2 George Zarur - A Utopia Brasileira

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Zarur, George.

A utopia Brasileira: etnia e construo da Nao no Pensamento Social


Brasileiro. En publicacin: Etnia e Nao na Amrica Latina. George Zarur. FLACSO, Facultad
Latinoamericana de Ciencias Sociales, Rio de Janeiro, Brasil. Disponible en la web:
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/flacso/zarur.pdf

Captulo I
A UTOPIA BRASILEIRA:
Etnia e Construo da Nao no Pensamento Social Brasileiro 1

I- A Idia de Uma Civilizao Brasileira


O argumento deste artigo o de que a construo de uma
civilizao redentora a proposta distintiva do pensamento social
brasileiro e o principal marco da identidade nacional. A pedra de toque do
pensamento brasileiro a idia da inevitvel chegada de uma civilizao
nova, mestia e original. Este o seu fio condutor, quase uma obsesso,
muito clara, desde o sculo passado e talvez desde muito antes. A crise
de hoje a crise desta idia, que sempre funcionou como o motor do
projeto nacional e das esperanas do pas. Aparece como argumento
para defender sua existncia, algum dia, como nao. Com o tempo
torna-se uma certeza, evidenciada pelo desenvolvimento econmico e em
um dado momento, pela promessa de se implantar no Brasil uma
sociedade socialista. A construo de Braslia outro instante em que fica
claro que h algo de novo e diferente nestas paragens. Dizem, algo
melhor, alimentando a crescente megalomania nacional. Os militares mais
tarde tentam se apossar desta idia e a reinterpretam sua maneira.
Esta idia, de um ser social brasileiro inteiramente novo e bom,
partilhada por intelectuais e pelo povo da terra. Na sua verso popular,
tem um profundo cunho religioso, respaldado por um passado de
messianismo ibrico e indgena. Nas religies brasileiras de hoje central
a idia de uma civilizao brasileira original, onde "sero superadas as
barreiras de raa, classe e credo.As ordens esotricas, mas que aqui no
tm como esconder sua inspirao africana, elevam o Brasil "terra do
evangelho" e profetizam que "Braslia ser a capital do terceiro milnio."
Do lado catlico, D.Bosco, santo italiano do sculo passado, v "jorrar
leite e mel e erguer-se uma nova civilizao" entre os paralelos 15 e 20.
Como Braslia foi construda no paralelo 16, ficaria confirmada a profecia.
Braslia est rodeada por um complexo de ordens religiosas, seitas e
grupos esotricos, com cidades inteiras organizadas para a preparao
do milnio, para a comunicao com discos voadores e para auxiliar os
1

Uma primeira verso deste artigo foi publicada em 1996, em Etnia e Nao na Amrica Latina,
George Zarur, ed.

Fuente de la informacin: Red de Bibliotecas Virtuales de Ciencias Sociales de


Amrica Latina y el Caribe - CLACSO
http://www.clacso.org.ar/biblioteca

governantes, gerindo a nao no plano do "astral". Sucessos e fracassos


nacionais so compreendidos como verdadeiras batalhas travadas neste
plano, no exatamente "sobrenatural, pois possui uma existncia
concreta e natural, para os seguidores dessas seitas.
Nossa Senhora da Aparecida, santa negra que veio das guas,
convive no pensamento popular com legies de divindades africanas e
indgenas, falanges de arcanjos e hostes de anjos da guarda, alm de
alguns milhes de pais de santo e donas de casa que rezam pelo Brasil
afora, em terreiros e igrejas de bairro. Sem esquecer Nossa Senhora da
Abadia, o menino do pastoreio ou o Padre Ccero. E a viso da igreja de
hoje, prometendo um mundo melhor, utopia religiosa, herdeira dos
jesutas do Paraguai e dos Sete Povos das misses, onde, como nas
profecias, "sero superadas as barreiras de credo, raa e classe. Assim,
com todo esse aparato, fica difcil de se entender que as coisas passem
tanto tempo sem dar certo, como na ltima e na presente dcada. A vida
cotidiana cada vez mais se afasta da "viso do paraso", que neste sculo
desenha a identidade brasileira. As conseqncias deste fato so
imprevisveis e muito mais srias do que a crise econmica em si.
As idias de uma sociedade nova em terras do Brasil, no foram
simplesmente criadas por intelectuais e reinterpretadas pelo povo.
Resultam de um constante processo de troca entre o povo brasileiro e sua
elite. Ao mesmo tempo, os membros desta elite foram educados na
cincia europia e norte-americana de seu tempo. Sua funo era a de
"intermedirios culturais", estabelecendo trocas entre esses dois mundos,
como poderia dizer nosso saudoso Guillermo Bonfil, entre o "Brasil
profundo" e o "Brasil superficial. muito provvel, considerando-se as
caractersticas histricas do messianismo brasileiro, que esta viso de
paraso eminente, seja muito forte e antiga na tradio nacional e que, em
um primeiro movimento, tenha se filtrado da cultura tradicional para a das
elites. A favor dessa hiptese, conta o passado do Brasil, pontilhado por
movimentos messinicos, associados a tentativas de se construir
sociedades sagradas igualitrias.

