Roseli, Editor Da Revista, Artigo 10

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“DRAGÕES DE ESPORA E PENACHO”:


A APOTEÓTICA ASCENSÃO SOCIAL DO NEGRO E A
IDENTIDADE DO BRASILEIRO NAS CRÔNICAS
FUTEBOLÍSTICAS DE NELSON RODRIGUES
“Draghi con speroni e pennacchi”
L´apoteotica mobilità sociale del nero e l´identità del brasiliano
nelle cronache calcistiche di Nelson Rodrigues

Francisco Cláudio Alves Marques1


André Vitor Brandão Kfuri Borba2

RESUMO: Entre as décadas de 1950 e 1960, Nelson Rodrigues publica uma série de crônicas
futebolísticas nas quais sugere um modelo de identidade para o “homem brasileiro” calcado na
figura de ídolos negros do futebol. Ao construir uma imagem do negro transmudado em herói,
autor de “feitos coletivos”, e por isso mesmo de fácil aceitação popular, o cronista compartilha
estrategicamente com o leitor o mesmo “horizonte de expectativas” circunscrito numa época em
que o mito da democracia racial de Gilberto Freyre começava a ser questionado.
PALAVRAS-CHAVE: Nelson Rodrigues; Identidade, Questão Racial, Crônica; Cultura.

RIASSUNTO: Tra gli anni ’50 e ’60 Nelson Rodrigues pubblica una serie di cronache
calcistiche in cui suggerisce un modello d´identità all’”uomo brasiliano” fondato sulle figure di
idoli neri del calcio. Quando Nelson costruisce l'immagine del nero trasformato in eroe,
protagonista di "eventi collettivi", e quindi di facile accettazione popolare, condivide
strategicamente con il lettore lo stesso "orizzonte d´attesa", relativo all´epoca in cui il mito della
democrazia razziale di Gilberto Freyre cominciava ad essere messo in discussione.
PAROLE CHIAVE: Nelson Rodrigues; Identità, Democrazia razziale, Cronaca; Cultura.

INTRODUÇÃO

Na passagem do século XIX para o século XX, a população


mestiça brasileira era vista por suas elites como suscetível, propensa ao ócio

1
Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH – USP e professor assistente
doutor no Departamento de Letras Modernas da FCL/Assis – UNESP.
2
Mestrando pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Assis.

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e acometida por um forte complexo de inferioridade, enquanto o que se tinha
em mente era alcançar o progresso e a civilização por meio do
branqueamento da população. A priori, essa ideia negativa do mestiço teria
sido usada com vistas a desvalorizar o elemento nacional em um momento
marcado pela entrada maciça de imigrantes europeus no país. Nas primeiras
décadas do século XX, cientistas e intelectuais, preocupados em construir
uma imagem que melhor definisse o brasileiro, acabaram por elaborar
representações que ajudariam a cristalizar uma imagem instituidora do
brasileiro enquanto desqualificado, indolente, avesso ao progresso e à
civilização, que permaneceu como uma pecha ou mito, generalizando-se e
abrangendo, de certa forma, o povo brasileiro (NAXARA, 1998, p. 19).
Irrefutavelmente, tais construções passaram a determinar o próprio
modo como o nacional se autodefinia e se colocava diante do estrangeiro, o
que explica, pelo menos em parte, o latente complexo de inferioridade do
brasileiro ainda muito discutido na década de 1950, e redimensionado por
Nelson Rodrigues na expressão “complexo de vira-latas”, assim definido:
“Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro
se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os
setores e, sobretudo, no futebol” (RODRIGUES, 1993, p. 52).
Nos primeiros decênios da República, a imagem do brasileiro,
ainda fortemente atrelada à figura do caboclo e do mestiço, era representada
de forma negativa até mesmo no âmbito da literatura popular em versos. No
folheto de cordel As cousas mudadas, escrito entre 1910/1912, o poeta
Leandro Gomes de Barros esboça uma caricatura do caboclo que, por
comodismo ou exclusão social, fica em casa cuidando das panelas, à margem
do ideal cosmopolita proposto pelos idealizadores da República: “Chega-se
nesses sertões/ N´uma choupana daquela;/ Vê-se o barbado de cócoras/
Alcovitando as panelas;/ Um feixe de lenha junto,/ Atiçando fogo nelas”.
(BARROS, s/d, p. 5-6).
Embora no início do século XX essa imagem obscura já viesse
sendo discursivamente construída em torno do nacional, uma das
representações que mais influenciaram na cristalização de uma definição
negativa do brasileiro foi, sem dúvida, a do Jeca Tatu. A fisionomia
acabrunhada, a imobilidade e o conformismo do sertanejo, em Leandro
Gomes de Barros, antecipam, em muitos aspectos, a representação negativa
do caboclo e, por extensão, do brasileiro, condensada na figura do Jeca
lobatiano. Em 1914 o jornal O Estado de S. Paulo publica dois artigos de
Monteiro Lobato, “Velha Praga” e “Urupês”, em que o caboclo figura como
um ser sombrio, parasita da sociedade, impermeável ao progresso e à
civilização:

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O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cincoenta alqueires
de terra para extrair deles o com que passar fome e frio durante
o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua resistência
às privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar
fome”, sem virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro —
está tudo bem; assim fez o pai, o avô; assim fará a prole
empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro.
(LOBATO, 1955, p. 275-6)

Entre as décadas de 1920 e 1940, os modernistas retomam a


discussão e o complexo de inferioridade do brasileiro passa a ser matéria
literária numa época em que o pensamento brasileiro estava às voltas com a
busca pela identidade nacional em contraposição ao estrangeiro e à ameaça
que representava a entrada de grandes quantidades de povos considerados
superiores — racial ou culturalmente — para um povo ainda em formação,
imaturo, como era representado, na época, o brasileiro. Em uma crônica
intitulada “Por que sou Jeca Tatu”, do escritor modernista Menotti del
Picchia, publicada no Correio Paulistano em 1920, a associação do nacional
com a figura do Jeca Tatu é reforçada nos seguintes termos:

Nasci sob um clima esplêndido. Só conheço a neve e o outono


nos versos dos poetas da Avenida Central, que tomam sorvetes
no Alvear, e dos de S. Paulo, que bebem refrescos com
canudinhos de taquara. [...] Quando quero passar bem, do meu
piquete dou uns tiros nas pombas-rolas ou nos nambus que vêm
beber água no cocho. Se meu paladar exige caça, armo
mundéus e tenho pacas e coelhos... Mal atiro a semente na
roça, o milho grela; o feijão dá como cará. [...] Não preciso,
pois, matar-me inutilmente no eito. [...] Por enquanto faço as
três cousas que me ensinou Raimundo Correia: pito, durmo e
toco viola. O resto fica para depois... (DEL PICCHIA, 1920a,
p. 3).

