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ÉTICA NA UNIVERSIDADE MEDIEVAL: A IMPORTÂNCIA DA LEITURA

DOS CLÁSSICOS PARA A ELABORAÇÃO DE TOMÁS DE AQUINO

TATYANA MURER CAVALCANTE (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ).

Resumo
Nosso objetivo, nesta comunicação, é tecer algumas considerações sobre a
importância da leitura para a elaboração da concepção ética de Tomás de Aquino
(1224–5?/1274). Na aurora do século XIII, os homens citadinos do Ocidente
medieval criam uma nova instituição, a Universidade, destinada à elaboração e ao
ensino de conhecimentos. Nela mestres e alunos discutiam questões fundamentais
para a nova sociedade utilizando, principalmente, textos de Filosofia Antiga e
cristãos, mas, também, escritos árabes e judeus. As formas literárias utilizadas por
eles abarcavam principalmente “lectio“ e “disputatio“ e, por contrapor bases
teóricas distintas, esses pensadores acabaram por criar a “summa“, uma forma
original e fundamental para a elaboração filosófica da universidade medieval. Para
discutir a importância da leitura na a elaboração da concepção de ética na
universidade medieval, apresentaremos algumas características da produção do
conhecimento no século XIII, vinculando–as ao seu contexto histórico e, sem
seguida, discutiremos algumas considerações de Tomás de Aquino, um dos mais
expressivos autores do período. Considerando os limites deste trabalho,
aprofundaremos a discussão de apenas um texto do autor, O objeto da caridade
(ST, IIa IIae, q. 25), extraído da principal obra desse autor, a Suma de Teologia.
Não temos aqui a ambição de definir a concepção de ética do Mestre de Aquino,
mas apontar a importância da leitura para essa elaboração. Compreendemos que
assim leitura dos autores clássicos por Tomás de Aquino e outros mestres do século
XIII os auxiliou a elaborar conhecimentos sobre ética condizentes ao seu tempo, a
leitura histórica desses autores também nos auxilia a compreender nossa época.

Palavras-chave:
Educação Superior, Leitura e Ética, Tomás de Aquino.

INTRODUÇÃO

Este trabalho está relacionado com nossa pesquisa de doutorado, em andamento,


na qual investigamos algumas relações entre educação e ética no pensamento de
Tomás de Aquino (1224-5?/1274). Entretanto, nosso interesse aqui se restringe a
uma discussão introdutória a respeito da importância da leitura para a elaboração
acerca da ética nesse autor. Neste sentido, entendemos como essencial partirmos
da apresentação de algumas características fundamentais da produção do
conhecimento no século XIII, para que possamos abarcar mais substancialmente as
contribuições do Aquinate.

Na aurora do século XIII, o Ocidente medieval criou uma nova instituição dedicada
ao conhecimento e ao ensino: a Universidade. Essa instituição foi filha do
renascimento da cidade[1], que alargou as possibilidades da vivência humana,
porém também foi preciso organizar a coletividade. Essa nova realidade gerou a
necessidade daqueles homens reconsiderarem suas posições teóricas, motivo pelo
qual conhecimentos de diferentes campos do saber foram questionados, como
direito, medicina, política, educação e teologia. Podemos verificar que, durante o
século XIII, a Universidade[2] nascente foi palco privilegiado do debate acerca dos
conhecimentos socialmente relevantes.
É sob a perspectiva das relações entre as transformações sociais e a produção do
conhecimento que buscamos compreender a elaboração ética em Tomás de Aquino,
teólogo dominicano, mestre universitário, reconhecido como um dos principais
autores da literatura escolástica. Procuraremos, no decorrer do trabalho, analisar
algumas características da "lectio" e da "disputatio", dois estilos literários essenciais
ao período, bem como debater aspectos gerais da obra "Suma de Teologia", de
Tomas de Aquino e, considerando os limites deste texto, priorizaremos a discussão
da questão "O objeto da caridade" (ST, IIa IIae, q. 25), oriunda dessa obra, a
principal do autor. Para que possamos relacionar esse texto ao seu contexto,
contaremos com a ajuda de diferentes estudiosos contemporâneos que se dedicam
ao tema, notadamente Grabmann (1944), Le Goff (1984), Kenny; Pinborg (1997),
Torrell (1999) e Verger (198-?; 2001).

A LEITURA FILOSÓFICA NO SÉCULO XIII E A ÉTICA EM TOMÁS DE AQUINO

A historiografia marca vastamente a relação entre a produção acadêmica dos


séculos XII e XIII às escolas urbanas e às universidades. Num texto dedicado
especificamente à literatura filosófica medieval, Kenny e Pinborg (1997) esclarecem
que aquela produção esteve intimamente ligada às condições materiais e
psicológicas que prevaleciam nessas instituições. Queremos aqui compreender a
relação entre as condições da produção do texto e o próprio texto. Compreendemos
esse como um caminho importante para discutirmos, ainda que preliminarmente, a
elaboração ética de Tomás de Aquino.

Conforme anunciamos anteriormente, o texto do Aquinate que nos propusemos a


discutir é uma das questões debatidas na "Suma de Teologia". Essa obra, à qual o
autor dedicou cerca de oito anos de sua vida (1266/73 - TORRELL, 1999) dedicava-
se ao conhecimento de Deus, não em si mesmo, mas como principio e fim de todas
as coisas. De acordo com as informações do próprio autor, o caminho percorrido
pela obra abarcaria três pontos, a partir dos quais a organizou: Deus (Primeira
Parte), o movimento humano que leva para Deus (Segunda Parte) e Cristo,
enquanto modelo de conduta para os homens (Terceira Parte).

A questão que selecionamos, "O objeto da caridade" (ST, IIa IIae, q. 25), é da
segunda parte da obra, a mais longa, que discute o caminho para a bem
aventurança. Segundo Grabmann, reconhecido especialista em Tomás de Aquino
(GRABMANN, 1944):

"A maioria dos pontos de contacto do tomismo com as grandes questões do nosso
tempo, provêm da "secunda pars", onde S. Tomás, ajuntando a genial intuição de
um Agostinho ao realismo de um Aristóteles, traça uma síntese geral da moral
cristã, com seus caracteres e aplicações de ordem natural ou sobrenatural,
individual ou social".(GRABMANN, 1944, p. 127)