II-A Idia de Raa na Construo do Brasil ou "Quem sabe o Brasil


pode existir.
Os habitantes do arraial de Canudos, ex-prostitutas, vaqueiros,
jagunos, ladres e pobres em geral, afirmaram integralmente sua

humanidade, como membros daquela comunidade mstica. Continuavam


pobres, mas no tanto, pois tinham casa, comida, respeito e participao
na vida pblica. Talvez uma boa palavra seja "cidadania.Por isso sua
desesperada resistncia, vencendo formidveis expedies militares e no
fim, a escolha da morte em combate. A luta foi entre o arraial sertanejo e
o Brasil, que mobilizou de tropas de infantaria da Amaznia at lanceiros
gachos. No ltimo momento, dois homens adultos, um velho e um
menino enfrentando cinco mil soldados, que "rugiam" sua frente, na
descrio emocionada de Euclides de Cunha.
No s a beleza da narrativa faz do livro de Euclides nosso
maior pico, mas tambm sua qualidade de atravs de um drama real
exprimir as grandes questes brasileiras. A primeira delas a da
etnicidade (2). "O sertanejo antes de tudo um forte, diz Euclides
impressionado com o seu valor na guerra. Heresia, pois s brancos
europeus so os fortes da Antropologia racista dos finais do sculo
passado. Delineia-se o desafio dos intelectuais brasileiros cincia da
poca, o de "provar" que se pode construir estados nacionais com
populaes mestias. Euclides considera o sertanejo como uma forma de
mestiagem que se "estabilizada" poderia originar uma futura "raa
brasileira". Uma repetio dos bandeirantes paulistas, tambm nascidos
do cruzamento de ndios com brancos. Este tipo diferente dos "mulatos
neurastnicos do litoral, pois Euclides constri a etnicidade brasileira
atravs do jaguno e s custas do mulato. s vezes parece querer dar um
passo a mais, incorporando os brasileiros de origem africana a esta nova
raa, como no episdio em que descreve a morte herica de um negro
defensor de Canudos.
Euclides procura mostrar que o Brasil vivel. Naes eram
imaginadas por um critrio tnico e Euclides encontra de forma
"cientfica, um tipo brasileiro, mestio, moreno, o sertanejo, que se
transforma em metfora para a idia de nao. Ao valorizar o mestio de
ndios e colocar o sertanejo, como "tapuias mansos , enfatiza o passado
indgena, e contribui para resolver o dilema formulado por Bolvar no
congresso de Angostura:
"No sabemos exactamente lo que somos. Qui no somos blancos,
ni indios, ni negros, sino que nueva sntesis de todos ellos.
-Em Canudos havia um bairro inteiro formado pelos ndios Kariri hoje em
Mirandela, e que visitei em 1976. Como seus antepassados de Canudos so
monarquistas e acham que a figura mitolgica de D. Pedro II reina em Braslia.
Ainda guardam com afeto a memria de Antnio Conselheiro.
2

Dilema que se repete nas obras de Vasconcelos, Ingenieros,


Sarmiento, Andres Bello, Rod, Marti, Dario e outros.
Euclides j havia explorado alguns problemas abrangentes que
se repetem em diversos momentos no pensamento de intelectuais de
outros pases da Amrica Latina (3). Tambm o papel do povo pobre e
humilde, e no o dos grandes homens como sujeitos da histria, como era
comum na sociologia do comeo do sculo (4). Enfatiza a maior liberdade
e igualitarismo, entre os sertanejos, em contraste com os habitantes do
litoral. Avana sobre outros aspetos que ainda hoje interessam aos
estudiosos da cultura brasileira. Caso de sua anlise do primado das
relaes pessoais sobre a lei e as instituies, que mais tarde Buarque de
Holanda, e outros bem mais tarde, iriam explorar: Sua descrio de como
o vaqueiro escrevia suas cartas, prestando contas e separando
honestamente o seu e o do patro ausente. De como se assinava, "do
seu vaqueiro e amigo," ou ainda, de como o soldado brasileiro combatia
com um olho na luta e outro no seu chefe. Se este fraquejava todos
fraquejavam, se avanava, todos o faziam. Em certos momentos, a
refrega se travava em torno dos comandantes, os defensores de Canudos
tentando mata-los, e os soldados desesperados defendendo-os, pois os
perdendo, sabiam-se perdidos. Esta incurso no que mais tarde iria se
chamar de "homem cordial" ou de "sociedade relacional, espelha o mais
importante da obra de Euclides: a belssima descrio dos fantsticos
acontecimentos do serto de Canudos. No drama da luta, a nacionalidade
se exprimindo em uma etnografia de primeira grandeza.
"Os Sertes" foi uma obra publicada em 1902, 14 anos aps o
livro de Silvio Romero, "Histria da Literatura Brasileira.Apesar de
freqentes mudanas de posio ao longo de seus livros e artigos, as
concluses finais de Romero, antecedem as de Euclides, no que
concerne possibilidade de uma futura raa mestia brasileira. A maior
diferena que ela poderia surgir, no s reunindo os mestios de ndios
e brancos, mas tambm negros. A verdadeira idia do "melting pot", total
e abrangente.
Muitos outros brasileiros escreveram sobre as questes de raa
5
e etnia ( ). Uma copiosa retrospectiva pode ser encontrada em Skidmore
-No "Facundo" de Sarmiento, por exemplo, a oposio interior-litoral tambm
explorada por Euclides, mais do que nunca se faz presente.
4
-Ver Brando(1982)
5
- Este trabalho discutir apenas aqueles autores que marcaram da maneira mais
forte o pensamento nacional e que tiveram suas idias aceitas e transferidas para a
sociedade. Nao pretende uma anlise exaustiva do assunto.
3