No auge das discussões sobre a questão racial brasileira, Menotti


del Picchia afirma em uma crônica de 1920, intitulada “Da Estética. Seremos
Plagiários?”, ser um falso nacionalismo o que reivindica para o indígena a
representação etnológica do fundo racial brasileiro para em seguida,
reivindicar o reconhecimento do imigrante europeu na definição do
brasileiro, no fortalecimento da “raça”:

O espírito industrial moderno, a nova raça forte, oriunda do


cruzamento das raças singenéticas em fermentação no xadrez

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etnográfico da nossa nacionalidade, absorvem esses tíbios
resquícios de uma minoria agonizante. Morreu Peri. Morre Jeca
Tatu. Surge, afinal, o tipo definitivo do brasileiro vencedor.
(DEL PICCHIA, 1920b, p. 1).

Para Del Picchia, o tipo nacional só se definiria depois de cruzar-


se com as “raças singenéticas” tidas como étnica e culturalmente superiores.
Esse novo “Eneas da Roma americana” seria “um ser poligenético, múltiplo,
forte, vivo, culto, inteligente, audaz, fruto de muitas raças em combate,
resultante de muitos sangues e adaptado, pela força das leis mesológicas, no
meio em que surge, temperado pelo clima, plasmado pela força da fatalidade
histórica” (DEL PICCHIA, 1920b, p. 1). O exemplo de Del Picchia, embora
exíguo, é uma clara demonstração de que os parâmetros raça e meio
fundamentam o solo epistemológico dos intelectuais brasileiros de fins do
século XIX e início do século XX.
O sentimento de inferioridade do brasileiro incomodava muitos
intelectuais como António de Alcântara Machado que, pelo menos em duas
de suas crônicas, reunidas em Cavaquinho e Saxofone, trata do assunto em
tom de desabafo e ironia. Em “Relações Exteriores”, de 1929, o escritor
modernista afirmava:

O brasileiro tem a suscetibilidade aguda de uma menina de


quinze anos. Qualquer cousinha o fere. Por qualquer motivo
fica de burro e fecha-se no quarto batendo a porta engolindo
soluços. Suscetibilidade de povo adolescente. Falta de traquejo
internacional. Caipirismo. Em tudo enxerga uma afronta. Vive
desconfiado. De ouvidos bem atentos que é para saber se estão
falando mal dele. Depois vaidoso como ele só. Mendiga o
elogio estrangeiro (como se dele precisasse para viver). Dá um
passo e olha logo para a Europa para ver se a Europa aplaude.
Que nem artista de café-concerto. (MACHADO, 1940, p. 68).

Ainda na mesma crônica, A. A. Machado esboça a imagem de um


Brasil ainda em formação, entre primitivo e paradisíaco, mas procurando
valorizá-lo em relação à Europa, continente às voltas com o “peso morto do
passado”:

Entre nós se caçoa muito dos brasileiros que descobrem o


Brasil na Europa. [...] Só lá fora mesmo é que se pode fazer
uma ideia justa do colosso que isto é. Vendo aqueles homens
esgotados. Aqueles campos chupados. Aquelas tradições
asfixiantes. Os milhões de vagabundos à força. Aquele

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desânimo. O cerebralismo doentio dos mentores. A tremenda
revolta dos dirigidos. A luta carniceira pela vida. A indecisão
do presente. O receio do amanhã. E a fome. O desespero. A
esterilidade. Então a gente se lembra de que deixou um país
onde tudo está por fazer. E avalia bem a felicidade que isso
representa. País virgem à espera de fecundação. Sem o peso
morto do passado. Até sem presente. Vivendo todo para o
futuro. País delicioso pelas suas possibilidades ignoradas. País
delicioso pelos seus defeitos visíveis. Tão forte e tão pitoresco.
Tão grande e tão ingênuo. Tão bonito e tão engraçado. País
pixote. Pixote prodígio. De pés no chão e fura-bolos no nariz.
(MACHADO, 1940, p. 75)

Para A. A. Machado, embora o brasileiro fosse “um pouco


palerma”, “encalistrado”, “macambúzio”, precisava se “desembaraçar”,
“virar esperto”, “não se deixar roubar no joguinho de parede”, sugerindo,
para tanto, uma identidade para o brasileiro entre o malandro escolado e o
moleque trapaceiro, de modo que, para afirmar-se frente o estrangeiro, o
nacional precisava transgredir aquelas normas e modelos de conduta que lhe
foram historicamente impostos: “E principalmente quebrar as janelas dos
vizinhos com pedra. Todos os dias. E também aprender a vaiar. Bem forte.
Com dois dedos na boca. Fazer fiau ao resto do mundo” (MACHADO, 1940,
p. 76). A insistência de uma afirmação do nacional em relação ao estrangeiro
se repete ainda na crônica “Guaranis viajados”, em que, motivado por um
declarado sentimento de insatisfação com a imigração, A. A. Machado toma
como parâmetro a “caipirice” do brasileiro e sua obsessão em imitar a moda e
modelos de sociabilidades europeus: “O brasileiro dá um pulo até a Europa e
volta botocudo como foi. Reforma o guarda-roupa mas não reforma as ideias.
[...] Ao invés de vaiar, gozando a sua superioridade, aplaude tamanha
inferioridade, invejando-a” (MACHADO, 1940, p. 141-2).
Por volta dos anos de 1920 e 1930 o esforço de transformar o
Brasil em uma sociedade branca europeia tinha fracassado — os imigrantes
começavam a incomodar as elites brasileiras porque importavam para o
Brasil as doutrinas estrangeiras do anarquismo e socialismo e um estilo novo
e mais militante de organização trabalhista. Como consequência desse
desencanto, questões relacionadas com o futuro desenvolvimento do país e
do caráter racial de sua identidade nacional são retomadas. Nesse cenário
destaca-se a figura do sociólogo Gilberto Freyre que, em contraposição à
ideia de europeização do Brasil, sugere a aceitação da ideia de que o Brasil
estaria destinado a se sobressair no cenário mundial como um “novo mundo
nos trópicos”. Tais ideias, presentes, sobretudo em Casa Grande e senzala,
Sobrados e mucambos, colaboram para a construção de uma imagem do

