De Vocacao para Profissao Organizacao Sindical Doc

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DE VOCAÇÃO PARA PROFISSÃO:

ORGANIZAÇÃO SINDICAL DOCENTE E IDENTIDADE SOCIAL DO


PROFESSOR 1

Erlando da Silva Rêses2

O sindicalismo docente da Educação Básica é tardio no Brasil em relação ao


sindicalismo operário. O estudo empreendido sobre este fato empírico conduziu a
pesquisa às origens do sindicalismo docente e as interpretações a seu respeito. Como
hipótese de trabalho foi considerada que a identidade social assumida por esse
profissional ao longo dos anos, como portador de uma missão, para atender a um
chamamento ou por possuir vocação ou dom “natural” para o exercício do magistério,
retardou o início do interesse pela formação de uma organização sindical.
Como explicar esse caráter tardio do sindicalismo docente entre os cariocas? Por
que os docentes da educação básica no Rio de Janeiro demoraram tanto para se
organizar sindicalmente? Que fatores explicam a organização tardia de sindicatos
docentes na “Cidade Maravilhosa” ? Noutras palavras, como aconteceu a formação do
ethos3 profissional do docente, de que maneira é percebida a profissão do docente, que
identidade social assume o professor na sociedade brasileira, se este profissional é ou
não um trabalhador assalariado e em que consiste o estereótipo de trabalho por vocação
no magistério.
A escolha do Rio de Janeiro para a realização do trabalho empírico atendeu a
uma perspectiva do projeto “O sindicalismo tardio da educação básica no Brasil”4,
que pautou como critério a densidade docente em grandes centros urbanos, uma vez que
esta é condição para a emergência de organizações sindicais.
A opção pela Educação Básica se deveu, além da proposta do projeto de
pesquisa, à grande representação que os docentes deste nível detêm no país, sendo a
maior no campo da Educação. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em

1
Artigo extraído da Tese do autor de mesmo título.
2
Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e membro do GEPT ( Grupo de Estudo e Pesquisa
sobre o Trabalho) do Departamento de Sociologia da UnB.
3
É um termo genérico, que designa caráter cultural ou social de um grupo ou sociedade e representa a
totalidade dos traços característicos pelo qual um grupo se individualiza e se diferencia dos outros
(Honigmann, 1987).
4
Aprovado pelo CNPQ em 2005 sob a coordenação do Profº Dr. Sadi Dal Rosso.
Associativismo e sindicalismo docente no Brasil Rio de Janeiro, 17 e 18 de abril de 2009
Seminário para discussão de pesquisas e constituição de rede de pesquisadores

Educação (CNTE) que agrupa os sindicatos da educação básica da rede pública tem, em
2008, na sua base social cerca de 960 mil representados, congrega 36 sindicatos
estaduais filiados e é a segunda maior Confederação filiada à Central Única dos
Trabalhadores (CUT)5.
O conceito de tardio vincula-se ao tempo. Daí surge à questão: mas, qual o
tempo devido ou apropriado? No caso deste estudo, parte-se do pressuposto que a
organização sindical dos professores da educação básica ocorreu em dissonância com a
necessidade de conquista de direitos há mais tempo, pois as condições de trabalho da
categoria eram aviltantes como as dos operários, quando estes resolveram organizar-se
sindicalmente.
Mas, o que significa a organização dos trabalhadores em sindicatos? O sindicato,
por um lado, é a expressão de organização e luta de trabalhadores, de defesa e conquista
de direitos, portanto, criado para compensar a fraqueza do trabalhador atomizado na sua
relação contratual com o capital (Cattani, 2002); e, por outro lado, é a manifestação
política de uma categoria que se associa às lutas de outros trabalhadores, objetivando
tratar das questões de trabalho e de ação sindical como dimensão política mais geral.
Estas organizações constituem, na análise marxista, elementos da superestrutura
articuladoras dos interesses de classe; portanto, é uma estrutura político-ideológica
portadora de uma determinada concepção política, o que faz com que ela possa se
tornar, inclusive, um aparelho do Estado (Althusser, 1974).
Os sindicatos podem se organizar por ramo, por categoria e por empresa e a
estrutura sindical pode fundamentar-se no sindicato único ou no pluralismo sindical.
Eles podem ainda desenvolver-se num contexto de liberdade de organização, mas
também em situações tuteladas pelo poder político, tal como ocorreu no Brasil antes de
1988 e em Portugal no regime salazarista6. Nesta situação, “os sindicatos adotaram
funções de enquadramento e de subordinação das reivindicações dos trabalhadores aos
interesses definidos pelo regime político” (Cattani, 2002: 288-289). Portanto, sindicato
e profissão se vinculam mutuamente, pois o sindicato agrupa pessoas de uma profissão
por meio de uma organização interna para assegurar a defesa e a representação da
respectiva profissão. No caso específico da situação organizativa dos professores
precisava saber como se aplicava esta estrutura conceitual e analítica.