Na construção dessa síntese, o Aquinate apresentou e discutiu as virtudes


humanas, divididas em teologais, intelectuais, morais e sociais. Para o autor, entre
as virtudes teologais, a caridade era a principal. Embora se tratasse de uma virtude
teologal, nosso texto pretende demonstrar como essa virtude é essencial à
elaboração ética do Aquinate. Para estabelecer um conceito de caridade, a leitura
dos clássicos lhe foi fundamental, motivo pelo qual é essencial partirmos da
distinção das formas literárias disponíveis àquele mestre, buscando compreender
não exatamente quais, mas sobretudo como a leitura era realizada.
Quando afirmamos a íntima relação entre a produção do conhecimento e escolas
urbanas no século XII e universidades no século XIII, precisamos também explicitar
a origem desses escritos. Nesse sentido, Kenny e Pinborg (1997) afirmam a
necessidade de considerarmos as formas de ensino[3] utilizadas no interior das
universidades, bem como de compreendermos a distinção entre as duas principais:
a "lectio" e a "disputatio". Resumidamente, podemos dizer que a estrutura interna
da "lectio" (lição ou preleção) dispunha basicamente de quatro partes: (a) leitura
em voz alta da "Littera"[4]; (b) exposição da disposição do texto, com divisões em
partes menores até nós o nível de proposições simples; (c) a exposição de cada
parte, mais ou menos extensa, de acordo com o número de dificuldades a serem
conhecidas; (d) a parte final, a "dubia", era dedicada aos pontos mais importantes,
discutidos na forma de questões e, posteriormente, disputas (KENNY; PINBORG,
1997: 20). Segundo os mesmos autores, a "lectio" tem uma longa história e suas
partes essenciais remetem à Antiguidade. No entanto afirmam que a parte final da
"lectio" parece ter ganhado independência e dado origem a uma nova forma de
texto[5], ainda no século XII, a "disputatio" (disputa) e deu origem, no século XIII
a comentários independentes, que consistiam apenas numa série de questões, a
partir de 1260 (1997: 20).

Ao contrapormos a "lectio" e a "disputatio" é fundamental apreendermos que a


segunda forma foi ganhando espaço a partir da segunda metade do século XII e,
principalmente, ao longo do século XIII. É necessário então verificarmos que esse
período assistiu a entrada, no Ocidente, de textos de filosofia antiga. Segundo
Verger (198-?) toda a obra de Aristóteles foi traduzida para o latim até meados do
século XIII, bem como obras de sábios gregos e comentadores helenísticos árabes
(Al-Fârâbi, Avicena, Averróis). Em outra obra, discutindo também o final do século
XII, Verger afirma: "A prática da disputa alimentava um autêntico sentido de
progresso e a convicção completamente nova de poder chegar a verdades
escondidas ou esquecidas, mediante os recursos da razão" (2001: 56). O que
podemos observar, quanto a produção escrita do período, é a concomitância entre
a penetração dos textos de filosofia e o ganho crescente de terreno pela
"disputatio".

Kenny e Pinborg apontam que alguns autores sugeriram a "disputatio" como uma
possibilidade de reconciliar posições conflitantes: "recently it has been sugested
that the origin of the disputation is to be sought in the procedures adopted to
reconcile conflicting legal authorities by canonists, Roman lawyers, and even
Islamic jurisprudents" (1997: 25). Ou seja, até o século XIII, quanto mais
complexa se tornava a sociedade e quanto maior a diversidade de posturas teóricas
conhecidas, maior a ampliação do espaço do debate.

Segundo Verger: "Mas que a lectio, a disputa ("disputatio" ou "quaestio disputata")


era no entanto, no século XIII, o exercício mais novo e mais original da pedagogia
universitária" (2001: 269). Por sua vez, Kenny e Pinborg sugerem também a
possibilidade de "lectio" e "disputatio" serem duas facetas do método de estudo
orientado para a interpretação de textos e preservação da tradição (1997: 25).

Compreendemos uma diferença substancial de objetivos entre "lectio" e


"disputatio": enquanto a lição buscava essencialmente explicar o texto em questão,
a disputa (inicialmente mera parte da lição) interessava-se por discutir os pontos
centrais. O que vemos, do século XII para o XIII é um deslocamento crescente do
interesse de explicar um texto para questionar um tema.

É Le Goff (1984), no entanto, que nos auxilia a ter compreender a "disputatio"


nessa complexidade:
"Seria presunçoso pretender definir em poucas linhas o método escolástico. A
evolução primordial foi a que levou da "lectio" à "quaestio" e da "quaestio" à
"disputatio"[6]. O método escolástico é, inicialmente, a generalização do velho
processo - utilizado, designadamente, com a Bíblia - das "quaestiones" e
"responsiones", perguntas e respostas. Mas pôr problemas, pôr os autores "em
questões" (no plural), conduz a pô-los "em questão" (no singular). Nesse primeiro
tempo, a escolástica foi o estabelecimento de uma problemática. A seguir foi um
debate, a "disputa" - e aqui a evolução consistiu em o recurso ao raciocínio ter
ganho cada vez maior importância sobre o puro argumento de autoridade.
Finalmente, a disputa termina numa "conclusio", extraída pelo mestre. [...] a
"conclusio" obrigava o intelectual a comprometer-se pessoalmente. O intelectual já
não podia limitar-se a levantar as questões, tinha de comprometer-se nelas. No
extremo do método escolástico estava a afirmação do indivíduo na sua
responsabilidade intelectual". (LE GOFF, 1984, p. 111-112).

É importante não perdermos de vista a responsabilidade intelectual do mestre, à


qual Le Goff se refere, principalmente, ao considerarmos que a "disputatio" exerceu
profunda influência no estilo dos trabalhos escritos e, no século XIII, muitos
comentários passaram a ser escritos sob a forma de questões disputadas. A mesma
influência exerceu sobre as "summas", que, anteriormente, eram apenas resumos
rápidos, geralmente de vida curta e de conteúdo convencional, uma vez que muitas
delas assumiram como organização interna a disputa, passando a constituir uma
forma original e fundamental para a elaboração filosófica da universidade medieval.
Esse é o caso da "Suma de Teologia" de Tomás de Aquino, sendo essa obra uma
exposição sistemática e clara da doutrina cristã, organizada internamente como
mini disputas e escrita, segundo seu autor, para iniciantes nos estudos:

"O doutor da verdade católica deve não apenas ensinar aos que estão mais
adiantados, mas também instruir os principiantes [...]. Por esta razão nos
propusemos nesta obra expor o que se refere à religião cristã do modo mais
apropriado à formação dos iniciantes". (TOMÁS DE AQUINO, ST, Ia, prólogo[7]).

A importância da disputa na universidade medieval foi tamanha que consistia em


um dos três principais deveres dos mestres de Teologia[8] no século XIII. Ao lado
de lecionar e pregar, disputar era uma das atividades acadêmicas mais frequentes
no currículo e ,geralmente, as disputas eram publicadas posteriormente sob a
forma de coleções de questões disputadas (KENNY; PINBORG, 1997: 21).

Para o texto que nos propusemos a analisar, compreender a importância da disputa


é fundamental. Muito embora Tomás de Aquino tenha escritos de gêneros diversos,
a Suma de Teologia é considerada sua obra fundamental.