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Brasil em que europeus, indígenas e africanos se amalgamariam para compor
uma sociedade genuinamente multirracial e multicultural. Freyre esboçava
uma ideia de Brasil como uma democracia racial: “uma das uniões mais
harmoniosas da cultura com a natureza e de uma cultura com a outra que as
terras deste hemisfério já conheceu”3 (FREYRE, 1946, p. xii apud
ANDREWS, 1997, p. 98). Segundo George Reid Andrews, professor de
História na Universidade de Pittsburg (EUA), Freyre defendia a ideia de que
a democracia racial brasileira era simbolizada e corporificada pelos mulatos
racialmente mistos, elementos que, segundo o sociólogo, representavam a
porção mais marcadamente brasileira da sociedade nacional. Com isso,
Freyre colocava em xeque as alegações dos racistas científicos para quem “o
mulato é incapaz de alcançar uma estabilidade como um igual social e
intelectual do homem branco”. Nas suas alegações, Freyre argumentava:

[...] no senso de corresponder mais intimamente ao meio


brasileiro e de uma adaptação mais fácil e possivelmente mais
profunda aos seus interesses, aos seus gostos, às suas
necessidades, o mestiço, o mulato ou, para colocar de uma
maneira mais delicada, a pessoa de cútis escura, pareceria
exibir maior capacidade de liderança que o branco ou o quase
branco. (FREYRE, 1963, p. 416 apud ANDREWS, 1997, p.
98).

Na edição norte-americana de Sobrados e mucambos, após


destacar a capacidade de liderança do mestiço e do mulato, Freyre conclui: “o
Brasil está se tornando mais e mais uma democracia racial, caracterizada por
uma combinação quase singular de diversidade e unidade”4. Andrews
observa que, embora uma menção direta à expressão “democracia racial” não
tenha sido feita na versão em português de Sobrados e mucambos, ela foi
acrescentada à versão norte-americana (1998, p. 33).
Embora em seus escritos Freyre não tenha se referido diretamente
à existência de uma democracia racial plena no Brasil, muitas de suas
afirmações fizeram com que, tanto intelectuais quanto contestadores de suas
teorias, nas décadas posteriores à publicação de Casa Grande e Sobrados e
mucambos, enxergassem nele o fundador do mito da democracia racial
brasileira. No auge das especulações sobre o assunto, Freyre concede uma
série de entrevistas em que procura esclarecer alguns pontos de sua teoria

3
Trecho do prefácio à edição norte-americana de Casa Grande e Senzala com o título The
masters and the slaves: a study in Brazilian civilization. New York: Knopf, 1946, p. xii apud
ANDREWS, 1997, p. 98.
4
"For Brazil is becoming more and more a racial democracy, characterized by an almost unique
combination of diversity and unity". (FREYRE, 1963, p. 431).

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com vistas a relativizar ou rebater algumas conclusões apressadas. Em uma
dessas entrevistas, concedida a Lêda Rivas em 1980, Freyre procura
responder à pergunta “Até que ponto nós somos uma democracia racial?”,
asseverando que “democracia política é relativa”, que a “democracia plena é
uma bela frase [...] de demagogos que não têm responsabilidade intelectual
quando se exprimem sobre assuntos políticos”. Para ilustrar o quanto o
conceito de democracia é relativo, cita o caso dos gregos, os quais, embora
“aclamados como democratas do passado clássico, conciliaram sua
democracia com a escravidão”. Cita ainda os Estados Unidos que, apesar de
serem apontados como os “continuadores dos gregos como exemplo moderno
de democracia no século XVIII, conciliaram essa democracia também com a
escravidão”, e ainda os suíços, “que primaram pela democracia pura”, mas
que até bem pouco tempo não permitiam que a mulher votasse. Após elencar
esses exemplos, Freyre os compara com o Brasil, argumentando que

[...] o Brasil [...] é o país onde há uma maior aproximação à


democracia racial, quer seja no presente ou no passado
humano. Eu acho que o brasileiro pode, tranquilamente,
ufanar-se de chegar a este ponto. Mas é um país de democracia
racial perfeita, pura? Não, de modo algum. Quando fala em
democracia racial, você tem que considerar o problema de
classe, se mistura tanto ao problema de raça, ao problema de
cultura, ao problema de educação. [...] Quem cuidou de
integrar esse negro liberto à sociedade brasileira? A Igreja? Era
inteiramente ausente. A República? Nada. A nova expressão de
poder econômico do Brasil que sucedia ao poder patriarcal
agrário e que era a urbana industrial? De modo algum. De
forma que nós estamos, hoje, com descendentes de negros
marginalizados, por nós próprios. Marginalizados na sua
condição social. [...]. Não há pura democracia no Brasil, nem
racial nem social, nem política, mas, repito, aqui existe muito
mais aproximação a uma democracia racial do que em qualquer
outra parte do mundo. (RIVAS, 1997. p. 179)

Embora as teorias de Freyre tenham se tornado a base de uma nova


ideologia sobre a questão racial e cultural brasileira, o fato é que a partir de
década de 1950, contexto das crônicas futebolísticas de Nelson Rodrigues, o
mito da democracia racial brasileira começa a ser amplamente questionado.
De acordo com Andrews (1997), o mito só começou a ser questionado por
escritores e pesquisadores a partir do momento em que eventos e influências
internacionais começaram a exercer pressão sobre o Brasil, de fora de suas
fronteiras. O primeiro desses eventos incluía uma série de projetos de