(1974), por exemplo. Abundante mas mal usada, como veremos no


captulo seguinte.
Outro momento importante do desenvolvimento da idia tnica
de Brasil d-se com Oliveira Vianna, um mulato, que na companhia de
outro mulato, Nina Rodrigues, considerado o paradigma do racismo
brasileiro. O leitor de vez em quando se assusta ao tropear em trechos
como este:
"Arianos so estes os que, de posse dos aparelhos de disciplina
e de educao, dominam esta turba informe e pululante de mestios
inferiores, mantendo-a pela compresso social e jurdica dentro das
normas da moral ariana, e a vo afeioando lentamente mentalidade da
raa branca.(1982, 127, primeira publicao em 1939).
Para que o Brasil exista, o nacionalista Oliveira Vianna precisa
estabelecer compromissos. Afinal o conde Gobineau desenvolve suas
teses sobre a inferioridade racial dos mestios e negros, a partir de sua
experincia como diplomata francs no Rio de Janeiro. Vianna deixa
escapar, que est trabalhando com um conceito de raa bem diferente do
de Gobineau:
"Em regra, o que chamamos de mulato o mulato inferior,
incapaz de ascenso, degradado nas camadas mais baixas da sociedade,
provindo do cruzamento do branco com o negro do tipo inferior. Mulatos
h tambm superiores, mais prximos ao branco, arianos pelo
carter.(op.cit, 121).
Onde a metfora racial brasileira salta aos olhos em Oliveira
Vianna, no conceito de "Ariano moreno (1991, 30). Da mesma maneira
que Euclides prev uma raa brasileira "estabilizada, Vianna cria este
genial "kitsch" do mundo dos conceitos, para viabilizar o Brasil e garantir
sua futura grandeza. Assim nasce este "ariano modelado pelos trpicos,
de pele mais escura do que os demais "arianos, no se sabe bem
porque..."Branqueamento" e "morenizao" so sinnimos neste racismo
brasileira. Para chegar ao "ariano moreno", ao "embranquecimento,
Vianna apresenta tabelas estatsticas com a distribuio de "brancos,
negros" e "mestios", demonstrativas de um "crescimento negativo da
raa negra.Tabelas anlogas foram usadas em duas outras
oportunidades por autores nacionais. A primeira foi quando Batista de
Lacerda em 1912 tenta demonstrar que a populao "negra" do Brasil
cairia para zero at o ano de 2012. Outra quando Darcy Ribeiro (1970)
procura mostrar que os mestios dominaro numericamente a Amrica

Latina. Darcy, apesar de criticar o "branqueamento", no deixa de repetir


suas intenes ideolgicas: Como o "branqueamento" do incio do sculo
era uma metfora para a mestiagem, o que faz assumir explicitamente
este ltimo conceito, dispensando subterfgios. Pode prever "naes de
mestios, sem ocult-las sob a metfora do "branqueamento.As tabelas
de Batista de Lacerda, Oliveira Vianna, e Darcy Ribeiro, conferem ao
conceito de "raa", uma realidade objetiva, que de fato no possui.
"Brancos" e "negros" so categorias raciais inventadas por grupos tnicos
para se distinguir uns dos outros, da mesma maneira que outras
construes culturais, como alimentos, roupas, ou emblemas de qualquer
tipo.
Oliveira Vianna apesar do racismo, desenvolve algumas
explicaes sociolgicas muito convincentes. O objetivo de seu livro
"Populaes Meridionais do Brasil" o de "estabelecer a caracterizao
social do nosso povo..., de modo a ressaltar quanto somos distintos de
outros povos, isto a prpria identidade nacional brasileira. O papel que
atribui ao latifndio, de raiz das formaes sociais e econmicas
brasileiras, iria paradoxalmente, se repetir em anlises marxistas, at
para, nos anos 60, justificar a reforma agrria que nunca veio. Na sua
interpretao, a auto-suficincia econmica do latifndio simplifica a
estrutura econmica do pas, como um todo. Comrcio e cidades so
desnecessrios. O isolamento dos latifndios mata a solidariedade vicinal,
mas refora a vida de famlia. A elegncia analtica desaparece quando
compara a famlia fazendeira com a romana e idealiza as suas virtudes
morais. Contrasta-a com a "plebe rural, mestia, onde o princpio
dominante o da "mancebia, que relaciona com a "dissoluo da
autoridade paterna (6) e com as "falhas morais do baixo povo dos nossos
campos.
O discurso pomposo e enganador da excelncia moral da famlia
fazendeira ariana, some de repente, para reaparecer uma brilhante
explicao da colonizao do territrio brasileiro pelo latifndio. Alm das
bandeiras de guerra, contra ndios, havia as de colonizao, quando
latifndios inteiros eram transplantados, com velhos, negros escravos e
mulheres. A expanso do espao poltico do pas explicada pela alta
taxa de natalidade decorrente da famlia poligmica, pelas grandes
extenses de terra caractersticas dos latifndios que se transplantavam,
-A idia da "dissoluo da autoridade paterna" foi muitos anos depois usada por
um congressista norte-americano, Patrick Moynihan para explicar a pobreza dos
negros norte- americanos.
6

pela necessidade de se possuir terra, pelo regime pastoril que tambm


requeria grandes glebas e devido aos campos abertos do interior que
possibilitavam a expanso da pecuria. Convincente tambm sua
identificao das unidades sociais emergentes do latifndio, os diversos
tipos de agregados familiares que denomina "cls". O mais simples seria
o "Cl de feudo.De um lado o fazendeiro oferecia proteo aos seus
agregados e de outro, deles recebia lealdade at a morte. O "senhor no
estava nunca sozinho: sempre tinha ao redor, scios, amigos, camaradas,
capangas.Assim as lutas de famlias, que permeiam nossa histria e o
exemplo da guerra dos farrapos, onde os combatentes no sabiam por
que lutavam, apenas o nome do chefe a que deviam fidelidade. Da, a
repetio da idia da lealdade pessoal como valor supremo, repetindo a
do soldado de Euclides com um olho em seu chefe e outro na luta. Este
"Cl de feudo" era identificado com um nico latifndio, reunindo os donos
da terra, seus escravos e pees.
Estas unidades sociais, os "cls", caracterizam-se por uma forte
referncia tnica. Assim o uso dos mamelucos como inimigos dos negros
e dos mulatos, como "capites do mato.O desenvolvimento das foras
armadas brasileiras explicado etnicamente, como o de uma classe de
mestios. Nos "cls, unidades guerreiras, negros e ndios tambm so
elementos combatentes.
Enquanto as oligarquias locais formam o seu "Cl parental", as
camadas inferiores no tm solidariedade de classe nem
parental.Vinculavam-se unicamente ao fazendeiro local (1982a, 156). At
hoje, a articulao das oligarquias, atravs do parentesco e a desunio
dos pees, representa um nexo fundamental para se entender o sistema
brasileiro de classes sociais.
Interessante tambm sua viso do estado como aliado do povo
para conter o arbtrio dos poderosos locais. Antecipa a problemtica de
um estamento burocrtico, que mais tarde seria tema, por exemplo, do
livro de Raymundo Faoro, "Os Donos do Poder.(7)
III - As Idias de Cultura, Sociedade e Etnia na Construo da
Nao ou "O Brasil J Existe, Apesar de Tudo.
humana e generosa a sociologia de outro brasileiro do incio
do sculo, Manuel Bomfim. Sua crtica ao uso de conceito de raa,
- "...o grande programa seguido invariavelmente pelos construtores de nosso
poder central.....enfraquecer por todos os meios a aristocracia territorial." (1982a,
209)
7