5
A CNTE. Disponível em www.cnte.org.br. Acesso em: 10 de janeiro de 2008.
6
Referência a António de Oliveira Salazar que implantou um Estado Novo (1933-1974) em Portugal, alegando
defender as doutrinas sociais da Igreja Católica, adotou um modelo autoritário, nacionalista e fascista.

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Em que medida as questões suscitadas acima constituem efetivamente problemas


relativos ao conhecimento sobre a dinâmica do sindicalismo docente e não representam
apenas a descrição do percurso histórico do fenômeno, o que em si já seria um grande
objetivo de estudo? Com efeito, a literatura clássica sobre sindicalismo bem como sobre
movimentos sociais e ações de classe operam com uma dupla visão. Tanto o
sindicalismo, quanto os movimentos sociais e as ações de classe dependem de
condições objetivas e concretas, entre elas a densidade demográfica e a condição
proletária da categoria e da classe, apenas para citar algumas. Isto quer dizer que não
existe sindicalismo enquanto não houver uma base relativamente grande de membros
assalariados da categoria em questão. A constituição do trabalho assalariado na
categoria docente de forma significativamente grande é condição geral enfatizada pela
literatura. Mas o trabalho assalariado é também pré-condição para o associativismo de
tipo mutualista. Logo, é importante acrescentar um outro lado da moeda, a saber, a
questão da formação de uma consciência na qual tenha espaço uma autocompreensão de
que seja importante participar conjuntamente de entidades que defendem o trabalho da
própria categoria e que defendem as políticas públicas de educação. O abandono de uma
subjetividade na qual pode caber a idéia de associativismo mutualista e a construção de
uma outra em que se vislumbra a possibilidade de o ator construir um sindicato é uma
condição teoricamente indispensável para a construção de sindicatos em qualquer
categoria profissional.
Desta forma, tanto sob o ângulo de condições objetivas (densidade de
profissionais assalariados, origem e posição social dos docentes), quanto sob a égide da
subjetividade, da consciência e da identidade, o problema de nossa pesquisa tem uma
constituição eminentemente sociológica, uma vez que nosso objetivo é dialogar com a
literatura que pesquisa o campo, sob as condições sociais necessárias para o surgimento
de uma organização sindical em uma categoria, fortemente inclinada a entender seu
trabalho profissional como vocação ou dom divino.
Os resultados da pesquisa permitem concluir que existiram multifatores
impeditivos para a organização sindical do professores da rede pública no Rio de
Janeiro, que são, sinteticamente, enumerados e discutidos abaixo:

1) Desorganização estrutural do ensino público e sua desvalorização pelo Estado;


2) Baixa densidade de professores até 1920;
3) Elitismo dos professores na primeira República;

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4) Enquadramento sindical e, conseqüente, ausência de sindicalismo autônomo;


5) Limitação legal do Estado para a organização sindical no serviço público;
6) Ambigüidade da identidade social da profissão de professor;
7) Existência de vocação, missão ou dom para o exercício do magistério.

Estes multifatores representam condições objetivas para a demora na


organização sindical dos docentes da educação básica. A ambigüidade na identidade
social da profissão e a representação do trabalho por vocação carregam aspectos de
subjetividade porque também dependem do talante do profissional da educação. Nesse
sentido, estas duas condições se caracterizam como um habitus no sentido
bourdieniano, porque faz a mediação entre os condicionamentos sociais exteriores que
as determinam, por exemplo, a religiosidade e o patriarcalismo, e a subjetividade dos
sujeitos.

