Roseli, Editor Da Revista, Artigo 10
Roseli, Editor Da Revista, Artigo 10
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RESUMO: Entre as décadas de 1950 e 1960, Nelson Rodrigues publica uma série de crônicas
futebolísticas nas quais sugere um modelo de identidade para o “homem brasileiro” calcado na
figura de ídolos negros do futebol. Ao construir uma imagem do negro transmudado em herói,
autor de “feitos coletivos”, e por isso mesmo de fácil aceitação popular, o cronista compartilha
estrategicamente com o leitor o mesmo “horizonte de expectativas” circunscrito numa época em
que o mito da democracia racial de Gilberto Freyre começava a ser questionado.
PALAVRAS-CHAVE: Nelson Rodrigues; Identidade, Questão Racial, Crônica; Cultura.
RIASSUNTO: Tra gli anni ’50 e ’60 Nelson Rodrigues pubblica una serie di cronache
calcistiche in cui suggerisce un modello d´identità all’”uomo brasiliano” fondato sulle figure di
idoli neri del calcio. Quando Nelson costruisce l'immagine del nero trasformato in eroe,
protagonista di "eventi collettivi", e quindi di facile accettazione popolare, condivide
strategicamente con il lettore lo stesso "orizzonte d´attesa", relativo all´epoca in cui il mito della
democrazia razziale di Gilberto Freyre cominciava ad essere messo in discussione.
PAROLE CHIAVE: Nelson Rodrigues; Identità, Democrazia razziale, Cronaca; Cultura.
INTRODUÇÃO
1
Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH – USP e professor assistente
doutor no Departamento de Letras Modernas da FCL/Assis – UNESP.
2
Mestrando pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Assis.
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e acometida por um forte complexo de inferioridade, enquanto o que se tinha
em mente era alcançar o progresso e a civilização por meio do
branqueamento da população. A priori, essa ideia negativa do mestiço teria
sido usada com vistas a desvalorizar o elemento nacional em um momento
marcado pela entrada maciça de imigrantes europeus no país. Nas primeiras
décadas do século XX, cientistas e intelectuais, preocupados em construir
uma imagem que melhor definisse o brasileiro, acabaram por elaborar
representações que ajudariam a cristalizar uma imagem instituidora do
brasileiro enquanto desqualificado, indolente, avesso ao progresso e à
civilização, que permaneceu como uma pecha ou mito, generalizando-se e
abrangendo, de certa forma, o povo brasileiro (NAXARA, 1998, p. 19).
Irrefutavelmente, tais construções passaram a determinar o próprio
modo como o nacional se autodefinia e se colocava diante do estrangeiro, o
que explica, pelo menos em parte, o latente complexo de inferioridade do
brasileiro ainda muito discutido na década de 1950, e redimensionado por
Nelson Rodrigues na expressão “complexo de vira-latas”, assim definido:
“Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro
se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os
setores e, sobretudo, no futebol” (RODRIGUES, 1993, p. 52).
Nos primeiros decênios da República, a imagem do brasileiro,
ainda fortemente atrelada à figura do caboclo e do mestiço, era representada
de forma negativa até mesmo no âmbito da literatura popular em versos. No
folheto de cordel As cousas mudadas, escrito entre 1910/1912, o poeta
Leandro Gomes de Barros esboça uma caricatura do caboclo que, por
comodismo ou exclusão social, fica em casa cuidando das panelas, à margem
do ideal cosmopolita proposto pelos idealizadores da República: “Chega-se
nesses sertões/ N´uma choupana daquela;/ Vê-se o barbado de cócoras/
Alcovitando as panelas;/ Um feixe de lenha junto,/ Atiçando fogo nelas”.
(BARROS, s/d, p. 5-6).
Embora no início do século XX essa imagem obscura já viesse
sendo discursivamente construída em torno do nacional, uma das
representações que mais influenciaram na cristalização de uma definição
negativa do brasileiro foi, sem dúvida, a do Jeca Tatu. A fisionomia
acabrunhada, a imobilidade e o conformismo do sertanejo, em Leandro
Gomes de Barros, antecipam, em muitos aspectos, a representação negativa
do caboclo e, por extensão, do brasileiro, condensada na figura do Jeca
lobatiano. Em 1914 o jornal O Estado de S. Paulo publica dois artigos de
Monteiro Lobato, “Velha Praga” e “Urupês”, em que o caboclo figura como
um ser sombrio, parasita da sociedade, impermeável ao progresso e à
civilização:
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O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cincoenta alqueires
de terra para extrair deles o com que passar fome e frio durante
o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua resistência
às privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar
fome”, sem virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro —
está tudo bem; assim fez o pai, o avô; assim fará a prole
empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro.