adequada, mesmo para a antropologia de hoje. Ao l-lo sente-se como


que qualquer coisa fora de tempo e de lugar, no fossem algumas
informaes e o estilo literrio que o levam de volta ao Brasil do comeo
do sculo. Enquanto seus contemporneos fazem verdadeiras acrobacias
intelectuais para descobrir um "tipo racial" brasileiro, critica, em 1905, os
conceitos de raa e mestiagem, mostrando que existem apenas como
ideologia de opresso, entre povos e classes. Valoriza a miscigenao e
d nfase a aspetos polticos e culturais na explicao. Em um
determinado momento em "O Brasil Nao (1931), ataca a poltica
migratria vigente, defendendo ao invs, o apoio governamental aos
negros, ndios e mestios brasileiros.
Original e notvel sua explicao para o fim da escravido, que
atribui aos poetas brasileiros. Dedica seu livro "O Brasil Nao" a "Castro
Alves, voz comovida da revoluo.A poesia teria aproximado os
brasileiros e revelado os grandes problemas nacionais. Acredita que "toda
nacionalidade se afirma por cantos poticos" e convincente, na defesa
da idia de que a poesia teria mobilizado a populao contra o regime
escravista. No esquece de conferir um papel determinante nesta
mudana, aos prprios escravos, que fugindo, fundavam quilombos por
todo o Brasil. Assim, aproxima-se de Euclides ao ver o povo como agente
da histria. Faz uma meno especial ao enorme quilombo de Cubato
prximo ao litoral de So Paulo. Tambm ao exrcito negando-se a
destru-lo e aos juzes a decidir contra a perseguio aos escravos
fugidos.
Inverte a tradicional tese da atrao dos homens portugueses e
brasileiros por mulatas. Entende que o livre intercurso sexual entre o
senhor e suas escravas repete-se entre a senhora e os moleques de
casa. Desta maneira ataca a elite, atravs da moral da elite, que Oliveira
Vianna entendia como superior e justificadora da estrutura de classes e
de raas. E a golpeia no seu maior tabu, a honra de suas mulheres. Mais
tarde, Gilberto Freyre discorda, em esclarecedor debate. Argumenta que o
sexo entre o moleque e a sinhazinha seria impossvel, pois as outras
mulheres da casa, as mulatas, sobre ela exerciam uma constante
vigilncia por detrs dos tachos de doce. Para Freyre, a sinh fazia sexo
com as outras mulheres da casa, no com os meninos. O isolamento das
mulheres nos harns nacionais e o contacto fsico entre elas, iniciado com
o habitual cafun, levariam a estas situaes (8). A crtica moral da
-Freyre, 1943, 542.

famlia fazendeira de Oliveira Vianna, foi um golpe contra um dos pilares


do sistema tradicional de classes sociais - a noo da superioridade moral
dos ricos.
A metodologia de Bomfim coloca a histria como uma
"construo social, interna a um sistema de poder. Assume que a sua
prpria verso da histria no responde a uma "realidade objetiva", ao
contrrio de Marx, por exemplo, que chama de "ideologia", a histria
escrita pelos outros e de cincia, verdade absoluta, a histria que ele,
Marx, escreve. Partindo da premissa, de que a histria do Brasil foi de
certa forma "roubada" pelos poderosos, Bomfim prope-se a reescreve-la.
No separa o nacionalismo econmico do nacionalismo cultural. No
"desmonta" a nao, pela alienao de seus smbolos e passado, para
algum dia refaz-la, frmula mais tarde seguida por alguns marxistas
brasileiros. Erro evidente, quando a populao na campanha de 1985 das
"diretas j," pelo fim da ditadura, transforma as ruas em um mar de
bandeiras verde e amarelas. Pelo contrrio, prope-se a entende-la
atravs do conceito de "tradio.Acha que no "Brasil teria se estabelecido
a primeira civilizao americana local, o que no impede que considere
a elite brasileira, a "pior do mundo" (1931,28)- Camada parasita da nao,
que teria como princpios, a "conciliao", expresso que denota a
corrupo poltica pela partilha de cargos e privilgios (9) e a ordem, que
representa a desconfiana e oposio a qualquer idia nova (10). O Brasil
no seu modo de ver, no esta elite, de origem portuguesa, mas o povo
brasileiro, mestio, que, considera "pacfico e dctil, ordeiro e dono de
uma tranqila bondade..
Bomfim lamenta o isolamento do imprio escravocrata entre as
repblicas americanas. Em um dado momento prope o fim dos exrcitos
e a criao de uma milcia popular para autodefesa conjunta de todos os
pases da Amrica Latina. O Brasil do povo brasileiro, no de suas elites,
"teria defendido a Amrica" das invases holandesas, francesas e
inglesas. Em plena dcada de 30, tempo em que o nacionalismo se afirma
pela truculncia das naes, foi o primeiro a denunciar publicamente a
-"Despudorados, bestiais......os oligarcas constitudos em federao, despejaramse no mais ostensivo domnio. O estado deles, dos filhos, dos genros, e cunhados
e primos (1931, 268)
10
-"Nao podem compreender que haja ordem, isto , disciplina social em
atividades livres....Como esperar que em tal ideologia haja lugar para a
legitimidade das mutaes a que eles chamam de desordem."(1931b, 214).
fantstico como esses dois princpios ideolgicos persistem como basilares no
entendimento da poltica nacional.
9