Nos anos da década de 1880 surgiram várias associações mutualistas e as


primeiras na forma-sindicato que se propunham a defender os interesses materiais dos
trabalhadores livres. Mas, com a Proclamação da República iniciou-se um movimento
operário mais estruturado que se manifestou através de greves, de comícios e de
imprensa própria. Uma outra característica do movimento no período foi o contínuo
processo de organização e reorganização de sindicatos (Simão, 1966). Levantamento de
dados realizado no período de 1890 a 1909 indicam a existência de 109 greves do
movimento operário no Rio de Janeiro (Mattos 2003; 2004). E o setor educacional
brasileiro como se encontrava neste período?
O quadro socioeducacional, em fins do século XIX e início do século XX, era de
desorganização estrutural do ensino público e sua desvalorização pelo Estado, com a
educação sendo confiada às famílias, portanto como atividade não-remunerada. Tal
desvalorização e desorganização se evidenciaram no alarmante analfabetismo, chegando
à cifra de 90% da população em idade escolar no Brasil. Apesar do antigo Distrito
Federal, coração do país e centro mais culto, ter uma situação privilegiada em relação ao
restante do país, o censo de 1906 concluiu que de cada 100 habitantes 48 eram
analfabetos. A capital do país, nesta data, tinha uma população de 811.413 habitantes, e
contava com 438 escolas municipais e particulares e 1.373 docentes, ou seja, 03
professores para cada escola (BRASIL, 1916). Número insuficiente para atender a
demanda escolar e também formar sindicato.

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Consoante a esta situação, também prevalecia o elitismo dos professores na


primeira República. A Escola Normal representou “a forma didática mais importante
para a preparação dos educadores da Primeira República” (Nosella, 1998:171).
Contudo, a primeira república representou a negação do acesso de amplas camadas
populares. Na Reforma de 1931, a de Francisco Campos, Ministro da Educação do
governo Getúlio Vargas, a estruturação do currículo se compunha de dois ciclos: um
ciclo fundamental com uma formação básica geral e com um ciclo complementar, que
tornava a educação para uma elite.

Num contexto social que começava a despertar para os problemas do


desenvolvimento e da educação, numa sociedade cuja maioria vivia na zona rural e era
analfabeta7, numa época em que a população urbana mal alcançava a educação primária,
pode-se imaginar a camada social para a qual havia sido elaborado um currículo tão
vasto (Romanelli, 1989). Complementarmente Nosella salienta que “o elitismo das
antigas Escolas Normais era evidente. A clientela era representada,
majoritariamente, pelas filhas dos fazendeiros, dos grandes negociantes, dos altos
funcionários públicos e dos profissionais liberais bem sucedidos” (Nosella, 1998:172,
grifo nosso). Como constituir sindicato com esta representatividade de camada social
nas escolas?

As primeiras iniciativas de organização sindical do magistério carioca contaram


com a participação ativa de militantes anarquistas, que chegaram a organizar um
sindicato livre de trabalhadores da educação, de curta trajetória, em 1926. A
Confederação do Professorado Brasileiro (CPB)8 reunia professores do ensino
secundário e se amparava na organização mutualista, conforme o seu objetivo
central:“nosso fim é o de proporcionar a união da classe, amparar a família do
associado por meio de um pecúlio e, quando necessário, auxiliar o consórcio por
intermédio da nossa caixa de empréstimos” (Almanaque do Ensino apud Coelho,
1988:22). A sede da CPB, na Rua do Rosário, Centro do Rio de Janeiro, serviu inclusive
para que professores particulares preparassem alunos para os exames de admissão ao
Colégio Pedro II, ao Colégio e Escola Militar, aos vestibulares, etc.

7
Segundo o censo demográfico de 1940 extraído do MEC – Aspectos da Educação no Brasil, a taxa de
analfabetismo da população de mais de 15 anos era de 56,17%.
8
Não confundir esta CPB com a CPB (Confederação dos Professores do Brasil) que surge em 1973 em
São Paulo.

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A associação foi extinta em 1931 com o surgimento do Sindicato dos


