turim,
no Colégio
dos Nobres, foi para o noviciado da Companhia em
Chieri e, em 1848, veio com seu pai para Portugal.
Aqui estudou teologia e tomou ordens de presbítero
em i85i.
— 522

Em 1854, o Padre Isley, Vice -Presidente do Semi-


nário dos Inglesinhos, fundara na rua dos Cardais um
colégio para meninos pobres. Em i855 sucedeu-lhe
Radmaker na direcção da casa e logo pensou em man-
dá-la para sitio mais apropriado. Assim a escola pas-
sou para o largo da Páscoa, depois para a rua de Bue-
nos-Aires e, a seguir, para a travessa do Moinho de
Vento.
A-pesar-destas melhorias não estava ainda rea-
lizada a aspiração do clérigo, e, em i858, comprou a
João de Lemos a quinta da Torre e as casas arruinadas
onde o poeta miguelista morara alguns anos.
O colégio de meninos pobres transformou-se num
instituto de meninos ricos.
Procedeu-se imediatamente grandes reparações no
velho edificio, do qual pouco ou nada se aproveitou. A
pequena capela de Nossa Senhora da Penha transfor-
mou-se numa igreja, para a qual foi lançada a primeira
pedra em 8 de Dezembro de 1879.
A consagração realizou-se cinco anos depois.
O do Colégio, que se chamava de Maria
edifício
Santíssima Imaculada^ é vastíssimo, cheio de luz e de

ar. Do alto da sua torre disfruta-se uma surpreendente


panorama.
Os alunos, aparte os estudos e os exercícios reli-

giosos, tinham um magnífico ginásio, campo de Jogos


desportivos e larga quinta de recreio, Aí foram edu-
cadas entre outras muitas pessoas em evidência, D. Au-
gusto Eduardo Nunes, arcebispo de Évora e orador
sagrado de primeiro plano, e o poeta e dramaturgo
D. João da Câmara, o bondoso e sonhador D. João.
Todos os anos se realizava ali a grande solenidade
~ 523 —
da distribuição dos prémios aos alunos. O último di-
rector foi o Padre Luiz Gonzaga Cabral.
Com o advento da República extinguiu-se o Colégio.
O enorme edifício fechou as suas noventa e quatro ja-
nelas da fachada principal e ficou abandonado, entre-
gue à guarda de alguns polícias.

O Graínha na sua Histoire du


professor Borges
College de Campolide Résidence des Jesuiies à
et la

Lisbonne, tradução de um texto latino escrito por vá-


rios jesuítas, deixou-nos miúda documentação acerca
deste edifício e desta instituição.
A casa foi comprada a João de Lemos, por quatro
contos de re'is. O Padre Martim Rodrigues encarre.
gou-se dos trabalhos das primeiras obras de adaptação,
começando o edifício a ser habitado em dia de São Luiz
Gonzaga desse ano.
O noviciado começou em fins de 1869, tendo o Pa-
dre Radmaker aplicado às obras todos os bens da sua
herança materna, computados em doze contos de réis.

Em i85o o noviciado passou para o convento do


Barro, em Torres Vedras, separando-se a administra-

ção das duas casas no ano seguinte.


Em 1861, pensou-se em comprar o convento bene-
ditino de Tibães, vindo finalmente a adquirir-se o Co-
légio de São Fiel em i863. Os jesuítas, em 1864, esta-
beleceram a sua residência no Convento do Sacramento,
a Alcântara, conseguido a diligências de Radmaker.
De 1860 a 1870 fizeram-se várias obras em Cam-
polide : — murou-se a quinta, fêz-se um novo dormitório^
restaurou-se e adornou-se a capela, acrescentou-se ao
edifício um corpo com dois andares, adquiriram-se
— 524 —
livros, estabeleceu-se uma enfermaria, fizeram-se refei-
tórios separados, construíu-se um hangar na cerca para
recreio no inverno, pôs-se um relógio na torre, plan-
tou-se um pomar, etc.

Eram constantes e avultadas as esmolas, e por isso


as obras não paravam. Em iSyS organizou-se o Ga-
binete de Física, compraram-se móveis e livros e pros-
seguiram as obras de aumento no edifício. A igreja
enriquecia-se de objectos de culto. Em 1874 vendeu-se
ao Governo parte da quinta para a construção da Pe-
nitenciária, por i.ioSíítooo réis e o Cole'gio passou então
às mãos de uma Sociedade de católicos ingleses. A
bandeira inglesa passou a hastear-se, por esse motivo,
no edifício, nos dias santos e feriados.

De 1874 a 1880 obras foram: o au-


as principais
mento da Biblioteca do Gabinete de Física, a cons-
e

trução de uma galeria no Parque, obras na igreja, le-


vantamento de um muro contra a Penitenciária, cons-
trução de mais um dormitório, de um depósito de água,
com bomba, de um refeitório novo e de retretes, e com-
pra de vários livros no leilão Castelo-Melhor. Em fins
de 1879 foi lançada a primeira pedra para a nova igreja.
O Centenário de Camões, em ib8o, foi brilhante-
mente festejado no Colégio. Nesse ano outra festa se
realizou em 19 de Outubro, a inauguração da capela
dos colegiais. Esta capela tinha o tecto de estuque com
dourados, o altar imitando mármore e alguns quadros
com imagens. A obra da igreja continuava e as esmolas
também. De 1881 a 1882, aumentou-se a galeria do
Parque, construíu-se um tanque e fizeram-se melhora-

mentos no Gabinete de Física. Para o templo em cons-


trução vieram de Itália seis imagens de madeira, uma
das quais —
a de Santo Inácio —
não agradou, pelo que
foi enviada para a igreja da Covilhã, mandando-se vir

outra de Marselha. Compraram-se ainda dez sinos de


- 525 —
bronze e vários ornamentos. Em i883 fizeram-se pin-
turas na igreja, a imitar mármore e a claro-escuro,
realizou-se a benção dos sinos, comprou-se um jazigo
nos Prazeres, e mandaram-se vir, de França, livros
para a Biblioteca.
Em 3o de Abril de 1884 realizou-se a inauguração
e a consagração da igreja com a assistência do Patriarca
D. José III. Radmaker pregou. Em 4 de Maio nova
festividade a que assistiu o Núncio Vanutelli. Houve
missa de pontifical e à tarde Te-Deum cantado pelo
Arcebispo de Miiilene.
O Reitor era então o Padre F^rancisco Sturzo, pe-
ritissimo em obter esmolas. Em 18 de Setembro de
1884 passou a reitor o Padre Joaquim Campo Santo.
As obras continuaram. Alterou-se o muro do Par-
que, fizeram-se pesquizas de água, organizou-se outra
enfermaria especial para doenças contagiosas, cons-
truíu-se a torre circular para observações astronómi-
cas, compraram-se mais livros, nivelou-se o terreiro
em frente do edifício, construiu-se outro depósito de
água, fêz-se a escada da torre, galerias de esgotos,
construíu-se um forno, etc. A irregularidade do edifí-
cio, resultante dos sucessivos acrescentamentos foi re-
mediada, levando-se a cabo a nova fachada de três
andares com cinquenta e dois metros de comprido, ca-
torze de largo e dezasseis de alto até à igreja, ficando
as aulas em baixo, o Museu da História Natural e o
Gabinete de Física no segundo pavimento e os dormi-
tórios e quartos no terceiro. Em 1891 estava a grande
obra quási concluída.
O Núncio Vanutelli foi um dos grandes amigos do
Colégio, nunca faltando às suas festas e aos comuns
exercícios espirituais. Outras bemfeitoras foram a
sr.^ D. Maria Joaquina Bertrand que muito ajudou esta
obra com importantes donativos e com uma pensão
— 526 —
anual, e a Marquesa de Monfalim e Terena que ofere-
ceu aos padres quantiosas importâncias, dando-lhes tam-
bém jóias, um órgão, tapeies, vitrais, vestidos para as
imagens, uma espada de prata para a Senhora das
Dores, etc.Para a capela compraram os padres, ban-
cos, lustres de vidro, as imagens de São Joaquim e
Sant'Ana e no fim de 1888 abriram-na ao culto.
Em 1892 e 1893, alargou-se o refeitório para tre-
zentos alunos, passaram os serviços de lavagem de rou-
pas a ser feitos por homens, enriqueceu-se o Museu de
História Natural e acabaram-se com as representações
que os colegiais costumavam fazer pelo Entrudo. As
obras não pararam. Junto aos dormitórios que ocupa-
vam todo o último andar, fêz-se o vestiário e adquiri-
ram-se novas peças para o Museu onde um espanhol
embalsamava os animais. No Parque, fizeram-se outros
cobertos, abriu-se uma cisterna, construíram-se lava-
douros, cocheiras, quartos de criados, casas para os
motores, etc.

Em 1898 os alunos Já chegavam a trezentos e trinta


e cinco. Nesse ano, felizmente, apareceu uma nascente
que deu água para todo o Colégio, tendo-se aberto um
poço, com seis metros de largo e vinte e nove de fundo,
junto à Penitenciária.
Em 1899 já o edifício estava acabado, todo ilumi-
nado a luz eléctrica e abastecido de água.
Pouco depois começava o movimento liberal a inten-
sificar-se e a vida escolar a tornar-se mais difícil. A
campanha contra os jesuítas e contra as ordens religio-
sas acendia-se cada vez mais. Isto, junto ao mau re-

sultado dos exames, deu lugar a que, em 1902, a fre-


quência baixasse para duzentos e cinquenta alunos.
A-pesar-de tudo prosseguiam os melhoramentos :

galeriascom terraços no Parque, uma nova sala para


receber a família dos internos, uma outra cozinha
— 527 —
maior, mais vestiários, modificações no refeitório, etc.
Compraram-se mais livros para a Biblioteca e para-
mentos para a igreja, etc.
De Abril de 1902 a Maio de igo5, construíu-se uma
casa independente para serviço dos padres, um balneá-
riocom vinte e nove banheiras, embeleza-se o Parque,
fazem-se plantações, cascatas, lagos; acaba-se a torre
de quarenta metros, compra-se perto uma casa para
moradia dos empregados e renova-se a capela interior,
consagrando-se à Virgem, cuja imagem, de mármore,
se põe no pórtico do edifício.
De Maio de igoS a Setembro de 1906, acabava-se a
Biblioteca. No tecto via-se um quadro com a Virgem
e três retratos —
Camões, o Padre António Vieira e um
aluno do Colégio oferecendo à imagem a sua inteligên-
cia e o seu coração.
As estantes subiram até à sanca. Neste período a
capela do corredor foi profanada para a instalação de
um dos alunos mais velhos, e construíu-se
refeitório
outra na Enfermaria para os doentes ouvirem missa.
Fêz-se contrato com a Companhia para fornecer água
para o depósito do Parque, e procedeu-se a várias plan-
tações nos seus terrenos.
As escadarias acabaram-se em princípios de 1907,
ano em que se construiu a clarabóia e se restaurou a
enfermaria elevando-se-lhe o tecto. Aumentou-se a co-
zinha, construiu-se um pombal, comprou-se a quinta do
Vai de Rosal (Almada), puseram se várias estátuas da
Virgem no recreio e a do Coração de Jesus, na ca-
pela doméstica.
De Agosto de 1907 a Setembro de 1908, reforma-
ram-se as capoeiras, fizeram-se novos pavimentos nas
enfermarias, construíu-se outro terraço no Parque e
procedeu-se a outros melhoramentos nas cozinhas e nas
canalizações. De então até o final, ainda se transfor-
— 528 —
mou o pátio em jardim, ornameniou-se o Museu, fize-

ram-se espoeiras novas escadas de serviço, a-pesar-


e

-dos padres confessarem ser precário o estado finan-


ceiro do Colégio.
Quando das festas do 5o. " aniversário dêsie estabe-
lecimento, cunhou-se uma medalha comemorativa. Mo-
delou-a um antigo aluno.
Eis o que diz, sucintamente extratada, o texto latino
da História do Colégio, traduzido em francês, pelo
falecido professor Borges Graínha.

l
Foi um pouco fastidioso, não é verdade ? Mas é
história e convém arquivar.

Em 1916, foi feita a cessão do vasto edifício, a


título precário, com todas as suas dependências, à «Co-
missão de Hospitalização da Cruzada das Mulheres
Portuguesas» para ai fundar e manter um Hospital de
Sangue (i). Em 192 foi declarada sem valor a ce-
1

dência que se tinha feito desta mesma casa à «Inspec-


ção dos Serviços de Protecção a Menores» voltando à
posse da «Comissão Jurisdicional das Extintas Congre-
gações Religiosas (2). A primeira cedência ainda deu,
pelo menos, a ceremónia da inauguração do Hospital,
em I de Dezembro de 1917, a que assistiu o Presi-
dente da República. Esta nem isso.
Actualmente o vasto edifício do Padre Radmaker
e' umquartel. Está ali instalada uma das unidades mi-
litares da Guarnição de Lisboa: Caçadores 5. —

(t) Diário do Governo de 3 de Outubro de 1916.


(2) Diário de Noticias de 1 5 de Novembro de 1921.
5^9 —

O sílio de Campolide — outrora tão dilatado — às


abas de Lisboa, tinha, em
1742, apenas dez fogos.
Resumia-se entãO;, na parte incluída na área da pa-
róquia de Santa Isabel, ao pedaço de estrada que ia da
Cruz das Almas à Gircunvalaçao. Só de i8o5 por
diante é que as listas paroquiais o classificam de es-
trada. O São Sebastião da Pedreira.
resto pertencia a
A cortina de muro desde
a Cruz das Almas ao cha-
fariz de Campolide foi feita no tempo em que era pre-
sidente do Senado o Conde de Oeiras, filho do Marquês
de Pombal (i). Este chafariz ou bica recebia água de
uma mina na direcção do monte da quinta de Estêvão
Pinto (2). Nesse troço da estrada morou, de 1757 a
1758, o Desembargador Manuel José de Faria e Sousa,
e em 1766, D. José de Sousa, Deão da Sé de Braga,
perto de uma casa a que então chamavam, não sei por-
quê, 3i Parreirinha{?>).
O portão, que tem um
nicho na parte superior, e
se encontra da travessa de Estêvão Pinto,
à entrada
à direita, era o do Casal das Grades^ que foi de D. Ma-
ria Inácia Braamcamp, bem como a casa que faz es-
quina, do mesmo lado, para a rua de Campolide. A^
casa hoje do pintor Roque Gameiro, era de Duarte
Ferreira Pinto (4).

(i) Códice 646 da Colecção Pombalina da Biblioteca Nacio-


nal, pág. 279 a 286 v."
(2) Diário Eclesiástico para i8i5 (10 de Setembro), pág. Sj.
(3) Rol dos Confessados da Freguesia de Santa Isabel— Anos
citados.

(4) Informações do meu consócio e amigo sr. António César


Mena Júnior, a quem devo muitas outras que aqui são aproveitadas
sobre o sítio, moderno, de Campolide.
VOL. IV 34
— 53o —
A parte que pertencia a São Sebastião da Pedreira,
era a mais vasta e povoada de quintas. Gomo os
Róis desta freguesia se perderam, pouco posso adiantar
quanto aos seus moradores e proprietários. Apenas
sei, por referências dos registos de óbitos, que eram

frequentes por aqui es assaltos e os crimes. Os fale-

cidos por motivo de estocadas, facadas, tiros, desas-


tres, são frequentes. Sítios isolados e apartados de-
viam de ser.
Em 1616, morre um Duarte de Pavia, aqui morador,
única pessoa de qualidade que encontrei nomeada nos
livros (i).
Outra indicação que lá vi foi a de que um tal Diogo
Correia era o dono da quinta do Rabequinha em
1753(2).
Mais nada.

O populoso bairro moderno que continua descendo


até o vale, é composto de ruas e casaria sem carácter,
tudo em estilo aMestre de Obras».
Na rua Soares dos Reis^ fica a oficina cerâmica de
Mestre José Baudoin, figura simpática e pitoresca de
industrial popular que teima, até nos reclamos, cha-
mar-se Mesteié. O nome engola a categoria. As faian-
ças de Campolide, são bonitas e vendem-se.
Na rua de Carlos Mascarenhas moram três grandes
figuras do nosso tempo: o grande arqueólogo Leite de
Vasconcelos, o sábio camonianista Dr. José Maria Ro-
drigues e o filólogo sr. José Joaquim Nunes (3). Com

(i) Livro dos Óbitos da Freguesia de São Sebastião da Pe-


dreira—Ano citado.
(2) Idem.
(3) Este faleceu em Julho do ano corrente (1932).
— 53i —
a residência do Dr. Augusto de Castro, nesta mesma
rua, actualmente nosso Ministro em Roma, são quatro
os académicos que dignificam a serventia. No mesmo
arruamento está o atelier do escultor Maximiano Alves.
Outro artista, o pintor Frederico Aires, tem o seu,
na rua Marquês de Fronteira.
Em Campolide, reside tambe'm o pintor Roque Ga-
meiro, na Travessa de Estêvão Pinto.
O novo bairro, tem um Cinema (na rua Leandro
Braga) e uma associação recreativa e desportiva [Cam-
polide- Club).
O progresso chega a toda a parte.
CAPITULO XXII

Sumario: Uma vista de olhos sobre o Vale de Alcântara — A er-


mida da Senhora Sant'Ana da quinta de Sebastião José de
Carvalho —
A devoção e o engenho do ermitão cego José
Soares de Oliveira —
Um manto oferecido por D. João VI —

O Asilo de Espie Miranda O novíssimo bairro de Campo-
lide e as suas barracas — Inauguração de uma nova capela
e de uma escola —
Percorre-se o Vale de Alcântara desde
o «Casal do Grilo» à Pimenteira —
As «quintas do Inferno»
e odo Sargento-Mór» e do oCabrinha» —
Uma paragem a
propósito dos «Cabrinhas» e de D. PVancisco Manuel de Melo
— Divaga-se sobre Lisboa
as fortificações de —
Os planos de
Francisco de Olanda — Projectos
do Marquês de Castelo Ro-
drigo em 1625 e do de Montalvão em 1646 —
D. João IV or-
dena à Câmara o início das obras —
Schomberg encurta a
linha defensiva da capital —
Continuam as obras Providên-—
cias em 1701 —
Os engenheiros pombalinos pensam de novo
na fortificação —
Os redutos da Atalaia e de Campolide —
Evoca-se o ataque das tropas realistas a Lisboa, em i833 —

A luta no bosque de Palhavã Episódios do cerco Os ge- —
nerais do exército liberal —
É levantado o cerco e Saldanha
cumpre a sua promessa —
O fim da luta fratricida Consi- —
derações gerais sobre o desenvolvimento da cidade Acaba —
a obra.

Convido o leitor a descansar num dos bancos do


vasto terreiro subjacente ao antigo Colégio de Campo-
lide e a lançar os olhos sobre o verdejante vale.
Lá em baixo rumoreja, com as águas das últimas
chuvas, a, habitualmente seca, ribeira de Alcântara,
recortam-se os casais murados de pedra solta pelas
encostas povoadas de oliveiras melancólicas; além
avulta a moita de eucaliptus do Casal do Brito onde
— 534 —
morreu Possidónio da Silva, esse prestante cidadão
que foi o benemérito fundador do Museu do Carmo;
ao fundo espalmam-se, por sob a quinta da Mineira, o
Ferro de Engoinar e a Rabicha, as duas hortas que
lembram as patuscadas da boémia, o gemer da gui-
tarra indolente nas merendas domingueiras, a estroi-
nice alegre e fidalga de há cinquenta anos ; e, para lá

dos arcos do Aqueduto das Aguas Livres, que poisam


no valle os seus pegões colossais, sorri, entre um
amontoado de casaria que se desmorona aos poucos,
a ermida da Senhora de Sant'Ana, sobre um adro
semi-circular onde outrora acampavam os romeiros da
devota imagem.
Este templozinho merece algumas palavras.

Poucos anos depois do terremoto pertencia esta


ermidinha às casas e quinta de Sebastião José de Car-
valho e Melo, primeiro Marquês de Pombal. Di-lo o
Padre Luiz Cardoso, no seu citadíssimo Dicionário
Manuscrito. Sebastião José era grande proprietário
por estas bandas. As terras do Carvalhão vinham
desde o alto dos Sete Moinhos e descaíam para a ri-
beira, tomando ainda parte da encosta contrária, ocu-
pando a linha de cumeada desde a «Cruz das Almas»
ao referido alto.

Houve tempo em que no dia da festa da Senhora


e no primeiro domingo do Advento, se povoava este
recanto arrabaldino de numerosos romeiros (i). A er-

(i) A Gaveta de 19 de Julho de 1796, anunciava para 7, 8 e


9 de Agosto desse ano, as festas com Feira Franca, na Senhora de
Sant'Ana,
— 535 —
midinha engalanava-se toda, fazia-se um esboço de
feira ; comia-se, bebia-se e cumpriam-se promessas
atestadas por alguns ingénuos quadrinhos que ornamen-
tavam o templo. Tudo acabou e quem perdeu foi a
casa da Senhora. Entrou a arruínar-se e se não é tê-la
amparado um dia a devoção de um ermitão, vinha tudo
abaixo.
José' Soares de Oliveira se chamava o devoto da

Senhora de Sant'Ana, falecido há anos. Foi para ali


cuidar da ermida em 1894, se não estou em erro, e
nunca a força de vontade e a devoção fizeram maiores
prodígios. José Soares de Oliveira foi a reprodução
exacta dos ingénuos e lendários ermitões de que nos
falam as crónicas vetustas. Dedicou-se de alma e co-
ração à obra que constituía o seu único pensamento.
Tudo quanto não fosse a ermida e o seu culto, era
nada para êle.

Quando êle ali assentou arraiais a ermida estava a


cair. Faltava-lhe metade do telhado e havia lá dentro
cobras e rataria a monte. Pôs mãos à obra, cuidou,
limpou, e alindou; fêz-se pedreiro, carpinteiro e pintor,
e dois anos depois, o atesta uma lápide, posta ao
como
alto da fachada, em
3o de Abril de 1896, concluiu os
seus trabalhos de restauração (i). ^ Com que dinheiro?
— preguntar-me-ão. Com as suas economias. Soares
de Oliveira levou para lá 328í!íooo e lá os deixou em
argamassa, em madeira e em tintas, j
E foi isto em
nossos dias
Pois a fortuna, que às vezes tão propícia se mostra
aos maus, foi adversa para com o bondoso ermitão,
j
Pouco depois de concluída a obra em que pusera todo
o oiro da sua bolsa e do seu coração, cegou !

(i) A lápide diz: Restauração desta capella em 3o de abril de


i8g6 por José Soares de Oliveira.
— 536 —
Era lícito supor que ferido por tal calamidade, de-
sistisse o ermitão de cuidar da sua amada capelinha,
mas não. Soares de Oliveira continuou, paciente e
resignado, a velar pelo desamparado templo. Fez os
bancos para os devotos, a grade que separa a nave da
capela-mór, o confessionário e, inclusivamente, foi ele
quem construiu um aparelho da sua invenção para pro-
dução de acetilene, sem perigo de explodir, a-fim-de
iluminar a ermida nas sextas-feiras à noite quando,
envergando a sua batina preta, fazia a ceremónia da
Via-Sacra muito concorrida pelo povo das proximi-
dades.
Foi ele quem fez tudo. Os seus 328íí)ooo réis ope-
raram milagres, e foi ainda com eles que comprou o
órgão que êle mesmo tocava sentidamente sem saber
uma nota de música. A escola que funcionava no pre-
diozinho pegado fora fundada por êle. A mulher era
a professora, mas que o perseguia, levou-a a
a má-sina
morrer no hospital depois de lhe ter dado muitos des-
gostos. Falecida a mulher, contratou uma professora,
mas pouco tempo passado teve de a despedir por não
se portar como devia. Tudo conjurado contra o pobre
cego.
;
Engenho sublime ! O ermitão-cego, afora o que já
referi, ainda dotou o povo do Vale com um relójio,
feito por êle, já se vê, porque êle era tudo ali. O re-
lójio era de uma primitividade encantadora. Duas cai-
xas de lata, soldadas uma a outra, de onde a água, que
continham, ia caindo num prato que se abaixava com
o peso do líquido de quarto em quarto de hora. Um
grande mostrador acusava, com um único ponteiro,
mercê de uma roda dentada, as horas, com uma pre-
cisão absoluta, j
E era por esta simples clepsidra que
o povo se regulava
Um dia o cego adoeceu. Desamparado totalmente
— 537 —
de recursos, recolheu, por esmola, ao hospital da Or-
dem Terceira de São Francisco entregando a capela,
bem como o colégio e a catequese à professora D. Emí-
lia Gaspar. Depois morreu, Ah como lhe devia ser
j

doloroso na última hora pensar no abandono a que fica-

ria votada a ermida que tanto amara!


Hoje ninguém fala dele. A ermidinha está nova-
mente arruinada, fendidas as cantarias, esboroadas as
paredes.
Nunca mais se fez a Vía-Saa^a às sextas-feiras, nem
se acendeu a luz de acetilene, nem se ouviu o órgão
melancólico. Aquilo está morto como ele.

A ermida tem no altar a imagem da Senhora. O


arco da capela-mór, fendido e periclitante, tem ao alto
uma inscrição que não consegui decifrar. Nada tem
de notável a não ser, dentro de uma arca, um manto
de Nossa Senhora, de seda branca bordada a oiro,
que lhe foi oferecido, dizem, por El-Rei D. João VI.
A ermida pertence actualmente à freguesia de São Se-
bastião da Pedreira.
Tudo isto é pouquíssimo, mas não consegui apurar
mais nada.

À sombra do Aqueduto fica ainda o edifício do


Asilo de Espie Miranda, na quinta da Mineira, fun-
dado em 24 de Agosto de 1900, e que sustenta vinte e
sete velhinhos. Os asilados foram prejudicados recen-
temente com o desenvolvimento do bairro vizinho, esse
indisciplinado e pitoresco «Novo Campolide» todo feito
— 538 —
de casas de adobe, barracas de tabiques e zincos, sem
plano, sem alinhamento, à mercê das necessidades ur-
gentes dos alfacinhas sem casa, a galgar pela encosta
poente do vale.
A nascente que dava água para o Asilo, e lhe re-
frescava a horta, foi desviada pelos moradores, em su-
cessivas aberturas de poços. E neste bairro que se
encontra a famosa taboleta do Barbeiro Semi Ferro
Viário digna rival daqueles Letreiros Célebres colec-
cionados em 1806, por um Taful de Luneta (i).

Perto fica o outro bairro — chamado da Liberdade


ou das Minhocas — perto do apeadeiro do Rêgo. Tanto
um como outro nasceram, como os seus antepassados
de 1755, da crise de habitação urbana. Os motivos da
crise é que foram diferentes. A variedade, a indisci-
plina e a miséria, são as suas características. A en-
trada de Lisboa estes dois bairros são desagradabilís-
simo cenário (2).

(1) Vide o meu trabalho Letreiros célebres incluído no vo-


lume Relação de vários casos notáveis e curiosos, etc, Coimbra, —
1925.
(2) O Diário de Noticias de 28 de Dezembro de 193 1 trazia
uma notícia bem feita, tocante, sincera. Transcrevo-a aqui por-
que diz respeito a este bairro simpático, não pela sua beleza, mas
pela sua pobreza :

"No bairro da Liberdade, para lá de Campolide, à beira do


Aqueduto das Aguas Livres, mora uma gente que dá gosto vê-la,
de simples e de honrada que é. A fantasia de quem nunca andou
por aquele sítio, emprestou-lhe famas indevidas, tenebrosas, de
miséria negra e de vileza turva, que não tem. É um bairro sim-
pático esse bairro da Liberdade. É pitoresco, É amável. É bom.
«Ainda ontem bem claramente o mostrou, a quantos lá foram
para assistir às cerimónias da benção de uma capela nova, e à
festa da inauguração de um edifício escolar anexo, com duas alas,
para ensino primário de sua população infantil. É graciosa e ma-
neirinha essa construção, Fica bem no coração daquele bairro
539

Fronteira à ermida de Sant'Ana fica o antigo Casal


dos Grilos e depois a Qiiintinha que deu o seu nome

à calçada que vai juntar-se com a dos Mestres, em


frente às velhas barreiras de Campolide. Para lá, na
encosta, as terras de Sebastião José, depois chamadas

simples. Ergue-se a capela a meio, com sua torre. Para a direita,

e para a esquerda, ficam as instalações escolares, aulas para a


pequenada, duzentas e cinquenta crianças, meninas deste lado, pe-
tizes daquele. .