guerra do Paraguai, "nefando crime cometido contra a humanidade e a


Amrica." Envergonha-se do genocdio realizado contra a populao
daquele pas.
Bomfim, quase esquecido, s agora vem sendo redescoberto.
Sua obra no teve repercusso, como as de Silvio Romero, de Euclides
da Cunha, Oliveira Vianna ou Gilberto Freyre. Talvez a melhor explicao
para isto seja a de Vamireh Chacon, de que "estaria avanado demais
para o seu tempo (11)." Talvez tenha sido seu estilo literrio, por vezes
pesado. Para o leitor do final do sculo Manuel Bomfim traz memria, as
mesmas palavras que uma vez dirigiu a Castro Alves, "voz comovida da
revoluo."
Uma radical mudana na maneira dos brasileiros se verem d-se
com a publicao de Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, em
1933, que logo se transformaria em clssico maior da nossa literatura
social. A Freyre deve-se a substituio do conceito de "raa" pelo de
"cultura", na imagem que os brasileiros fazem de si mesmos. A linha
mestra do pensamento social brasileiro at ento, a da especificidade de
uma nova civilizao tropical, no s mantida como enfatizada. Com o
abandono de "raa", fica muito mais fcil "construir-se a nao dos
mestios.Assim:
"De qualquer modo, o certo que os portugueses triunfaram
onde outros europeus falharam: de formao portuguesa a primeira
sociedade moderna constituda nos trpicos com caractersticas nacionais
e qualidade de permanncia." (1943,95)
Apesar da opo pelo conceito de "cultura", vez e outra usa
expresses como "raa adiantada", referindo-se ao portugus, ou "raa
atrasada, referindo-se ao ndio (op.cit. 179). Chama os ndios de "quase
bandos de crianas grandes", dotados de "sexualidade exaltada." Acha
quase desaparecida, a contribuio do indgena para a cultura brasileira,
com exceo do que restou na alimentao e na religio. J o negro
considera, sob muitos aspetos "superior" ao portugus, mas prefere-o
como escravo. Evita a gentica, aproximando-se do "racismo social" da
cultura brasileira que estuda. Em um dado momento chega a lamentar o
fim da escravido (12). Dentre as contribuies do negro, ressalta o clich
-Susskind e Ventura (in Bomfim, 1984) argumentam que a razo para a pouca
disseminao da obra de Bomfim teria sido o fato de no ter dado o passo da
metfora (do parasitismo), para o "modelo." Faz mais sentido a explicao de
Chacon (in Bomfim, op.cit.,21).
12
-"Desfeito em 88 o patriarcalismo que at ento amparou os escravos, alimentouos com certa largueza, socorreu-os na velhice e na doena, proporcionou-lhes aos
11

da "ternura" (op.cit, 441). A explicao sobre as influncias tnicas na


formao portuguesa tambm eivada de esteretipos sobre o "carter
nacional" portugus, e as influncias judia e rabe.
Considera o portugus "menos cruel" do que os demais
colonizadores. Compara a poltica portuguesa de aproveitamento da
mulher ndia, "para a formao da famlia," com a de virtual extermnio
seguida pelos ingleses e supostamente pelos espanhis, com o que estes
ltimos no concordam (13). Percebe atenuantes na escravido brasileira,
devido ao batismo de escravos e sua incorporao na vida religiosa, alm
da prpria miscigenao. Este ponto de vista, seria posteriormente
incorporado por autores como Frank Tannembaum (1946),por exemplo.
Tais posies no chegam a comprometer o impacto
revolucionrio de "Casa Grande e Senzala.Afinal Oliveira Vianna, na
mesma dcada de 30 falava em "raa ariana.Alm da renovao de
conceitos, outro aspeto importantssimo na obra de Freyre so seus
"insights, alguns prximos a genialidade. Isola dois fatores fundamentais
condicionando as "relaes raciais" no Brasil: a monocultura latifundiria e
a escassez de mulheres brancas (1943, 19). A posio intermediria de
Portugal entre a Europa e a frica, e a decorrente experincia de
interao com africanos e rabes em Portugal, em muito teria contribudo
para a miscigenao em terras brasileiras, fora a corrigir a distncia
social entre brancos, negros e ndios. Outra idia importante de Freyre a
das semelhanas dos sistemas de "plantation" nas Amricas, e das
formaes sociais a ele relacionadas. Assim, o nordeste do Brasil no
seria muito diferente do sul dos Estado Unidos, por exemplo.
A bem conhecida tese central de Freyre a do papel da famlia
patriarcal como unidade bsica da organizao social brasileira (14) . A
antropologia no pode discutir o Brasil, sem discutir famlia e no pode
discutir a famlia sem discutir Gilberto Freyre . Algumas de suas idias
como a do "sadomasoquismo" associada escravido e famlia
filhos oportunidades de acesso social. O escravo foi substitudo pelo pria da
usina; a senzala pelo mocambo; o senhor de engenho pelo usineiro ou pelo
capitalista ausente."(1943, 43)
13
-Os espanhis, contrastando sua colonizao na Amrica com a inglesa, como os
portugueses, tambm se representam como paradigmas de bondade (ver Zea,
1998, 13)
14
-A idia do patriarcalismo brasileiro precede a Freyre. Tomemos por exemplo
Taunay. Na "Retirada da Laguna", o filho do guia Lopes, sabendo que o seu pai
errara a direo a tomar, no o corrige, pois isso implicaria em
faltar ao respeito com o seu pai. Inocncia uma belssima pea sobre o
patriarcalismo e sua violncia. Porm a colocao do patriarcalismo em seu lugar
sociolgico para a construo de Brasil coube a Gilberto Freyre.