Trabalhadores do Ensino do Rio de Janeiro, por iniciativa do movimento
anarcossindicalista e em oposição ao sindicalismo oficial do governo de Getúlio Vargas.
Porém, em novembro do mesmo ano ele deixa de funcionar, pois seus membros
decidiram compor com aquele modelo de sindicalismo, que contava com a ajuda estatal
por vincular benefícios como o oferecimento da Carta Sindical.
Os professores aceitaram, sem maiores questionamentos, as normas de
enquadramento sindical estabelecidas pelo governo Getúlio Vargas, quando da
oficialização da representação sindical no país. Neste momento foi criado um dos
primeiros sindicatos de professores do Brasil, o Sindicato dos Professores do Ensino
Secundário e Comercial do Distrito Federal, fundado em 31 de maio de 1931,
congregando somente o magistério de ensino secundário privado.
A limitação legal do Estado para a organização sindical no serviço público foi
outra condição objetiva de impedimento de formação do sindicalismo docente pelos
professores do ensino público. A Constituição de 1937 vedou o direito de greve nos
serviços públicos9. Esta Carta Constitucional em seu artigo 139, parágrafo único, dizia
que “a greve e o lockout10 são declarados recursos anti-sociais nocivos ao trabalho e
ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional”. Como
o direito sindical tinha uma forte correlação com o direito de greve, a proibição de um
ensejou a supressão do outro.
O direito de sindicalização ao servidor público foi negado numa época em que
no setor privado já tinha ampla aceitação. Segundo entendimentos da época, o princípio
que inspira o sindicalismo é a luta contra a exploração pelo capital e a discussão com os
empregadores sobre as condições de trabalho. Uma vez que no serviço público essas
condições são fixadas em lei, o sindicato não tinha razão de ser (Córdova, 1985).
Muitas já foram às atribuições para a categoria de professores: pequena
burguesa, assalariada, trabalhadora, classe média, etc. Essa situação permitiu que este
profissional mantivesse uma posição de classe indefinida ou contraditória, nas palavras
de alguns especialistas. Portanto, assegura-se que a construção de uma identidade social
baseada na contradição ou na ambigüidade gerou o impedimento organizativo da
categoria mais cedo na escala temporal de relação com a organização operária.

9
Este direito foi assegurado no artigo 37, VI e VII, da Constituição Federal de 1988, devendo, contudo
ser objeto de lei complementar específica. Esta lei encontra-se no Congresso Nacional para ser votada.
10
Lockout é a paralisação realizada pelo empregador com o objetivo de exercer pressões sobre os
trabalhadores, visando frustrar negociação coletiva ou dificultar o atendimento de suas reivindicações.

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Michael Apple contribui para essa discussão quando afirma que os professores
têm “uma posição social contraditória, com isto significando que “é sensato pensar
neles como estando simultaneamente em duas classes. Partilham assim tanto interesses
da pequena burguesia como da classe trabalhadora” (Apple, 1997:66). Apesar dessa
“dupla filiação”, atualmente, ressalta o autor, a tendência é de intensificação do
trabalho e de proletarização (grifo nosso).

Um estudo das mudanças ocorridas na composição das classes


durante as últimas décadas aponta para algo bastante dramático.
O processo de proletarização tem tido um grande e consistente
efeito. Isto não é de admirar(...) Numa época de estagnação
geral e de crise na acumulação e legitimação, deveríamos
esperar a existência de tentativas para racionalizar mais as
estruturas administrativas e aumentar a pressão para proletarizar
o processo de trabalho. Esta pressão não é irrelevante para os
educadores, tanto no que diz ao tipo de atividades que os alunos
irão encontrar disponíveis (ou não disponíveis), após terem
completado (ou não completado) o ensino, e também no que diz
respeito às próprias condições de trabalho no âmbito da própria
educação (Apple, 1997:65).

Segundo o pesquisador da área do trabalho, professor Sadi Dal Rosso, a


intensidade do trabalho “é o esforço físico, intelectual ou emocional empregado para
executar uma quantidade de trabalho em uma unidade de tempo. O tempo de trabalho
pode ser utilizado de forma mais intensa, podendo, neste caso, provocar conseqüências
negativas para o trabalhador” (Dal Rosso apud Cattani, 2002: 327). Pesquisa realizada
pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), no ano de 2002
em dez Estados Brasileiros com 4.656 profissionais do ensino sobre a situação dos
educadores, concluiu o seguinte: 1) empobrecimento dos professores brasileiros; 2)
degradação de suas condições de exercício profissional e; 3) multiplicação de jornadas
de trabalho.
Aliada a esta ambiguidade encontra-se o estereótipo de trabalho por vocação,
comumente associado ao exercício da profissão. Esta condição durante muito tempo
manteve o magistério como atividade extradoméstica, que a ideologia patriarcal