«Melhoramento que se deve à iniciativa do Albergue de São


Sebastião da Pedreire, recebeu-o com alegria toda aquela gente.
«E assim, foram pela população do bairro acolhidas com ter-

nura e carinho, as altas personalidades oficiais e eclesiásticas que


para esse fim ali foram.
«Ás nove horas da manhã benzeu a capela o sr. Arcebispo de
Mitilene. Disse missa, ouvida com devoção e deferência por assis-
tência numerosa. Deu comunhão a crianças e adultos.
«Depois, à tarde, às i5 horas, houve na escola uma sessão
solene inaugural. O mesmo prelado presidiu, tendo junto de si,

na mesa de honra o prior da freguesia de São Sebastião da Pe-


dreira, e os srs. Zuzarte de Mendonça, dr. Silva Passos, da Junta
Geral de Saiide, e o regedor António Gomes, como representante
do sr. governador civil.
«Fizeram-se discursos cativantes. Falou o sr. Fernando Ama-
ral, presidente da assembleia geral do referido Albergue o sr. Pinto ;

de Araújo ; o rev. Maurício, assistente oclesiástico da capela ; o


rev. Pereira, prior da freguesia Raul Eduardo, do grupo local e
;

recreativo «26 de Maio» o regedor Gomes; o dr. Silva Passos,


;

e por fim o sr. arcebispo, numa bela oração, rematada pela sua
benção.
«E todo o acto decorreu num ambiente de solicitude e cari-
nho, para timbre do Bairro da Liberdade, o completo desmentido
àqueles que o julgam um sítio esconso e torvo da capital, e não
lugar onde vive uma gente simples, trabalhadora e agradável, que
dá gosto vê-la».
— 540 —
do Braamcamp (i) e, para baixo ainda, seguindo pela
Ribeira, a quinta do Inferno que
foi de Luiz Anastácio

da Fonseca e onde havia uma ermida de Nossa Se-


nhora da Conceição (2). Mais para o sul avista-se a
quinta da Pimenteira, notabilizada pela sua água, e
depois a do Sargento-Mór, com a sua ermida dedi-
cada a Nossa Senhora da Piedade (3).

Continuando a descer a Ribeira iríamos ter á quinta


do Cabrinha que foi de D. F^rancisco Manuel de Melo
e onde se diz ter morrido o erudito e elegante autor da
Carta de guia de casados{â^. Na carta 28.* da pri-
meira série das suas Cartas Familiares, diz ele

«... se V.S. quiser que domingo muito por bem


nos vamos ao campo, e a huma quintinha que eu lá
tenho, chegue-se V. S. por aqui, faremos romaria até
Alcântara».

Deve esta carta ter sido escrita em 1661.


Da «Torrei) foi êle transferido em i65o; em 4 de
Abril desse ano já estava no Castelo, como se conclui
da carta 75.*, da segunda Ceniiíria.

(i) Gerardo Wenceslau Braamcamp de Almeida Castelo

Branco era o senhor do domínio directo das terras do Carvalhão,


(2) Em 16 de Setembro de 182 houve um incêndio nas casas
1

desta quinta, de que já se tem falado por várias vezes nesta obra.
Distinguiu-se nos salvamentos um soldado dos Voluntários Reais
de Milícias, chamado Miguel José, a quem a Direcção da Fábrica
das Sedas, à qual a propriedade pertencia, premiou (LiVro ^."-92/
de Decretos e Avisos da Direcção, pág. 49 v.", 55 v.°, 56, 56 v.'

e 57).

(3) O Sargento-Mór era o nosso conhecido Domingos do


Amaral Valente. A Memória Paroquial (Padre Luiz Cardoso)
chama a esta ermida «de Santo António».
{4) Nos Livros de Óbitos de Santos-o- Velho, faltam aqueles
que respeitam ao ano em que este escritor morreu.
— 54* —
Em 1812 já se chamava «do Cabrinha», di-lo um
mapa-plania desse ano da colecção do meu amigo Je-
suíno Artur Ganhado (i). Em i3 de Março de 1849
foi vendida, por D. Ana Rita Botelho de Groot, a Joa-
quim José dos Anjos que, em 27 de Setembro de 1873,
a vendeu a uma Companhia de Estamparia e Tintura-
ria que hoje a possui juntamente com a quinta da Lam-
parina, comprada em 4 de Agosto de 1882 a José das
Neves e Silva e a sua mulher D. Adelaide Guilhermina
das Neves e Silva, O domínio directo pertencia aos
Meios, tendo passado, em i863, do Conde de São Lou-
renço a seu filho o Marquês de Sabugosa e deste para
D. Jorge José de Melo, Conde do Cartaxo que o ven-
deu à Companhia, por 800.T000 réis por escritura feita
nas notas do tabelião Tavares de Carvalho, em 8 de
Junho de 1907.
Se continuássemos descendo a Ribeira iríamos ter
à vetustíssima Oría-Naina, a avoenga remota da Al-
cântara actuai, a Fonte que à divindade «Navia» con-
sagraram os habitantes da Alis-Ubho.

(i) Esta alcunha de Cabrinha, aplicada aos desta família, man-


teve-se pelos séculos fora.D. Francisco de Melo Manuel da Câ-
mara, que Governador do Maranhão de 1806 a 1809, teve a
foi

mesma alcunha. Era descendente do autor das Epanáforas. A


livraria, vendida por seu filho D. João de Melo Manuel da Câ-

mara, primeiro Conde da Silva, ao Estado, foi conhecida pela «Li-


vraria do Cabrinha». O Governador do Maranhão era, dizem,
muito moreno. A um trisavô seu, Antão Rodrigues da Câmara,
instituidor de um morgado na Ribeira Grande (S. Miguel) também
chamavam o Cabrinha.Ao que consta a mãe deste Cabrinha (Ma-
ria Rodrigues) era preta, e daqui o amulatado da família. Ao pró-
prio Antão Rodrigues chamavam, igualmente, o «mulato».
O pintor jesuíta, Domingos da Cunha, era conhecido também
pelo Cabrinha «por suas achinadas feições e pálidas cores». O
achinado refere-se a traços fisionómicos chinas e a palidez está
de-certo pelo terroso-amulatado da pele {D. Francisco Manuel de
Melo — Esboço Biográfico, pág. 5, 6^ 265 e 2G6).
— 542 —
É bom que a loquela se seque junto da secular
fonte, Senão onde iríamos parar
j

Olhemos agora de novo para a vertente norte e


poente de Campolide onde alastravam as terras do
Casal do Frick ; depois para as eminências do nascente.
Lá está uma ruína notável, afogada em ílorescências
campesinas, que vai merecer o meu reparo. E o forte
de Campolide ou de Falhava, um dos poucos vestígios
das fortificações lisboetas do século xvii.

Depois da cerca goda ou moura, do muralhão de


D. Deniz, e da cerca Fernandina, estudadas minuciosa
e proficientemente pelo engenheiro sr. Vieira da Silva,
a primeira notícia que se oferece dar ao leitor sobre a
defesa militar urbana, é a do plano, como todos os

dele, imaginoso, do pintor-poeta Francisco de Olanda,


contido na sua «Memória» —
como diríamos hoje —
intitulada Da Fábrica que falece á cidade de Lisboa.
D. Manuel mandara-o a Itália estudar o assunto o
que não o impediu de dizer : —
Nunca se aproveitaram
de mim por culpa do tempo. Antes de morrer quis
deixar essas lembranças do seu mérito e das suas ideas.
Quanto às fortificações de Lisboa diz : —
E consyrando
quão descofnposta está Lisboa de fortaleza e quão de-
sarmada do que lhe muito ifnporta... Isto no Prólogo.
No Capítulo III em que trata especialmente Do Cas-
telo e Bastiães e Muros [que convém a Lisboa^ lembra
fazer-se um novo forte no sítio da velha Alcáçova, me-
tendo dentro dele os montes de São Gens e da Graça,
cercar-se a cidade de novos muros e portas ou repa-
rarem-se os antigos, tudo à maneira de Itália, com te-
jolo cozido e pouca cal «que resiste muito mais às bom-
bardas».
- 543 -
Entendia também que se fortalecessem de novo São
Gião e Belém, tanto mais que o primeiro forte não
estava acabado e se fizessem alguns baluartes fortes do
lado da Trafaria e da Adiça, ficando um defronte da
Torre de Belém, onde estava a Torre Velha, e outro
fronteiro a Santa Catarina de Ribamar que era em seu
juízo a melhor fortaleza de Lisboa, baluartes estes todos
razos e de tejolo.

em 1625 que pela primeira vez se pensou a sé-


Foi
riona fortificação da cidade. A velha cerca de D. Fer-
nando transitara já para os domínios da arqueologia,
afogada dentro da casaria de extra-muros. Em Junho
desse ano, resolveu a Câmara, por ordem dos Gover-
nadores do Reino, se fizessem trincheiras pela banda
do mar, com paus de pinho e fachina, desde os Co-
bertos até o Cais do Carmo; porém no princípio do
mês seguinte o Marquês de Inojosa, traçando mais
largo plano, pôs a Câmara em dificuldades pecuniárias
extendendo a linha das trincheiras desde as casas do
Marquês de Castelo Rodrigo até às do Duque de Aveiro,
e ainda por cima com redutos nestes pontos e no Ter-
reiro do Paço. Os vereadores que contavam com uma
despesa de quatro mil cruzados, tirada do Cofre do
Real de Água, viram-se obrigados a negociar um em-
préstimo sobre as rendas da Câmara, tanto mais que o
Marquês se propunha ainda aumentar a traça das for-
tificações até Alcântara (i).

As muralhas de D. Fernando tinham sido vistori-


zadas em Março desse ano e o relatório chamamos-—
(i) Elementos para a Historia do Município de Lisboa, t. iii,

pág. 187 a 193.


— 544 —
-lheassim —
dos engenheiros e peritos, que foram Nuno
de Mendonça, Gonçalo Pires de Carvalho, João de Frias
Salazar e os arquitectos de El-Rei, limita-se a propor
reparos meúdos, cônscios, como certamente estavam, da
inutilidade militar de tais fortificações. Compor ameias,
tapar aberturas e postigos, derrubar alpendres e casas
encostadas aos muros, consertar parapeitos, desobe-
truir os muros de edificações miúdas e pouco mais,
foram as obras alvitradas pela vistoria. Viu o sobe-
rano o relatório, e resolveu que apenas se reparassem
os muros e as ameias, deixando para outra ocasião as
demolições das casas e alpendres (i).
Em 9 de Junho de i636 propôs a Câmara a D. Fi-
lipe III que fosse ordenada nova diligência aos muros
da cidade, por não querer, ao que parece, responsabi-
lizar-se pelas faltas que ao depois lhe fossem assacadas,
declarando também ao monarca castelhano que tinha
tudo, a postos, para, de um momento para o outro, se
fazerem as demolições indicadas na vistoria de 1625(2).

Veio depois o i." Dezembro de 1640. Os quatro


mil cruzados que o «Cofre do Real de Água» dera para
as trincheiras, em cuja obra, então, superintendia Jorge
de Melo, estavam já esgotados em Julho de 1641. A
Câmara não linha onde ir buscar os dez mil cruzados
necessários para a conclusão dos trabalhos de defesa da
cidade. Os sessenta dominação castelhana
anos de
deixara-a esgotada. A
muito custo os almoxarifados da
Agua, da Carne e do Vinho, poderiam dar, dos seus

(i) Citados Elementos, pág. 162 a 172.


(:) Idem^ tomo iv, pág. igS e 194.
— 545 —
rendimentos, os dois mil cruzados que se lhe pediam (i),

Com as ameaças de Castela, impôs-se novamente


a todos os espíritos dirigentes, a necessidade de forti-
ficar a capital. Em
Outubro de 1645 aprestava-se em
Cadiz a armada de Castela, e os seus terços começa-
ram a defrontar a raia alentejana. Era preciso acudir
a Lisboa. O Mestre de Campo General Marquês de
Montalvão, foi nomeado por D. João IV para superin-
tender na defesa da cidade. Fizeram-se algumas trin-
que se tirou dos na-
cheiras nas praias, e a artilharia
vios da armada veio guarnecê-las mas tudo isso era
;

pouco para o que necessitava fazer-se (2).

Em 1646, ou fins de 1645, surge-nos o Memorial que


o Marquei de Montalvão offereceu a el-rei D. João IV
sobre o modo da defensão e conservação do reino, do-
cumento muito interessante que se esplana em conside-
rações políticas económicas e se refere a tudo quanto
e

diz respeito à defesa do país e mobilização das suas


tropas, mas que, no tocante à defesa da cidade, pouco
ou nada diz. O que se conclui dele é que o Marquês
se contentava com os reparos já propostos em 1625 e
até com os planos do Marquês de Inojosa que se resu-
miam em evitar que o inimigo, porventura desembar-
cado em Peniche, se aproximasse da capital, dando-lhe
batalha em Torres Vedras ou na Cabeça de Monta-

(i) Citados Elementos, pág. 431.


(2) Idem, pág. 620. O Príncipe D.Teodósio teve um projecto
para fortificar a cidade, tornando-a numa ilha {Vida do Príncipe
D. Theodosio, pág. 1 10 e ui). Já no Sitio de Lisboa dõ Luiz
Mendes de Vasconcelos se alvitra o mesmo.
voL. IV 35
— 546 —
chique, pontos estes que eram já, para os engenheiros
militares desse tempo, as linhas de defesa de Lisboa (i).

Quando, em 1648, D. João IV suscitou ao Senado


a necessidade da obra de fortificação, este, em seu
assento de 3 1 de Junho desse ano, resolveu seguir o
desenho e planta do Marquês de Montalvão, fazendo
para isso mais um dos seus habituais empréstimos.
Os donos das casas encostadas às muralhas da cerca,
conforme o plano do Mestre de Campo General, seriam
obrigados à reformação e a dar passagem livre, caso
fosse necessário. Tudo isto dá a entender que nada
de novo se continha no desenho do Marquês que se re-
portava, como já disse, às providências antigas do tempo
dos Felipes (2).

O decreto de D. João IV de 27 de Outubro de i65i


e os do Príncipe D. Teodósio de i5 de Fevereiro e de
II de Março do ano seguinte dirigidos ao Senado, or-

denando que se principiassem as obras, aplicando-se


para elas os cinco réis na água, três no vinho e dois na
*
carne, que o povo de Lisboa oferecera ao terceiro Fe-
lipe, e o resto dos Vinte mil cruzados que se tinham

apartado para as trincheiras em i65o, dão-nos a enten-


der ter-se efectuado neste ano qualquer diligência ten-
dente a defender a capital do perigo castelhano (3).
Efectivamente assim fora.
Estudara-se uma novo linha de fortificações em i65o,_
tão grandiosa como difícil Esse projecto
de realizar.
— que era dos engenheiros João Gilot (holandês), Le-

(i) Citados Elementos, tomo v, pág, 118 a i25 (nota).


(2) Idem, pág. it3 a 126.
(3) Idem, pág. 342 a 343.
— D47 —
gard (francês) e Cosmander, o famoso jesuíta peritís-
simo em tais trabalhos —
deveria ser executado sob a
direcção do Marquês de Marialva. Chegaram a fazer-se
alguns trabalhos, um dos quais foi o forte do Sacra-
mento, onde a cinta de vales e redutos principiava, se-
gundo o projecto, seguindo depois até N^ossa Senhora
dos Prazeres. Arco do Carvalhão e Campolide, rema-
tando na Crui da Pedra, onde deveria ficar o último
dos trinta e seis baluartes (i).

O forte do Sacramento foi fundado em uma quinta


que, em Alcântara, possuía o Intendente Geral das
Obras, Marquês de Marialva, e na qual residiu desde
i635, ano em que se casara com D. Catarina Couti-
nho. Só em 1640 passou para o seu palácio do Loreto.
Como se sabe foi o Marquês a alma da conspiração
de i638. ^E quere saber o leitor onde se reuniam os
conjurados ? Ali mesmo na quinta, sob uma copada
árvore, num local sobranceiro ao Tejo, Essa árvore
histórica ainda lá existia, em 1862, sobre a muralha do
velho baluarte (2). Com as obras do moderno quartel
de marinheiros e da sua esplanada desapareceu essa
relíquia patriótica.

Foram longas e demoradas as obras. Quando D.


João IV^ morreu, em ó de Novembro de i656, pouco
ou nada estava feito. A conclusão do plano urgia.
Ninguém sabia até onde nos poderia levar a sorte
das armas e tornava-se, pois, mister apressar a defesa
da capital.
D. Afonso VI, ou por outra Castelo Melhor, man-

(i) Mappa de Portugal, pelo Padre João Baptista de Castro,


vol. iii, pág. 8i a 83, da edição de 1763.
(2) Archivo Pitoresco, vol. v, pág. 252 — Artigo de Vilhena
Barbosa.
— 548 —
dou que se activassem os trabalhos. Por esse tempo
chegava, porém, a Lisboa o Marechal Conde de Schom-
berg, e posto ao corrente do plano, aprovou-o. Achava,
o hábil general, larga em demasia a linha de defesa e
opinava que, não sendo possível guarnecê-la eficazmente,
se diminuísse a sua extensão aproximando-a da cidade.
Tal opinião fora tambe'm a de Gilot que chegara a
apresentar um plano idêntico ao de Schomberg, pro-
pondo que a cinta fortalezada principiasse na Pampii-
Iha, onde depois se fêz o convento de São João de Deus
(depois quartel de infantaria 2), seguisse ao convento
da Estrela (hospital militar), depois ao Noviciado da
Cotovia (Escola Politécnica) e dai ao Monte de São
Gens, vindo a fechar-se em Santa Apolónia^ apenas com
dezasseis baluartes.
Propôs Schomberg que se parasse na execução do
plano de Legart e de Cosmander. Foi aceita a pro-
posta. Apenas se tinha concluído os fortes do Sa-
cramento e da Cru:{ da Pedra{\).
O do Livrametito, junto ao convento das Necessi-
dades, ficou também concluído, mas esse já fazia parte
das fortificações do projecto de Gilot, perfilhado depois
por Schomberg.
A muralha que, em 1860, formava o muro da
quinta dos Viscondes de Manique, era ainda resto das
obras de i656. O velho reduto incompleto que o leitor
além vê é outro vestígio dessas fortificações.

O decreto de 10 de Fevereiro de i656, ordena ao


Senado que acrescente, para a conclusão da obra de

(i) O baluarte de Alcântara principiou a levantar-se em 22 de


Dezembro de i652. Diz-se a pág. 1 14 do tomo ui do Sumario de
Varia Historia de Ribeiro Guimarães.
— 549 —
defesa da cidade, a consignação de um conto de réis
cada mês, do dinheiro dos novos impostos, que mais
tarde (Fevereiro de 1637) também subsidiaram o pa-
gamento aos artilheiros que o Conselho de Guerra re-
solvera exercitar para a mesma defesa (i).
O inverno de lõSq a 1660 destruiu, ao que parece,
parte dos valos que se tinham feito em redor da cidade.
Isto, e o facto do povo ser coagido a trabalhar nas ca-
vas, deu em resultado uma reclamação do Juiz do Povo
quanto à forma de pôr em execução as determinações ré-
gias no tocante ao prosseguimento da obra de pouca
ou nenhutna consideração para a defesa da cidade.
A coacção aos trabalhos da circunvalação dava tris-

tes resultados, povo não podendo cuidar do


pois o
amanho da sua vida achava-se desprevenido de dinheiro
para pagar as constantes contribuições. Foi essa recla-
mação presente a El-Rei, com uma consulta da Câ-
mara, em 12 de Abril de 1660. A Câmara lembrava
que os trabalhadores para as obras deviam ser esco-
lhidos pelos róis das freguesias, não havendo distinção
para os ricos, como já se tinha feito anteriormente,
evitando-se assim (ó ingenuidade municipal!) as recla-
mações do povo, e fazendo-se a obra mais depressa
pela muita quantidade de operários que se conseguiria
desse modo. Parece que D. Afonso VI não gostou
muito da reclamação do Juiz, nem da consulta da Câ-
mara. Entretanto escreveu à margem desta

« Tenho mandado considerar o que aponta esta con-


sulta, e seja certo o Senado que não hei-de mandar fa-
:{er senão o que fòr mais com'eniente à defesa desta
corte e conservação do reinos (2).

(4) Citados Elementos, tomo vi, pág. 14 a 19.


(5) Idem, tomo vi, pág. ng a 161.
55o —

Depois disto pouco mais do andamento dos tra-


sei

balhos de fortificação. Em 1678, propôs à Câmara, em


consulta de i de Julho desse ano, que se demolisse o
baluarte do Terreiro do Paço que, não servindo como
obra de defesa, tirava a vista do mar ao Terreiro,
desfeava-o e, pior do que tudo, tornava a praia, que
ficava fora da cortina, um lugar imundo e indigno de
tal local. Não sei ao certo que resolução tivesse tal
proposta, sendo contudo evidente que a demolição se
não fêz, visto que o baluarte ainda ali ficou por largos
anos(i).
«

Em 1700 duravam ainda os trabalhos na linha de


fortificações. Em um documento datado desse ano,
vejo mencionados uns «homejis que trabalhajii nos mu-
ros de El-Reiy) para as bandas de Alcântara e Senhora
dos Prazeres (2). Eram, sem dúvida, os ijltimos ar-
rancos da obra. Daí apouco estava tudo abandonado.
O que ficara por concluir, nunca mais se acabou.
Quando em 1701, interviemos, com a política fran-
cesa, na questão da sucessão à coroa de Castela e se
receou, por isso, um ataque a Lisboa pela esquadra
inglesa que, se dizia vir ao nosso porto para nos obri-
gar a pagar quinhentas mil libras que se deviam a In-
glaterra desde o tempo de Cromwell, pensou-se que
iam servir pela primeira vez as defesas de João Gilot
e de Schomberg.

(i) Citados Elementos, tomo viu, pág. 291.

(2) Róis dos Confessados da Freguesia de Santos — Ano de


1700.
'— 55i —
Puseram-se a postos os artilheiros da guarnição das
trincheiras, aprestaram-se mantimentos, guarneceu-se
toda a cidade de cavalaria e de infantaria, e os mar-
queses das Minas e de Alegrete e os condes de Ata-
laia e de Alvor, por quem foi dividida a defesa da ma-
rinha da cidade, estiveram activos e vigilantes durante
os dias da prevenção. Afinal a esquadra inglesa não
apareceu e o Almirante Conde de Chaternou, coman-
dante da esquadra francesa fundeada em Cascais, levan-
tou ferro em 4 de Setembro. Não havia razão para
sustos (i).

As trincheiras da margem, que para tal efeito se


desentulharam dos lixos da cidade, voltaram à sua
única utilidade de vasadoiros públicos a-pesar-da proi-
bição municipal (2).
Bem tinha razão o Juiz do Povo, quando dizia, em
1660, que tal obra era de pouca ou nenhuma consi-
deração para a defesa da cidade»

Desculpe o leitor esta divagação a que me levou o


velho baluarte de Campolide.
No plano da reconstrução da cidade, subscrito pelos
engenheiros pombalinos, projectava-se a conclusão da
linha de fortes, tal como em i65o. Tudo isso está
muito claro na planta que o leitor já viu.
Nada se fez como é sabido.
O reduto da Atalaia, incluído hoje no parque do
palácio de Palhavã, é de todos os da cinta Joonina

(i) Citados Elementos^ tomo x, pág. 86 e 87.


(1) Idem.
(2) Idem. Carta do Senado de i3 de Setembro de 1701.
— 552 —
o que mais tem de contar, porque foi de todos o pri-
meiro que serviu como defesa militar. E um episódio
sangrento referirei em que êle desempenhou o seu pa-
pel de abrigo eficaz assistindo a uma das últimas arran-
cadas das tropas realistas em i833. j
Mal diriam os
engenheiros seiscentistas para que eslava reservado
esse baluarte !

A longa caminhada evocadora está perto do seu


termo. Servir-lhe-á de ponto final esse episódio como-
vedor, e, para isso, transportemo-nos a Setembro desse
ano, época em
que as forças absolutistas, sob as ordens
de Bourmont, defrontaram a cidade defendida pelo,
então. Conde de Saldanha.
Estas encostas que, a nossos pés, se somem até o
vale, foram teatro desses memoráveis combates

O conselho dos generais realistas, depois de larga


discussão, aceitara 'finalmente a proposta do general
Seabra, Conde da Baía. O Conde conhecia magnifi-
camente o terreno onde ia desenrolar-se essa cena san-
grenta. Nele assentavam as suas vastas propriedades,
as conhecidas terras do Seabra.
Segundo o seu parecer, as forças realistas investi-
riam a cidade em duas colunas. Uma atacaria a en-
trada de São Sebastião da Pedreira, e outra, entrando
pelo bosque do palácio Louriçal em Palhavã (hoje Em-
baixada de Espanha) alcançaria a sua quinta de onde
eficazmente tentaria o assalto da cidade.
Bourmont, que convidara o Conde a assistir ao
conselho, estava confiadíssimo na vitória.
As restantes forças atacariam de frente os fortes de
Campolide e da Atalaia.
— 553 —
Quando rompeu a madrugada do dia 5, logo se ini-
ciou o ataque. Divididos em seis colunas os onze mil
soldados absolutistas avançaram. No Campo Pequeno
fêz-se a divisão das duas forças que tinham de operar
diversamente. A que investiu por Falhava destinava-se
a ocupar o palácio e a quinta, conforme o plano.
O reduto da Atalaia dominava as duas estradas.
Excelentemente situado e municiado, impedia, com re-
lativa facilidade, a comunicação entre as duas colunas.
Dubreil comandava aquela que ia ocupar as terras
do Seabra.
A batalha, imediatamente começada, durou brava
mente durante horas. Fora extraordinário o ímpeto
dos realistas. Ao Conde da Baía, morrera-lhe o cavalo
crivado de balas, ao tempo que o duelo entre a arti-
lharia realista e a do reduto da Atalaia se tornava in-
tensíssimo.
A muito custo conseguem os soldados de Dubreil
entrar no bosque de Falhava. Ocuparam-no por fim
numa arrancada heróica, mas logo a seguir tiveram de
abandoná-lo, debaixo de uma terrível fuzilaria, para de
novo o tornaram a ocupar entre gritos de vitória.
De parte a parte são inúmeros os actos de bravura
e de valor pessoal, chegando a ignorar-se, durante meia
hora, quem levaria a melhor. Todas as posições eram
sucessivamente tomadas e perdidas pelos encarniçados
combatentes.
E dizer-se que eram todos portugueses
i

Derivou depois o mais aceso da luta para o Jardim


do palácio, no sopé' do alto da Atalaia, ao passo que
a terceira brigada de artilharia de montanha, ocupando
as eminências da quinta do Malheiro, investia com o
desmantelado reduto da quinta do S^bra. Comanda
Barros e Vasconcelos o denodado ataque. D. Tomaz
Mascarenhas, à frente da sua brigada, vem em so-
— 554 —
corro do reduto e investe contra o alto do Malheiro.
Pouco depois caía mortalmente ferido. \
Nos jardins
de Palhavã vai uma mortandade medonha
Enchem-se de mortos e de feridos as ruas de buxo
onde outrora passeavam os filhos de D. João V. O
bravo regimento de caçadores 4, sob as ordens de
Xavier, arroja-se contra o batalhão realista de La-
mego; mas os soldados de D. Miguel resistem hero-
icamente.
Saldanha, acompanhado pelos Condes de Bonfim
e de Campanhã, voava sempre ao mais aceso dos com-
bates, animando os soldados, dando ordens e expon-
do-se, intrépida e serenamente, às balas inimigas. Ora
estava em Campolide ora em Palhavã, sempre activo
e diligente. Conde de Bomfim fora ferido quando
Já o
caiu morto o cavalo em que montava o Duque da Ter-
ceira. Os realistas visavam os chefes liberais, pois o
próprio Imperador, no alto de Campolide junto à quinta
da Torre, de onde assistia à batalha, estivera também
em riscos de ser alvejado por uma bala de artilharia
que, caindo )unto dele, matara um fachina.
Obram-se prodígios de valor em ambos os campos.
José Maria Lobo de Ávila, oficial de artilharia, o alfe-
res D. Alexandre de Sousa Coutinho, o capitão José
Maria Taborda e o sargento Alves da Encarnação, por-
tam-se como heróis. D. Alexandre foi destes o único
que morreu.
O alferes Cordeiro Furtado, de caçadores, acome-
tido por um grupo de inimigos, põe três deles fora de
combate e cai ferido de morte.
Saldanha viu, então, que era mister ultimar a acção.
Redobram os esforços dos defensores da cidade e pouco
depois os realistas eram sucessivamente repelidos da
frente do reduto, dos jardins e do palácio, e perse-
guidos ainda para além das linhas de defesa.
— 555 —
Deu-se então aquele notável cometimento, aquela
gentileza de armas que impressionou os próprios com-
batentes, asselvajados e transmudados em feras no ar-
dor da batalha. Luiz de Larochejacquelin, sobrinho
do general do mesmo nome que fora ferido no cerco
do Porto, vendo perdidas as esperanças e desanimados
os seus camaradas, não podendo compreender nem
sofrer a vergonha da derrota, arroja-se contra o forte
da Atalaia, à frente de um esquadrão que o seu he-
roísmo fanatizara. Ficam-lhe pelo caminho os soldados.
A metralha varre o esquadrão que a cada galão dos
cavalos se desmantela e se desfaz. Fogem os corséis
sem cavaleiros, espavoridos, do campo onde tudo é
destroço e sangue. São apenas doze, dez, oito, quatro,
dois cavaleiros que avançam. Um tiro mais, e Laro-
chejacquelin sozinho, épico, sublime, agitando a espada,
sem olhar para trás, segue, galopa sempre para o ba-
luarte até que, quási junto do fosso, cai crivado de
balas.