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pesquisa que colocava em foco as relações raciais brasileiras, realizada por
intelectuais brasileiros, norte-americanos e franceses no início dos anos de
1950, com o apoio da recém-criada Unesco. Os recentes horrores do nazismo
e do holocausto motivam a Unesco a adotar, como parte de sua missão
institucional, o combate ao racismo em escala internacional e, nesse cenário,
a democracia racial brasileira apresentava-se como uma alternativa no
sentido de se compreender como o igualitarismo racial havia ocorrido no
Brasil e como funcionava na prática. A Divisão de Ciências Sociais da
Unesco empreende uma série de pesquisas em algumas cidades do Sudeste
industrializado — São Paulo e Rio de Janeiro — e em várias cidades
mineiras, bem como na Bahia e em Pernambuco (ANDREWS, 1997, p. 100).
Quanto aos resultados da pesquisa, Andrews observa que “não
foram os esperados. Todas as esquipes constataram elevados níveis de
desigualdade entre as populações branca e não branca, além de fortes
evidências de atitudes e estereótipos racistas” (1997, p. 101). As equipes que
se dirigiram ao Nordeste puderam constatar que tais desigualdades
expressavam mais as diferenças de classe que as diferenças raciais, de modo
que os negros sofriam discriminação mais pelo fato de serem pobres;
contrariamente, as equipes destinadas às cidades do Sudeste, sobretudo do
Rio e São Paulo, concluíram que as desigualdades decorriam do preconceito
e da discriminação baseados na raça, apontando as diferenças no tratamento
de acordo com os brancos e negros da classe trabalhadora e as enormes
dificuldades enfrentadas por negros e mulatos cultos e qualificados que
lutavam para ascender à classe média (ANDREWS, 1997, p. 101).
O segundo evento ocorre na mesma época dos projetos da Unesco,
1950, e girou em torno do episódio em que a dançarina afro-americana
Katherine Dunham teve sua admissão recusada no Hotel Esplanada de São
Paulo, para o qual tinha feito reservas durante a excursão com sua
Companhia no Brasil. As denúncias da dançarina, somadas ao fato de ela ser
americana e artista renomada, geraram uma repercussão sem precedentes que
culminou com a aprovação, pelo Congresso, no ano seguinte, do primeiro
estatuto contra a discriminação no Brasil, a Lei Afonso Arinos, de 1951, que
incluía entre as convenções penais a prática de atos resultantes de preconceito
de raça e cor da pele (ANDREWS, 1997, p. 101).
Quase quatro décadas depois de Del Picchia e de A. A. Machado,
discussões em torno da questão racial brasileira e do sentimento de
impotência do nacional ainda incitavam intelectuais como Nelson Rodrigues,
cujas crônicas, objetos deste trabalho, publicados no Manchete Esportiva e
n´O Globo, entre os anos de 1955 e 19705, esboçavam preocupações

5
As crônicas citadas neste trabalho foram reunidas por Ruy Castro no livro À sombra das
chuteiras imortais: crônicas de futebol, Companhia das Letras, 1993.

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semelhantes às de A. A. Machado, porém em novas linguagens e contextos.
Como A. A. Machado, Nelson Rodrigues acreditava também que as
potencialidades brasileiras eram ignoradas pelas elites e, sobretudo, pelos
“entendidos”, estes, intelectuais da imprensa recorrentemente criticados pelo
cronista. Tais jornalistas continuavam endossando a opinião daqueles que
pregavam a inferioridade racial e moral do brasileiro. Em uma crônica de
10/6/1970, “O entendido salvo pelo ridículo”, escrita no calor da euforia
causada pela copa do México, Nelson identifica o “entendido”, e com aguda
ironia, na pessoa do cronista que esteve, em 1966, na Inglaterra, tendo
voltado de lá com a seguinte “descoberta”: “— o futebol europeu em geral e
o inglês em particular eram muito melhores do que o nosso. Estávamos
atrasados de quarenta anos para mais. Quanto à velocidade, era uma invenção
europeia. Os brasileiros andavam de velocípede, os europeus a jato” (1993, p.
183).
Ainda segundo Nelson, o brasileiro sentia um forte ufanismo às
avessas, sentimento que teria sido reforçado com o fracasso da copa de 1950:
“O brasileiro gosta muito de ignorar as próprias virtudes e exaltar as próprias
deficiências, numa inversão do chamado ufanismo. Sim, amigos: — somos
uns Narcisos às avessas, que cospem na própria imagem” (1993, p. 30).
Apesar das inúmeras divergências sobre o Brasil ser ou não ser
uma democracia racial nas décadas de 1950 e 1960, parte das ideias de
Gilberto Freyre sobre a questão racial continuaria sendo endossada por
intelectuais como Nelson Rodrigues, que conduz a discussão para um campo
específico: o futebol, espaço que representava uma possibilidade de ascensão
social e afirmação moral para mestiços e mulatos; onde podiam demonstrar
suas habilidades, força e capacidade de liderança. O mais interessante é que,
em suas crônicas, como tinha feito A. A. Machado, persiste ainda aquela
obsessão de uma definição da identidade do brasileiro em relação ao
estrangeiro. Nelson defendia a ideia de que o brasileiro deveria assumir uma
postura viril e insolente diante do estrangeiro, apresentando na copa de 1958
Pelé como a performance do “racialmente perfeito”, como um modelo a ser
seguido: “Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros,
os ingleses, os russos de alto a baixo. [...] E é dessa atitude viril e mesmo
insolente que precisamos” (1993, p. 43).
O que é possível observar, nas crônicas futebolísticas de Nelson,
nas quais a figura do craque negro é elevada à categoria de herói nacional,
são traços irrefutáveis da crença no mito das três raças e simetrias com as
ideias de Freyre que se materializam, sobretudo, na transformação da
negatividade do mestiço e do mulato em positividade, permitindo redesenhar
os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo esboçada em cores
obscuras. Em suas crônicas Nelson reforça a ideologia da mestiçagem, a qual,
de acordo com Renato Ortiz, “estava aprisionada nas ambiguidades das

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teorias racistas”, e que, após ser reelaborada, “pode difundir-se socialmente e
se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou
nos grandes eventos como o carnaval e o futebol” (2003, p. 41).

