Resena A Bíblia e Seus Intérpretes - Augustus Nicodemus Lopes

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Revista Theos Revista de Reflexo Teolgica da Faculdade Teolgica Batista de Campinas. Campinas: 6 Edio, V.5 - N2 Dezembro de 2009.

9. ISSN: 1980-0215.

Resenha
Luciano R. Peterlevitz

LOPES, Augustus Nicodemus. A Bblia e seus intrpretes Uma breve histria da interpretao. So Paulo: Cultura Crist, 2007. 288p. O livro A Bblia e seus intrpretes Um breve histria da interpretao uma importante ferramenta a todos os estudantes da Bblia que desejam ampliar seus conhecimentos sobre Hermenutica. O texto foi escrito por Augustus Nicodemus Lopes, um dos mais conhecidos escritores da tradio Protestante Reformada, no contexto brasileiro. O autor bacharel em Teologia pelo Seminrio Presbiteriano do Norte (Recife), mestre em Novo Testamento pela Universidade Reformada de Potchefstroom (frica do Sul) e doutor em Interpretao Bblica pelo Westminster Theological Seminary (EUA), com estudos no Seminrio Reformado de Kampen (Holanda). Atualmente chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana de Santo Amaro. autor de vrios livros e artigos. Uma das obras recentes de Augustus Nicodemus O que esto fazendo com a Igreja (So Paulo: Mundo Cristo, 2008), atravs da qual ele demonstra bastante preocupao com a Igreja evanglica brasileira, bastante influenciada por idias que ameaam a integridade do Evangelho, como o liberalismo teolgico, a neo-ortodoxia, a libertinagem e o neopentecostalismo. O texto A Bblia e seus intrpretes Uma breve histria da interpretao responde crise pela qual passa a teologia bblica. Nicodemus, para responder aos problemas atuais concernentes hermenutica bblica, convida os leitores para uma viagem na histria da interpretao, desde os autores do Antigo Testamento at nossa contemporaneidade. Desde o incio da obra, o autor esclarece aos leitores que o texto foi escrito na viso reformada, o que significa um compromisso com a perspectiva que os Reformadores tinham da inspirao e inefabilidade das Escrituras e com os princpios hermenuticos que utilizaram (p.07). Por isso, Nicodemus afirma que um dos alvos do livro mostrar que o mtodo gramtico-hitrico o mais adequado para uma hermenutica comprometida com o carter divino e humano das Escrituras (p. 08). Para tal objetivo, o livro est divido em trs partes. Ao final, h um apndice intitulado A Lingstica e a Hermenutica Bblica: Dilogo e Desafios para o Intrprete do Sculo 21, escrito por Robrio Baslio, ministro presbiteriano da Primeira Igreja Presbiteriana do Recife. O objetivo do apndice mostrar como os estudos na rea da

Professor de Hebraico Bblico e Antigo Testamento na Faculdade Teolgica Batista de Campinas. Mestre em Cincias da Religio, na rea de Literatura e Mundo Bblico, pela Universidade Metodista de So Paulo. pastor da Misso Batista Vida Nova, em Nova Odessa (SP).