]
Mal empregada heroicidade ! A batalha estava
perdida, irremediavelmente perdida. Eram
dez horas
quando os liberais deram a última carga
de baioneta.
Dirigira-a o próprio marechal. Da eminência fronteira
ao reduto do Seabra, onde perecera o bravo D. Tomaz
Mascarenhas, foram acossados os últimos soldados de
D. Miguel.
;
Tinha acabado o combate !

No dia 14 realizou-se um novo ataque à cidade,


mas desta vez com menor intensidade. O
desanimo
entrara nas tropas. O local escolhido para a investida
fora a trincheira da casa do Fortç, ao alto de São João.
~ 656 —
Bastou o regimento do 2 de caçadores para repelir o
ataque.
Os soldados realistas estavam desmoralizados. Bour-
mont e Clouet demetiam-se do comando do, já então,
reduzido exército miguelista.
O epilogo deste ataque realizou-se a 10 de Outu-
bro no Campo Grande e ainda foi bem renhido e san-
guinolento. Saldanha, prometera, porém, ao Impera-
dor que no dia dos seus [anos seria levantado o cerco
de Lisboa. Ora D. Pedro IV cumpria anos nesse dia
e Saldanha não quis deixar comprometida a sua pala-
vra(i).
A Outubro chegaram os realistas a Santare'm.
i5 de
Tais foram os combales travados nestas verdejantes
encostas, há cem anos. Todas as casas, dessa época,
do alto de Campolide, apresentavam, ainda em 1840 e
tantos, numerosos sinais das balas do exército de Bour-
mont(2).
jjHoje, quem o dirá ! Tudo se renovou, tudo desa-
pareceu. Nos antigos redutos da Atalaia e do Seabra
rebentam searas e florescem jardins modernos. Os
caminhos, regados de tão abundante e generoso sangue,
transformaram-se em largas avenidas, cujo macadam
mal deixa fantasiar os sulcos das carretas de artilharia
da brigada realista.

O troar desses canhões fratricidas ficou apenas na


história, pois o tempo deliu sobre a face sempre re-
novada da natureza, todos os vestígios da luta que ini-

ciou, às portas de Lisboa, o seu último capítulo (3).

(i) Historia do Marechal Saldanha, por D. António da Costa,


pág. 341 e seg. do único volume publicado.
(2) Memorias, de Bulhão Pato.

(3) Em i833 foi o Coronel de Engenheiros, José Feliciano da


Silva e Costa quem dirigiu as obras improvisadas da fortiticação
da cidade, por ordem de D, Pedro IV. Essas fortificações de
— 557 —

campanha constavam de 126 obras defensivas guarnecidas por


184 bocas de fogo. Levaram menos de um mês a fazer.
Em 1857, D. Pedro V, já Silva e Costa era general, encarre-
gou-o de estudar um novo plano de fortificação de Lisboa e uma
portaria de 23 de Maio de iS5g nomeou uma comissão para esse
fim, composta do marechal José Jorge Loureiro, visconde de Sar-
mento, Silva Costa, brigadeiros visconde de Vila Nova de Ourém
e Augusto Xavier Palmeirim e visconde de Nossa Senhora da
Luz, a qual se instalou em 3i desse mês e ano. Essa comissão em
1860 estava em actividade, pensando em guarnecer a cidade de
duas linhas de defesa; a primeira aproveitando a linha de i833 e
a segunda, com maior âmbito cercando a cidade desde aboca do
rio de Sacavém até Algés. O plano era semelhante ao de Anve-
res.Em 11 de Julho de 1861 deu o seu parecer, e a lei de 1 1 de
Setembro desse ano votou para tal obra 400.000^^000 réis.
Os trabalhos da fortificação inauguraram-se em 3o de De-
zembro de i863 no forte da Serra de Monsanto tendo assistido o
Rei D. Luiz e os infantes D. Augusto a D. P'ernando. Os fortes de
Alcântara e de Almada estiveram em obras em 1864, mas em Ou-
tubro do ano seguinte pararam os trabalhos.
No ano da 1866, abriu-se na Câmara-Alta um largo e elevado
debate sobre o assunto, em que tomaram parte Sá da Bandeira,
Fontes, Saldanha, visconde de Fonte Arada, Casal Ribeiro. Nomes
como estes. O
Tesouro estava exausto. Fontes que era o Mi-
nistro da Fazenda disse-o a Sá da Bandeira que defendia caloro-
samente a ideia da fortificação. O forte de Monsanto só se veio
a acabar depois, Palmeirim era de parecer favorável à efectiva-
ção dessa obra, que deveria seguir por Benfica, Palma, etc, em
vista do maior alcance da abandonando-se as defesas
artilharia,
de i833. O Visconde da Luz pensava que as obras se deveriam
iniciar por Sete-Rios e pelas Terras do Seabra {Memorias sobre
as Fortificações' de Lisboa, por Sá da Bandeira, Lisboa, 1866).
— 558 -

* *

Acabam aqui os meus apontamentos respeitantes a


esta parte da cidade. Muito ficou por dizer; muitís-
simo mesmo. Pontos há que ficaram imperfeitamente
tratados e escassamente desenvolvidos, mas a indife-
nença e estranheza de uns, a desdenhosa superioridade
de outros e as insuperáveis peias da faha de tempo
disponível para estas extravagâncias arqueológicas, obs-
taram a que os completasse nas poucas vezes em que
tal imperfeição não provinha da incompetência própria.
Dos que me prestaram o seu auxílio e gentilmente
me informaram ou facultaram informações de outrem
e consulta de papéis particulares, deixo menção na de-
vida altura deste trabalho e com ela vai agora aqui a
expressão do meu reconhecimento.
Ficam ainda nos meus macetes de apontamentos
larga cópia de notícias dos velhos bairros da Boavista
e de Santos, da Esperança, do Mocambo, da Mandra-
goa, das Janelas Verdes, Pampulha e Alcântara, assim
como dos mais recentes da Estrela, da Lapa, de Bue-
nos-Aires, da Boa-Morte, Fonte Santa e Santa Isabel.
Essas serão as bases de um seguinte trabalho em
continuação dos presentes volumes. Todos esses locais
estão envelhecendo, não tanto pela idade própria, senão
pelo continuado nascer de irmãos mais novos que lhe
põem brancas veneráveis e rugas precoces. Por isso
mesmo, vão tendo muito que contar e, a não faltar-me
o ânimo, serei eu o seu cicerone e o seu cronista pe-
rante a cidade moderna que cresce sem cessar, de sul
a norte e de nascente a poente, afogando nos seus ten-
táculos de casaria os olivais e hortas do arrabalde.
-559-
Todos os dias nos jornais diários e nas revistas
ilustradas, surgem novos projectos de avenidas, pontes,
viadutos, arcos triunfais, palácios de exposições ; depois
o Pôrto-Franco, o nascer de uma nova cidade, de vida
intensa, essencialmente fabril, ouriçada de chaminés, a
galgar os oiteiros escarpados da «outra-banda» ; depois...
E a fantasia ala-se, em voos arrojados, sonhando o em-
pório da rainha do ocidente, reflectindo no rio, coa-
lhado de esquadras e de navios de mercancia, os seus
supostos sete oiteiros recortados de corucheos e grim-
pas historiadas.
Tudo isto me assusta, e não porque eu seja retró-
grado ou estupidamente aferrado à rotina e ao ramer-
rão que tanto tempo tiveram quási improgressiva esta
linda cidade, mas, por que muito lhe quero exacta-
mente, receio esse civilizar apressado, com modifica-
ções que, muita vez, o bom senso não aprova e o
tempo não dá ocasião a joeirar.
A sonhada pelos furiosos innova-
hiper-civilização,
dores, muito a uma desnacionalização
assemelha-se
completa, em que o fatal cosmopolitismo vencerá, num
golpe rápido, o carácter próprio, a maneira de ser tra-
dicional de uma população de seiscentas mil almas.
Lisboa, a executarem-se todos esses planos entu-
siásticos, todas essas iniciativas, belíssimas na essência,
virá a ser certamente uma grande cidade, mas deixará
de ser, sem a mínima dúvida, uma cidade portuguesa.
O progres'so urbano de agora é desnacionalizador,
iguala, cosmopolitiza. As povoações são standartizadas
como os automóveis e as máquinas de costura, num
tipo único que as banaliza. E é disso que tenho pena.
Em tudo se quere conta, passo e medida. Na civi-

lização também. Encha-se a cidade de ar, de luz, de


conforto; esmaltem-se-lhe as praças com o verde dos
jardins floridos ; arborize-se o contorno e o arrabalde,
— 56o —
as ruas e os largos, num culto de gratidão pelas som-
bras refrescantes ; construam-se habitações com carác-
ter, com proporções e simplicidade de linhas, apro-
priadas ao clima e adequadas ao meio, fugindo à ple-
tora campesina dos alpendres e de outros motivos
rurais; tornem-se higie'nicas as que o não forem; de-
fendam-se os panoramas como quadros de museu res- ;

peite-sé o que é antigo, e edifique-se à moderna, crian-


do-se estilos em vez de se copiarem manuelinos e joa-
ninos. Mas só isso e não mais. Não dêem à capital
uma indigestão de progresso inventado, desses destem-
perados estranjeirismos que para aí vemos, sem graça,
sem beleza e sem lógica.

;
Fala-se, de há muito, em
Alfama Al- arrasar !
;

fama que e' o diche, o encanto, o deslumbramento dos


estranjeiros que passam sem olhar pelas novas ave-
nidas. Já alguém até falou em avenidas que cortassem
São Miguel e Santo Estêvão, a Regueira e o Chafariz
de Dentro Santos Deuses
!
;
Avenidas em Alfama ! ! !

Seria o mesmo que abrochar de pe'rolas um lenço de


ramagens.
Todos os dias se demolem edifícios antigos, com
estilo, com carácter, com tradição, consiruindo-se, em
contraposição, chalets pintados às riscas, cottages que
o nosso céu azul cobre desconfiado, prédios em estilo
Amadora com telhados ponteagudos para a neve (1),

caixotÕes pretenciosos, e fancarias semelhantes.


Destruir é fácil, dizê-lo ainda mais. Quem não sabe
construir é que não tem esse Só recentemente direito.

é que alguns arquitectos têm mostrado que o são.


Civilizar não é sinónimo de arrasar. A conservação
dos monumentos e dos documentos da nossa história,
a par do renovar incessante a que obriga o ritmo da
vida moderna ; isso é que é civilizar na mais clara e
elevada expressão desta palavra.
NOTAS FINAIS

36
NOTAS FINAIS

Nota 1

(Pág. 5o a 54)

Fábrica da Loiça

Alguma coisa há já a acrescentar sobre os longos e difíceis


capítulos que ei.crevi sobre esta oficina pombalina e sobre a ce-
râmica portuguesa em geral.
Falaremos primeiro dos púcaros.
A página 54 apresentei a hipótese dos «púcaros da Maia»
derivarem o seu nome das «galantes» da corte que osusavam e às
quais chamavam Maias, levado pela evidência dos oleiros Maias,
sendo setecentistas, não poderem nomear tais vasilhas já assim
conhecidas muito anteriormente.
Depois de tal ter escrito mudei de opinião. E mudei em face
de um documento datado de 1625 em que já se menciona a tra-
vessa da Maia, aos Anjos. Esse documento é uma escritura de
venda que encontrei no Index das Notas dos Tabeliães de Lisboa,
a página 60,onde se dão como moradores em tal travessa Duarte
Vaz Henriques e sua mulher Maria da Gama. Nada mais possível
do que já existirem ali oleiros trabalhando os pucarinhos à roda,
dado que tal região de Lisboa desde o século xvi é nomeada como
alfobre de oleiros.
Na Fastigimia de Tome Pinheiro da Veiga há várias referên-
cias a púcaros, «perçolanas» e barros de Estremôs.
Por exemplo

A página 37 : —A mulher do Alcaide Gudiel, de Valladolid, tinha


na mão um pucarinho de Estremôs.
l
—Senora (disse-lhe um português) no me hará usted
merced de dar-me su pucarilio f
E ela rindo-se maliciosa :

— Perdone V. Merced, que nadie hasta aora ha bebido


por ele.
— 564 —
A página 86 : — Tendo-se pedido para cantar a certa dama, disse
que só o faria se lhe dessem um púcaro de água de Portugal.
A página 2G4 : — O Rebelo, chocarreiro da Rainha, dissera a Ma-
nuel Gomes de Elvas que a sua senhora gostaria de um cofre
de tartaruga. O fidalgo mandou vir de Portugal o cofre e
quatro pon^onalinhas^ uma cheia de almiscar, outra de vi-
dros, outra de cocos e outra de marmeladas.
A páginas 323, num discurso em defesa do «Amor Platónico», apu-
raram- se as seguintes frases:
...Não vai tnuyto de comer a mesma iguaria em hua
po^olana fina ou em hua talavera graça.
Para ornar a casa se cobre o retrato e para afermo-
. . .

sentar a prateleira o brinco de Estremo^.


. Pega-se o brinco de Estremo:^ no beiço sequioso, mas
. .

não se faça dele mantimento para o baixo corpo.


... O frio Estremo:^ para servir água, para recriar o

olfato, e não para fartar o estômago.

Os pucarinhos, o barro de Estremôs e as «perçolanas» viviam


à vontade na linguagem figurada do princípio do séc. xvii.

Nota 2

(Pág. 54 a 68)

Sobre azulejos, também alguma coisa ficou por dizer.

— Os azulejos que a sala de jantar da casa do


guarnecem
André Valente, e que foram
Dr. José de Arruela, na travessa de
adquiridos num bric-a-brac da rua 16 de Outubro são dignos de
atenção demorada. Ignora-se a sua origem.
São quatro os painéis e ainda um vão de uma fonte orna-
mental. Deviam de ser mais, ou maiores, porque dos restos de
outros ou destes, fizeram-se, adicionando-lhes azulejos novos, mais
quatro painéis pequenos e os vãos das duas janelas. O primeiro
painel, representa um combate naval, ou entrada festiva, com sal-
vas. As naus arvoram bandeiras listradas em barras e com uma
cruz (amarela). Vêem-se ainda um caíque e outras embarca-
ções menores. Em terra, à esquerda, a Torre de Belém, a que
falta o parapeito inferior. No terraço mais alto, duas peças fazem
fogo um rapaz joga o pião e outros pescam, sendo um nos bai-
;

xos da Torre. Decoração polícroma. Faixa dupla: a interior, —


_ 565 — '

de animais, porcos monteses, veados, elefantes, girafas, cães, etc.

a exterior, de aves e flores.


O segundo painel tem o mesmo enquadramento de animais e
flores. Figura cenas cortesãs ao ar livre: — palácio de colunata
clássica, e entre as figuras da corte, uma que parece a. Nina de
Velasquez. A esquerda, um cavalo gualdrapado. Eles e elas tra-
jados à maneira do século xivi, primeiro terço. Decoração polí-

croma. Além de duas figuras de corte, maiores, no primeiro plano,


vê-se também um frade (dominicano í).
O terceiro painel figura várias cenas campestres, populares :
homens fumando cachimbo, mulheres matando e depenando ga-
linhas/crianças brincando no chão, sacos, utensílios agrícolas, etc.
Ao centro, uma um ramo, um caldei-
árvore, tendo, suspenso de
rão sobre lenha ardendo. Decoração a tinta azul.
O quarto painel figura um combate. Fundo de montanhas
das quais surgem grupos de cavaleiros. Ao centro, um grupo de
vinte figuras lutando. Duas bandeiras com a cruz de Cristo, sendo
uma empunhada por um charameleiro. Um dos combatentes
traja de corte, banda para suspender a espada, chapéu de plumas;
outros de armadura (século xvii). No primeiro plano, fortaleza
com barbacã e variai figuras de soldados. Uma personagem de
trajo cortesão, chapéu de feltro e cabelo comprido sobre os
ombros. Parece Afonso V!. Decoração polícroma.
No vão da fonte, a representação de um jardim com ruas e
canteiros. Figuras cortesãs e campesinas passeando. Ao centro,
uma fonte com leões e uma figura nua ao alto. Esta liga-se com
a bacia da fonte a valer, de mármore, embebida na parfcde. Nos
vãos das janelas, restos de azulejos antigos (soldados escalando
uma fortaleza, um transportando uma escada de assalto, um «anão
de Velasquez» sentado, fumando cachimbo, etc.) e outros mo-
dernos figurando a conquista de Lisboa, a oração de Nuno Alva-
res Pereira em Aljubarrota, etc. Os amarelos destes falharam.
Vê-se bem que são modernos. Alguns dos painéis antigos estão
emendados com um ou outro azulejo moderno.
Parecem-me todos os azulejos, obra da primeira metade do
século XVII. O caracter da pintura é mais castelhano ou andaluz
do que português.
Devem de ser assuntos portugueses, pintados em Lisboa, pos-
sivelmente, por um artista da república vizinha, i
Mas serão assun-
tos indeterminados?
Inclino-me a crer que esta decoração cerâmica tem qualquer
significado pessoal, como tantas que ornam salões e que se rafe-
— 566 —
rem a factos ligados com a família que os encomendou. Assim
são os azulejos do salão da torre do Solar de Azevedo. Os trajos
nada significam a maioria das vezes. Os azulejos antigos que
estão nos vãos das janelas deviam ter pertencido aos quatro pai-
néis que foram diminuídos para se ajustarem às paredes onde es-
tão.
Na capela da mesma casa há um painel de azulejos polícromos
(i5X 12) representando um calvário. No supedàneo há uma car-
touc/ie com legenda religiosa e a data j-i3. Ao lado do Cristo,
veem-se Santo António e São Francisco.


Na rua da Rosa, n." 2o3, num prédio do século xvii que se-
gundo^me parece era o da família Nabo, há uma guarnição de
azulejos na escada, com substituições e emendas nalguns pontos.
São todos a azul. No primeiro patamar acima de três ou quatro
degraus, estão dois painéis que não eram de-certo dali (embora
do mesmo pincel) e que deviam ser de qualquer sala. Num, vê-se
uma caçada ao porco bravo e, noutro, uma dama de Fontange
com um guarda-sol, de cabo torneado, na mão. A parte de cima
dos painéis é de sanefas e borlas recortadas. Em baixo, numa fita,
EL MKDio DIA em cima, restos de um zodíaco de duplo arco, onde
;

ainda se lê Virgo e Tau.. (Taurus). ^ Serão azulejos castelha-


nos i*

A escada é toda ela interessantíssima, com azulejos de ba-


laústres entremeados de figuras do século xvii, trajadas umas à
moda da corte, e outras à oriental — um rapaz de turbante com
um cesto de frutas, um preto, etc. Nos intervalos, cães, gatos,
carneiros, macacos, uma gaiola com aves, e outras aves soltas.
Logo ao princípio, partindo do patamar baixo, duas figuras
de maior tamanho chamam a atenção. São dois pobres, um ho-
mem e uma mulher, a pedir esmola, de mão estendida.
Vale uma visita esta escada do Bairro-Alto.

— Os azulejos do «Asilo das Cegas», na rua do Século, são


holandeses e estão assinados

I.VAN OORT
AMST : FECIT

numa cartouche, na base da guarnição da parede que dá para


a rua.
Fica assim emendado o meu erro de critério quando os supuz
da autoria de Gabriel dei Barco, a página 62. Já Castilho tinha
— 567 —
assinalado a origem holandesa desta guarnição a página 220 do
volume quarto da segunda série da Lisboa Antiga. O que isto
prova é que dei Barco seguiu o estilo dos azulejadores da Holanda,
ou pelo menos deste. Não sei de outra guarnição cerâmica de
composição larga de figuras, que esteja assinada. O facto de ter
sido feita em Amsterdão ainda particulariza mais este caso. Não
encontrei este Van Oort entre os pintores citados por Augusto
Demin.

— Em São Bento de Gastris (junto a Évora) existem também


azulejos caricaturais Lá se vê um Cupido a surgir
(século xvii).

de um diabo, .uma ratoeira armada numa cabeleira feminina e


outras travessuras, mais ou menos frescas, no dizer de Mestre Ga-
briel Pereira.

— O palácio dos Condes de Óbidos,


como tantos em Lisboa
é de revestimentos cerâmicos. Pertence, actualmente, à
rico
«Cruz Vermelha Portuguesa». Esteve lá a Embaixada de Espa-
nha e o Club Inglês que hoje se instala em frente de São Roque,
na rua de São Pedro de Alcântara. Há azulejos em quatro dos
sete salões do andar nobre (primeiro pavimento). Num deles a
História de Diana no de entrada, silhar de ornatos bem desenvol-
;

vidos ; na casa de jantar, cenas de caça e de interior, jardins, etc,


onde se observa o pormenor conhecido da cena do jogo de cartas
com a aia de espelho empunhado a denunciar o jogo contrário, e
o dinheiro acumulado junto da dama que
«depenando» o está
galante. Os outros semelhantes
três salões certamente tiveram
decorações. Hoje acham-se nuas de azulejos. Todos os que yi
são do fim do século xvii.

— Na igreja matriz da vila da Cuba, vi, em 7 de Maio de 1 93 1

alguns curiosos exemplares de cerâmica de revestimento. Sobre


a porta de entrada, um registo (loXii) polícromo com um São
Vicente, num fundo, bem O santo tem
alentejano, de sobreiros.
na mão direita apalma e na esquerda o corvo dentro do templo ;

há um revestimento completo de azulejos de padrão e de laçaria


e rosas, a azul e a amarelo, com vinte e dois registos embutidos,
figurando vários santos e cenas religiosas. No registo da parede
do coro, contra a fachada principal, figura-se outro São Vicente
tendo na mão direita a palma, e, na esquerda, a nau com os dois
corvos. Os registos são todos polícromo s.
— 568 —
Nota 3

(Pág. 68 a 70)

Escultores barristas

Francisco Coelho de Figueiredo {Teatro de Manuel de Figuei-


redo, vol, XIV, pág. 470, 565 e 566) dá-nos notícia da aula de escul-
tura de barro, «por formas», que existia, meado o século xvni,
atrás de São Domingos, voltando do adro logo sobre a direita.
Administrava a casa uma fragona muito alta com a roca na
cinta fiando estopa. Era ela quem, muito mal encarada, punha so-
bre o mostrador de loja as figuras que os rapazes lhe pediam cm :

penitentes, imagens devotas para as charolas, pastores com ofe-


rendas e extravagâncias para os presépios. À porta do estabe-
lecimento de São Domingos, muito frequentado em vésperas de
Natal e dos Santos de Junho, estava sempre quem vendesse quei-
jadas cujo tamanho fazia saudades ao Figueiredo quando em velho
passava por lá.
Os «penitentes» de barro que se vendiam em São Domingos
eram a tentação dos petizes, que viviam felizes, dias e dias, na
esperança de que os pais cumprissem a promessa de lhes dar
um.
Mais tarde foi o nosso mercado invadido pelos bonequinhos
de França que se vendiam na rua dos Capelistas e pelos caste-
lhanos. A Gaveta de 16 de Agosto de 1816 anuncia a chegada a
Lisboa de uma colecção de bonecos de barro da melhor escultura,
o mais natural possível, tanto em caracteres como em trajos pró-
prios com as cores mais vivas, de sorte que não deixam invejar a
natureza. Eram figuras dansando boleros, senhoras e homens em
trajos de passeio, toureiros matando touros, pastores e pastoras
vestidos pobre ou ricamente, etc. Tudo isso se vendia em casa
de Jorge Latur no Cais do Sodré. n.° 3, 2° andar, quarto n.° 6.

Nota 4

(Pág, 99 a 100)

Outras oficinas cerâmicas

Nos livros da «Junta de Administração das Fábricas», exis-


tentes na Torre do Tombo, encontro menção de outras fábricas.
— 569 —
Os diplomas, respectivamente, de lo de Janeiro de 1780, 10 de
Maio, 25 de Junho, 8 de Outubro de 1784, 6 de Abril, 14 e 23 de
Setembro de 1785, privilegiaram as oficinas de louça de Severino
José da Silva, no Porto; de José Rodrigues da Silva c Sousa, de
louça branca, no Juncal; de Jerónimo Rossi, de loiça fina, em
Gaia; de José Vieira da Rosa, de louça branca, em Kio Maior;
de João dos Santos, em Lisboa; de João Carlos Alves, na Car-
nota e a de Domingos Vandeli.
;

Em 1794 (alvará de 20 de Dezembro) foi ainda privilegiada


uma fábrica de pó de pedra, no Porto.