Segundo Grabmann, a importância da "Suma de Teologia" do Aquinate quanto à


sua forma abarca três aspectos: a supressão de questões, artigos e argumentos
inúteis, a supressão da obscuridade e desordem e, por fim, a supressão das
repetições, tão comuns na redação das "summas" tradicionais (1944: 48-102). O
mesmo autor considera, ainda, a segunda parte da obra como a mais original: "É
entretanto a segunda parte a mais original. Sua própria extensão e liberdade de
tom constituem, já no ponto de vista do método, um progresso considerável sobre
o modo com que se tratavam antes os problemas da moral (GRABMANN, 1944: 91-
92).

Ao seccionarmos uma breve questão da segunda parte e para ela olharmos, neste
caso, "o objeto da caridade" (ST, IIa IIae, q. 25), nela encontramos doze artigos[9]
que investigavam possíveis objetos do amor cristão. Cada um deles foi estruturado
como uma mini disputa, ou seja, após a pergunta, encontramos duas séries de
argumentos, sendo a primeira em um sentido e a segunda em sentido contrário. A
seguir, temos acesso a resposta geral do mestre, seguida de respostas individuais à
série de argumentos iniciais, que finalizavam a questão. Essa última parte era
necessária porque, geralmente, o autor discordava da primeira série de
argumentos, tornando indispensável que este expressasse cada discordância.

Em onze dos doze artigos da questão "o objeto da caridade" (ST, IIa IIae, q. 25), o
autor apresentou três argumentos na primeira série (apenas o artigo 6 contém 5)
e, em todos, propôs apenas um argumento em sentido contrário. Entretanto a
produção do Aquinate apresenta uma peculiaridade: muito embora sua resposta
estivesse, como de praxe, próxima da segunda linha de argumentos, em sua obra é
muito comum encontrarmos trechos nos quais ele concordava parcialmente com
alguns argumentos da primeira linha.

Voltemo-nos para a questão que trata do objeto da caridade. Em sua elaboração,


as fontes que Tomás de Aquino utilizou, conhecidas também como "autoridades",
foram: a Bíblia, alguns autores cristãos, principalmente Agostinho e Aristóteles, que
foram citadas tanto na primeira série de argumentos quanto na série em sentido
contrário. Dessa forma, o Aquinate trazia à tona, em cada análise e para cada
possível "objeto" da caridade, a elaboração daqueles autores e, a partir dessa
apresentação, elaborava sua própria solução a respeito de "a quem" a caridade se
destina. Acompanhar a estrutura da questão nos mostra que o ponto central não
era a possível "verdade" de cada fonte, mas a investigação sobre a caridade.

Não havemos de nos prolongar em todos os doze artigos dessa questão, mas
compreender a construção na noção de caridade. Numa questão anterior, Tomás de
Aquino já havia definido a caridade como a comunhão entre o homem e Deus,
fundamentada numa "amizade", num amor benevolente e recíproco (ST, IIaIIae, q.
23, a.1, c.). Dessa forma, todos (e somente aqueles) os possíveis envolvidos na
comunhão da bem aventurança seriam objetos da caridade (ST, IIaIIae, q. 25, a.
10, c). Do universo investigado (Deus, o próximo, a própria caridade, os irracionais,
a própria pessoa e seu corpo, os pecadores, os inimigos, os anjos e os demônios), o
décimo segundo artigo apresentou sistematicamente os objetos da caridade. Muito
embora reconhecesse Deus e os anjos como objetos legítimos da caridade, Tomás
de Aquino realçou a importância da humanidade na aquisição da bem aventurança:
"Sob esse aspecto, há dois que devem ser amados pela caridade: o homem que se
ama a si mesmo, e que ama o próximo" (ST, IIaIIae, q. 25, a. 12, c.). Esse é o
motivo pelo qual a caridade interessa ao estudo da ética tomasiana . Muito embora
ela fosse, segundo o próprio autor, a comunhão entre o homem e Deus, o exercício
do amor cristão seria possível na relação entre os homens.

Tomás de Aquino considerava a caridade como a mais excelente das virtudes,


porque "a caridade alcança Deus para que nele permaneça" (ST, IIaIIae, q. 23 a. 6,
c.), ou seja, era pela caridade que o homem se movia em direção a Deus. Ao
consideramos que o grande objetivo da "Suma de Teologia" era apresentar o
movimento humano que levaria a Deus e termos a caridade como a virtude que
possibilitaria esse trajeto, o que ressalta aos nossos olhos é a importância assumida
pelo convívio humano na obra tomasiana. Amar a si mesmo e ao próximo, condição
para atingir a bem aventurança, era também a condição de estabelecimento de um
bom convívio social e de ações éticas.

Compreendendo dessa forma a condição de amar ao próximo, voltemo-nos aos


possíveis objetos "humanos" da caridade: o próximo, o próprio homem, seu próprio
corpo, os pecadores e os inimigos. Considerando o próximo, segundo o Aquinate,
ama-se com caridade um homem pelo que nele há de divino (ST, IIaIIae, q. 25, a.
1, c), ou seja, ama-se Deus amando sua criação. A dificuldade estaria em
estabelecer que humanos poderiam ser assim amados: apenas aqueles que fazem
parte de nosso pequeno círculo de amigos? Aqueles com os quais concordamos? Os
que tem ideias e atitudes diversas das nossas? Esses limites foram melhor
examinados pelos artigos da questão que se dedicaram aos pecadores e aos
inimigos.

Ao investigar especialmente o caso dos pecadores (q. 25, a. 6), Tomás de Aquino
afirmou que se deveria considerar a questão de dois modos: pela natureza e pela
culpa. Não se deveria amar os pecados (a culpa) que o homem comete, mas a
natureza desse homem, ou seja, sua existência como criatura divina e portanto,
passível de agir bem e conquistar a vida eterna. Quanto ao caso do inimigo (q. 25,
a. 8), o Aquinate analisou três possibilidades: o inimigo enquanto inimigo, o amor
universal pela criatura e o amor a um inimigo em particular. Assim como afirmou
anteriormente que não se devia amar o pecado, afirmou que não se deveria amar o
inimigo enquanto inimigo, mas seria necessário amá-lo enquanto criatura capaz de
salvação. Ao discutir a possibilidade de se amar um inimigo em particular,
chegamos mais próximos das ações humanas na elaboração de Tomás de Aquino.
Segundo o autor, se for necessário, a caridade exige que se ame um inimigo em
particular. Mas se não devemos amar o "erro", como considerar esse amor?