(LOBATO, 1955, p. 275-6)
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etnográfico da nossa nacionalidade, absorvem esses tíbios
resquícios de uma minoria agonizante. Morreu Peri. Morre Jeca
Tatu. Surge, afinal, o tipo definitivo do brasileiro vencedor.
(DEL PICCHIA, 1920b, p. 1).
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desânimo. O cerebralismo doentio dos mentores. A tremenda
revolta dos dirigidos. A luta carniceira pela vida. A indecisão
do presente. O receio do amanhã. E a fome. O desespero. A
esterilidade. Então a gente se lembra de que deixou um país
onde tudo está por fazer. E avalia bem a felicidade que isso
representa. País virgem à espera de fecundação. Sem o peso
morto do passado. Até sem presente. Vivendo todo para o
futuro. País delicioso pelas suas possibilidades ignoradas. País
delicioso pelos seus defeitos visíveis. Tão forte e tão pitoresco.
Tão grande e tão ingênuo. Tão bonito e tão engraçado. País
pixote. Pixote prodígio. De pés no chão e fura-bolos no nariz.
(MACHADO, 1940, p. 75)
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Brasil em que europeus, indígenas e africanos se amalgamariam para compor
uma sociedade genuinamente multirracial e multicultural. Freyre esboçava
uma ideia de Brasil como uma democracia racial: “uma das uniões mais
harmoniosas da cultura com a natureza e de uma cultura com a outra que as
terras deste hemisfério já conheceu”3 (FREYRE, 1946, p. xii apud
ANDREWS, 1997, p. 98). Segundo George Reid Andrews, professor de
História na Universidade de Pittsburg (EUA), Freyre defendia a ideia de que
a democracia racial brasileira era simbolizada e corporificada pelos mulatos
racialmente mistos, elementos que, segundo o sociólogo, representavam a
porção mais marcadamente brasileira da sociedade nacional. Com isso,
Freyre colocava em xeque as alegações dos racistas científicos para quem “o
mulato é incapaz de alcançar uma estabilidade como um igual social e
intelectual do homem branco”. Nas suas alegações, Freyre argumentava:
3
Trecho do prefácio à edição norte-americana de Casa Grande e Senzala com o título The
masters and the slaves: a study in Brazilian civilization. New York: Knopf, 1946, p. xii apud
ANDREWS, 1997, p. 98.
4
"For Brazil is becoming more and more a racial democracy, characterized by an almost unique
combination of diversity and unity". (FREYRE, 1963, p. 431).
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com vistas a relativizar ou rebater algumas conclusões apressadas. Em uma
dessas entrevistas, concedida a Lêda Rivas em 1980, Freyre procura
responder à pergunta “Até que ponto nós somos uma democracia racial?”,
asseverando que “democracia política é relativa”, que a “democracia plena é
uma bela frase [...] de demagogos que não têm responsabilidade intelectual
quando se exprimem sobre assuntos políticos”. Para ilustrar o quanto o
conceito de democracia é relativo, cita o caso dos gregos, os quais, embora
“aclamados como democratas do passado clássico, conciliaram sua
democracia com a escravidão”. Cita ainda os Estados Unidos que, apesar de
serem apontados como os “continuadores dos gregos como exemplo moderno
de democracia no século XVIII, conciliaram essa democracia também com a
escravidão”, e ainda os suíços, “que primaram pela democracia pura”, mas
que até bem pouco tempo não permitiam que a mulher votasse. Após elencar
esses exemplos, Freyre os compara com o Brasil, argumentando que
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pesquisa que colocava em foco as relações raciais brasileiras, realizada por
intelectuais brasileiros, norte-americanos e franceses no início dos anos de
1950, com o apoio da recém-criada Unesco. Os recentes horrores do nazismo
e do holocausto motivam a Unesco a adotar, como parte de sua missão
institucional, o combate ao racismo em escala internacional e, nesse cenário,
a democracia racial brasileira apresentava-se como uma alternativa no
sentido de se compreender como o igualitarismo racial havia ocorrido no
Brasil e como funcionava na prática. A Divisão de Ciências Sociais da
Unesco empreende uma série de pesquisas em algumas cidades do Sudeste
industrializado — São Paulo e Rio de Janeiro — e em várias cidades
mineiras, bem como na Bahia e em Pernambuco (ANDREWS, 1997, p. 100).