Nota 5

(Pág. 104 a 120)

A loiça do Dr. Milagres

Francisco Coelho de Figueiredo, conversador pitoresco e in-


cansável, mostra-se (Teatro^ vol.xiv, pág. 546 a 55i) admirador
entusiasta deste ceramista um tanto mágico, lembrando, sem pena,
o tempo da loiça primitiva da Fábrica do Rato que estalava logo
que se lhe deitava água quente, das «sopeiras» mal modeladas e
do resto que mal podia competir com as vasilhas que os franceses
para cá traziam da Fábrica de Viena, ao tempo do terremoto. O
coronel recorda a loiça leve da fábrica de Mr. Robillion, em Que-
luz, a de Belas, do Pauletti, que até ia ao fogo, e extasia-se pe-
rante as terrinas, as manteigueiras, os pratos compridos e outras
peças do Milagres. Coelho de Figueiredo dá ainda o informe de
que o Doutor ceramista, ia, de uma vez, a dizer-lhe o que faltava
para a louça da sua invenção ser perfeita, mas não chegou a
acabar a frase. Era o processo dele.
Noutro ponto das suas curiosas Notas (pág. 623 a 624) felici-
ta-se também pelo aparecimento de certas vasilhas vidradas que
tinham vindo substituir as de barro do Cartaxo e das Caldas e a
que ele chama, picarescamente, fábricas caseiras de amoníaco.
A viúva do Dr. Milagres, D. Ana Doroteia de Campos, reque-
reu à direcção da Fábrica das Sedas, em 23 de Agosto de 1820,
a pensão anual de 400^000 réis pelos serviços de seu marido,
desde i de Julho de de Novembro de 1817, data
1814 até 5

em que morreu. Durante este tempo recebera 17.162^)1)300 réis e


mais 987^727 réis referente aos utensílios de fabricação, tendo
havido na fábrica um prejuízo total, com a sua louça, de 8.i74íií>673
— 570 —
réis. A matéria do requerimento da viúva do Dr. Milagres foi re-
metida pela direcção à piedade de Sua Majestade. E Sua Majes-
tade indeferiu o requerimento. Como se vc o parecer de PVan-
cisco Coelho de Figueiredo tinha muitos opositores {Livro 929 de
Representações c Consultas da Direcção da Fábrica da Seda,
pág. 197 v.° a i«jg).

Nota 6
(Pág. i5o)

Venda da Fábrica do Rato


O terreno onde se construíra a Fábrica pertencia a esse tempo
a um tal António Ribeiro dos Santos. Em 17S8 pagaram-se ainda
quantias em dívida, por essa aquisição, aos seus herdeiros Ger-
mano Ribeiro dos Santos e outros {Livro g2g de Representações
e Consultas, pág. Sg v.» a 60 —
Consulta de 14 de Abril de Í788).

Nota 7

Faianças do Rato

— No
convento de Santa Clara de Évora, havia uma terrina
com o diâmetro de o",3i, de faiança imitando «china«, marcada
com as letras D. V. R, i Seria do fabrico de Domingos Vandelli ?
Esteve exposta em Londres na Exposição de Arte Ornamental
Espanhola-Portuguesa, realizada, em 1881, no Museu Kensington.

— No bric-a-brac «Armazém de Antiguidades» da rua de


D. Pedro V, esteve há tempo à venda uma terrina, marcada T. B. R.
O esmalte era amarelo-esverdeado, devia ser uma peça de ensaio.

— Pratos com a figuração da estátua equestre, e de outras


baixelas conhecidas como a da legenda na aba comparando o
barro ao unicórnio, aparecem às vezes nas casas de antiguidades-
Também não são excessivamente raros os pratos brazonados, a
que na sua altura fiz referência, produzidos na Fábrica do Rato.

Nota 8
(Pág. 197 a 199)

•Relógios portugueses

Pertence ao sr. Dr. Álvaro Teixeira, um relógio que foi da

f oiversidade de Coimbra, armado numa prancha de madeiras em-


— Syi —
butidas, com a legenda Sero-Sed. Serio, e a data Lisboa lyjS
dentro de uma fita de pontas enroladas.

Nota 9

(Fág. 25i)

Cemitério dos Prazeres

A Revista Universal Lisbonense, dedica um artigo subscrito


por Silva Túlio à reconciliação da ermida do Cemitério dos Pra-
zeres (n.° 2, 8.° ano, 2." série de i6 de Novembro de 1848) reali-
zada em I de Setembro de 1S48. A «reconciliação» foi feita pelo
arcebispo de Mitilene, com assistência da Câmara Municipal e dos
Ministros do Reino e da Justiça. Estava apenas assoalhada a er-
mida, para servir enquanto a capela se não construía Houve missa
de pontifical e, a seguir, um sermão ou, melhor, uma espécie
de sermão, diz Silva Túlio. O pregador cujo nome se não men-
ciona disse, entre outros dislates, que o Rei D. Manuel vencera os
godos. Louvou a Câmara por ter aliciado os fiéis para aquele
acto e concluiu com uma imagem formidável figurando a nação
portuguesa, dentro da ermida, passando entre os vereadores a cho-
rar, até se ir rojar no altar-mor a pedir um disparate qualquer.
RETOQUES EADITAMENTOS
AOS VOLUMES ANTERIORES
RETOQUES E ADITAMENTOS
AO VOLUME PRIMEIRO

O Terremoto de 1 755

(Pág. 23)

Depois de escrita a página referida em que se concluía que o


cismo de 1755 ainda não estava estudado, saíram os magníficos
trabalhos do falecido engenheiro e arqueólogo, Francisco Luiz
Pereira de Sousa. O volume terceiro dessa obra, publicado pelos
Serviços Geológicos, e que se intitula O Terremoto do primeiro
de Novembro de iy55 em Portugal e um estudo demográfico, é
trabalho capital. Saído em 1928, veio preencher essa lacuna sen-
sível.

A Cotovia

(Pág. 52 a 61)

Desde 19 16, data da saída a lume do primeiro volume desta


obra, que me tem preocupado a origem da designação Cotovia.
Por várias vezes se me sugerira
a possibilidade de tal nome se
filiar etimologicamente no termo Kotoubia significativo dos altos

minaretes moiriscos. A povoação moira de baixo-Tejo, situada,


porém, no outeiro, hoje do castelo, ao nascente da cidade mo-
derna, longe das cumiadas dos Moinhos de Vento, deixava apenas
para a explicação satisfatória dessa origem, a analogia do sítio
acuminado da Cotovia com o alto minarete árabe. Datada de 19
de Janeiro de 1924 recebi uma gentilíssima carta, subscrita pelo
sr. Eduardo de La Torre Lisboa que, num francês elegante, me

dava tal sugestão, citando um trecho de um artigo da Revue des


Deux Mondes de i5 de Novembro de 1928, da autoria de Emile
Mâle, intitulado Les injluences árabes dans l'art roman, em que se
fazia referência à Kotoubia de Marrakech. Julgo tão possível a
hipótese como aquela que apresentei a páginas 60 e 61 do citado
primeiro volume desta obra.
— 576 —

Basílica Patriarcal

(Pág. 81 e 82)

No Gabinete Histórico de Frei Cláudio da Conceição (vol. vi,

pág. /|04 e segs., e volume ix, descrevem-se a


pág. i83 e segs.)
entrada solene em Lisboa do primeiro Patriarca D. Tomaz de Al-
meida e a separação e união das duas metrópoles, ocidental e
oriental.

Erário Novo

(Pág. 1 14 a 1 15)

O modelo de madeira do corpo central do edifício do Erário,


está no Museu do Carmo, da Associação dos Arqueólogos Portu-
gueses.

A Patriarcal Queimada
(Pág. 124 a i35)

Da Sinopse, Annais e Arquivo municipais, algumas notas colhi


relativas a este local.
Havia ali em i838 um poço constantemente rodeado de en-
tulhos que quási lhe escondiam o bocal de pedra.
Em Maio de 1843, mandou-se fechar a casa da água onde se
conservava a que tinha de repuxar no Passeio Público.
Em Maio de i852, por ordem do Conde de Rio Maior, esta-
va-se terraplanando o largo. A-pesar-disso a Junta Administra-
tiva da Fazenda do Colégio dos Nobres continuava a vasar aqui o

entulho das obras. A Câmara, em Setembro, protestou. De pouco


lhe valiam os protestos. Em i856 estava ainda o largo cheio de
montes de pedra.
Em Setembro de i858, foi demarcado, pela Câmara, um ter-
reno, para nele se armar o circo de uma companhia equestre.
Não sei se tal circo, cuja instalação fora requerida ao Muni-
cípio por Tomaz Price, chegou a funcionar e se se pode identi-
ficar com o circo de cavalinhos da rua da Procissão de que fala
Júlio César Machado. O que sei é que em 1839 ele desistiu do
local, e a Câmara deu-lhe a escolher, para assentar o circo, o
Campo de Santana ou o largo de Santo Bárbara.
No princípio de iSSg ainda a Câmara tinha dúvidas acerca
do direito de posse ao terreno do largo.
- ^77 —
Carlos Pezerat levantou uma planta do Pátio do Tejolo, Alto
do Longo, etc, em Fevereiro desse ano. O projecto do poço feito
pela Companhia das Aguas foi, nessa data, alterado. O reserva-
tório que estava marcado no lado ocidental, junto da rua da Pro-
cissão, passou para o centro do largo, projectando-se o actual
tanque do repuxo. Foi isto em Agosto, e Carlos Pezerat e os
engenheiros da Companhia das Águas levantaram a planta.
O resto dos alicerces da Patriarcal e das Obras do Erário
eram desfeitos a tiros de pólvora, pela Companhia das Aguas.
Em Agosto de 1860, uma mulher que passava pela orla nas-
cente do largo foi ferida por uma pedra projectada pelo tiro. A
Câmara protestou contra o processo de destruição usado, e a
Companhia mandou pôr uma defesa de vimes entrelaçados.
Foi em Julho de 1860 que se começou a regularizar a praça
para ficar o mais quadrada possível (sicj e para que o tanque
ficasse bem ao meio. Regularizou-se também o alinhamento da
rua do Jasmim e removeram-se vários montes de pedras para se
poder plantar arvoredo.
Em 1861 continuavam os trabalhos da Companhia das Águas.
Desentulhou-se a galeria do poço central para a rua da Procis-
são e fêz-se a obra das escadas sobre esta serventia. A planta da
nova praça foi finalmente aprovada em sessão de 22 de Julho
de 1861.
Durante muito tempo esteve, em 1862, impedido o trânsito
pela calçada do Moinho de Vento (rua de D. Pedro V) por causa
das obras da Companhia das Águas e por ter abatido uma galeria
subterrânea que por ali passava.
A construção da muralha para a rua da Procissão, foi resol-
vida em sessão de 9 de Dezembro de 1862.
Em i863, alinharam-se vários prédios particulares em der-
redor da praça, na rua do Jasmim, Abarracamento de Peniche, etc.

Em i8ig tinha-se pensado fazer aqui um


mercado, chegan-
do-se a solicitar a autorização das Cortes; mas em 1840 apenas
se resolveu que se fizesse no largo um dos mercados de porcos
da capital. O outro era em Vale do Pereiro.

Alto do Longo

(Pág, i5o e i5i)

— Houve aqui, há setenta ou oitenta anos, uma fábrica de


fósforos que foi destruída por um incêndio.
VOL. IV 37
— 578 —
— Manuel Vilas, vendia, neste local, em i833, uma traquitana
(Anúncio da Crónica Constitucional de i833, pág. 54).

— Nesse mesmo ano, e na mesma Crónica anuncia-se que


aqui se vendiam, perto do Posto da Guarda da Patriarcal, púcaros
com pomada superior parafa^er o cabelo preto (Número de 1 1 de
Dezembro de i833)

— No Livro de Óbitos da Freguesia das Mercês, em 20 de Ja-


neiro de 1669 regista-se o óbito de Pedro Lomguo, na rua For-
mosa.

— Em 1860 o Alto do Longo era um foco de imundície. O


Conselho de Saúde Pública oficiava em 17 de Fevereiro desse ano
à Câmara, reclamando a necessidade da construção neste local de
canos de despejo, por perigar a sanidade da capital com o estado
em que o «Alto» se encontrava.

Praça do Rio de Janeiro

(Pág. 180 e 181)

A casa que foi do capitalista Policarpo Pecquet Ferreira dos


Anjos, é do risco do arquitecto-pintor Cinatti. Manuel Gomes de
Carvalho e Silva, Tenente-General de Artilharia, Fidalgo da Casa
Real, Cavaleiro de Cristo, Alcaide-Mor de Aveiro, Almoxarife dos
Paços de Azeitão, Juiz das Coutadas da Serra da Arrábida, fale-
ceu em I de Janeiro de 1755, sendo sepultado no convento das
Francesinhas onde tinha duas filhas recolhidas {Gabinete Histó-
rico, vol. XIII, pág. i), portanto o Tenente-General do mesmo nome
que residiu no palácio que antecedeu a casa Ferreira dos Anjos,
era outro, talvez filho do primeiro. O que não sofre dúvida é de
que um Tenente-General Manuel Gomes de Carvalho e Silva ainda
ali é dado como morador em 1780 {Róis dos Confessados da Fre-

guesia de São Mamede).


Este segundo Tenente-General Manuel Gomes de Carvalho
era-o, como então se dizia, da Tenência, ou seja do Arsenal do
Exército, como se disse depois. Foi um dos colaboradores de Bar-
tolomeu da Costa nos progressos das fundições da artilharia e na
perfeição do fabrico da pólvora.

— Neste palacete, há algum tempo deshabitado, está agora


(Setembro de igSS) a instalar-se a «Escola Superior Colonial».
— ^79 —
Rua da Procissão (i)

(Pág. 187 a 190)

A gente, às vezes, em Lisboa, ao passar por ruas banais, en-


taladas entre prédios burgueses, sem uma nota de arte nem um
pormenor garrido de arquitectura, mal suspeita quantas coisas
interessantes se nos escondem dentro dessas edificações. Cruza-se
uma rua, como a da Procissão, alinhada pela encosta desde a
cumeada da velha Patriarcal até o bairro da jpraça das Flores,
e nem sequer nos passa pela mente a possibilidade de, num da-
queles prédios, haver com que distrair os olhos uma boa meia
hora. Pois há, Aquela casa a que compete o número de polícia
90, guarda dentro das suas paredes mestras uma surpresa. O
aspecto nada diz: uma sobreloja, um andar nobre de sacadas e um
outro pavimento, tendo cinco vãos de frente. Nos baixos, uma
carvoaria e uma taberna. Havemos de confessar que os atractivos
são pequenos; mas suba o leitor comigo ao pavimento nobre e
terá com que pasmar.

A frente da casa é ocupada por um salão a que correspondem


quatro vãos, e por um gabinete. O salão pode denominar-se o
Salão dos Poetas ; o gabinete, Gabinete da Rainha. A primeira
quadra que está partida em três quartos por tabiques que che-
gam à sanca, é decorada luxuosamente de estuques e pinturas.
Estas são constituídas por seis medalhões, intervalados por mol-
duras de estuque feitas à mão, onde deveriam existir placas de
velas com espelhos gravados como era de uso na época. Os me-
dalhões ovais, talvez de o^yS no maior diâmetro, contêm os re-
tratos, a fresco, de Homero, Vergílio, Metastásio, Poppe, Voltaire
e Camões. É uma galeria de poetas. Evidentemente são de obra
de mais de um pincel. O retrato de Voltaire é muito razoável
o de Metastásio é francamente mau. Camões é representado con-
forme o retrato de Faria e Sousa de armadura reluzente e coroa
:

de loiros. Á pintura de alguns dos medalhões acha-se deterio-


rada mas a restauração não deve ser complicada. O tecto desta
sala, ainda em bom estado, é de um magnífico efeito decorativo.

(i) Artigo do autor «A História de uma Casa» publicado no


Diário da Tarde de 10 de Outubro de 1935.
-580 —
Ocupa o centro uma composição alegórica, num largo oval, figu-
rando o carro de Apolo. Dir-se-ia, pela côr e pelo desenho, do
pincel do fecundo Pedro Alexandrino de Carvalho. Em derredor
vêem-se quatro medalhões acantoados, onde Cupidos róseos em-
punham tubas, frautas pastoris e outros instrumentos músicos,
agitam grinaldas, e desfecham setas dos arcos assassinos. Entre
os medalhões intervaiam-se ornatos de estuque de rara elegância.
O conjunto é admirável.
O Gabinete da Rainha^ outra surpresa. O tecto é ornamen-
tado por seis pinturas a fresco (paisagens, marinhas, torreões e
ruínas) na superfície convexa que vai do friso ao plateaii central,
relevado de finos estuques. Numa delas há uma sugestão da Torre
de Belém. Decoram as paredes cinco medalhões do mesmo for-
mato e tamanho dos que ornam o salão, três na parede do fundo
e dois na que separa o gabinete do salão, ladeando a porta de pas-
sagem. Daqueles o do meio, contém o retrato da Rainha D. Ma-
ria I, e os laterais o do Príncipe regente (D. João VI) e o de

outra princesa, talvez D. Mariana Vitória que veio a casar com o


Infante D. Gabriel, de Espanha. Os que ladeiam a porta devem
ser o Príncipe do Brasil D. José, e sua mulher e tia a Princesa
D. Maria Benedita, fundadora do Asilo de Runa. Este gabinete
é também um encanto de decoração. O retrato da Rainha é de
pincel adestrado, sendo possível que os restantes medalhões
pertençam à mesma autoria.

^Mas como se explica esta riqueza de ornamentação naquele


prediozinho banal da rua da Procissão ! ^Quem
pintaria e deco-
raria as duas salas? ^- A
que idea obedeceu esse guarnecimento
de retratos ovais, e essa apoteose aos grandes poetas mundiais
que ali estão sob a protecção mitológica do carro de Apolo e dos
Cupidos amorosos ?
Ora aqui está uma pregunta de difícil resposta. Desde há
muito que ouvia referir que naquele prédio morara a Princesa
D. Maria Benedita. Uma tradição local asseverava mesmo que a
piedosa fundadora do Asilo para Inválidos Militares tinha ali mor-
rido. Nada, porém, até hoje se apurou, a não ser que a irmã de
Maria I faleceu no Paço da Ajuda, com oitenta e três anos, em i8
de Agosto de 1829, dois anos depois da inauguração da sua obra
beneficente. Desde 1821, data em que voltou do Brasil não era
possível ter ali residido. Só se foi anteriormente a 1807, data da
- 58i —
partida para o Rio de Janeiro, mas os almanaques do tempo, pelo
menos de 1789 até esse ano, indicam como morador nesta casa o
seu proprietário.
Vejamos a história do prédio. Em 1783 a Junta de Fazenda
do Colégio dos Nobres, por escritura de 25 de Fevereiro, aforou
a um tal Aleixo Nicolau Scribot, um chão de terreno com uma
barraca aqui neste local. Chamava-se então à rua, rua de S. João
Baptista. Um mês depois, este Scribot que já em 1759 era pro-
fessor de latim na Aula Régia estabelecida no Hospício do Santo
Borja, onde depois foi o Colégio do Billingue, mais tarde um fila-

moradia do velho Castilho e a


tório de seda à milanesa, depois
seguir o palacete do falecido Luiz Fernandes, vendeu junta- —
mente com sua mulher D. Bernardina Teresa de Miranda o ter- —
reno e a Barraca ao Dr. Manuel José Saturnino da Veiga, advo-
gado em Lisboa. Foi este Veiga quem edificou o prédio e certa-
mente quem mandou decorar interiormente, as duas salas, de
estuques e pinturas. Por sua morte, herdou-o seu filho Vicente
Toraaz Saturnino da Veiga que mais tarde o vendeu, com o do-
mínio directo, a João Francisco da Cunha Bastos Gervis. Em 5
de Julho de i853 foi à praça na Boa Hora, arrematando-o o conhe-
cido engenheiro Mateus Valente do Couto Deniz. Por morte deste
ficou, em meação, a sua mulher D. Luiza Cristina Pinto Valente,
senhora que o vendeu em 1878 ao negociante Joaquim Nunes Gar-
cia, também já falecido em 1893, ficando o prédio, como legado,

a um seu sobrinho, Manuel Nunes Garcia que faleceu em 1905 sem


chegar a tomar posse da propriedade. Herdou-o sua mãe D. Joana
Nunes, sogra do negociante José Dias Sobral, e por morte dela,.
em 14 de Maio de igiS, ficou aos filhos deste senhor aquém devo
tão exactas informações. São os actuais proprietários. Os tabi-

ques que dividem o Salão dos Poetas foram ali postos quando era
inquilino da casa o Dr. Máximo Brou. Não há justificação que o
salve do apodo de vândalo que lhe compete.

A história da casa fica feita. O que é, por agora, difícil de


apurar é a idea que presidiu à estranha decoração do seu andar
nobre. Não sei de minúcias biográficas do Dr. Saturnino da Veiga.
l
Como não fa^em dano ás Musas os doutores, seria ele dotado de
bens apolíneos que lhe sugerissem as pinturas do Salão ? i
Expli-
car-se-á por uma especial afeição à família reinante aquele con-
gresso de príncipes e princesas no luxuoso gabinete ?
— 582 —
Fiquem as preguntas de pé. Do que eu estou absolutamente
certo é de que ninguém da existên-
suspeita, ao passar pela rua,
cia, em efígie, naquele prédio, de duas
seis poetas, dois príncipes,
princesas, uma rainha, e de umJDeus mitológico que cruza o espaço
no carro do Sol puxado por frisões.

—A Revista Universal Lisbonense, no seu n." 3o, 8.° ano, de 3


de Maio de 1849 refere um logro de que foram vítimas duas se-
bastianistas, logro que se estendeu a muitos sectários do En-
coberto. Foi o caso que duas mulheres moradoras desta rua
estando a ouvir missa, convenceram-se de que ao pé delas estava
o neto de D. João III.
O pseudo-Encoberto que, pelo visto, era um intrujão de car-
reira, aproveitou-se da imaginada parecença, e denunciou-se às
criaturas como sendo o próprio rei. Nada mais foi preciso para
que elas o hospedassem em casa e para a rua da Procissão pas-
sasse a ter mais concorrência do que o Rossio em dia de festa. O
«habilidoso» dava, diariamente, beija-mão aos crédulos. O pior
foi que a notícia de D. Sebastião estar hospedado na rua da Pro-
cissão, começou a fazer eco demasiado. Os estudantes intervie-
ram com embaixadas galhofeiras ao vencido de Alcácer-Quibir, e
a polícia acabou por intervir no caso.
O falso Encoberto conseguiu, porém, escapulir-se prometendo
à sua corte que se ia tornar invisível. E não faltou à promessa.
Ninguém mais o viu.

Os bens do Colégio dos Nobres

(Pág. 281 a 283)

Os prédios que o Colégio dos Nobres possuía no sítio da Es-


perança e que tinham sido da casa de Aveiro, doados à instituição,
pelo Marquês de Pombal, foram, em 186 1, vendidos pelo Governo
à Câmara Municipal pela quantia de 4.845^600 réis, autorizado
istopor carta de lei de 10 de Setembro desse ano. Os prédios
eram no largo da Esperança, rua da Silva, beco do Guerra, cal-
çada do Marquês de Abrantes e travessa de Santo António. A
Câmara demoliu-os seguidamente para descongestionar o local
{Arquivo Municipal de Lisboa, ano de 186 1).
— 583 —
Rua da Escola Politécnica

(Pág. 38 1 e 382)

Foi o edital de de Setembro de 1859 que deu a denomina-


i

ção de rua da Escola Politécnica à rua do Colégio dos Nobres e


à rua da Fábrica da Seda, englobando-as naquele único nome.

Imprensa Nacional

(Pág. 445)

Para a história dos progressos deste estabelecimento do Es-


tado, devem ver os curiosos a interessante carta do Administra-
dor Firmo Pereira Marrecos sobre o estado actual da Imprensa
Nacional, publicada no n.° i5 do ano de 1846 na Revista Univer-
sal Lisbonense, e datada de 24 de Agosto desse ano.

Travessa de S. Marçal

(Pág. 192 a 198)

O palacete que foi do saudoso Luiz Fernandes, morto de um


desastre em Paris, um dos mais belos e generosos espíritos que o
Brasil deu a Portugal, conhecido, dado o seu prestígio de capita-
lista, pelo «Menino de Oiro», |foi vendido, pouco depois, pelos
seus herdeiros, dizem que por mil contos. O famigerado Alves
Reis, nos tempos do «Angola e Metrópolew, adquiriu-o por
fartos
seu turno aos compradores.
Quando da descoberta da burla, voltou às mãos dos leiloeiros
e foi o Banco de Portugal que ficou com ele, pela quantia de qui-
nhentos contos.
O Governo pensou em instalar ali o Ministério de Instrução
e chegou até a comunicá-lo à Comissão Liquidatária do Banco
Angola e Metrópole. Veio no Diário o respectivo decreto (o
n." 14.511 de 3i de Outubro de 1923), mas desistiu-se da idea. O
Ministério da Instrução foi para o Campo dos Mártires da Pátria
para o palácio que fora do Dr. Silva Amado, mais vasto e mais
acomodado. Foi este palacete da travessa de S.Marçal comprado
nos primeiros dias de Dezembro de 1923. Nesta residência foram
apreendidos alguns dos massos de notas falsas de 5oo^oo. Visi-
tei-a por ocasião dos leilões. É triste. As decorações escuras
- 584-
davam-lhe um ar soturno, a-pesar-das quatro frentes e do jardim
envolvente. Era aqui, numa
das salas, que Luiz Fernandes tinha
a sua preciosa colecção de chícaras, legada ao Museu de Arte
Antiga e que agora o enriquece, enchendo uma das salas do rez-
-do-cháo do antigo palácio da Imperatriz.
No último dia de Novembro do mesmo ano de igzS, reali-
zou-se a ceremónia do descerramento da placa que mudou em
«rua Luiz Fernandes» a «travessa de S. Marçal». A placa é de
bronze e foi mandada executar por um grupo de amigos de Luiz
Fernandes. O desenho foi de Raul Lino e a fundição de Teixeira
Lopes. Esteve a Câmara representada e numerosos amigos do
mono compareceram, tendo discursado, após o descerramento da
placa pelo sr. Henrique de Holanda, cônsul do Brasil, os srs. Ma-
nuel Emídio da Silva em nome dos ofertantes, Dr. Luiz Mesquita
de Barros em nome do herdeiro de Luiz Fernandes e Dr. Daniel
Rodrigues em nome da Câmara Municipal. O «auto» respectivo,
que estava encerrado numa pasta de veludo com lavores de prata,
foi assinado por todos os presentes.

RETOQUES E ADITAMENTOS
AO VOLUME SEGUNDO
Praça de S. Bento

(Pág. 68 a 72)

Em 1926 o Município enfrentou energicamente, e a sério, a


questão dos mercados. A
Praça da Figueira, insuficiente perante
a expansão cidadã, gerara uma série de abarracamentos e amon-
toados de tábuas e zincos, em vários pontos, que se condecoravam
com o pomposo nome de Mercados de Abastecimento.
O principal deles era o de 24 de Julho de que todos nos lem-
bramos sem saudades.
Em Outubro desse ano começavam a demolir-se esse e o de
S. Bento cujo destino tinha sido desvirtuado e se resumia a uma
sucursal da Feira da Ladra. A-pesar-de todos os protestos, indi-
vidualmente justos mas colectivamente sem força convincente, os
proprietários dos lugares de ferro-velho tiveram que abandoná-lo.
Em 2 de Novembro caía, a golpes de machado, a grande pal-
meira central. Houve alguns renitentes. De nada, porém, lhes va-
(584 a)

0^\NJ0 CrSTODIO DO Hkixo


E.xtri-tuiiiaiiito H»; Poi-mg»! â Águia dr Napiili-ío cí tropa TiAureza

\'l( TDÍil A \i,C \N ( \ I) \ THI.AS A(tM.\vS HfilTAXICA


ri (;í 1':/\>' m) sitio dd ^'l^i !•. í hu cd.v iií \ ().sím;aví

O Painel das Lumiiiáiias, em iSo8, no Seminário dos Meninos Órfãos


da Rua de S. Bento
— 585 —
leu a teima. Na manhã de 4, os bombeiros arrazaram-lhes as lo-
candas e o |recheio^foi posto na rua. Entre ele estava um altar
de talha doirada que havia sido comprado no leilão do convento
de Santa Joana, Os negociantes de antiguidades Nobre & C* L.***
transferiram para uns armazéns, fronteiros ao mercado, tudo
quanto lhes enchia as barracas.
O sítio é bom para os antiquários. Na rua de S. Bento con-
tam-se ainda hoje seis bric-a-bracs, sem contar com o estabeleci-
mento de venda e restauro de estampas do João Santos que fica
acima da rua da Imprensa, do lado do nascente.
O mercado de S. Bento serve hoje, exclusivamente, para venda
de géneros alimentícios, e já nada faz lembrar o antigo pandemó-
nio onde pontificava o Mano João de cuja ciência bibliográfica
contei ao leitor.