Essa consideração nos encaminha para uma noção do agir ético na obra tomasiana.
O artigo seguinte (a. 9) discutia em que consistiria esse agir, quais "provas" de
amizade se deveria dar aos inimigos. O autor apresentou "provas" mais gerais,
como orar por todos, pela comunidade, mas também algumas mais particulares,
como não se vingar ou mesmo vencer o mal com o bem, atraindo o inimigo para o
amor cristão. Podemos compreender essas ações como respeito ao outro e mesmo
como uma mostra de civilidade nas relações sociais.

Até este ponto, nossa discussão da questão dedicou-se mais aos aspectos cristãos
da elaboração tomasiana, entretanto, havemos de explicitar melhor a contribuição
da leitura da Filosofia Antiga nesse pensamento. Dissemos anteriormente que o
autor definiu a caridade como uma "amizade" entre o homem e Deus. Pois é
justamente a amizade que garante a contribuição da Filosofia Clássica à Cristã de
Tomás de Aquino nessa questão da Suma de Teologia. O autor buscou em
Aristóteles o conceito de amizade. Ao responder se os pecadores amavam-se a si
mesmos (q. 25, a. 7), o Aquinate apresentou as condições para a existência da
amizade, referindo-se a elaboração aristotélica:

"O Filósofo [Aristóteles] o demonstra [não ser possível um pecador amar-se


verdadeiramente] pelas cinco condições próprias da amizade. Com efeito, cada
amigo: 1º) quer a existência de seu amigo, e que ele viva; 2º) quer-lhe bens; 3º)
faz-lhe bens; 4º) vive com seu amigo na alegria; 5º) concorda com ele, partilhando
suas alegrias e tristezas. Ora, é assim que os bons amam a si mesmos, quanto ao
homem interior: querem conservá-lo na sua integridade; desejam para ele os seus
próprios bens, que são os bens espirituais; esforçam-se para que os consiga; com
alegria se voltam a seu próprio coração, nele encontrando os bons pensamentos,
no presente; a recordação dos bens passados e a esperança dos futuros, que lhes
enche de prazer. Semelhantemente, pois sua alma tende para a unidade" (ST,
IIaIIae, q. 25, a. 7, c.).

Dessa forma, ao levar em conta a concepção de Aristóteles, Tomás de Aquino


considerou o elemento essencial de sua ética - a amizade - para a aquisição do bem
maior dos cristãos - a vida eterna, afirmando a proeminência do convívio ético para
a salvação. Se em Aristóteles a boa vida em sociedade justificava a necessidade de
ações éticas, a leitura de Tomás de Aquino incorporou aqueles princípios à
elaboração cristã, tornando-a mais capaz de auxiliar a compreensão de um novo
tempo e de um novo modo de vida: o dos homens cristãos citadinos do século XIII,
para os quais a vida pública e a convivência social tornavam-se realidade
necessária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos que visitarmos a transformação da forma pela qual os medievais


liam suas fontes, de "lectio" para "disputatio" ou seja, que a passagem da
explicação pormenorizada de um texto para a discussão sobre um tema específico,
a partir das diferentes elaborações anteriores, apresenta a tentativa de construir
uma explicação nova, mais condizente com a realidade do século XIII. Dessa
forma, apesar de nomear suas fontes de "autoridades", os mestres universitários
do século XIII e, destacando-se entre eles Tomás de Aquino, não realizavam um
ensino de "verdades" que deveriam ser cultuadas. Ao contrário, compreendemos
que aqueles mestres utilizavam os recursos disponíveis para pensar seu próprio
tempo, propondo questões e soluções necessárias a vida citadina que se impunha,
sendo a forma de escrita/leitura fundamental na elaboração do saber, uma vez que
os problemas já eram colocados na própria escrita do texto.

É sob essa mesma perspectiva que entendemos como essencial a leitura dos
clássicos para a elaboração dos saberes em nosso tempo. Não defendemos que
devemos copiar-lhes a forma da elaboração do saber, mas fazer deles uma leitura
histórica e, assim como fizeram os autores medievais, utilizar o conhecimento que
a humanidade nos legou como recurso para nos ajudar a criar conhecimentos
condizentes com nosso próprio tempo.

Neste sentido, tratando especialmente da discussão sobre a ética em Tomás de


Aquino, compreendemos como fulcral pensarmo-nos como semelhantes aos nossos
concidadãos, assumindo uma ideia de unicidade, tão necessária para entendermos
a amplitude de nossos direitos e deveres na vida social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GRABMANN, Martin. Introdução à Suma Teológica de Santo Tomás de


Aquino. Petrópolis: Vozes, 1944.
KENNY, Anthony; PINBORG, Jan. Medieval philosophical literature. In: KRETZMANN,
Norman; KENNY, Anthony; PINBORG, Jan (edit). The Cambridge History of Later
Medieval Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. p. 11-42.

LE GOFF, Jacques. A civilização no Ocidente Medieval. Lisboa (Portugal):


Editorial Estampa, 1984, v. II.

TOMÁS DE AQUINO. A caridade em si mesma (ST, IIa IIae, q. 23). In: TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2004. v. V, p. 293-309.

TOMÁS DE AQUINO. O objeto da caridade (ST, IIa IIae, q. 25). In: TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2004. v. V, p. 336-357.

TOMÁS DE AQUINO. Prólogo (ST, Ia, prólogo). In: TOMÁS DE AQUINO. Suma
Teológica. São Paulo: Loyola, 2001. v. I, p. 135.

TORRELL, Jean-Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino: sua pessoa e sua obra.
São Paulo: Loyola, 1999.

VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente nos séculos XII e


XIII. Bauru, SP; EDUSC, 2001.

VERGER, Jacques. Universidades e escolas medievais do final do século XI ao final


do século XV. In: MIALARET, Gaston; VIAL, Jean. (dirs). História mundial da
Educação. Porto (Portugal): RES, [198-?], v. I, p. 261-288.

[1] A historiografia consagra o renascimento das cidades como parte de um


conjunto de profundas transformações no Ocidente medieval, a partir do "Ano Mil".
Pela complexidade desse tema não nos cabe discuti-lo neste trabalho, uma vez que
nos afastaríamos de nossos objetivos.

[2] Não nos cabe aqui discutir o nascimento dessa instituição. É necessário apontar
que no século XIII, o grande centro de estudos de Teologia era Paris. Para ter
acesso inicial à discussão consultar: ULLMANN, Reinholdo Aloysio. A universidade
medieval. 2ª ed. Porto Alegre:EDIPUCRS, 2000.
[3] Embora não seja objeto de nosso trabalho, consideramos importante ressaltar a
relevância e a primazia da oralidade no ensino, pelo menos até a invenção da
imprensa (Séc. XV). Segundo Kenny e Pinborg, a maior parte da literatura filosófica
medieval reflete a prática do ensino (1997: 29) e as fontes escritas representam
um reflexo muito limitado de uma cultura oral muito mais rica: "The written records
as we have them are only a limited reflection of a much richer oral culture" (1997:
17).