Quanto aos resultados da pesquisa, Andrews observa que “não
foram os esperados. Todas as esquipes constataram elevados níveis de
desigualdade entre as populações branca e não branca, além de fortes
evidências de atitudes e estereótipos racistas” (1997, p. 101). As equipes que
se dirigiram ao Nordeste puderam constatar que tais desigualdades
expressavam mais as diferenças de classe que as diferenças raciais, de modo
que os negros sofriam discriminação mais pelo fato de serem pobres;
contrariamente, as equipes destinadas às cidades do Sudeste, sobretudo do
Rio e São Paulo, concluíram que as desigualdades decorriam do preconceito
e da discriminação baseados na raça, apontando as diferenças no tratamento
de acordo com os brancos e negros da classe trabalhadora e as enormes
dificuldades enfrentadas por negros e mulatos cultos e qualificados que
lutavam para ascender à classe média (ANDREWS, 1997, p. 101).
O segundo evento ocorre na mesma época dos projetos da Unesco,
1950, e girou em torno do episódio em que a dançarina afro-americana
Katherine Dunham teve sua admissão recusada no Hotel Esplanada de São
Paulo, para o qual tinha feito reservas durante a excursão com sua
Companhia no Brasil. As denúncias da dançarina, somadas ao fato de ela ser
americana e artista renomada, geraram uma repercussão sem precedentes que
culminou com a aprovação, pelo Congresso, no ano seguinte, do primeiro
estatuto contra a discriminação no Brasil, a Lei Afonso Arinos, de 1951, que
incluía entre as convenções penais a prática de atos resultantes de preconceito
de raça e cor da pele (ANDREWS, 1997, p. 101).
Quase quatro décadas depois de Del Picchia e de A. A. Machado,
discussões em torno da questão racial brasileira e do sentimento de
impotência do nacional ainda incitavam intelectuais como Nelson Rodrigues,
cujas crônicas, objetos deste trabalho, publicados no Manchete Esportiva e
n´O Globo, entre os anos de 1955 e 19705, esboçavam preocupações
5
As crônicas citadas neste trabalho foram reunidas por Ruy Castro no livro À sombra das
chuteiras imortais: crônicas de futebol, Companhia das Letras, 1993.
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semelhantes às de A. A. Machado, porém em novas linguagens e contextos.
Como A. A. Machado, Nelson Rodrigues acreditava também que as
potencialidades brasileiras eram ignoradas pelas elites e, sobretudo, pelos
“entendidos”, estes, intelectuais da imprensa recorrentemente criticados pelo
cronista. Tais jornalistas continuavam endossando a opinião daqueles que
pregavam a inferioridade racial e moral do brasileiro. Em uma crônica de
10/6/1970, “O entendido salvo pelo ridículo”, escrita no calor da euforia
causada pela copa do México, Nelson identifica o “entendido”, e com aguda
ironia, na pessoa do cronista que esteve, em 1966, na Inglaterra, tendo
voltado de lá com a seguinte “descoberta”: “— o futebol europeu em geral e
o inglês em particular eram muito melhores do que o nosso. Estávamos
atrasados de quarenta anos para mais. Quanto à velocidade, era uma invenção
europeia. Os brasileiros andavam de velocípede, os europeus a jato” (1993, p.
183).
Ainda segundo Nelson, o brasileiro sentia um forte ufanismo às
avessas, sentimento que teria sido reforçado com o fracasso da copa de 1950:
“O brasileiro gosta muito de ignorar as próprias virtudes e exaltar as próprias
deficiências, numa inversão do chamado ufanismo. Sim, amigos: — somos
uns Narcisos às avessas, que cospem na própria imagem” (1993, p. 30).
Apesar das inúmeras divergências sobre o Brasil ser ou não ser
uma democracia racial nas décadas de 1950 e 1960, parte das ideias de
Gilberto Freyre sobre a questão racial continuaria sendo endossada por
intelectuais como Nelson Rodrigues, que conduz a discussão para um campo
específico: o futebol, espaço que representava uma possibilidade de ascensão
social e afirmação moral para mestiços e mulatos; onde podiam demonstrar
suas habilidades, força e capacidade de liderança. O mais interessante é que,
em suas crônicas, como tinha feito A. A. Machado, persiste ainda aquela
obsessão de uma definição da identidade do brasileiro em relação ao
estrangeiro. Nelson defendia a ideia de que o brasileiro deveria assumir uma
postura viril e insolente diante do estrangeiro, apresentando na copa de 1958
Pelé como a performance do “racialmente perfeito”, como um modelo a ser
seguido: “Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros,
os ingleses, os russos de alto a baixo. [...] E é dessa atitude viril e mesmo
insolente que precisamos” (1993, p. 43).