patriarcal so tambm bem interessantes, no entendimento no s das


relaes de classe, como tambm nas relaes entre pais e filhos,
homens e mulheres. Da sua descrio da mulher brasileira "gritando
ordens." Assim tambm sua idia de uma forte sensualidade resultando
da escravido e da famlia patriarcal, levando miscigenao, dentre
outras conseqncias. Lembra a preocupao dos intelectuais do sculo
passado com a educao dos brasileiros "prejudicada pela escravido. As
crianas brancas interagiam com os escravos, grandes e pequenos e
aprendiam a submisso e a frouxa moral sexual (1943 560).Esta
discusso da licenciosidade associada escravido, como foi visto,
desmistifica a idia da sacrossanta famlia aristocrata rural de Oliveira
Vianna (15).
Gilberto Freyre inova metodologicamente. A posio da casagrande como microcosmo da sociedade, representa um novo modelo
sociolgico. Sua liberdade no escrever e no criar, sem preocupaes
cientficas, dele faz um autor notavelmente atual. Sua obra sempre
retorna tecla da especificidade de uma civilizao brasileira nos
trpicos. Dois dos seus livros, Casa Grande e Senzala e Sobrados e
Mocambos, iriam marcar definitivamente o pensamento social brasileiro.
Os poetas romnticos do sculo passado encontram um ndio
idealizado para representar o Brasil. Silvio Romero e Gilberto Freyre
diminuem a influncia indgena e procuram enfatizar a herana conjunta
portuguesa e negra. Euclides da Cunha e Manuel Bomfim decidem-se
pelo ndio associado ao portugus para marcar a identidade brasileira.
Oliveira Vianna enfatiza apenas a influncia portuguesa, europia, em um
novo ambiente geogrfico e social. Buarque de Holanda, na mesma linha,
tambm entende o Brasil como a tentativa de implantao da cultura
europia em uma regio tropical (). Considera os iberos extremamente
individualistas, valorizando os valores de autonomia e a independncia,
livre arbtrio e a personalidade individual. Logo a necessidade de
governos fortes para controlarem o seu individualismo cego. Da a
necessidade de um Franco, um Salazar ou do "estado novo" no Brasil.
-Sobrados e Mocambos, seu outro grande livro, estuda a famlia patriarcal no
ambiente urbano, a oposio entre a casa e a rua, o pblico e o privado e a funo
de grandes rituais nacionais, como procisses e o prprio carnaval integrando a
sociedade, e diferentes classes e setores sociais, que outros mais tarde iriam
explorar. Aqui reforma a tese da associao da famlia patriarcal com plantation,
pois encontra-a em todo o territrio brasileiro, incluindo as vastas regies de
criao de gado do interior, at o Rio Grande do Sul, onde no havia a
monocultura apoiada no trabalho escravo.
15

Assim tambm a pouca disposio ibrica para o trabalho e no caso


portugus seu "esprito de aventura." Essas listas de traos do "carter
nacional" repetem e adicionam novos elementos a esteretipos que se
encontram em Freyre ou at em Bomfim.
Repete tambm a tese de Freyre (16) de que os portugueses j
chegaram ao Brasil mestios, e lembra que Lisboa tinha em 1541, 1/5 da
populao de negros. Em Portugal haveria uma discriminao maior
contra o trabalho servil do que contra a raa. Acha, portanto, que a
mestiagem representou fator fundamental para a criao de uma "ptria
nova", algo que os holandeses no teriam conseguido. A cultura , porm,
essencialmente ibrica. Depois de identificar o que considera os traos
comuns a todos os iberos, separa os portugueses dos espanhis, nas
mesmas linhas seguidas por Freyre (op.cit). A "plasticidade social" e "falta
de orgulho de raa" dos portugueses seria maior do que a dos espanhis.
Associa o espanhol figura do "ladrilhador," cuidadoso, com as suas
cidades americanas, bem planejadas e de ruas retas. O portugus seria
mais relaxado (o "semeador"), com suas cidades americanas crescendo
de acordo com a geografia e com o acidente histrico.
Tambm aceita a tese da famlia patriarcal, mas no a entende
como um resultado da "plantation.A famlia, do velho direito romano, teria
sobrevivido na pennsula ibrica, associada escravido e autoridade
indisputada do "pater familiae.A famlia, no Brasil colnia, povoado por
iberos anrquicos, seria o nico setor onde podia ser encontrada uma
"idia mais normal de poder, da respeitabilidade, da obedincia e da
coeso social.(op.cit. 50). O individualismo ibrico levaria incapacidade
de associao duradoura, que Oliveira Vianna j tinha tambm
relacionado inversamente com a fora dos laos de parentesco. Pela
importncia dos laos familiares, explica a "invaso do pblico pelo
privado" (1988, 105), a transferncia para o mbito do estado das
relaes caractersticas da famlia. Da o uso dos conceitos weberianos
de "funcionrio patrimonial" e "burocrata", com o quais mais tarde Willems
(1975), Faoro (1987), e outros iriam trabalhar (17), e que so hoje,
referencial bsico para o estudo do estado no Brasil. Esta formulao
consistente com a brilhante idia do "homem cordial": as relaes internas
-No cita. notvel que Freyre, Vianna e Buarque de Holanda publicando ao
mesmo tempo durante os anos 30 no se citem. Buarque de Holanda publicou seu
livro "Razes do Brasil" em uma coleo coordenada por Freyre
17
-Eu mesmo utilizei este conceito para analisar a burocracia brasileira, muito na
linha de Buarque de Holanda (Zarur, 1990)
16