[4] "Littera" corresponde aos livros texto, aos manuais, alicerces das disciplinas.

[5] Essa opinião não é consensual: há diferentes hipóteses sobre a origem das
disputas e a que expusemos acima foi elaborada por Chenu (KENNY; PINBORG,
1997: 25).

[6] Le Goff se refere a passagem de uma estrutura simples, organizada em


pergunta/resposta ("quaestio") para uma mais complexa, que partia também de
uma pergunta, mas que era seguida de duas linhas de argumentos, contrárias
entre si, para só então trazer a resposta elaborada pelo mestre ("quaestio
disputata" ou "disputatio"). Retomaremos essa exposição à frente.

[7] Sabemos que a norma para a referência em citação obedece ao padrão:


(AUTOR, data da publicação utilizada: página); entretanto, para textos medievais
utilizamos: (AUTOR, sigla da obra, localização da citação no interior da obra).

[8] A Teologia era a mais alta das ciências da cristandade, a qual garantia o estudo
mais sistemático e aprofundado de Filosofia (KENNY; PINBORG, 1997).

[9] Assim nomeados: 1. Somente Deus deve ser amado pela caridade, ou também
o próximo?; 2. A caridade deve ser amada pela caridade?; 3. Criaturas irracionais
devem ser amadas pela caridade?; 4. Podemos nos amar a nós mesmos pela
caridade?; 5. Deve-se amar seu próprio corpo pela caridade?; 6. Os pecadores
devem ser amados pela caridade?; 7. Os pecadores amam-se a si próprios?; 8. Os
inimigos devem ser amados pela caridade?; 9. Devemos dar-lhes mostras de
amizade?; 10. Devem os anjos ser amados pela caridade?

11. E os demônios?; 12. Sobre a enumeração do que devemos amar pela caridade
(ST, IIaIIae, q. 25).
INTRODUÇÃO
Este trabalho está relacionado com nossa pesquisa de doutorado, em andamento, na qual
investigamos algumas relações entre educação e ética no pensamento de Tomás de Aquino
(1224-5?/1274). Entretanto, nosso interesse aqui se restringe a uma discussão introdutória
a respeito da importância da leitura para a elaboração acerca da ética nesse autor. Neste
sentido, entendemos como essencial partirmos da apresentação de algumas características
fundamentais da produção do conhecimento no século XIII, para que possamos abarcar
mais substancialmente as contribuições do Aquinate.
Na aurora do século XIII, o Ocidente medieval criou uma nova instituição dedicada ao
conhecimento e ao ensino: a Universidade. Essa instituição foi filha do renascimento da
cidade1, que alargou as possibilidades da vivência humana, porém também foi preciso
organizar a coletividade. Essa nova realidade gerou a necessidade daqueles homens
reconsiderarem suas posições teóricas, motivo pelo qual conhecimentos de diferentes
campos do saber foram questionados, como direito, medicina, política, educação e
teologia. Podemos verificar que durante o século XIII a Universidade2 nascente foi palco
privilegiado do debate acerca dos conhecimentos socialmente relevantes.
É sob a perspectiva das relações entre as transformações sociais e a produção do
conhecimento que buscamos compreender a elaboração ética em Tomás de Aquino,
teólogo dominicano, mestre universitário, reconhecido como um dos principais autores da
literatura escolástica. Procuraremos, no decorrer do trabalho, analisar algumas
características da “lectio” e da “disputatio”, dois estilos literários essenciais ao período,
bem como debater aspectos gerais da obra “Suma de Teologia”, de Tomas de Aquino e,
considerando os limites deste texto, priorizaremos a discussão da questão “O objeto da
caridade” (ST, IIa IIae, q. 25), oriunda dessa obra, a principal do autor. Para que possamos
relacionar esse texto ao seu contexto, contaremos com a ajuda de diferentes estudiosos
contemporâneos que se dedicam ao tema, notadamente Grabmann (1944), Le Goff (1984),
Kenny; Pinborg (1997), Torrell (1999) e Verger (198-?; 2001).

A LEITURA FILOSÓFICA NO SÉCULO XIII E A ÉTICA EM TOMÁS DE


AQUINO

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A historiografia consagra o renascimento das cidades como parte de um conjunto de profundas
transformações no Ocidente medieval, a partir do “Ano Mil”. Pela complexidade desse tema não nos cabe
discuti-lo neste trabalho, uma vez que nos afastaríamos de nossos objetivos.
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Não nos cabe aqui discutir o nascimento dessa instituição. É necessário apontar que no século XIII, o
grande centro de estudos de Teologia era Paris. Para ter acesso inicial à discussão consultar: ULLMANN,
Reinholdo Aloysio. A universidade medieval. 2ª ed. Porto Alegre:EDIPUCRS, 2000.

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A historiografia marca vastamente a relação entre a produção acadêmica dos séculos XII e
XIII às escolas urbanas e às universidades. Num texto dedicado especificamente à
literatura filosófica medieval, Kenny e Pinborg (1997) esclarecem que aquela produção
esteve intimamente ligada às condições materiais e psicológicas que prevaleciam nessas
instituições. Queremos aqui compreender a relação entre as condições da produção do
texto e o próprio texto. Compreendemos esse como um caminho importante para
discutirmos, ainda que preliminarmente, a elaboração ética de Tomás de Aquino.
Conforme anunciamos anteriormente, o texto do Aquinate que nos propusemos a discutir é
uma das questões debatidas na “Suma de Teologia”. Essa obra, à qual o autor dedicou
cerca de oito anos de sua vida (1266/73 – TORRELL, 1999) dedicava-se ao conhecimento
de Deus, não em si mesmo, mas como principio e fim de todas as coisas. De acordo com as
informações do próprio autor, o caminho percorrido pela obra abarcaria três pontos, a
partir dos quais a organizou: Deus (Primeira Parte), o movimento humano que leva para
Deus (Segunda Parte) e Cristo, enquanto modelo de conduta para os homens (Terceira
Parte).
A questão que selecionamos, “O objeto da caridade” (ST, IIa IIae, q. 25), é da segunda
parte da obra, a mais longa, que discute o caminho para a bem aventurança. Segundo
Grabmann, reconhecido especialista em Tomás de Aquino (GRABMANN, 1944):

A maioria dos pontos de contacto do tomismo com as grandes questões do nosso


tempo, provêm da “secunda pars”, onde S. Tomás, ajuntando a genial intuição de
um Agostinho ao realismo de um Aristóteles, traça uma síntese geral da moral
cristã, com seus caracteres e aplicações de ordem natural ou sobrenatural,
individual ou social (p. 127).