O que é possível observar, nas crônicas futebolísticas de Nelson,
nas quais a figura do craque negro é elevada à categoria de herói nacional,
são traços irrefutáveis da crença no mito das três raças e simetrias com as
ideias de Freyre que se materializam, sobretudo, na transformação da
negatividade do mestiço e do mulato em positividade, permitindo redesenhar
os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo esboçada em cores
obscuras. Em suas crônicas Nelson reforça a ideologia da mestiçagem, a qual,
de acordo com Renato Ortiz, “estava aprisionada nas ambiguidades das
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teorias racistas”, e que, após ser reelaborada, “pode difundir-se socialmente e
se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou
nos grandes eventos como o carnaval e o futebol” (2003, p. 41).
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nossa tragédia: — a pura e simples vitória não basta. Desejamos enfeitá-la,
pôr-lhe fitinhas e guizos. E o triunfo sem show, sem apoteose, o triunfo
enxuto deixa o brasileiro descontente e desconfiado” (1993, p. 55). Nelson
acreditava que “a humilhação [...] confere aos homens e aos times uma
dimensão nova, uma potencialidade irresistível” (1993, p. 28), usando o caso
de José do Patrocínio para ilustrar sua tese de que o brasileiro só reage frente
à humilhação:
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elemento definidor de brasilidade, algo que se projetava como síntese da
alma e do “jeito de ser” do brasileiro. Ao relatar partidas de futebol no espaço
do jornal, Nelson redimensiona a repercussão dos fatos que se lhe apresentam
como matéria-prima, recurso estilístico que passa a auxiliá-lo em questões
recorrentes, como as definições e análises do homem brasileiro e de suas
características pessoais. Na crônica rodrigueana, o craque de “cor” e de baixa
extração social, ao driblar as dificuldades individuais e coletivas e conseguir
galgar parte das barreiras impostas pela sociedade, consegue se sobressair
com a maestria dos heróis consagrados, ora pela História, ora pela literatura
erudita, ora pela cultura popular, projetando-se, desse modo, como um
modelo a ser considerado na definição da identidade do homem brasileiro.
Para Nelson Rodrigues, “o universo do futebol se oferecia como
palco ao desfile dos dilemas, dramas e frustrações do ‘homem brasileiro’”,
cabendo ao cronista colocar-se diante dele, observar sua dinâmica, seus
movimentos, e eternizá-los sob a forma de literatura (ANTUNES, 2002, p.
215). Na verdade, o cronista concebia o futebol como um espetáculo
revelador dos dramas coletivos ao afirmar que durante uma partida, “a bola é
um reles, um ínfimo, um ridículo detalhe. O que procuramos no futebol é o
drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão” (1993, p. 104) e que até
mesmo “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana”
(1993, p. 103).
Embora as teorias sobre a democracia racial, com as quais Nelson
claramente dialoga, previssem uma efetiva colaboração do mestiço e do
mulato na definição da identidade brasileira, no universo da crônica
rodrigueana essa inserção do negro passa por uma reelaboração de sua
imagem que não raro extrapola os limites da realidade. O fato é que a
exaltação da força e do caráter aguerrido do negro encontra-se totalmente
desvinculada de suas raízes africanas. Em nenhum momento sua agilidade é
dada como uma herança cultural associada às figuras de orixás como Ogum e
Oxossi, por exemplo. Em Nelson, a criatividade e a invencibilidade dos
heróis negros do futebol remetem ao bogatyr primordial, aos heróis do
romanceiro e do anedotário popular, cujas proezas e invulnerabilidade
tangenciam o sobrenatural. Na verdade, Nelson atualiza arquétipos do mito
heroico instalados no inconsciente coletivo com os quais o leitor
imediatamente se identifica, ajudando a desconstruir, estrategicamente, o
discurso de desvalorização do elemento negro.