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considerou adequada para as mulheres. Assim, surge a figura da professorinha ou da tia


que atua por amor aos seus “sobrinhos” e “sobrinhas”. A incorporação da mulher na
atividade docente foi justificada como uma extensão das atividades femininas além dos
limites domésticos.
A ambigüidade da identidade social do professor é parte do processo de
profissionalização docente. Segundo Nóvoa (1999), a maior complexidade do
conhecimento pedagógico permite a especialização dos professores, o que na teoria dos
campos de Pierre Bourdieu pode ser considerado como uma delimitação dos limites do
campo, ou seja, o estabelecimento de critérios que define quem está ou não autorizado a
falar sobre questões de educação e de ensino. Se por um lado, cresce a complexidade
dos saberes necessários à ação pedagógica e o reconhecimento social dos professores;
por outro lado, essa situação acaba por alijar a maior parte dos docentes das instâncias
de decisão sobre o seu próprio trabalho, ficando a cargo de “cientistas da educação” e
administradores. Com isso, a maior profissionalização é acompanhada da maior
proletarização que, para além do sentido econômico, também diz respeito à autonomia
nos processos de trabalho.
O professor viveu/vive a contradição, a ambigüidade da definição sobre o caráter
de sua profissão. Este foi um dos fatores que gerou dificuldade na organização sindical
destes profissionais. Se tendencialmente autônomos, se orgânicos às classes subalternas,
se politicamente compromissados com a transformação das estruturas sociais e se
“proletarizados”, por que os professores estariam sendo incapazes de reverter à posição
em que hoje se encontram, sobretudo, em sociedades do tipo da brasileira? O aumento
da mobilização sindical e a adesão expressiva em greves, sobretudo nas redes públicas,
não implicam na constituição de uma “consciência” de classe proletária e não alienada
dos professores, mesmo quando estes se vejam inseridos em um processo de
pauperização econômica.
Numa perspectiva sociológica o conceito de profissão constitui o que se pode
designar por um "constructo", dada a dificuldade em detalhar os seus atributos. Na linha
de pensamento de Edgar Morin (apud Pena-Vega & Nascimento, 1999) pode-se
assegurar que a profissão de professor é uma profissão complexa, onde impera a
incerteza e a ambigüidade das funções. O professor exercia até os anos de 1960 uma
função social transcendente, além de um modelo moral e político era também visto
como um sacerdote a serviço do saber. A sua vida confundia-se com a missão. Portanto,
ser professor era a manifestação de uma vocação ou missão transcendente, não o

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exercício de uma profissão. Assim sendo assevera-se que este perfil contribuiu
sobremaneira para o atraso na organização sindical dos docentes, pois a consciência de
classe necessária e o poder reivindicativo frente às precárias condições de trabalho não
dominaram o pensamento da categoria.
Estudos sociológicos posteriores demonstraram que essa imagem dos atributos
do professor foi destruída pela massificação do ensino, de modo que eles já se
encontram profundamente envolvidos com estratégias de poder. Estes, quando a serviço
do poder dominante, funcionam como “ideólogos profissionais” (Althusser, 1974),
“agentes de reprodução cultural" (Bourdieu & Passeron, 1992) ou "agentes de controle
simbólico" (Bernstein, 1977). Noutra vertente e explorando as contradições sociais que
assolam as escolas, Henry Giroux (1986), defende a vocação intelectual dos professores
e assegura que nem todos são conservadores, muito pelo contrário, estão empenhados
na transformação da sociedade.
Mais contemporaneamente, sobretudo a partir dos anos de 1990, parece estar
ocorrendo uma inflexão do sindicalismo docente, dado certo esgotamento das práticas
de luta recentemente empregadas e por terem sido mais difíceis e menos vitoriosos os
conflitos com os governos estaduais e municipais.
A atuação do sindicato docente nem sempre se concentrou na defesa das
condições de trabalho, na reivindicação salarial ou na crítica às políticas educativas, mas
também na promoção da educação e dos modos de aprendizagem. Neste sentido, é
pertinente que o movimento sindical assuma também a dimensão original, deslocando-
se de ator para autor de processos educativos.
O sindicalismo docente tem de ser propositivo e não somente denunciador ou
mesmo conciliador. O que se pretende dizer é que ele deve procurar novas modalidades
de pressão social junto aos governos. A greve é um bom exemplo. Quando se convoca
uma greve isso não significa que tenha de se interromper a relação de aprendizagem.
Dependendo da forma como ela for gerida, uma greve pode perfeitamente tornar-se num
momento político-educativo, porque fora da escola também se aprende. O sindicalismo
docente precisa também recuperar uma dimensão que esteve na sua origem, que é a de
entender a educação como um fenômeno mais amplo, que olhe para além da escola.
Isso implica em dizer que ao nível da formulação das políticas educativas é
urgente que o movimento sindical docente requalifique a sua intervenção. Ao contrário
de se limitar e esperar cada mudança governamental ou ministerial, os sindicatos de