Rua de S- Bento

Há que aditar alguma coisa ao que escrevi sobre esta rua.

— Para a abertura da Avenida Pedro Álvares Cabral, ou me-


lhor para o seu alargamento, começou a ser demolido em 14 de
Abril de ig3o o «Teatro Joaquim de Almeida» cuja vida foi tão
curta como a das rosas de Malherbe. O barracão de madeira, de
palco triangular, que foi o sonho do actor Casimiro Tristão, agora
em Cabo Verde fugido ao desabar da sua vida de artista teatral,
desapareceu. No bocadinho de terreno que ficou livre para cons-
trução está-se agora erguendo um prediozinho banal (Março de
1933). O Teatro tinha sido inaugurado em 7 de Maio de 1925 com
a peça A Severa de Júlio Dantas.

— A edificação onde esteve um Cinema que figurava uma car-


ruagem de caminho de ferro, com bulha de rodados, porteiros a
fingir de revisores tudo o mais que se julgou preciso para atrair
e
o público, está hoje transformada num stand de automóveis (porta
n.° 684) e numa igreja evangélica (porta n.» 636).

— Latino Coelho morou num segundo andar desta rua. Di-lo


Pinto de Carvalho, na sua saborosa prosa, num artigo do Brasil-
-Portugal.

— Estou convencido de que a casa onde esteve o Seminário


do Padre Carvalho é aquela que foi depois dos Almeidas Araújos
e Falcarreiras e veio a pertencer, mais recentemente, à família
— 586 —
Mayer. Anda agora anunciada para venda. Tem largo jardim
atinente na parte posterior, e destaca-se na rua, entre o Rato e a
embocadura da rua do Arco, pelos vidros convexos das suas ja-
nelas.
O
Seminário da Caridade dos Órfãos festejou, como se disse,
a restauração do reino em 1808, pondo na sua fachada um painel
de luminárias onde o seminarista Manuel António pintou a ba-
talha do Vimeiro. As luzes cercavam a composição do aluno do
Padre Carvalho que assentava sobre a porta da igreja. Outro painel
do mesmo via-se no mais alto da janela do coro. Era mais pe-
queno e representava o Tribunal da Regência com os seus mem-
bros sentados e por cima as armas reais. Por baixo, lia-se Re- :

gência. Por cima, lia-se: 5Mrre.n7. Reproduz-se aqui o primeiro


painel que foi ideado pelo Padre António Luiz de Carvalho, dese-
nhado por Francisco de Paula e gravado por João Cardini, e que
se encontra ilustrando e documentando o folheto in-folio com-
posto na Impressão Régia (sem data) que se intitula Prospecto :

do Painel das Luminárias que se pu^erão na frente da igreja do


Seminário da Caridade dos Órfãos da Rua de S. Bento da Cidade
de Lisboa, pela felij restauração deste Reino no qual se repre-
:

senta a Batalha do Vimeiro^ e o Anjo Custodio do Reino, exter-


minando com espada de fogo \a Águia de Napoleão, e a Tropa
Francesa, no ano de 1808.

— Foi o edital de i de Setembro de iSSg, e não 8 de Setem-


bro, como disse a pág. 112 (nota i), do, então, Governador Civil
Alberto António de Morais Carvalho, que estendeu à antiga rua
da Flor da Murta a designação de rua de S. Bento. Esse mesmo
edital mudou em «beco de Santa Quitéria» o antigo «beco dos
Mortos», nesta travessa que desemboca em S. Bento.

— A antiga casa onde moraram os Galveias e o poeta Cor-


reia Garção, à esquina da rua de Santo Amaro para S. Bento,
hoje propriedade da familia Vilhena, recentemente restaurada
foi

sob a direcção do arquitecto Tertuliano de Lacerda Marques.

— Em i852 é que se projectou a obra de calcetamento da rua


de S. Bento e aprovada a proposta do Visconde da Fonte Ar-
foi

cada para se construir a cortinacom rampa do largo das Cortes


para a rua. Também, nesse ano, o proprietário Faustino da Gama
ofereceu ao Município as minas da antiga cerca de S. Bento para
lançar os sobejos dos tanques do Passeio da Estrela.
— 587 —
Rua do Arco (S. Mamede)

(Pág. 114)

Em 9 de Dezembro de igSo escreveu-me um anónimo obse-


quioso;

a. .. Diz V. Ex.* tratando de um quintal que pertencera ao


Páteo do Gil na rua de S. Bento que não sabia como essa terra
fora para a familia Apleton a-pesar-de ser cousa de quási nula
:

importância informa-se que Daniel Apleton em 187. casou com . .

Maria de Jesus Marques a qual herdou o Páteo do Gil e anexos


de sua tia e madrinha Eustáquia Marques, moradora na antiga
Travessa do Pombal e filha do arrematante desses bens de Antó-
nio Rodrigues Gil.
a

«Apleton é o apelido de uma nobre família católica irlandesa


da qual um membro emigrou para Portugal no século xvii, fu-
gindo à perseguição religiosa e dedicando-se ao comércio».

Os Jardins Daupiás já não existem. A sr.» Viscondessa de


Assentiz, filha do falecido floricultor Frederico Daupiás vendeu a
propriedade. O prédio (tipo chalet) denominado Mon Repôs, per-
tence hoje ao sr. Alfredo Anjos (P^ontalva).
Parte do terreno foi vendido a outrem, construindo-se ali um
prédio de rendimento (igSi) que prejudicou, por sinal, o cenográ-
fico panorama que se avistava do topo da rua. Foi pena Os;
!

panoramas pertencem a todos. É um roubo que se faz à proprie-


dade colectiva.
(Pág. 143 a 145)

Era aqui na rua do Arco o Teatro do Timbre onde Taborda


representou aí por 1840 a 1842 a peça O Holandês ou pague o mal
tipógrafo, dono de um barracão
que não fê^. João José da Mota,
à Trindade que era uma espécie de circo de cavalinhos, e que
ele depois transformou, associado com Manuel Machado, no que
foi o Teatro do Ginásio Dramático, convidou o saudoso artista
que vira representar no teatrinho particular da rua do Arco, a
inaugurar a nova Casa de Espectáculos.
Tal inauguração foi em 16 de Maio de 1846 com a peça Pa-
quita ou os fabricantes de moeda Jalsa. Taborda era então apren-
diz de tipógrafo.
— 588 —
Em Janeiro de 1842, representaram e cantaram amadores por-
tugueses, neste teatrinho a «Luccia de Lamermoor.
Costa Cascais faz crítica elogiosa no número da Revista Uni-
versal Lisbonense de i3 de Janeiro desse ano, citando os can-
tores srs. TôrreSj Figueiredo e Lima, e o maestro regente da or-
questra sr. Justino José Pinto. Depois da ópera houvera um baile.
Na mesma revista, em Janeiro de 1843, noticia-se que a So-
ciedade de Curiosos que explorava o Timbre ia melhorar e de-
senvolver-se, alterando os estatutos e diligenciando que os papéis
de damas só por damas fossem desempenhados. O director do
grupo era Justino José Pinto. Para Fevereiro anunciava-se uma
representação onde os homens fariam, pela última vez, os papéis
de mulheres.

Rua Nova de Santo António

(Pág. 145 a 148)

O académico sr. António Ferrão, no seu excelente livro A


Primeira Invasão Francesa, publicado em 1925 diz a pág. cclvi»
noticiando, devidamente seriados, os assaltos feitos pelos soldados
de Junot a várias residências lisboetas

«A I de Março outros franceses entraram à força no n.» 17


da rua de Santo António da Cotovia e procuraram forçar as filhas
dos donos da casa, cometendo outras violências, ferindo os guardas
da polícia que acudiram, e matando à estocada um criado do
antigo presidente do Real Erário, Luiz de Vasconcelos».

Consultando os Róis dos Confessados da Freguesia de S. Ma-


mede, dos anos de 1807 e 1808 entendo que a família assaltada
devia de ser a de um tal Caetano Pereira que ali vivia com sua
mulher Ana Maria e suas filhas Isabel Egídia e Petronilla Rosa e
uma hóspeda Ana Águeda, a que o Rol dá Dom ou então a de ;

Joaquina Tomásia que vivia com sua irmã Joana Teresa le suas
filhas Maria do Carmo e Herculana do Carmo.

— O muro que tapava o topo norte desta rua, onde se fizera


uma das entradas da Floresta Egípcia, já não existe. Foi demo-
lido em 193 1 e a rua avançou mais uns metros ílectindo para o
Norte. No novo troço aberto ha três prédios concluídos e um em
construção. Dos primeiros um é pertença do escultor João Silva^
artista de primeira fila, modelador animalista, admirável, que
-589-
ali tem agora a sua oficina de milagres; outro é do sr. Pedro de
Brito do Rio que o construiu para sua residência.

Palácio Alagôa

(Pág. i6o a i66)

Em 24 de Juniio de 1918 visitei a parte dGste palácio a que


pertencia a capela e que tinha sido propriedade e moradia do
sr. Dr. Magalhães Barros. Comprara-a e reformara-a. Nessa oca-
sião vendia-se, em leilão, casa e recheio. Vi alguns tectos de estu-
ques antigos, apreciáveis, rodapés de azulejos e pouco mais. Entre
os azulejos notei alguns verdes, marmoreados, da Fábrica do Rato,
guarnecendo uma das salas. A casa foi então vendida, ouvi dizer
que por quatrocentos e cinquenta contos, ao sr. Visconde de Sa-
cavém (José) que faleceu pouco depois.
A capela aparte o painel do altar-mor de António Machado
Sapeiro, onde se figura Nossa Senhora da Conceição, tem numa
das paredes uma má pintura do século xvui em com moldura
tela,

recortada, que era o estandarte de Nossa Senhora Mãe dos Ho-


mens. Na parte inferior li o seguinte letreiro

ESTE ESTENDARTE HE DA VIRQEM MARIA MAY DOS HOMENS


DO CONVENTO DE XABREGAS DA ORDEM DO S. P. S. FRAN-
CISCO PRIMEIRA IMAGEM QUE TEVE ESTE TITULO QUE MAN-
DOU FAZER O S. REY D. JOÃO V.

Sem querer, ao fixar esta legenda, vem logo à nossa ideia


Frei João de Nossa Senhora, o gordo poeta de Xabregas que pos-
sivelmente teria empunhado este curioso estendarte.
O teto da capela é de estuque antigo. Tem um rodapé alto
de azulejos do Rato (século xix), uma Virgem das Dores, imagem
de roca, de tamanho natural, um Cristo antigo de marfim, crucifi-
cado numa cruz com contas e remates de prata, feita recente-
mente, no ourives Reis, do Porto, e alguns quadros.
Voltei a visitar a capela e parte do palácio onde ora reside o
sr. engenheiro Gabriel Ramires dos Reis e sua esposa, filha do

grande poeta e diplomata Alberto de Oliveira, a convite deste


senhor. O estandarte de Nossa Senhora Mãe dos Homens e o
Cristo de marfim, já lá não estão. Foram vendidos quando do lei-
lão, assim como os quadros a que me referi.
— bqo ^—
O que vi a mais nesta visita que a gentileza dos donos da casa
tornou agradabilíssima, foi uma guarnição (silhar) de azulejos
holandeses, num dos quartos interiores. Esses azulejos que me
parece não serem da primitiva do palácio, mas sim ali postos por
algum inquilino de bom gosto, como o que agora coube ern sorte
à casa, são do tipo antigo, comum, com o desenho figurado, de
assuntos bíblicos e naturalistas, inscrito num círculo.

S. Mamede-o-Velho

(Pág. i8o a 182)

A pág. 342 do manuscrito 1.069 do «Fundo Geral» da Biblio-


teca Nacional, existe, transcrito, o documento da instituição do
morgado dos Manuéis. em S. Mamede-o-Velho.

Igreja Paroquial de S. Mamede

(Pág. 214 a2i5)

O n.° 35 da Revista Universal Lisbonense de 1844 dá conta do


seguinte episódio ocorrido neste templo :

«Segunda-feira de Paschoa ocorreu na parochial egreja de


São Mamede d'esta cidade um sucesso, que poz todo o povo, ahi
reunido para a missa, em reboliço, e as mulheres em precipitada
fuga : — eram septe horas da manhã. Um homem que se acabava
de confessar, parecia engolfado na oração, levanta-se clamando :

— não ! não hei-de ir não hei-de


para o inferno e principia
! . . . —
a rasgar e despir o fato com uma fúria verdadeiramente de alie-
nado. Procuram cohibi-lo e apoderar-se d'elle foge espavorido ;

e gritando; vai lançar-se por uma escada de mão acima; segu-


ram-n'o —
está phrenetico amarram-n'o; cobrem-n'o com uma
;

manta, e levam-n'o para o hospital, não se lhe percebendo mais


vozes do que um porfiado pedir de confissão.
«Este infeliz, segundo se conta, era o comprador ou copeiro
de certa casa titular».

Este trecho de jornalismo é típico. A ortografia, a pontua-


ção, a redacção, são bem de 1844,
— Sgi —
(Pág. 214)

S. Mamede fêz-se com esmolas de dinheiro, esmolas de ma


terial, e «benefícios»no Passeio Público, como se disse no seu
lugar, os quais se deram nos anos de 1860 e 1861.
De um apontamento dado em tempos peio falecido investi-
gador sr. Joaquim Rasteiro, meu consócio da Associação dos
Arqueólogos, consta, pela sua letra clara, que as pedras que ornam
a custódia de prata doirada deste templo eram de umas fivelas
que pertenceram ao Conde da Lousã. A cruz que encima o fron-
tão, é a da demolida igreja de Santo André. Foi cedida pela Câ-
mara Municipal em i856, como consta dos Annais, tão citados.

O novo templo foi solenemente inaugurado em 24 de Feve-


reiro de 1924. Arquivo aqui duas notícias sobre esse aconteci-
mento.

Do Diário de Noticias de 1 924

A sagração da igreja de S. Mamede

Realizou-se, ontem, a reabertura ao culto da igreja de S. Ma-


mede, tendo a ceremónia revestido grande imponência. As 10
horas e meia chegou o sr. Cardial Patriarca, que era acompanhado
pelos cónegos srs. Santos, Rêgo e Pontes e beneficiados Rocha,
Cabrita e pelo sr. Dr. Henrique Cisneiros Ferreira. Sua Eminên-
cia dirigiu-se à casa da Junta da Freguesia, onde se esteve para-
mentando, procedendo, depois, à bênção exterior do templo, que"
foi seguida de todas as cerimónias litúrgicas. Pouco depois, o
Santíssimo, que se encontrava na Casa do Despacho, foi transfe-

rido para a capela-mor do templo. Os altares, que até ali se en-


contravam desertos, foram ornamentados por vários grupos de
senhoras, destapadas as imagens, que se encontravam veladas, e
acesas as velas de cera, deixando a igreja de ser iluminada a luz
eléctrica.
No interior do templo haviam sido colocadas cento e cin-
quenta cadeiras destinadas aos membros das irmandades dos SS.
de S. Mamede e da capela de Monserraté e alunos do Colégio
dos Inglesinhos.
Seguiu-se a execução da missa de Bordesi por orquestra e
vozes, sob a regência do professor sr. Fernando Cabral, tendo as
despesas, feitas com a orquestra e cinquenta professores de canto,
— bgi —
corrido a cargo do sr. Conde de Fontalva. Ao Evangelho pre-
gou o Cónego Pontes.
sr.

Toda a cera foi fornecida pela sr." D. Tomásia Garrido.


Foi, depois, cantado o Te-Deum pelo prior José Maria da
Silva Livramento, acolitado pelo prior da Encarnação e pelo coa-
djutor da freguesia de Santa Isabel, servindo de mestre de cere-
mónias Monsenhor Càncio, coadjutor de S. Mamede. Seguida-
mente, o reverendo prior de S. Mamede fez uma brilhante alo-
cução, patenteando o seu reconhecimento por todas as pessoas
que o auxiliaram na obra de reconstrução do templo. Um grupo
de catorze senhoras da freguesia, trazendo o emblema do Apos-
tolado da Oração, andou angariando donativos para a conclusão
das obras, tendo a quantia atingido cerca de dois contos.
Como constasse que alguns elementos avançados, no regresso
do projectado comício contra a carestia da vida, iriam ali empa-
nar o brilho daquela festa com algum desacato, o comandante da
polícia dirigiu-se para ali, sendo o serviço de manutenção da or-
dem feito escrupulosamente por guardas da esquadra do Rato,
não havendo a registar o menor incidente desagradável.

Do jornal A Vo^ de 25 de Fevereiro de 1924:

O Prior

Eis a bela poesia em que a ilustre poetisa sr.» D. Branca Co-


laço pôs em contraste as angústias do venerando Prior perante
o espectáculo do incêndio e o júbilo de ver o seu templo restau-
rado :

Quando o furor das chamas alterosas


tomava o Templo, em trágicos arrancos,
quis a Hóstia salvar, com mãos piedosas;
pavorosas
e a luz das labaredas
avermelhava os seus cabelos brancos. .

Hoje, ao doce calor de horas tão belas,


espelha-se a alegria em risos francos :

e cm torno do Prior, a luz das velas,


é uma poeira de rútilas estrelas
doirando suave os seus cabelos brancos...
Branca de Gonta Colaço.

Todos quantos visitaram o templo restaurado ficaram encan-


tados com o seu aspecto.
O trono do altar-mor foi substituído por um formoso retá-
bulo do ilustre pintor Conceição e Silva, de luz suave e mística e
-593-
de um colorido que nos faz lembrar a arte de Tiepolo, Repre-
senta-se nele a alma de S. Mamede aureolada pelo martírio e le-

vada para Deus pelos anjos.


Em lindos azulejos de tom suave são representados dife-
rentes passos da vida do Santo Padroeiro. Em catorze painéis de
azulejos de estilo do século xviii vemos as citações da via-sacra.
O teto é um belo trabalho de estuque e de pintura. Merecem
especial menção os magníficos vitrais de Ricardo Leone de uma
bela tonalidade e de cristã inspiração no desenho, representativos
do Calvário e de quatro doutores da Igreja.
Eis as inscrições que se lêem perto do guarda-vento

ESTA IGREJA INAUGURADA EM XVIII DE AGOSTO DE MDCCLXI


DEVORADA POR UM INCÊNDIO NA MADRUGADA DE XXVI DE MAIO
DE MCMXXI FOI RECONSTRUÍDA POR SUBSCRIÇÃO PUBLICA NOS
ANOS DE MCMXXI E MCMXXII. ARQUITECTO RAUL MARTINS, DI-
RECTOR DOS TRABALHOS, CONSTRUTOR CIVIL ANTÓNIO JOSÉ
CATALÃO.
A outia diz :

A RECONSTRUÇÃO DESTE TEMPLO FEITA APOZ O INCÊNDIO FOI


DEVIDA Á INICIATIVA DE tJMA COMISSÃO DE PAROQUIANOS QUE
TbVE POR PRESIDENTE d'hONRA SUA EMINÊNCIA O SENHOR
CARDEAL PATRIARCA DE LISBOA D. ANTÓNIO MENDES BELO
SENDO PRIOR DA FREGUESIA O REV.° JOSÉ MARIA DA SILVA
LIVRAMENTO QUE DA REFERIDA COMISSÃO FAZIA PARTE —
MCMXXII.

A fundação da igreja remonta de 1220. Foi destruída pelo


terremoto de 1755.
Só em 1801 se abriu ao culto novo templo.
Aos srs. Duques de Palmela, Dr. Cisneiros Ferreira, José Luiz
Monteiro, arquitecto, conselheiro António Vasconcelos Porto,
Fernando de Oliveira Belo, arquitecto Raul Martins, pintor de
vitraisRicardo Leone, mestre de obras Catalão se deve especial
menção. Se fôssemos enumerar quantos bem mereceram pela
coooperação nessa obra de fé !

Seja-nos lícito mencionar ao menos uma ilustre e virtuosa


senhora D. Joana Hintze Ribeiro que se fez mendiga para a obra
:

de Deus com a maior perseverança e dedicação.

Além da cerimónia a que se refere o nosso artigo de fundo,


houve de tarde solene Te-Deum e Bênção do Santíssimo.
voL. IV 38
— 594-
— A capela de Nossa Senhora de Fátima foi aberta ao culto
em i3de Outubro de 1932.
Transcrevo a notícia saída no Diário de Noticias de 12. A
capela fora inaugurada em i3 de Maio de 1927:

• A capela de Nossa Senhora de Fátijna na igreja


de S. Mamede

Na igreja de S. Mamede, em Lisboa, reabre amanhã ao culto


de Nossa Senhora de Fátima, a capela que lhe foi consagrada»
agora enriquecida com os painéis de azulejos representando os
santos portugueses.
Entre esses santos figura Nuno Alvares Pereira, cuja venera-
ção anda intimamente ligada à de Nossa Senhora de Fátima, por
ter sidonos mesmos terrenos da Cova da Iria, onde a Virgem tem
agora o seu santuário, que, segundo a tradição, o vencedor de
Aljubarrota, nas vésperas da grande batalha, impetrou aos céus
protecção para a nossa Pátria.
O culto de Nossa Senhora de Fátima, assim concebido, pre-
tende, pois, terum carácter de culto religioso nacionalista, à fei-
ção de Nuno Alvares, o primeiro que entre nós sentiu a noção
exacta da Pátria, pela qual se bateu, vencendo o preceito até
então existente de que o território nacional era pertença pessoal
e dinástica dos soberanos.
Os santos portugueses, pintados em azulejo pelo distinto ar-
tista António Conceição e Silva e cuja realização se deve em

grande parte aos esforços do zeloso pároco da freguesia, Monse-


nhor Freitas Barros, são os seguintes :

S. Teotónio —
Grão Prior de Santa Cruz, confessor, confi-
dente e amigo dilecto de Afonso Henriques, abençoando as tro-
pas portuguesas e o seu chefe antes do combate.
Santa Mafalda —
Filha de Sancho I, ajustada esposa do Rei
de Castela, Henrique I, que por morte inesperada deste recolheu
ao reino e professou no convento de Arouca, onde se celebrizou
pelas suas virtudes, assim como noutros que também fundou.
Santa Sancha —
Filha do mesmo Rei, fundou o convento de
Gelas e foi a protectora dos franciscanos, cuja ordem acabava de
se formar. Gedeu-lhes o seu Paço, em Alenquer, de onde saíram
os cinco primeiros missionários de Marrocos, e que lá acabaram
mártires.
Santo António de Lisboa — O taumaturgo português e um dos
maiores santos da cristandade, no momento de embarcar para a
- 595 -
evangelização marroquino, e como que a ensinar-nos o caminho
do nosso Império de Além-Mar.
Nuno Alvares — Em Aljubarrota afastando-se dos seus com-
panheiros, recolhe-se em oração a Nossa Senhora e implora-lhe
a vitória para os portugueses.
Santa Joana — A nobre filha de Afonso V, aos iS anos re-
gente do reino, na ausência do pai e do irmão, empenhados na
conquista de Arzila e Tânger, com tanta prudência e justiça pro-
cedia que era a admiração dos grandes da corte. Nas suas ora-
ções pedia com grande fervor o auxílio divino para o bom êxito
das armas portuguesas, e teve a visão da vitória. No regresso, e
tendo já recusado três coroas, qual. delas a mais nobre, alcançou
não sem custo, do pai e do irmão, que a idolatravam, autorização
para professar no convento de Aveiro.
S. João de Deus. — Em Granada, onde exerceu o apostolado,
por tal forma se celebrizou pela sua caridade para com os po-
bres que um hospital por êle fundado se tornou em poucos anos,
pelo seu zelo, o primeiro da Europa, e foi origem dessa famosa
Congregação dos Irmãos Hospitaleiros a quem a indigência tanto
deve. Os painéis honram o pincel do sr. Conceição e Silva. A
forma como êle se desempenhou deste trabalho ressalta à vista
de quem os contempla. Quer na sua composição, quer na sua
execução, foi perfeito. Na primeira há o estudo consciencioso
dos quadros em todos os seus pormenores, a-fim-de correspon-
derem à verdade histórica, e na segunda nota-se o conhecimento
completo da técnica dos nossos passados artistas, com uma maior
correcção no desenho das figuras, sem lhes tirar a leveza dos
antigos.
A capela de Nossa Senhora de Fátima estará patente desde
as 8 horas.

— Da parte crítica deste noticiário transcrito aconselho o lei-

tor a não se fiar demasiadamente. A


lembrança do noticiarista
em citar Tiépolo, a propósito do novo retábulo do templo, é de
uma extravagância ilimitada. Por outro lado as anotações aos
painéis de azulejo da capela de Nossa Senhora de Fátima, feitas
no segundo artigo, são de uma fantasia nacionalista demasiada-
mente exuberante, indo a ponto de se querer firmar uma tradi-
ção que nem sequer existe. ;
Nuno Alvares a rezar na Cova da
\ \

Iria, é de uma politiquice abominável, só comparável à intenção

de Santo António mostrando aos portugueses o Império de Alem-


-Marl ! 1
- 596 -
— A estátua de pedra, que Castilho dizia ser de ctn^el ale-
mão e que para este templo veio da igreja de S. João Nepomo-
ceno, está assinada e é italiana. Na parte anterior do soco, lê-se
o seguinte Pietro Martire Santvs di Milano.
:

A estátua está hoje no corredor que vai da nave para a sa-


cristia, cartório, e capela de Nossa Senhora de Fátima. Com a

mudança, depois do incêndio, ficou à vista a assinatura.

Travessa de S. Mamede

(Pág. 247 a 248)

Em Setembro de igSo começaram os trabalhos do alarga-


mento novo alinhamento desta serventia. O corpo da igreja
e
que tornejava para ela e onde era o cartório, a sacristia e a re-
sidência paroquial, foi demolido, passando tais serviços para o
outro corpo do edifício do lado oposto confinante com a proprie-
dade dos herdeiros do falecido Conde de Fontalva. Foi este titu-
lar quem cedeu à Câmara a faixa de terreno necessária para o
alargamento. Esta construiu o muro de suporte e vedação e pa-
vimentou o novo leito da rua, onde se assentou uma segunda
linha de eléctricos. O bairro ficou assim melhorado na sua liga-
ção com o de Barata Salgueiro. Já em iSSg se pensara, com me-
nos exigências, em facilitar o acesso entre S. Mamede e Andaluz,
ainda longe do sonho da Avenida da Liberdade. O caminho do
Vale do Pereiro começava a ser insuficiente, e pensou-se em pro-
longar esta travessa de S. Mamede até à cerca do antigo quartel
de caçadores 2. Era o esboço da actual rua Rodrigo da Fon-
seca. Consta este projecto do relatório do munícipe Júlio Má-
ximo de Oliveira Pimentel, lido no acto da posse da nova direc-
ção de 1860.

Vale do Pereiro

(Pág. 25o a 25 1)

— Em sessão de 16 de Fevereiro de 1860, o vereador Severo


de Carvalho propôs o alargamento da Azinhaga de Vale do Pe-
reiro, por sinal que nessa mesma ocasião o referido munícipe
propôs, também, que a Câmara solicitasse ao Governo a cedência
da igreja do Carmo para ali se fazer um estabelecimento de ba-
nhos públicos.
- ^97 —
— No extremo do antigo casal da Carvoeira onde estava o
respiradouro do Túnel do Rossio, levantou-se depois um prédio
que ficou tornejando para a rua Alexandre Herculano.