Lingstica tm influenciado diretamente na construo de pressupostos hermenuticos atuais. Na Parte 1 do livro, Nicodemus aborda A necessidade de Interpretao da Bblia. Inicia-se descrevendo As duas naturezas da Bblia. A Escritura, enquanto um texto escrito por homens, um texto limitado, devido aos distanciamentos (temporal, contextual e cultural) entre os leitores atuais e os antigos autores. Mas, enquanto um livro Divino, pressuposto aliais negado pelo mtodo histrico-crtico (p.26), a Bblia produz outros tipos de distanciamentos, por causa da natureza humana decada (p.26-27). O autor defende que a dupla natureza da Bblia provoca um distanciamento temporal e espiritual que precisa ser transposto, para que possamos chegar sua mensagem (p.29). As outras duas partes do livro so bem mais extensas do que a primeira. Na Parte 2, Augustus Nicodemus escreve sobre Os primeiros intrpretes do Antigo Testamento. No primeiro captulo dessa parte, Autores do Antigo Testamento, Nicodemus defende que os autores do Antigo Testamento inauguraram um movimento hermenutico que continua at os dias de hoje (p.36). Analisando a deposio dos livros na Bblia Hebraica1, o autor observa que a Tor (Lei de Moiss, o Pentateuco) base para todos os demais livros do Antigo Testamento, pois ela foi o primeiro texto divinamente inspirado, escrito por Moiss. Tanto os Profetas quanto os Escritos repousam sobre a Lei. Neles, a Lei usada, interpretada, e aplicada a novas situaes. (p.37). Na seqncia da obra, Nicodemus analisa a exegese dos antigos rabinos de Israel. A partir de ento, os leitores so convidados a perceber duas pilastras hermenuticas antagnicas: a interpretao literal e a interpretao alegrica. Sobre esta ltima, uma importante contribuio foi dada por Filo de Alexandria, nascido por volta de 20-25 a.C. Grandemente influenciado pelo platonismo, Filo legou tradio crist o mtodo alegrico de interpretao das Escrituras. A palavra alegorizar vem do grego e significa literalmente dizer uma outra coisa, ou seja, numa alegoria as palavras esto dizendo outra coisa que no aquela que parece bvio (p.92). Filo afirmava que o texto bblico representava a jornada espiritual de cada um de ns (p.94), o que implica numa dissoluo dos fatos histricos da Escritura, negando, por exemplo, que Sara e Hagar fossem personagens histricos, ou que a jornada histrica de Abrao tenha qualquer valor para ns (p.94). Na seqncia da obra, no captulo 6, os leitores encontraro uma importante anlise da interpretao que os autores do Novo Testamento fizeram do Antigo Testamento. Nicodemus afirma que esse o momento mais importante da histria da interpretao das Escrituras. Uma das principais dificuldades, neste ponto, o uso que os escritores do Novo Testamento fizeram do Antigo Testamento. Nicodemus nos alerta que muitos crticos apontam para ocasies em que eles (autores do Novo Testamento) parecem estar manipulando e torcendo as Escrituras para provar seus argumentos (p.109-110). Em alguns momentos, por exemplo, Paulo cita a Septuaginta, mesmo quanto ela difere do texto hebraico, ou o traduz inadequadamente (p.112). Mas, mesmo assim, pode-se argumentar que no existe violncia ao sentido do texto original (p.113). Para Nicodemus, precisamos entender um ponto importante: os escritores do Novo Testamento re-interpretaram radicalmente as Escrituras do Antigo Testamento luz dos eventos histricos-redentivos relacionados com a encarnao, vida, morte e ressurreio de Cristo,
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A ordem dos livros da Bblia Hebraica (Tor Profetas Escritos) diferente da disposio dos livros de nossas Bblias, que seguem a Septuaginta.