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professores deveriam antecipar-se na apresentação pública das suas propostas para o


setor.
Na realidade, hoje os sindicatos estão padecendo por conta da impregnação da
lógica corporativa e pela acomodação à legislação sindical. Há uma ausência de
sentimento de categoria que se alia à baixa capacidade de mobilização dos sindicatos.
Por isso, o sindicato docente deve assumir um papel mais amplo do que o que
comumente assume. Um dos participantes dessa pesquisa apela para uma
ressignificação da prática sindical, com o seguinte argumento:

“O sindicato continua sendo fundamental e ele tem que ter um


elemento corporativista porque a primeira defesa é a da
categoria, mas também ele não pode ser só isso, ele tem que ser
também um sindicato cidadão, que aborde questões culturais,
questões mais gerais da sociedade. Isso aí a gente tem visto
experiências, avanços e recuos, coisas boas ou coisas ruins,
mas o que se percebe é que hoje há um certo fastio, a categoria
não participa muito, está muito aquém do desejado, se mobiliza
pouco”.

Essa ressignificação da prática sindical passa pelo que o pesquisador de


sindicalismo docente na América Latina, Júlian Gindin, chama de “momentos não
corporativos das práticas sindicais”. Ele aponta dois significativos momentos que
existem na prática sindical no campo educacional: 1) A participação nas lutas sociais. É
quando o professorado transcende o corporativismo produzindo instâncias de unidade
com outros segmentos de trabalhadores e setores sociais, num processo no qual a
própria identidade é construída. Também é o momento que a categoria de professores se
identifica com a classe trabalhadora; 2) A defesa da escola pública. Essa posição
desnuda a dimensão privatista das reformas educacionais neoliberais. Os governos com
essa perspectiva política têm criticado as entidades sindicais por se apegarem ao
passado e defenderem privilégios setoriais. Como o neoliberalismo tem mantido uma
hegemonia ideológica sobre a opinião pública, o sindicalismo docente disputa essa
hegemonia com a defesa da escola pública, tanto que no momento de uma greve o
magistério busca o apoio da comunidade (Gindin, 2006).

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Apesar da crise, não se trata de dizer que o sindicalismo perdeu o seu papel ou
se tornou uma instituição démodé, do passado, e que está destinado a se extinguir, como
interpretou Leôncio Martins Rodrigues, em sua obra “Destino do Sindicalismo” (2002).
Os sindicatos representam um elemento de organização dos trabalhadores, em uma
situação de desorganização social e coletiva, e ainda têm papel essencial a
desempenhar: de articulador, mobilizador do diverso e do múltiplo mundo do trabalho.
Dizer que rumamos para uma sociedade do não-trabalho, conforme se interpreta
da obra do sociólogo italiano, Dominico De Masi (2001), não se sustenta. O que tem
acontecido são deslocamentos no mundo do trabalho e uma intensificação da exploração
dos trabalhadores formais. Há uma redução do trabalho, mas também uma
intensificação da jornada (Dal Rosso, 1996).
Não estamos próximos de uma sociedade do ócio ou do lazer, pelo contrário.
Vivemos uma contradição que está se agudizando. Há uma redução horizontal e não
vertical do trabalho, mas continuamos numa sociedade baseada no mercado. Ou seja, as
pessoas precisam do trabalho e da renda para resolver os seus problemas. E para
aqueles que se mantêm empregados, há uma intensificação da jornada e da
produtividade. O não-trabalho significa exclusão e uma intensificação do trabalho em
outros pólos do sistema (Rodrigues, 1997).
Para os que acreditam que a forma-sindicato está esgotada, que já não consegue
dar respostas para as transformações em curso no mundo do trabalho, concordamos com
o professor e sociólogo Antonio David Cattani, quando diz que “o sindicato permanece
como um componente essencial na organização da sociedade democrática. A
reestruturação econômica não diminuiu sua importância, pelo contrário, aumentou
ainda mais. Os sindicatos continuam sendo uma instância indispensável para o
aperfeiçoamento das relações de produção, para a defesa dos interesses dos mais
desfavorecidos na esfera da produção e para a reconstrução do espírito de
solidariedade e de igualdade que anima as iniciativas mais progressistas do ser
humano” (Cattani, 2002).

Referências bibliográficas

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