da famlia, os padres de convvio rural seriam transferidos para o


ambiente urbano. A relao pessoal e afetiva levando intimidade,
informalidade, seria a nica conhecida na cultura brasileira (18). Da o uso
de diminutivos na maneira de chamar os amigos. Da a intimidade at
com os santos na capela domstica. O primado das relaes pessoais
sobre a lei impessoal representa hoje ainda, um dos pontos centrais da
Antropologia brasileira, especialmente se considerado o conceito de
"sociedade relacional", de Roberto da Mata.
Buarque de Holanda no tem a genialidade literria de um
Euclides, ou o brilho de Gilberto Freyre, mas de todos os autores que no
incio do sculo constroem a identidade brasileira, intelectualmente o
mais sofisticado. Sem a grosseria da tese racial de Oliveira Vianna, monta
um quadro em que o essencial a etnicidade europia, branca, na
construo da identidade brasileira. Mais tarde, em outras obras menos
"ensasticas", procuraria enfatizar tambm o papel do indgena na
formao da nacionalidade (Cf1986). Assim explora a idia de que a
causa da expanso territorial para Oeste teria sido a miscigenao do
portugus com o indgena, que daria aos brasileiros uma capacidade de
adaptao muito grande (19).

IV-A "Transformao da Realidade" ou a (quase) Chegada do


Milnio.
Uma nova etapa no desenvolvimento da idia de Brasil iria
surgir, em 1933, com a publicao do livro de Caio Prado, Evoluo
Poltica do Brasil, a primeira grande obra marxista, exprimindo uma viso
global do pas. Prado abandona os conceitos de raa e cultura, mas
mantm a linha mestra de "construo da nao." No escapa
inteiramente a algumas generalizaes tpicas da poca que escreve e
que iriam se tornar parte do discurso rotineiro sobre Brasil. Assim, como
Buarque de Holanda, distingue os pioneiros norte-americanos,
acompanhados de suas famlias, dos "aventureiros" portugueses. Afirma
como Gilberto Freyre, e todos os demais autores de seu tempo, que no
Brasil teria se formado uma sociedade "inteiramente original nos trpicos
(1933, 93)." Sua anlise da expanso das fazendas de gado e da
-Ver a noo de "sociedade relacional" de Roberto da Mata(1985).
-Nao teria como razo uma poltica deliberada do estado portugus, mas alm da
citada miscegenao, tambm o desinteresse da coroa espanhola pelas terras
pobres do oeste.
18
19

colonizao, curiosamente lembra a de Oliveira Vianna, situado no outro


extremo do espetro poltico. Percebe, como Manuel Bomfim, um "latente
esprito de revolta na massa escrava." A anlise marxista, mas no uma
crtica radical ao passado brasileiro ou ao Brasil nas "suas tradies."
A partir dos anos 50, inicia-se uma nova fase da vida intelectual
do Brasil apoiada em diversas verses e aproximaes ao marxismo. A
sociologia e a economia fornecem as bases ideolgicas para o novo
nacionalismo, no mais referenciado pelos conceitos de raa ou de
cultura. O problema deixa de ser o da demonstrao da viabilidade do
Brasil, atravs da manipulao do conceito de raa. No mais o "existe
apesar de tudo" como uma forma de cultura original, adaptada ao meio
hostil. O novo desafio o "existe sim e vamos faze-lo grande e justo."
Para alguns, grande, para que pudesse enfrentar a oposio dos
chamados "interesses imperialistas." Para outros, grande, por pura mania
de grandeza. Em um ou outro caso, imperativo meter mos obra ou,
no dizer da poca, "transformar a realidade." A nova identidade
construda pela noo da eminente chegada do "milnio" poltico.
Representa uma ruptura, mas dentro de um processo maior de
continuidade, conferida pela crena fundamental na construo de uma
sociedade original no Brasil. Assim em um nvel mais geral h uma
sucesso lgica entre as primeiras doutrinas do incio do sculo e as
teorias polticas e econmicas do meio do sculo.
Comea um novo momento da identidade nacional, associada
arquitetura, principalmente sob o impacto da construo de Braslia. A
cidade um monumento, uma evidncia concreta da verdade das
promessas contidas no pensamento popular e dos intelectuais sobre a
nao. Lana-se mo da economia e da sociologia marxistas ou
influenciadas pelo marxismo. Aparecem movimentos com matizes
diversos, enfatizando o nacionalismo econmico e poltico, como a
economia cepalina, ou como a "teoria sociolgica da dependncia.Por
eles, o Brasil volta a se construir como "Amrica Latina.Um dos maiores
smbolos intelectuais desta poca Celso Furtado, vindo da CEPAL, que
atravs de sua obra "Formao Econmica do Brasil, consegue fundir
histria econmica, sociologia e economia, como instrumentos analticos
e como guias para ao poltica. No Rio de Janeiro aparece a sociologia
nacionalista do ISEB e em So Paulo, a escola sociolgica sob a
liderana de Florestan Fernandes, que se desenvolve atravs de uma
linha de trabalho sobre "relaes raciais." Tema estratgico, pois a

"civilizao brasileira" de ento, apoia-se na idia da "democracia racial."