O craque-herói de Nelson assemelha-se, em muitos aspectos, ao
herói do romance moderno, cuja atuação é vista não só como algo individual,
mas em relação com o mundo, fator determinante de sua caracterização. As
semelhanças persistem ainda, naquilo que o herói moderno herdou da
tragédia. Segundo Aristóteles os personagens da tragédia, bem como a
natureza de seus atos, se dão a conhecer “pelas diferenças de caráter e de
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pensamento” (1973, p. 271), embora em Nelson o herói “não pensa”, age:
“Garrincha não pensa”. E neste aspecto suas criações se aproximam do herói
presente nas obras de ficção mencionadas por Northrop Frye, herói cuja
“força de ação [...] pode ser maior do que a nossa, menor ou mais ou menos a
mesma” (1973, p. 39).
Nas crônicas, a figura do jogador negro aparece associada também
à dos anti-heróis da literatura popular. Basta citarmos o caso do craque
Jaguaré na crônica “Bocage no futebol”, de 1956. Na década de 40 o ídolo
deixou o futebol brasileiro e foi jogar na Europa, no entanto, seu espírito
brincalhão e suas travessuras durante as partidas parecem não ter agradado os
europeus, que o dispensaram sem muitos recursos para retomar a vida no
Brasil. Depois de tê-lo comparado ao Bocage do anedotário brasileiro, pelos
palavrões que proferia em campo, Nelson relata que ele morreu na miséria,
“Mas feliz, porque pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos palavrões
terrenos” (1993, p. 18) e, como tantos outros heróis ladinos da cultura
popular, recusando-se a reentrar na ordem.
Outras vezes a insistência em atribuir dribles e vitórias fenomenais
às pernas tortas de Garrincha acaba quase por identificar no craque aquelas
habilidades que caracterizavam os antigos gnomos camponeses, bizarras
criaturas carnavalescas descendentes dos demônios da fertilidade agrária. Em
outros momentos, o herói negro de Nelson avizinha-se, por sua atuação e
função social, do trickster ancestral e de sua versão moderna, o Malasartes
brasileiro, herói ladino que quase sempre tira proveito da desvantagem,
subvertendo a ordem. Sobre a partida Brasil 2 x 0 União Soviética, de
15/6/1958, em que a URSS era apontada como um adversário forte na Copa
por seu “futebol científico”, Nelson relata:
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Comeu com aquele apetite imortal toda a defesa inimiga. E comeu o juiz e
comeu o bandeirinha” (1993, p. 88).
No afã de afirmar a superioridade do brasileiro centrada na figura
do ídolo negro “racialmente perfeito”, Nelson acaba deixando algumas
lacunas no seu projeto. Por um lado, a voracidade, molecagem e
invulnerabilidade do jogador brasileiro ou se constroem a partir de modelos
eruditos europeus ou nascem da comparação com heróis distantes da nossa
realidade cultural. A título de ilustração, basta citarmos trechos de algumas
crônicas em que os ídolos brasileiros aparecem em cena confrontando heroica
ou sorrateiramente um estrangeiro durante uma partida. Suas qualidades
raramente se revelam em contexto nacional: na crônica “Um gesto de amor”,
de 2/12/1968, “Quando recebeu a bola, no primeiro minuto do jogo,
[Garrincha] driblou um russo, mais outro, outro mais, como no soneto.
Driblou as barbas de Rasputin, driblou as cinzas do czar”, para, em seguida,
enfiar “uma bomba na trave” (1993, p. 138). Na copa de 58 cada jogador, ao
entrar na área adversária, desintegrava a defesa inimiga e “cada vez que um
craque recebia a bola, partia em todas as direções, como aquele mocinho de
fita em série” (1993, p. 58). A atuação do jogador Amarildo, na partida Brasil
2 x 0 Espanha, em 6/6/1962, é assim descrita por Nelson: “De seu lábio
pendia uma baba elástica e bovina dos possessos. Nas páginas de Dostoiévski
é assim que os possessos babam profissionalmente” (1993, p. 87). Por
ocasião dos jogos preparatórios no Maracanã para a copa do mundo da
Inglaterra, quando o Brasil joga com a seleção gaúcha e vence de 2 a 0, as
piruetas de Garrincha são comparadas às de Chaplin: “Vocês se lembram de
Charlie Chaplin, em Luzes da ribalta, fazendo o número das pulgas
amestradas? Pois bem, Mané nos deu um alto momento chapliniano” (1993,
p. 119).