Na construção dessa síntese, o Aquinate apresentou e discutiu as virtudes humanas,


divididas em teologais, intelectuais, morais e sociais. Para o autor, entre as virtudes
teologais, a caridade era a principal. Embora se tratasse de uma virtude teologal, nosso
texto pretende demonstrar como essa virtude é essencial à elaboração ética do Aquinate.
Para estabelecer um conceito de caridade, a leitura dos clássicos lhe foi fundamental,
motivo pelo qual é essencial partirmos da distinção das formas literárias disponíveis àquele
mestre, buscando compreender não exatamente quais, mas sobretudo como a leitura era
realizada.

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Quando afirmamos a íntima relação entre a produção do conhecimento e escolas urbanas
no século XII e universidades no século XIII, precisamos também explicitar a origem
desses escritos. Nesse sentido, Kenny e Pinborg (1997) afirmam a necessidade de
considerarmos as formas de ensino3 utilizadas no interior das universidades, bem como de
compreendermos a distinção entre as duas principais: a "lectio" e a "disputatio".
Resumidamente podemos dizer que a estrutura interna da “lectio” (lição ou preleção)
dispunha basicamente de quatro partes: (a) leitura em voz alta da “Littera”4; (b) exposição
da disposição do texto, com divisões em partes menores até nós o nível de proposições
simples; (c) a exposição de cada parte, mais ou menos extensa, de acordo com o número de
dificuldades a serem conhecidas; (d) a parte final, a “dubia”, era dedicada aos pontos mais
importantes, discutidos na forma de questões e, posteriormente, disputas (KENNY;
PINBORG, 1997: 20). Segundo os mesmos autores, a “lectio” tem uma longa história e
suas partes essenciais remetem à Antiguidade. No entanto afirmam que a parte final da
“lectio” parece ter ganhado independência e dado origem a uma nova forma de texto5,
ainda no século XII, a “disputatio” (disputa) e deu origem, no século XIII a comentários
independentes, que consistiam apenas numa série de questões, a partir de 1260 (1997: 20).
Ao contrapormos a “lectio” e a “disputatio” é fundamental apreendermos que a segunda
forma foi ganhando espaço a partir da segunda metade do século XII e, principalmente, ao
longo do século XIII. É necessário então verificarmos que esse período assistiu a entrada
no Ocidente de textos de filosofia antiga. Segundo Verger (198-?) toda a obra de
Aristóteles foi traduzida para o latim até meados do século XIII, bem como obras de sábios
gregos e comentadores helenísticos árabes (Al-Fârâbi, Avicena, Averróis). Em outra obra,
discutindo também o final do século XII, Verger afirma: “A prática da disputa alimentava
um autêntico sentido de progresso e a convicção completamente nova de poder chegar a
verdades escondidas ou esquecidas, mediante os recursos da razão” (2001: 56). O que
podemos observar, quanto a produção escrita do período, é a concomitância entre a
penetração dos textos de filosofia e o ganho crescente de terreno pela “disputatio”.
Kenny e Pinborg apontam que alguns autores sugeriram a “disputatio” como uma
possibilidade de reconciliar posições conflitantes: “recently it has been sugested that the
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Embora não seja objeto de nosso trabalho, consideramos importante ressaltar a relevância e a primazia da
oralidade no ensino, pelo menos até a invenção da imprensa (Séc. XV). Segundo Kenny e Pinborg, a maior
parte da literatura filosófica medieval reflete a prática do ensino (1997: 29) e as fontes escritas representam
um reflexo muito limitado de uma cultura oral muito mais rica: “The written records as we have them are
only a limited reflection of a much richer oral culture” (1997: 17).
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“Littera” corresponde aos livros texto, aos manuais, alicerces das disciplinas.
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Essa opinião não é consensual: há diferentes hipóteses sobre a origem das disputas e a que expusemos
acima foi elaborada por Chenu (KENNY; PINBORG, 1997: 25).

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origin of the disputation is to be sought in the procedures adopted to reconcile conflicting
legal authorities by canonists, Roman lawyers, and even Islamic jurisprudents” (1997: 25).
Ou seja, até o século XIII, quanto mais complexa se tornava a sociedade e quanto maior a
diversidade de posturas teóricas conhecidas, maior a ampliação do espaço do debate.
Segundo Verger: “Mas que a lectio, a disputa (“disputatio” ou “quaestio disputata”) era no
entanto, no século XIII, o exercício mais novo e mais original da pedagogia universitária”
(2001: 269). Por sua vez, Kenny e Pinborg sugerem também a possibilidade de “lectio” e
“disputatio” serem duas facetas do método de estudo orientado para a interpretação de
textos e preservação da tradição (1997: 25).
Compreendemos uma diferença substancial de objetivos entre “lectio” e “disputatio”:
enquanto a lição buscava essencialmente explicar o texto em questão, a disputa
(inicialmente mera parte da lição) interessava-se por discutir os pontos centrais. O que
vemos, do século XII para o XIII é um deslocamento crescente do interesse de explicar um
texto para questionar um tema.
É Le Goff (1984), no entanto, que nos auxilia a ter compreender a “disputatio” nessa
complexidade:

Seria presunçoso pretender definir em poucas linhas o método escolástico. A


evolução primordial foi a que levou da “lectio” à “quaestio” e da “quaestio” à
“disputatio”6. O método escolástico é, inicialmente, a generalização do velho
processo – utilizado, designadamente, com a Bíblia – das “quaestiones” e
“responsiones”, perguntas e respostas. Mas pôr problemas, pôr os autores “em
questões” (no plural), conduz a pô-los “em questão” (no singular). Nesse primeiro
tempo, a escolástica foi o estabelecimento de uma problemática. A seguir foi um
debate, a “disputa” – e aqui a evolução consistiu em o recurso ao raciocínio ter
ganho cada vez maior importância sobre o puro argumento de autoridade.
Finalmente, a disputa termina numa “conclusio”, extraída pelo mestre. [...] a
“conclusio” obrigava o intelectual a comprometer-se pessoalmente. O intelectual já
não podia limitar-se a levantar as questões, tinha de comprometer-se nelas. No
extremo do método escolástico estava a afirmação do indivíduo na sua
responsabilidade intelectual (p. 111-112).

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Le Goff se refere a passagem de uma estrutura simples, organizada em pergunta/resposta (“quaestio”) para
uma mais complexa, que partia também de uma pergunta, mas que era seguida de duas linhas de argumentos,
contrárias entre si, para só então trazer a resposta elaborada pelo mestre (“quaestio disputata” ou
“disputatio”). Retomaremos essa exposição à frente.