Na viso de autores como Gilberto Freyre, nossa pobreza econmica
sobejamente compensada por um sistema de relaes pessoais mais
humano. Os estudos dos socilogos paulista evidenciam a existncia de
fortes atitudes contra negros no Brasil, e que estas atitudes permanecem
dormentes, em conseqncia das "relaes patriarcais," ainda em
operao nos sistemas de classes estudado (Fernandes, 1965). Esta
tambm uma boa explicao para o preconceito mais forte no sul do pas,
onde o capitalismo mais desenvolvido. O recurso analtico ao
patriarcalismo demonstra no a oposio cristalina, mas toda uma faixa
cinzenta de ambigidades, posies intermedirias e concordncias entre
autores politicamente to aparte como Fernandes e Freyre.
Dante Moreira Leite (1965), situa na obra de Caio Prado a linha
divisria entre os autores que trabalham com "a ideologia do carter
nacional" e os que a superam, agora encontrando "a realidade", com o
marxismo fornecendo as bases, no mais "ideolgicas, mas "tericas"
para o novo nacionalismo. Seu prprio trabalho parte desse movimento,
em que explicaes culturais so substitudas por outras de carter
sociolgico e econmico. Critica os estudos tnicos, como produtores de
uma nova forma de racismo. De fato, tanto Gilberto Freyre, como Buarque
de Holanda, usam esteretipos eternos e estigmatizadores associados ao
carter nacional, como, por exemplo, as referncias "nossa preguia",
ou ao "aventureirismo portugus.Alguns aspetos identificados por esses
autores, entretanto, a saber, a importncia do parentesco e a
predominncia das relaes pessoais so, ainda hoje, absolutamente
indispensveis para a compreenso do Brasil. Assim como a linguagem,
certos elementos da cultura podem atingir uma grande continuidade no
tempo, medida por sculos ou milnios.
Aps as ltimas formulaes da "Escola de So Paulo",
desaparecem as contribuies sociolgicas voltadas ao Brasil como um
todo. As Cincias Sociais tm desde ento participado da construo de
identidades fragmentadas, de negros, ndios, mulheres, trabalhadores e
outros grupos. A idia de Brasil no mais trabalhada, a no ser por uns
poucos. Abandona-se um problema cuja resposta no est na pura e
simples militncia poltica, e o espao vazio invadido: Associada
ditadura militar, vem a Geopoltica, a tentativa se associar o conceito de
nao com a do poder do estado sobre o indivduo e sobre as demais
naes. A Cincia Econmica, a outra face da ideologia do estado

autoritrio, toma um papel desconhecido na maior parte dos pases do


mundo. hoje, no Brasil, o grande instrumento legitimador das
desigualdades sociais e at da violncia, sob a assptica capa de
"eficincia tcnica." Aparecem revises da cultura brasileira, enquanto
"ideologia," em uma fantstica misturada, como no livro de Carlos
Guilherme Mota, que em algumas pginas absolve ou condena, em
julgamento poltico, da msica popular, ao teatro, passando por toda a
literatura social do pas.
O captulo seguinte o dos brasilianistas. Muita crtica poltica,
bem-vinda na poca da ditadura, mas freqentemente misturada
destruio de valores centrais da cultura brasileira. O ataque prpria
viabilidade da nao, ou como diriam os ensastas do comeo do sculo,
"alma da nao." Incontveis pesquisadores estrangeiros deram uma
importantssima contribuio ao Brasil, especialmente os que
conseguiram relativizar, por metodologia, seus prprios valores e atitudes.
H, porm, os que pelo exagero do extico, do folclrico, do violento, ou
pela simples incapacidade de compreender o Brasil, atacam tais valores
para realar a superioridade de seu prprio pas (). Por razes como
essas, muito srio que verses mais recentes da histria do Brasil
tenham sido produzidas no exterior e que alguns estudiosos brasileiros
percebam os brasilianistas, no como colegas, mas como uma espcie de
"heris culturais" (20)(21). Aqui, porm no se est falando de "pensamento
social brasileiro, mas de "pensamento sobre o Brasil.
O pensamento social brasileiro foi, ao longo do sculo, usando
conceitos crescentemente adequados e eficazes para a construo
ideolgica da nao, apoiada em um projeto de futuro: Das dificuldades
do conceito de raa, ao orgulho da idia de cultura brasileira, e por fim,
ao poltica associada aos conceitos "econmicos e sociais". H uma
ruptura com a ditadura militar, mas, pela apropriao da idia de
desenvolvimento econmico, no deixa de haver uma continuidade com o
pensamento que a precede. A noo brasileira da utopia necessria
contrasta com a de outros pases, como o Mxico, onde a idia de nao
se associa com o passado e o presente indgenas, ou com a maior parte
-Vem a lembrana uma literatura juvenil que criava heris. Ento "Os
Cientistas", "Os Navegadores" e os "Exploradores." Agora "Os Brasilianistas."
21
-Quando estudava para meu doutorado nos Estados Unidos, concludo em 1975,
sob a orientao de Charles Wagley, este tipo de literatura j estava em moda.
Para no participar deste movimento, escrevi minha tese de doutorado sobre uma
comunidade norte-americana. Meu livro "Os Pescadores do Golfo" foi publicado
no Brasil em 1984.
20

dos pases europeus, onde a construo de um passado histrico define a


identidade nacional. tambm diferente dos Estados Unidos em que o
"destino manifesto, expresso na grandeza americana do presente, os
distinguem dos demais pases. O problema com um modelo de nao
baseado em uma prometida utopia o de que a situao social tem que
apresentar evidncias continuadas de que este futuro est
inexoravelmente se aproximando, mesmo que de fato nunca chegue. O
desenvolvimento econmico manteve por um tempo, acesa a idia de que
as pessoas se alimentariam melhor, teriam melhores casas, escolas e
hospitais e de que no Brasil iria se fundar uma nova civilizao onde
"seriam superadas as barreiras de classe, raa e credo," conforme as
profecias dos msticos e o pensamento dos intelectuais. Esse sonho,
entretanto cada vez mais se distancia da vida das pessoas. Encerra-se
mais uma dcada amarga de empobrecimento e de desorganizao do
organismo poltico e inicia-se outra, na mesma direo.
Pode ser a hora de aliar o conceito de cultura a aspetos polticos e
econmicos, de voltar a provar a viabilidade do Brasil. No mais pelo
desenho de uma identidade una, mas pela inveno de uma sociedade
que reconhea a multiplicidade de modos de vida dos tempos atuais.
Talvez o caminho seja o apontado por Manuel Bomfim, quando separa o
"Brasil na Histria", do "Brasil Nao." A nao do povo brasileiro, de
seus poetas, da sua arte, de seus valores de solidariedade e sua alegria.
A histria foi roubada pela elite. O povo a ter de volta algum dia.

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