(Pág. 257 a 263)

O Marquês de Fronteira, nas suas Memórias (parte i) des-


creve os episódios passados aqui à roda do quartel de Vale do
Pereiro, sendo ele ajudante do General Sepúlveda.
Este que fora em 1820 o ídolo do povo de Lisboa, o herói de
24 de Agosto, três anos passados caíra no desagrado da turba.
As voltas que a política dá
i
Morras ao traidor Sepúlveda
!

gritavam-se na rua, e o bravo militar, agredido, ameaçado, se salvou


a vida, no Terreiro do Paço, do furor dos chamados patriotas, de-
veu-o ao General Avilez que carregou à baioneta sobre os dís-
colos, à frente de cem milicianos. Saldanha, com as tropas
aquarteladas no Castelo de S. Jorge, descia já, então, até à Baixa
e arrastava outras até Vila Franca. O golpe absolutista já não
tentava iludir ninguém. Dali até o Paço da Rainha a insurreição
alastrava. Sepúlveda, escapo de um tiro de pistola, entre vários
insultos veio então até Vale do Pereiro onde o regimento 16 às
ordens do Coronel Gatinara se conservava firme, em formatura,
defronte do quartel. A noite estava de luar. Enquanto, porém,
o General e o honrado Gatinara entravam no quartel, o Major
Gerardo Oliveira, aparecido de súbito, chegava à frente do regi-
mento dava três vivas a D. Miguel, logo correspondidos com
e
entusiasmo pela tropa. Estava dada a insubordinação. O coronel
nada pôde fazer e o [regimento vitoriando o Infante, e marchando
em direcção ao Campo Grande, secundava o movimento do Ge-
neral Saldanha.
As páginas das Memórias que descrevem a Vilafrancada são
das mais expressivas desta admirável obra.

(Pág. 263 a 265)

No Colégio de Luiz Maigre Restier que em 1804 estava na


Torrinha, ensinava-se a dansar (Pinto de Carvalho artigo na —
revista Brasil-Portugal).
Em 1818 este Colégio estava no Pátio de D. Fradique {Ga-
zeia de Lisboa de 29 de Setembro de 1818).
Em 1810 estava ali outro colégio que era do Padre D. António
da Anunciação Avelino, ou foi poj êle dirigido, juntamente com
-598-
outro reverendo, Joaquim José da Silva Calejo, advogado da Casa
da Suplicação. O último morador da Torrinha foi o cidadão fran-
cês Gustave Mathieu que ali instalara em 1887 uma oficina meta-
lúrgica. Entre o quartel e a Torrinha, havia, nos princípios do
século XIX, a Horta do Freixo (que me parece depois ter-se pas-
sado a chamar dos Cyprestes), retiro arrabaldino muito concor-
rido da estúrdia fidalga da época (João Paulo Freire Lisboa do —
meu tempo e do meu passado, vol. 11, pág. 455).

(Pág, 267)

O edital de i de Setembro de 1869 reuniu, sob a designação


de Rua de Vale do Pereiro, a antiga travessa de Lázaro Verde c
rua do abarracamento de Vale do Pereiro.

(Pág. 271)

O palacete que tornejava para Santa Marta e travessa do


Enviado de Inglaterra onde em 1806 morou o Enviado Lord Re-
bert Fitz Gerald e depois pertenceu ao Marquês de Sá da Ban-
deira, começou a ser demolido, em igSo, para alargamento da
primeira serventia. O prédio por vezes era dado como fazendo
parte da velha travessa da Natária.

(Pág. 282)

Era aqui um dos dois mercados de porcos que havia em Lis-


boa. O
outro era na Patriarcal Queimada (Praça do Rio de Ja-
neiro). A disposição municipal que o estabelece é de 1840. Em
i852, havia mesmo um recinto próprio para a venda dos suínos,
permitido e regulamentado pela Câmara. O mercado, que per-
tencia à firma Matos Pinto & Pinto, intensificava as suas tran-
sacções em Outubro {Sinopse e Annais do Município).

Rua do Salitre

(Pág. 294 a 296)

A em tempos o antigo Hos-


«Escola Veterinária» que ocupou
pício dos Brunos de Laveiras, não está encorporada no «Instituto
de Agronomia e Veterinária». Desde 1910 há duas escolas inde-
pendentes —
a de «Medicina Veterinária» que funciona na rua
Gomes Freire, e o «Instituto Superior de Agronomiax, com edi-
— 599 —
fício próprio na Tapada da Ajuda (informação do falecido inves-
tigador Joaquim Rasteiro).
No edifício dos Cartuxos estão hoje funcionando repartições
do Estado, tendo sido tomado de arrendamento. E ali que se
encontra a Direcção Geral de Estatística. Tem os actuais n."- 62
e 64.
(Pág. 3o 1 a 3o3 e 309)

A família Botelho Moniz a quem pertenciam as casas que


eram em 1818 propriedade de D. Ana Bárbara Moniz da Silva,
provinha do casamento de Luiz Botelho de Sequeira, Fidalgo da
Casa Real e Familiar do Santo Ofício (filho de Belchior Botelho
de Sequeira, senhor do morgado de Vale de Cavalos, em Almei-
rim, Fidalgo da Casa Real, da geração dos Botelhos, de Pêro Bo-
telho, e de D. Luiza de São Payo, senhora do Morgado de Val-
verde, em Óbidos) com D. Isabel Maria Moniz da Silva de Carva-
lhosa, filha de João Moniz da Silva, senhor dos morgados da Ri-
beira de Maia-Afonso em Dois Portos e do Campo de Sant'Ana
em Lisboa.
Dessa união nasceram José Botelho de Sequeira, herdeiro dos
morgados. Fidalgo da Casa Real, e Adrião Botelho de Almeida,
também Fidalgo da Casa. Deste foram filhos José Botelho Moniz
da Silva Mariana Moniz da Silva, casada com o Dr. Carlos José
;

de Mendonça Fialho; e João Anastácio Botelho de Almeida que


foi administrador da Fábrica de Loiça do Rato. De José Botelho

de Sequeira houve descendência ainda hoje representada pelos


apelidos Botelhos Monizes de Sequeira, tendo um dos filhos de
José Botelho, casado com uma segunda sobrinha do grande Ave-
lar Brotero. Do ramo de Adrião Botelho de Almeida, há hoje
também muitos representantes, um dos quais é o sr, Jorge Bo-
telho Moniz. Francisco Carlos Botelho Moniz que morou num
dos prédios da família de 1829 a 1871, era sobrinho e não fiiho
de José Botelho da Silva (informação obsequiosa do meu amigo
coronel Augusto Botelho da Costa Veiga, actual Director da Bi-
blioteca Nacional de Lisboa).

(Pg. 309)

Sobre a família dos Bandeiras do «Arco do Bandeirau, tive


uma espontânea e amabilíssima informação da Ex."^ Sr.* D. Maria
José Dick Bandeira Nobre (proprietária da linda quinta do Vina-
gre, em Colares) em 10 de Julho de 1922. O apontamento genea-
lógico que me enviou é valioso sob muitos pontos de vista.
— 6oo —
Domingos Pires Bandeira, era natural de Viana do Castelo,
filho de António Pires Bandeira e neto de Manuel Pires Bandeira»
de Santo Estêvão da Facha.
Veio para Lisboa muito novo, dedicou-se ao comércio e en-
riqueceu. Foi ele quem ergueu o prédio onde morava no Salitre,
esquina do Vale do Pereiro. Este prédio parece ter sido destruído
por um incêndio no tempo das lutas entre liberais e absolutistas-
Casou Domingos Pires Bandeira com D. Maria Tomázia da
Fonseca, e veio a falecer em i8 de Novembro de 1755 na sua
Teve
quinta de Santa Bárbara de Talaíde, freguesia de Barcarena.
um também chamado Domingos Pires Bandeira, P'amiliar do
filho,
Santo Ofício como o pai, cavaleiro de Cristo, que casou com
D. Gerarda Monteiro de Sampaio e Castro e outro, de nome ;

José Rodrigues Bandeira que veio a ser Familiar do Santo Ofício


e Presidente da Junta do Comércio. Este José Rodrigues Ban-
deira foi o que deu o nome ao «Arco do Bandeira». Nascera em
1706 e veio a falecer a 1 1de Janeiro de 1780, tendo sido casado
com D. Brígida Teresa da Conceição Soiisa, filha de Custódio
Nogueira, grande capitalista e de D Antónia de Sousa, sua mulher.
Possuía muitas propriedades na rua da Betesga, rua Augusta
e outros pontos.
Quando da reedificação da cidade, após o terremoto, diz a
tradição familiar que Pombal fora pessoalmente a casa do Ban-
deira propor-lhe trocas do terreno na rua Augusta por outros na
Betesga. Foi êle quem levantou o quarteirão tornejando da rua
Augusta e rua do Oiro para o Rossio fronteiro ao actual Teatro
Nacional, então Palácio da Inquisição, e daí a construção do «Arco»
em correspondência com o que havia neste edifício. José Rodri-
gues Bandeira condecorado com o hábito de Cristo e uma
foi

tença de 5oí5f)00 do antigo Pescado. Seu irmão Domingos, do ca-


samento acima referido, teve a Domingos Pires Monteiro Ban-
deira que nasceu na casa familiar do Salitre. Foi educado em
Paris.
Serviu os cargos de Escrivão da Real Câmara e Secretário

da Mesa da Consciência e Ordens. Morreu solteiro em 29 de Maio


pe 1800, tendo sido um dos amigos de Bocage. O morgado ins-
tituído por seu avô passou para outro seu irmão Francisco Gon-
çalves Pires Monteiro Bandeira.
De José Rodrigues Bandeira —o do Arco —e de sua mulher,
nasceu, entre outros, Custódio José Bandeira, bacharel em Direito,
Cavaleiro de Cristo, Familiar do Santo Ofício, Tesoureiro da Mi-
sericórdia de Lisboa, Deputado da Junta do Comércio, Juiz dos
— 6o — I

Direitos Reais, Almoxarife da Repartição das Águas da Vila de


Colares, etc, o qual casou com D. Mariana Paula Bollarte Dick,
proprietária do morgado instituído por Afonso Dick em 1712, cons-
tituído por um prédio na rua das Portas de Santo Antão, fron-
teiro ao dos Condes de Almada, e pela quinta do Vinagre em
Colares, ainda hoje na posse da família. Destes foram filhos José
Pedro Dick Bandeira que casou com D. Maria do Carmo Serrão
Diniz (filha do Conselheiro Miguel Serrão Diniz e de D. Josefa
de Sande) e Maria Doroteia que casou com o Desembargador
Manuel António da Fonseca Gouveia. De José Pedro Dick Ban-
deira e de sua mulher, nasceu e foi herdeira D. Maria José
Dick Bandeira, casada com o Dr. António Nobre Pereira de
Almeida, e senhora do Morgado de Afonso Dick. Destes foi
filho José Maria Dick Bandeira Nobre casado com D. Emília de
Abreu, pais da senhora D. Maria José Dick Bandeira Nobre, autora
dos apontamentos que me foram enviados e que em 10 de Julho
de 1922 ainda era a proprietária da quinta do Vinagre e do mor-
gado de Afonso Dick. A quinta pertence a esta família desde 10
de Julho de i63o, datando, porém, a sua fundação de i536, ano
em que o bispo de Silves e Lamego D. Fernando Coutinho nela
instituiu um morgado a favor dos filhos da sua filha natural
D. Isabel Vilarinho.E a sr/ D. Maria José Dick Bandeira Nobre
rematava o seu apontamento genealógico dizendo que se desculpe :

algum equivoco dado nesta noticia referente a uma família mo-


desta e a uma propriedade velha e desconhecida.

(Pág. 3i4 a 3i8)

O palacete Mayer, depois de ter sido clube galante como o


«Maxim's», o «Monumental» e outros, passou em 1929 a ser a
sede da Casa de Espanha. Primeiro adquirido pelo cidadão espa-
nhol D. Matéo Benito Garcia, comerciante da rua da Madalena,
para seu uso particular, este cedeu-o à Embaixada de Espanha
sabendo que esta andava procurando em Lisboa, um edifício para
instalação da «Casa de Espanha» dotado que tinha sido pelo Go-
verno da Nação vizinha um crédito de 900.000 pesetas para esse
fim. Os arrendatários, do palacete, receberam uma indemnização
pela transacção efectuada.
O Parque-Mayer, centro de diversões alfacinhas, com dois
teatros, cinemas, bar's, restaurantes populares, pavilhões, jogos?
esplanadas, moderno avatar do Tivoli da Flor da Murta, da Flo-
resta Egípcia e do Parai^o de Lisboa, singra mais próspero do
— 602 —
que os seus antecessores, cuja vida foi sempre atribulada e difí-
cil. É uma das atracções lisboetas para os naturais e para a
província, e nos meses de verão regorgita de gente que foge ao
calor.
(Pág. 3i8)

A quinta do Moreira era defendida para a travessa do mesmo


nome (hoje rua Júlio César Machado) por um muro. O mesmo
sucedia ao quintal fronteiro junto à Escola Veterinária.Encontro
menção na Sinopse nos Atinais do Município de providências que
e
dão a entender a ruína dessas defesas e o estado de abandono da
serventia.
(Pág. 320 a 323)

Em morou no Salitre Joaquim António da Silva


1844 e 1845
Quelhas mulher D. Inácia da Silva Quelhas. Calculo que o
e sua
apelido fosse tomado da rua deste nome às Trinas que, como já
foi dito, se nomeou assim pela moradia ali de D. Francisco de

Sousa —
o Quelhas de alcunha.
Camilo Castelo Branco, também aqui morou. Di-lo Tinop
num artigo publicado no Brasil-Portugal.

(Pág. 323 a 324)

A «travessa da Horta da Cera» que fazia a ligação para Santa


Marta e Coração de Jesus, estava em 1861 num estado lamentá-
vel. O vereador Severo de Carvalho, em sessão de 28 de Feve-
reiro desse ano chamou-lhe, numa proposta de vistoria, a pior de
todas as ruas de Lisboa.

(Pág. 328)

O vereador Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, em 3 de Ju-


lho de i85g, fez à Câmara a seguinte proposta:

«Proponho que se ttiande estudar desde já a abertura de uma


larga rua, ou boidevard, ou lameda, que partindo do fundo do Pas-
seio Público^ corte pela parte inferior do Salitre, e siga pelas ter-
ras de Vale de Pereiro até S. Sebastião da Pedreira, ramifican-
do-se para o Campo Pequeno».

Era o primeiro esboço da Avenida da Liberdade.


__ 6o3 —
(Pág. 329)

— Em 1860, no dia 25 de Setembro, às cinco horas da tarde^


realizou-se nesta calçada do Salitre a experiência oficial, perante
a vereação, de um salva-vidas para ser adaptado às seges. Era
seu inventor Diogo de Sales de Pina Manique. O sítio era óptimo
para tal experiência dado que eram ali frequentes os atropela-
mentos. Em
1861 em frente do Circo Price foram tantos que o
Jornal do Comércio pediu a atenção da Câmara, e esta oficiou ao
Governador Civil solicitando providências. Os bolieiros faziam
no Salitre campo de corridas.

— Quando foi da eclosão da revolução de 1820, em Lisboa,

no dia i5 deSetembro, o iode infantaria sublevado pelo tenente


Aurélio e que o Conde de Resende teve de comandar, proclamado,
à força, general em chefe do movimento, desceu o Salitre, acom-
panhado de centenares de populares. A meio da calçada encon-
trou um impedimento. Era uma carruagem que pachorrentamente
conduzia o Inter-Núncio, Monsenhor Cherubini que pouco antes
substituíra Monsenhor Macchi. O prelado que era uma figura de
um cómico inexcedível, totalmente calvo mas muito empoado?
alto, gordo, portador sempre de um grande leque, tanto sofria de
calor, ao ver a tropa, e ao ouvir a palavra Revolução, perdeu de
todo a compostura. Ao tempo 'que o cocheiro e o moço da tá-
bua fugiam espavoridos, apeou-se tremendo de medo, e pôs-se de
joelhos no meio da rua implorando piedade. Se não fosse D. Car-
los Mascarenhas que o socorreu e o levou até à Nunciatura, então
no Quelhas, Monsenhor Cherubini teria morrido de pavor.
Conta este episódio o Marquês de Fronteira nas suas admi-
ráveis Memorias (vol. i, pág. 2o5).

Praça do Salitre

(Pág. 439 a 452)

Em 6 e 7 de Outubro de 1781, sábado e domingo, com licença


da «Real Mesa Censória», houve funções na Praça do Salitre, A
de sábado foi um congresso do pirotecnias com fogo do ar e
preso e um espectáculo de dansa, música e outros divertimentos
licitou, e de gosto, para divertimento dcs Senhores Espectadores,
como se diz no programa. A função de domingo foi um com-
bate de toiros, precedido, às quatro horas da tarde por dansas e
— 6o4 —
«carrinhos novos». João Gomes Varela, acompanhado dos capi-
nhas do Marquês de Niza, toireou o cavalo doze toiros
e criados
das manadas do Marquês, matando-os a rojão e a espada. No in-
tervalo, enquanto o operoso Varela descansava, saiu a toirear três
bichos um mudo que era familiar da casa do Marquês Estribeiro-
Mor. O espectáculo acabou como principiara, por cortesias, não
tendo faltado o indispensável Neto.
O Intendente da Polícia quis proibir as funções, e expôs ao
Governo os inconvenientes que eram dois —o perigo do fogo de
artifício de que podem nascer inumeráveis desordens
e o perigo
de se juntarem, nos camarotes e trincheiras, pessoas de ambos os
sexos e entre elas algumas de vida libertina.
João Gomes Varela, porém, levou a sua avante.
Não no programa (transcrito na obra do académico
se falou
António Ferrão —A
/.* Invasão Francesa, pág. clix a clxi) de

outros artistas toureiros. O Coronel Francisco Coelho de Figuei-


redo {Teatro de Manuel de Figueiredo, pág. 366, vol. xiv) cita
como cavaleiros tauromáquicos, o Fava Seca., o Corcunda, o Al-
meirão^inho., o Gaieta, o César e certo homem distinto de Trás-
-os-Montes, de'que oculta o nome como se fosse vexatório empa-
relhá-lo com os outros que pelas alcunhas não percam.
A exibição de fogo de artifício na Praça do Salitre ainda em
1860 era considerada perigosa. Na sessão de 2 de Julho desse ano,
o vereador Vaz Rans, propôs se intimasse o empresário da Praça
a não queimar fogo nos seus espectáculos.
Na Praça do Salitre (artigo de Carlos Alberto, no primeiro
número do jornal taurino O Capote, transcrito por Paulo Freire
a pág. 259 e 260 do segundo volume da sua obra Lisboa do meu
tempo e do passado) toirearam como cavaleiros João dos Santos
Sedvem, Manuel José de Figueiredo e António Roberto da Fonseca
que algumas vezes era também toireiro de pé. Como matadores
exibiram-se lá Sebastião Garcia Calabaça e Pedro Rodrigues e,
como capinhas, João Pedro da Herra, Antão da Fonseca, Dâmaso
de Carvalho, João Alberto —
o Barbeiro —
e António do Carmo
Faria que também era matador.

Prazo da Cotovia

(Pág. 477 e 478)

Em i3 de Novembro de 1860, a requerimento du Marquês de


Castelo-Melhor fêz-se a demarcação e o tombo do Prazo da Co-
— 6o5 —
tovia, tendo a ela comparecido o arquitecto da cidade com a
planta respectiva.

Travessa do Rosário

(Pág. 482)

Nesta travessa, n."' 8 e 10, mora e tem o seu atelier o grande


artista José Vital Branco Malhoa, o mais português de todos os
pintores.

O Mercado da Praça da Alegria

(Pág. 485, 489 e 490)

O avisG do Secretário de Estado, Marquês de Pombal, de de 1

Fevereiro de 1773 {Elementos para a História do Município de


Lisboa, vol. XVII, pág. 398 a 401) foi que ordenou a mudança das

vendedeiras de S. Domingos para este local. O edital de i3 de


Março do mesmo ano, manda mudar para este sítio, as cabanas
volantes que estavam também no sítio da Esperança.

Chafariz da Praça da Alegria

(Pág. 487 6488)

Junto a este chafariz havia em 1783 um aglomerado de bar-


racas que habitualmente servia de velhacouto de vadios e mal-
feitores. A ordem de 24 de Janeiro desse ano mandou-as demolir.
Outra ordem de i5 de Abril de 1785 mandou desentupir os canos,
deste chafariz {Livro g3g-i.° do Registo de Ordens da Colecção da
Junta da Administração dos Fábricas do Reino, pág. 34).

Praça da Alegria
(Pág. 484 a 496)

— Em 1773 foram para esta praça transferidas as vendedeiras


que estavam no Rossio e largo de S. Domingos, com as suas ca-
banas e lugares {Elementos para a História do Município de Lis-
boa, vol. XVII, pág 398 e 399).

— Houve aqui uma famigerada Casa de Pasto frequentada


pelos literatos do romantismo que se intitulava a Padeira. Aí
acamaradaram em modestos ágapes, Herculano, Rebelo da Silva,
Oliveira Marreca, Luiz Palmeirim, Lopes de Mendonça, Bulhão
— 6o6 —
Pato, Bordalo, Ricardo Guimarães, Domingos Ardisson {Brasil-
-Porhigal, vol. iii, pág. 25o — Artigo de Tinop «Um velho tipo
lisboeta» . .
.).

Da Sinopse, Annais q Arquivo Municipais extracto as seguin-


tes notas

— Em i835 (Abril) a Feira da Ladra é mudada daqui para o


Campo de Santana e passa a ser diária.

— Em 1839 (Novembro) começou-se a mudar-se para este lo-


cal o chafariz do Passeio Público.


Em 1840, mandaram-se demolir algumas barracas sórdidas
que havia na praça. Estas barracas eram do professor Caldas Au-
lete.

— Em 1841 mencionaram-se escandalosos abusos nas bar-


racas que se mandaram demolir no ano anterior. É de querer que
fosse a resistência dos abarracados. O proprietário foi indemni-
zado, em 700.^600, em 1843.

— Em 1846, manda-se recolher o muro do quintal de Inácio


José Fernandes que prejudicava o alinhamento da praça.

— Em i852, estudavam-se melhoramentos nas escadas do cha-


fariz. A casa que ali se vê com uma porta no recanto foi feita em
1842.

RETOQUES E ADITAMENTOS
AO VOLUME TERCEIRO
Fábrica da Seda

(Pág. 263 a 265)

A Crónica Constitucional do ano de i833, dá-nos algumas no-


tícias sobre a vida desta Fábrica. As notícias são estas:

—O decreto de 6 de Agosto de i833 extingue a «Direcção da


Fábrica das Sedas e Obra das Aguas Livres», e nomeia Girão
como único administrador {Crónica Constitucional úq ^ àe As^òslo
dei833).
— 6o7 —
— O decreto de 27 do mesmo mês demitiu os Deputados da
Junta do Comércio, Acúrcio das Neves e José Maria da Costa e Sá
por se terem tornado indignos de se empregarem no serviço de
Sua Majestade Fidelíssima, dado o seu criminoso comportamento
{Crónica Constitucional de 19 de Agosto de i833).

— No número da Crónica de 7 de Outubro, vem um anúncio


dos Armazéns da Fábrica, na rua Bela da Rainha. Enumeremos
os artigos que lá se vendiam: — Damascos, sarjas, tafetás, pelú-
cias, veludos, veludilhos, setins, nobrezas, sedas para coletes, se-
dinhas, grodenaplos, lenços, fitas de hábitos, galões de oiro e
prata, talagarças de oiro e prata, meias, luvas, malhas, etc.

— No número de 10 de Novembro, vem um anúncio de um


leilão de retalhos e fazendas avariadas da Real Fábrica da Seda.

Os grodenapes iisos^ a que me refiro a pág. 25 1, e que disse


não saber o que fossem (no anúncio acima chamados grodena-
ples, diz-me, numa carta, o meu amável informador sr. Eduardo
de La Torre Lisboa deverem corresponder ao termo gros de na-
ples que eram uma espécie de tafetás de grão pronunciado, muito
em voga naquele tempo.

Jogo da Pela

(Pág. 354 a 356)

Francisco Coelho de Figueiredo, de pág. 449 a 451 do xivvo-


lume do Teatro, de seu irmão, nas suas confusas, atabalhoadas,
mas curiosíssimas «Notas» pir.ta-nos algumas cenas deste jogo.
Jogavam-no muito os nobres e os estudantes, rojando-se pelo
chão, gritando Raia à Pela quando a viam em risco de ultrapas-
sar o campo marcado, teimando ferozmente entre si, e diver-
tindo os mirones sentados nos bancos que ladeavam, no compri-
mento, o terreno do jogo. A meio dele, em cadeira de ilhargas
forrada de azulejo, o Juiz do jogo, de capotinho, bengalinha e
larga cabeleira para dar autoridade, levantava-se de quando em
quando, para intervir nas discussões e sentenciar, tirando teste-
munhas, quem tinha razão, isto é quem gafara ou não gafara.
O jogo era «vara de visco» para os Estorninhos. Os «estorni-
nhos» eram os estudantes de Santo Antão, vestidos como os de
Coimbra, todos de preto, de casaca ou *à Romana*, com cabe-
— 6o8 —
leira ela, que enxameavam sempre no «Jogo da Pela» seu
ou sem
vizinho.Os Mestres-Jesuítas das Aulas^ cometiam ao Perfeito o
emprego de mandar diariamente o Meirinho botar cordão (fazer a
sua rusga) no Terreiro do Jogo e ele lá ia pelo Arco da Graça,
;

Socorro, rua da Palma, Moiraria, Rossio, espreitar os estorninhos^


vestido de pano preto, com espada de ferro muito comprida e
muito limpa, de que também se assustavam os marujos que vi-
nham, até Santo Antão, desafiar os estudantes para rixas de pe-
drada e de faca,

O José do Rato

(Pág. 358)

O José do Rato, típico servo do tempo das Freiras Trinitá-


rias de Campolide, não se chamava José Duarte, como me infor-
maram chamava-se José
; Epifânio da Costa, segundo me escla-
receu, em carta, o falecido Dr. Santos Farinha.

Leilão da Igreja do Rato

(Pág. 372 e SyS)

A
Irmandade de Nossa Senhora da Conceição, Patrocínio e
S. José, foi instalar-seem Santa Isabel. A imagem da Senhora
dos Remédios, encontra-se igualmente neste templo, adquirida em
leilão pelo sr. Luiz Miguel Purtado Júnior, irmão da referida ir-
mandade (Informação do falecido Dr. Santos Farinha).

Largo do Rato

(Pág. 377 a 4o3)

— Da data da publicação do terceiro volume desta obra até


agora, algumas alterações se têm dado na moderna Praça do Bra-
sil. O seu traçado continua, porém, a ser irregular. As três casas
do princípio do século xviii que fazem frente para a rua do Rato
e para o ante-pátio do antigo convento já se decoram com a ta-
buleta municipal Para demolição — mas ainda estão de pé. O pré-
dio que se construiu na quina de Alexandre Herculano para São
Felipe Nery é um caixote inexpressivo. Não será compensação da
perda das pitorescas edificações de 1730.

—Das publicações municipais Sinopse, Amiais e Arquivo cons-


— 6õ9 —
tam os esforços camarários para «civilizar» o local, desde i835 para
cá, macadamizíições, construções de canos gerais, alinhamentos,
demolições, desentulhos, etc. Em 1845 ainda o largo estava atra-
vancado com entulhos das obras das Aguas Livres, cuja remo-
ção deu origem a um pleito entre aquele organismo e o juiz de
paz de S. Mamede.