e o surgimento da Igreja Crist (p.116). Portanto, os estudantes desejosos de conhecer o modo como os autores do Novo Testamento interpretaram os textos do Antigo Testamento devem consultar o captulo 6 da obra de Augustus Nicodemus. A Parte 3 maior do que as outras, e dedicada anlise da interpretao bblica na histria da Igreja Crist. Nicodemus rastreia a interpretao alegrica e a literal gramticohistrica, desde os incios do cristianismo at a poca atual. Nos primeiros sculos da era ps-apostlica, surgiram duas escolas de interpretao que se rivalizaram: a escola de Alexandria, e a que surge depois, de Antioquia, em reao primeira. A grande caracterstica da escola de Alexandria foi a alegorizao dos textos bblicos. J a escola de Antioquia defendia a interpretao literal, sempre buscando a inteno do autor do texto, dentro de um contexto histrico. Esse mtodo de interpretao predominou durante muito tempo nas igrejas orientais e em muitos sentidos foi precursora da exegese praticada na Reforma (p.135). Nos sculos seguintes, destaca-se a hermenutica dos Pais Latinos, dentre os quais, Tertuliano (aps 220 d.C.), Jernimo (347420 d.C.), tradutor da Vulgata Latina, e Agostinho (354-430 d.C.). Apesar de algumas vezes alegorizarem os textos, os Pais Latinos eram mais sensveis ao contexto em que as Escrituras foram produzidas. (p.142). Na Idade Mdia (sculos 5 a 16) a hermenutica alegrica foi a mais usada pelos intrpretes do cristianismo. Entretanto, alguns poucos valorizavam o sentido histricogramatical das Escrituras. No captulo 10 Nicodemus analisa a hermenutica dos Reformadores, que foi uma negao aos princpios hermenuticos alegricos. O retorno aos princpios de interpretao defendidos pela escola de Antioquia marca a pregao, o ensino e os princpios dos Reformadores. (p.159). A nfase da Reforma estava no sentido literal e gramtico-histrico do texto, em contraposio alegorese prevalecente na Idade Mdia. Para os que desejam conhecer mais a hermenutica da Reforma Protestante, fundamental ler e estudar este captulo do livro. Na seqncia da obra, Augustus Nicodemus dedica-se ao perodo da Modernidade. Decisivo para esta poca foi o Iluminismo, movimento filosfico surgido no incio do sculo 18, que foi em vrios aspectos uma revolta contra o poder da religio institucionalizada e contra a religio em geral (p.184). O racionalismo e o humanismo impactaram grandemente a teologia, e por conseqncia, a interpretao da Bblia. Se antes Deus era visto como o grande agente da Histria humana, a partir do Iluminismo a Histria passou a ser interpretada a partir de uma relao natural entre causas e efeitos. Tal cetismo e racionalismo influenciaram a hermenutica bblica, e levaram muitos telogos a negarem os milagres relatados na Bblia. Nessa perspectiva, os eventos miraculosos descritos no texto bblico so fabricaes do povo de Israel e depois da Igreja, que atribuiu a Jesus atos sobrenaturais que nunca aconteceram historicamente (p.184). Na anlise da interpretao bblica da poca Moderna, Nicodemus nos alerta sobre o perigo de tirar o sobrenatural da Bblia. Ficamos com uma Bblia que deixou de ser Palavra de Deus para se tornar o testemunho de f do povo de Israel e da Igreja Primitiva. (p.194). Isso, afirma Nicodemus, muito prejudicial para a Igreja.

Na reta final do livro, Augustus Nicodemus analisa a hermenutica no contexto da Ps-modernidada. O pensamento ps-moderno rejeita o conceito da modernidade de que existam verdades absolutas e fixas. (p.197). Na ps-modernidade, a verdade no pode mais ser conhecida pela razo; negam-se verdades absolutas. Alm disso, afirma-se a impossibilidade da realizao de qualquer pesquisa cientifica sem preconceitos e pressupostos. Assim, aflora-se o subjetivismo. O autor ressalta que na Modernidade a interpretao era basicamente diacrnica, ou seja, a hermenutica buscava descobrir os processos histricos de formao do texto, para assim interpret-lo. Agora, ela tornou-se sincrnica, isto , preocupada apenas em entender o texto luz de si prprio e da interao deste com o leitor. (p.199). Nicodemus afirma ainda que, no perodo da Reforma, a interpretao aventava-se no direito de descobrir a inteno do autor humano do texto. J no perodo da Modernidade, a interpretao, mediante mtodos crticos, enfatizou os processos histricos de formao do texto. Na ps-modernidade, o foco move-se para o leitor, rejeitando-se a inteno autoral e o processo de formao do texto. (p.201). Ou seja, na Reforma, o foco da interpretao estava no autor; na Modernidade, estava no texto; na ps-modernidade, est no leitor. Para a hermenutica ps-moderna, o sentido do texto construdo a partir de uma interao entre leitor e texto; assim, a interpretado bblica subjetiva e inevitavelmente preconceituosa. Nicodemos alerta-nos: a hermenutica ps-moderna sai do campo literalista para o do alm-do-literal, numa verso ps-moderna da antiga alegorese alexandrina. (p.203). Nos captulos 14 e 15 os leitores tero uma boa compreenso das vrias vertentes hermenuticas que surgiram no contexto da ps-modernidade. Um importante intrprete que Nicodemus analisa Hans-Georg Gadamer (1900-2002), para quem o entendimento de uma passagem no causado inteiramente pelos pressupostos do leitor e nem inteiramente pela situao histrica original do texto, mas por uma fuso de ambas as perspectivas (p.219). Gadamer chama tais perspectivas de horizontes. Tambm se alude a Jacques Derrida (n. 1930), conhecido por seu desconstrucionismo. Para Derrida, a tarefa do intrprete desconstruir o texto. Isto significa reverter a hierarquia, revelar as suas contradies internas, sua arrogante proposta de transmitir sentido e revelar seu compromisso com a manuteno da hierarquia. (p.220). O grande pressuposto do desconstrutivismo a pluralidade de verdades. No h uma verdadeira interpretao de um fato, de um texto, ou um discurso, mas muitas interpretaes igualmente vlidas. (p.234). Para Nicodemus, este mtodo interpretativo traz resultados destrutivos para a exegese bblica, pois seu projeto relativizar o sentido do texto bblico mostrando que as Escrituras tm muito mais interpretaes vlidas do que aquelas que aparecem na superfcie. (p.236). Um outro importante movimento hermenutico analisado por Nicodemus a reader response (reao do leitor), assim chamada por enfatizar o envolvimento do leitor na produo e na determinao do sentido de um texto (p.230). Esse sistema de interpretao fruto da hermenutica de Gadamer. Existem vrias vertentes atuais desse mtodo de interpretao: a teologia da libertao, que afirma a leitura dos textos bblicos a partir dos empobrecidos e espoliados pela sociedade; a hermenutica feminista, que l o texto bblico com a suspeita de que este foi produzido a partir de uma dominao patriarcal sobre a mulher. importante observar que a Teologia da Libertao hoje bem mais conhecida por Teologia Latino-Americana. Trata-se de uma leitura a partir da Amrica Latina, grandemente espoliada pelo colonialismo das grandes naes europias. Nicodemus v