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É importante não perdermos de vista a responsabilidade intelectual do mestre, à qual Le
Goff se refere, principalmente ao considerarmos que a “disputatio” exerceu profunda
influência no estilo dos trabalhos escritos e, no século XIII, muitos comentários passaram a
ser escritos sobre a forma de questões disputadas. A mesma influência exerceu sobre as
“summas”, que anteriormente eram apenas resumos rápidos, geralmente de vida curta e de
conteúdo convencional, uma vez que muitas delas assumiram como organização interna a
disputa, passando a constituir uma forma original e fundamental para a elaboração
filosófica da universidade medieval. Esse é o caso da “Suma de Teologia” de Tomás de
Aquino, sendo essa obra uma exposição sistemática e clara da doutrina cristã, organizada
internamente como mini disputas e escrita, segundo seu autor, para iniciantes nos estudos:

O doutor da verdade católica deve não apenas ensinar aos que estão mais
adiantados, mas também instruir os principiantes [...]. Por esta razão nos
propusemos nesta obra expor o que se refere à religião cristã do modo mais
apropriado à formação dos iniciantes (TOMÁS DE AQUINO, ST, Ia, prólogo7).

A importância da disputa na universidade medieval foi tamanha que esta consistia em um


dos três principais deveres dos mestres de Teologia8 no século XIII. Ao lado de lecionar e
pregar, disputar era uma das atividades acadêmicas mais frequentes no currículo e
geralmente as disputas eram publicadas posteriormente sob a forma de coleções de
questões disputadas (KENNY; PINBORG, 1997: 21).
Para o texto que nos propusemos a analisar, compreender a importância da disputa é
fundamental. Muito embora Tomás de Aquino tenha escritos de gêneros diversos, a Suma
de Teologia é considerada sua obra fundamental.
Segundo Grabmann, a importância da “Suma de Teologia” do Aquinate quanto à sua forma
abarca três aspectos: a supressão de questões, artigos e argumentos inúteis, a supressão da
obscuridade e desordem e, por fim, a supressão das repetições, tão comuns na redação das
“summas” tradicionais (1944: 48-102). O mesmo autor considera ainda a segunda parte da
obra como a mais original: “É entretanto a segunda parte a mais original. Sua própria

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Sabemos que a norma para a referência em citação obedece ao padrão: (AUTOR, data da publicação
utilizada: página); entretanto, para textos medievais utilizamos: (AUTOR, sigla da obra, localização da
citação no interior da obra).
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A Teologia era a mais alta das ciências da cristandade, a qual garantia o estudo mais sistemático e
aprofundado de Filosofia (KENNY; PINBORG, 1997).

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extensão e liberdade de tom constituem, já no ponto de vista do método, um progresso
considerável sobre o modo com que se tratavam antes os problemas da moral
(GRABMANN, 1944: 91-92).
Ao seccionarmos uma breve questão da segunda parte e para ela olharmos, neste caso, “o
objeto da caridade” (ST, IIa IIae, q. 25), nela encontramos doze artigos9 que investigavam
possíveis objetos do amor cristão. Cada um deles foi estruturado como uma mini disputa.
Ou seja, após a pergunta, encontramos duas séries de argumentos, sendo a primeira em um
sentido e a segunda em sentido contrário. A seguir, temos acesso a resposta geral do
mestre, seguida de respostas individuais à série de argumentos iniciais, que finalizavam a
questão. Essa última parte era necessária porque geralmente o autor discordava da primeira
série de argumentos, tornando indispensável que este expressasse cada discordância.
Em onze dos doze artigos da questão “o objeto da caridade” (ST, IIa IIae, q. 25), o autor
apresentou três argumentos na primeira série (apenas o artigo 6 contém 5) e, em todos,
propôs apenas um argumento em sentido contrário. Entretanto a produção do Aquinate
apresenta uma peculiaridade: muito embora sua resposta estivesse, como de praxe,
próxima da segunda linha de argumentos, em sua obra é muito comum encontrarmos
trechos nos quais ele concordava parcialmente com alguns argumentos da primeira linha.
Voltemo-nos para a questão que trata do objeto da caridade. Em sua elaboração, as fontes
que Tomás de Aquino utilizou, conhecidas também como “autoridades”, foram: a Bíblia,
alguns autores cristãos, principalmente Agostinho e Aristóteles, que foram citadas tanto na
primeira série de argumentos quanto na série em sentido contrário. Dessa forma, o
Aquinate trazia a tona, em cada análise e para cada possível “objeto” da caridade, a
elaboração daqueles autores e, a partir dessa apresentação, elaborava sua própria solução a
respeito de “a quem” a caridade se destina. Acompanhar a estrutura da questão nos mostra
que o ponto central não era a possível “verdade” de cada fonte, mas a investigação sobre a
caridade.
Não havemos de nos prolongar em todos os doze artigos dessa questão, mas compreender a
construção na noção de caridade. Numa questão anterior, Tomás de Aquino já havia
definido a caridade como a comunhão entre o homem e Deus, fundamentada numa
“amizade”, num amor benevolente e recíproco (ST, IIaIIae, q. 23, a.1, c.). Dessa forma,

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Assim nomeados: 1. Somente Deus deve ser amado pela caridade, ou também o próximo?; 2. A caridade
deve ser amada pela caridade?; 3. Criaturas irracionais devem ser amadas pela caridade?; 4. Podemos nos
amar a nós mesmos pela caridade?; 5. Deve-se amar seu próprio corpo pela caridade?; 6. Os pecadores
devem ser amados pela caridade?; 7. Os pecadores amam-se a si próprios?; 8. Os inimigos devem ser amados
pela caridade?; 9. Devemos dar-lhes mostras de amizade?; 10. Devem os anjos ser amados pela caridade?
11. E os demônios?; 12. Sobre a enumeração do que devemos amar pela caridade (ST, IIaIIae, q. 25).