— Da Sinopse de i852 consta uma desordem formidável ha-


vida no chafariz do Rato, na noite de 27 de Setembro, entre gri-
do Regimento de Vale do Pereiro?
lhetas, aguadeiros e soldados
a qual obrigou a Câmara um inquérito. Em 1860 foram
a fazer
consertados os degraus do chafariz. Em tal estado estavam que
diariamente os aguadeiros quebravam pernas e cabeças. Em
ali

18C1 (sessão de 18 de Julho)foi resolvido que o largo do Rato

passasse a ser «praça de trens e de seges». Em 246 25 de Agosto


de i863 tornaram a haver desordens de tristes consequências no
chafariz. Quem as promovia eram, ainda, os soldados do Regi-
mento de Vale do Pereiro (Caçadores 2).


As preciosas Memórias do Marquês de Fronteira e de Alorna
enquadram aqui, no largo do Rato, algumas cenas citadinas do pri-
meiro terço do século passado. Os movimentos militares dessa
época, tão agitada, animaram por vezes o Rato onde, no palácio
do Conde da Cunha, o General Sepúlveda teve o seu quartel ge-
neral.
Vésperas da Vilafrancada, vemos aqui passar as forças do
coronel Lobo Pessanha, sair a companhia de cavalaria do Colégio
dos Nobres, depois a revolta dos soldados do coronel, a fuga deste.
e todos os mil episódios desse período de política indecisa e de
facciosismo feroz. Em Julho de i833, no dia 29, passa aqui o
dador, de volta de S. Vicente onde fora pregar no túmulo do
pai aquele célebre papel onde se lia : —
Hum filho te assassinou
outro te vingará. Encontrando neste largo, de carruagem, a con-
dessa da Ribeira, deu-se uma cena de corte. Apeou-se o rei,
apeou-se a dama e rasgaram-se cumprimentos palacianos. Esse
dia foi para D. Pedro IV um dia de visitas, recepções e cumpri-
mentos. Correu os quartéis (Vale do Pereiro, Trindade, S. Do-
mingos e Castelo), visitou o Quartel-General, o Comendador José
Ferreira Pinto Basto, a mulher do Tenente-General Jorge de

Avilez, os marqueses de Alvito e de Angeja,e ainda deu audiência


nas Necessidades.

VOL. IV 39
— 6iô —
Palácio do Marquês de Viana

(Pág. 395 a 402)

Sobre este palácio e a sua capela, transcrevo parte da carta


datada de 8 de Agosto de 1922 que recebi do meu amigo, ilustre
investigador e académico sr. Coronel Henrique de Campos Fer-
reira de Lima:

«Possuo um folheto assim intitulado: Sermão pregado na


dedicação da capella da invocação de Nossa Senhora da Bonança
contigua ao palácio dos illustrissitnos e excellentissimos Marqueses
de Vianna no dia 14 de dezembro de 1846 pelo presbytero Carlos
do Cenáculo —
Lisboa —
na Imprensa Nacional i84j fo- — — i

lheto 8." de vinte e três páginas. O folheto é precedido de quatro


páginas, sem numeração e sem título, assinadas — Almeida Garrett^
«Delas copio o que pode interessar-lhe :

«Foram estes os pensamentos (diz Garrett, depois de várias


considerações sobre a incredulidade, a fé, a cruz, etc.) — ou mais
exactamente, este era o sentimento intimo da alma com que ha
pouco, em 14 de Dezembro deste memorável anno de 1846, assisti
á mais rara e interessante solemnidade em que ainda tomei parte,
á dedicação de um novo templo.
«Ha no palácio dos Marqueses de Vianna, todo o brilho da
riqueza, toda a elegância dos artes, todo aquelle fino gosto que
charateriza o nobre Marquez e as suas splendidas festas nos ro-
deava : a primeira sociedade de Lisboa alli estava, assistia o Sr. Pa-
triarcha, officiava o Sr. Arcebispo de Mythilene ; todas as grande-
zas e todas as atracções alli se reuniam. Mas erguida sobre todas
as pompas da egreja e da sociedade estava a Cruz de Christo,
estava a imagem da Virgem symbolos de fe e de esperança al-
:

çados sobre todas as incertezas e agitações do século !

«A invocação da Virgem é a de Nossa Senhora da Bonança:


e a capella um voto feito pelos Srs. Marquezes vendo-se em pe-
rigo de vida na altura do cabo de Finisterre quando regressavam
de França e Portugal em 1843, no dia 3o de Outubro,
«N'aquelle seu palácio, ao Rato, hoje o mais elegante de Lis-
boa, mora ha muito, com Suas Excellencias a elegância, a urbani-
dade e a perfeita grandeza. Seus splendidos salões amiudadas
vezes se abrem a todas as distinções sociaes sem exclusão de par-
tido ou de opinião. Nunca se fez melhor uso do poder, da riqueza,
da superioridade do nascimento e posição social nem se deu me- ;
-é.i-
Ihor documento do muito que valem reunidas, do quanto podem
ser populares, e da benéfica influenciaque são chamadas a exer-
cer n'uma época difficil como a nossa, A criação da elegante
capella é um remate digno do palácio e do dono d'elle.
«Escrevo aqui o que pensei e senti n'aquel]a occasião, o que
muitas vezes tenho ditto, que o não tome o Sr. Marquez por
lisonja :não as sei dizer.
«A sua festa foi completa. O Sermão —
coisa mais rara que
nenhuma hoje em Portugal — tinha razão, stylo, elevação de pen-
samentos, e não lhe faltava uncção christan.
"Recordarei sempre com satisfação a manhã do dia 14 de
Dezembro de 184Õ.
«Estas palavras de Garrett encontram-se, também, na edição
(em dois volumes) das suas obras completas».

— Neste palácio, ao tempo do Conde da Cunha, esteve o


Quartel General do general Sepúlveda, em iSzS. Transcrevo os
curiosos períodos das Memórias do Marquês de Fronteira e de
Alorna que a ele dizem respeito j(pag. 256 a 258, vol. i)
«O Conde da Cunha, antigo amigo do General Sepúlveda,
duma originalidade pouco comum, duma grosseria espantosa e
dum mau tão pouco natural, principalmente, naquela época, na
sociedade em que nascera, era casado com uma excelente se-
nhora muito bem educada, irmã do actual Conde de Farrobo, e sua
irmã D. Mafalda, em nada se parecia com êle, porque era o tipo
da delicadeza e do bom gosto.
«Infelizes senhoras, porque passaram, na sua primeira moci-
dade, os momentos mais amargos que se podem imaginar. Uma
filha única que o Conde tinha, teria então oito anos e é actual-
mente Marquesa de Viana não tinha a menor educação, a-pesar
;

dos esforços de sua mãe; muitas vezes, por caridade, a tirei da


cavalariça e da cocheira, onde havia o perigo de ficar esmagada
debaixo das patas dum cavalo ou de aprender a linguagem pouco
senhoril dos moços de cavalariça ou dos cocheiros, A ocupação
da pobre criança, durante o dia, era ir à cosinha ou à copa acen-
der os cigarros que fumava o seu extravagante pai.
«As salas do primeiro andar do palácio do Conde, que é hoje
do Marquês de Viana, tinham sido ricamente mobiladas pelo capi-
talista Barão de Quintela, pai da Condessa, e numa delas, via-se o
belo retrato do famoso diplomata Luiz da Cunha, ascendente do
nobre Conde. O ar distinto do diplomata formava um grande
contraste com as maneiras comuns do seu neto.
— 6l2 —
«o quarto que ocupava o General Sepúlveda, ainda que bem
mobilado, era muito incómodo, pela vizinhança do quarto do
Conde, onde reinava grande confusão, desordem e gritaria, em
todo o dia e parte da noite.
«Para haver de tudo na reconcentrada residência do Conde
da Cunha, instalou ali uma loja maçónica, onde se reunia a ralé
da maçonaria portuguesa, por onde se pode fazer ideia da bela
sociedade. O venerável da loja era o capelão do Conde, o padre
mestre Frei Francisco das Chagas, religioso franciscano de Xabre-
gas, gordo, baixo, e sempre de pitada constante nos dedos, com
perto de setenta anos, caindo-lhe a todos os momentos, os óculos
do nariz, e, em todas as caravanas, companheiro fiel do seu fidalgo,
como ele lhe chamava. Quando o Conde passava nas suas belas
carruagens, viamo-lo ir, uma vezes acompanhado do seu capelão,
e, outras, da actriz do Teatro da Rua dos Condes, Maria do Carmo,
com quem ele se distraia amiudadas vezes.
«A bela D. Mafalda tinha muitos admiradores, com o justo
fim de casarem com ela mas seu irmão tinha a habilidade de os
espantar a todos. António de Meneses, que podia ser pai de
D. Mafalda, pois que tinha sido camarada e contemporâneo de
meu pai e tinha a sua idade, e que era primo co-irmão do Conde,
estava o mais enamorado possível, mas o Conde deu-lhe de mão
e foi substituído logo por D. António de Almeida, hoje Conde das
Galveas; mas, em poucos dias, houve um duelo entre o Conde e
D. António de Almeida, duelo ridículo em que não correu sangue
e só produziu o rompimento do projectado casamento.
«Aproveitou imediatamente o ensejo o contemporâneo de
meu pai, D. António de Meneses, contratando o casamento que
mais tarde se realizou. Excelente homem era D. António de Me-
neses, mas um verdadeiro maricas, ainda que foi gravemente fe-
rido em uma das batalhas da Guerra Peninsular.
«Segundo o meu constante costume, levantava-me sempre
cedo e fazia as minhas visitas a horas pouco usadas. Fui dar os
parabéns de casamento ao camarada de meu pai e achei-o na
cama. O seu quarto era verdadeiramente uma câmara de noiva;
o cheiro de almíscar era de perturbar a cabeça, a toilete era igual
à da senhora mais pretenciosa estava deitado num grande leito
;

com belas cortinas de damasco amarelo, com uma touca de noite


e um mandrião, como o de uma noiva, tudo cheio de folhos, e,
com uma voz de velha, disse-me: Entra, meu amigo; não sou a
mana Maria José, com quem muita gente se equivoca; sou Antó-
nio de Meneses, este é o meu quarto.
— 6i3 —
«Uma tal casa e uma tal sociedade não convinham a um ge-

neral de trinta e um anos de idade e com a importância do


meu, e, por isso, tomou a resolução de estabelecer o seu Quartel

General na Calçada das Necessidades, na casa que pertence hoje à


viúva Franzini, o que muito gosto deu a todos os seus Aju-
dantes de Campo, porque todos unanimemente detestávamos o
mau tom e gosto do nosso patrão».

—O sr. professor D. Tomaz de Melo Breyner, Conde de Ma-


fra nas suas Memórias recentemente publicadas (pág. 76 e 77)
traça admiravelmente, com piedoso realismo, o retrato da última
Marquesa de Viana, já no período da decadência. Vêmo-la trô-
pega e alcachinada, com uma opulenta capa de peles sobre os
andrajos da pobreza extreme, acompanhada pela mulata Dorinda.
Morava, então, em Pedrouços com as filhas, e frequentava a Feira
de Belém abancando na barraca da Lima das queijadas, ela cujos
bailes faustosos tinham marcado na alta sociedade lisboeta.
Através da reportagem do baile da noite de 5 de Março de
1847, publicada na Revista Universal Lisbonense, espreita-se essa
pompa elegante e deslumbrante. Remeto para tal artigo o leitor.

Doces

(Pág. 405 a 482)

— Pergaminho a citar, referindo-se à nobreza dos doces na-

cionais,deve ser a notícia que se encontra na curiosíssima Fasti-


gimia de Tomé Pinheiro da Veiga. A mais célebre tenda de
doces de Valladolid era a Tenda da Portuguesa. Isto em i6o5.
Na festa de S. João desse ano vendeu 65o cruzados de guloseimas
rosquillas. suplicaciones, marmeladas, confeitos, etc. E é preciso
notar que na cidade do Pisuerga havia então io5 tendas de doça-
rias onde se fabricavam e vendiam figones, guisados doces, tortas,
empadas, etc. A marmelada de Lisboa, vendia-se lá a cinco e
seis reales. A castelhana custava apenas três. Devia, pois, a
nossa ser mais fina. Turpin (vide Fastigimia) quando acaba uma
história diz : —
Minha história acabada minha boca cheia de mar-
melada (pág. 271).

— As «queijadas de Sintra/, cujo preço tem aumentado na


razão inversa do tamanho, tem uma antiguidade respeitável. Já
em escrituras e outros documentos do século xiv se citara para
— 6i4 —
pagamento de foros. Um saloio erudito, que se assinou Manuel
do Crido, numa carta dirigida ao jornal O Século, aqui há anos»
atribui a sua origem provável aos colonos do sul da França que
vieram para esta região, nos tempos do primeiro Sancho.

— De uma carta que me foi escrita em 1922 (25 de Junho, pelo


falecido orador sagrado Dr. Santos Farinha, transcrevo os se-
guintes períodos
«As especialidades da Esperança (convento da) eram os pas-
lampreias de ovos. Comi muitas por presente da última
téis e as

abadessa que presenteava minha avó.


«As Francesinhas tinham o doce de alperches. Quando pas-
savam fome, mandavam um cuvilhete e enviava-se em troca 600
réis
«De Cheias havia os massapães. A última vigaria in capite,
à hora de receber o S. Viático queimou todas as receitas das
doçarias conventuais.Sant'Ana tinha uma especialidade rarís-
sima, esquisita e de preparação:
difícil —
as ferraduras de ovos !

«O manjar branco a que o meu amigo se refere não é de


Cheias mas sim das cistercienses de Celas em Coimbra. Ainda
me deliciei com êle e oferecia esta singularidade: tinham o man-
jarbranco feito com peito de galinha, e com bacalhau para o
advento e quaresma. E ninguém descobria o sabor do ex-íiel
amigo na alva guloseima».

Para a bibliografia doce devo mencionar ainda a obra do


sr. Emanuel Ribeiro O doce nunca amarelou e as referências a
pág. 245 do encantador livrinho de Gabriel Pereira Pelos Subúr-
bios e Vipnhanças de Lisboa. Sobre «papéis recortados para do-
ces» foi também publicada uma nota na revista Terra Portuguesa.

— Em 1819 vendia-se «batata da ilha« n"uma loja de confei-


teiro defronte do palácio do Marquês de Abrantes (anúncio da
Gazeia de 29 de Maio de 1819).

Rato — Quinta de D. Helena

(Pág. 435 a 440)

Num aviso para uma medição, feito ao Mestre Joaquim José


dos Reis, em 19 de Abril de 1787 diz-se : quinta de D. Helena,
tia

hoje de D. André (Livro (j3g do Registo de Manufacturas, a se-


— 6i5~
guir a pág 26 v." na Colecção da Junta da Administração das
Fábricas do Reino).

— Nos terrenos cia antiga «quinta de D. Helena» pelo norte


da actual rua Braamcamp, inaugurou-se em i de Janeiro de 1927
o mercado denominado «Primeiro de Dezembro».

Transcrevo a notícia de um dos grandes informadores lis-

boetas :

«Nos terrenos onde esteve instalada a Carpintaria Mecânica


Portuguesa, na rua Alexandre Herculano, foi ante-ontem inaugu-
rado o mercado «Primeiro de Dezembro».
«Ao que teve uma certa solenidade, assistiram os pre-
acto,
sidentes e vogais daComissão Administrativa da Câmara Muni-
cipal de Lisboa, srs. Coronel José Vicente de Freitas, Ferreira
Lopes, Bivar de Sousa, Baptista Gomes e Mardel Ferreira, o
sr. Conde de Santar, Director da Praça da Figueira, e empresa

do novo mercado com os seus respectivos representantes srs. Bo-


telho deGusmão e Carlos de Oliveira, etc.
«O novo mercado encontra-se optimamente instalado numa
área de terreno com cerca de 7.000 metros quadrados, estando
provido de cantina, armazém para depósito, abegoaria para reco-
lha das carroças, etc. Os géneros da venda estão divididos por
secções, sendo grande o número de lugares marcados, pois só
para a venda de peixe e hortaliças estão inscritas mais de 400
pessoas. A área principal está toda empedrada e coberta por te-
lheiros, não lhe faltando os modernos requisitos que a higiene
aconselha.
«Aos representantes da Câmara, depois de uma minuciosa
oferecido pela empresa concessionária um copo de água,
visita, foi

motivo para troca de brindes entre o sr. Coronel José Vicente de


Freitas e o gerente do mercado, sr. Carlos de Oliveira. Pelo sr. Bo-
telho de Gusmão foi levantado um brinde à imprensa, que foi cor-
respondido por um dos nossos colegas presentes.
«À tarde foi distribuído um bodo a 100 pobres, constante de
géneros de mercearia».

Tal mercado já ali funcionava com carácter provisório, ten-


do-se, no ano anterior, projectado transferi-lo para S. Bento.
Em Julho de 1925 as vendedeiras deste novo núcleo abaste-
cedor, já davam sinal de si. Quando se realizou no Coliseu dos
Recreios a Festa da Alegria a favor das crianças da Assistência
~6i6 —
Pública, foram elas quem pagaram dos seus bolsinhos, os doces,
brindes e bombons que se distribuíram à criançada.
A ideia de um mercado neste sítio já é antiga. Em iS35 a
Câmara projectara-o no pátio do antigo convento dos Remédios,
adiantando o capital, sem juros a vencer, e ficando o rendimento
metade para ela e metade para as freiras, logo que a dívida se pa-
gasse. As religiosas porém, não aceitaram a proposta {Sinopse
dos Principais Actos Administrativos da Câmara Municipal de
Lisboa).

Palácio dos Guiões

(Pág. 444 a 434)

Uma entrevista com o sr. Júlio da Mota Marques, publicada


no Diário de Lisboa de 9 de Dezembro de iqSi, dá alguns porme-
nores interessantes acerca do Colégio Luso-Britânico que esteve
instalado neste palácio. Transcrevo-a pois aqui

«O sr. Júlio da Mota Marques é um antigo e distinto funcio-


nário que passou grande parte da sua vida no estranjeiro. Hoje
conta setenta e um anos, e, como quere que ontem o encontrás-
semos à porta do nosso jornal, preguntámos-lhe o que fazia:
« — Venho dos Inglesinhos onde fui assistir à festa da Pa-
droeira. .

«E como os velhos têm o vício de evocar, o sr. Mota Mar-


ques começou:
«— Há sessenta um anos — jlembro-me como se fosse hoje!
e
— vim, com os outros alunos do Colégio Luso-Britânico, debaixo
de forma, aos Inglesinhos assistir às festas em honra de Nossa
Senhora da Conceição e receber a medalha e o laço azul que ali

distribuíam. O Colégio Luso-Britânico ! Era no Palácio dos


Guiões, na rua de S. Filipe Nery, onde mora hoje o Conde de
Bobone. Estava sob a orientação dos Inglesinhos. O seu director
era «Father Richard». Eram, respectivamente, professores de in-
glês e de francês, Lewis e o avô do saudoso Luiz Derouet dois —
homenzarrões, altos como torres. Franco ensinava latim e lati-
nidade. E para a escrita e caligrafia (naquele tempo aprendia-se. .
.)

tínhamos Lecoing que mais tarde dirigiu o Colégio.


«Mota Marques recorda os seus condiscípulos, quási todos já
desaparecidos: dois irmãos seus, António da Costa Lima, que foi
lente da Politécnica, o Conde de Figueiró, João e Eduardo Araújo,
sobrinhos do Visconde dos Olivais, o Conde de Belmonte, os filhos
negros do Barão de Agua-Izé.
(6i6fl>
— 6i7 —
« — Hoje, restamos, eu, meus irmãos Joaquim e João, D. Nuno
da Câmara (Belmonte) não sei se mais algum... Depois, fui
e
para a Inglaterra, completar os meus estudos, e não sei que fim
teve o Colégio.
«Uma evocação política:
n —OMarechal Saldanha morava ali ao lado no Pátio do
Geraldes. E nós conhecíamo-lo muito bem, porque era êle quem
ia distribuir os prémios aos alunos do Colégio.

«Recordo-me perfeitamente de o ver sair de lá, em 19 de


Maio de 1870, à frente do seu Estado Maior e das suas tropas,
para o golpe de Estado. Chegámos todos à janela e, como gos-
távamos aclamámo-lo. Foram os primeiros aplausos que o
dele,
caudilho recebeu nesse pronunciamento».

Além das erratas mencionadas no fim do volume terceiro há


mais as seguintes

Pág.
resenha das ilustrações,
índice e erratas
RESENHA DAS ILUSTRAÇÕES
DESTE VOLUME

Pág.

O pátio de entrada do Palácio do Geraldes 280-a

O Palácio do Geraldes, do lado do Parque, vendo-se o


Pombal e as chaminés 288-íJ

S. Pedro de Alcântara no primeiro terço do século xix,

segundo Luiz Gonzaga Pereira 384-ír


Um aspecto da galeria do Aqueduto das Aguas Livres,
segundo Luiz Gonzaga Pereira 432-a

A capela da Cruz das Almas e o prédio do cunhal. . . 496-^7

• Os restos do Palácio dos Malheiros 5i2-a

-O painel das Luminárias, em 1808, no Seminário dos


Meninos Órfãos da Rua de S. Bento 5S4-ÍI

- O Palácio dos Guiões 6iG-a


(ndice

CAPITULO I

Pág.
Sumário: Chegamos defronte da Fábrica do Rato e diz-se
onde era a oficina —
Toponímia da rua e seus mo-
radores —A propósito de faianças cita-se a Cerâmica
Portuguesa e evoca-se a figura de José Queiroz A —
importância do seu trabalho e a sua rara intuição ar-
tística— —
A moda das faianças Uma opinião de Acúr-
cio das Neves —O autor pára e tenta traçar o quadro
retrospectivo da Cerâmica Nacional —
E chamado a
depor o Foral de Lisboa de i5co —
Prova-se que se
não fabricava faiança no país, nessa data —
As «málle-
gas» de Talavera, Sevilha e Valença —
Inventários
reais— O Regimento dos Oleiros de 1572 O que di-—
zem João Brandão e Cristóvão Roiz de Oliveira, no
Tratado da Abastança e no Sumário —
Os Fornos do
Moinho de Vento e as providências da Câmara contra
a extracção de barro do Castelo, da calçada do Com-
bro e da Cotovia —
Os oleiros de Santa Catarina, Je-
sus, São Bento e Janelas Verdes —
Faz-se uma lista
— Mencionam-se os locais onde se vendia a louça no
século XVI —
Documentos pintados de faianças quinhen-
tistas— O falso «canudo» de 1589 e a falsa «Escola

Cerâmica dos Freires de Palmela». Um parecer que
se não justifica quanto às peças brazonadas Quando—
começou em Lisboa a fabricar-se faiança —
O oleiro
que veio de Talavera —
Uma confusão esclarecida —
O que se chamava «porcelana» no século xvi O —
arco dos oleiros na recepção de Filipe II em 1619 e
um romance de Rodrigues Lobo O comércio da—
loiça oriental e um presente do Cardial-Rei ao Papa .
— 624 —

CAPITULO II

Sumário : Emque se conjectura quem seria o oleiro que


veio de Talavera —
Uma nota sobre Francisco de Matos
— A influência oriental na nossa faiança seiscentista
através da Holanda — O empório das porcelanas orien-
tais e as cinquenta fábricas de Delft Contraria-se a—
influência veneziana alvitrada por um investigador —
Peças datadas —
Os tipos da faiança portuguesa «De- :

senho miúdo», «Tecido Oriental» ou «Estrela», «Ara-


nhõesi», «Barôco», «Malmequer», «Bagas», «Renda»,
«Arabescos» e «Esponjado» —
Citam-se várias peças
e apontam-se as suas características pelos elementos
decorativos apresentados —
A influência das fábricas de
Castela e da Andaluzia —
As legendas e os brazões —
O que significavam, conforme a sua localização nas
peças —A teoria do coleccionador Dr. Luís de Oli-
veira — As loiças das frascas conventuais eas peças de
— Ligação entre a decoração destas peças e o
botica
— O que eram os malegueiros e donde veio este
azulejo
nome — As peças atribuídas ao século xvi — Como Jú-
piter dando uma audiência no Olimpo destrói a conjec-
tura das obras cerâmicas dos Freires de Palmela, cuja
Escola não está provado ter existido 27

CAPITULO III

Sumário: As composições cerâmicas do século xvi que apa-


recem datadas —
A propósito do púcaro de Coimbra,
da colecção de Mestre Gonçalves, faz-se uma digressão
sobre púcaros —
Citam-se vários trabalhos acerca de
tal matéria —
Púcaros de oiro, de prata, de vidro e de
barro —
A mania de beber água e a de comer púcaros
—O vasto assunto dos azulejos — Enumeram-se os
tipos dos azulejos nacionais : Rótulos e Pendurados,
Diamantes ou Jóias, Caixilhos, Laçaria e Rosas, Ta-
pete, Folhagens, Jarras, Painéis, Motivo isolado, Cari-
catura e Grinaldas — Citam-se alguns pintores as suas e
obras — Azulejos — Os variados assuntos tra-
datados
tados nos azulejos de figura — Fabricam-se azulejos no
- 625 —
Pôrto e no Juncal — Registos, figuras recortadas, cru-
zes, — Fica estabelecida uma
alminhas e lápides de foro
linha genealógica e cronológica no azulejo — Os escul-
tores barristas — Frei Pedro, escultor barrista da es-
cola de Alcobaça, em 1676 faz umas figuras para um
Senhor da Tábua — Interessante documentação A —
«louça grossa das Olarias» e a «louça fina de Lisboa»
— Um parecer do bispo do Grão-Pará — Toponímia ce-
râmica — Em que se diz ao leitor onde era o «largo
da Cruz do Azulejo» 49

CAPÍTULO IV

Sumário: Principia a fábrica do Rato a funcionar em 1767


— As «condições» com o Mestre Tomaz— Brunetto
Quem — Diz-se da sua escassa sabedoria
era o Mestre
e dos artífices com quem se aperfeiçoou — A «blague»
do Contra-Mestre José Veroli que era genro de Bru-
netto e copeiro de profissão —
Gita-se o mestre Se-
verino José da Silva —
Os desmandos de Brunetto —

O regulamento da Fábrica A fábrica de Paulo Pau-
lette rouba oficiais ao Rato — E pro'ibida a importação
de loiça estranjeira — Exceptua-se a loiça oriental e,

mais tarde, a inglesa — São expulsos Brunetto e Veroli


— «Condições» com o novo Mestre Sebastião Inácio de
Almeida, pintor — Severino mestre da Roda e do La-
boratório — Obras e reformas apressadas — Abusos na
venda da loiça — MestreAlmeida propõe-se ficar com
a fábrica — Novo —
em 1777 O Mestre mode-
contrato
lador José Baptista de Almeida —
Várias providências
para dar saída à loiça artística — O gosto, a moda e o
luxo —
A opinião de Acúrcio das Neves e o amor de
Pombal pela fábrica —
Os artistas pintores, modela-
dores e rodeiros que trabalharam no Rato de 1767 a
1779 — —
Uma lista valiosa Comprar loiça no Rato
para agradar a Pombal —
Citam-se importantes enco-
mendas e vendas —
As baixelas brasonadas do Rato —
As encomendas para as Companhias Privilegiadas e
para os particulares ricos —
Citam-se algumas peças
brasonadas que hoje se conhecem —
Os Inventários e
voL. IV 40
— 626 —
pág.
as listas para leiloes documentando toda a produção
do Rato — Lista das peças fabricadas, nomes, variantes
e preços — Algumas considerações sobre a extensa
lista — Peças de — Alguns leilões
nomes misteriosos
em 1770 e 1771 — Um grande negócio de Veroli — Ci-
tam-se algumas peças de excepção — Em que se diz
a receitada «pasta» e do «vidrado» do Rato, neste pri-
meiro período 73