A ASCENSÃO SOCIAL DO NEGRO E A IDENTIDADE DO BRASILEIRO

As crônicas futebolísticas de Nelson chegam quase a fugir do


clássico conceito do gênero crônica quando as inserimos no âmbito das
discussões sobre a definição da identidade do brasileiro – uma identidade em
constante formação e transformação —, da questão racial e das discussões
suscitadas pelos eventos que marcaram a retomada do debate sobre o Brasil
ser uma democracia racial no início da década de 1950. Distanciando-se
ainda do conceito clássico no modo como ele as constrói: suas crônicas são
apoteóticas, carnavalescas, populares, eruditas, dramáticas; nelas Nelson
derrama erudição, no entanto, para alcançar uma gama maior de leitores, não
abdica da filosofia do senso comum, de uma filosofia que poderíamos chamar
rabelaisiana, de filosofia dos bêbados, dos possessos e dos loucos; filosofia
de arquibancada e de pé-de-balcão. Para Nelson, “o aparente exagero tem sua
íntima lógica irredutível” (1993, p. 68).
Falando sobre o estatuto literário da crônica, Antonio Candido
observa que o fato de a crônica “ficar tão perto do dia-a-dia age como quebra
do monumental e da ênfase” e, embora o crítico não conceba isso como
necessariamente ruim, salienta que “a magnitude do assunto e a pompa da
linguagem podem atuar como disfarce da realidade e mesmo da verdade”
(CANDIDO, 1992, p. 14). O fato é que Nelson não abdica nem do
monumental e nem da ênfase, em vez disso, os acentua, pois na sua
militância fica claro que pretende desconstruir determinadas “verdades”
estanques que procuram negar a contribuição da mestiçagem na formação da
identidade brasileira. Em Nelson, diferentemente do que ocorre com outros
cronistas que o sucederam, a crônica, ainda muito presa à função informativa
que lhe era peculiar, ganha ares de militância quando o cronista, entre uma
partida de futebol e outra, faz crítica social, participando decididamente na
realidade com o intuito de mudá-la.
Em suas crônicas Nelson mergulha na questão cultural brasileira
para ali sugerir caminhos para o destino do nacional, para a construção de
uma identidade para o brasileiro que inclua também a mestiçagem, os “pelés”
e “garrinchas” brancos e negros da nossa formação; nelas ainda, o nacional e
o popular aparecem bem delimitados; as falhas morais do caráter brasileiro se
sobressaem em contextos e situações pensadas estrategicamente: “admiramos
mais os defeitos ingleses que as virtudes brasileiras” (1993, p. 165); “Eis a

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nossa tragédia: — a pura e simples vitória não basta. Desejamos enfeitá-la,
pôr-lhe fitinhas e guizos. E o triunfo sem show, sem apoteose, o triunfo
enxuto deixa o brasileiro descontente e desconfiado” (1993, p. 55). Nelson
acreditava que “a humilhação [...] confere aos homens e aos times uma
dimensão nova, uma potencialidade irresistível” (1993, p. 28), usando o caso
de José do Patrocínio para ilustrar sua tese de que o brasileiro só reage frente
à humilhação:

De vez em quando, eu relembro o que acontecia com o “Tigre


da Abolição”. Nos comícios, José do Patrocínio começava
gelado de pusilanimidade. Era preciso que os amigos, no meio
da multidão, o chamassem de “negro”, “negro”, “negro” e
“negro”. E a humilhação racial o potencializava. (1993, p. 168)

Assim como A. A. Machado, em suas crônicas Nelson reclamava


da passividade do brasileiro, e não raro colocava ênfase na “necessidade de
baixar o pau”, pois, enquanto o brasileiro fazia “um futebol diáfano,
incorpóreo, de sílfides”, os europeus agiam “como centauros truculentos,
escouceando em todas as direções” (1993, p. 133). Sobre essa passividade e
timidez que nos acometia, Nelson escrevia, sem nenhum pudor: “[...] só os
subdesenvolvidos ainda se ruborizam. Ao passo que o grande povo é, antes
de tudo, um cínico. Para fundar um império, um país precisa de um impudor
sem nenhuma folha de parreira” (1993, p. 132).
Renato Ortiz observa que a construção da identidade brasileira
esteve quase sempre associada à questão da cultura no Brasil:

[...] a discussão sobre a cultura sempre foi entre nós uma


forma de se tomar consciência do nosso destino, o que fez com
que ela estivesse intimamente associada à temática do nacional
e do popular. Foi dentro desses parâmetros que floresceram as
diversas posições sobre nossa identidade nacional. (ORTIZ,
1994, p. 7)

Não podemos ignorar também o fato de que os anos de 1950


registraram, no plano político, um forte sentimento nacionalista e a
consolidação de uma política populista e, no plano econômico, projetos de
modernização para o Brasil. As crônicas de Nelson não ficam à margem
desse pensamento, apresentando-se também como um espaço em que
questionamentos sobre a real capacidade do povo brasileiro na viabilização
de tais projetos são recorrentes.
Quando Nelson escreve suas crônicas o futebol já havia se
integrado à vida e à cultura do povo brasileiro, passando a ser visto como um