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todos (e somente aqueles) os possíveis envolvidos na comunhão da bem aventurança
seriam objetos da caridade (ST, IIaIIae, q. 25, a. 10, c). Do universo investigado (Deus, o
próximo, a própria caridade, os irracionais, a própria pessoa e seu corpo, os pecadores, os
inimigos, os anjos e os demônios), o décimo segundo artigo apresentou sistematicamente
os objetos da caridade. Muito embora reconhecesse Deus e os anjos como objetos
legítimos da caridade, Tomás de Aquino realçou a importância da humanidade na
aquisição da bem aventurança: “Sob esse aspecto, há dois que devem ser amados pela
caridade: o homem que se ama a si mesmo, e que ama o próximo” (ST, IIaIIae, q. 25, a. 12,
c.). Esse é o motivo pelo qual a caridade interessa ao estudo da ética tomasiana . Muito
embora ela fosse, segundo o próprio autor, a comunhão entre o homem e Deus, o exercício
do amor cristão seria possível na relação entre os homens.
Tomás de Aquino considerava a caridade como a mais excelente das virtudes, porque “a
caridade alcança Deus para que nele permaneça” (ST, IIaIIae, q. 23 a. 6, c.), ou seja, era
pela caridade que o homem se movia em direção a Deus. Ao consideramos que o grande
objetivo da “Suma de Teologia” era apresentar o movimento humano que levaria a Deus e
termos a caridade como a virtude que possibilitaria esse trajeto, o que ressalta aos nossos
olhos é a importância assumida pelo convívio humano na obra tomasiana. Amar a si
mesmo e ao próximo, condição para atingir a bem aventurança, era também a condição de
estabelecimento de um bom convívio social e de ações éticas.
Compreendendo dessa forma a condição de amar ao próximo, voltemo-nos aos possíveis
objetos “humanos” da caridade: o próximo, o próprio homem, seu próprio corpo, os
pecadores e os inimigos. Considerando o próximo, segundo o Aquinate, ama-se com
caridade um homem pelo que nele há de divino (ST, IIaIIae, q. 25, a. 1, c), ou seja, ama-se
Deus amando sua criação. A dificuldade estaria em estabelecer que humanos poderiam ser
assim amados: apenas aqueles que fazem parte de nosso pequeno círculo de amigos?
Aqueles com os quais concordamos? Os que tem ideias e atitudes diversas das nossas?
Esses limites foram melhor examinados pelos artigos da questão que se dedicaram aos
pecadores e aos inimigos.
Ao investigar especialmente o caso dos pecadores (q. 25, a. 6), Tomás de Aquino afirmou
que se deveria considerar a questão de dois modos: pela natureza e pela culpa. Não se
deveria amar os pecados (a culpa) que o homem comete, mas a natureza desse homem, ou
seja, sua existência como criatura divina e portanto, passível de agir bem e conquistar a
vida eterna. Quanto ao caso do inimigo (q. 25, a. 8), o Aquinate analisou três
possibilidades: o inimigo enquanto inimigo, o amor universal pela criatura e o amor a um

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inimigo em particular. Assim como afirmou anteriormente que não se devia amar o
pecado, afirmou que não se deveria amar o inimigo enquanto inimigo, mas seria necessário
amá-lo enquanto criatura capaz de salvação. Ao discutir a possibilidade de se amar um
inimigo em particular, chegamos mais próximos das ações humanas na elaboração de
Tomás de Aquino. Segundo o autor, se for necessário, a caridade exige que se ame um
inimigo em particular. Mas se não devemos amar o “erro”, como considerar esse amor?
Essa consideração nos encaminha para uma noção do agir ético na obra tomasiana. O
artigo seguinte (a. 9) discutia em que consistiria esse agir, quais “provas” de amizade se
deveria dar aos inimigos. O autor apresentou “provas” mais gerais, como orar por todos,
pela comunidade, mas também algumas mais particulares, como não se vingar ou mesmo
vencer o mal com o bem, atraindo o inimigo para o amor cristão. Podemos compreender
essas ações como respeito ao outro e mesmo como uma mostra de civilidade nas relações
sociais.
Até este ponto, nossa discussão da questão dedicou-se mais aos aspectos cristãos da
elaboração tomasiana, entretanto, havemos de explicitar melhor a contribuição da leitura
da Filosofia Antiga nesse pensamento. Dissemos anteriormente que o autor definiu a
caridade como uma “amizade” entre o homem e Deus. Pois é justamente a amizade que
garante a contribuição da Filosofia Clássica à Cristã de Tomás de Aquino nessa questão da
Suma de Teologia. O autor buscou em Aristóteles o conceito de amizade. Ao responder se
os pecadores amavam-se a si mesmos (q. 25, a. 7), o Aquinate apresentou as condições
para a existência da amizade, referindo-se a elaboração aristotélica:

O Filósofo [Aristóteles] o demonstra [não ser possível um pecador amar-se


verdadeiramente] pelas cinco condições próprias da amizade. Com efeito, cada
amigo: 1º) quer a existência de seu amigo, e que ele viva; 2º) quer-lhe bens; 3º) faz-
lhe bens; 4º) vive com seu amigo na alegria; 5º) concorda com ele, partilhando suas
alegrias e tristezas. Ora, é assim que os bons amam a si mesmos, quanto ao homem
interior: querem conservá-lo na sua integridade; desejam para ele os seus próprios
bens, que são os bens espirituais; esforçam-se para que os consiga; com alegria se
voltam a seu próprio coração, nele encontrando os bons pensamentos, no presente;
a recordação dos bens passados e a esperança dos futuros, que lhes enche de prazer.
Semelhantemente, pois sua alma tende para a unidade” (ST, IIaIIae, q. 25, a. 7, c.).

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Dessa forma, ao levar em conta a concepção de Aristóteles, Tomás de Aquino considerou o
elemento essencial de sua ética – a amizade – para a aquisição do bem maior dos cristãos –
a vida eterna, afirmando a proeminência do convívio ético para a salvação. Se em
Aristóteles a boa vida em sociedade justificava a necessidade de ações éticas, a leitura de
Tomás de Aquino incorporou aqueles princípios à elaboração cristã, tornando-a mais capaz
de auxiliar a compreensão de um novo tempo e de um novo modo de vida: o dos homens
cristãos citadinos do século XIII, para os quais a vida pública e a convivência social
tornavam-se realidade necessária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consideramos que visitarmos a transformação da forma pela qual os medievais liam suas
fontes, de “lectio” para “disputatio” ou seja, que a passagem da explicação pormenorizada
de um texto para a discussão sobre um tema específico, a partir das diferentes elaborações
anteriores, apresenta a tentativa de construir uma explicação nova, mais condizente com a
realidade do século XIII. Dessa forma, apesar de nomear suas fontes de “autoridades”, os
mestres universitários do século XIII e, destacando-se entre eles Tomás de Aquino, não
realizavam um ensino de “verdades” que deveriam ser cultuadas. Ao contrário,
compreendemos que aqueles mestres utilizavam os recursos disponíveis para pensar seu
próprio tempo, propondo questões e soluções necessárias a vida citadina que se impunha,
sendo a forma de escrita/leitura fundamental na elaboração do saber, uma vez que os
problemas já eram colocados na própria escrita do texto.
É sob essa mesma perspectiva que entendemos como essencial a leitura dos clássicos para
a elaboração dos saberes em nosso tempo. Não defendemos que devemos copiar-lhes a
forma da elaboração do saber, mas fazer deles uma leitura histórica e, assim como fizeram
os autores medievais, utilizar o conhecimento que a humanidade nos legou como recurso
para nos ajudar a criar conhecimentos condizentes com nosso próprio tempo.
Neste sentido, tratando especialmente da discussão sobre a ética em Tomás de Aquino,
compreendemos como fulcral pensarmo-nos como semelhantes aos nossos concidadãos,
assumindo uma ideia de unicidade, tão necessária para entendermos a amplitude de nossos
direitos e deveres na vida social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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