essa teologia de forma bem negativa. Em outro texto2, ele faz duras asseveraes Teologia da Libertao. A motivao do autor, claro, preservar a integridade das Escrituras. Mas preciso dizer que a relao entre cristianismo e colonialismo uma questo ainda no resolvida.3 Pois a forma como as grandes naes europias forjaram a mensagem crist, para expandir seu comrcio e cultura, merece uma anlise bem cuidadosa. preciso dizer que a Teologia Latino-Americana, apesar das limitaes j apontadas por Nicodemus, veio responder necessidade de a Igreja se envolver com os grandes problemas sociais atuais. Para encerrar o livro, Nicodemus afirma que a hermenutica de Gadamer tem sido questionada por eruditos atuais, como E. D. Hirsch. Este afirma que, mediante o trabalho de arquelogos, historiadores, lingistas, entre outros, possvel transpor as categorias de nossa cultura e nos identificar em certa medida com a cultura onde essas obras foram escritas (p.245). Para Hirsch, o texto s tem um sentido, embora o impacto desse sentido nos leitores pode variar de contexto a contexto. isso que chamamos de significado. (p.245). Na concluso da obra, Nicodemus afirma que de fato existe um distanciamento entre ns e o texto bblico, mas ele pode ser vencido pelo estudo e orao, e podemos chegar ao sentido original da mensagem bblica (p.256). Augustus Nicodemus Lopes, nesse livro e em outros textos, preocupa-se em defender a integridade das Escrituras frente s muitas metodologias hermenuticas que negam a sobrenaturalidade da Palavra de Deus. Portanto, recomendo A Bblia e seus intrpretes Uma breve histria da interpretao para aqueles que almejam conhecer as vrias interpretaes bblicas, desde a poca antiga at nossos dias. Sobretudo, o texto fornecer aos leitores ferramentas apologticas para se argumentar em prol de uma hermenutica que preserve a autenticidade da Bblia.

Veja http://solascriptura-t.org/SeparacaoEclesiastFundament/HermeneuticaTeologiaLibertacaoDeLBoffAugustusNicodemusLopes.htm. Acessado em 15/12/2009. 3 Sobre isso, veja Lauri Emilio Wirth, Protestantismos latino-americanos entre o imaginrio eurocntrico e as culturas locais, em Estudos de Religio, n 34, junho de 2008, p. 105-125.

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