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elemento definidor de brasilidade, algo que se projetava como síntese da
alma e do “jeito de ser” do brasileiro. Ao relatar partidas de futebol no espaço
do jornal, Nelson redimensiona a repercussão dos fatos que se lhe apresentam
como matéria-prima, recurso estilístico que passa a auxiliá-lo em questões
recorrentes, como as definições e análises do homem brasileiro e de suas
características pessoais. Na crônica rodrigueana, o craque de “cor” e de baixa
extração social, ao driblar as dificuldades individuais e coletivas e conseguir
galgar parte das barreiras impostas pela sociedade, consegue se sobressair
com a maestria dos heróis consagrados, ora pela História, ora pela literatura
erudita, ora pela cultura popular, projetando-se, desse modo, como um
modelo a ser considerado na definição da identidade do homem brasileiro.
Para Nelson Rodrigues, “o universo do futebol se oferecia como
palco ao desfile dos dilemas, dramas e frustrações do ‘homem brasileiro’”,
cabendo ao cronista colocar-se diante dele, observar sua dinâmica, seus
movimentos, e eternizá-los sob a forma de literatura (ANTUNES, 2002, p.
215). Na verdade, o cronista concebia o futebol como um espetáculo
revelador dos dramas coletivos ao afirmar que durante uma partida, “a bola é
um reles, um ínfimo, um ridículo detalhe. O que procuramos no futebol é o
drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão” (1993, p. 104) e que até
mesmo “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana”
(1993, p. 103).
Embora as teorias sobre a democracia racial, com as quais Nelson
claramente dialoga, previssem uma efetiva colaboração do mestiço e do
mulato na definição da identidade brasileira, no universo da crônica
rodrigueana essa inserção do negro passa por uma reelaboração de sua
imagem que não raro extrapola os limites da realidade. O fato é que a
exaltação da força e do caráter aguerrido do negro encontra-se totalmente
desvinculada de suas raízes africanas. Em nenhum momento sua agilidade é
dada como uma herança cultural associada às figuras de orixás como Ogum e
Oxossi, por exemplo. Em Nelson, a criatividade e a invencibilidade dos
heróis negros do futebol remetem ao bogatyr primordial, aos heróis do
romanceiro e do anedotário popular, cujas proezas e invulnerabilidade
tangenciam o sobrenatural. Na verdade, Nelson atualiza arquétipos do mito
heroico instalados no inconsciente coletivo com os quais o leitor
imediatamente se identifica, ajudando a desconstruir, estrategicamente, o
discurso de desvalorização do elemento negro.
O craque-herói de Nelson assemelha-se, em muitos aspectos, ao
herói do romance moderno, cuja atuação é vista não só como algo individual,
mas em relação com o mundo, fator determinante de sua caracterização. As
semelhanças persistem ainda, naquilo que o herói moderno herdou da
tragédia. Segundo Aristóteles os personagens da tragédia, bem como a
natureza de seus atos, se dão a conhecer “pelas diferenças de caráter e de

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pensamento” (1973, p. 271), embora em Nelson o herói “não pensa”, age:
“Garrincha não pensa”. E neste aspecto suas criações se aproximam do herói
presente nas obras de ficção mencionadas por Northrop Frye, herói cuja
“força de ação [...] pode ser maior do que a nossa, menor ou mais ou menos a
mesma” (1973, p. 39).
Nas crônicas, a figura do jogador negro aparece associada também
à dos anti-heróis da literatura popular. Basta citarmos o caso do craque
Jaguaré na crônica “Bocage no futebol”, de 1956. Na década de 40 o ídolo
deixou o futebol brasileiro e foi jogar na Europa, no entanto, seu espírito
brincalhão e suas travessuras durante as partidas parecem não ter agradado os
europeus, que o dispensaram sem muitos recursos para retomar a vida no
Brasil. Depois de tê-lo comparado ao Bocage do anedotário brasileiro, pelos
palavrões que proferia em campo, Nelson relata que ele morreu na miséria,
“Mas feliz, porque pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos palavrões
terrenos” (1993, p. 18) e, como tantos outros heróis ladinos da cultura
popular, recusando-se a reentrar na ordem.
Outras vezes a insistência em atribuir dribles e vitórias fenomenais
às pernas tortas de Garrincha acaba quase por identificar no craque aquelas
habilidades que caracterizavam os antigos gnomos camponeses, bizarras
criaturas carnavalescas descendentes dos demônios da fertilidade agrária. Em
outros momentos, o herói negro de Nelson avizinha-se, por sua atuação e
função social, do trickster ancestral e de sua versão moderna, o Malasartes
brasileiro, herói ladino que quase sempre tira proveito da desvantagem,
subvertendo a ordem. Sobre a partida Brasil 2 x 0 União Soviética, de
15/6/1958, em que a URSS era apontada como um adversário forte na Copa
por seu “futebol científico”, Nelson relata:

[...] a desintegração da defesa russa começou exatamente na


primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o
espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas,
que vinha subverter todas as concepções do futebol europeu.
Como marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável? (1993,
p. 53).

Assim é narrada a atuação de Garrincha na partida Brasil 4 x 2


Chile, de 13/6/1962: “E o Mané, com suas pernas tortas e fulgurantes, com o
seu olho rútilo e também torto, pôs os Andes de gatinhas, ou de cócoras, sei
lá” (1993, p. 89). Na mesma crônica, para se referir à invencibilidade de
Garrincha e à derrota do adversário estrangeiro, Nelson elabora metáforas
dionisíacas e antropofágicas que remetem ao carnaval, a Rabelais e a
Macunaíma: “No segundo gol, Mané deu uns dez salames dionisíacos.

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Comeu com aquele apetite imortal toda a defesa inimiga. E comeu o juiz e
comeu o bandeirinha” (1993, p. 88).
No afã de afirmar a superioridade do brasileiro centrada na figura
do ídolo negro “racialmente perfeito”, Nelson acaba deixando algumas
lacunas no seu projeto. Por um lado, a voracidade, molecagem e
invulnerabilidade do jogador brasileiro ou se constroem a partir de modelos
eruditos europeus ou nascem da comparação com heróis distantes da nossa
realidade cultural. A título de ilustração, basta citarmos trechos de algumas
crônicas em que os ídolos brasileiros aparecem em cena confrontando heroica
ou sorrateiramente um estrangeiro durante uma partida. Suas qualidades
raramente se revelam em contexto nacional: na crônica “Um gesto de amor”,
de 2/12/1968, “Quando recebeu a bola, no primeiro minuto do jogo,
[Garrincha] driblou um russo, mais outro, outro mais, como no soneto.
Driblou as barbas de Rasputin, driblou as cinzas do czar”, para, em seguida,
enfiar “uma bomba na trave” (1993, p. 138). Na copa de 58 cada jogador, ao
entrar na área adversária, desintegrava a defesa inimiga e “cada vez que um
craque recebia a bola, partia em todas as direções, como aquele mocinho de
fita em série” (1993, p. 58). A atuação do jogador Amarildo, na partida Brasil
2 x 0 Espanha, em 6/6/1962, é assim descrita por Nelson: “De seu lábio
pendia uma baba elástica e bovina dos possessos. Nas páginas de Dostoiévski
é assim que os possessos babam profissionalmente” (1993, p. 87). Por
ocasião dos jogos preparatórios no Maracanã para a copa do mundo da
Inglaterra, quando o Brasil joga com a seleção gaúcha e vence de 2 a 0, as
piruetas de Garrincha são comparadas às de Chaplin: “Vocês se lembram de
Charlie Chaplin, em Luzes da ribalta, fazendo o número das pulgas
amestradas? Pois bem, Mané nos deu um alto momento chapliniano” (1993,
p. 119).
O fato é que a molecagem e a voracidade do jogador negro em
campo nunca são concebidas como heranças de um terceiro elemento, mítico
e étnico-cultural, que entra na composição do malandro brasileiro, na
formação da perspicácia que se encontra na base da formação do nosso
caráter e que, inclusive, provém de tradições negras. Para além da
antropofagia latino-americana das teorias mais recentes, o ato ritualístico de
“digerir” acompanha o povo africano desde suas origens, embora tenha
adquirido aqui, durante a colonização, novos significados. Estamos falando
de Exú, um dos orixás africanos mais demonizados durante a colonização e o
processo “civilizatório”. Não derivaria daí, em parte, a molecagem, os
“truques”, os dribles, o “fez que foi e não foi”, os gols de “bicicleta”, a
invulnerabilidade e a voracidade negra manifestados nos campos de futebol
da Europa?
De acordo com algumas tradições de origem africana, Exú tem a
“habilidade de fazer algo parecer ser aquilo que não é, pelo uso, sobretudo,