CAPITULO V

Sumário: Relata-sea gerência do administrador Botelho de


Almeida, de 1779 a 1816 —
Quem era este sujeito —
Lucros da Fábrica de 1779 a 1812 Um projecto de —
José Joaquim Terrier —
Citam-se outras oficinas cerâ-
micas — Obras na Fábrica do Rato — Falta de lenha e
de carvão em 181 1 — Artistas que trabalharam no Rato,
neste período — Oleiros e pintores. — Os azulejos do
Rato — Citam-se algumas obras aqui feitas —O seu
«tipo» — As oficinas da Bica do Çapato e do Rato pro-
duzindo o mesmo azulejo — Entra em scena o Dr. Joa-
quim Rodrigues Milagres — Quem era o Inventor da
nova loiça — Uma hipótese admissível — Introduz-se
na Real Fábrica e principiam os ensaios — Favor real
que lhe era dispensado — Primeiras questões comi a
Direcção e excessivas despesas com o novo Invento
— Requere Milagres se lhe trespasse a Fábrica —O
projecto dos irmãos Raposos, sobrinhos de Bartolomeu
da Costa — Ideia de uma outra loiça fina —Nada se
resolve — Exames e avaliações à loiça do Dr. Milagres
— Lucros fictícios e prejuízo real — Outro projecto
do negociante Luís António da Costa Botelho de —
Almeida pede a demissão de Administrador da Real
Fábrica —
Nova discussão sobre a loiça do Milagres —
O o Guarda-Livros, alheiam-se da
Procurador Fiscal e
questão e o Doutor irrita-see reclama para S. A. R.
— Uma carta insultuosa e ameaçadora Morrem o —
Botelho e o Milagres —
Cessa a questão O segredo —
do «pó de pedra» que era faiança — Diz-se a «receita»
ao leitor 97
— 62'7 —

CAPITULO VI
Pág.
Sumário: A infeliz administração de Vandelli — Luta entre
a Teoria e a Prática — Mestre e Administrador incom-
patibilizados — Acusações, queixas e intrigas — A «gafe»
dos três hemisférios — A Procuradoria Fiscal e a Di-
recção resolvem o problema, ficando tudo na mesma
—O negócio do azulejo; diz-se qual era e como era —
Vários tipos de azulejo feitos na Fábrica — Vinda dos
barros de Leiria e venda de loiça para essa região —
O projecto de Mateus Pereira Pacheco — Um adian-
tamento ao Mestre Paula e Oliveira Vandelli acu- —
sa-o de novo —
Devassas e inquéritos sem resultado —
Dois projectos dos negociantes de loiça Inácio Pereira
Guimarães e Vicente José —
O combustível empregado
na Fábrica — Ensaios com os barros de Cascais feitos
por Salvador Luís e Silva Franco —
Vêm para a fábrica
barros de Molelos —
O dr. Tomé Roiz Sobral e a sua
acção na oficina castigos, abusos do pessoal, preços
:

e leilões —
Os Armazéns da Fábrica na rua do Arsenal
e na Rua Bela da Rainha —
Perda de fornadas É a —
Fábrica avisada de que vai vender-se Susta-se a or- —
dem —
Os ensaios felizes de Salvador Luís Renasce —
a questão Vandelli-Paula e Oliveira Sai Vandelli da —
Administração —
Reclamação sua Mais dois preten- —
dentes à Fábrica do Rato —
Superintendência do bri-
gadeiro Francisco Amónio Raposo, de 1823 a 1829 —
Quesitos postos à Direcção da Fábrica das Sedas —
Dividem-se os pareceres —
Outro engenho de moer
vidro —
Encomenda para a quinta real do Rio de Ja-
neiro, e o busto de D. João VI feito por Salvador
Luís —
Intervêm os mestres da Aula de Desenho —
Abatimentos nas vendas e leilões A administração —
do brigadeiro Raposo —
Outro pretendente à oficina
do Rato 117

CAPITULO VII

Sumário : A administração do Brigadeiro Francisco Antó-


nio Raposo — Experiências infelizes —A Fábrica do
'
— 628 -
Pág.
Rato em ruína — Citam-se as suas instalações O —
novo Administrador Teixeira Girão —
Quem era este
sujeito —
As suas opiniões sobre a Fábrica Uma —
aula de Química e outra de Desenho Propõe-se um—

professor e um compêndio A sua receita quanto à um
novo «biscoito» — O estado precário da oficina Obras —
e despesas — Citam-se alguns artífices e empregados —
O Mestre de pintura Joaquim José Guimarães Su- —
cede na Administração Francisco António Chaves —
Reduções de despesas e de pessoal Economias e —
mais economias —
Vai a Fábrica à praça em i835 e
acaba o estabelecimento —
Citam.-se algumas fáljricas
de loiça em Lisboa —
As descobertas de Bartolomeu
da Costa, de Drouet e de Brocard —
José Manso Pe-
reira faz experiências com a «Tabatinga» — As peças
atribuídas a Bartolomeu da Gosta — O serviço de chá
da Exposição de Cerâmica do Porto em 1882 —
baixela da inauguração da estátua equestre — Outra
baixela de porcelana, alegórica — A loiça do «Ratinho»
— Acaba o capítulo com uma transcrição da Cerâ-
tnica Portuguesa de José Queirós 143

CAPÍTULO VIII

Sumário Achamo-nos, o leitor e eu, no Jardim das Amo-


:

reiras —
Apontam-se as quintas em que se recortava
aquele terreno e os caminhos que as serviam A classe —
dos Fabricantes de Sedas —
É projectado um bairro
para ela —
Escolhe-se na vizinhança da Casa da Água-
— O primitivo plano do engenheiro Carlos Mardel —
Sua vastidão —
Retraimento da iniciativa particular
— O "Real Colégio das Manufacturas» sonhado por
Pombal —
É ordenado o começo da obra Afora- —
mento dos terrenos —
As barracas provisórias de 1755
— Planta-se a Praça, de amoreiras —
A amoreira do
Marquês —
O abarracamento dos Carmelitas Calçados
— Transfere-se para o Carmo a Imagem de Nossa
Senhora em 1758 —
Origem de alguns nomes das ruas
bairristas —
As travessas da Légua da Póvoa, da Lebre,
das Bruxas, de S. Francisco Xavier, do Alto de S. Fran-
— 629 —
Pág.
cisco, etc. —A Fábrica dos Pentes — Diz-se o que lá
se fabricava e citam-se os seus mestres — A «tarta-
ruga do Alentejo»— A Fábrica de Caixas de Cartão e
Vernizes— Dois incêndios — Trespassa-se a Fábrica dos
Pentes e arremata o fabrico o contrato do marfim,
e
o Erário Régio — Reivindicações operárias — Faz-se
uma dos
lista — Citam-se os pintores que
artífices tra-
balharam na Fábrica das Caixas, e enumeram-se os seus
artefactos — As iniciativas de La Croix —O atrazo da
indústria nacional no século xviii —
A Fábrica de Cute-
laria —Mencionam-se os Mestres e alguns artífices —
Faz-se uma lista dos artefactos que lá se produziram
— A Oficina de Ferragem de Cirurgia Um mestre —
de fazer lancetas —
Mencionam-se várias outras fábri-
cas semelhantes —
A Fábrica de Relójios O génio —
irrascível de Berthet —
Lista dos oficiais da oficina —
O progresso no tempo de Durand Os relojoeiros que—
lhe sucederam —
Um relójio feito para o coleccionador
Marquês de Marialva —
Mencionam-se alguns relójios
e alguns relojoeiros —
Oficinas em Lisboa, Santarém,
Maia e Barcelos, e na índia, Brasil e Moçambique O —
carrilhão de Alcobaça i6i

CAPITULO IX

Sumário: Continua-se a matéria do capítulo antecedente —


Uma digressão a propósito de relójios De Frei João —
da Comenda a Cláudio Berthet —
O príncipe D. Teo-
dósio fabricante de relójios —
Citam-se vários relójios
e relojoeiros— Fábricas de Serralheria em Lisboa e
Pernes — Os Schiappas-Pietras — Progressos destas ofi-

cinas — Diz-se o que se fabricava — Encomendas im-


portantes — Um trono-jaulaparael-reiD.José, mandado


fazer por Pombal — Fábrica de Limas em Alcântara
— Diz-se o que se fabricava nestas oficinas — A Fá-
brica de Botões e a de objectos de estanho de Giulia-
netti— Reclamações dos latoeiros — As abotoaduras
— Botões de estanho, casquinha e prata —
setecentistas
Citam-se algumas oficinas metalúrgicas da época — A
Fábrica de Fundição de Metais — Manufacturas pro-
— 63o —
Pág.
postas para a sua importação ser proibida — Leiloa-se
a Fábrica — Uma tapeçaria encomendada pelo Conse-
lheiro — Outra fábrica em Estremôs — Outra
Sobral
vez a Oficina de charões, vernizes e caixas — Suas vi-
cissitudes — A Aula de Estuque e Desenho — Seus dis-
cípulos e'aprenJizes — Reclamação contra os estuca-
dores, não habilitados — Uma de fábricas pomba-
lista

linas privilegiadas — Os documentos da «Junta da Admi-


nistração das Fábricas» e a História da Indústria Por-
tuguesa 202

CAPÍTULO X

Sumário A capela de Nossa Senhora de Monserrate


: Sua —
fundação —
Citam- se dois alvarás régios Faz-se a —
trasladação para a nova ermida —
Algumas palavras
sobre a Irmandade —
Sua constituição e compromissos
— Os fabricantes de largo e de — Descreve-se
estreito
o templo minuciosamente — Os seus belos azulejos —
Obras antigas e festividades diversas —A primitiva
Feira —A Princesa da Beira e a criação dos bichos de
seda —O arraial e romaria dos Prazeres — Sua ori-
gem — É transferido para Campo de Ourique e de-
pois para as Amoreiras — Notícias sobre a romaria dos
. Prazeres — A feira das Amoreiras — Transcreve-se uma
descrição de Júlio César Machado —As barracas das
figuras de sêra — Descreve-se uma — Os teatros — A
barraca dos Dallots — Algumas notas sobre estes co-
mediantes — Para onde passou a Feira — Modifica-se o
bairro — Uma vista de olhos pela antiga Colónia Fa-
bril— O registo de azulejos da rua das Amoreiras —
Um teatro bairrista — A toponímia da rua e dos pontos
próximos 235

CAPITULO XI

Sumário : De Entremuros à rua de Artilharia —


Variadas
i

designações deste local —O «vasadouro» de lyiS Um —


concerto instrumental e vocal numa «casa de pasto» —
— 63i -
Pág.
Outras quintas —O — Descreve-se
Pátio do Geraldes
a casa actual e o antigo convento dos Oratorianos —
ermida, as imponentes chaminés, o palácio e suas de-
pendências — Informação do Padre Manuel Portal —
Volta-se ao Rato e à quinta de D. Elena — A invasão
dos foragidos da cidade em lySS — Uma povoação de
barracas — Luxo e miséria — Os que habitaram a
quinta de D. Elena — Procissões, penitências e preces
—O pavor dos terremotos em ij55 e 1756 —O trá-
gico-pitore?co do local — As duas quintas dos Padres
Quentais — Os seus moradores ilustres em 1756 — Bar-
racas opulentas — Os oratórios e o culto — Visitas e
embaixadas ao Cardial Patriarca aqui abarracado —
Instalam-se na quinta a Relação Patriarcal e o Senado
da Câmara —
É vendida a casa e quinta dos Padres
Quentais -^ Gompra-as o Desembargador Bartolomeu
José Nunes Cardoso Geraldes de Andrade Diz-se —
quem era o comprador e fala-se na sua família 26'i

CAPITULO XII

Sumário: CompÕe-se a lista dos moradores do Palácio dos


Geraldes— Uma reclamação da proprietária da quinta
— Continua a história da casa — As reuniões de Mi-
guel do Canto — Mora no «Geraldes» o Marechal Du-
que de Saldanh — Os seus serões — D. António da '

Costa, descreve o 19 de Maio —


Os últimos inquilinos
— Notáveis moradores de Entremuros Os Palácios —
Balsemão, Costa e Silva e outros e a «Casa de Saúde-j
— Mais gente notável —
O leilão do Conde de Rhode
— —
O Quartel de Artilharia O achado de um brasão
— Promete-se estudar logo o assunto —
A casa e quinta
do Guarda-mor —
O casal Monte-Almeida e as quintas
que o formaram —
Os comícios da Torrinha e a «Feira
de Agosto» —
A célebre questão do Parque Eduardo VII
— Esboça-se o seu início e desiste-se de contá-la As —
obras do Parque, o 5 de Outubro. e o resto
. . O —
«Sebastianismo» dos lisboetas —
As obras actuai?, os
pavilhões, o lago e a «Estufa fria» — O ódio à árvore. . 381
— 632 —
CAPITULO XIII

Pág.
Sumário Elogio da água
: —
O que das águas de Lisboa dis-
seram Duarte Nunes do Lião, Luís Mendes e Marinho
de Azevedo —
Propriedades milagrosas e medicinais da
água do chafariz de El-Rei —
As vozes e os rostos das
mulheres de Lisboa —
As supostas Termas e o Aque-
duto romano — Noticiam-se as sucessivas descobertas
do Reservatório da rua da Prata —
O que há de ver-
dade sobre a matéria —
As Conservas da Água já
aproveitadas pelos engenheiros pombalinos A Baixa —
no tempo da dominação romana —
As galerias do Ros-
sio e do Arco do Marquês de Alegrete —
O nome pri-
mitivo do chafariz de El-Rei —
Aumenta a população e
falta a água —
Os cercos de ii85 e i373 —
A sede dos
sitiados —
D. João II e os chafarizes —
O poço do Ros-
sio em tempo de D. Manuel —
Os projectos para a con-
dução da água do chafariz de Andaluz —
Brigas junto
às fontes públicas —A postura das Bicas em i55i —
Como se abastecia de água a Lisboa quinhentista —
Relação de todos os poços e chafarizes em i552, se-
gundo o Tratado da Magestade, Grandesfa e Abastança
da Cidade de Lisboa, escrito por João Brandão For- —
necem-se ao leitor indicações topográficas de todos
esses mananciais de água 3o3

CAPÍTULO XIV
Sumário : Um projecto quinhentista de condução de água
—O poeta narrador de 1626 — Os chafarizes dos Ca-
valos e de El-Rei e a Bica do Çapato —
Os vendedores
ambulantes no século xvi —
Moiros, negros e galegos
— O projecto imaginoso de Francisco de Olanda —
Analisa-se o desenho da Fonte dos Elefantes A sede —
em Lisboa em i5i6 —
Procissões rogativas Diligên- —
cias para a condução da Água Livre no reinado de
D. Sebastião —
Lançamento de imposições sobre a
carne e o vinho —
A condução da água de Andaluz para
o Rossio — Os preços da água em 161 1 — Propõe-se o
Senado trazer a Lisboa a Água Livre — As ideias do
primeiro Filipe a este respeito — Exames e vistorias —
— 633 —
Pág.

O Roteiro da Agua Livre de Pêro Nunes Tinoco —


Medições até o Moinho de Vento Outros exames—
— Curiosos desenhos de Tinoco —
O portal da quinta
dos Apóstolos, o Noviciado da Cotovia e os Fornos
da Louça —
Prosseguem as diligências da Câmara —
Gomo o monarca intruso dificultava a obra, parecendo
patrociná-la —
Visita de El-Rei à Água-Livre Con- —
Câmara e o Soberano
tinua o duelo entre a O «papel» —
de Leonardo Turriano —
Os quatro projectos do Aque-
duto —
Onde se fala no aqueduto romano e na fonte
de Santo André —
Ordena El-Rei uma nova vistoria —
Continua o chafariz de El-Rei a dessedentar_a cidade.. 329

CAPÍTULO XV

Sumário: Condução da água de Cheias Compra-a o Se-—


nado —
Litígio entre a Câmara e os herdeiros do ven-
dedor —
Condução da água ao Terreiro do Paço —
Preços da água no século xvn —
Desordens nos chafari-
zes — —
A fonte do Salgado É distraída a água das
fontes públicas da Horta-Navia, Anjos e Samaritana —

Demandas enfadonhas A bica dos Olhos de Agua —
Os banhos do cirurgião Guilherme e o Enviado de
Inglaterra — Apresenta um projecto para levar a água
ao Bairro Alto, um
António de Miranda Malogro da —
primeira experiência —
,0 projecto de Teófilo Dupi-
neaut —
Sua demorada análise —
O parecer do Síndico e
dos Procuradores da Câmara —
Onde se mostra por que
tal projecto não foi avante —
Turva-se a água do Cha-
fariz de El-Rei —
Descobrem-se-lhe duas novas nascen-
tes —Seca o chafariz do Rossio —
Um vedor de águas,
Visiense, em Lisboa —
Entaipa-se a porta da ermida da
Água-Livre —
A fraude das quartas de barro Pos- —
tura municipal —
Desavêem-se os oleiros e os aguadei-
ros —O projecto de António Júlio de La Pomarée
A sede de Lisboa —
Aproxima-se a obra Repar- —
tem-se por Cláudio Gorgel e por D. João V os elogios
devidos aos propugnadores e iniciadores da obra das
Aguas Livres —
Opinião dos vereadores e procuradores
acerca do tributo a lançar-se — Orçamentos e cálcu-
'.
'...
los 353
— 634 —
CAPITULO XVI
Pág.
Sumário: Sai o decreto mandando começar a obra Isen- —
ta-se a Câmara do pagamento das sisas —
Principiam
os trabalhos — Os protestos do clero e o princípio da
autoridade régia — Funda-se a primeira Sociedade de
pedreiros construtores — Várias irregularidades — O
prior de São Nicolau dirigindo as obras — Empréstimos
e dívidas —
Pareceres técnicos acerca da matéria dos
canos —
Abusos e reclamações —
O projectado Aque-
duto Monumental de São Pedro de Alcântara e a
«Mãe de Agua» —
Expropriações neste local Um so-—
neto ao chafariz —
O que era o Sequeiro de São Roque
— Vicissitudes
passadas da actual Alameda A histó-—
riade uma grade e os suicídios —
Adiantam-se os tra-
balhos das Aguas Livres —Informações do Mercúrio
Histórico de Lisboa— Concorrência do povo à Senhora
de Santana e a Campolide — Outras Sociedades de Pe-
dreiros — Questões várias — Custo total da obra — Ver-
bas extravagantes incluídas na conta do Aqueduto —
Em que mãos esteve a administração da obra — Apon-
tam-se os técnicos que a dirigiram 375

CAPÍTULO XVII

Sumário Descrevem-se o Aqueduto e a «Casa da Água» nas


:

Amoreiras —
As antigas e modernas inscrições do Arco

Grande das Amoreiras Conclui-se a Casa da Água —
Enumeram-se as várias galerias abastecedoras dos cha-
farizes — Notas sobre as fontes do Bairro —A pedin-
chice dos «sobejos» —A «Junta» tentando defender a
água dos apetites particulares —
O povo pede que se
distribua a água por novas fontes —
Medições, visto-
rias e estudos —
Começa a acentuar-se a falta de água
— Providências municipais — Uma «partida» do Val-
verde para acudir à seca do chafariz do Loreto — Vá-
rias leis, editais, posturas e providências diversas sobre
aguadeiros, chafarizes, preço da água, etc. — A Câmara
Municipal herda o legado da Junta das Águas Livres
— Os últimos retoques no Aqueduto — A estiagem de
— 635 —
Pág.

i833 — o corte das


Águas Lavres —
Boatos terroristas
— Medidas adoptadas pelo Governo —
Novas estiagens
em 1834, 1839 e 1840 — Continuação da falta de água.. 403

CAPÍTULO XVIII

Sumário : Ainda a falta de água — As ideas de Estevão


Cabral em 1791 — O — Fran-
exército dos aguadeiros
cisco Sodré apresenta, em 1823, o seu fantasioso pro-
jecto de abastecimento de água em carros de bois —
Segundo projecto do General António Bacon — Ter-
ceiro projecto de Francisco Martins em 1847 — Um
dilúvio de propostas e de planos — Abrem-se concur-
sos para o abastecimento de água — Várias e pro- leis

vidências — Quarto projecto de Duarte Cardoso de Sá.


— Cria-se em i855 a Companhia das Águas — Citam-se
as dificuldades que teve de vencer — Anulação do pri-
meiro contrato — Faz-se segundo contrato em 1867 —
Iniciam-se os trabalhos — Traçado do canal do Al-
viela e orçamento da obra — Sua inauguração na cerca
dos Barbadinhos em 1880 — A célebre questão da pas-

sagem dos Arcos das Águas Livres — Castilho defende
a proibição — Os suicídios e os lendários crimes de
Diogo Alves — Fecha-se a passagem — Destino de al-

gumas figuras de pedra dos chafarizes — Apontamento


final sobre a falta de água — Comissões, estudos, de-
cretos e questões — ^Resolver-se-á o problema ? 423

CAPÍTULO XIX


Sumário São João dos Bemcasados Refere-se a história da
:

fundação da ermida de Nossa Senhora da Boa Sen-


tença —
A promessa de um soldado de Alcácer-Quibir
— As nove invocações de Nossa Senhora Funda-se—
a ermida do Cabeço do Alperche —
A imagem de São
João Baptista —
Em que se procura a razão do nome
de São João dos Bemcasados —
Pede-se auxílio a Diogo
de Paiva de Andrade e a D. Francisco Manuel de Melo —
O «assento» da Câmara de i385 contra a barriguice de
casados —
A quem pertencia a capela no século xviii
— 636-
Pág.
— Dois esboços topográficos — É demolido o templo-
zinho — A casa nobre dos Anadias — Serve de hospe-
dagem ao Carlos — Notas biográficas
infantinho D.
— Frequentes visitas régias a São João
deste príncipe
dos Bemcasados — Invocam-se as figuras do «César pol-
vilheiro» e da «Mulher do cavalo branco» — Passa a
casa ao Secretário de Estado Aires de Sá e Melo —
Reside lá D. Joana Perpétua de Bragança — Notas bio-
gráficas desta fidalga —O seu sumptuoso e festejado
casamento —
As dívidas do Marquês de Cascais Arde —
o palacete de São João dos Bemcasados em 1780 —
Hospeda-se D.Joana Perpétua no convento do Rato —
Morre em 1785 —A sua notável correspondência com
D. João Carlos de Bragança — Precioso repositório de
notícias do tempo —
Outros hóspedes reais em São
João dos Bemcasados —
Algumas palavras sobre os
Anadias —
Alojam-se no palacete um general francês
em 1808 e os generais ingleses em 181 Obras em 1 —
1821 e i83o —
Outros moradores A moderna ca-—
pela da casa Anadia —
Enumeram-se os seus quadros e
imagens 441

CAPÍTULO XX

Sumário : Um artigo de Bulhão Pato, sobre a «Casa Ana-


dia« — Preciosidades que lá se continham — Quadros
de Vieira Portuense e de Sequeira — A baixela de prata
— As festas em casa do Conde de Anadia — Os
e as jóias
habituais convivas — Apreciação que Bulhão Pato fez
do popular Conde de Anadia — Um raro exemplar de
faiança — O teatrinho do Palácio — O Palácio Real de
Campo de Ourique — A rua de São João dos Bemca-
sados— A Joaninha Italiana — A rua do Portal de São
João — A questão dos Polvoristas — A Fábrica da rua
Formosa — São intimados a sair de lá os Polvoristas —
Marca-se-lhe local para a Fábrica em São João dos
Bemcasados — Resistem econseguem vencer o Senado
da Câmara— Duas terríveis explosões de pólvora em
— Casos extraordinários que então se deram
1576 e 1745
— A Torre da Pólvora e as casas da Pólvora — A casa
— 637 —
Pãg.
dos Laguares —
O Arco do Carvalhão Diz-se quem —
era este Carvalhão —
Ghega-se à Crwf das Almas —
Onde era, e o que era a Cruz de São João dos Bemca-
sados —
O portão n.° 221 da rua das Amoreiras Esta- —
belece-se uma hipótese aceitável —
O brasão dos Re-
belos e o portal sobre que ele assentava De quem —
eram as casas que tinham a cruz —
A ermida da Cruz
das Almas —
Diz-se quem foi o fundador Descre- —
ve-se o interior —
Um lindo rodapé de azulejos do Rato
— Descrevem-se as alegorias da composição Um —
Batalhão Nacional aquartelado neste sítio O Instituto —
Branco Rodrigues —
A casa deJwwí! 469

CAPÍTULO XXI

Sumário : O antigo caminho da Circunvalação e a travessa


de São Francisco Xavier — Como era o local ao tempo
do terremoto — A quinta do Noviciado da Cotovia —
— Criação da Penitenciária — Referem-se
Sua [história
os engenheiros que dirigiram a obra — Sua conclusão —
Algumas considerações acerca desse regime penal —
O desenvolvimento da cidade perante a Penitenciária
— Um quartel moderno —
Prossegue-se o passeio pela
Circunvalação —
A quinta dos Duques de Aveiro, de-
pois do Seabra — Um incêndio
no Palácio Como se —
formaram do Seabra
as terras —
A casa e quinta do "

Malheiro —
Hospeda-se lá o Infante D. Carlos Quem —
eram estes Malheiros —Dá-se notícia do palacete— O
que resta dele —
A estrada de Campolide As proprie- —
dades antigas e o moderno bairro —
O Asilo de São
Patrício —
A casa e quinta da Torre de Estêvão Pinto
de Morais Sarmento —
Algumas notícias sobre a sua
família —
Como foi parar às mãos do poeta João de
Lemos —
Compra-a o Padre Radmaker para instalação
do Colégio de Campolide —
Notícias biográficas deste
clérigo— Uma anedota do Marquês de Penalva Como —
se fundou o Colégio de Campolide —
Obras, aumentos
e desenvolvimento da instituição —
Expulsão dos pa-
dres — —
O destino do edifício O moderno bairro de
Campolide 5oi
— 638 —

CAPÍTULO *XXII
Páb.
Sumário: Uma vista de olhos sobre o Vale de Alcântara —
A ermida da Senhora Sant'Ana da quinta de Sebastião
José de Carvalho —
A devoção e o engenho do ermitão
cego José Soares de Oliveira —
Um manto oferecido
por D. João VI —
O Asilo de Espie Miranda O no- —
víssimo bairro de Campolide e as suas barracas — Inau-
guração de uma nova capela e de uma escola —
Per-
corre-se o Vale de Alcântara desde o «Casal do Grilo»
à Pimenteira —
As «quintas do Inferno» e «do Sargento-
-Mór» do «Cabrinha»
e —
Uma paragem a propósito
dos «Cabrinhas» e de D.Francisco Manuel de Melo —
Divaga-se sobre as fortificações de Lisboa — Os planos
de Francisco de Olandn —
Projectos do Marquês de
Castelo Rodrigo em 1625 e do de Montalvão em 1646 —
D. João IV ordena à Câmara o início das obras —
Schomberg encurta a linha defensiva da capital Con- —
tinuam as obras —
Providências em 1701 —
Os enge-
nheiros pombalinos pensam de novo na fortificação —
Os redutos da Atalaia e de Campolide —Evoca-se o
ataque das tropas realistas a Lisboa, em i833 —
A luta
no bosque de Palhavã —
Episódios do cerco —
Os ge-
nerais do exército liberal —
E levantado o cerco e Sal-
danha cumpre a sua promessa —
O fim da luta fratri-
cida —Considerações gerais sobre o desenvolvimento
da cidade —
Acaba a obra 533

Notas finais 563


Retoques e aditamentos ao volume primeiro SyS
Retoques e aditamentos ao volume segundo . 584
Retoques e aditamentos ao volume terceiro 606
Resenha das ilustrações deste volume G21
Pig.
hiatos Sequeira, Gustavo de
Depois do terremoto

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