O fato é que a molecagem e a voracidade do jogador negro em
campo nunca são concebidas como heranças de um terceiro elemento, mítico
e étnico-cultural, que entra na composição do malandro brasileiro, na
formação da perspicácia que se encontra na base da formação do nosso
caráter e que, inclusive, provém de tradições negras. Para além da
antropofagia latino-americana das teorias mais recentes, o ato ritualístico de
“digerir” acompanha o povo africano desde suas origens, embora tenha
adquirido aqui, durante a colonização, novos significados. Estamos falando
de Exú, um dos orixás africanos mais demonizados durante a colonização e o
processo “civilizatório”. Não derivaria daí, em parte, a molecagem, os
“truques”, os dribles, o “fez que foi e não foi”, os gols de “bicicleta”, a
invulnerabilidade e a voracidade negra manifestados nos campos de futebol
da Europa?
De acordo com algumas tradições de origem africana, Exú tem a
“habilidade de fazer algo parecer ser aquilo que não é, pelo uso, sobretudo,
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de algumas estratégias e artimanhas utilizadas para conseguir realizar seus
feitos” (FERREIRA, 2011, p. 5). No mito, Exú come tudo e é movido por
uma fome incontrolável. Depois de ter comido todos os animais, árvores e
frutos da aldeia em que vivia, comeu até mesmo o Céu, e nem mesmo a
morte conseguiu aplacar sua fome (PRANDI, 2001, p. 45-46). Na cultura
africana, a simbólica “fome” de Exú é alusiva ao seu papel de mensageiro, de
sua capacidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo, de mudar o
mundo com o seu movimento, com o caminhar mundo afora. O movimento
de Exú, muitas vezes realizado por meio de “truques”, “acaba por reduzir os
humanos a meras peças do seu teatro, da sua tragédia...” (FERREIRA, 2011,
p. 8). As trajetórias de nossos anti-heróis populares, com os quais em muitos
momentos da crônica de Nelson nossos ídolos negros se assemelham,
revelam traços da forte influência do mito na definição da “molecagem
brasileira”. O movimento de Exú, muitas vezes realizado por meio de
“truques”, “acaba por reduzir os humanos a meras peças do seu teatro, da sua
tragédia...” (FERREIRA, 2011, p. 8).
Segundo E. M. Meletínski, o caráter obstinado e furioso, que é
parte integrante da imagem arquetípica do herói, ajuda a modelar, até certo
ponto, a consequente emancipação de sua personalidade, expressa
naturalmente um aspecto dela, no entanto, sua trans- ou superpersonalidade
se sobressai como um fator dominante e seus feitos “coletivos” são tão
imediatos que não há vestígio de “obrigação” ou de “reflexão”
(MELETÍNSKI, 2002, p. 67), como nesta versão moderna do ídolo negro
Garrincha:
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De repente, como patrícios do guerreiro, cada um de nós
sentiu-se um pouco coautor do feito. Pelé voou, arremessou-se
dentro do gol. Agarrou e beijou a bola. E chorava, o divino
crioulo. Cem mil pessoas, de pé, aplaudiam como na ópera. [...]
Naquele momento éramos todos brasileiros como nunca,
apaixonadamente brasileiros. (1993, p. 159-160)
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argamassa com que vem construindo seus heróis, medidas do herói épico, do
mítico e do fabuloso, sem deixar de adicionar, no acabamento de suas
monumentais figuras, uma dosagem daquilo que todo o brasileiro tem de
Malasartes e Macunaíma, os anti-heróis “sem nenhum caráter” da cultura
nacional. Aliás, é o que os craques de Nelson têm de mais genuinamente
brasileiro nas suas composições. Na crônica “À sombra dos crioulões em
flor”, Nelson exalta a destreza e a astúcia gnômica de Tostão quando marca
um gol contra a Inglaterra do modo menos convencional:
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Mas, como no carnaval, no futebol o mesmo povo que coroa seu
craque/herói também promove seu destronamento. Segundo Nelson, “No
futebol, a apoteose está sempre a um milímetro da vaia”. Na crônica “O
grande sol do escrete”, a filosofia de palco e de arquibancada de Nelson é
colocada em prática para retratar o episódio em que o rei Pelé, à guisa do rei
bufão do carnaval medieval, é destronado por seus súditos após uma partida
frustrada entre Brasil e Inglaterra, em 1970:
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inconsciente, de deixar sempre à sombra traços de uma cultura até hoje tida
como subalterna?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Miscelânea, Assis, v. 20, p. 189-209, jul. – dez. 2016. ISSN: 1984-2899 208
Data de recebimento: 30/06/2016
Data de aprovação: 30/11/2016
Miscelânea, Assis, v. 20, p. 189-209, jul. – dez. 2016. ISSN: 1984-2899 209