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de algumas estratégias e artimanhas utilizadas para conseguir realizar seus
feitos” (FERREIRA, 2011, p. 5). No mito, Exú come tudo e é movido por
uma fome incontrolável. Depois de ter comido todos os animais, árvores e
frutos da aldeia em que vivia, comeu até mesmo o Céu, e nem mesmo a
morte conseguiu aplacar sua fome (PRANDI, 2001, p. 45-46). Na cultura
africana, a simbólica “fome” de Exú é alusiva ao seu papel de mensageiro, de
sua capacidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo, de mudar o
mundo com o seu movimento, com o caminhar mundo afora. O movimento
de Exú, muitas vezes realizado por meio de “truques”, “acaba por reduzir os
humanos a meras peças do seu teatro, da sua tragédia...” (FERREIRA, 2011,
p. 8). As trajetórias de nossos anti-heróis populares, com os quais em muitos
momentos da crônica de Nelson nossos ídolos negros se assemelham,
revelam traços da forte influência do mito na definição da “molecagem
brasileira”. O movimento de Exú, muitas vezes realizado por meio de
“truques”, “acaba por reduzir os humanos a meras peças do seu teatro, da sua
tragédia...” (FERREIRA, 2011, p. 8).
Segundo E. M. Meletínski, o caráter obstinado e furioso, que é
parte integrante da imagem arquetípica do herói, ajuda a modelar, até certo
ponto, a consequente emancipação de sua personalidade, expressa
naturalmente um aspecto dela, no entanto, sua trans- ou superpersonalidade
se sobressai como um fator dominante e seus feitos “coletivos” são tão
imediatos que não há vestígio de “obrigação” ou de “reflexão”
(MELETÍNSKI, 2002, p. 67), como nesta versão moderna do ídolo negro
Garrincha:

[...] chamavam este homem de retardado! Só agora começamos


a fazer-lhe justiça e a perceber a sua superioridade. Comparem
o homem normal, tão lerdo, quase bovino nos seus reflexos,
com a instantaneidade triunfal de Garrincha. Todos nós
dependemos do raciocínio. [...] Ao passo que Garrincha nunca
precisou pensar. Ele não pensa. (1993, p. 63).

Quanto aos feitos “coletivos” do herói arquetípico, eles encerram,


na verdade, a ideia de que a superpersonalidade do herói atua como
encarnação da autodefesa coletiva. Embora os “feitos” do herói sejam com
frequência entendidos como fazendo parte do plano de sua biografia, como
sua “consagração” (MELETÍNSKI, 2002, p. 56), num plano mais geral eles
parecem atender aos anseios de sua coletividade, passando a ser também os
“feitos” desta. O escrete brasileiro é o Brasil, diz Nelson, e as vitórias do
futebol brasileiro representam também uma vitória da nação. O milésimo gol
de Pelé foi, para Nelson, o “gol” de toda a nação brasileira:

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De repente, como patrícios do guerreiro, cada um de nós
sentiu-se um pouco coautor do feito. Pelé voou, arremessou-se
dentro do gol. Agarrou e beijou a bola. E chorava, o divino
crioulo. Cem mil pessoas, de pé, aplaudiam como na ópera. [...]
Naquele momento éramos todos brasileiros como nunca,
apaixonadamente brasileiros. (1993, p. 159-160)

Na crônica “O Belo Milagre das Vaias” em que se narra o episódio


da partida da seleção brasileira para a Copa do México, em 1970, o cronista,
atualiza, em parte, a arquetípica condição do “enjeitado” presente no mito
heroico. Depois de ter sido vaiada pelos brasileiros e criticada pela imprensa,
a seleção parte desacreditada para o México, diz Nelson:

Graças a Deus o escrete parte. O que nem todos percebem é


que o time nacional leva um maravilhoso trunfo. No México,
ele se sentirá muito menos estrangeiro do que aqui. E estará
protegido pela distância. [...] Se me perguntarem o que deverá
fazer a seleção para ganhar a Copa, direi, singelamente: —
“Não nos ler”. Sei que as nossas crônicas vão aparecer, por lá,
como abutres impressos. (1993, p. 167)

Apesar do descrédito, a seleção vai vencendo, gradativamente,


todas as partidas no México, como o herói “baixo”, o herói “do qual não se
espera nada” que, desapercebidamente e aos poucos vai revelando sua
essência heroica e triunfa sobre seus inimigos e rivais. A situação inicial
desvantajosa do herói, o escrete brasileiro desacreditado, recebe em Nelson,
como no mito heroico, um matiz social, no entanto, o rebaixamento social é
dominado pela elevação do status social após as provações: de vaiados a
tricampeões. No dia 22/6/1970, Nelson introduz e conclui a crônica “Dragões
de espora e penacho” glorificando o apoteótico tricampeonato:

Desde o Paraíso, jamais houve um futebol como o nosso.


Vocês se lembram do que nossos “entendidos” diziam dos
craques europeus. Ao passo que nós éramos quase uns pernas-
de-pau, quase uns cabeças-de-bagre. Se Napoleão tivesse
sofrido as vaias que flagelaram o escrete, não ganharia nem
batalhas de soldadinhos de chumbo. (1993, p. 191)

Como no mito heroico, em Nelson o arquétipo do herói atualizado


na figura dos craques negros brasileiros apresenta-se também
engenhosamente ligado ao do anti-herói, o qual se une ao herói numa única
pessoa. Na grande maioria das crônicas, o cronista introduz com maestria, na

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argamassa com que vem construindo seus heróis, medidas do herói épico, do
mítico e do fabuloso, sem deixar de adicionar, no acabamento de suas
monumentais figuras, uma dosagem daquilo que todo o brasileiro tem de
Malasartes e Macunaíma, os anti-heróis “sem nenhum caráter” da cultura
nacional. Aliás, é o que os craques de Nelson têm de mais genuinamente
brasileiro nas suas composições. Na crônica “À sombra dos crioulões em
flor”, Nelson exalta a destreza e a astúcia gnômica de Tostão quando marca
um gol contra a Inglaterra do modo menos convencional:

Foi um assombro. Em pé, Tostão já é pequeno, pequeno e


cabeçudo como um anão de Velásquez. Imaginem agora
deitado. Os ingleses ficaram indignados e explico: — um gol
como o de Tostão desafia toda uma complexa e astuta
experiência imperial. (1993, p. 150)

A inventividade de Nelson opera uma “desrealização do real” sem


precedentes na literatura brasileira. Nele, para o recorte que nos interessa
aqui, a representação dos espaços em que ocorrem as celebrações do futebol
e a construção positiva da imagem do craque negro enquanto representação
do “homem brasileiro” ocorre a partir da combinação de imagens, metáforas
e arquétipos emprestados, sobretudo, do teatro, do romanceiro popular e do
carnaval, este último, manifestação em que as inversões sociais e as
hierarquias são abolidas apenas temporariamente, enquanto dura a festa.
Aqui, instaura-se, então, um paradoxo: a construção de identidades feitas
para durar e servir de modelo para o “homem brasileiro” se dá exatamente
em um contexto onde coroamentos e destronamentos são uma constante; um
espaço onde todas as glórias são transitórias.
Nas crônicas futebolísticas de Nelson o apelo ao sobrenatural e à
euforia do futebol vem somar-se às imagens efêmeras do carnaval. Nelson
relata que, durante as apoteóticas celebrações futebolísticas, todas as
hierarquias são abolidas e que, diante das fabulosas vitórias do escrete, todos
se sentem igualmente brasileiros. Aqui, deparamo-nos inevitavelmente com o
utópico. Por ocasião da conquista do campeonato, em 1958, Nelson relatava
entusiasticamente que o time vitorioso, formado por “negros ornamentais,
folclóricos, divinos”, tinha conseguido realizar três proezas: deslumbrar o
mundo, superar o complexo de vira-latas e aproximar democraticamente
todos os brasileiros: “Súbito o brasileiro, do pé-rapado ao grã-fino, do
presidente ao contínuo, o brasileiro, dizia eu, assume uma dimensão
inesperada e gigantesca” (1993, p. 92). Promovendo, como no carnaval, uma
inversão temporária dos papéis sociais e, por conseguinte, das hierarquias: “O
bêbado tombado na sarjeta, com a cara enfiada no ralo, também é rei. Somos
75 milhões de reis” (1993, p. 92).

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Mas, como no carnaval, no futebol o mesmo povo que coroa seu
craque/herói também promove seu destronamento. Segundo Nelson, “No
futebol, a apoteose está sempre a um milímetro da vaia”. Na crônica “O
grande sol do escrete”, a filosofia de palco e de arquibancada de Nelson é
colocada em prática para retratar o episódio em que o rei Pelé, à guisa do rei
bufão do carnaval medieval, é destronado por seus súditos após uma partida
frustrada entre Brasil e Inglaterra, em 1970:

Mas, como ia dizendo: — vaiaram Pelé os noventa minutos.


Posso dizer que influiu na vaia, além do mais, um certo
cansaço, um certo tédio do mito. A multidão precisa destruir os
mitos que promove. A partir de então, não só o homem de
arquibancada, também os entendidos, também os técnicos,
também os cronistas — começaram a meter a picareta na
estátua de Pelé. Tem sido uma alegre demolição (1993, p. 173).

Por um lado, Nelson propõe um modelo de identidade para o


“homem brasileiro” calcado na figura do negro que evolui em espaços onde
as glórias são efêmeras e tudo ocorre de maneira muito transitória: o futebol e
o carnaval. Por outro lado, tais imagens em constante transformação e,
portanto, inacabadas, constituem-se uma espécie de síntese da real discussão
em torno da indefinida questão racial brasileira. No mais, ao construir uma
imagem do negro com arquétipos emprestados do herói mítico, fabuloso,
invencível e por isso mesmo, popular, Nelson consegue penetrar no
inconsciente coletivo brasileiro, em que tais arquétipos vinham se
sedimentando desde o início da formação do Brasil, tentando promover,
desse modo, a aceitação do mestiço e do mulato transmudado em herói, autor
de “feitos coletivos”; viabilizando sua ascensão social e sua afirmação moral
no imenso e indefinido amálgama de cores e culturas que compõem o Brasil.
E para concluir, voltando à questão das astúcias e dos “truques” de
Exú, um dos elementos formadores da nossa malandragem, cabem duas
perguntas: a primeira, já formulada por Ferreira (2011, p. 9), estaria
relacionada com a questão da resistência negra frente o processo do
sincretismo religioso, em que se pergunta se não seria este ‘ludibriar’ do qual
Exú faz uso o transparecer (ou o que ele viria a representar, o demônio) do
importante papel da resistência da ‘cultura negra’ face ao processo de
sincretismo religioso e, no seu ápice, face aos objetivos próprios do projeto
colonial civilizatório? A segunda, já voltada para o nosso enfoque, seria: O
fato de não se fazer menção, em nenhum momento, à contribuição das
tradições e mitos africanos na formação da nossa mestiçagem, e por extensão,
do nosso caráter, não acaba silenciando, de certa forma, parte de um passado
do qual todos aqueles ídolos negros do futebol provêm? Uma forma, embora

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inconsciente, de deixar sempre à sombra traços de uma cultura até hoje tida
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